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FACULDADE DE DIREITO
DO GENOCÍDIO E ETNOCÍDIO
POVO, IDENTIDADE CULTURAL E O CASO YANOMAMI
Porto Alegre
2008
FARGS – FACULDADES RIO-GRANDENSES
FACULDADE DE DIREITO
DO GENOCÍDIO E ETNOCÍDIO
POVO, IDENTIDADE CULTURAL E O CASO YANOMAMI
Porto Alegre
2008
AGRADECIMENTOS
Muitas pessoas merecem ser agradecidas pela colaboração com este estudo. Em pri-
meiro lugar, à minha mãe – Maria Salete Correia – pela força, pelo apoio. Uma mulher mag-
nífica, que amo muito. Um exemplo de luta e determinação. Sinto orgulho de ser filho dela.
Outro agradecimento especial merece ser realizado. Ao grupo de pesquisa Libera Cau-
sa de Filosofia da FARGS, principalmente ao professor Gilberto Testa, por todo o trabalho
que desenvolveu conosco desde a origem do grupo (em 2005), e a partir do qual obtive muitos
ensinamentos. É um verdadeiro mestre. Agradeço também às colegas Marina, Gerluza, Célia,
Júlio, José e demais, pela contribuição que todos prestaram para este estudo. Muito obrigado,
pessoal.
Devo agradecer ainda aos colegas de turma, pois eles também possuem participação
nisso. Especialmente à Fernanda, ao Edison Munhoz, Edson Oliveira, César, Elaine, Claudê-
nes, e todos os outros com os quais tive a possibilidade de conviver diariamente na sala de
aula. Muito obrigado.
Agradeço também ao pessoal da Hutukara Associação Yanomami (HAY), e da CCPY
– Comissão Pró-Yanomami, de Boa Vista/RR, em especial a Davi Kopenawa, líder Yanoma-
mi, que me ensinou muito a compreender o seu povo, seus costumes e tradições, e ainda a Ja-
nilson, Marcos Wesley, Ricardo, Geraldo, Norma, Ailton, Ary, aos meus ex-alunos Yanoma-
mi do curso que tive a oportunidade de desenvolver na Hutukara, e a todos os demais que hoje
trabalham junto aos Yanomami em Boa Vista e que tive a grande satisfação de conhecer pes-
soalmente. Um grande abraço.
Também não posso deixar de agradecer à professora Natália Pinzon pela orientação
neste trabalho. Sem ela certamente este estudo não tomaria os contornos que hoje possui, sem
falar nos demais professores que indiretamente contribuíram. Ao corpo de funcionários da
biblioteca da Universidade Nacional Autônoma do México (UNAM), que tão prontamente me
auxiliaram no envio de materiais – livros inclusive – para elaborar este trabalho. Outra pessoa
que merece agradecimentos é o professor Reginaldo, coordenador do curso de História da U-
niversidade Federal de Roraima; grande abraço, professor.
Por fim, à minha namorada Camyla, principalmente por ouvir minhas idéias e me aju-
dar com a leitura do material, em praticamente doze meses de pesquisa. Amo-te. E a todos
aqueles que de qualquer forma ajudaram a elaborar este trabalho, igualmente meus agradeci-
mentos.
“A natureza, única para todos os seres, não fez os homens nobres ou ignó-
beis, mas sim as suas ações e as disposições de espírito”. (Epicuro)
RESUMO
O estudo a seguir trata sobre direitos humanos, com enfoque principal na questão dos
direitos dos povos e proteção dos grupos humanos em face de graves violações a bens jurídi-
cos fundamentais, como o genocídio e etnocídio, que atentam contra a existência e a identida-
de cultural de muitos povos. O trabalho trata eminentemente do massacre de Haximu de 1993;
um caso real que serve como reflexão sobre a condição de existência de muitos povos indíge-
nas no Brasil, e como eles sofrem estes tipos de violências. Como parâmetro do trabalho, são
tomadas como base perspectivas históricas e sócio-políticas que envolvem a temática e de-
monstram como se desenvolveu o processo de modernização e a atual sociedade do risco, que
possibilitam a prática destas graves violações de direitos humanos.
Ainda, buscamos explanar sobre aspectos jurídicos e filosóficos que auxiliam numa
reflexão ético-crítica, possibilitando entender a necessidade de proteção de grupos humanos
ameaçados, principalmente em torno da filosofia da libertação e da ética da libertação, voltada
à questão dos direitos humanos e sua vertente de terceira dimensão, que recepciona os direitos
coletivos. Um estudo, portanto, que aborda a questão relativa às práticas de genocídio e etno-
cídio, graves violações de direitos humanos, e que se inscreve em um caso real, notadamente
na questão do genocídio: o massacre dos Yanomami de Haximu. Pensar estas questões é fun-
damental para se entender a condição das etnias indígenas no Brasil e quais os mecanismos
jurídicos existentes e como produzir um saber jurídico libertador a partir da filosofia e da ética
da libertação, voltada aos direitos dos povos à existência e à identidade cultural.
The study to follow it treats on human rights, with main approach in the question of
the rights of the peoples and protection of the human groups in face of serious breakings the
basic legal good, as the genocide and ethnocide, that attempt against the existence and the cul-
tural identity of many peoples. The work eminently deals with the slaughter of Haximu of
1993; a real case that serves as reflection on the condition of existence of many aboriginal
peoples in Brazil, and as they suffers these types of violences. As parameter of the work, they
are taken as base perspective historical and social political that involves the thematic one and
demonstrates as if it developed the process of modernization and the current risk society, that
they make possible the practical one of these serious breakings of human rights.
Still, we search to explain about legal and philosophical aspects that assist in a ethical-
critical reflection, making possible to understand the necessity of protection of threatened
human groups, mainly around the philosophy of the release and the ethics of the release, come
back to the question of the human rights and its source of third dimension, that to receive
guests the collective rights. A study, therefore, that it approaches the relative question to prac-
tical of genocide and the ethnocide, serious breakings of human rights, and that is enrolled in
a real case, principally in the question of the genocide: the slaughter of the Yanomami of Hax-
imu. To think these questions is basic to understand the condition of the aboriginals in Brazil
and which the existing legal mechanisms and as to produce a know legal liberator from the
philosophy and of the ethics of the release, come back to the rights of the peoples to the exis-
tence and the cultural identity.
INTRODUÇÃO ............................................................................................................................... 10
CAPÍTULO I – CONDIÇÕES HISTÓRICAS E SÓCIO-POLÍTICAS DO EXTERMÍNIO: DA
CONQUISTA DA AMÉRICA AO BRASIL DO SÉCULO XXI................................................ 15
1.1 A CONQUISTA DA AMÉRICA .................................................................................................15
1.1.1 Mercantilismo.......................................................................................................................17
1.1.2 Colombo................................................................................................................................20
1.1.3 Cortez ....................................................................................................................................23
1.1.4 Aspectos quantitativos e qualitativos da destruição dos povos originários ........................26
1.1.5 Elementos jurídicos e político-ideológicos da conquista.....................................................33
1.2 PARA O BRASIL, ORDEM E PROGRESSO: COLONIZAÇÃO, NEOCOLONIZAÇÃO E
POLÍTICA INDIGENISTA BRASILEIRA .......................................................................................39
1.3 BRASIL: MODERNIZAÇÃO, GLOBALIZAÇÃO = EXTINÇÃO ............................................47
1.3.1 O processo de modernização e atual globalização: produção da sociedade do risco ........50
1.3.2 A expansão econômica: o colonialismo interno..................................................................54
1.3.3 A resultante da produção invasora e modernizadora: a violência .....................................56
CAPÍTULO II – DAS PRÁTICAS CONTRA GRUPOS HUMANOS E SUA IDENTIDADE
CULTURAL .................................................................................................................................... 61
2.1 DO GENOCÍDIO: EXTERMÍNIO DE UM POVO .....................................................................61
2.1.1 O processo de normatização do delito no plano internacional...........................................62
2.1.2 Características do genocídio ................................................................................................66
2.1.3 Breves notas sobre o genocídio no direito brasileiro ..........................................................69
2.2 DO ETNOCÍDIO: EXTERMÍNIO DE UMA IDENTIDADE CULTURAL ...............................71
2.2.1 Gênese e conceito .................................................................................................................71
2.2.2 Características no campo jurídico .......................................................................................74
2.2.3 Genocídio e etnocídio ...........................................................................................................76
2.3 A GUERRA OCULTA.................................................................................................................77
2.3.1 O genocídio e o etnocídio como elementos intrínsecos ao contexto da sociedade
modernizadora e do Estado criminal............................................................................................79
2.3.2 Condição de vulnerabilidade e vítimas em potencial ..........................................................81
CAPÍTULO III – 1993: O MASSACRE DE HAXIMU............................................................... 83
3.1 O ANTES .....................................................................................................................................83
3.1.1 Exploração do garimpo, invasão da área Yanomami e estatística do extermínio..............83
3.1.2 Confrontos e poder político..................................................................................................88
3.2 O DURANTE ...............................................................................................................................90
3.2.1 Do massacre..........................................................................................................................94
3.2.2 A repercussão .......................................................................................................................98
3.2.3 Investigação do crime e julgamento ....................................................................................99
3.3 O DEPOIS ..................................................................................................................................107
3.3.1 A condição dos Yanomami após o massacre .....................................................................107
3.3.2 Assistência à saúde.............................................................................................................108
3.3.3 O homem branco ainda ronda a floresta...........................................................................109
CAPÍTULO IV – DIREITO À EXISTÊNCIA E À IDENTIDADE CULTURAL .................. 112
4.1 A LUTA PELA EXISTÊNCIA E PELA IDENTIDADE CULTURAL .....................................112
4.1.1 Tolerância...........................................................................................................................113
4.1.2 Direitos Humanos...............................................................................................................116
4.1.3 Direito dos Povos ................................................................................................................121
4.1.4 Hutukara Associação Yanomami ......................................................................................123
4.2 FILOSOFIA E ÉTICA DA LIBERTAÇÃO ...............................................................................125
4.2.1 Origens e definição da filosofia da libertação...................................................................125
4.2.2 A filosofia da libertação no reconhecimento dos direitos dos povos ................................128
4.2.3 Por uma prática jushumanista-pluralista a partir da ética da libertação ........................130
CONSIDERAÇÕES FINAIS ....................................................................................................... 133
REFERÊNCIAS ............................................................................................................................ 138
10
INTRODUÇÃO
I
Também vieram de longe e plantaram raízes imemoriais no jardim de sua e-
leição, desde a diáspora primeva da Criação.
Não sabemos se temos a mesma origem ou se nascemos já divididos, dispu-
tando o mesmo espaço.
Descimentos e preamentos, bandeirantes dizimaram e escravizaram índios
sem religião como animais errantes.
II
Os sobreviventes estão confinados em reservas como num zoológico huma-
no.
Duas culturas não podem ocupar o mesmo lugar: ou o índio é integrado à so-
ciedade e perde a identidade tribal, ou refugia-se na comunidade.
Garimpeiros, pecuaristas, seringueiros e extrativistas (caraíbas) avançam com
moto-serras.
O índio não é ambicioso nem ocioso.
A terra é a existência do índio, terra de todos, comunitária, terra que é partí-
cula em movimento e assimilação.
Terra e índio: um vive da outra. Mãe e filho, indivisíveis.
Terra sagrada de húmus vivo e fértil de seus antepassados com que o índio
abona o inhame, o cará e a taioba.
Em que cultiva, caça e pesca e colhe, apenas quando e quanto necessita.
III
Para o índio não há amanhã em qualquer sentido, pois o tempo não existe em
sua percepção: o movimento do corpo num ímpeto contínuo (da vontade em ação) é
que move a rede (e não os pés e a mão) como move a vida.
Dias alternam-se sem alterações e altercações – de pesca, de fruta acesa que
logo vai compartilhar no complemento do beiju, do pirarucu e do tucunaré.
O fogo está sempre aceso na aldeia e almas intermitentes de dormir e desper-
tar de morrer e renascer: um tempo dentro de outro tempo infinito e cego.
Fogo feito para irmanar-se depois de buscar a lenha que não armazena jamais
para não quebrar a rotina.
Um grande poder de concentração - e de dedicação extrema - com todo o
1
tempo do mundo, mas sem a noção de tempo .
Este trabalho é fruto de sucessivos estudos anteriores, os quais contribuíram para a se-
leção do tema. Uma questão que merece ser esclarecida é a razão pela qual foi adotado o pre-
sente título: Do genocídio e etnocídio – povo, identidade cultural e o caso Yanomami.
A idéia de se realizar a abordagem sobre a questão das etnias e dos direitos humanos
iniciou-se com trabalhos desenvolvidos no Grupo de Pesquisa de Filosofia do Direito da
1
MIRANDA, Antônio. Os índios. Disponível em:
<http://www.antoniomiranda.com.br/poesia_ilustrada/portugues/indios.html>. Acesso em: 30 out. 2008.
11
FARGS, no qual uma série de estudos foi realizada a partir de contextos jurídicos, filosóficos
e políticos, e inclusive na área do Direito Penal Internacional, já que o objeto do trabalho an-
terior versava sobre as questões político-filosóficas do totalitarismo e crimes internacionais2.
Questão também de grande importância no título é a idéia de povo, que por sinal pos-
sui muitas acepções3. Para a antropologia, pode representar um coletivo de seres humanos
com a mesma origem racial, uma mesma língua, similares costumes e formas de vida. Pode
ter também a conotação de gente humilde e comum da população. Para os juristas, são as pes-
soas que integram um país, vinculando-se à idéia de soberania popular. Na perspectiva socio-
lógica (e em especial na corrente do materialismo histórico marxista), trata-se de um conjunto
de classes subordinadas: o proletariado, por exemplo.
2
Trata-se do julgamento de Eichmann em novembro de 2007, trabalho desenvolvido pelo do grupo de pesquisa
da FARGS.
3
CIFUENTES, José Emilio Rolando Ordoñez. La cuestión étnico nacional e derechos humanos: el etnocidio –
Los problemas de la definición conceptual. México: Instituto de Investigaciones Jurídicas de la UNAM, 1996, p.
127-129.
12
Especialmente no que tange aos indígenas, o povo indígena será aquele que, além de
apresentar as características anteriores, é originário da região que habita e que foi incluído na
institucionalidade de outra sociedade (dominante). Ele se define, portanto, com uma socieda-
de que não é originária5. Mas não obstante a diferenciação entre povo e povo indígena, para
fins didáticos, adotemos o primeiro, proveniente do Instituto Interamericano.
Com relação à identidade cultural, é necessário esclarecer que ela está ligada à idéia
de etnia. Em suma, esta é um organismo social formado por grupos de pessoas que possuem
vínculos culturais comuns (língua, modo de vida, tradições, etc). Assim, a identidade cultural
provém destas características que são comuns dentro de um povo, formando uma etnia, gru-
pos humanos que compõem uma identidade cultural específica; se identificam e são identifi-
cados como tais.
4
Idem, p. 136.
5
Ibidem, p. 136.
6
Nome conhecido do massacre ocorrido em 1993.
13
a) A omissão (o outro não é), pois a omissão do outro sempre tende a culminar em seu
desaparecimento. A cristianização, o progresso, a modernização, a suspensão dos direitos co-
muns a pessoas diferentes, a lei que não os respeita; tudo se constitui como uma forma de e-
xercício do poder e que obscurece a existência do Outro e do seu mundo.
O estudo do tema proposto necessita ainda de uma breve abordagem histórica como
elemento norteador. A partir deste elemento histórico será possível situar, no tempo e no es-
paço, como o problema da prática do genocídio e etnocídio contra os povos indígenas foi ob-
jeto de uma violência expressa, e posteriormente, com a expansão econômica, resultou em
uma prática de violência que hoje possui uma nova roupagem, em que pese ainda conservar
medidas brutais da época da colonização.
7
BARIÉ, Cletus Gregor. Pueblos indígenas y derechos constitucionales en la América Latina: un panorama. 2ª
ed. La Paz, 2007. Disponível em: <http://gregor.padep.org.bo/pdf/>. Acesso em: 30 mai. 2008, p. 15-17.
14
Por fim, será exposto como esta prática de violência contra os povos indígenas sofreu
mutações, decorrentes de novas práticas de saber-poder que revestem a sociedade industrial e
globalizada. E hoje, especificamente no Brasil, a invasão de territórios de que necessita o pro-
cesso produtivo, característico deste tipo de sociedade, vem tomando os territórios e os corpos
das etnias, em um mecanismo de expropriação, muitas vezes defendido não somente explora-
ção econômica, mas também dentro das instâncias do Poder Estatal; estas, por vezes, compac-
tuam com esta expansão. Tais práticas, revestidas por formas jurídicas tuteladas pelo Direito,
resultam em violência e posterior extermínio de povos, especialmente indígenas8.
São estas as considerações sobre a nova roupagem, a nova prática de genocídio e etno-
cídio que se constitui na sociedade atual, e que será objeto do estudo proposto. A necessidade
de uma maior proteção, não somente do Povo Yanomami, mas dos demais povos constituídos
como minorias, é o fator que merece destaque, a fim de se observar seus direitos à cultura, ao
seu território e à preservação de sua existência.
8
Dados estatísticos oficiais do CIMI sobre a violência contra povos indígenas demonstram hoje que existem
cerca de 60 tribos que ainda não mantêm contato com a nossa sociedade envolvente. Destas 60 tribos, cerca de
16 estão ameaçadas de extinção pelas invasões decorrentes desta expansão econômica. Vide o relatório de vio-
lência (2003-2005). Disponível em:
<http://www.cimi.org.br/?system=publicacoes&action=publicacoes&cid=11>. Acesso em: 28 jan. 2008.
15
Para compreender todo o contexto das práticas de genocídio e etnocídio, com o enfo-
que especial ao episódio do massacre Yanomami ocorrido em 1993, voltar-se para o passado é
condição de extrema importância. A conquista da América, além de inaugurar a Era Moderna
e o Estado Moderno, constitui-se como a genealogia, a origem, o fundamento de todo o pro-
cesso de colonização no Continente americano, e muitas das suas características ainda são
presentes em nossa realidade da América Central e Latina, guardadas as suas devidas peculia-
ridades no contexto histórico de cada período. Efetivamente foi o início de um processo que
até hoje produz reflexos em nossa região marginal10. Para tanto, olhar para a conquista da
América é voltar-se para as origens da nossa constituição como sujeitos oriundos das técnicas
de domínio empregadas ontem e hoje.
Mas qual seria o liame existente entre a conquista da América e todo o contexto histó-
rico e sócio-político que culminou no massacre de Haximu? A resposta a esta questão deverá
ser tratada ao final deste estudo, pois será o momento em que se constituirá o fechamento do
círculo, a montagem de todas as peças que formarão o conjunto necessário para a compreen-
são da essência das práticas de genocídio e etnocídio, bem como o contexto do massacre de
1993.
9
MONTAIGNE, citado por LAS CASAS, Bartolomé de. O Paraíso Destruído. Porto Alegre: L&PM, 1984, p.
19.
10
A expressão é originalmente empregada pelo jurista Eugênio Raúl Zaffaroni, na obra Em busca das penas per-
didas, em torno da perda da legitimidade do sistema penal. Para tanto, o termo se refere ao âmbito da América
Latina, em seu estudo sobre o sistema penal. Em ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Em busca das penas perdidas.
Rio de Janeiro: Revan, 1991.
16
Neste momento, seria conveniente apenas apresentar uma pista a esta resposta: o fe-
nômeno do colonialismo ainda subsiste, aliado a outras técnicas de saber e de poder, peculia-
res da nossa sociedade globalizada, e que atuam no sentido de promover a degradação, não
apenas cultural, mas também física de povos, etnias que não contribuem com o processo de
expansão econômica, a qual não possui fronteiras, ultrapassa barreiras territoriais, extermina
povos e culturas. E neste aspecto, o massacre de Haximu é um episódio que comporta todas
estas características do processo de expansão neocolonial, um fruto de uma realidade advinda
dos mecanismos de poder que atuam no corpo social, tais como a produção racional de uma
verdade e o conseqüente discurso da irreversibilidade e aceitabilidade dos processos de subju-
gação de etnias como um mal necessário em benefício ao restante da população.
Contribuindo com estes aspectos preliminares, Zaffaroni11 refere que há cinco séculos
nosso território vem sendo submetido a um chamado processo de atualização histórica incor-
porativa, que é produto de duas revoluções sucessivas: a revolução mercantil (Século XVI) e
a industrial (Século XVIII). Inicialmente, no mercantilismo, as potências européias realizaram
a incorporação dos povos americanos à civilização mercantil na forma do colonialismo; poste-
riormente, houve a prática de um neocolonialismo que ainda perdura. E na atualidade, tendo a
América do Norte se dimensionado como o centro, como parâmetro para o Mundo, seria pos-
sível reconhecer que nosso estágio atual é a revolução tecnocientífica. Portanto, nosso proces-
so histórico até então poderia se resumir nestas três etapas: a revolução mercantil, a revolução
industrial e, por fim, a atual revolução tecnocientífica.
Com base nesta tripartição, Zaffaroni refere que tanto o colonialismo como o neocolo-
nialismo foram momentos distintos de genocídio e etnocídio, contudo, igualmente nefastos.
Nesse sentido, a destruição de culturas originárias e a morte dos habitantes eram fatos que
impressionavam os próprios colonizadores, e a escravidão através do transporte de africanos
constituiriam as características evidentes do colonialismo.
América pelo fato de não terem recebido a mensagem cristã), e no neocolonialismo, por uma
inferioridade fundada pela razão de que os habitantes da América não possuiriam o mesmo
grau de civilização, ou eram biologicamente inferiores12.
1.1.1 Mercantilismo
12
Idem, p. 119.
13
Não é demais ressaltar dentro deste aspecto o processo ilimitado da expansão econômica, que tem causado
uma constante degradação ambiental, fato este que influi muitas vezes para a execração de minorias étnicas que
dependem do ecossistema, naturalmente constituído para sua sobrevivência cultural e biológica.
18
O mercantilismo, em sua definição, seria um conjunto de idéias, com uma prática polí-
tica e econômica desenvolvida pelos Estados europeus na Época Moderna18, mais precisa-
mente dos Séculos XV ao XVII. Mantinha-se uma idéia de acumulação de metais preciosos e
a utilização do Estado como meio centralizador, ou seja, os Estados intervinham diretamente
na economia, buscando assegurar o crescimento econômico e político. Nesse sentido, o mer-
cantilismo age diretamente para a centralização do poder em torno do rei, em troca dos bene-
fícios econômicos garantidos pela burguesia comercial em ascensão.
14
PRODANOV, Cléber Cristiano. O mercantilismo e a América. 5ª ed. São Paulo: Contexto, 1998, p. 09.
15
Idem, p. 12.
16
Ibidem, p. 12.
17
Ibidem, p. 14. Esta fase transitória não pressupõe crise, mas uma instabilidade causada pela mudança e pela
convivência de elementos do novo com os do velho. E a transição do feudalismo para o capitalismo inicia a par-
tir do Século XVI, em que a centralização do Estado se torna constante em diversos territórios.
18
Ibidem, p. 14. Necessário salientar ainda que esta Era Moderna inicia-se com o período de transição do feuda-
lismo para o capitalismo, que ocorreu com o fechamento da rota comercial Europa-Oriente via Constantinopla
(1453).
19
suas economias da ação dos exportadores internacionais, devido ao fato de que todas as na-
ções resolvem somente exportar e limitar as importações. Esse fenômeno de busca por ouro e
prata chamava-se metalismo. Um Estado que não possuísse reservas de ouro e prata estava
impossibilitado de fazer comércio internacional19. Assim, com a expansão comercial maríti-
ma, o Novo Mundo torna-se terreno propício para os objetivos de acumulação de metais pre-
ciosos.
Outro aspecto relevante é a impressão dos colonizadores em face dos costumes dos
povos originários na América. Na chegada à terra nova, os europeus encontram uma socieda-
de “bárbara”, “não-cristã”. Deveriam ser trazidos à civilização, domesticados dentro dos pa-
drões de conduta e de religiosidade européias e cristãs. Prodanov21 ressalta:
19
Idem, p. 31.
20
Ibidem, p. 52. Como ainda ressalta Prodanov, até hoje é corriqueiro julgar a importância da natureza pela ri-
queza que ela pode proporcionar. Para ele, a ciência moderna também nasceu sob o fundamento do domínio so-
bre a natureza, e a subordinação da natureza ao homem seria um dos ideais da ciência moderna.
21
Ibidem, p. 59.
20
Para tanto, além do próprio interesse econômico que conduziu a conquista e a coloni-
zação da América, a ideologia teológica possuía forte influência. A construção de igrejas,
monumentos, a imposição da doutrina religiosa dominante na Europa, com base no poder pas-
toral cristão22, além de outros costumes ocidentais, foi a tentativa de moldar as sociedades o-
riginárias à imagem e semelhança do que havia no Continente europeu, “o homem à imagem
e semelhança de Deus”.
1.1.2 Colombo
Não seria excessivo afirmar que o colonialismo, nos últimos cinco séculos, foi o gran-
de perpetrador de genocídios durante a ocupação de territórios. O europeu – colono ou con-
quistador – considerando selvagens os habitantes das terras que tomava pela sua incapacidade
de adaptação à “louvada civilização”, justificava sua conquista tratando as comunidades ori-
ginárias como uma espécie de sub-homens, condenados à exploração ou extermínio23.
Pode-se dizer que dois homens foram os mais importantes atores deste fenômeno: Co-
lombo, pela sua perspectiva assimilacionista e posteriormente escravagista, e Cortez, pela sua
implacável atuação na conquista dos povos originários, mediante estratégias, técnicas e im-
plementações de mecanismos de violência. Estas práticas marcam a descoberta do eu sobre o
ser-do-outro, ainda que não reconhecido como tal. A descoberta e posterior conquista da A-
mérica é certamente o encontro mais surpreendente da História, e o século XVI foi a época do
maior genocídio já ocorrido. Com relação aos pontos característicos da conquista, o filósofo
22
O poder pastoral cristão tem suas bases nas técnicas de obediência incondicional, fundação de verdades e de
leis e principalmente a relação de dependência integral do indivíduo sobre outro. Mais detalhes em FOUCAULT,
Michel. Segurança, Território, População. São Paulo: Martins Fontes, 2008.
23
TERNON, Yves. El Estado Criminal – Los genocídios del siglo XX. Barcelona: Península, 1995, p. 282.
21
búlgaro Tzvetan Todorov24 será a base elementar para as descrições a seguir. Para ele, a des-
coberta da América, além de ser um encontro único, é o que anuncia e fundamenta nossa i-
dentidade presente.
O ano de 1492 inaugura a Era Moderna. É o ano em que Colombo atravessa o oceano
Atlântico, e em que inicia nossa genealogia25.
Pelos estudos de Todorov, pode-se dizer que o que levou Colombo à América foram a
necessidade de dinheiro e o desejo de impor o verdadeiro Deus. E ambos os objetivos não se
excluem. Chegando à América, Colombo descreve sua admiração pela natureza, seu interesse
em rebatizar os lugares, além de efetuar toda uma gama de interpretações (a sua visão) dos
costumes dos povos originários.
24
TODOROV, Tzvetan. A Conquista da América – A questão do outro. São Paulo: Martins Fontes, 2003.
25
Idem, p. 07.
26
Ibidem, p. 39.
27
Ibidem, p. 42.
28
COLOMBO, citado por TODOROV, p. 49.
22
inda relata: ‘Não creio que haja no mundo homens melhores, assim como não há terras me-
lhores’29; ‘Seja coisa de valor ou coisa de baixo preço, qualquer que seja o objeto que lhes dá
em troca e qualquer que seja seu valor, ficam satisfeitos’30. É o aspecto assimilacionista inici-
al da descoberta e conquista da América.
E com relação a este aspecto da troca, houve um episódio em que alguns espanhóis
entram nas cabanas de alguns nativos e servem-se de todos os objetos. Contudo, os indígenas,
achando que tinham o mesmo costume, apanham o que pertencia aos cristãos. E a partir deste
momento, Colombo passa a declarar que os índios são todos ladrões; e imediatamente empre-
ga-lhes castigos, como retaliações em partes do corpo31. Desta forma, verifica-se claramente
que Colombo possui uma atitude para com os indígenas de acordo com sua percepção.
‘Mas quando atingimos as águas que cercam a Espanha, uns duzentos dos
índios morreram, creio que por causa do ar ao qual não estavam habituados, mais
frio do que o deles. Foram jogados no mar (...). Desembarcamos todos os escravos, a
metade deles doente’35.
29
COLOMBO, citado por TODOROV, p. 51.
30
Idem, p. 52.
31
Ibidem, p. 55.
32
Ibidem, p. 64.
33
Ibidem, p. 65.
34
De acordo com as descrições apresentadas por Josefina Oliva de Coll, “O Almirante impôs um tributo: todos
os vizinhos das minas com mais de quatorze anos de idade eram obrigados a entregar a cada três meses uma
grande quantidade de ouro. Os que viviam longe das minas foram obrigados ao pagamento de uma arroba de
algodão por pessoa. Para que ninguém pudesse iludi-lo, ordenou que cada tributário levasse pendurado no pesco-
ço uma moeda de cobre ou de latão, na qual se fazia uma marca especial por cada pagamento, para que ‘se co-
nhecesse quem pagou e quem não pagou, de maneira que quem não a trouxesse deveria ser castigado’”. Vide
COLL, Josefina Oliva de. A Resistência Indígena. Porto Alegre: L&PM, 1986, p. 19-20.
35
COLOMBO, citado por TODOROV, op. cit., p. 66.
23
Nesta primeira parte da conquista, verifica-se este duplo sentido: o outro, ao mesmo
tempo em que é descoberto, é também recusado, e este passa a ser objeto de imposição dos
próprios valores do colonizador. De fato, os primeiros contatos foram a inauguração de pro-
cedimentos de conquista que ainda estariam por vir.
1.1.3 Cortez
Enviada pelo governador de Cuba, a expedição de Cortez, no ano de 1519, será a ter-
ceira que chega à costa do México, com centenas de homens. E no momento em que toma co-
nhecimento da existência do império asteca, passa a desenvolver uma contínua progressão ao
interior, buscando obter a adesão das populações, pela promessa ou ainda pela guerra36.
36
TODOROV, op. cit., p. 75.
37
Idem, p. 82.
38
Interessante a menção que Todorov faz acerca da religião. Ele afirma que do seu ponto de vista, “a posição dos
cristãos não é, em si, ‘melhor’ que a dos astecas, ou mais próxima da ‘verdade’. A religião, qualquer que seja seu
conteúdo, é um discurso transmitido pela tradição, e que importa enquanto garantia de uma identidade cultural”.
Ibidem, p. 116.
39
Ibidem, p. 83.
24
Mediante um jogo de representações, buscava afirmar sua superioridade militar sobre a popu-
lação.
O desfecho de uma guerra dependeria da reputação de seu exército. Tanto que quando
entra pela primeira vez na Cidade do México, dispensa a companhia de um grupo de índios
aliados, para não acarretar a suspeita de hostilidade; e quando recebe a visita de mensageiros
de chefes distantes, exibia todo o seu poder com a exibição dos cavalos em formação de bata-
lha e das armas40. Nesse sentido, é visível a eficácia simbólica da utilização das armas na
conquista. Contudo, além da eficácia simbólica, as armas também tinham a sua eficácia práti-
ca. Certa vez, Cortez ordena que cada um dos caciques faça vir seu herdeiro. Cumprida a or-
dem, todos os caciques são queimados em uma imensa fogueira, e seus herdeiros assistem à
execução. Logo após, Cortez os chama e pergunta se sabem como foi dada a sentença contra
seus pais; e ao final, argumenta que espera que o exemplo baste e que eles não sejam mais
suspeitos de desobediência41.
Outro fator que demonstra as técnicas empregadas para a conquista é a exploração dos
mitos indígenas pelos espanhóis em seu benefício, visando tornar mais eficiente o processo de
escravização. Os índios lucayos, por exemplo, atuais habitantes das Ilhas Bahamas, acreditam
que, após a morte, seus espíritos partem para uma terra prometida, um paraíso. Os espanhóis,
necessitando de mão-de-obra e sem encontrar voluntários, assimilam o mito e usam-no em
seu benefício.
40
Idem, p. 166.
41
Ibidem, p. 167.
42
LAS CASAS, citado por TODOROV, op. cit., p. 170.
25
Todavia, subsiste um fator que na conquista implementada por Cortez não existia
quando Colombo chega à terra firme. Ao contrário de Colombo, cuja mentalidade pendia para
a idéia de inferioridade dos povos indígenas que encontrava, os espanhóis que chegaram à Ci-
dade do México com Cortez manifestavam sua admiração pela organização do império asteca.
No pensamento de Cortez, a organização dos indígenas manifestava apreço justamente por se
tratar de características semelhantes aos espanhóis, no que tange à constituição da cidade,
dentre outros aspectos; ‘...os naturais deste país são muito mais inteligentes do que os das i-
lhas’43; ‘há muita gente pobre que, nas ruas, nas casas e nos mercados implora aos ricos, como
fazem os pobres da Espanha e em outros países onde há gente racional’44. Mas, no entanto,
pelas atuações na conquista, demonstra-se que Cortez apenas se admira com as produções dos
astecas, não reconhecendo esses povos como individualidades humanas equiparáveis a ele45.
43
CORTEZ, citado por TODOROV, p. 184.
44
Idem, p. 184.
45
Vide TODOROV, p. 187.
46
Ibidem, p. 187-190.
26
47
Idem, p. 190.
48
Ibidem, p. 190.
49
Ibidem, p. 191. Bartolomé de Las Casas foi frei católico e participou dos processos de colonização e evangeli-
zação da América. Até hoje é tomado como referência em estudos históricos, notadamente pelos seus relatos da
conquista das Índias.
27
ricas. Em meados do século XVI, desses 80 milhões, teriam restado 10. E restringindo-se ao
México, nas vésperas da conquista, a população seria estimada em aproximadamente 25 mi-
lhões; já no ano de 1600, teria restado 1 milhão50. Tratar-se-ia de um recorde, não somente em
termos relativos, mas também em absolutos, eis que teria ocorrido a destruição de cerca de
90% de uma população estimada em 70 milhões de seres humanos. Algo incomparável se nos
voltarmos aos massacres ocorridos no século XX.
Ainda no plano quantitativo, poderíamos descrever três formas que levaram à diminu-
ição da população na época: a) os assassinatos diretos, decorrentes das guerras de conquista,
responsabilidade direta; b) os métodos de exploração colonial, ou maus-tratos; c) a diminui-
ção da natalidade e d) as epidemias, ou choque microbiano. As três últimas pela responsabili-
dade indireta.
No que tange ao assassinato direto, embora esta seja uma das causas, não foi a deter-
minante no processo de extermínio – ainda que seja considerável. As lutas militares foram de
pouca duração. Contudo, é fato evidente que as guerras decorrentes da conquista foram fato-
res que contribuíram para a destruição das Índias no século XVI51.
50
Idem, p. 191.
51
PEREÑA, Luciano. Genocidio en América. Madrid: Mapfre, 1992, p. 367.
52
TODOROV, op. cit., p. 193.
53
Idem, p. 193.
54
Com relação ao processo escravagista, Todorov transcreve o relato de Juan de Zumarraga, bispo da Cidade do
México, o qual descreve as atividades de Niño de Guzmán, conquistador e tirano: ‘Quando ele começou a go-
vernar esta província, ela continha 25.000 índios submissos e pacíficos. Vendeu 10.000 deles como escravos, e
os outros, temendo a mesma sorte, abandonaram suas aldeias’. ZUMARRAGA, Juan de, citado por TODOROV,
p. 194.
28
Aliada ainda aos trabalhos forçados, a exigência de impostos levava ao mesmo resultado. To-
dorov descreve a seguinte passagem:
‘Os impostos exigidos dos índios eram tão elevados que várias cidades, im-
possibilitadas de pagar, vendiam aos usuários que lá havia as terras e os filhos dos
pobres, mas como os impostos eram muito freqüentes, e eles não conseguiam pagá-
los nem que vendessem tudo o que tinham, algumas vilas ficaram totalmente despo-
55
voadas e outras perderam a população’ (III, 4) .
‘Assim, marido e mulher não ficavam juntos e nem se viam durante oito ou
dez meses, ou um ano; e quando, ao cabo desse tempo, se encontravam, estavam tão
cansados e abatidos pela fome, tão prostrados e enfraquecidos, tanto uns quanto ou-
tras, que pouco se preocupavam em manter relações maritais. Deste modo, pararam
de procriar. Os recém-nascidos morriam cedo, pois suas mães, cansadas e famintas,
não tinham leite para nutri-los. Por isso, enquanto eu estava em Cuba, 7.000 crianças
morreram em três meses. Algumas mães chegavam a afogar os filhos por desespero,
enquanto outras, vendo-se grávidas, provocavam abortos com certas ervas que pro-
57
duzem crianças natimortas (Historia, II, 13)’.
Luciano Pereña58 refere que foram sobretudo as epidemias de sarampo que aniquila-
ram os indígenas. Além da gripe, a pneumonia e enfermidades similares se propagaram entre
os autóctones ao entrar em contato com os brancos, causando vítimas incontáveis, posto que o
indígena não possuía imunidade frente às doenças trazidas pelo europeu. Chega-se a referir
55
LAS CASAS, citado por TODOROV, p. 193.
56
PEREÑA. Genocidio en América. Op. cit., p. 369.
57
LAS CASAS, citado por TODOROV, op. cit., p. 194.
58
PEREÑA. Genocidio en América. Op. cit., p. 368.
29
que metade da população da América foi vítima de epidemias. E quanto mais isolada uma po-
pulação, mais destrutivo era o contágio; e quanto mais primitiva uma tribo, mais rapidamente
se extinguia. Pela ausência de imunidades, principalmente nos primeiros tempos da conquista
(primeiros 20 ou 30 anos), estima-se que devido ao sarampo, tifo e outros vírus, houve o ex-
termínio de aproximadamente ¾ (três quartos) dos indígenas59.
Contudo, não foi apenas a existência destas doenças que significou a alta mortalidade,
mas a vulnerabilidade que causava grande risco de contágio. Os indígenas encontravam-se
exauridos pelo trabalho e não sentiam gosto pela vida, como relatava o mestiço Juan Batista
Pomar, em sua Relación de Texcoco, terminada por volta de 158260.
Interessante ainda a referência que Todorov toma como base: as dez pragas61. Como
no Egito bíblico, o México torna-se culpado diante do verdadeiro Deus. Trata-se de uma des-
crição feita por Motolinia, membro do primeiro grupo de franciscanos que desembarca no
México em 1523; nestas descrições, relata-se as diversas formas de violência que chegaram
aos povos originários, como doenças, trabalho escravo, guerras, dentre outras. Para tanto, to-
das estas descrições anteriores seriam os fatores referentes ao aspecto quantitativo do exter-
mínio.
‘Alguns cristãos encontraram uma índia, que trazia nos braços uma criança
que estava amamentando; e, como o cão que os acompanha tinha fome, arrancaram a
criança dos braços da mãe e, viva, jogaram-na ao cão, que se pôs a despedaçá-la di-
ante da mãe. (...) Quando havia prisioneiros mulheres recém-paridas, por pouco que
os recém-nascidos chorassem pegavam-nos pelas pernas e mandavam-os contra as
63
rochas ou jogavam-os no mato para que acabassem de morrer’ .
59
Idem, p. 369.
60
TODOROV, op. cit., p. 195.
61
Idem, p. 196-200.
62
Ibidem, p. 200.
63
Relatório citado por TODOROV, p. 202.
30
‘Cada vez que os índios eram transferidos, eram tantos os que morriam de
fome no caminho que deixavam um rastro que bastaria, pode-se supor, para guiar até
o porto outra embarcação. (...) Mais de 800 índios tendo sido trazidos a um porto
dessa ilha, de nome Puerto de Plata, dois dias se passaram antes que os fizessem
descer da caravela. Morreram seiscentos deles, que foram lançados ao mar: flutua-
65
vam sobre as ondas como tábuas’ .
E prossegue:
64
Idem, p. 202.
65
Ibidem, p. 203.
66
LAS CASAS, citado por TODOROV, p. 204.
31
que ali se encontravam, tanto que o sangue corria de toda a parte, como se tivessem
67
matado um rebanho de vacas’ .
Dentre os motivos pelos quais os atos foram praticados, um dos principais foi o desejo
de riquezas. Pois neste aspecto, o ouro proporcionava tudo: honra, nobreza, bens, família, lu-
xo, roupas, vingança sobre os inimigos e grande estima. Contudo, Todorov aponta que o dese-
jo de enriquecer não seria novo; esta paixão pelo ouro não teria nada de moderno. O que teria
necessariamente o caráter moderno seria a subordinação de todos os valores a este metal.
Como o conquistador aspirava a títulos de nobreza, de estima, para ele, tudo poderia ser obti-
do através do material. Assim, justamente esta homogeneização dos valores pelo dinheiro se-
ria um fato novo, anunciando a mentalidade moderna, igualitarista e economicista69.
Todavia, para Todorov, o desejo de enriquecer não explicaria tudo. Não se poderia
justificar o massacre de Caonao como uma cobiça qualquer, por exemplo. Seria como os con-
quistadores encontrassem um desejo de exercer poder sobre os outros, na demonstração de
sua capacidade de dar a morte, e certamente seria um erro limitar-se a termos afetivos como
“crueldade”.
67
Ibidem, p. 204.
68
BALBOA, citado por TODOROV, p. 204.
69
TODOROV, p. 206.
70
Idem, p. 207.
32
71
Idem, p. 208.
72
Ibidem, p. 209.
73
Ibidem, p. 209.
33
Para fins de entendimento quanto a estes elementos, pode-se entender o elemento jurí-
dico – ou saber jurídico – como o instrumento justificador, produtor de uma norma fundada
em uma verdade construída, modelada, visando os objetivos almejados pela soberania euro-
péia: formas jurídicas produzindo um saber e exercendo um poder74. Um poder fundado em
uma norma imperativa e em uma verdade produzida, fabricada, que garantia a autoridade do
Rei da Espanha, incorporada pelos colonizadores. Ou seja, os instrumentos jurídicos serão os
meios legais produzidos para que o monarca e a religião cristã imponham sua vontade, sua
autoridade, por intermédio da figura do conquistador ou colonizador, que será a representação
do corpo do Rei e do corpo de Cristo.
No que concerne ao elemento político (ou saber político) no sentido ora abordado, po-
de-se entendê-lo como os meios utilizados através do discurso ideológico para justificar a in-
ferioridade dos indígenas e, por conseguinte, a possibilidade de sua subjugação, fazendo com
que esse discurso se propague e se constitua como uma realidade aceitável. É a política do
selvagem sub-humano, que necessita ser guiado na obediência ao Rei e na fé à Igreja.
74
Vide FOUCAULT, Michel. A verdade e as formas jurídicas. Rio de Janeiro: NAU, 2005.
75
CARVALHO, Lucas Borges de. Direito e barbárie na conquista da América indígena. Disponível em:
<http://www.buscalegis.ufsc.br/arquivos/direito%20e%20barb%E1rie.pdf>. Acesso em: 30 jan. 2008, p. 58.
34
Pode-se ressaltar dois tipos de normas que subsistiram na época. De um lado, havia
aquelas que autorizavam a guerra e a escravização dos ameríndios; de outro, as regras mais
“protetoras”.
No primeiro grupo, em 1493 foi criada a Bula Intercaetera, outorgada pelo Papa Ale-
xandre I. Chamada também de Bula de Participação, foi o primeiro documento jurídico relati-
vo à conquista, e atribuía total soberania, jurisdição e domínio à Coroa da Espanha sobre o
Novo Mundo. Em contrapartida, apenas se exigia que os reis difundissem a fé cristã entre os
povos nativos76.
Em 1514, o jurista e conselheiro dos reis católicos Palácios Rúbios elabora o chamado
Requerimiento77. É um dos mais importantes documentos jurídicos que garantia a intervenção
nas colônias, assim como a chamada guerra justa, em caso de resistência dos indígenas. A
justificativa do emprego de tal documento (que era lido diante dos nativos) era que Jesus Cris-
to era considerado o Senhor supremo de todas as terras e o “chefe da linhagem humana”. Je-
sus teria transferido a posse sobre o continente americano a São Pedro, que teria transmitido
por sua vez ao Papa, que por fim teria retransmitido aos reis católicos, Fernando de Aragão e
Isabel de Castela78. Este instrumento era lido a toda comunidade indígena prestes a ser inva-
dida; o Requerimiento informava ao povo sua condição de vassalos da Coroa, garantindo-lhes
a possibilidade de escolha: poderiam acatar a dominação de forma pacífica ou, ao contrário,
em caso de resistência, estava autorizada a guerra justa e a escravidão79.
Curiosamente, estes textos eram lidos sem qualquer intérprete, e muitas vezes os pró-
prios conquistadores dispensavam tal procedimento por questão de simplificação80. Enquanto
os espanhóis falavam, os indígenas apenas escutavam, sendo impelidos a suportar as conse-
qüências de uma suposta desobediência decorrente de sua incompreensão da linguagem do
outro. Ademais, o poder espiritual e o poder do homem conquistador são confundidos pela
conotação de que Deus está ao lado dos europeus e os indígenas, como inferiores, terão de
acatar as medidas.
76
Idem, p. 59.
77
Maiores detalhes sobre este instrumento jurídico do período da conquista constam na obra de PEREÑA, Luci-
ano. La Idea de Justicia en la Conquista de América. Madrid: Mapfre, 1992.
78
CARVALHO, Lucas Borges de. Op. cit., p. 59.
79
O conteúdo do documento era este: ‘Se não o fizerdes, ou se demorardes maliciosamente para tomar uma deci-
são, vos garanto que, com a ajuda de Deus, invadir-vos-ei poderosamente e far-vos-ei a guerra de todos os lados
e de todos os modos que puder, e sujeitar-vos-ei ao jugo e à obediência de Suas Altezas. Capturarei a vós, vossas
mulheres e filhos, e reduzir-vos-ei à escravidão. Escravos, vender-vos-ei e disporei de vós segundo as ordens de
Suas Altezas. Tomarei vossos bens e far-vos-ei todo o mal, todo o dano que puder, como convém a vassalos que
não obedecem a seu senhor, não querem recebê-lo, resistem a ele e o contradizem’. Citado por TODOROV, op.
cit., p. 213.
80
Idem, p. 214.
35
Por outro lado, tem-se outra noção que contribuirá para os fundamentos jurídicos da
conquista. Vitória considerava lícita uma intervenção se fosse feita em nome da proteção dos
inocentes contra a tirania dos chefes ou das leis indígenas, tirania esta que consistia, por e-
xemplo, ‘em sacrificar homens inocentes ou até mesmo executar homens não culpados para
comê-los’83.
Contudo, em realidade, como Todorov menciona, mesmo que esta regra fosse aplicada
de forma indiferente a índios e espanhóis, serão sempre estes últimos que decidem a conota-
ção da palavra tirania. Diferentemente dos indígenas, os espanhóis serão em um só corpo par-
te e juiz, porquanto eles escolhem os critérios segundo os quais o julgamento será pronuncia-
do; nesse sentido, eles decidem que o sacrifício é uma tirania, mas o massacre não84.
Outro elemento jurídico que servia como justificativa para a colonização foi criado a
partir dos ideários propostos tanto pela Bula de Participação quanto pelo Requerimiento. Era o
chamado regime de encomiendas. Em síntese, tratava-se de uma justificativa oficial para o
81
Idem, p. 215.
82
Ibidem, p. 215.
83
VITÓRIA, citado por TODOROV, p. 215.
84
Ibidem, p. 215.
85
Ibidem, p. 216.
36
implemento da escravidão. Os indígenas eram considerados livres, mas vassalos do rei, e de-
veriam pagar tributos. O indígena era encomendado – como escravo – e não pagava este tribu-
to diretamente ao seu senhor (que era o rei), mas ao encomendero, pessoa que usufruía deste
benefício, qual seja, o trabalho indígena, como recompensa dos serviços prestados à Coroa86.
E segundo a idéia do colonizador, nestes moldes a encomenda não era algo que implicava em
propriedade sobre os índios (que continuariam sendo vassalos livres) nem sobre suas terras.
Implicava apenas o usufruto de seu trabalho, obtido por produto de suas terras ou das proprie-
dades dos encomendeiros87. Até 1536, os índios eram outorgados em encomendas junto com
sua descendência, pelo prazo de duas vidas: a do encomendero e a do herdeiro imediato; a
partir de 1629, o regime estendeu-se por três vidas, e em 1704 chegou a quatro vidas nas loca-
lidades onde as Leis Novas (abordadas a seguir), sancionadas sob a pressão de Las Casas, não
foram adotadas88.
Por derradeiro, como havia sido descrito anteriormente, havia as legislações de cunho
mais escravagista e aquelas consideradas “a favor da liberdade dos índios”. Dentre estas, tem-
se a Lei de Burgos, promulgada em 1512, e as Leis Novas, de 1542. A Lei de Burgos, que era
composta de 35 artigos, demonstrava a “preocupação do Estado espanhol em cumprir os pro-
jetos de evangelização. Desta forma, era garantido o direito a bons tratos, alimentação ade-
quada e, ainda ao pagamento de um salário”89. Aliás, a evangelização dos índios e a instrução
dos filhos dos caciques passam a ser também tarefas obrigatórias para o encomendeiro.
Por sua vez, as Leis Novas, provenientes das atuações de Las Casas, visavam “prote-
ger a vida dos índios” e “frear o ímpeto demolidor e individualista dos conquistadores”90. Ti-
nham como objetivos a proibição de novas conquistas e o confisco de encomendas existentes.
No entanto, estas medidas não foram concretizadas, em razão da forte resistência por parte
dos encomendeiros, que inclusive realizavam motins. Logo após, criou-se um instituto jurídi-
co que permitia aos proprietários de escravos não acatarem a lei nova, havendo razões justifi-
cadoras. E mediante este dispositivo, a autoridade colonial poderia suspender o cumprimento
da lei da Coroa, cabendo ao rei homologar ou determinar o seu imediato cumprimento (o que
dificilmente ocorria). “Se acata pero no se cumple”91.
86
CARVALHO, Lucas Borges de. Op. cit., p. 60.
87
Idem, p. 60.
88
LAS CASAS, Bartolomé de. O Paraíso Destruído. Op. cit., p. 15.
89
CARVALHO, Lucas Borges de. Op. cit., p. 60.
90
Idem, p. 61.
91
Ibidem, p. 61.
37
‘Comem carne humana na terra firme. São sodomitas mais do que qualquer
outra nação. Não há justificativa entre eles. Andam completamente nus. Não respei-
tam nem o amor nem a virgindade. São estúpidos e tontos. Só respeitam a verdade
quando lhes é favorável; são inconstantes. Não fazem idéia do que seja a previdên-
cia. São muito ingratos e amantes das novidades. (...) São brutais. Gostam de exage-
rar seus defeitos. Não há entre eles nenhuma obediência, nenhuma complacência dos
jovens para com os velhos, dos filhos para com os pais. São incapazes de receber li-
ções. Os castigos de nada adiantam. (...) Comem piolhos, aranhas e vermes, sem co-
zê-los, e onde quer que os encontrem. Não praticam nenhuma das artes, nenhuma
das indústrias humanas. Quando se lhes ensinam os mistérios da religião, dizem que
essas coisas convêm aos castelhanos, mas não valem nada para eles e que não que-
rem mudar seus costumes. Não têm barba e, se porventura cresce, arrancam-na e de-
pilam-na. (...) Quanto mais envelhecem, piores ficam. Lá pelos dez ou doze anos,
pensamos que terão alguma civilidade, alguma virtude, porém, mais tarde transfor-
mam-se em verdadeiras bestas brutas. Assim posso afirmar que Deus nunca criou
raça mais cheia de vícios e de bestialidade, sem mistura alguma de bondade e de cul-
tura. (...) Os índios são mais idiotas do que os asnos, e não querem fazer esforço no
93
que quer que seja’ .
‘Quando se guerreia contra eles e se combate face a face, é preciso ser mui-
to prudente para não atingi-los na cabeça com a espada, pois vi muitas espadas se-
94
rem quebradas desse modo. Seus crânios são espessos e também muito fortes’ .
E adiante:
92
TODOROV, op. cit., p. 217.
93
ORTIZ, citado por TODOROV, p. 218.
94
OVIEDO, citado por TODOROV, p. 219.
38
‘Satã agora foi expulso dessa ilha [Hispaniola]; toda a sua influência desa-
pareceu agora que a maioria dos índios está morta. (...) Quem pode negar que usar a
95
pólvora contra os pagãos é oferecer incenso ao Nosso Senhor?’ .
Por fim, interessante também salientar que na época houve muitos debates entre os
partidários da igualdade e os defensores da desigualdade dos indígenas e dos espanhóis. Nesse
sentido, podem-se citar as exposições do filósofo Gines de Sepúlveda e do Frei Bartolomé de
Las Casas, em 155096. O primeiro reconhecia a desigualdade como estado natural da socieda-
de humana, e sendo certo que os índios eram povos bárbaros – sem fé, sem lei, e ainda sacrifi-
cavam vidas humanas em cultos satânicos – era justo que os mesmos fossem dominados. Com
efeito, os conquistadores poderiam recorrer à violência para impor a dominação, visto que a
conquista era um ato de paz, justiça, oferecendo ao bárbaro as benesses da vida civilizada97.
De outro lado, Las Casas adotava uma perspectiva assimilacionista, não se opondo à
colonização em si, mas apenas aos métodos empregados, que eram violentos. A tese proposta
por Las Casas almejava tão somente substituir a conquista realizada pela violência – assassi-
natos e matanças – por outras formas mais brandas, mais humanas e mais eficazes para con-
verter os nativos à fé cristã98. É a diferenciação entre duas propostas. O escravismo, de um
lado, e o colonialismo de outro. No entanto, um aspecto é sempre presente: a necessidade de
submissão da América à Espanha e dos índios à religião cristã, o que demonstra que a violên-
cia em si subsistia. O que mudaria seriam as técnicas empregadas para a domesticalização e
exploração, mediante a imposição, seja por violência física, seja por uma violência sutil e
obscura.
A partir deste momento passa-se a seguir para mais perto do contexto atual, que irá re-
sultar no estudo dos crimes contra grupos étnicos e o massacre de Haximu. É a colonização e
a neocolonização que se instauram no Brasil. Este tópico será breve, pois muitas questões tra-
tadas na conquista da América são plenamente identificáveis também nesta realidade do con-
tinente americano: negação do outro, escravismo, extermínio cultural e físico, utilização do
saber jurídico e absorção do saber do outro (cultura, hostilidades entre tribos, etc) para a im-
plantação, a imposição, o exercício do poder pelo colonizador e neocolonizador.
Necessário tratar brevemente dos Séculos XVI a até o início do século XX, bem como
suas políticas indigenistas respectivas. Por isso atribuiu-se o título colonização (que se inicia
no Século XVI) e neocolonização (que se inicia no Século XVIII), cujas implicações surtirão
efeitos até final do Século XX e na realidade presente (Século XXI).
Sabe-se que toda a área hoje habitada pelos “civilizados” no Brasil, onde se construí-
ram as cidades e plantações, foi conquistada em detrimento dos indígenas. Em estudo de auto-
ria de Julio Cezar Melatti100, verifica-se que no período colonial a luta entre colonizadores e
indígenas se fazia com a permissão do Governo metropolitano e até com a utilização de suas
tropas. Após a independência do Brasil, o Estado não mais permitiu a luta contra os índios,
que continuou, no entanto, sendo travada por iniciativa dos particulares.
Em todas as regiões de avanço dos colonizadores, a maior parte das tribos indígenas
desapareceu. E as poucas que restam até hoje estão em lugares que os “civilizados” ainda não
alcançaram ou só recentemente estão alcançando101.
99
Survival International. Deserdados. 2000, p. 01.
100
MELATTI, Julio Cezar. Índios do Brasil. 7ª ed. São Paulo: UNB, 1993.
101
Idem, p. 179.
40
No século seguinte, o XVII, a economia brasileira, ainda dominada pela lavoura, in-
dústria da cana-de-açúcar e pelo gado, avançava pelo interior do Nordeste e pelo Rio São
Francisco; para seguir esta expansão, moviam-se lutas contra tribos que habitavam a região,
as quais eram dizimadas. O Governo português promovia a ocupação do Maranhão e do Pará,
e combates sangrentos davam-se entre brancos e índios. No Sul, os Paulistas começavam a
realizar expedições contra os índios do interior, com o objetivo de obter escravos103. Para tan-
to, a ação colonizadora no sudeste, por exemplo, é bem descrita pelas informações a seguir:
Neste período, igualmente ao que ocorreu nas conquistas espanholas, o grande fator de
extermínio deu-se devido às doenças sobre as quais os indígenas não possuíam proteção. En-
fermidades como gripe, sarampo, catapora, que para nós seriam algo corriqueiro, causam
grandes perdas de população, uma vez que se trata de doenças trazidas de fora para o conti-
102
Idem, p. 180.
103
Ibidem, p. 180.
104
MALHEIRO, Agostinho Marques Perdigão. A Escravidão no Brasil. Ensaio Histórico-Jurídico-Social. Rio
de Janeiro: Typographia Nacional, 1866, p. 53.
105
MELATTI, Julio Cezar. Op. cit., p. 180.
41
nente americano e que os organismos indígenas não tinham nenhuma resistência. Pode-se
mencionar ainda doenças mais graves, como a pneumonia, a varíola e a tuberculose. Nos pri-
meiros tempos da conquista, quando os missionários reuniam indígenas de vários locais a um
só aldeamento para facilitar a catequese, o surto de qualquer uma dessas doenças era desastro-
so, pois a reunião deles facilitava o contágio. As epidemias de varíola, entre 1562 e 1563 na
Bahia, mataram muitos indígenas que eram aldeados desta forma106.
No tocante à política indigenista utilizada para a sujeição dos indígenas, cada período
da história político-institucional do Brasil traz elementos introduzidos pelas políticas anterio-
res, juntamente com elementos novos. Para compreender isto, necessário estabelecer uma
breve distinção no tocante às ações efetuadas no período colonial, no período imperial e no
período republicano.
No período colonial, a Coroa portuguesa oscila entre os interesses dos colonos, que
desejavam escravizar os indígenas, e os esforços dos missionários, que tinham como objetivo
convertê-los ao cristianismo e ao mesmo tempo fazer com que os indígenas adotassem os cos-
tumes dos civilizados. Inclusive uma das primeiras disposições do Governo português, no re-
gimento trazido pelo Governo-Geral do Brasil, já continha esta contradição. O regimento pre-
conizava que a conversão dos indígenas constituía o motivo do povoamento do Brasil, reco-
mendando que fossem bem tratados e que, se sofressem algum dano, lhes fosse concedida a
reparação, punindo-se os responsáveis. No entanto, o mesmo documento permitia que se
combatesse os índios que agissem como inimigos, que os matassem e fossem feitos prisionei-
ros.
106
Idem, p. 180.
42
al, como a guerra justa (fenômeno semelhante à conquista da América), a partir da qual se jus-
tificava a escravização; além disso, eram considerados bárbaros, ferozes e violentos107.
Ainda com relação à escravização, em face da fome da qual os indígenas foram alvo,
aqueles que não eram escravos eram obrigados a se submeter. Na Bahia, em 1564, houve o
seguinte episódio, citado por Manuela Carneiro da Cunha:
‘nesta fome tão desumana, não acabavam os males com os que morriam:
porque os vivos das aldeias vizinhas à cidade, levados do aperto, chegavam a ven-
der-se a si mesmos por cousas de comer. Houve tal, que entregou sua liberdade por
uma só cuia de farinha para livrar a vida: outros se alugavam para servir toda a vida,
ou parte dela: outros vendiam os próprios filhos que geraram; outros aos que não ge-
raram, fingindo-se seus; a tudo isso persuade a dura fome, e necessidade (Vasconce-
108
los, 1977, vol. 2: 101-102)’ .
Neste sentido, verifica-se que a justificativa do benefício da lei aos indígenas era uma
afirmação falsa, uma vez que a natureza dos dispositivos jurídicos dependia da influência que
os jesuítas ou colonos conseguiam sobre o Governo.
107
Mais detalhes acerca da política indigenista neste período encontra-se na obra de Manuela Carneiro da Cunha,
em CUNHA, Manuela Carneiro da. História dos Índios no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 2006, p.
115-131.
108
VASCONCELOS, citado por CUNHA, Manuela Carneiro da. Antropologia do Brasil. São Paulo: Brasiliense,
1986, p. 151.
109
Ressalte-se que a escravização não é extinta totalmente: até a metade do século XIX, com as expansões em
Minas Gerais, Espírito Santo, e Rio Grande do Sul, grupos de brasileiros assaltavam aldeias à noite e tomavam
índios escravos. A caça prosseguia nas capitanias no norte, Pará e região do Amazonas. Vide PEREÑA, Luciano.
Genocidio en América. Op. cit., p. 374.
110
MELATTI, Julio Cezar. Op. cit., p. 188.
43
ção, à educação do outro a partir do saber europeu, integrando-o aos seus costumes e ao seu
modelo de Estado.
No período republicano, final do século XIX e início do Século XX, o Governo não
mais se interessava em promover o trabalho missionário; contudo, não causou obstáculo à a-
tuação dos evangelizadores que, por sua iniciativa, buscassem catequizar os indígenas111. O
século XIX, marcado pelas descobertas e teorias das ciências naturais, transporta este tipo de
discurso às tribos indígenas: é o momento em que se discute a sua humanidade ou animalida-
de (no sentido cientifico da época); em conseqüência se discute a possibilidade/necessidade
de civilizá-los ou exterminá-los112. Carlos Augusto Valle Evangelista destaca que
111
Idem, pg. 189.
112
EVANGELISTA, Carlos Augusto Valle. Direitos indígenas: o debate na constituinte de 1988. Disponível
em: <http://www1.capes.gov.br/teses/pt/2004_mest_ufrj_carlos_augusto_vale_evangelista.pdf>. Acesso em: 30
jan. 2008, p. 19.
113
Idem, p. 19.
114
Ibidem, p. 19.
44
caminhado pelo Ministro Rodolfo Miranda ao Presidente Nilo Peçanha. Nasce diante de um
Ministério sem grande força política, pois em contraposição aos cafeicultores, teria como con-
seqüência a destinação de poucos recursos a esse Ministério. A presença militar dentro do SPI
era outra característica do programa de proteção. Além da proteção aos índios, tinha como
função o recrutamento de trabalhadores nacionais, composto principalmente por antigos es-
cravos, por meio de fixação no campo de mão-de-obra rural e treinamento dos mesmos115.
Dois objetivos seriam difíceis de se efetivar se não fosse pelo viés integra-
cionista, como falado anteriormente. A tarefa mais imediata do órgão era contatar os
índios que resistiam nas novas zonas de conflito. É curioso, neste sentido, que o de-
creto conte com dispositivos que ao mesmo tempo em que garantiam a posse de ter-
ra aos índios, e direcionavam-se, pelos menos formalmente, para a defesa destes,
poderiam também removê-los da zona de conflito.
115
Idem, p. 21.
116
Ibidem, p. 21.
117
Ibidem, p. 21.
118
Ibidem, p. 22.
45
Quando o SPI esteve ligado ao Ministério da Agricultura, foi criado o Conselho Na-
cional de Proteção aos Índios, que funcionaria junto ao SPI, e que se encarregaria das funções
executivas, o que na prática não ocorreu123.
119
Idem, p. 22.
120
Ibidem, p. 22.
121
Ibidem, p. 22.
122
Ibidem, p. 23.
123
Ibidem, p. 23.
46
plementação de um planejamento sólido e a longo prazo, bem como pelas posturas distintas
dos administradores do órgão124.
Contudo, em que pese a Constituinte de 88 ter recepcionado direitos aos povos indíge-
nas, ainda não descartou a possibilidade de utilização de suas terras para exploração mineral,
o que é tema de muita controvérsia127. E os preceitos basilares estabelecidos na Carta Magna
não foram implementados de fato, sendo que ao final da década de 80 e no transcorrer da dé-
cada de 90 até os dias atuais seguem as políticas de execração dos povos originários, seja pelo
setor público ou privado.
lizado), o que ocorria inclusive pelas legislações ditas “protetivas”, e resultando em conflitos
entre particulares e indígenas, com a complacência estatal. O saber jurídico, institucionalizado
pelo Estado Monárquico, Republicano, Ditatorial e posteriormente pelo “Democrático”, mo-
difica as técnicas de controle, em especial formas jurídicas de produção de uma verdade, for-
jada a partir do cunho ideológico vigente. Os problemas relativos à terra, fome e violência de-
correntes de conflitos e exclusão pelo próprio corpo social continuam a subsistir, causando
perigo e risco de destruição de etnias.
Compreender o processo de modernização é mais uma das chaves para entender o con-
junto de práticas que revestem a realidade presente. A idéia de modernidade, em síntese, refe-
re-se à idéia de novo, avançado, racional. Tal concepção é responsável pelo fenômeno da glo-
balização, tão presente na realidade atual, e que ainda possui em seu bojo o processo moder-
nizador.
...o advento da era moderna significou, entre outras coisas, o ataque consci-
ente e sistemático dos “assentados”, convertidos ao modo sedentário de vida, contra
os povos e o estilo de vida nômades, completamente alheios às preocupações territo-
riais e de fronteiras do emergente Estado Moderno.
(...)
Os nômades, que faziam pouco das preocupações territoriais dos legislado-
res e ostensivamente desrespeitavam seus zelosos esforços em traçar fronteiras, fo-
ram colocados entre os principais vilões na guerra santa travada em nome do pro-
gresso e da civilização. A “cronopolítica” moderna os situa não apenas como seres
inferiores e primitivos, “subdesenvolvidos” e necessitados de profunda reforma e es-
clarecimento, mas também como atrasados e “aquém dos tempos”, vítimas da “defa-
sagem cultural”, arrastando-se nos degraus mais baixos da escala evolutiva, e imper-
doavelmente lentos ou morbidamente relutantes em subir nela, para seguir o “padrão
universal de desenvolvimento”.
Pelas descrições feitas, corroboradas ainda pelas informações vertidas nos tópicos an-
teriores, verifica-se que o homem moderno, a partir de sua concepção de mundo, veio à Amé-
rica com o propósito de aniquilar tudo que não fosse identificado consigo mesmo. As implica-
128
BAUMAN, Zygmunt. Modernidade Líquida. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001, p. 19-20.
48
Mas para compreender todo este processo de modernização, necessário tecer alguns
aspectos basilares, notadamente em torno da noção de colonialidade do poder, tema abordado
pelo autor Aníbal Quijano129. De importância para este trabalho, a reflexão deste autor defen-
de a tese de que a atual globalização é resultante de um processo que se iniciou com a consti-
tuição da América e do capitalismo colonial/moderno e eurocentrado, um novo padrão de po-
der mundial. Um dos seus eixos fundamentais seria a idéia de raça130, construção mental que
expressaria a dominação colonial que desde então permeia as dimensões do poder mundial,
contribuindo ainda para este processo a sua racionalidade que lhe é específica, o chamado eu-
rocentrismo. Para tanto, este eixo de estudo, que compreende a constituição do capitalismo
moderno a partir do eurocentrismo e da noção de raça, perfaz-se em uma genealogia do pro-
cesso colonial, que se constitui em um padrão de colonialidade do poder até hoje hegemônico.
Em primeiro lugar, a idéia de raça na América foi uma forma de legitimar as relações
de dominação impostas pela conquista. A constituição da Europa e a expansão do colonialis-
mo europeu até a América e outras regiões conduziram a uma interpretação eurocêntrica do
mundo, tendo construído a idéia de raça como um fenômeno natural das relações coloniais de
dominação entre europeus e não-europeus131.
Em segundo lugar, com o capitalismo mundial que passa a emergir, a Europa não so-
mente tinha controle do mercado mundial, mas conseguiu impor seu domínio colonial em to-
das as regiões do planeta, incorporando-a ao seu sistema-mundo e ao seu padrão de poder. E
no processo que levou a este resultado, os principais fatores contribuintes foram: a) a expro-
priação das populações colonizadas, em benefício do capitalismo do centro europeu (poden-
do-se inserir principalmente a tomada de territórios); e b) a imposição da cultura dos domina-
129
QUIJANO, Aníbal. Colonialidade do poder, eurocentrismo e América Latina. Disponível em:
<http://bibliotecavirtual.clacso.org.ar/ar/libros/lander/pt/Quijano.rtf>. Acesso em: 30 jan. 2008.
130
Como exemplo característico deste pensamento, pode-se citar os trabalhos e Nina Rodrigues, que disserta,
dentre outros aspectos, sobre uma incapacidade orgânica por parte dos aborígenes de adaptação social, sendo
considerados “raças inferiores”. Vide RODRIGUES, Nina. As raças humanas e responsabilidade penal no Bra-
sil. Rio de Janeiro: Guanabara, 1891, p. 34-35.
131
QUIJANO, Aníbal. Op. cit., p. 04.
49
dores em tudo que fosse útil para a reprodução da dominação, notadamente no campo da ati-
vidade religiosa. A partir destes procedimentos, desenvolveu-se o chamado etnocentrismo132 e
a classificação racial universal. Neste sentido, os europeus eram considerados naturalmente
superiores aos demais povos do mundo, em especial frente aos colonizados133.
Com base nos fundamentos expostos, pode-se iniciar esta reflexão acerca da moderni-
dade, do processo de modernização. Os europeus imaginavam a realidade a partir deste siste-
ma de pensamento, o que os levou a pensarem-se como os modernos da humanidade, e sua
história como a mais avançada da espécie. Isto ocorreu pelo fato de que eles foram capazes de
difundir e estabelecer esta perspectiva histórica como algo hegemônico dentro do padrão
mundial de poder134.
Contudo, cabe ressaltar que este processo de modernização não foi uma patente euro-
péia, embora tenha sido reproduzida de forma mais significativa por esta cultura. Além do
antigo mundo heleno-germânico, havia forte influência islâmico-judaica, ramos que trouxe-
ram a mercantilização da força de trabalho e a relação capital-salário, que foram incorporados
pelo ideal europeu135.
132
Quando a sociedade e a cultura a qual pertence um indivíduo é entendida como a única verdadeira e é utiliza-
da como a medida de todas as coisas, implicando o não reconhecimento de outros povos e culturas, se estará
diante do etnocentrismo. Vide CALEFFI, Paula. “O que é ser índio hoje?” A questão indígena na América Lati-
na/Brasil no início do Século XXI. Disponível em: <http://redalyc.uaemex.mx/redalyc/pdf/162/16200702.pdf>.
Acesso em: 10 fev. 2008.
133
Idem, p. 06.
134
Ibidem, p. 06.
135
Ibidem, p. 06.
136
Ibidem, p. 13.
50
netarização dos modos de subsistência dos seres humanos penetraram em muitos recantos do
globo terrestre137.
De fato, a mente moderna surge com a idéia de que o mundo pode ser transformado.
Esta modernidade refere-se à rejeição do mundo tal como ele tem sido até agora e à decisão
de transformá-lo. A forma de ser moderna possui uma mudança compulsiva, obsessiva: refu-
ta-se o que meramente é, para que seja dado lugar ao que poderia – ou deveria – ser posto em
substituição a este é. Trata-se de um mundo que possui o desejo e a determinação de constan-
temente se refazer, um permanente movimento. Diante disto, a escolha será modernizar-se ou
perecer140. Uma espécie de condução compulsiva e viciosa de projetos modernizadores, um
estado de perpétua emergência141.
137
BAUMAN, Zygmunt. Vidas desperdiçadas. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2005, p. 13.
138
Com relação ao processo civilizador, vide ELIAS, Norbert. O Processo Civilizador. Vol. 2. Rio de Janeiro:
Jorge Zahar, 2008.
139
BAUMAN, Zygmunt. Modernidade e Ambivalência. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1999, p. 15.
140
BAUMAN, Zygmunt. Vidas desperdiçadas. Op. cit., p. 34.
141
Idem, p. 41.
51
riores de vida142. Bauman ressalta que o modelo típico de pessoa excluída é o denominado
homo sacer de Giorgio Agamben143, uma categoria do antigo direito romano que era estabele-
cida fora da condição de ser humano sem ser trazida para o meio da lei divina. A vida de um
homo sacer não possui valor, seja na perspectiva humana ou divina. Privada da lei humana e
divina, sua vida é inútil. Na versão atual, Bauman salienta que o homo sacer se constitui como
a principal categoria de refugo humano estabelecido no curso da produção de domínios sobe-
ranos144.
Por fim, outro elemento que caracteriza esta modernização é a necessidade de assimi-
lação. Na forma literal, assimilar significa tornar semelhante a. Nos estudos biológicos do sé-
culo XVI significava a absorção e incorporação realizados por organismos vivos146. E este
processo se reforça com o Estado moderno, que busca eliminar organizações sociais distintas,
promovendo uma espécie de uniformidade147, método bem característico das medidas expan-
sionistas da época do Brasil colonial e neocolonial, e que perdura até hoje. Substituir o estado
natural das coisas por uma ordem artificialmente planejada: eis a função do programa políti-
co liberal, do projeto civilizador148, da razão governamental149 (ou seja, como conduzir a po-
142
Idem, p. 12.
143
Conforme os estudos de Agamben, o homo sacer era uma figura existente no direito romano, indivíduo que
poderia ser executado por qualquer pessoa; uma espécie de assassinato permitido. A impunidade de sua morte
era um dos elementos que caracterizavam o homo sacer. Vide AGAMBEN, Giorgio. Homo sacer – o poder so-
berano e a vida nua I. Belo Horizonte: UFMG, 2002, p. 79-81.
144
BAUMAN, Zygmunt. Vidas desperdiçadas. Op. cit., p. 44.
145
Idem, p. 51.
146
BAUMAN, Zygmunt. Modernidade e Ambivalência. Op. cit., p. 115.
147
Idem, p. 117.
148
Ibidem, p. 118-119.
149
Este conceito é trabalhado por Foucault, que busca traçar os aspectos concernentes à condução das vidas, das
populações. Vide FOUCAULT, Michel. Segurança, Território, População. São Paulo. Martins Fontes, 2008.
52
Com base nestas exposições anteriores, pode-se dizer que as etnias que não se consti-
tuem como corpo produtivo, quando se integram totalmente no nosso sistema global pagam
com suas terras, com a perda de suas identidades culturais e muitas vezes com suas vidas. E o
que irá contribuir para isto será a modernização, com seu efeito mais atual: a globalização.
Esta se define como
Darcy Ribeiro, abordando sobre como ocorre o processo a que denomina de transfigu-
ração étnica, assevera que os índios Agavotokueng, por exemplo, que se encontram nas nas-
centes do rio Xingu, sofrem com o efeito da bolsa de Nova York ou a paz e guerra entre Esta-
dos longínquos. Isto ocorre devido à cotação internacional da borracha, da castanha e de al-
guns artigos florestais, fato este que faz avançar ou refluir ondas de seringais e castanheiros
que vão desalojando tribos vizinhas e lançando-as sobre as aldeias desse povo153.
150
GIDDENS, Anthony. As conseqüências da modernidade. São Paulo: UNESP, 1991, p. 69.
151
PERRAULT, Giles. O Livro Negro do Capitalismo. 4ª ed. Rio de Janeiro: Record, 2005, p. 465.
152
Idem, p. 473.
153
RIBEIRO, Darcy. Os Índios e a Civilização. São Paulo: Companhia das Letras, 2005, p. 295.
53
O modelo globalizado caracteriza-se pelo seu ataque de forma oculta: não se sabe co-
mo, onde, quando ou a quem será dirigido o próximo ato que deverá remover os “empecilhos
humanos” ou o refugo humano que já se incorporou no sistema de proletarização, mas não
consegue sobreviver a esta continuação de modelo excludente. É a extensão totalizante a to-
dos os aspectos da vida154. E neste modelo globalizado, em que o processo de modernização é
constantemente circulante, a noção de risco é de suma importância155. Boaventura Souza San-
tos, com base nos estudos de Ulrich Beck, caracteriza a sociedade do risco como um perigo
externo, fenômeno global, que escapa à percepção humana; e os impactos provenientes das
situações de risco não escolhem grupos específicos: incidem sobre a existência humana, em
escala global156. Poder-se-ia tomar como exemplo a questão da sustentabilidade ambiental;
contudo, este risco não está restrito a este aspecto: também pode estar associado à desagrega-
ção de grupos sociais e práticas sociais. Eis mais um efeito do processo de modernização me-
diante a extensão do processo globalizante: o agravamento do risco social na contemporanei-
dade.
Esta concepção de risco social possui uma importância salutar. Tendo em vista que a
modernização agora globalizada busca se instaurar sobre todas as relações, sobre todos os se-
res humanos, um dos alvos certamente será a incorporação de etnias que mantêm estruturas
sociais originárias, como os povos indígenas. Focalizando o aspecto do risco social para estes
povos, pode-se inferir que devido a sua fragilidade frente ao processo modernizante, estes po-
vos deverão ser assimilados (incorporados) de qualquer maneira, buscando não apenas reali-
zar expropriações constantes, mas execrar suas culturas e inseri-los nos mecanismos de poder
da razão governamental modernizante157 (nas camadas pobres das zonas colonizadas, trans-
formando-os de incluídos a excluídos). A noção de risco, neste aspecto, denota-se a partir do
fato de que estes grupos étnicos são constantemente ameaçados por este tipo de invasão mo-
dernizante global. Sua condição diante desta conjuntura é de vulnerabilidade, tanto cultural
quanto no que se refere à preservação de suas próprias vidas.
154
BAUMAN, Zygmunt. Globalização: as conseqüências humanas. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1999, p. 73.
155
Com relação à sociedade do risco, vide BECK, Ulrich. La sociedad del riesgo. Barcelona: Paidós, 1998.
156
SANTOS, Boaventura de Sousa. A Globalização e as Ciências Sociais. 2ª ed. São Paulo: Cortez, 2002, p.
199.
157
Pode-se exemplificar a partir dos métodos de condução da população, como evangelização, expropriação,
inclusão em atividades de trabalho, até mesmo escravo, etc.
54
cos de culturas originárias são constantemente ameaçados, seja pela incorporação forçada,
seja pelo efetivo extermínio previamente deliberado.
Hannah Arendt, em sua obra A Condição Humana, traz as seguintes palavras sobre o
trabalho do chamado homo faber:
Por certo, a partir do instante em que o homo faber descobriu sua capacidade de trans-
formação dos objetos, desenvolveu também sua capacidade de transformação da natureza, do
seu meio, para a consecução dos produtos almejados. O minério e o diamante extraídos da
terra, por exemplo, transformam-se em material de valor vultuoso na economia do mercado.
A partir deste momento, a relação comercial e lucrativa do homem com o mundo natural tor-
na-se a mais intensa e a mais destruidora.
158
ARENDT, Hannah. A Condição Humana. 10ª ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2007, p. 152.
159
Idem, p. 169.
55
160
BAUMAN, Zygmunt. Vidas desperdiçadas. Op. cit., p. 30.
161
Idem, p. 30.
162
Ibidem, p. 31.
163
VILLAS BÔAS, Hariessa Cristina. Mineração em terras indígenas: à procura de um marco legal. Disponível
em: <http://www.cetem.gov.br/publicacao/livros/mineracao_terras_indigenas.pdf>. Acesso em: 30 jan. 2008, p.
111.
56
164
JUNIOR, José Luiz Jaborandy. Principais problemas da Amazônia brasileira com repercussão internacional
– seus riscos para a soberania do Brasil e para a segurança hemisférica. Disponível em:
<http://library.jid.org/en/thesis/Jaborandy.pdf>. Acesso em: 14 fev. 2008, p. 41.
165
Idem, p. 43.
166
Ibidem, p. 43.
167
Pode-se conceituá-los como aqueles provenientes de aglomerados urbanos de outros Estados do Brasil, não
integrados no processo econômico da metrópole, e que buscavam na floresta uma possibilidade de riqueza.
168
JUNIOR, José Luiz Jaborandy. Op. cit., p. 44.
169
Hannah Arendt refere em sua obra sobre a violência: “A violência é por natureza instrumental; como todos os
meios, ela sempre depende da orientação e da justificação pelo fim que almeja. E aquilo que necessita de justifi-
57
mentos do autor Nilo Odalia170, a violência pode ser definida como uma privação. E esta pri-
vação, para tanto, pode ser de várias formas: a) a violência física, que atinge diretamente o
homem, seja naquilo que ele possui (seu corpo, seus bens), ou até mesmo naquilo que ele
mais ama (sua família, amigos, ou até mesmo seu povo); b) a violência institucionalizada, que
se dá a partir de desigualdade social, do sofrimento, da dor, da produção da indiferença pelos
outros, impondo a ausência de qualquer sentimento de solidariedade, admitindo que esta indi-
ferença é uma relação natural; c) a violência social, que atinge de forma seletiva certos seg-
mentos da população (os mais vulneráveis) e que se apresenta como uma condição necessária
para o futuro da sociedade – como a distinção entre pobres e ricos e a discriminação racial e a
poluição ambiental; d) a violência política (assassinato político, invasão de um País sobre ou-
tro, ou até mesmo leis que visam violar determinados segmentos da sociedade, grupos sociais
e políticos); e e) a violência revolucionária, que ocorre em uma busca de modificação de um
contexto sócio-político, empregando técnicas de privação dos indivíduos, de violência.
Podemos referir que os tipos mais presentes de violência que se apresentam no contato
do homem modernizador com os grupos étnicos distintos são a violência física, institucionali-
zada, social e política171.
Afora todos os outros povos que sofreram com a violência na História da constituição
do Estado Brasileiro, o povo Cinta-Larga foi um dos alvos deste processo de expansão mo-
dernizadora, sofrendo principalmente violências físicas e ao mesmo tempo as praticando.
cação por outra coisa não pode ser a essência de nada”. ARENDT, Hannah. Sobre a Violência. 3ª ed. Rio de Ja-
neiro: Relume Dumará, 2001, p. 40-41.
170
ODALIA, Nilo. O que é violência? São Paulo: Brasiliense, 2004.
171
Contudo, é de ressaltar que a violência revolucionária também atingiu etinas. Pode-se citar como exemplo a
Revolução Comunista na Nicarágua, em que as tropas do exército popular sandinista, além de assassinar indíge-
nas, praticaram a integração forçada de tribos e deslocamento destas populações para o interior do País, pois a
Revolução não deveria comportar exceções. Para mais informações a respeito, vide COURTOIS, Stéphane. O
Livro Negro do Comunismo. 4ª ed. Rio de Janeiro: Betrand Brasil, 2005, p. 794.
172
CURI, Melissa Volpato. Mineração em terras indígenas: caso terra indígena Roosevelt. Disponível em:
<http://libdigi.unicamp.br/document/?code=vtls000375632>. Acesso em: 10 fev. 2008, p. 123.
58
uma aldeia de indígenas chamados Iamé. O caso foi levado ao Serviço de Proteção ao Índio,
que realizou um inquérito com poucos resultados173.
Na década de 50, ocorrem grandes invasões do território dos Cinta-Larga por empre-
endimentos de mineração e seringalistas; na década de 60, os conflitos se agravam com a
construção da rodovia Cuiabá-Porto Velho (BR 364). Representando obstáculo ao “desenvol-
vimento”, os cinta-larga foram alvo de “operações de limpeza”, organizadas notadamente pelo
empreendimento Arruda e Junqueira, que explorava seringais e pesquisava ouro e diamantes
na região174.
Nesta mesma década aumentam as pressões sobre este povo, o que levou o SPI a or-
ganizar expedições de “pacificação”, visando neutralizar a resistência dos indígenas à invasão
de suas terras177.
173
Idem, p. 123.
174
Ibidem, p. 124.
175
Ibidem, p. 124.
176
Survival International. Deserdados. Op. cit., p. 15.
177
CURI, Melissa Volpato. Op. cit., p. 125.
59
cias de que políticos da região, empresários e membros da imprensa teriam incitado a invasão
à TI Roosevelt178.
Quanto às violências contra a pessoa por particulares e agentes do Poder Público, têm-
se como fatores mais relevantes os assassinatos e tentativas de assassinato de indígenas, ho-
micídios culposos, ameaças de morte e outras formas de ameaça, lesões corporais, racismo e
discriminações étnico-culturais, violências sexuais e apropriações indébitas.
Na seara das violências provocadas por omissões do poder público, têm-se os suicídios
e tentativas de suicídio, desassistência à saúde (inclusive com mortes), mortalidade infantil,
mortes de crianças por desnutrição, desassistência na área de educação, disseminação de be-
bidas alcoólicas e desassistência à produção agrícola.
Por fim, temos as violências contra povos indígenas isolados e de pouco contato, que
são as mais graves – ainda que as demais possuam gravidade extrema. Esta forma de violên-
cia vem rondando tanto povos isolados quanto àqueles em contato recente com a civilização,
ameaçando-os de extinção, principalmente na região amazônica.
tam que a situação do povo Guarani-Kaiowá permanece igual àquela retratada no relatório “A
Violência contra os Povos Indígenas no Brasil - 2003-2005”; os dados recentemente coletados
mostram que o projeto genocida continua em curso no Estado do Mato Grosso do Sul: este
Estado, de acordo com o CIMI, possui o maior número de vítimas de assassinato, tentativas
de assassinato, suicídios; índices ainda altos de desnutrição, mortalidade infantil, alcoolismo,
agressões e ameaças. Indígenas morrem por atropelamentos, mendigam nas cidades, sofrem
violências sexuais, são presos e vivem em meio a grandes plantações (cana, soja, milho) e pe-
cuária extensiva; e com a contaminação das fontes de água com agrotóxicos, são provocadas
doenças, não deixando espaço para a agricultura familiar180.
180
O relatório da Violência contra os Povos Indígenas no Brasil - 2006-2007 consta no site:
<http://www.cimi.org.br/pub/publicacoes/1208873764_1%20Relat%20Violencia%20-%202006-2007-
%20Abertura%20e%20Cap%20I.pdf>. Acesso em: 25 ago. 2008.
61
São muitos os exemplos: a destruição de Cartago no ano 146 a.C.; de Jerusalém por
Tito, no ano de 72 d.C.; as Cruzadas; os massacres completos nas guerras empreendidas por
Gengis Khan, dentre outros182.
181
BAUMAN, Zygmunt. Modernidade e Holocausto. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998, p. 114.
182
RAMELLA, Pablo A. Crimes contra a Humanidade. Rio de Janeiro: Forense, 1987, p. 34.
183
Para mais detalhes sobre os extermínios propagados na expansão capitalista norte-americana, vide GALKIN,
Alexandr A. Genocidio. Moscou: Progreso, 1986.
62
Mas para continuar com esta abordagem, é necessário traçar um breve estudo dos deli-
tos de genocídio e etnocídio na sua acepção jurídica.
Já para Rafael Lemkin, tratar-se-ia de um termo híbrido, que derivaria de genos (raça,
nação ou tribo) e do sufixo latino cidio (matar)186. Com relação ao presente estudo, adotar-se-
á este último, não obstante as importantes justificativas apresentadas por Laplaza.
O fundador desta espécie de delito foi Rafael Lemkin, jurista de origem polonesa.
Muito antes do advento do Holocausto, esse autor já defendia a necessidade de se reprimir a
destruição de coletividades raciais, religiosas ou sociais como um delito de caráter universal,
184
LAPLAZA, Francisco P. El Delito de Genocidio o Genticidio. Buenos Aires: Arayú, 1954, p. 64.
185
Idem, p. 65.
186
TORRES, Luís Wanderley. Crimes de Guerra e Crimes contra a Humanidade. São Paulo: 1955, p. 53.
63
No ano de 1944, em plena Segunda Guerra Mundial e pelos atos cometidos durante o
nazismo, Lemkin estuda sobre a ocupação da Europa pelos Países do Eixo. Após, aborda sua
concepção de genocídio, que seria a destruição de uma nação ou grupo étnico, mediante um
plano de ações com o fim de praticar tal desintegração. Ademais, ressaltava que o campo do
genocídio não seria levado a cabo contra indivíduos em razão de suas qualidades pessoais,
mas simplesmente por pertencerem a um grupo189.
De fato, o julgamento dos crimes cometidos pelos oficiais do III Reich ocorreu, e os
acusados, na sua maioria, foram executados ou condenados à prisão perpétua, em que pese as
grandes controvérsias sobre a constituição do Tribunal de Nuremberg (um Tribunal de Exce-
ção) no sentido de que se caracterizava mais como uma medida de vingança pelas potências
vencedoras da guerra, o que se constitui como fato histórico. Por outro lado, não se trata de
187
Idem, p. 54.
188
Ibidem, p. 54.
189
TERNON, Yves. Op. cit., p. 15.
190
LAPLAZA, Francisco P. Op. cit., p. 50-52.
191
Carta de Londres citado por TORRES, Luís Wanderley. Op. cit., p. 55.
64
absolver os atos nefastos perpetrados pelos oficiais nazitas, mas deve-se lembrar que as mes-
mas potências que presidiram o julgamento foram responsáveis por delitos graves praticados
na colonização na América do Norte, com a limpeza étnica de indígenas; pelo regime soviéti-
co, com o Holodomor (genocídio em massa de ucranianos sob a autoridade de Stálin); ou até
mesmo com os projetos colonizadores de massacre e escravização de africanos pelas potên-
cias européias na invasão da África192.
Contudo, ambos os termos – grupos políticos e o genocídio cultural – não foram re-
cepcionados após a apreciação do projeto pela Comissão que integrava os Estados. Os grupos
192
Nesse sentido, vide as informações trazidas pela revista Leituras da História especial, a qual trata especifica-
mente dos grandes genocídios ocorridos. Revista Leituras da História especial - Grandes Genocídios, ano I, n. 2,
Editora Escala, 2008.
193
LAPLAZA, Francisco P. Op. cit., p. 55 e 56.
194
RAMELLA, Pablo A. Op. cit., p. 35.
195
TERNON, Yves. Op. cit., p. 38.
196
ROBINSON, Nehemiah. La Convencion sobre Genocidio. Buenos Aires: Bibliográfica, 1960, p. 112.
197
CAMPOS, Paula Drumond Rangel. O crime internacional de genocídio: uma análise da efetividade da Con-
venção de 1948 no Direito Internacional. Disponível em:
<http://www.cedin.com.br/revistaeletronica/artigos/O%20CRIME%20INTERNACIONAL%20DE%20GENOC
%CDDIO%20Paula%20Campos.pdf>. Acesso em: 30 jan. 2008, p. 21.
65
políticos foram retirados, principalmente devido à pressão soviética, o que oferecia a estes
Estados a possibilidade de exterminar grupos humanos apenas definindo-os de forma diferen-
te198.
Quanto ao genocídio cultural, também foi excluído, dentre outras justificativas, pelo
fato de que seria um conceito muito indefinido199. A proposta foi retirada por sugestão dos
Estados Unidos, Reino Unido, França, além do Brasil200. Desta forma, tanto os grupos políti-
cos quanto o genocídio cultural restaram excluídos do projeto.
De fato, como observa Yves Ternon, a intervenção dos representantes dos Estados-
Membros havia modificado o espírito da resolução 96 (I), o que parecia demonstrar que os
Estados haviam tomado consciência dos riscos que corriam ao outorgar à ONU o direito de
responsabilizá-los por ações passadas, presentes ou futuras; contudo, devido ao fato de que
não podiam se eximir da obrigação de proteger os direitos humanos, se esforçaram em limitar
o alcance do compromisso celebrado201.
Após todos os entraves e alterações de ordem política no texto, a ONU aprova, medi-
ante a resolução 260 A (III), em 9 de dezembro de 1948, a Convenção para a prevenção e re-
pressão ao crime de genocídio, com o emprego da raiz etimológica defendida por Lemkin202.
Como se percebe, as limitações impostas pelos países durante a elaboração da convenção e
sua inserção no ordenamento jurídico significaram um retrocesso às propostas previstas na
resolução 96 (I).
Em 1965, muitos países estavam diante do problema da prescrição prevista nas suas
legislações nacionais. E em 26 de novembro de 1968, pela resolução 2.391 (XXIII), a Assem-
bléia Geral da ONU adotou a Convenção sobre a imprescritibilidade dos crimes de guerra e
contra a humanidade, no artigo I, alínea b, retomando ainda a concepção de crime de genocí-
dio tal como definido pela Convenção de 1948203.
198
TERNON, Yves. Op. cit., p. 45.
199
ROBINSON, Nehemiah. Op. cit., p. 61.
200
CAMPOS, Paula Drumond Rangel. Op. cit., p. 21.
201
TERNON, Yves. Op. cit., p. 40.
202
Idem, pg. 39.
203
Ibidem, p. 53-54.
66
Para a compreensão das características deste delito, necessário uma breve exposição
do artigo 2º da Convenção para a prevenção e repressão ao crime de genocídio204. Diz o texto:
Artigo 2º
Na presente convenção, entende-se por genocídio qualquer dos seguintes
atos, cometidos com a intenção de destruir, no todo ou em parte, um grupo nacional,
étnico, racial ou religioso, tal como:
a) Assassinato de membros do grupo.
b) Dano à integridade física ou mental de membros do grupo.
c) Submissão intencional do grupo a condições de existência que lhe ocasi-
onem a destruição física total ou parcial.
d) Medidas destinadas a impedir nascimentos no seio do grupo.
e) Transferência forçada de menores do grupo para outro.
Pela leitura do dispositivo, verifica-se que o delito se define pela intenção especial de
destruir um grupo humano como tal, no todo ou em parte. O ato não é cometido com a inten-
ção de eliminar um indivíduo em especial, mas em razão de pertencer a um determinado gru-
po humano. Matar pessoas negras por serem negras, por exemplo, sem que importe a identi-
dade pessoal determinada; o genocídio visa destruir um vínculo de sangue ou de espírito me-
diante a destruição das pessoas que estão vinculadas205. É, portanto, o caráter da impessoali-
dade do sujeito passivo206 que guia o agente, visando exterminar um grupo humano. Esta in-
tenção207 é caracterizada pelo dolo especial – dolus especialis208 – que irá configurar o delito,
mediante o exercício de uma atividade finalista específica209. São, portanto, dois elementos
básicos: a) a vítima deve pertencer a um grupo humano e b) a intenção do autor é direcionada
204
BRASIL. Decreto nº 30.822, de 6 de maio de 1952. Promulga a convenção para a prevenção e a repressão
do crime de Genocídio, concluída em Paris, a 11 de dezembro de 1948, por ocasião da III Sessão da Assembléia
Geral das Nações Unidas. Disponível em: <http://www2.mre.gov.br/dai/genocidio.htm>. Acesso em: 31 out.
2008.
205
LAPLAZA, Francisco P. Op. cit., p. 76.
206
GUIMARÃES, Byron Seabra. Genocídio. In Repositório oficial da jurisprudência do Supremo Tribunal Fede-
ral, ano V, n.19, julho a setembro de 1976, p. 33.
207
Interessante ressaltar que o Tribunal Penal Internacional de Ruanda já se manifestou que diante da falta da
confissão por parte do acusado, poderia se deduzir a configuração do genocídio e a intenção de praticá-lo pela
circunstância dos fatos. Ou seja, seria possível concluir que houve a intenção genocida mediante um conjunto de
atos praticados pelo acusado, dento de um contexto geral de realização de atos dirigidos contra um grupo, em
uma região ou um país, ou o fato de se escolher de maneira deliberada as vítimas, por pertencer a um grupo em
particular, ao mesmo tempo excluindo outros grupos. Nesse sentido, vide VERDUZCO, Alonso Gomez Roble-
do. El crimen de genocidio em derecho internacional. Boletín Mexicano de Derecho Comparado. Disponível
em: <http://www.juridicas.unam.mx/publica/rev/boletin/cont/105/art/art6.htm>. Acesso em: 03 ago. 2008, p. 10.
208
Idem, p. 10.
209
Em síntese, a teoria finalista da ação preconiza que a ação delituosa é praticada visando uma determinada
finalidade pelo agente. Nesse sentido, vide WELZEL, Hans. Direito Penal. Campinas: Romana, 2003, p. 79.
67
no sentido de destruir um grupo humano enquanto tal. Eis os elementos objetivo e subjeti-
vo210, respectivamente.
Em geral, é praticado mediante ações comissivas. Mas pode ser cometido por uma o-
missão, desde que presente a intenção de extermínio, como no caso de negação de alimentos e
de prestação sanitária211.
No que concerne aos grupos raciais e étnicos, teóricos defendem que os primeiros (ra-
ciais) são definidos por um conjunto de caracteres biológicos; ao passo que os segundos (étni-
cos) são configurados em torno de fatores culturais213.
Merece ser ressaltado ainda que, ao nosso entender, a proteção de grupos não deveria
estar restringida aos tipificados no texto da convenção. Grupos políticos e grupos sociais por
vezes podem ser alvo de um plano genocida. Ou seja, poderia ocorrer mediante a implemen-
tação de um assassinato coletivo de pessoas ligadas por uma opinião e concepção política, ou
até mesmo identificadas por sua condição social. Veja-se, por exemplo, no tocante aos grupos
210
AMBOS, Kai. La Parte General del Derecho Penal Internacional. Montevideo: Fundación Konrad-
Adenauer, 2005, p. 117-123.
211
CAMPOS, Paula Drumond Rangel. Op. cit., p. 18.
212
GUIMARÃES, Byron Seabra. Op. cit., p. 33-34.
213
PIPAON Y MENGS. Javier Saenz. Delincuencia Politica Internacional. Madrid: Instituto de Criminologia de
la Universidad Complutense de Madrid, 1973, p. 113.
68
Ainda de acordo com o art. 2º, a intenção não precisa ser necessariamente a destruição
total de um grupo; também se configura como genocídio o ato praticado com a intenção de
destruir parcialmente determinado grupo humano. Basta que a ação seja desenvolvida visando
a destruição de um subgrupo dentro de uma raça, etnia, nacionalidade ou religião. Pode ser
praticado, portanto, contra um subgrupo, dentro de um país, região ou uma comunidade de-
terminada215. Existe também a possibilidade de se configurar o genocídio quando o agente
mata apenas um membro de determinado grupo, mas com a intenção de seguir repetindo os
atos sobre o grupo ou subgrupo escolhido (matar o resto do grupo, um por um)216.
No que tange ao sujeito ativo (o agente que pratica a ação), poderá ser um governante,
funcionário ou particular, a teor do art. 4º da Convenção. Existem também estudos críticos
acerca da falta de responsabilização das pessoas jurídicas, no sentido de que estas poderiam
contribuir de maneira significativa para a ocorrência de genocídios. Neste aspecto, no genocí-
dio perpetrado na Alemanha do III Reich teve grande contribuição a empresa IBM, a qual ce-
lebrou contrato diretamente com o Estado alemão em New York, para fabricar os cartões de
identificação de prisioneiros, o que teria facilitado e sistematizado o extermínio; outro exem-
plo de contribuição de pessoas jurídicas é a Radio-Television Libre des Mille Collines, a qual
teve papel significativo na incitação do genocídio em Ruanda217.
Os atos que configuram o genocídio estão elencados nas alíneas do art. 2º da Conven-
ção. As alíneas a a c tratam do genocídio físico (matanças de membros de um grupo, lesão
grave à integridade física ou mental e submissão do grupo a condições que possam levar sua
destruição física), enquanto as alíneas d e e versam sobre o genocídio biológico (impedimento
de nascimentos e transportação de crianças de um grupo para outro)218. Interessante mencio-
nar que o TPIR – Tribunal Penal Internacional para Ruanda – reconheceu que a violência se-
xual contra a mulher por meio de estupros sistemáticos pode configurar ato de genocídio, vis-
214
Nesse sentido: CINTRA JÚNIOR, Dyrceu Aguiar Dias. Judiciário, violência, genocídio. In Revista Trimes-
tral da FASE, Ano 22, n. 60, março de 1994, p. 49.
215
GIL, Alicia Gil. Los crímenes contra la humanidad y el genocidio em el Estatuto de la Corte penal interna-
cional a la luz de los elementos de los crímenes. In O Direito Penal no estatuto de Roma: leituras sobre os fun-
damentos e a aplicabilidade do tribunal penal internacional. AMBOS, Kai e CARVALHO, Salo de (Org.). Rio
de Janeiro: Lúmen Júris, 2005, p. 252-253.
216
GIL, Alicia Gil. Idem, p. 254-255.
217
CAMPOS, Paula Drumond Rangel. Op. cit., p. 19-20.
218
VIEIRA, Manuel A. Derecho penal internacional y derecho internacional penal. Montevideo: Fundacion de
cultura universitaria, 1970, p. 309.
69
to que não seria necessário destruir o grupo; bastaria que o debilitasse de tal forma que o dei-
xasse incapaz de perpetuação ou à margem da sociedade, o que freqüentemente ocorria com
as mulheres estupradas na região219. Outro fator que merece destaque seria a possibilidade de
prática do genocídio de populações indígenas mediante a poluição ambiental, típica da época
contemporânea, o que pode impedir a sobrevivência de grupos humanos inteiros220.
No Brasil, a Constituição Federal de 1988 prevê no art. 5º, inciso XLIII que os crimes
definidos como hediondos serão considerados pela lei como inafiançáveis, e insuscetíveis de
219
CAMPOS, Paula Drumond Rangel. Op. cit., p. 35.
220
CUSTÓDIO, Helita Barreira. Poluição ambiental e genocídio de grupos indígenas. In Revista de Direito Ci-
vil, imobiliário, agrário e empresarial. Ano 16, n. 59, Jan/Mar/1992.
221
PIPAON Y MENGS, Javier Saenz. Op. cit., p. 114-125.
222
Em entendimento diverso, esta característica é fundamentada na acepção de que os crimes seriam infrações de
direitos naturais, como a vida, a liberdade; os delitos violam direitos criados pelo contrato social, como a propri-
edade; e as contravenções infringem regras e disposições de polícia. Idem, p. 116.
223
Atualmente no Brasil está em vigor o Decreto nº 4.388/2002, o qual promulgou o Estatuto de Roma do Tri-
bunal Penal Internacional, constituído em 1998 para julgar os crimes de genocídio, crimes contra a humanidade,
crimes de guerra e crimes de agressão. O Brasil aderiu à jurisdição do ERTPI pela emenda constitucional 45/04,
a qual inseriu o § 4º ao art. 5º da Constituição Federal do Brasil. BRASIL. Decreto nº 4.388, de 25 de setembro
de 2002. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/2002/D4388.htm>. Acesso em: 31 out.
2008.
70
graça ou anistia, por eles respondendo os mandantes, executores e os que, podendo evitá-los,
se omitirem. Na lei dos crimes hediondos (Lei 8.072/90), o art. 1º, em seu parágrafo único,
prescreve que o genocídio é considerado como crime hediondo, seja na maneira tentada ou
consumada224.
224
BARBOSA, Licínio. Dos crimes hediondos. In Revista de informação legislativa do Senado Federal, ano 28,
n. 112, outubro/dezembro de 1991, p. 161.
225
PEDROSO, Regina Célia. In Revista Leituras da História especial – Grandes Genocídios. Op. cit., p. 15.
226
Necessário salientar que na aplicação das penalidades, verificada a intenção especial de eliminar o grupo,
ocorrendo, contudo, a morte de uma pessoa apenas, será suficiente a aplicação de um genocídio, que corresponde
a um homicídio qualificado (reclusão de 12 a 30 anos). Todavia, se for constatado que na prática do genocídio
houve o assassinato massivo de cerca de cinqüenta pessoas, por exemplo, a pena não será a mesma (reclusão de
12 a 30 anos), como se tivesse cometido um único genocídio; ao contrário, será indispensável que seja aplicado o
concurso de crimes. Vide NUCCI, Guilherme de Souza. Leis penais e processuais penais comentadas. São Pau-
lo: Revista dos Tribunais, 2006, p. 285.
71
Outra noção de lesão grave que atenta contra os direitos dos seres humanos é o etnocí-
dio. Pode-se afirmar que esta espécie de prática, conjuntamente com o genocídio, é por de-
mais antiga, pois se nos voltarmos ao passado – e em especial às conquistas das Américas –
constatar-se-á a sua prática como instrumento de formação do que hoje se entende por civili-
zação. Para tanto, tendo em vista o contexto do estudo proposto, a sua abordagem é funda-
mental.
Alguns autores defendem que o termo etnocídio (ou genocídio cultural) deriva de etno,
que provém do grego ethnos (povo, nação), e cídio, que significa matar. Com efeito, o etnocí-
dio seria um atentado contra um povo ou uma nação227. Contudo, esta singela definição pode-
ria causar dúvidas, pois o genocídio igualmente é um ato contra a existência de um povo. Para
tanto, deve-se entender a origem e a definição desta prática lesiva, que se distingue do geno-
cídio.
227
CUSTÓDIO, Helita Barreira. Op. cit., p. 88.
228
Vide JAULIN, Robert. La Paz Blanca – Introdución al etnocídio. Buenos Aires: Tiempo Contemporaneo,
1973.
229
MONTENEGRO, Miguel. Robert Jaulin and Ethnocide. Disponível em:
<http://www.miguel-montenegro.com/EthnocideWik.htm>. Acesso em: 14/02/2008, p. 02.
230
JAULIN, citado por CIFUENTES, José Emilio Rolando Ordoñez. La cuestión étnico nacional e derechos
humanos: el etnocidio – Los problemas de la definición conceptual. Op. cit., p. 28.
72
O documento que tratou expressamente sobre o termo foi a Declaração de San José,
celebrado na Costa Rica, sob os auspícios da UNESCO em dezembro de 1981. O documento
expõe que o etnocídio tratar-se-ia de um processo complexo, que possui raízes históricas, so-
ciais, políticas e econômicas. Também ressalta que há alguns anos vinha sendo denunciada
231
VÁSQUEZ. Ladislao Landa. Pensamientos indígenas em nuestra América. Disponível em:
<http://64.233.169.104/search?q=cache:0XK5pH7Fe2EJ:bibliotecavirtual.clacso.org.ar/ar/libros/becas/sin%2520
u-
sar/SEN%2520Y%2520SEMI%252004%2520ENSAYOS%2520LEGADOS/landa%2520v%25E1squez%2520e
nsa-
yo%2520revisado%2520sin%2520preedici%25F3n.doc+%22declaracion%22+%2B+%22barbados%22+%2B+
%22etnocidio%22&hl=pt-BR&ct=clnk&cd=1&gl=br>. Acesso em: 14 out. 2008, p. 38.
232
Idem, p. 39.
233
CIFUENTES, José Emilio Rolando Ordoñez. El aporte doctrinario de la antropologia crítica latinoamerica-
na y sus premissas sócio/jurídicas. Disponível em: <http://www.juridicas.unam.mx/sisjur/internac/pdf/10-
487s.pdf>. Acesso em: 14 fev. 2008, p. 01.
234
Declaracíon de Barbados II. Disponível em:
<http://www.nativeweb.org/papers/statements/state/barbados2.php>. Acesso em: 14 fev. 2008.
73
Contudo, é pertinente ressaltar que esta prática lesiva aos direitos humanos ainda não é
recepcionada como crime de acordo com o Direito Penal, posto que não há referência expres-
sa em lei penal internacional ou nacional. Logo, no Brasil, ainda não há a previsão de crime
de etnocídio. Trata-se de uma violação grave de bens jurídicos fundamentais que, todavia, não
está tipificada como crime.
235
Declaración de San José. Disponível em: <http://www.politicaspublicas.cl/iwgia/1982_1.pdf>. Acesso em:
14 fev. 2008, p. 39.
236
Idem, p. 39.
237
Ibidem, p. 39.
238
CIFUENTES, José Emilio Rolando Ordoñez. La cuestión étnico nacional e derechos humanos: el etnocidio –
Los problemas de la definición conceptual. Op. cit., p. 25.
239
MOLINA, Lucrecia. Glossario – Elementos conceptuales y vocabulário incluídos em los documentos. Dispo-
nível em: <http://www.iidh.ed.cr/comunidades/diversidades/docs/div_vocabulario/capiracismo05.pdf>. Acesso
em: 10 fev. /2008, p. 230-231.
74
ante a dominação, a assimilação (incorporação forçada)240. Os outros são “maus”, mas podem
ser melhorados, obrigando-os a transformarem-se no corpo produtivo do projeto civiliza-
dor241. O Outro é despojado de sua identidade cultural.
No âmbito jurídico, uma abordagem ainda mais profunda do etnocídio ainda é obstá-
culo no Ocidente. Todavia, existem estudos sobre a possibilidade de sua recepção no âmbito
jurídico-criminal. No tocante a este tratamento na seara do Direito, José Maria Alencar e José
Heder Benatti242 tratam de questões sobre o conceito de etnocídio, voltado para o Direito Pe-
nal. Para estes autores, a destruição proveniente do etnocídio não está limitada ao aspecto físi-
co: a característica deste ato é a aculturação forçada de uma etnia ou grupo étnico por outra
mais poderosa, levando ao desaparecimento das vítimas243. Destroem-se os valores sociais e
morais tradicionais, culminando na sua desintegração e posterior desaparecimento244.
Propondo uma definição que venha a ser recepcionada no campo jurídico, os autores
definem o etnocídio como “a conduta delituosa da qual resulta a vitimização, a destruição de
uma etnia ou grupo étnico”. Poderia se configurar como um crime doloso ou culposo, que
consiste na destruição parcial ou total da identidade étnica que propicia a cada grupo étnico ou
etnia o seu caráter próprio, particular. Objetiva-se com esta definição englobar as formas bru-
tais ou sutis de destruição de etnias ou grupos étnicos.245
A proposta de José Maria Alencar e José Heder Benatti, no que concerne a uma possí-
vel legislação penal, perpassaria os seguintes pontos: a) no que tange ao bem jurídico tutela-
240
Idem, p. 231.
241
Além desta justificativa do etnocídio como uma ação para o “bem” de um determinado povo, é de se conside-
rar que esta prática poderia ser perpetrada para fins de dominação, mediante a intenção de destruição dos traços
culturais, o que ocorreu durante o processo colonial e neocolonial no Brasil. Outro exemplo que caracteriza esta
espécie de etnocídio institucionalizado é a Argentina, em que se oferecia um suposto direito à existência aos po-
vos indígenas (ser cidadão argentino), desde que assumissem o suicídio cultural. Nesse sentido, vide BARTO-
LOMÉ, Miguel Alberto. Los pobladores del “desierto” – Genocidio, etnocidio y etnogénesis en la Argentina.
Disponível em: <http://alhim.revues.org/document103.html>. Acesso em: 10 fev. 2008, p. 05.
242
Nesse sentido, vide ALENCAR, José Maria; BENATTI, José Heder. Os crimes contra etnias e grupos étni-
cos: questões sobre o conceito de etnocídio. In Os Direitos Indígenas e a Constituição. Porto Alegre: Fabris,
1993.
243
Quanto à distinção entre etnia e grupo étnico: “A diferença entre um e outro está, portanto, como que em uma
relação de continência e conteúdo. Etnia seria larga o bastante para abarcar grupo étnico, enquanto este, mais
restrito, estaria contido naquela”. Idem, p. 211.
244
Ibidem, p. 214.
245
Ibidem, p. 219.
75
do, seriam os grupos étnicos e etnias, que se auto-identificam ou são identificados; b) o sujeito
ativo seria qualquer pessoa (inclusive pessoa jurídica), individualmente ou em conspiração
com outras pessoas; c) o sujeito passivo seria o grupo étnico ou etnia e d) a ação incriminada
seria a destruição do bem tutelado (grupo étnico ou etnia), podendo ser comissiva ou omissi-
va, admitindo-se ainda a tentativa. Quanto aos aspectos subjetivos do crime, seriam a culpa e
o dolo. Sustenta-se também a sua imprescritibilidade, assim como ocorre com o genocídio246.
Ao nosso parecer, manifestamos nossa posição de que o bem jurídico, no caso do et-
nocídio, não seria propriamente o grupo étnico ou etnia, mas uma identidade cultural. Consi-
derando que o sujeito passivo do ato é a etnia ou grupo étnico, não seria conveniente nomear
como bem jurídico novamente o sujeito passivo. Ou seja, assim como o homicídio é um ato
cometido contra uma pessoa individualmente considerada, visando extirpar-lhe a vida, o etno-
cídio é perpetrado contra uma etnia ou grupo étnico, mediante uma situação de fricção inte-
rétnica, com o intuito de exterminar sua identidade cultural, a partir de diversas formas de vi-
olência.
Como exemplo de práticas desta espécie de violação aos direitos humanos, tem-se a
exploração petroleira e a ação criminosa do Estado colombiano em Catatumbo247. Com o pre-
texto de incorporar os índios Bari à “civilização” para que estes desfrutassem do “progresso”,
os indígenas foram submetidos a um contínuo processo de aculturação; na medida em que
aumentava o grau de resistência era justificado o etnocídio.
Outro episódio que retrata a prática do etnocídio são as violações de direitos humanos
decorrentes da fricção interétnica no Estado de Rondônia, em que os indígenas do Povo Oro-
Win são retirados das aldeias e conduzidos a barracões de seringais para serem mantidos em
semi-escravidão, em troca de comida248. Estes são, dentre outros, exemplos de práticas etno-
cidas.
246
Idem, p. 221-222.
247
Para maiores detalhes sobre o episódio, vide CANTOR, Renan Vega. Explotación petrolera y etnocidio en
Catatumbo: Los Barí y la consesion Barco. Disponível em:
<http://www.espaciocritico.com/articulos/rev07/n7_a12.htm>. Acesso em: 14 fev. 2008.
248
PRADO, Rafael Clemente Oliveira; BRITO, Antônio José Guimarães; AMARAL, José Januário de Oliveira.
Além do Genocídio: o Etnocídio do Povo Oro-Win e a fricção interétnica nas cabeceiras do Rio Pacaás-Novos:
um caso de violação de direitos humanos. In Revista Jurídica da Universidade de Cuiabá. v. 8, n. 2, UNIC,
jul/dez, 2006, p. 185.
76
O aspecto comum entre genocídio e etnocídio seria uma visão idêntica do Outro, como
uma má-diferença. Mas enquanto o genocida puramente nega aquele que é distinto, extermi-
nando-o porque é absolutamente mau, o etnocida admitiria a relatividade deste mal na dife-
rença; os Outros são maus, mas poderão ser melhorados, aperfeiçoados, desde que sejam o-
brigados a se transformar até se tornarem corpos idênticos ao modelo imposto. “A negação
etnocida do Outro conduz a uma identificação a si”251.
Além de expor estas considerações, Clastres refere que o horizonte em que se desta-
cam o espírito e a prática do etnocídio pode ser entendido a partir de dois elementos: o primei-
ro seria a hierarquia das culturas, ou seja, as superiores e as inferiores; o segundo seria a a-
firmação da superioridade absoluta da cultura ocidental. Esta mantém com as outras culturas
uma relação de negação252. Contudo, no etnocídio, seria uma espécie de negação positiva, vi-
sando suprimir o inferior e lançá-lo à condição de “superior”, com base no etnocentrismo
(condição de avaliar as diferenças pela sua própria cultura). Levando em conta estes critérios,
portanto, distingue-se e se estabelece o elo comum entre estas práticas violentas. Passemos ao
contexto da guerra oculta.
249
CLASTRES, Pierre. Arqueologia da Violência. São Paulo: Cosac & Naify, 2004.
250
Idem, p. 83.
251
Ibidem, p. 83.
252
Ibidem, p. 84.
77
Por fim, o presente tópico trata do estado da sociedade (e o Estado inclusive) resultan-
te do fenômeno moderno e produtor de uma guerra oculta. Como visto em momentos anterio-
res, seja pelas condições históricas e sócio-políticas do extermínio, perpassando pelas noções
das práticas de genocídio e etnocídio e todas as suas características, é possível constatar que o
projeto da filosofia política de Thomas Hobbes253 – buscando proteger o homem do seu esta-
do de natureza ao instaurar o poder soberano pelo contrato entre os indivíduos – não veio a
extirpar o estado de guerra, como era o propósito da filosofia hobbesiana. Ao contrário, este
estado ainda permanece, com conotações outras.
Para isso, é necessário traçar uma reflexão além da teoria jurídica da soberania, para
então verificar os mecanismos de poder que instauram um estado permanente de dominação,
técnicas situadas fora do Leviatã (o que não excluem a possibilidade de serem corresponden-
tes com a manutenção do aparelho de Estado)254.
Neste campo que liga a nossa sociedade e o Estado deve ser considerada a relação de
poder que constantemente circula. Na acepção de Foucault, o poder é uma relação de força,
um enfrentamento de forças; a guerra como política continuada por outros meios. Isto signi-
fica dizer que: a) o poder político reinsere constantemente uma relação de força, mediante
uma guerra silenciosa, refletindo-se nas instituições, nas desigualdades econômicas, nos cor-
pos; b) no interior desta “paz civil”, os enfrentamentos provenientes do poder são uma conti-
nuação da guerra e c) a decisão final somente poderia vir da guerra, ou seja, de uma prova de
forças em que as armas serão os juízes. O fim político seria a batalha, que suspende o exercí-
cio desta guerra continuada255.
ciso ter presente que ela existe de forma permanente na nossa civilização a partir de dois seg-
mentos: a sociedade modernizadora e o Estado – ou o Direito. A sociedade modernizadora
produz e reproduz a sua concepção de mundo, fundando práticas de relação entre seres huma-
nos, e almejando a totalização desta mesma concepção; o Estado – ou Estado Criminal – ar-
quiteta, mediante as regras jurídicas, a fundação de verdades sobre este mundo concebido. É o
sistema jurídico como uma técnica de sujeição, relação de domínio256 proveniente da violên-
cia conservadora do direito257.
256
Idem, p. 32.
257
Sobre a questão das violências instauradora e conservadora do direito, vide DERRIDA, Jaques. Força de Lei.
São Paulo: Martins Fontes, 2007.
258
As precauções de método (e adotadas nesta fase do trabalho) são desenvolvidas por Foucault no seu estudo
sobre o problema da guerra, a fundação da sociedade civil e a temática da raça. Vide FOUCAULT, Michel. Em
Defesa da Sociedade. Op. cit., p. 32-40.
259
Idem, p. 39.
79
Por conseguinte, o que se insere nas práticas projetadas pelos mecanismos de poder a
etnias não integrantes do sistema-mundo “civilizado” serão o genocídio e o etnocídio. Estas
violações de direitos humanos são a resultante da guerra oculta instalada no seio da sociedade
e do Estado modernos.
Como visto nos pontos anteriores, pode-se verificar que tanto o genocídio quanto o et-
nocídio, apesar das suas formas de operação distintas, principalmente pela sua intenção, pos-
suem um elemento comum: o extermínio. O genocídio extermina um grupo enquanto tal; o
etnocídio elimina os traços culturais que identificam o grupo, restando às vítimas completa
destruição de sua identidade, geralmente por intermédio da escravidão.
Estas espécies de discursos negam qualquer modo de vida diferente daquele que é vi-
vido pela maioria. O modelo de desenvolvimento urbano e industrial, sem levar em conside-
260
Com relação ao extermínio, vide CRUZ-NETO, Otávio. Extermínio: violentação e banalização da vida. Dis-
ponível em: <http://www.scielosp.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-311X1994000500015>. Acesso
em: 30 jan. 2008.
261
Idem, p. 204.
80
ração etnias que não se constituem como corpos produtivos para o sistema capitalista, traduz-
se como arma violenta, produzindo em larga escala, ainda que esta produção venha a implicar
o aniquilamento do homem e seu ambiente262, resultando, por vezes, em genocídio, ou etnocí-
dio, ou em ambos. Estas práticas – genocídio e etnocídio – violam a humanidade; ambas des-
troem a pluralidade e a diversidade que compõem a nossa condição humana.
No contexto social, nossa civilização busca converter todas as outras. Deve ocorrer a
aliança ou o acordo com os brancos. Este colonialismo é o caráter fundamental do etnocí-
dio263. Outra questão que deve ser ressaltada é que, se havia uma espécie de submissão de
uma classe por outra – classe trabalhadora pela patronal no Século XIX – esta relação é subs-
tituída eminentemente pela privação forçada de um grupo de suas características culturais,
típico do modernismo político-cientificista264 (ainda que tenha sido praticada, de certa forma,
desde a chegada de Colombo à América). Assim, a busca da totalidade, mediante a extensão
de si mesmo, resultando na negação do outro265, são elementos que circundam as relações na
sociedade industrial, globalizada e etnocentrista.
Outro fator importante é que este objetivo pela totalidade, pela integração ou destrui-
ção de “empecilhos humanos do progresso” é instrumentalizado em práticas sociais. Tendo
em vista que as sociedades primitivas são uma recusa ao Estado e à relação de comando-
obediência inerente à formação deste266, o regime de produção econômica, visando abolir a
diferença, será considerado uma formidável máquina de produzir, tornando-se também uma
terrível máquina de destruir267, produzir genocídio e etnocídio. O racismo universalista268 in-
tegrado no poder disciplinar (este responsável pela docilização e adestramento dos corpos)269,
atua mediante instituições religiosas, atividades colonizadoras subsidiadas pelas políticas in-
digenistas integracionistas, ou pelo colonialismo interno, mediante a ocupação dos territórios
em que vivem etnias diversas pelo refugo humano produzido nas zonas urbanas. O resultado
destas mecânicas de poder será a conversão de etnias a um produto da relação colonial270, in-
tegrando-as como corpo produtivo, ou destruí-las enquanto seres não submetidos ao discipli-
262
LUZARDO, Alexander. Ecocidio y etnocidio en la Amazonia. Disponível em:
<http://www.nuso.org/upload/articulos/842_1.pdf>. Acesso em: 10 fev. 2008, p. 05.
263
JAULIN, Robert. Op. cit., p. 263.
264
Idem, p. 263.
265
Ibidem, p. 355-374.
266
Com relação às sociedades primitivas e a questão do Estado, vide CLASTRES, Pierre. A Sociedade contra o
Estado. São Paulo: Cosac & Naify, 2003.
267
CLASTRES, Pierre. Arqueologia da Violência. Op. cit., p. 91.
268
WIEVIORKA, Michel. O racismo, uma introdução. São Paulo: Perspectiva, 2007, p. 43.
269
FOUCAULT, Michel. Microfísica do Poder. 20ª ed. Rio de Janeiro: Graal, 2004, p. 224.
270
MORIN, Françoise. Indianidad, etnocidio, indigenismo en América Latina. México: Ed. Centre d’ Etudes
Mexicaines et Centraméricaines y Instituto Indigenista Interamericano, 1988, p. 16.
81
namento do processo civilizador. Para tanto, o genocídio e o etnocídio figuram como elemen-
tos integrantes da expansão da sociedade modernizadora e do Estado criminal; e nesta estrutu-
ra, os grupos se constituirão como um obstáculo ou uma ameaça271.
Diante dos aspectos expostos anteriormente, dois elementos são característicos do ge-
nocídio e etnocídio, perpetrados contra etnias que possuem seu próprio modo de vida e traços
culturais: a condição de vulnerabilidade que se instaura no grupo e o caráter de vítimas em
potencial, diante da sua fragilidade frente à expansão do sistema-mundo moderno. Estas ca-
racterísticas que se fazem presentes no caso de grupos humanos ameaçados provêm da socie-
dade do risco, a qual põe em perigo a si mesma e às outras sociedades que não compartilham
sua visão de mundo, em face da globalidade que sua ameaça proporciona272.
Nesse contexto, a vulnerabilidade pode ser constatada pelo fato de que o grupo a que
se visa eliminar – fisicamente ou culturalmente – possui uma capacidade de resistência míni-
ma, insignificante frente ao agente do ato. A vitima estará condenada a sofrer esta espécie de
“fatalidade”, por não ter meios para mudar seu destino273. Assim, a condição vulnerável que a
vítima possui advém, além das suas características de identidade e modo de vida enquanto
grupo, da sua impotência em romper com a prática genocida e etnocida. Os agentes, diante da
força desproporcional que se estabelece, praticam um ato de covardia.
271
TERNON, Yves. Op. cit., p. 83.
272
Vide BECK, Ulrich. Op. cit., p. 28.
273
TERNON, Yves. Op. cit., p. 78.
274
Idem, p. 76.
275
TRINDADE, Antônio Augusto Cançado. Direitos Humanos e Meio Ambiente: paralelo dos sistemas de pro-
teção ambiental. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris Editor, 1993, p. 91.
82
Para tanto, tais características são importantes para avaliar em que circunstância gra-
ves violações de direitos humanos – como o genocídio e o etnocídio – são praticados. E sob
esta ótica, a condição de vulnerabilidade e a potencialidade de se tornar vítima sobrevêm co-
mo fatores produzidos no interior desta guerra oculta, produtora de violência, instaurada no
âmago da sociedade moderna do risco e do Estado criminal. Trazendo à tona uma idéia de
Celso Lafer e a expondo com base nas nossas reflexões, nenhum povo da terra pode sentir-se
razoavelmente seguro em casa e no mundo, na medida em que se admita o genocídio e o et-
nocídio como probabilidade futura276.
276
LAFER, Celso. A Reconstrução dos Direitos Humanos. 6ª ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2006, p.
182.
83
3.1 O ANTES
Os Yanomami vivem nas florestas da Amazônia, entre as cabeceiras das bacias dos ri-
os Orinoco (na Venezuela) e Amazonas (no Brasil), sendo que a fronteira entre o Brasil e a
Venezuela passa pelo seu território. Estima-se que são cerca de 22.500 indígenas, a maior
comunidade das Américas ainda a viver de forma tradicional278. São aldeados em 320 aldeias,
sendo a maioria da população semi-isolada. Trata-se de um grupo seminômade, que se deslo-
277
TERNON, Yves. Op. cit., p. 92.
278
ROCHA, Jan. O massacre dos Yanomami e suas conseqüências. São Paulo: Casa Amarela, 2007, p. 63.
84
ca na mata periodicamente num raio de 10 a 30 Km. Cada aldeia possui entre 30 e 100 pesso-
as, ligadas por laços de parentesco e residentes numa única habitação279. Como ilustração, a
imagem a seguir demonstra a localização das habitações280:
Os índios Yanomami tiveram seus primeiros contatos diretos com trabalhadores, caça-
dores, membros da antiga SPI e viajantes estrangeiros (dentre outras pessoas) nas primeiras
décadas do século XX, aproximadamente entre as décadas de 10 e 40. Ao final dos anos 40 e
meados de 60 foi promovida a abertura de missões católicas e evangélicas, bem como alguns
postos do SPI, estabelecendo-se os primeiros pontos de contato permanente281.
Nos anos 70, foram implantados grandes projetos de desenvolvimento na região, de-
correntes do Plano de Integração Nacional, projetado pelos governos militares. A principal
obra que inicia este processo foi a construção da Perimetral Norte (subsidiada pela construtora
279
SANTOS, Silvio Coelho dos. Povos indígenas e desenvolvimento hidrelétrico na Amazônia. Disponível em:
<http://www.anpocs.org.br/portal/publicacoes/rbcs_00_08/rbcs08_05.htm>. Acesso em: 10 fev. 2008, p. 06.
280
Aldeia “Serra do vento” (Demini). Foto de Carlos Zacquini. Disponível em:
<http://www.proyanomami.org.br>. Acesso em: 01 nov. 2008.
281
ALBERT, Bruce. Urihi: terra, economia e saúde yanomami. Disponível em:
<http://www.unb.br/ics/dan/Serie119empdf.pdf>. Acesso em: 03 dez. 2007, p. 04.
282
Idem, p. 04.
85
Em suma, a referida construção partia do pressuposto de que a Amazônia era uma im-
portante zona estratégica, porém vazia demograficamente. Com efeito, fazia-se com que a co-
lonização por não-indígenas fosse um fator fundamental para se assegurar a posse do território
e a soberania do País. Como aponta Marcelle Ivie da Costa Silva, há uma significativa mu-
dança no papel dos indígenas por parte das Forças Armadas brasileiras, pois se no período
colonial os índios eram vistos como agentes importantes para a manutenção da soberania
(como guardas de fronteiras), a partir dos anos 70 passam a ser considerados obstáculos ao
desenvolvimento e à integridade territorial287.
283
Para mais informações sobre o impacto da construção da Perimetral Norte aos Yanomami, vide VIEIRA, Jaci
Guilherme. Missionários, fazendeiros e índios em Roraima: a disputa pela terra - 1777 a 1980. Disponível em:
<http://www1.capes.gov.br/teses/pt/2003_dout_ufpe_jaci_guilherme_vieira.PDF>. Acesso em: 28 jan. 2008, p.
145.
284
ALBERT, Bruce. Urihi: terra, economia e saúde yanomami. Op. cit., p. 04.
285
SANTOS, Silvio Coelho dos. Povos indígenas e desenvolvimento hidrelétrico na Amazônia. Op. cit., p. 6.
286
ROCHA, Jan. Op. cit., p. 69.
287
COSTA SILVA, Marcelle Ivie da. Amazônia e política de defesa no Brasil (1985-2002). Disponível em:
<http://www.santiagodantassp.locaweb.com.br/br/arquivos/defesas/marcele.pdf>. Acesso em: 30 nov. 2007, p.
68.
288
Idem, p. 69.
86
Outro projeto que se desenvolveu pelo regime militar, já ao seu final, foi o projeto
chamado Calha Norte, em 1985. Elaborado visando ocupar e desenvolver a região amazônica,
foi um produto das preocupações geopolíticas e nacionalistas do Conselho de Segurança Na-
cional. Projetada a partir de idéia do “imenso vazio demográfico”, “o ambiente pouco conhe-
cido”, a questão do “Suriname e Guiana ligados à influência da ideologia marxista” e o perigo
de um “Estado Yanomami independente”, a medida propôs a construção de uma vasta infra-
estrutura, incluindo aeródromos, rodovias, quartéis, escolas, bancos e distribuidores de ali-
mentos, com o objetivo de “vivificação” da zona de fronteira292. Esta “vivificação” consistia
no assentamento de colonos brasileiros293 e a instalação de projetos minerais, a fim de de-
monstrar o poder e o controle do Estado brasileiro, visando obter a hegemonia geopolítica na
região amazônica294. Contudo, a justificativa do resguardo das fronteiras veio à tona quando
as Forças Armadas se omitiram na prevenção e controle das atividades ilegais de dezenas de
milhares de garimpeiros que, a partir de agosto de 1987, invadiram as terras Yanomami295.
289
VIEIRA, Jaci Guilherme. Op. cit., p. 49.
290
Em síntese, trata-se de grandes contingentes populacionais oriundos dos aglomerados urbanos, com baixa
qualificação profissional, que se infiltravam no território em busca de riqueza e vidas melhores.
291
ROCHA, Jan. Op. cit., p. 69.
292
RAMOS, Alcida Rita. O papel político das epidemias: o caso yanomami. Série antropologia n. 153. Brasília:
1993, p. 04-05.
293
Interessante referir que no final dos anos 70 chegavam a Roraima cerca de 200 pessoas por dia. A população
dobrou para 80.000 pessoas na década de 70 e em 1991 atingiu 215.000. Três quartos dos migrantes eram oriun-
dos do Nordeste, 60% deles de um único Estado, o Maranhão, onde os latifundiários detinham grande parte das
terras e os pobres vilarejos de terra batida existiam em condições feudais, sem eletricidade, água encanada ou
sistema de esgotos, com as crianças condenadas ao analfabetismo. Muitos deixaram a terra à procura de trabalho
nas cidades. E para estas pessoas, o garimpo significava a única chance de sucesso na vida, a única chance de
riqueza. Vide ROCHA, Jan. Op. cit., p. 85.
294
RAMOS, Alcida Rita. O papel político das epidemias: o caso yanomami. Op. cit., p. 06.
295
Idem, p. 07.
296
YANOMAMI, Davi Kopenawa, Folha de São Paulo de 30/08/1993, citado por ZHOURI, Andréa. O fantasma
da internacionalização da Amazônia revisitado: ambientalismo, direitos humanos e indígenas na perspectiva de
87
Os garimpeiros não têm trabalho. Por isso eles vêm aqui. Os garimpeiros
não têm terra. Por isso eles vagam. Eles são pobres. Eles não têm nada. Seus filhos e
esposas ficam doentes. O governo não lhes dá terra e emprego. Se houvessem em-
pregos nas cidades eles ficavam lá. Como eles não têm nada, eles querem entrar na
reserva. Eles são incitados por outros atrás deles. Eles atacam os Yanomami e têm
os patrões deles para defendê-los nas cidades...A culpa é dos homens que moram nas
mansões na cidade. Eles não gastam energia ou sujam as mãos. Os garimpeiros são
pagos para matar os índios e criar problemas. É por isso que eles são perigosos. Os
garimpeiros estão sempre rindo. Os Yanomami estão chorando. Mais tarde os ga-
rimpeiros vão pagar por nossos mortos. Seus filhos vão sofrer. Suas famílias vão so-
frer comendo lixo nas ruas das grandes cidades. Isso já está acontecendo com as cri-
anças por causa dos erros dos pais e erros dos governos e dos políticos.
298
Foto 2 – Posto de Homoxi, 1991. Foto de M. Guran .
Já em meados de 1990, estimou-se que mais de 1.500 Yanomami teriam morrido de-
vido às invasões de garimpeiros, a maioria de malária e outras doenças, e também por feri-
mentos a tiros. Em maio de 1988, por exemplo, quatro indígenas teriam sido espancados até
desmaiar e uma menina índia ferida a chumbo, durante um conflito com garimpeiros302.
299
RAMOS, Alcida Rita. Por falar em paraíso terrestre. Disponível em:
<http://www.unb.br/ics/dan/Serie191empdf.pdf>. Acesso em: 30 nov. 2007, p. 07.
300
ALBERT, Bruce. Urihi: terra, economia e saúde yanomami. Op. cit., p. 05.
301
ZHOURI, Andréa. Op. cit., p. 15.
302
ROCHA, Jan. Op. cit., p. 70.
303
Idem, p. 95.
89
Assim, ao invés de proceder a expulsão dos invasores, a FUNAI baniu agentes de saú-
de, antropólogos e missionários. Deixados a sós, os indígenas permaneceram ao abrigo apenas
das doenças e da destruição. Ao final de 1987, haviam postos de garimpo localizados nas ca-
beceiras do rio Mucajaí, Apiaú e do Couto de Magalhães, os quais eram três importantes rios
da reserva Yanomami. Tem-se a estimativa de que mais de 200 garimpos foram explorados,
de 1986 a 1992304.
304
Idem, p. 96.
305
Ibidem, p. 107.
306
Ação pela cidadania – 1990. Yanomami: a todos os povos da Terra. São Paulo: CCPY, Cedi, Cimi, NDI, ju-
lho/1990, p. 17.
307
ROCHA, Jan. Op. cit., p. 111.
308
Idem, p. 112.
309
Ibidem, p. 96.
310
Ibidem, p. 112.
90
Em 1989, Fernando Collor é eleito presidente, sucedendo Sarney, num período em que
os temas ambientais haviam adquirido importância global. Visando credibilidade internacio-
nal, Collor ordena a retirada de garimpeiros, anunciando uma operação de noventa dias para
retirar 45.000 garimpeiros da reserva, momentaneamente pondo fim à mineração em 1990.
Neste período, em julho 1989, o Ministério Público Federal ajuíza ação civil pública
visando a interdição das pistas de pouso clandestinas, abertas pelos garimpeiros dentro do ter-
ritório. No mesmo ano, em outubro de 1989, o MPF ingressa com medida cautelar (nº XII-
244/89) na Justiça Federal do Distrito Federal, solicitando a retirada imediata dos invasores e
a interdição da área demarcada; o juiz da 7ª Vara da Justiça Federal do Distrito Federal, No-
vély Vilanova da Silva Reis, profere decisão interlocutória concedendo liminarmente a inter-
dição dos 9 milhões de hectares e a retirada dos invasores311.
Em março de 1990, Collor organiza a operação selva livre, para retirar os garimpeiros
e explodir as pistas de pouso. Em abril de 1991, Collor revoga o decreto que fragmentava o
território em ilhas e institui o Distrito de Saúde Yanomami312.
3.2 O DURANTE
311
Ação pela cidadania – 1990. Yanomami: a todos os povos da Terra. Op. cit., p. 20.
312
ROCHA, Jan. Op. cit., p. 113-114.
91
313
ALBERT, Bruce. O massacre dos Yanomami de Haximu. Disponível em:
<http://www.proyanomami.org.br/v0904/index.asp?pag=htm&url=http://www.proyanomami.org.br/v0904/docu
mentos/anexo_1.htm>. Acesso em: 03 dez. 2007, pg. 01.
92
A partir do dia 15 de julho de 1993 a situação se agrava. Outro grupo de seis rapazes
chega a outro barracão para pedir comida, bens de troca e levar de volta aos garimpeiros uma
espingarda, de acordo com a recomendação dos seus parentes mais velhos. Ao chegar, rece-
bem comida e um bilhete para ser entregue em outro barracão, mediante a promessa de que no
próximo eles obteriam mais objetos. Chegando ao próximo barracão, os índios encontram
uma turma de garimpeiros jogando dominó. São recebidos por uma cozinheira, que lê o bilhe-
te e joga-o no fogo, mandando os índios embora com mais mantimentos e roupa. O bilhete
dizia: “faça bom proveito desses otários”. Com esse sinal, os garimpeiros chegam a cogitar de
matar o grupo de índios ali mesmo, porém desistem, temendo que outros índios estivessem
próximos ao local. Assim, decidem atacá-los na trilha de volta às malocas316.
Após alguns minutos, os rapazes Yanomami param para comer o que receberam nos
barracões. Com isso, chegam cerca de cinco a seis garimpeiros armados, que os convidam pa-
ra ir caçar anta e visitar outro barracão. Apesar de estranhar o convite, os índios aceitam dian-
te da insistência; forma-se uma fila indiana entre índios e garimpeiros, alternadamente. Poste-
riormente, um dos Yanomamis – chamado Paulo Yanomami – pára durante a caminhada para
defecar, passando sua espingarda para outro dos rapazes, chamado Geraldo (também Yano-
mami). Contudo, os garimpeiros não seguem caminhando. De repente, um deles segura o bra-
ço de Geraldo Yanomami, que segurava a arma, e atira no ventre deste com uma espingarda.
Neste momento, mais três índios são executados pelos outros garimpeiros. Um dos executores
314
Idem, p. 01 e 02.
315
Ibidem, p. 02.
316
Ibidem, p. 02.
93
Neste tempo, o Yanomami que estava no mato (Paulo), depois de escutar os tiros, jo-
ga-se no rio Orinoco e consegue fugir. Um jovem de 18 anos, chamado Reikim, também es-
capa ferido, enquanto os garimpeiros carregavam suas armas. Este jovem também se joga no
rio e, desta posição, vê os garimpeiros enterrar os três índios mortos – sendo que o enterro, na
cultura Yanomami é considerado uma profanação, algo inaceitável318. Após, os sobreviventes
desenterram os três mortos e levam os corpos para serem cremados. Coletam os ossos neces-
sários para realizar os ritos funerários e voltam para casa para planejar a vingança das mortes
com ataques guerreiros, onde os alvos são os homens – nunca mulheres e crianças319.
Após dois dias de caminhada pela mata, um grupo de guerreiros chega nas imediações
do garimpo. Por volta das dez horas da manhã seguinte, chegam a um barracão onde encon-
tram dois homens. Um dos índios acerta um dos homens, chamado “Fininho”, com um tiro na
cabeça; o outro foge, porém ferido. O homem executado tem sua cabeça partida com golpes
de machado, além de ser alvo de flechas. Após a vingança, os Yanomamis apanham tudo que
encontram no barracão, inclusive cartuchos e espingarda do homem morto320.
Depois do ataque, retornam à aldeia. Temerosos, deixam suas malocas com todos os
seus bens, dirigindo-se a outro local, uma roça velha, visando segurança321. Passado mais de
uma semana, os Yanomamis receberam a presença de alguns índios da maloca do Simão (co-
munidade de Makayu), que os convidaram para uma festa. No mesmo dia, quase a totalidade
dos homens de Haximu segue para a festa em Makayu, e decidem deixar no local apenas al-
guns homens, mas a maioria mulheres e crianças; para os Yanomami, como mulheres e crian-
ças nunca são alvo de ataque, não haveria receio de estas serem objetos de vingança por parte
dos garimpeiros; elas estariam seguras, mesmo em se tratando de ataques inimigos322.
317
Idem, p. 02-03.
318
Na cultura Yanomami, os seus mortos são cremados, conjuntamente com seus pertences; enterrar um de seus
parentes é algo terrível para eles.
319
ALBERT, Bruce. O massacre dos Yanomami de Haximu. Op. cit., p. 03.
320
Idem, p. 03.
321
MAIA, Luciano Mariz. HAXIMU: Foi Genocídio! Disponível em:
<http://www.proyanomami.org.br/v0904/index.asp?pag=htm&url=http://www.proyanomami.org.br/v0904/docu
mentos/haximu_new.htm>. Acesso em: 03 dez. 2007, p. 04.
322
ROCHA, Jan. Op. cit., p. 26.
94
3.2.1 Do massacre
O ataque dos Yanomami causa ódio aos garimpeiros. Após enterrarem o homem mor-
to na cozinha do barracão, abandonam o local e levam o outro homem que foi ferido para uma
pista de pouso há cerca de dois dias de caminhada, sendo que neste tempo começam a plane-
jar a vingança323. Depois de duas reuniões (e com o patrocínio de quatro empresários dos ga-
rimpos atuantes na região, liberando empregados, munição e armas) decidem matar todos os
moradores das malocas da aldeia de Haximu, um total de 85 pessoas; os quatro financiadores
da operação de extermínio foram: João Neto, proprietário rural; seu cunhado, Chico Ceará;
Eliézio, dono de uma cantina; Pedro Prancheta, autor do bilhete que teria sido escrito no ata-
que anterior dos garimpeiros, além do Sr. Juvenal Silva (vulgo Cururupu)324. Estes distribuí-
ram as munições e armas aos garimpeiros Goiano Doido, Pedão, Neguinho, Parazinho, Ceará
Perdido, Goiano Boiadeiro, Japão, Boroca, Maranhão (Uriçado), Adriano, Paraná Aloprado,
Barbacena, Goiano Barbudo e Silva. Pernoitaram no barraco de Cururupu; no dia seguinte,
Pedro Prancheta e os demais, armados com 15 espingardas, 7 revólveres e alguns facões e fa-
cas, determinados a exterminar todos os habitantes da aldeia Haximu, abrem caminho até o
local325.
O bando caminhou cerca de dois dias inteiros no mato, até alcançar a primeira maloca
de Haximu, quando já chegava a noite; contudo, a mesma estava vazia. Chegam a uma segun-
da maloca, também vazia; nesta, os agentes decidem ocupá-la para o pernoite, a fim de conti-
nuar a busca quando chegasse a manhã326.
Pela manhã, os Yanomamis que foram até a festa de Makayu ainda não tinham regres-
sado. No local, boa parte das mulheres e crianças havia ido apanhar ingá na mata. Apenas es-
tavam nos tapiris (casas) algumas mulheres e crianças. Algumas horas depois, por volta do
meio-dia, os garimpeiros chegam ao acampamento e o cercam de um lado. Enquanto as crian-
ças brincavam, as mulheres cortavam lenha e os demais estavam deitados nas redes, um ho-
mem do bando dispara um tiro e todos os outros seguem o mesmo, abrindo fogo e avançando
até as vítimas. No meio do tiroteio, escapam quatro homens e uma mulher de meia idade, duas
meninas de seis e sete anos e uma menina de cerca de 10 anos, por se esconderem na vegeta-
ção. As duas meninas pequenas e um dos homens saem feridos com chumbo espalhado no
323
MAIA, Luciano Mariz. Op. cit., p. 04.
324
ALBERT, Bruce. O massacre dos Yanomami de Haximu. Op. cit., p. 03.
325
MAIA, Luciano Mariz. Op. cit., p. 05.
326
Idem, p. 05.
95
rosto, pescoço, costas e braços; a menina maior recebe um ferimento grave na cabeça, vindo a
falecer mais tarde. Do seu esconderijo, os sobreviventes continuaram a ouvir gritos abafados
pelo som dos tiros. Logo após, os garimpeiros interrompem os tiros e entram nos abrigos para
terminar de matar quem ainda está vivo a golpes de facão, mutilando e esquartejando todos os
cadáveres crivados de balas327.
Dois dos homens sobreviventes foram Simão e Paulo Yanomami. O primeiro relata:
‘Que ainda se encontrava deitado (buruoma), por volta de 10:00 para 11:00
hs, ocasião em que foram surpreendidos pelos ataques dos garimpeiros e o informan-
te levou um tiro do lado direito pegando vários caroços de chumbo na costela, pes-
coço e três bem próximos uns dos outros na face, perto da orelha do lado direito e os
caroços de chumbo ainda não foram retirados, em seguida o informante correu para
328
o mato’ .
‘Que, no dia seguinte, por volta das 9:00 para 10:00 h, o informante estava
deitado em uma rede de casca e no momento ouviu alguns tiros e um garimpeiro ati-
rou em sua direção e ele conseguiu evitar que o tiro pegasse e no momento em que o
garimpeiro estava trocando o cartucho aproveitou para correr, ficando ali à distância
escondido dentro do mato, ainda na roça velha e dali escutou gritos e muitos tiros e
no final ouviu os garimpeiros dizendo: "Embora, Embora, Embora"; que, em segui-
da o informante foi procurar as mulheres, ou seja, chegou até o local onde se encon-
trava a maioria das mulheres e crianças que tinham saído dos tapiris de manhã para
apanhar frutos, ingás, etc; que após os garimpeiros terem saído o informante retor-
nou ao local dos tapiris à procura de sua espingarda e não mais encontrou pois os ga-
rimpeiros a tinham levado e naquele momento gritou para a turma de indígenas que
estava apanhando ingá, para virem até o local, tendo observado que haviam muitos
mortos com marcas de tiros e cortes de terçado na maioria deles, inclusive mulheres
329
e crianças; que entre os corpos estava o de sua filha de três a quatro anos’ ;
Ainda durante o massacre, constatou-se que um dos integrantes – Goiano Doido – ma-
tou um bebê; também uma idosa foi morta pelo grupo330.
327
ALBERT, Bruce. O massacre dos Yanomami de Haximu. Op. cit., p. 05.
328
Depoimento de Simão Yanomami, citado pelo Procurador da República Dr. Luciano Mariz Maia, o qual par-
ticipou da equipe de trabalho na investigação e denúncia do massacre de Haximu. Vide MAIA, Luciano Mariz.
Op. cit., p. 06.
329
Depoimento de Paulo Yanomami, citado por MAIA, Luciano Mariz. Idem, p. 06.
330
ROCHA, Jan. Op. cit., p. 28.
96
‘Que, no dia seguinte, saíram por volta das 7:00 hs e só retornaram após
três dias e o reinquirido conversou pessoalmente com "Japão" e este por sua vez lhe
contou que saíram em direção às malocas, que eram em número de duas, uma pró-
xima da outra e lá chegando não tinha nenhum índio, tendo então eles dormido ali e
no dia seguinte pela manhã saíram no rastro dos índios e após três horas de cami-
nhada encontraram umas barraquinhas no meio da mata e ali estavam os índios, on-
de haviam algumas crianças brincando, ocasião em que os garimpeiros ficaram to-
dos de um lado e atiraram por alguns minutos matando todos que ali se encontra-
vam, tendo também sabido, através de ‘Japão’, que ‘Goiano doido’ meteu a faca
numa criancinha e ele só ouviu ela gritar e logo após saíram todos correndo com
medo dos outros índios em direção às malocas e na ocasião atearam fogo nas mes-
mas, antes porém deram vários tiros em panelas e em tudo que viam pela frente e em
331
seguida retornaram aos seus barracos’ .
Outra informação que corrobora os fatos é trazida pela Sra. Silvânia Santos Menezes,
conhecida por Silvinha, cozinheira do garimpeiro João Neto:
‘Que, quando eles retornaram disseram aos demais garimpeiros, bem como
à declarante que eles teriam ido primeiro na chapona e lá não haviam achado nin-
guém e saíram dali e encontraram os índios e segundo eles mataram uns vinte, entre
homens, mulheres e crianças; que, segundo eles, quem começou a atirar foi "Goiano
Boiadeiro" e depois todos atiraram; que, gostaria de esclarecer que ouviu os garim-
peiros dizerem que na chapona arrumaram as panelas, deram vários tiros e depois
atearam fogo nas mesmas e de lá saíram à procura dos índios; que presenciou "Goi-
ano Boiadeiro" dizer: "que havia uma criança deitada numa rede e ele enrolou a cri-
332
ança em um pano e meteu a faca de um lado para o outro’ ;
O antropólogo Bruce Albert, bem como o Procurador da República que atuou no caso
na época – Dr. Luciano Mariz Maia – apontam o número de doze pessoas executadas333: um
homem adulto de idade avançada; duas mulheres idosas, sendo uma cega; uma jovem adulta,
identificada como Masena, de aproximadamente dezoito anos, vinda de uma aldeia vizinha,
chamada Homoxi; três meninas adolescentes; três meninas de 1, 7 e 8 anos; e dois meninos (7
e 8 anos). Além de feridos (Simão, de 20 anos, e duas meninas, de 6 e 7 anos, respectivamen-
te). Três destas crianças executadas eram órfãs de pais mortos pela malária.
Terminado o “serviço”, os garimpeiros do grupo se dão conta que não haviam exter-
minado todos os habitantes de Haximu. Por isso, levaram espingardas que estavam nos abri-
331
Depoimento de Pedro Prancheta, citado por MAIA, Luciano Mariz. Op. cit., p. 06. Também consta neste tex-
to, dentre outras informações, as descrições de onde os depoimentos foram coletados. Nesse sentido, o relatório
de conclusão do inquérito policial 078/93-DPF/RR, que serviu de base para denúncia, e ação penal 242/93-RR.
332
Depoimento de Silvânia Santos Menezes, citado por MAIA, Luciano Mariz. Op. cit., p. 07.
333
ALBERT, Bruce. O massacre dos Yanomami de Haximu. Op. cit., p. 05; MAIA, Luciano Mariz. Op.cit., p.
08.
97
gos, dispararam foguete para despistar eventuais perseguidores e se dirigiram de volta ao ga-
rimpo334.
‘...foram feitas duas fogueiras na área dos tapiris e foram cremados um ho-
mem numa e uma mulher e sua filha em outra, esclarecendo que a mulher era a ido-
sa, cega, irmã da informante; que recolheram o restante dos corpos e caminharam
meia hora, aproximadamente, a pé do local onde foram mortos e lá fizeram outros
tapiris, providenciaram lenha para fazer a cremação dos corpos, sendo seis foguei-
ras, onde foram cremadas as crianças e uma moça e outra fogueira próxima onde foi
cremada uma moça mais velha, esclarecendo que nas seis fogueiras foram cremadas
cinco crianças e uma moça; que, no local das duas primeiras fogueiras, onde foram
cremados o homem, a velha cega e a criança, deixaram o corpo não cremado da ín-
dia dos Homoxitheri, que não tinha parentes, entre os que ali se encontravam, razão
pela qual não foi cremada, recordando-se que haviam furos de balas na cabeça e cor-
tes nos braços, barriga, peito, cabeça e pernas; havia também um corte profundo do
335
lado direito da face da mesma, tendo a cabeça ficado aberta ’;
A índia que não foi cremada era Masena, de Homoxi, pois era visitante dos habitantes
de Haximu, e não tinha parentes que lhe chorassem a morte – o que faz parte da cultura dos
Yanomami, quando um parente falece, o outro chora-lhe a morte durante os ritos fúnebres,
que incluem a cremação. Após realizarem a cremação dos mortos, começam uma fuga em
mata fechada num imenso desvio para despistar os garimpeiros.
‘Os índios de Yababak estão todos aqui. O Tuxaua [chefe] Antônio dizendo
que não querem voltar porque os garimpeiros foram a uma maloca próxima à deles
em dia de caminhada e mataram sete crianças, cinco mulheres e dois homens, e des-
truíram a maloca. Poucos homens conseguiram fugir. Acredito ser verdade, pois es-
tão amedrontados.
Pedi na Funai aqui para passar um rádio pedindo para a Polícia Federal in-
vestigar o caso. Disseram que primeiro precisam da certeza. Foram a uma pista pró-
334
ALBERT, Bruce. O massacre dos Yanomami de Haximu. Op. cit., p. 05.
335
Depoimento de Waythereoma Hwanxima, citado por MAIA, Luciano Mariz. Op. cit., p. 07.
336
Idem, p. 07.
98
xima daqui ver se lá tem garimpeiros, mas o que aconteceu foi um uma maloca, di-
visa com a Venezuela, chamada Haximu, não temos o censo dela. Temos notícia por
índios daqui, que vão lá, é uma maloca de pouco contato com [ilegível].
Peço ver o que pode fazer, falar com a Funai aí, para que possamos saber a
verdade. Obrigada.
337
Irmã Aléssia’ .
Durante praticamente um mês nada ocorre. Os garimpeiros voltam à atividade até que
ouvem a transmissão da notícia através da Rádio Nacional da Amazônia de que o fato foi des-
coberto, provocando revolta no país e no exterior. Em pânico, os homens decidem deixar a
área e iniciar uma marcha de dois dias até a pista de pouso clandestina Raimundo Nenê. Che-
gando, embarcam à força nos primeiros aviões que aparecem e ameaçam matar quem dê in-
formações sobre eles338. Chegando a Boa Vista/RR, alguns garimpeiros se dispersam, e outros
permanecem na cidade e acabam sendo presos pela Polícia Federal. É o caso de Pedro Pran-
cheta e Eliézer339.
3.2.2 A repercussão
Com o fato nos noticiários, o então Ministro da Justiça, Maurício Corrêa, o Procura-
dor-Geral da República, Aristides Junqueira e o presidente da FUNAI se dirigem até o local –
embora soubessem mais tarde que o fato teria ocorrido em território venezuelano, o que exigi-
ria autorização do governo do País vizinho. Após incidentes com políticos locais, as autorida-
337
Vide ROCHA, Jan. Op. cit., p. 31. Na obra também consta, no apêndice, a cópia do documento enviado, na p.
139, bem como a descrição feita por um funcionário da Funai, informando duas malocas totalmente destruídas
(p. 140).
338
Idem, p. 29.
339
MAIA, Luciano Mariz. Op. cit., p. 08.
340
ROCHA, Jan. Op. cit., p. 33.
99
Enquanto o debate sobre o fato crescia, Davi Kopenawa auxiliava na busca de pistas
na área de Haximu:
‘Achamos muitas fogueiras, carvão de lenha, com muitos ossos. Muitos pe-
dacinhos, porque o calor do fogo destrói, quebra os ossos. Muitas pessoas podem
haver sido incineradas. Achamos muitos ossos socados, pulverizados. Fazemos uma
trouxa, com folhas de bananeira. Colocamos em cabaças. Essas trouxas foram en-
contradas no acampamento. Na floresta, achamos caixas de cartucho calibre 12, fu-
ros de revólver e de chumbo. Já há muita coisa para provar, mataram muitos de nos-
343
sos parentes’ .
341
Idem, p. 35.
342
Ibidem, p. 34.
343
Informação de Davi Kopenawa citado por ROCHA, Jan. Ibidem, p. 44.
100
Em que pese a maioria ter desaparecido, Cotrim usou os depoimentos das cozinheiras
para reconstituir o que teria se passado entre os garimpeiros. No dia 6 de setembro tomou o
depoimento de Eva Souza e Silvânia – conforme relato transcrito anteriormente; ambas havi-
am cozinhado para João Neto. Silvânia inclusive (de 19 anos) no início tinha medo de falar,
porque havia recebido ameaças. Disse que teria visto os corpos e relatou que teria ouvido que
um índio havia ajoelhado e falado “garimpeiro amigo”, e que haviam atirado no rosto do ra-
paz. Cotrim listou 23 suspeitos345.
Colhidas as informações, localizou o garimpeiro Juvenal Silva, que negou ter partici-
pado do massacre; porém, informou que sabia sobre o assunto. Em 7 de setembro, Cotrim de-
teve Pedro Emiliano Garcia (Pedro Prancheta), um dos quatro para os quais foi emitido man-
dado de prisão. O investigado negou ter participado, mas disse que sabia quem o fez, bem
como admitiu ter enviado o bilhete com os dizeres: “faça bom proveito desses otários”. For-
neceu descrições de 17 homens. Também contou que houve a participação de um pistoleiro
chamado Pedão, e forneceu a lista de assassinatos atribuídos a ele e a Parazinho, outro pisto-
leiro. Mais tarde, em juízo, Garcia não confirmou a confissão346.
No dia 9 de setembro, o juiz Renato Martins Prates ordena a prisão, por trinta dias, de
dezenove pessoas acusadas dos fatos; solicitou que os envolvidos fossem identificados pelos
seus nomes verdadeiros, vez que eram conhecidos somente por seus apelidos. Destes, somente
dois foram encontrados: Pedro Prancheta (Pedro Emiliano Garcia) e Eliézer (Eliezio Monteiro
Néri), ambos presos para aguardar julgamento. Durante a investigação, 38 pessoas foram ou-
vidas, dentre cozinheiras, índios e outros347.
344
Idem, p. 47.
345
Ibidem, p. 50.
346
Ibidem, p. 51.
347
Ibidem, p. 51.
348
Conforme o Código Penal: “Art. 7º: Ficam sujeitos à lei brasileira, embora cometidos no estrangeiro:
I – os crimes:
(...)
d) de genocídio, quando o agente for brasileiro ou domiciliado no Brasil”. BRASIL. Decreto-Lei 2.848, de 07
de dezembro de 1940. Disponível em: <www.planalto.gov.br>. Acesso em: 13 nov. 2008.
101
térios Públicos do Brasil e Venezuela terem firmado um termo de cooperação nas investiga-
ções, decidiram por fazer diligências em separado349.
O antropólogo Bruce Albert, que participava das diligências352, verificou que os so-
breviventes traziam consigo quatorze cabaças com as cinzas dos parentes assassinados; era a
uma forte evidência do massacre. Mas havia um dilema, o qual as autoridades que dirigiam a
investigação passaram a enfrentar: não violar os costumes dos índios ou apanhar as cabaças
para colheita de provas? Enquanto isso, o lobby anti-indígena continuava na região de Rorai-
ma; inclusive um autor desconhecido, chamado Janer Cristaldo, chegou a defender a teoria de
que tudo seria uma farsa, escrevendo um artigo chamado “Os bastidores do Ianoblefe”353.
Por fim, Bruce Albert identificou as cinzas em cada uma das cabaças, por seu nome, e
cada uma foi individualmente fotografada nas mãos do respectivo parente, como mostra a foto
a seguir:
349
Idem, p. 51.
350
Ibidem, p. 53.
351
Ibidem, p. 53.
352
Bruce Albert traz inclusive informações e experiências pessoais sobre sua participação na colheita das evi-
dências que comprovaram o massacre. Nesse sentido, vide ALBERT, Bruce. Direitos Humanos e ética de pes-
quisa entre povos indígenas. Disponível em:
<http://www.proyanomami.org.br/v0904/documentos/doc2/part5.pdf>. Acesso em: 03 dez. 2007, p. 05-07.
353
ROCHA, Jan. Op. cit., p. 54.
102
354
Foto 3 – Parentes das vítimas do massacre de Haximu. Foto de Carlos Zacquini .
Contudo, um corpo não havia sido cremado: o da jovem Masena, cuja idade foi calcu-
lada em 18 anos. Levado seu corpo para exame no Instituto Nacional de Criminalística da Po-
lícia Federal em Brasília, o laudo pericial declarou que recebera, em 27 de agosto de 1993,
uma caixa de papelão contendo um esqueleto, fragmentos de ossos queimados, mechas de ca-
belo e invólucros de folha de bananeira. O laudo ainda apontava a existência de buracos de
bala no crânio e feridas de facão nos braços, abdome, peito, cabeça e pernas, bem como um
corte profundo no lado direito do rosto, que lhe partiu a cabeça355.
354
Parentes das vítimas do massacre de Haximu. Eles estão segurando cabaças contendo as cinzas dos corpos
cremados dos seus parentes. Foto de Carlos Zacquini. Disponível em:
<http://www.proyanomami.org.br/frame1/massacreHX.htm>. Acesso em: 14 dez. 2008.
355
ROCHA, Jan. Op. cit., p. 55.
103
se aproveitou, desta vez de uma distância menor, para desferir o segundo disparo na
356
cabeça. (Laudo, fls. 356 do IP)’ .
Após a autópsia, o esqueleto de Masena foi devolvido aos parentes para cremação ri-
tual. Não obstante as “teses” contrárias, estava comprovada a prática do crime.
No mesmo ano, em 19 de dezembro de 1996, o juiz federal Itagiba Catta Preta Neto
condena Pedro Emiliano Garcia (Pedro Prancheta), João Pereira de Morais (João Neto), Elie-
zio Monteiro Néri (Eliézer), Francisco Alves Rodrigues (Chico Ceará) e Juvenal Silva (Curu-
rupu), por crime de genocídio. Cada um recebeu pena de dezenove anos e seis meses359.
Contudo, quando prolatada a sentença, os réus estavam em liberdade. Mais tarde, a po-
lícia deteve João Neto, e em agosto de 1997, Pedro Prancheta. Em relação aos demais, teriam
sido vistos em garimpos dentro da área Yanomami360.
Ainda na sentença, o magistrado concluiu que sendo crime contra a etnia, o juízo
competente seria o juiz singular, e não o tribunal do júri361. Contudo, em sede de apelação
criminal362, o Tribunal Regional Federal da 1ª Região decidiu, por maioria, anular a sentença
proferida pelo juiz para determinar que o julgamento deveria ocorrer pelo tribunal do júri. A
decisão sustentava que embora havendo o genocídio, tal delito teria sido praticado mediante o
356
Laudo do Instituto Nacional de Criminalística da Polícia Federal em Brasília, citado por MAIA, Luciano Ma-
riz. Op. cit., p. 12.
357
Idem, p. 11.
358
PIOVESAN, Flávia. Direitos Humanos e o Direito Constitucional Internacional. 7ª ed. São Paulo: Saraiva,
2007, p. 288.
359
ROCHA, Jan. Op. cit., p. 59.
360
Idem, p. 59.
361
MAIA, Luciano Mariz. Op.cit., p. 15.
362
Vide AC 1997.01.00.017140-0/RR. TRF 1ª Região.
104
363
MAIA, Luciano Mariz. Op. cit., p. 15.
105
Como relata o procurador Luciano Mariz Maia, a decisão do STJ foi paradigmática,
constituindo-se em um importante precedente. Considerando que o crime de genocídio é um
delito contra um grupo humano enquanto tal, afasta a possibilidade de ser julgado pelo júri
popular. Outra questão que se apresenta como fundamento: o tribunal do júri é formado por
pessoas da sociedade envolvente (branca), majoritária, a qual muitas vezes possui preconceito
e discriminação, além da possibilidade de comprometer a imparcialidade do julgamento, em
se tratando de garimpeiros, fazendeiros, madeireiros e outras pessoas que fazem parte de gru-
pos sociais e econômicos365, direta ou indiretamente, como proprietários ou empregados; em
muitas vezes, tais pessoas podem influenciar o julgamento do júri a seu favor.
364
BRASIL. Resp 222.653/RR, 5ª Turma, Relator Ministro Jorge Scartezzini, julgado em 12/09/2000. Disponí-
vel em: <http://www.stj.jus.br>. Acesso em: 14 out. 2008.
365
MAIA, Luciano Mariz. Op. cit., p. 15.
106
366
RE 351.487/RR, Tribunal Pleno, Relator Ministro Cezar Peluso, julgado em 03/08/2006. Disponível em :
<http://www.stf.gov.br/portal/jurisprudencia/listarJurisprudencia.asp>. Acesso em: 14 out. 2008.
367
ALBERT, Bruce. O massacre dos Yanomami de Haximu. Op. cit., p. 10.
107
3.3 O DEPOIS
Em março de 1996, a FUNAI fica sem recursos para manter operações de vigilância
permanente sobre a reserva Yanomami. Dentro de 24 horas, foram vistos aviões carregando
garimpeiros e equipamentos, bem como relatos de que se estava distribuindo armas para os
índios. Foram apurados posteriormente vários casos de morte e ferimentos à bala. No mesmo
ano, o então Ministro da Justiça, Nelson Jobim, promete efetuar uma operação para retirar os
garimpeiros da área; no entanto, nada acontece370.
Ainda no mesmo ano, o CIMI publica relatório afirmando que no período de 1994 a
1995, um terço da população indígena sofria de desnutrição, 75 indígenas teriam sido assassi-
368
ROCHA, Jan. Op. cit., p. 116.
369
Idem, p. 117.
370
Ibidem, p. 117.
108
nados, e 46 reservas indígenas – a maioria na região amazônica – teriam sofrido novas inva-
sões as quais, segundo o CIMI, foram resultado da promulgação do Decreto 1.775371.
Outra questão que não foi solucionada, mesmo após todos os problemas e o massacre,
é a saúde do Povo Yanomami. Apesar da criação do Distrito Sanitário Yanomami (DSY) em
1991, com a colaboração de órgãos nacionais, antropólogos e membros de organizações de
proteção aos povos indígenas – visando combater as doenças trazidas pelas invasões, especi-
almente surtos de malária e tuberculose, em 1994 a coordenação da saúde retorna eminente-
371
Idem, p. 118.
372
Ibidem, p. 131.
373
Ibidem, p. 118.
374
Ibidem, p. 120.
109
No final de 1999, foi firmado um programa de saúde para quase toda área Yanomami,
sendo a CCPY convidada a colaborar. Contudo, pelas pressões de organismos locais do Esta-
do de Roraima, sob o fundamento da “ameaça internacional”, a área de atribuição da CCPY
foi reduzida. Em que pese o ocorrido, a CCPY decide criar uma organização independente, a
Urihi. No período entre 2001 e 2004, nenhum Yanomami morreu de malária, e esta foi redu-
zida em 99%377.
Todavia, a partir de 2003, sob o governo do presidente Luis Inácio Lula da Silva, a re-
lação entre a FUNASA e as ONGs que atuavam em parte dos territórios começa a ter proble-
mas378. Em 2004, a FUNASA anuncia uma nova política indigenista. A Urihi decide inter-
romper a parceria, pois entendia que a proposta seria uma contra-reforma. Um ano depois
(2005), a FUNASA passava a gastar o dobro de dinheiro e o atendimento ficava cada vez
mais trágico. Para a Urihi, esta situação teria ocorrido devido às interferências políticas locais
anti-indígenas envolvidas em irregularidades379.
Em 2006 foi registrada uma epidemia de malária séria. Somente no primeiro semestre
de 2006 foram notificados 2.591 casos, um aumento de 470% em relação ao mesmo período
do ano anterior380.
375
Idem, p. 125.
376
Ibidem, p. 126.
377
Ibidem, p. 127.
378
Ibidem, p. 127.
379
Ibidem, p. 128.
380
Ibidem, p. 129.
110
para garimpo. Também constantemente são distribuídas armas e munições aos indígenas; em
fevereiro de 2004, um grupo de garimpeiros executou com um tiro o funcionário da FUNAI,
Valdes Marinho Lima, indígena que trabalhava no órgão desde 1986381.
Não obstante os apelos feitos às autoridades federais, não houve retirada dos garimpei-
ros. Uma lei promulgada em outubro de 2004, que autoriza as Forças Armadas a disparar con-
tra aviões suspeitos dentro da área amazônica, não interrompeu o fluxo de aviões à Terra Ya-
nomami, não havendo qualquer controle pela Polícia Federal ou autoridades militares382.
381
Idem, p. 130.
382
Ibidem, p. 130.
383
O relatório da visita dos parlamentares, com as conversas travadas na reunião, consta no site
<www.proyanomami.org.br>. Acesso em: 21 fev.2008. Além do relatório, podem ser acessadas na mesma pági-
na as notícias Yanomami na imprensa, de 16 de fevereiro e 21 de fevereiro de 2008.
111
ram as visitas para as proximidades das bases do Exército para influenciar nos resul-
tados das conversas.
É MUITO PREOCUPANTE a posição do Relator já favorável ao Projeto
de lei de Mineração e aceitando a maneira de condução dos trabalhos feitos pelo
Presidente da Comissão, que todos nós sabemos em Roraima é contra índios. Outra
preocupação é com o Senhor Márcio Junqueira (Deputado Federal – DEM/RR) que
já foi garimpeiro na região do Homoxi (alto Mucajaí) e contribuiu com isso para o
sofrimento de muitos Yanomami e também é hoje o representante dos fazendeiros,
384
madeireiros e arrozeiros no Estado de Roraima .
Após o ocorrido, o líder Davi Kopenawa foi até a Câmara dos Deputados para denun-
ciar as irregularidades da visita, bem como esclarecer que o projeto causará um grande perigo
ambiental em decorrência da exploração de terra e a destruição das florestas para a retirada de
minério.
Assim, o clima de tensão, de guerra oculta ainda perdura após o massacre. O homem
branco ainda ronda a floresta.
384
Relatório de visita parlamentar na TI Yanomami. Disponível em: <www.proyanomami.org.br>. Acesso em:
21 fev. 2008.
112
“Eu fico preocupado com nossos filhos. Eles vão sofrer mais que agora. Eu
sempre lembro dos netos; eles vão sofrer mais que nós se a gente não lutar para de-
385
fender, para salvar a vida do povo”. (Davi Kopenawa Yanomami)
Ao nosso sentir, neste âmbito devem ser atuantes os direitos humanos; porém, longe
de se constituírem como uma pretensão universal a partir da cultura dominante, devem servir
como um instrumento intercultural que objetive preservar a existência dos seres humanos e
seus aspectos culturais característicos (como língua, tradições e território, por exemplo). Nes-
te aspecto, o conceito de tolerância é uma chave para uma abordagem dos direitos humanos e
do seu campo específico: o direito dos povos. A seguir, será feita uma exposição sobre um
exemplo característico de luta pela existência e pela identidade cultural: a Hutukara, associa-
ção dirigida pelos Yanomami em defesa de seus direitos coletivos especiais.
385
Ação pela cidadania – 1990. Yanomami: a todos os povos da Terra. Op. cit., p. 04.
113
4.1.1 Tolerância
Já a diferença é aquilo que o outro é (ele é estrangeiro, ele é negro, etc). Da mesma
forma que a identidade, a diferença remete a si própria. Assim, a diferença, tal como a identi-
dade, simplesmente existe, e ambas estão em estreita relação de dependência388. Se sou negro,
por exemplo, não sou branco. Trata-se de uma típica relação que exprime uma identidade (sou
negro, faço parte de uma unidade determinada) e diferença (não sou branco, existem outros
colegas, outros amigos que o são) 389.
Para tanto, a concepção de tolerância deve ser considerada no diálogo com a diferença
e a identidade. Ela possibilita a coexistência de grupos de pessoas com histórias, culturas e
identidades diferentes391.
Um dos primeiros escritos sobre o tema foi feito por John Locke, na obra Cartas sobre
Tolerância, em que o filósofo defendia que nenhum homem poderia privar outro homem (que
386
SILVA, Tomaz Tadeu da; HALL, Stuart; WOODWARD, Kathryn. Identidade e diferença: a perspectiva dos
estudos culturais. 2ª ed. Petrópolis: Vozes, 2003, p. 74.
387
HEIDEGGER, Martin. Identidade e diferença. Petrópolis: Vozes, 2006, p. 39.
388
SILVA, Tomaz Tadeu da; HALL, Stuart; WOODWARD, Kathryn. Op. cit., p. 74.
389
Idem, p. 75.
390
Ibidem, p. 76.
391
WALZER, Michael. Da tolerância. São Paulo: Martins Fontes, 1999, p. 04.
114
não seja de sua igreja ou fé) da liberdade ou de seus bens por conta da diferença religiosa que
exista entre eles392.
Um documento importante (que embora não tendo força cogente de convenção ou lei
nacional) veio a demonstrar a necessidade de se observar o preceito da tolerância é a Declara-
ção de Princípios sobre a Tolerância, aprovada pela UNESCO, em 1995. Nesta declaração, a
tolerância é definida no art. 1.1 como
Por esta definição, ela não é compreendida como uma concessão, caridade ou condes-
cendência, mas, antes de tudo, uma atitude ativa, fundada no reconhecimento dos direitos uni-
versais da pessoa humana395 e das liberdades fundamentais do outro, não podendo ser invoca-
da para justificar lesões a esses valores fundamentais (art. 1.2); é o sustentáculo dos direitos
humanos e do pluralismo (inclusive cultural), conforme preconiza o art. 1.3.
A declaração defende ainda que a prática da tolerância deve ser compreendida no se-
guinte aspecto (art. 1.4):
392
LOCKE, John. Cartas sobre Tolerância. São Paulo: Ícone, 2004, p. 86.
393
GRUPIONI, Luís Donisete Benzi; VIDAL, Lux; FISCHMANN, Roseli. Povos indígenas e tolerância: cons-
truindo práticas de respeito e solidariedade. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2001, p. 89.
394
Idem, p. 281.
395
Sobre a questão da universalidade relacionada aos direitos humanos (e à dignidade, por conseguinte), aborda-
remos em especial no próximo tópico.
115
396
GRUPIONI, Luís Donisete Benzi; VIDAL, Lux; FISCHMANN, Roseli, Op. cit., p. 282.
397
Idem, p. 31.
116
A tolerância, como abordado, é a base dos direitos humanos e do pluralismo. Mas para
tratar ainda da questão dos direitos humanos relacionados com a proteção dos povos e grupos
humanos, necessário tecer algumas considerações iniciais sobre a concepção e desenvolvi-
mento da idéia de direitos humanos, que resulta na questão atinente à proteção dos grupos e
povos (minorias étnicas, raciais, religiosas, políticas, etc., em condição de vulnerabilidade).
Para alguns, os direitos humanos seriam aqueles inerentes à vida, à segurança indivi-
dual, aos bens, etc; para outros, direitos humanos significa valores superiores que regem os
homens; uns entendem que são direitos inerentes à natureza humana; outros sustentam que é
uma conquista social através da luta política398. E nesse sentido, é pertinente esclarecer que os
direitos humanos, antes de qualquer coisa, provêm historicamente de um conteúdo político399.
Ou seja, se os direitos humanos no plano histórico já foram entendidos de diferentes maneiras
(provenientes da vontade divina; direitos que já nascem com o indivíduo; emanados do poder
do Estado; ou um produto da luta de classes), isso significa que cada uma dessas concepções
representou distintos momentos na história do pensamento e das sociedades humanas400. São
noções de direitos ou valores fundamentais que se transformaram de acordo com o modo de
organização social. Com efeito, é impossível concluir que exista apenas uma única fundamen-
tação e concepção para os direitos humanos401. Mas de certa forma, o que fundamenta a dou-
trina jurídica dos direitos humanos é a dignidade da pessoa humana402.
Com o passar dos tempos, surgiram três principais concepções, com seus respectivos
fundamentos: A primeira – concepção idealista – fundamentava os direitos do homem através
de uma visão metafísica, pela qual se identificava direitos e valores supremos a partir de uma
398
DORNELLES, João Ricardo W. O que são direitos humanos. São Paulo: Brasiliense, 2007, p. 09.
399
Idem, p. 10.
400
Ibidem, p. 12.
401
Ibidem, p. 16.
402
PERELMAN, Chaïm. Ética e Direito. São Paulo: Martins Fontes, 2002, p. 401.
403
DORNELLES, João Ricardo W. Op. cit., p. 14.
117
Assim, com base nestas diferentes concepções e fundamentações acerca dos direitos
humanos é que se desenvolveram as chamadas “gerações” de direitos humanos. Contudo, ao
nosso entender – e seguindo a doutrina de Ingo Sarlet407 – o termo “gerações” porventura po-
de causar a impressão de que haveria uma substituição gradativa de uma geração por outra, o
que não seria conveniente em termos de direitos humanos e fundamentais. Ou seja, há em
verdade uma complementaridade, que advém de um processo cumulativo de novas reivindi-
cações. Assim, seguindo a lição do autor, faz-se mais adequada a utilização do termo dimen-
sões. Esta estrutura vincula os direitos humanos, mas também os direitos fundamentais de cu-
nho constitucional408.
409
DORNELLES, João Ricardo W. Op. cit., p. 19.
410
Idem, p. 20.
411
Ibidem, p. 21.
412
Ibidem, p. 23.
119
consagrados nas declarações e a realidade vivida pela maioria do povo (especialmente as con-
dições degradantes impostas aos trabalhadores europeus)413.
Para tanto, as lutas operárias e populares marcaram a reivindicação por direitos soci-
ais, econômicos e culturais, através de uma ação efetiva do Estado – com a revolução mexica-
na, a revolução russa de 1917, a Constituição da República de Weimar na Alemenha e a cria-
ção da OIT em 1919. São os direitos de ação positiva do ente estatal, direitos de dimensão po-
sitiva. Dentre eles, sobrevieram o direito ao trabalho, direito à organização sindical, direito à
previdência social, direito à greve, direito a serviços públicos, moradia, etc., frutos das críticas
socialistas, com o Estado como agente interventor414.
Por fim, outra questão que marca o advento dos direitos de terceira dimensão foi a no-
va divisão do trabalho e a “Era das multinacionais”. Especialmente no período de 1945 até
1960, o grande impulso econômico com base no capital das multinacionais e o uso intensivo
das fontes de energia e recursos naturais de todas as regiões do mundo levaram a um nível de
desenvolvimento da produção que causou – e ainda hoje se estende – um grande quadro de
destruição ambiental417.
Para tanto, no século XX houve uma constante ameaça de extermínio de grupos hu-
manos, dos recursos naturais, e até mesmo uma ameaça de destruição total da vida no planeta,
o que ensejou a emergência de uma nova concepção acerca dos direitos humanos: Direito à
paz, direito ao ambiente, direitos de proteção aos grupos humanos (repressão ao genocídio, à
413
Idem, p. 25.
414
Ibidem, p. 30.
415
Ibidem, p. 33.
416
Ibidem, p. 34.
417
Ibidem, p. 35.
120
Com todos estes fatores, foi necessária a criação de mecanismos que estabelecessem
um limite à atuação dos Estados pelas leis internacionais, embora a maioria não disponha de
poder coercitivo, mas apenas de conteúdo moral420.
418
SARLET, Ingo Wolfgang. Op. cit., p. 58.
419
LAFER, Celso. Op. cit., p. 131.
420
DORNELLES, João Ricardo W. Op. cit., p. 39.
421
Idem, p. 40.
422
SOUZA FILHO, Carlos Frederico Marés de. A universalidade parcial dos direitos humanos. In GRUPIONI,
Luís Donisete Benzi; VIDAL, Lux; FISCHMANN, Roseli. Op. cit., p. 258-261.
423
Nesse sentido, é pertinente ainda a abordagem crítica que Boaventura de Souza Santos traça sobre os direitos
humanos. Na sua visão, não devem se constituir como uma política universal cultural hegemônica (do ocidente
industrial, por exemplo, ocasionando um imperialismo cultural). Ou seja, deve haver um diálogo intercultural no
que tange aos direitos humanos, a partir da igualdade e do reconhecimento da diferença. Na proposta de uma
política contra-hegemônica de direitos humanos, Boaventura parte das seguintes premissas, dentre outras: a)
superar o debate entre universalismo x relativismo, e estabelecer um diálogo intercultural sobre preocupações
convergentes entre as diferentes sociedades; b) identificar as preocupações entre as diferentes culturas, pois todas
possuem uma concepção de dignidade humana, mas nem todas tratam em termos de direitos humanos; c) propor
uma concepção multicultural de direitos humanos, através da consciência da incompletude das culturas, do diá-
logo entre elas; d) buscar compreender a luta pela igualdade e a luta pela diferença a fim de promover uma polí-
tica emancipatória de direitos humanos. Mais detalhes em SANTOS, Boaventura de Souza. A gramática do tem-
po – para uma nova cultura política. 2ª ed. São Paulo: Cortez, 2008, p. 445-447.
121
Esta necessidade de proteção de povos que se encontram dentro do Estado advém das
conquistas históricas e da imigração, o que causou a mistura e coexistência de grupos huma-
nos com culturas e memórias históricas diferentes426. Assim, com relação ao Direito dos Po-
vos na proteção de grupos humanos específicos (por sua vulnerabilidade e condição de vítima
em potencial, como determinadas comunidades indígenas), ele surge visando coibir grandes
males da história humana, como guerras injustas (dizendo serem justas), opressão, persegui-
ção religiosa (nos fundamentalismos religiosos), negação da liberdade de expressão e de
consciência (principalmente correntes nas ditaduras latino-americanas), além dos genocídios
dos regimes totalitários e do etnocídio e genocídio provenientes das conquistas histórico-
coloniais e do expansionismo econômico e modernizador.
Dentro deste campo do direito dos Povos, temos como um ramo deste a questão ati-
nente à proteção dos povos indígenas, portadores de identidade cultural distinta da sociedade
424
RAWLS, John. O Direito dos Povos. São Paulo: Martins Fontes, 2001, p. 34. Contudo, necessário ressaltar
que esta proteção não deve servir como escudo, justificativa para se efetivar intervenções nas nações com o obje-
tivo de satisfazer os interesses de determinados governos, como já ocorreu com guerras realizadas por diversos
governos americanos anteriores.
425
Ao nosso parecer, a condição de povo tem muito mais um valor antropológico e sociológico, o que permite
atribuir uma proteção a determinados povos que se situam no âmago dos Estados Nacionais, possuindo cultura e
modo de vida distintos, embora estejam dentro deste mesmo Estado. São etnias que constituem uma identidade
cultural distinta. Nesse sentido, é necessário não se vincular a noção de povo com a existência de um Estado;
podem existir povos dentro deste Estado. Maiores informações acerca da noção de povo estão na introdução des-
te trabalho, bem como em AGUIRRE, Francisco Ballón. Manual del Derecho de los Pueblos Indígenas. Doctri-
na, principios y normas. 2ª ed. Lima: Defensoria del Pueblo. Programa de comunidades nativas, 2004. Disponí-
vel em: <http://www.indecopi.gob.pe/portalctpi/archivos/docs/articulos/87-2005-1/Pueblos_indigenas_4.pdf>.
Acesso em: 21 jul. 2008.
426
RAWLS, John. Op. cit., p. 32.
122
majoritária, e que são detentores de direitos coletivos especiais para a proteção de sua existên-
cia enquanto grupo humano.
Neste aspecto, podemos estabelecer alguns pontos que caracterizam o direito dos po-
vos (pertencentes à minorias) à existência, e que se estendem notadamente à proteção das co-
munidades indígenas427: a) é antecedente ao Estado nacional, ou seja, povos específicos pos-
suem um direito preexistente, que geralmente é recepcionado nas constituições dos Estados,
reconhecendo as comunidades indígenas principalmente como portadoras de direitos especiais
que antecedem a formação dos Estados; b) é incontestável, no sentido de ser um direito que
persiste embora a lei eventualmente o negue, o esqueça ou o ignore, pois sempre mantém a
sua validade; c) é específico, porquanto suas características se aplicam, ao nosso entender, a
grupos humanos determinados, principalmente às comunidades indígenas (dentre outras); um
direito típico coletivo; d) é contemporâneo, visto que se admite a recepção destes direitos em
novas condições criadas pelo Estado de Direito. Advém das condições atuais do sistema jurí-
dico nacional e internacional e e) é auto-afirmação, pois é reconhecido a estes grupos o direi-
to de contar com uma organização legitimamente representativa, e este povo se auto-
reconhece por compartilhar um território, uma língua, história e valores que lhe são comuns
(identidade do povo). Nesse campo, podemos enfatizar a organização em associação.
Na seara dos direitos específicos dos povos indígenas428 temos a) o direito à auto-
afirmação – direito de definir-se frente a terceiros, se reconhecer e ser reconhecido como tal;
é a vontade coletiva do grupo que se identifica como uma comunidade específica entre si e no
âmbito externo; b) o direito à auto-definição – a pessoa enquanto indivíduo que é admitida
como pertencente ao grupo pelo próprio grupo e reconhecida perante os demais; c) o direito à
autodeterminação e representação política, ou seja, de possuir uma organização política in-
terna (que não se confunde com a existência de um Estado) e ser respeitada e ouvida em even-
tuais processos legislativos que venham à afetá-la; d) o direito à autonomia interna, ou seja, o
direito do grupo de regular sua própria vida, com seus valores sócio-culturais e e) o direito à
proteção do patrimônio cultural e natural, para preservar sua existência enquanto grupo, me-
diante a preservação do habitat natural, bem como suas tradições (língua, costumes, etc).
427
AGUIRRE, Francisco Ballón. Op. cit., p. 51-56.
428
Idem, p. 67-87.
123
dos429; a Carta Africana dos Direitos Humanos e dos Direitos dos Povos, aprovada em 1981
em Nairóbi, no Quênia, visando afirmar que os povos também são titulares de direitos huma-
nos no plano interno e internacional, bem como assegurar o direito dos povos à existência
(art. 20)430; a Declaração sobre Raça e Preconceito Racial, aprovada pela UNESCO em 1978,
que objetiva reconhecer aos grupos humanos o direito à diferença431; e a recente Declaração
da ONU sobre os Direitos dos Povos Indígenas, aprovada em 13 de dezembro de 2007 pela
Assembléia Geral da ONU.
Hannah Arendt, em sua obra Sobre a Violência, elabora uma reflexão principalmente
em torno da distinção entre poder e violência. Para ela, a violência tem um caráter instrumen-
tal, e depende da orientação e da justificação pelo fim que se almeja433; quando as ordens não
são mais generalizadamente acatadas, por falta de consenso e opinião de muitos, isso pode
gerar a violência. Já o poder corresponde à habilidade humana para agir em conjunto; ele
pertence a um grupo e permanece em existência na medida em que o grupo permanece uni-
do434; ele é inerente às comunidades políticas, e tem como pressuposto a legitimidade – requer
o consenso de muitos no curso da ação.
429
Aprovada pela Assembléia Geral da ONU de 18 de dezembro de 1992.
430
COMPARATO, Fábio Konder. A Afirmação Histórica dos Direitos Humanos. 5ª ed. São Paulo: Saraiva,
2007, p. 395.
431
Idem, p. 398.
432
GRUPIONI, Luís Donisete Benzi; VIDAL, Lux; FISCHMANN, Roseli. Op. cit., p. 95.
433
ARENDT, Hannah. Sobre a Violência. Op. cit., p. 41.
434
Idem, p. 36.
435
LAFER, Celso. Op. cit., p. 25.
124
Dário, filho de Davi Kopenawa, esclarece como, mesmo com o constante perigo de
violência que os envolve (invasão de território, doenças, etc), os Yanomami vêm lutando pe-
los seus direitos especiais438:
Para tanto, verifica-se como uma comunidade que esteve sob o perigo quase de extin-
ção física e cultural vem lutando pelo seu direito à existência (território, saúde, integridade
física, dentre outros), mediante a informação e o diálogo439. É a grande resposta à violência: o
poder do agir em conjunto.
436
ROCHA, Jan. Op. cit, p. 132.
437
PREZIA, Benedito; HOORNAERT, Eduardo. Brasil Indígena – 500 anos de resistência. São Paulo: FTD,
2000, p. 85.
438
ROCHA, Jan. Op. cit., p. 136-137.
439
Um exemplo de atuação da Hutukara são as denúncias de invasão no território Yanomami. Nesse sentido,
vide a denúncia de garimpo ilegal, poluição dos rios, morte de peixes e ameaça de morte na região do Alto Ca-
trimani e Papiú. O inteiro teor está no site:
<http://www.proyanomami.org.br/v0904/index.asp?pag=noticia&id=4725>. Acesso em: 23 out. 2008.
125
A filosofia e a ética da libertação são fatores importantes para se conseguir uma proje-
ção ético-crítica com o intuito de se compreender a realidade existente e a possibilidade de se
buscar transformá-la pela via informativo-teórica, ou em termos de ação visando à proteção
da existência de grupos humanos vulneráveis, bem como sua identidade cultural. A prática
filosófica, mediante o exercício do juízo ético-crítico, é uma alternativa para se buscar com-
preender a diversidade que é inerente à condição humana, ou seja, a pluralidade. A filosofia,
portanto, entendida como prática libertadora na proteção aos grupos humanos e etnias diver-
sas.
440
Entendemos por agentes sociais os diversos atores que desenvolvem atividades na relação direta ou indireta
com os direitos humanos e direito dos povos, enfim, todos aqueles que podem ter as condições de agir na esfera
pública ou privada para garantir os direitos dos grupos humanos ameaçados pelo extermínio físico ou cultural,
seja pela falta de território, falta de assistência à saúde ou violência ocorrente em localidades próximas a deter-
minadas etnias (comunidades indígenas no Brasil, por exemplo).
441
RUBIO, David Sánchez. Filosofía, Derecho y Liberación en América Latina. Bilbao: Desclée de Brouwer
1999. Disponível em:
<http://www.crefal.edu.mx/bibliotecadigital/CEDEAL/acervo_digital/coleccion_crefal/no_seriados/enrique_duss
el/html/b06.html>. Acesso em: 24 out.2008, p. 29.
126
Além disto, o filósofo deveria ser um intérprete crítico e considerar a figura do pobre e
oprimido, fato sobre o qual este deveria pensar. A essência autêntica do latino-americano e-
mergia nesta sua condição como marginalizado442.
Principalmente pelos trabalhos do filósofo mexicano Leopoldo Zea – que inclusive foi
um dos primeiros estudiosos a tematizar a questão da libertação, opondo a uma cultura de
dominação européia uma cultura de libertação latino-americana – passou-se a desenvolver
uma filosofia da história que abordava sobre o tratamento desigual do Ocidente frente à Amé-
rica Latina. A temática dos filósofos criadores da filosofia da libertação também assentava
suas bases teóricas na diversidade humana como um expoente universal. A idéia de libertação
é o elemento basilar do pensamento latino-americano que originou este movimento. Em sínte-
se, é um movimento filosófico contemporâneo, que surgiu na América Latina no início da dé-
cada de setenta na Argentina, e que desenvolve muitos temas comuns entre seus membros,
principalmente relativos à pobreza, ética da alteridade, humanismo e identidade cultural, entre
outros. Para David Sánchez Rubio, é um dos movimentos filosóficos mais interessantes e de
maior originalidade443.
442
Idem, p. 30.
443
Ibidem, p. 31.
444
Ibidem, p. 47.
445
Rubio refere que uma das obras que marcam a gênese da filosofia da libertação com Leopoldo Zea é a sua
obra América em la historia, de 1957, descrevendo que a América Latina estava fora da história. Ibidem, p. 48.
127
que o filósofo deveria despertar a consciência na sociedade para atuar em cada pessoa que a
integra, orientando-a até a libertação mediante o reconhecimento do ser humano como sujeito
de direitos446.
Outro autor de contribuiu para o nascimento da filosofia da libertação foi Augusto Sa-
lazar Bondy, que afirmava a necessidade de uma filosofia da libertação que ajudasse a superar
o subdesenvolvimento e a dominação da América Latina. Seria, em suma, uma filosofia que
convertesse a consciência de nossa condição deprimida como povo em uma reflexão capaz de
desencadear e promover a superação desta condição447.
Tanto na proposta de Leopoldo Zea quanto a de Augusto Salazar, a filosofia seria vista
como um instrumento de libertação, com o escopo de contribuir para criar a consciência da
situação histórica da América Latina, bem como orientar no âmbito teórico e prático para al-
cançar esta libertação. Era uma filosofia também prática, encarando a realidade para buscar
métodos que discutissem sobre os problemas que se apresentavam ao ser humano na sua luta
pela existência448.
A única forma para o oprimido tomar consciência da opressão era descobrir a relação
de dominação. A tarefa da filosofia latino-americana seria buscar superar o discurso teórico
do processo de modernização, detectando os riscos desta dialética de dominação que estavam
em seu próprio ser oprimido e dependente, para transformar esta relação449.
Enrique Dussel, por sua vez, relata que a experiência originária da filosofia da liberta-
ção consiste em descobrir o elemento de dominação: no plano mundial, com o começo da
modernidade que criou o eixo centro-periferia (1492); no plano nacional (elite e massas); no
plano erótico (submissão da mulher pelo homem); no plano pedagógico (imposição da cultura
imperial, elitária, frente à cultura periférica, popular); no plano religioso; e também no nível
racial (discriminação das raças não-brancas), etc. Esta experiência originária da filosofia da
libertação, portanto, ocorre com o olhar sobre o pobre, o dominado, o índio, o negro, a mulher
como objeto, a criança no processo de manipulação ideológica; o oprimido, o torturado, des-
truído em sua corporalidade em muitos aspectos. O fator exclusão é o ponto de partida da fi-
losofia da libertação (exclusão das culturas dominadas, da comunidade filosófica latino-
446
Idem, p. 46.
447
Ibidem, p. 32.
448
Ibidem, p. 32.
449
Ibidem, p. 33.
128
americana, etc). Uma filosofia voltada à realidade do Terceiro Mundo, em especial a latino-
americana450.
Nos dias atuais, a filosofia da libertação (com os estudos de Enrique Dussel) está em
nova etapa. Nesse sentido, Dussel refere que
A partir de uma ética da alteridade, Dussel apresenta uma nova etapa da filosofia da
libertação no século XXI, a partir da exterioridade do pobre, da mulher, da cultura popular
marginalizada, das raças não-brancas, da destruição ecológica da terra, fatores que se lançam
num discurso filosófico crítico e que são assuntos importantes na abordagem da filosofia da
libertação. Esta prática filosófica terá como fundamento o princípio material universal de
produção, reprodução e desenvolvimento da vida humana452. E nesta linha, advoga-se que a
realidade dependente dos excluídos exige uma filosofia totalmente voltada à defesa dos seres
humanos, em especial aqueles que se encontram em situação de marginalização e pobreza.
Para isto, uma reflexão crítica e ética sobre a condição política, social e econômica dos seres
humanos oprimidos em todos os aspectos, olhando o ser humano que está fora do sistema-
mundo e da sociedade que o exclui; este será o princípio da libertação453.
450
Vide a biografia de Enrique Dussel em <http://www.enriquedussel.org/Home_cas.html>. Acesso em: 28 out.
2008.
451
DUSSEL, Enrique. Ética da libertação na idade da globalização e da exclusão. Petrópolis: Vozes, 2007, p.
73.
452
RUBIO, David Sánchez. Op. cit., p. 115.
453
Idem, p. 118.
129
grupos humanos e suas diversas etnias, principalmente pelo fato de não estarem incluídos no
sistema-mundo dominante, o que leva à exclusão (e muitas vezes ao extermínio).
Desde onde? É necessário responder esta questão para referir que devemos nos situar
na realidade latino-americana455, a qual vivenciamos.
Terceiro, para quê? A libertação no contexto dos direitos humanos visa (do ponto de
vista jurídico) estar vinculada ao conteúdo fundamental de todos os direitos humanos: o direi-
to de ter a possibilidade de exercer direitos, ou seja, a possibilidade de cada pessoa humana –
ou grupo humano – ser reconhecido como sujeito de direitos e de dignidade humana. Os gru-
pos humanos e povos (numa acepção mais ampla) devem ter reconhecidos os direitos à exis-
tência e à identidade cultural, além de poder realizar ações que possam contribuir com a pre-
servação destes direitos essenciais – nesse contexto, a Hutukara Associação Yanomami é um
exemplo característico desta luta pela dignidade de um povo.
A partir dos estudos da filosofia da libertação, portanto, pode-se propor uma reflexão
ético-crítica que auxilia na compreensão da realidade, da violência que envolve muitos grupos
ameaçados, além de contribuir para uma prática filosófica que se empenhe na busca do reco-
nhecimento dos direitos dos seres humanos enquanto membros de um povo, de uma etnia.
454
Idem, p. 160-162.
455
O que não quer dizer que ao nosso entender também não possa ser explorada a partir da realidade em outras
localidades, como a africana, a asiática, etc. O contexto local, em nossa opinião, ultrapassa as fronteiras, pois a
realidade dos processos populares e sociais é corrente em diversos segmentos territoriais do planeta.
130
Por fim, com base nas exposições sobre a filosofia da libertação, necessário agora tra-
çar o último ponto, que buscará expor a possibilidade de uma prática jushumanista-pluralista
pela ética da libertação.
Enrique Dussel refere que estamos diante de um sistema-mundo que está se globali-
zando e excluindo, paradoxalmente, a maioria da humanidade. Um problema de vida ou mor-
te. Para isso, a emergência de uma ética da libertação, que afirme a vida humana456 ante o as-
sassinato coletivo para o qual a humanidade se encaminha, é um aspecto importante para se
compreender a necessidade de se reconhecer o direito à existência aos grupos humanos – e
também da maioria excluída do sistema global.
Seu marco teórico é a globalização e a exclusão. Estas palavras indicam o duplo mo-
vimento em que está a Periferia Mundial: de um lado, a pretensa modernização na globaliza-
ção formal do capital; por outro lado, a exclusão material das vítimas deste processo. A ética
da libertação ajuda a compreender este processo contraditório, permitindo pensar filosofica-
mente o sistema-mundo que vivemos, e afirmar uma ética da vida, que auxilie a pensar criti-
456
Vida humana, para a ética da libertação, corresponde à “vida do ser humano em seu nível físico-biológico,
histórico cultural, ético-estético e até mesmo místico-espiritual, sempre num âmbito comunitário...”. Vide
DUSSEL, Enrique. Ética da libertação na idade da globalização e da exclusão. Op. cit., p. 632.
457
Idem, p. 11.
458
Ibidem, p. 13.
459
Ibidem, p. 15.
460
Ibidem, p. 15.
131
camente461. Com base no exercício ético-crítico, afirma-se a dignidade negada da vítima hu-
mana, oprimida ou excluída. A partir da vítima, a verdade começa a ser descoberta. Nesse
sentido, é importante reconhecer as vítimas como sujeitos éticos, como seres humanos que
não podem reproduzir ou desenvolver sua vida, que foram excluídas da participação na dis-
cussão, e que são afetados por alguma situação de morte462.
Destarte, partindo da razão ético-crítica, aquele que pensa sobre o sistema e seus fun-
damentos descobre a dignidade dos sujeitos e a impossibilidade de reprodução da vida da ví-
tima, constata a exclusão vivida por esta463. Precisamos reconhecer a alteridade da vítima, da
dor da sua corporalidade; isto é a origem de toda a crítica ética possível, na lição de Dussel464.
Uma ética crítica é aquela que parte da negação da vida humana e que se expressa no sofri-
mento das vítimas, seja escravo, operário, explorado asiático, criança de rua abandonada, imi-
grante estrangeiro refugiado, gerações futuras que sofrerão em sua corporalidade a destruição
ecológica, povos indígenas sob ameaça de extermínio. A tomada de consciência desta negati-
vidade é elementar para a ética da libertação. A “verdade” do sistema-mundo é negada a partir
da “impossibilidade de viver das vítimas”. Nas palavras de Dussel, “a existência da vítima é
sempre refutação material ou ‘falsificação’ da verdade do sistema que a origina”465.
Mas como a ética da libertação pode contribuir para uma prática jushumanista-
pluralista? Primeiramente, para efeitos do presente estudo, a prática jushumanista-pluralista
consiste basicamente na prática que tem como parâmetro a efetivação dos direitos humanos
dos povos, visando o respeito e a preservação da existência dos grupos humanos e sua identi-
dade cultural. Ações, debates, tudo contribui para que se possa (a partir do juízo ético-crítico)
verificar como são produzidas as vítimas e como elas muitas vezes podem estar sob o perigo
do extermínio. A informação, fundada em ações que objetivem assegurar os direitos humanos
de terceira dimensão (direito dos Povos), pode se constituir como contribuição para se trans-
formar a realidade negativa, no plano teórico e até prático.
461
Idem, p. 17.
462
Ibidem, p. 303.
463
Ibidem, p. 303.
464
Ibidem, p. 306.
465
Ibidem, p. 375.
132
Nesse sentido, a prática da ética da libertação se constitui como uma ação possível que
transforma a realidade (tanto subjetiva quanto social), tendo como referência a vítima ou co-
munidade de vítimas. A possibilidade de libertá-las será o critério sobre o qual se funda esta
ética466.
466
Idem, p. 558.
133
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Por conclusão também se pode verificar, em torno da memória, como é necessário ob-
servá-la se quisermos transformar uma realidade, ainda que seja em nossa forma de pensar o
mundo. Memória que nos liga ao passado, pois a partir dela conhecemos a história. Como re-
fere François Ost, “uma sociedade amputada de suas raízes, órfã de sua história, encontra
barrado seu acesso ao futuro”467.
Ou seja, neste estudo, conhecer o passado de forma inicial foi um fator muito impor-
tante. A partir das informações sobre a conquista da América e os aspectos que influenciaram
na destruição da maioria dos povos originários deste Continente, dentre as mais variadas for-
mas de violência, conseguimos observar quais são os paradigmas que herdamos (dentre eles, a
busca de riqueza e o desejo de produzir uma realidade à imagem e semelhança do coloniza-
dor). A parte que expusemos sobre a conquista da América permite refletirmos de que manei-
ra fomos constituídos como seres humanos projetados a partir do projeto modernizador, que
se iniciou em 1492, com a chegada de Colombo. Em torno do passado das vítimas conquista-
das, podemos ver a maneira pela qual este sistema-mundo em que vivemos foi originado.
467
OST, François. O tempo do direito. Bauru: EDUSC, 2005, p. 29.
134
dade468. Pois este Outro – o ser humano colonizado, não-europeu, indígena – na época não foi
descoberto, mas foi encoberto pelo projeto civilizador, tanto fisica quanto culturalmente. So-
mos resultantes, herdeiros desta violência, em que projetamos nossa concepção de ser, não
buscando conhecer o ser-do-outro. Para tanto, compreender a origem da expansão civilizado-
ra auxilia na avaliação das situações de violência a grupos humanos, principalmente indíge-
nas, no contexto atual (a idade da globalização). E é a partir da memória, portanto, que se po-
de avaliar esta conjuntura, tanto em relação à concepção de mundo quanto em face da nossa
constituição como ser humano oriundo da modernização.
468
Nesse sentido, vide DUSSEL, Enrique. 1492. El encubrimiento del otro, hacia el origen del “mito de la mo-
dernidad”. La Paz: Plural editores – Facultad de Humanidades y Ciencias de la Educación – UMSA, 1994. Dis-
ponível em: <www.enriquedussel.org>. Acesso em: 29 out. 2008.
469
GIAMBERARDINO, André Ribeiro. Colonialismo e Teoria Geral do Direito: diálogos com a História do
Brasil a partir da vida negada. Disponível em:
<http://calvados.c3sl.ufpr.br/ojs2/index.php/direito/article/viewFile/6980/4958>. Acesso em: 30 jan.2008, p. 01.
135
rídico tinha por finalidade precípua a viabilização dos propósitos mercantis, seja enquanto Co-
lônia, Império ou República, e sempre se pautaram pelo atendimento a interesses externos470.
A idéia de relações jurídicas no Brasil (e na América Latina) é a história dos povos co-
lonizados, marcada pelo genocídio, etnocídio, escravismo e discriminação471, por meio de vio-
lências físicas, psicológicas, e oriundas das formas jurídicas de produção de uma verdade;
como exemplo, tem-se o viés religioso e salvacionista da colonização, que buscava justificar a
doutrinação dos indígenas e a escravidão dos africanos, bem como o positivismo jurídico, que
compõe a tradicional teoria geral do direito ocidental472 (eminentemente do século XIX, com
resquícios até o regime militar), com o viés nacionalista e integracionista, que visava a incor-
poração de grupos humanos à “civilização”.
O segundo capítulo comportou uma abordagem mais jurídica, em que pese as observa-
ções feitas na sua terceira parte, de cunho mais sociológico (a guerra oculta). Após compreen-
dermos a conjuntura histórica e sócio-política do extermínio a partir de uma viagem da Amé-
rica ao Brasil, foi necessário expor como as noções de graves violações de direitos humanos
como o genocídio e etnocídio foram formadas. Os estudos do genocídio (extermínio de um
povo) e do etnocídio (extermínio de uma identidade cultural)473, ambos atentados contra a
pluralidade inerente à condição humana, demonstram a forma pela qual a sociedade do risco e
o Estado Criminal, no contexto de uma guerra oculta, submetem etnias a uma condição de
vulnerabilidade e de vítimas em potencial. Estes entendimentos foram o segundo passo para
se chegar até Haximu.
Por fim, se seguiu uma abordagem minuciosa do caso dos Yanomami no terceiro capí-
tulo. O massacre de Haximu, dentre outros (como o dos Cinta-Larga na década de 60), retrata
470
Idem, p. 03.
471
Ibidem, p. 03.
472
Ibidem, p. 04.
473
Como expusemos na parte referente ao etnocídio, esta violação não está tipificada como crime. Ao nosso en-
tender, é urgente se discutir sobre esta prática. Igualmente ao genocídio, se trata de uma violação grave de direi-
tos humanos, e que merece ser reprimida pela sociedade internacional, bem como pelas leis nacionais.
136
tudo o que foi abordado nos capítulos anteriores. O caso de Haximu permite-nos refletir sobre
a condição dos grupos humanos ameaçados e de que maneira o processo civilizador gera ge-
nocídios e etnocídios. Como um espelho que reflete uma imagem, este episódio reflete o sis-
tema-mundo que foi projetado e introjetado. Nesse sentido, o círculo do nosso trabalho se fe-
cha.
Contudo, o massacre de Haximu não ensina apenas isso. Também nos faz pensar sobre
a necessidade de se respeitar as diferenças, e que os grupos humanos merecem ser reconheci-
dos em dignidade. Nesta perspectiva, as concepções de tolerância, direitos humanos e direito
dos povos foram as bases para a primeira parte do quarto capítulo, em torno do direito à exis-
tência (enquanto necessidade de respeito à vida do grupo humano) e do direito à identidade
cultural, como respeito aos traços culturais que o identificam por ser um povo específico, por-
tador de tradições, costumes, crenças, habitat. São preceitos basilares para o combate ao ge-
nocídio e ao etnocídio.
Por fim, buscamos sinteticamente expor uma reflexão a partir da filosofia e da ética da
libertação, em especial a partir dos estudos de Enrique Dussel. Com base neste movimento
filosófico, vimos a possibilidade de se produzir uma reflexão ético-crítica a partir do reconhe-
cimento dos direitos dos povos e se propor uma prática jushumanista-pluralista a partir da éti-
ca da libertação. Uma ética voltada à vítima, à exclusão, e ao reconhecimento das vítimas co-
mo um ponto de partida para se tratar de direitos humanos, em especial os de terceira dimen-
são – direito dos povos. Também propusemos de que maneira hoje o agente social (seja ele
funcionário, profissional da área jurídica ou até mesmo acadêmico) pode contribuir com uma
prática ética libertadora. Pode-se transformar uma realidade a partir de pequenas ações, pois
por mais que se diga que o mundo não mude, após uma pequena ação ele nunca será mais o
mesmo. Ou nas palavras de Boaventura Souza Santos, se reportando a Sartre, ‘antes de con-
cretizada, uma idéia apresenta uma estranha semelhança com a utopia’474.
Portanto, inclusive no âmbito jurídico, temos a certeza de que cabe ao agente social, a
partir do juízo ético-crítico, constituir um saber jurídico libertador, que seja voltado ao res-
peito e à defesa da existência física e cultural dos grupos humanos em condição de vulnerabi-
lidade. E nesse âmbito, a informação é essencial. Aqueles que não se preocupam em saber,
474
SARTRE, citado por SANTOS, Boaventura de Souza. A gramática do tempo – para uma nova cultura políti-
ca. Op. cit., p. 470.
137
bem como aqueles que se abstêm de informar são culpados diante de sua sociedade; ou seja, a
função da informação é uma função social muito significativa475.
À guisa de conclusão, o presente estudo, em suma, foi abarcado a partir de três pilares
que ligam o tempo: o passado, o presente e o futuro. Sem eles não seria possível a concretiza-
ção do trabalho.
Por fim, o futuro. Na medida em que formamos propostas para mudar o presente, te-
mos o objetivo de construir um futuro, projetá-lo como tarefa. Garantir a vida, a existência
dos seres humanos, notadamente grupos diversos. Uma projeção para o futuro que parte da
nossa reflexão e ação. Para tanto, este estudo, ainda que limitado, se propôs e se conclui nesta
seguinte idéia: conhecer o passado como necessidade, enfrentar o presente como responsabi-
lidade e projetar o futuro como tarefa476.
475
TODOROV, Tzvetan. Op. cit, p. 265.
476
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