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FARGS – FACULDADES RIO-GRANDENSES

FACULDADE DE DIREITO

Gustavo José Correia Vieira

DO GENOCÍDIO E ETNOCÍDIO
POVO, IDENTIDADE CULTURAL E O CASO YANOMAMI

Porto Alegre
2008
FARGS – FACULDADES RIO-GRANDENSES
FACULDADE DE DIREITO

Gustavo José Correia Vieira

DO GENOCÍDIO E ETNOCÍDIO
POVO, IDENTIDADE CULTURAL E O CASO YANOMAMI

Monografia apresentada perante a Banca Exami-


nadora da Faculdade de Direito da FARGS como
requisito parcial para a obtenção de bacharelado
em Direito.

Orientador(a): Profª Natália Gimenes Pinzon

Porto Alegre
2008
AGRADECIMENTOS

Muitas pessoas merecem ser agradecidas pela colaboração com este estudo. Em pri-
meiro lugar, à minha mãe – Maria Salete Correia – pela força, pelo apoio. Uma mulher mag-
nífica, que amo muito. Um exemplo de luta e determinação. Sinto orgulho de ser filho dela.
Outro agradecimento especial merece ser realizado. Ao grupo de pesquisa Libera Cau-
sa de Filosofia da FARGS, principalmente ao professor Gilberto Testa, por todo o trabalho
que desenvolveu conosco desde a origem do grupo (em 2005), e a partir do qual obtive muitos
ensinamentos. É um verdadeiro mestre. Agradeço também às colegas Marina, Gerluza, Célia,
Júlio, José e demais, pela contribuição que todos prestaram para este estudo. Muito obrigado,
pessoal.
Devo agradecer ainda aos colegas de turma, pois eles também possuem participação
nisso. Especialmente à Fernanda, ao Edison Munhoz, Edson Oliveira, César, Elaine, Claudê-
nes, e todos os outros com os quais tive a possibilidade de conviver diariamente na sala de
aula. Muito obrigado.
Agradeço também ao pessoal da Hutukara Associação Yanomami (HAY), e da CCPY
– Comissão Pró-Yanomami, de Boa Vista/RR, em especial a Davi Kopenawa, líder Yanoma-
mi, que me ensinou muito a compreender o seu povo, seus costumes e tradições, e ainda a Ja-
nilson, Marcos Wesley, Ricardo, Geraldo, Norma, Ailton, Ary, aos meus ex-alunos Yanoma-
mi do curso que tive a oportunidade de desenvolver na Hutukara, e a todos os demais que hoje
trabalham junto aos Yanomami em Boa Vista e que tive a grande satisfação de conhecer pes-
soalmente. Um grande abraço.
Também não posso deixar de agradecer à professora Natália Pinzon pela orientação
neste trabalho. Sem ela certamente este estudo não tomaria os contornos que hoje possui, sem
falar nos demais professores que indiretamente contribuíram. Ao corpo de funcionários da
biblioteca da Universidade Nacional Autônoma do México (UNAM), que tão prontamente me
auxiliaram no envio de materiais – livros inclusive – para elaborar este trabalho. Outra pessoa
que merece agradecimentos é o professor Reginaldo, coordenador do curso de História da U-
niversidade Federal de Roraima; grande abraço, professor.
Por fim, à minha namorada Camyla, principalmente por ouvir minhas idéias e me aju-
dar com a leitura do material, em praticamente doze meses de pesquisa. Amo-te. E a todos
aqueles que de qualquer forma ajudaram a elaborar este trabalho, igualmente meus agradeci-
mentos.
“A natureza, única para todos os seres, não fez os homens nobres ou ignó-
beis, mas sim as suas ações e as disposições de espírito”. (Epicuro)
RESUMO

O estudo a seguir trata sobre direitos humanos, com enfoque principal na questão dos
direitos dos povos e proteção dos grupos humanos em face de graves violações a bens jurídi-
cos fundamentais, como o genocídio e etnocídio, que atentam contra a existência e a identida-
de cultural de muitos povos. O trabalho trata eminentemente do massacre de Haximu de 1993;
um caso real que serve como reflexão sobre a condição de existência de muitos povos indíge-
nas no Brasil, e como eles sofrem estes tipos de violências. Como parâmetro do trabalho, são
tomadas como base perspectivas históricas e sócio-políticas que envolvem a temática e de-
monstram como se desenvolveu o processo de modernização e a atual sociedade do risco, que
possibilitam a prática destas graves violações de direitos humanos.
Ainda, buscamos explanar sobre aspectos jurídicos e filosóficos que auxiliam numa
reflexão ético-crítica, possibilitando entender a necessidade de proteção de grupos humanos
ameaçados, principalmente em torno da filosofia da libertação e da ética da libertação, voltada
à questão dos direitos humanos e sua vertente de terceira dimensão, que recepciona os direitos
coletivos. Um estudo, portanto, que aborda a questão relativa às práticas de genocídio e etno-
cídio, graves violações de direitos humanos, e que se inscreve em um caso real, notadamente
na questão do genocídio: o massacre dos Yanomami de Haximu. Pensar estas questões é fun-
damental para se entender a condição das etnias indígenas no Brasil e quais os mecanismos
jurídicos existentes e como produzir um saber jurídico libertador a partir da filosofia e da ética
da libertação, voltada aos direitos dos povos à existência e à identidade cultural.

Palavras-chave: direitos humanos; Yanomami; genocídio; etnocídio; massacre de


Haximu; direito dos povos.
ABSTRACT

The study to follow it treats on human rights, with main approach in the question of
the rights of the peoples and protection of the human groups in face of serious breakings the
basic legal good, as the genocide and ethnocide, that attempt against the existence and the cul-
tural identity of many peoples. The work eminently deals with the slaughter of Haximu of
1993; a real case that serves as reflection on the condition of existence of many aboriginal
peoples in Brazil, and as they suffers these types of violences. As parameter of the work, they
are taken as base perspective historical and social political that involves the thematic one and
demonstrates as if it developed the process of modernization and the current risk society, that
they make possible the practical one of these serious breakings of human rights.
Still, we search to explain about legal and philosophical aspects that assist in a ethical-
critical reflection, making possible to understand the necessity of protection of threatened
human groups, mainly around the philosophy of the release and the ethics of the release, come
back to the question of the human rights and its source of third dimension, that to receive
guests the collective rights. A study, therefore, that it approaches the relative question to prac-
tical of genocide and the ethnocide, serious breakings of human rights, and that is enrolled in
a real case, principally in the question of the genocide: the slaughter of the Yanomami of Hax-
imu. To think these questions is basic to understand the condition of the aboriginals in Brazil
and which the existing legal mechanisms and as to produce a know legal liberator from the
philosophy and of the ethics of the release, come back to the rights of the peoples to the exis-
tence and the cultural identity.

Word-key: human rights; Yanomami; genocide; ethnocide; slaughter of Haximu;


right of the peoples.
LISTA DE ABRAVIATURAS E SIGLAS

CCPY – Comissão pela Criação do Parque Yanomami


CF – Constituição Federal do Brasil
CIMI – Conselho Indigenista Missionário
CIR – Conselho Indígena de Roraima
CP – Código Penal
DPT – Declaração dos Princípios sobre a Tolerância
DSY – Distrito Sanitário Yanomami
ERTPI – Estatuto de Roma do Tribunal Penal Internacional
FARGS – Faculdades Rio-Grandenses
FUNAI – Fundação Nacional do Índio
FUNASA – Fundação Nacional de Saúde
HAY – Hutukara Associação Yanomami
MPF – Ministério Público Federal
OEA – Organização dos Estados Americanos
ONG – Organização Não-Governamental
ONU – Organização das Nações Unidas
OIT – Organização Internacional do Trabalho
RE – Recurso Extraordinário
Resp – Recurso Especial
SPI – Serviço de Proteção ao Índio
SPILTN – Serviço de Proteção aos Índios e Localização de Trabalhadores Rurais
STF – Supremo Tribunal Federal
STJ – Superior Tribunal de Justiça
TI – Terra Indígena
TPI – Tribunal Penal Internacional
TPIR – Tribunal Penal Internacional para Ruanda
TRF – Tribunal Regional Federal
UNAM – Universidade Nacional Autônoma do México
UNESCO – Organização das Nações Unidas para Educação, Ciência e Cultura
SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ............................................................................................................................... 10
CAPÍTULO I – CONDIÇÕES HISTÓRICAS E SÓCIO-POLÍTICAS DO EXTERMÍNIO: DA
CONQUISTA DA AMÉRICA AO BRASIL DO SÉCULO XXI................................................ 15
1.1 A CONQUISTA DA AMÉRICA .................................................................................................15
1.1.1 Mercantilismo.......................................................................................................................17
1.1.2 Colombo................................................................................................................................20
1.1.3 Cortez ....................................................................................................................................23
1.1.4 Aspectos quantitativos e qualitativos da destruição dos povos originários ........................26
1.1.5 Elementos jurídicos e político-ideológicos da conquista.....................................................33
1.2 PARA O BRASIL, ORDEM E PROGRESSO: COLONIZAÇÃO, NEOCOLONIZAÇÃO E
POLÍTICA INDIGENISTA BRASILEIRA .......................................................................................39
1.3 BRASIL: MODERNIZAÇÃO, GLOBALIZAÇÃO = EXTINÇÃO ............................................47
1.3.1 O processo de modernização e atual globalização: produção da sociedade do risco ........50
1.3.2 A expansão econômica: o colonialismo interno..................................................................54
1.3.3 A resultante da produção invasora e modernizadora: a violência .....................................56
CAPÍTULO II – DAS PRÁTICAS CONTRA GRUPOS HUMANOS E SUA IDENTIDADE
CULTURAL .................................................................................................................................... 61
2.1 DO GENOCÍDIO: EXTERMÍNIO DE UM POVO .....................................................................61
2.1.1 O processo de normatização do delito no plano internacional...........................................62
2.1.2 Características do genocídio ................................................................................................66
2.1.3 Breves notas sobre o genocídio no direito brasileiro ..........................................................69
2.2 DO ETNOCÍDIO: EXTERMÍNIO DE UMA IDENTIDADE CULTURAL ...............................71
2.2.1 Gênese e conceito .................................................................................................................71
2.2.2 Características no campo jurídico .......................................................................................74
2.2.3 Genocídio e etnocídio ...........................................................................................................76
2.3 A GUERRA OCULTA.................................................................................................................77
2.3.1 O genocídio e o etnocídio como elementos intrínsecos ao contexto da sociedade
modernizadora e do Estado criminal............................................................................................79
2.3.2 Condição de vulnerabilidade e vítimas em potencial ..........................................................81
CAPÍTULO III – 1993: O MASSACRE DE HAXIMU............................................................... 83
3.1 O ANTES .....................................................................................................................................83
3.1.1 Exploração do garimpo, invasão da área Yanomami e estatística do extermínio..............83
3.1.2 Confrontos e poder político..................................................................................................88
3.2 O DURANTE ...............................................................................................................................90
3.2.1 Do massacre..........................................................................................................................94
3.2.2 A repercussão .......................................................................................................................98
3.2.3 Investigação do crime e julgamento ....................................................................................99
3.3 O DEPOIS ..................................................................................................................................107
3.3.1 A condição dos Yanomami após o massacre .....................................................................107
3.3.2 Assistência à saúde.............................................................................................................108
3.3.3 O homem branco ainda ronda a floresta...........................................................................109
CAPÍTULO IV – DIREITO À EXISTÊNCIA E À IDENTIDADE CULTURAL .................. 112
4.1 A LUTA PELA EXISTÊNCIA E PELA IDENTIDADE CULTURAL .....................................112
4.1.1 Tolerância...........................................................................................................................113
4.1.2 Direitos Humanos...............................................................................................................116
4.1.3 Direito dos Povos ................................................................................................................121
4.1.4 Hutukara Associação Yanomami ......................................................................................123
4.2 FILOSOFIA E ÉTICA DA LIBERTAÇÃO ...............................................................................125
4.2.1 Origens e definição da filosofia da libertação...................................................................125
4.2.2 A filosofia da libertação no reconhecimento dos direitos dos povos ................................128
4.2.3 Por uma prática jushumanista-pluralista a partir da ética da libertação ........................130
CONSIDERAÇÕES FINAIS ....................................................................................................... 133
REFERÊNCIAS ............................................................................................................................ 138
10

INTRODUÇÃO

O poema a seguir retrata um pouco a idéia do presente estudo. De Antônio Miranda,


Os Índios:

I
Também vieram de longe e plantaram raízes imemoriais no jardim de sua e-
leição, desde a diáspora primeva da Criação.
Não sabemos se temos a mesma origem ou se nascemos já divididos, dispu-
tando o mesmo espaço.
Descimentos e preamentos, bandeirantes dizimaram e escravizaram índios
sem religião como animais errantes.

II
Os sobreviventes estão confinados em reservas como num zoológico huma-
no.
Duas culturas não podem ocupar o mesmo lugar: ou o índio é integrado à so-
ciedade e perde a identidade tribal, ou refugia-se na comunidade.
Garimpeiros, pecuaristas, seringueiros e extrativistas (caraíbas) avançam com
moto-serras.
O índio não é ambicioso nem ocioso.
A terra é a existência do índio, terra de todos, comunitária, terra que é partí-
cula em movimento e assimilação.
Terra e índio: um vive da outra. Mãe e filho, indivisíveis.
Terra sagrada de húmus vivo e fértil de seus antepassados com que o índio
abona o inhame, o cará e a taioba.
Em que cultiva, caça e pesca e colhe, apenas quando e quanto necessita.

III
Para o índio não há amanhã em qualquer sentido, pois o tempo não existe em
sua percepção: o movimento do corpo num ímpeto contínuo (da vontade em ação) é
que move a rede (e não os pés e a mão) como move a vida.
Dias alternam-se sem alterações e altercações – de pesca, de fruta acesa que
logo vai compartilhar no complemento do beiju, do pirarucu e do tucunaré.
O fogo está sempre aceso na aldeia e almas intermitentes de dormir e desper-
tar de morrer e renascer: um tempo dentro de outro tempo infinito e cego.
Fogo feito para irmanar-se depois de buscar a lenha que não armazena jamais
para não quebrar a rotina.
Um grande poder de concentração - e de dedicação extrema - com todo o
1
tempo do mundo, mas sem a noção de tempo .

Este trabalho é fruto de sucessivos estudos anteriores, os quais contribuíram para a se-
leção do tema. Uma questão que merece ser esclarecida é a razão pela qual foi adotado o pre-
sente título: Do genocídio e etnocídio – povo, identidade cultural e o caso Yanomami.

A idéia de se realizar a abordagem sobre a questão das etnias e dos direitos humanos
iniciou-se com trabalhos desenvolvidos no Grupo de Pesquisa de Filosofia do Direito da

1
MIRANDA, Antônio. Os índios. Disponível em:
<http://www.antoniomiranda.com.br/poesia_ilustrada/portugues/indios.html>. Acesso em: 30 out. 2008.
11

FARGS, no qual uma série de estudos foi realizada a partir de contextos jurídicos, filosóficos
e políticos, e inclusive na área do Direito Penal Internacional, já que o objeto do trabalho an-
terior versava sobre as questões político-filosóficas do totalitarismo e crimes internacionais2.

Posteriormente, em pesquisas realizadas no site do Supremo Tribunal Federal, consta-


tou-se que em agosto de 2006 foi apreciado oficialmente o primeiro caso de genocídio por
aquele Tribunal. Tratava-se do caso do massacre de Haximu, o qual ocorreu em uma condição
de conflitos entre o povo Yanomami e exploradores do garimpo na região da fronteira com a
Venezuela, culminando na morte de 12 (doze) indígenas integrantes da tribo, em julho de
1993. Na época, o caso repercutiu de forma significativa no plano nacional e internacional,
sendo divulgadas amplamente na mídia as condições do massacre e do povo indígena como
um todo, devido às epidemias.

A partir de então, em posteriores pesquisas na internet e bibliografias sobre o caso, o


tema despertou profundo interesse, pois envolve não somente as questões jurídicas propria-
mente ditas, mas exige abordagens na área das ciências humanas, uma vez que é necessário
compreender toda a conjuntura que contribuiu para o massacre, qual seja, a constante explora-
ção ilegal de minério no território Yanomami e suas conseqüências. Agregue-se a isto a guer-
ra política travada entre representantes das instâncias do Poder Estatal, aliados a exploradores
de minério, contra os povos indígenas – uma espécie de guerra oculta contida no âmago da
sociedade e do Estado – e, por fim, uma necessidade de abordagem mais ampla, que permite
explanar sobre a constituição da sociedade e de que maneira esta sociedade industrial, globa-
lizada, relaciona-se com aquelas distintas culturalmente (especialmente os povos indígenas), e
ainda de que forma essa relação resulta nas práticas de genocídio e etnocídio.

Questão também de grande importância no título é a idéia de povo, que por sinal pos-
sui muitas acepções3. Para a antropologia, pode representar um coletivo de seres humanos
com a mesma origem racial, uma mesma língua, similares costumes e formas de vida. Pode
ter também a conotação de gente humilde e comum da população. Para os juristas, são as pes-
soas que integram um país, vinculando-se à idéia de soberania popular. Na perspectiva socio-
lógica (e em especial na corrente do materialismo histórico marxista), trata-se de um conjunto
de classes subordinadas: o proletariado, por exemplo.

2
Trata-se do julgamento de Eichmann em novembro de 2007, trabalho desenvolvido pelo do grupo de pesquisa
da FARGS.
3
CIFUENTES, José Emilio Rolando Ordoñez. La cuestión étnico nacional e derechos humanos: el etnocidio –
Los problemas de la definición conceptual. México: Instituto de Investigaciones Jurídicas de la UNAM, 1996, p.
127-129.
12

No nosso estudo, seguindo a proposta do comitê de especialistas em direitos indígenas


e não-indígenas do Instituto Interamericano de Direitos Humanos, podemos dizer que povo é
uma coletividade que possui um conjunto de fatores4: um território definido, uma língua co-
mum, compartilhamento de uma cultura, de uma história e que se diferenciam dos outros po-
vos mediante instituições sociais e formas de organização relativamente autônomas.

Especialmente no que tange aos indígenas, o povo indígena será aquele que, além de
apresentar as características anteriores, é originário da região que habita e que foi incluído na
institucionalidade de outra sociedade (dominante). Ele se define, portanto, com uma socieda-
de que não é originária5. Mas não obstante a diferenciação entre povo e povo indígena, para
fins didáticos, adotemos o primeiro, proveniente do Instituto Interamericano.

Com relação à identidade cultural, é necessário esclarecer que ela está ligada à idéia
de etnia. Em suma, esta é um organismo social formado por grupos de pessoas que possuem
vínculos culturais comuns (língua, modo de vida, tradições, etc). Assim, a identidade cultural
provém destas características que são comuns dentro de um povo, formando uma etnia, gru-
pos humanos que compõem uma identidade cultural específica; se identificam e são identifi-
cados como tais.

Nesse sentido reside a questão do genocídio e etnocídio, pois o genocídio, em linhas


gerais, tem como objetivo aniquilar um povo ou grupo específico enquanto tal, ao passo que o
etnocídio atenta contra os traços culturais que identificam este grupo ou povo, exterminando
seu modo de vida, língua e tradições. Daí a importância de se tratar também sobre direito à
existência e direito à identidade cultural.

A partir destas breves considerações, pode-se atribuir ao presente trabalho a caracterís-


tica de um estudo de caso do massacre de Haximu6 pelo enfoque dos direitos humanos e do
direito dos povos (em especial a proteção de grupos humanos, pelos direitos à existência e à
identidade cultural), mas que envolve ainda a necessidade de se abordar as questões históricas
e sócio-políticas que permeiam estas práticas de extermínio, as quais sempre marcaram o con-
texto histórico do País e da América como um todo, e que ainda são realizadas em outras re-
giões do Brasil.

Trata-se, pois, de um projeto que, além de traçar um estudo no âmbito teórico-jurídico


dos direitos humanos (em específico na questão de graves violações destes direitos, como o

4
Idem, p. 136.
5
Ibidem, p. 136.
6
Nome conhecido do massacre ocorrido em 1993.
13

genocídio e etnocídio), deve se constituir como um instrumento de informação para a defesa


de um maior respeito pela tolerância, pelo ser-do-outro; e, ao mesmo tempo, um instrumento
de delação contra esta forma de extermínio sistemático e oculto que reveste a sociedade do-
minante constituída. Com efeito, uma tentativa de contribuição no que tange aos direitos das
minorias étnicas que ainda vivenciam a violência, a exclusão, e lutam pela sua existência e
pela proteção de suas culturas mantidas há gerações.

Pode-se dizer que há três estratégias para a inexistência do distinto7:

a) A omissão (o outro não é), pois a omissão do outro sempre tende a culminar em seu
desaparecimento. A cristianização, o progresso, a modernização, a suspensão dos direitos co-
muns a pessoas diferentes, a lei que não os respeita; tudo se constitui como uma forma de e-
xercício do poder e que obscurece a existência do Outro e do seu mundo.

b) O menosprezo (o outro não é completo), ou seja, busca-se submeter o outro, o dis-


tinto, a uma totalidade (uma visão de mundo una, absoluta). As “carências” do outro (carentes
de fé, de lei, de rei, por exemplo) são manifestações de um discurso depreciativo, que busca
menosprezar uma pessoa ou uma coletividade.

c) A expropriação (o outro é como eu digo): expropriar o diferente mediante a usurpa-


ção de sua vontade (considerando-o como incapaz, não-civilizado, etc), devendo integrá-lo a
um mundo que deseja ser totalizante. Esse é o resultado dos discursos provenientes de uma
intolerância, e que podem ocasionar graves violações a grupos humanos, principalmente pela
incorporação de seres humanos a um sistema-mundo dominante (do dito “civilizado”, como
veremos). São, em suma, os pilares que sustentam inclusive medidas de extermínio de seres
humanos. O genocídio como extermínio de um povo; o etnocídio como extermínio de uma
identidade cultural.

O estudo do tema proposto necessita ainda de uma breve abordagem histórica como
elemento norteador. A partir deste elemento histórico será possível situar, no tempo e no es-
paço, como o problema da prática do genocídio e etnocídio contra os povos indígenas foi ob-
jeto de uma violência expressa, e posteriormente, com a expansão econômica, resultou em
uma prática de violência que hoje possui uma nova roupagem, em que pese ainda conservar
medidas brutais da época da colonização.

7
BARIÉ, Cletus Gregor. Pueblos indígenas y derechos constitucionales en la América Latina: un panorama. 2ª
ed. La Paz, 2007. Disponível em: <http://gregor.padep.org.bo/pdf/>. Acesso em: 30 mai. 2008, p. 15-17.
14

De início, faremos um breve estudo partindo das grandes navegações do Séc.


XV/XVI, as quais inauguraram a mercantilização e resultaram na descoberta e conquista da
América por Colombo e posteriormente por Cortez, na conquista do México. Gize-se que as
primeiras denúncias sobre a violência cometida contra as populações indígenas são descritas
pelo autor Bartolomé de Las Casas, em relatos da conquista espanhola.

Após a abordagem do período citado, trataremos ainda brevemente a questão da con-


quista do território brasileiro pelos portugueses (os quais se inseriram nesta expansão econô-
mica) e como a violência contra as populações indígenas na busca por riquezas fora gradati-
vamente se acentuando no período da colonização no Brasil, e ainda de que maneira ocorre
esta exploração econômica nos dias de hoje. Verificar-se-á que o processo de impulsão da e-
conomia pela violência na América, e notadamente no Brasil, se refletirá ainda na sociedade
contemporânea após a colonização, guardadas suas devidas peculiaridades na História.

Por fim, será exposto como esta prática de violência contra os povos indígenas sofreu
mutações, decorrentes de novas práticas de saber-poder que revestem a sociedade industrial e
globalizada. E hoje, especificamente no Brasil, a invasão de territórios de que necessita o pro-
cesso produtivo, característico deste tipo de sociedade, vem tomando os territórios e os corpos
das etnias, em um mecanismo de expropriação, muitas vezes defendido não somente explora-
ção econômica, mas também dentro das instâncias do Poder Estatal; estas, por vezes, compac-
tuam com esta expansão. Tais práticas, revestidas por formas jurídicas tuteladas pelo Direito,
resultam em violência e posterior extermínio de povos, especialmente indígenas8.

São estas as considerações sobre a nova roupagem, a nova prática de genocídio e etno-
cídio que se constitui na sociedade atual, e que será objeto do estudo proposto. A necessidade
de uma maior proteção, não somente do Povo Yanomami, mas dos demais povos constituídos
como minorias, é o fator que merece destaque, a fim de se observar seus direitos à cultura, ao
seu território e à preservação de sua existência.

8
Dados estatísticos oficiais do CIMI sobre a violência contra povos indígenas demonstram hoje que existem
cerca de 60 tribos que ainda não mantêm contato com a nossa sociedade envolvente. Destas 60 tribos, cerca de
16 estão ameaçadas de extinção pelas invasões decorrentes desta expansão econômica. Vide o relatório de vio-
lência (2003-2005). Disponível em:
<http://www.cimi.org.br/?system=publicacoes&action=publicacoes&cid=11>. Acesso em: 28 jan. 2008.
15

CAPÍTULO I – CONDIÇÕES HISTÓRICAS E SÓCIO-POLÍTICAS DO EXTERMÍ-


NIO: DA CONQUISTA DA AMÉRICA AO BRASIL DO SÉCULO XXI

‘Quantas cidades arrasadas, quantas nações exterminadas, quantos milhões


de povos passados a fio de espada, e a mais rica e bela parte do mundo transtorna-
da pela negociação de pérolas e de pimenta: vitórias mecânicas. Nunca a ambição,
nunca as inimizades incitaram homens uns contra outros a tão horríveis hostilida-
des e a calamidades tão miseráveis quanto nesse novo mundo que o nosso acaba de
9
descobrir...’ . (Montaigne – Ensaios, III, 6)

1.1 A CONQUISTA DA AMÉRICA

Para compreender todo o contexto das práticas de genocídio e etnocídio, com o enfo-
que especial ao episódio do massacre Yanomami ocorrido em 1993, voltar-se para o passado é
condição de extrema importância. A conquista da América, além de inaugurar a Era Moderna
e o Estado Moderno, constitui-se como a genealogia, a origem, o fundamento de todo o pro-
cesso de colonização no Continente americano, e muitas das suas características ainda são
presentes em nossa realidade da América Central e Latina, guardadas as suas devidas peculia-
ridades no contexto histórico de cada período. Efetivamente foi o início de um processo que
até hoje produz reflexos em nossa região marginal10. Para tanto, olhar para a conquista da
América é voltar-se para as origens da nossa constituição como sujeitos oriundos das técnicas
de domínio empregadas ontem e hoje.

Mas qual seria o liame existente entre a conquista da América e todo o contexto histó-
rico e sócio-político que culminou no massacre de Haximu? A resposta a esta questão deverá
ser tratada ao final deste estudo, pois será o momento em que se constituirá o fechamento do
círculo, a montagem de todas as peças que formarão o conjunto necessário para a compreen-
são da essência das práticas de genocídio e etnocídio, bem como o contexto do massacre de
1993.

9
MONTAIGNE, citado por LAS CASAS, Bartolomé de. O Paraíso Destruído. Porto Alegre: L&PM, 1984, p.
19.
10
A expressão é originalmente empregada pelo jurista Eugênio Raúl Zaffaroni, na obra Em busca das penas per-
didas, em torno da perda da legitimidade do sistema penal. Para tanto, o termo se refere ao âmbito da América
Latina, em seu estudo sobre o sistema penal. Em ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Em busca das penas perdidas.
Rio de Janeiro: Revan, 1991.
16

Neste momento, seria conveniente apenas apresentar uma pista a esta resposta: o fe-
nômeno do colonialismo ainda subsiste, aliado a outras técnicas de saber e de poder, peculia-
res da nossa sociedade globalizada, e que atuam no sentido de promover a degradação, não
apenas cultural, mas também física de povos, etnias que não contribuem com o processo de
expansão econômica, a qual não possui fronteiras, ultrapassa barreiras territoriais, extermina
povos e culturas. E neste aspecto, o massacre de Haximu é um episódio que comporta todas
estas características do processo de expansão neocolonial, um fruto de uma realidade advinda
dos mecanismos de poder que atuam no corpo social, tais como a produção racional de uma
verdade e o conseqüente discurso da irreversibilidade e aceitabilidade dos processos de subju-
gação de etnias como um mal necessário em benefício ao restante da população.

Contribuindo com estes aspectos preliminares, Zaffaroni11 refere que há cinco séculos
nosso território vem sendo submetido a um chamado processo de atualização histórica incor-
porativa, que é produto de duas revoluções sucessivas: a revolução mercantil (Século XVI) e
a industrial (Século XVIII). Inicialmente, no mercantilismo, as potências européias realizaram
a incorporação dos povos americanos à civilização mercantil na forma do colonialismo; poste-
riormente, houve a prática de um neocolonialismo que ainda perdura. E na atualidade, tendo a
América do Norte se dimensionado como o centro, como parâmetro para o Mundo, seria pos-
sível reconhecer que nosso estágio atual é a revolução tecnocientífica. Portanto, nosso proces-
so histórico até então poderia se resumir nestas três etapas: a revolução mercantil, a revolução
industrial e, por fim, a atual revolução tecnocientífica.

Com base nesta tripartição, Zaffaroni refere que tanto o colonialismo como o neocolo-
nialismo foram momentos distintos de genocídio e etnocídio, contudo, igualmente nefastos.
Nesse sentido, a destruição de culturas originárias e a morte dos habitantes eram fatos que
impressionavam os próprios colonizadores, e a escravidão através do transporte de africanos
constituiriam as características evidentes do colonialismo.

De outro lado, o neocolonialismo destacou-se por implementar lutas que impuseram o


poder de minorias locais em favor dos interesses de potências industriais, as quais deram con-
tinuidade ao empreendimento genocida e etnocida do colonialismo, desencadearam guerras de
destruição intermináveis, transportaram a população marginal européia para substituir a popu-
lação desprezada como inferior. Seriam os dois capítulos genocidas, oriundos da incorporação
forçada, praticada em razão de uma ideologia da inferioridade. Esta inferioridade, no colonia-
lismo, dava-se em função do marco teórico teológico (ou seja, a inferioridade dos povos da
11
Idem, p. 118.
17

América pelo fato de não terem recebido a mensagem cristã), e no neocolonialismo, por uma
inferioridade fundada pela razão de que os habitantes da América não possuiriam o mesmo
grau de civilização, ou eram biologicamente inferiores12.

Já a revolução tecnocientífica caracteriza-se pela luta, entre os países centrais, em tor-


no do domínio tecnológico em determinadas áreas (como a informática, a tecnologia, a ener-
gia nuclear e robótica), em que suas conseqüências são imprevisíveis. E a América Latina
(como todo o povo que a constitui) seria definida pela ausência de capacidade política para
protagonizar uma aceleração histórica13.

O colonialismo da revolução mercantil (Séc. XVI), o neocolonislismo da revolução


industrial (Séc. XVIII) e os projetos tecnocolonialistas da revolução tecnocientífica (Séc.
XX); eis os processos pelos quais a América sofreu influência. No entanto, para fins de fe-
chamento destas notas preliminares no âmbito histórico, é necessário ressaltar que não se trata
de uma mera substituição de um saber por outro decorrente de cada período histórico, mas da
junção, a acumulação das características de cada momento que integram os mecanismos de
poder que se entrecruzam, que invadem etnias diversas ante a sua fragilidade diante destes
procedimentos de dominação.

Concluída esta abordagem preliminar, seguir-se-á o estudo do mercantilismo como


contextualização histórica, seguindo-se a conquista da América e suas características dentro
da revolução mercantil.

1.1.1 Mercantilismo

Analisar o mercantilismo é efetuar o estudo do período de transição em que foram lan-


çadas as bases da sociedade moderna. Tal assunto se mostra necessário na medida em que este
processo instaura o colonialismo e suas conseqüências para as etnias originárias da América.

12
Idem, p. 119.
13
Não é demais ressaltar dentro deste aspecto o processo ilimitado da expansão econômica, que tem causado
uma constante degradação ambiental, fato este que influi muitas vezes para a execração de minorias étnicas que
dependem do ecossistema, naturalmente constituído para sua sobrevivência cultural e biológica.
18

Inicialmente, é importante salientar que “o mercantilismo não é apenas a resultante


de práticas político-econômicas; ela é também produto do imaginário europeu e das necessi-
dades individuais e coletivas”, como refere o historiador Cléber Cristiano Prodanov14.

No tocante à criação e definição do termo, o mercantilismo somente surgiu no final do


Séc. XIX, com historiadores e economistas que buscaram sistematizar as práticas econômicas
que subsistiam naquele período histórico15. Ele emerge na Alemanha, país que vivenciava o
dilema de sua unificação política, ou seja, o surgimento de um Estado-Nação unificado. As-
sim, os políticos e economistas viam nas experiências da época mercantil uma prática favorá-
vel para a unificação e centralização política. E para designar o conjunto daquelas experiên-
cias, criou-se o termo mercantilismo16.

Especificamente com relação ao seu surgimento, verifica-se a nítida fase de transi-


ção17. Na tradição feudal, a posse das terras era sinônimo de prestígio e poder. Contudo, com
o crescimento da burguesia e do capital comercial, o dinheiro passa a assumir o papel que a
terra outrora desempenhava.

O mercantilismo, em sua definição, seria um conjunto de idéias, com uma prática polí-
tica e econômica desenvolvida pelos Estados europeus na Época Moderna18, mais precisa-
mente dos Séculos XV ao XVII. Mantinha-se uma idéia de acumulação de metais preciosos e
a utilização do Estado como meio centralizador, ou seja, os Estados intervinham diretamente
na economia, buscando assegurar o crescimento econômico e político. Nesse sentido, o mer-
cantilismo age diretamente para a centralização do poder em torno do rei, em troca dos bene-
fícios econômicos garantidos pela burguesia comercial em ascensão.

Como referido de forma breve, a centralização do poder é outro elemento característi-


co. O mercantilismo não subsistia por si só, mas dependia diretamente de um Estado interven-
tor na economia. E para isso, o rei necessitava do apoio econômico da burguesia, tendo o ouro
e a prata adquirido importância capital para a circulação de moeda. Na busca de acumular me-
tais preciosos, o comércio colonial surge como elemento fundamental, pois todos os Estados
começam a vincular sua riqueza com o volume de metais preciosos acumulados, protegendo

14
PRODANOV, Cléber Cristiano. O mercantilismo e a América. 5ª ed. São Paulo: Contexto, 1998, p. 09.
15
Idem, p. 12.
16
Ibidem, p. 12.
17
Ibidem, p. 14. Esta fase transitória não pressupõe crise, mas uma instabilidade causada pela mudança e pela
convivência de elementos do novo com os do velho. E a transição do feudalismo para o capitalismo inicia a par-
tir do Século XVI, em que a centralização do Estado se torna constante em diversos territórios.
18
Ibidem, p. 14. Necessário salientar ainda que esta Era Moderna inicia-se com o período de transição do feuda-
lismo para o capitalismo, que ocorreu com o fechamento da rota comercial Europa-Oriente via Constantinopla
(1453).
19

suas economias da ação dos exportadores internacionais, devido ao fato de que todas as na-
ções resolvem somente exportar e limitar as importações. Esse fenômeno de busca por ouro e
prata chamava-se metalismo. Um Estado que não possuísse reservas de ouro e prata estava
impossibilitado de fazer comércio internacional19. Assim, com a expansão comercial maríti-
ma, o Novo Mundo torna-se terreno propício para os objetivos de acumulação de metais pre-
ciosos.

Pelo exposto, poder-se-ia imaginar que o mercantilismo somente utilizou-se da Amé-


rica para fins econômicos, de fornecimento de matérias-primas e metais preciosos à Europa.
Contudo, tal pensamento correria o risco de negligenciar todo o envolvimento cultural que
surgiu com a chegada dos europeus ao Novo Mundo.

Nesse sentido, é interessante a questão do homem e seu habitat natural. No tocante à


distinção existente entre os indígenas americanos e conquistadores europeus com relação à
natureza, a relação que o indígena possui com aquela o envolve como parte integrante do e-
cossistema, preservando seu meio para equilibrar seu ambiente e garantindo sua sobrevivên-
cia. Para o europeu conquistador, a natureza passa a ter preço, porquanto é mercadoria. Em
uma área selvagem, é necessário apropriar-se dela, visando o enriquecimento rápido20. O inte-
resse do Continente Europeu pelas especiarias (açúcar, seda, ouro, etc.) seria o envolvimento
do homem com a transformação da natureza em mercadoria.

Outro aspecto relevante é a impressão dos colonizadores em face dos costumes dos
povos originários na América. Na chegada à terra nova, os europeus encontram uma socieda-
de “bárbara”, “não-cristã”. Deveriam ser trazidos à civilização, domesticados dentro dos pa-
drões de conduta e de religiosidade européias e cristãs. Prodanov21 ressalta:

Do seu ponto de vista, o europeu não destrói a América, apenas modifica o


que lhe é diferente para concretizar sua fantasia, de um mundo mais perfeito.
A conquista e a colonização colocaram o europeu frente ao cotidiano ame-
ricano. A busca de compreensão desse cotidiano levou à posse do material e do ima-
ginário indígena. Nesse processo, o europeu introduziu a destruição da realidade co-
tidiana da América, e passou a reconstituir um mundo imaginado por ele à imagem
do seu passado.
(...)
É importante salientar que não foram apenas os aspectos econômicos que
alimentaram o interesse da Europa pela América. Durante muito tempo a América

19
Idem, p. 31.
20
Ibidem, p. 52. Como ainda ressalta Prodanov, até hoje é corriqueiro julgar a importância da natureza pela ri-
queza que ela pode proporcionar. Para ele, a ciência moderna também nasceu sob o fundamento do domínio so-
bre a natureza, e a subordinação da natureza ao homem seria um dos ideais da ciência moderna.
21
Ibidem, p. 59.
20

representou um ônus e um investimento sem retorno para as metrópoles européias.


Na verdade, tratava-se de uma expansão religiosa e da edificação de uma sociedade
quase que utópica, a partir de um sonho europeu.

Para tanto, além do próprio interesse econômico que conduziu a conquista e a coloni-
zação da América, a ideologia teológica possuía forte influência. A construção de igrejas,
monumentos, a imposição da doutrina religiosa dominante na Europa, com base no poder pas-
toral cristão22, além de outros costumes ocidentais, foi a tentativa de moldar as sociedades o-
riginárias à imagem e semelhança do que havia no Continente europeu, “o homem à imagem
e semelhança de Deus”.

Em suma, são esses os principais aspectos atinentes ao mercantilismo e seus elementos


característicos. Nos pontos seguintes, o enfoque será com especial atenção à conquista da
América e o processo de extermínio, conseqüência desta expansão econômica e colonial.

1.1.2 Colombo

Não seria excessivo afirmar que o colonialismo, nos últimos cinco séculos, foi o gran-
de perpetrador de genocídios durante a ocupação de territórios. O europeu – colono ou con-
quistador – considerando selvagens os habitantes das terras que tomava pela sua incapacidade
de adaptação à “louvada civilização”, justificava sua conquista tratando as comunidades ori-
ginárias como uma espécie de sub-homens, condenados à exploração ou extermínio23.

Pode-se dizer que dois homens foram os mais importantes atores deste fenômeno: Co-
lombo, pela sua perspectiva assimilacionista e posteriormente escravagista, e Cortez, pela sua
implacável atuação na conquista dos povos originários, mediante estratégias, técnicas e im-
plementações de mecanismos de violência. Estas práticas marcam a descoberta do eu sobre o
ser-do-outro, ainda que não reconhecido como tal. A descoberta e posterior conquista da A-
mérica é certamente o encontro mais surpreendente da História, e o século XVI foi a época do
maior genocídio já ocorrido. Com relação aos pontos característicos da conquista, o filósofo

22
O poder pastoral cristão tem suas bases nas técnicas de obediência incondicional, fundação de verdades e de
leis e principalmente a relação de dependência integral do indivíduo sobre outro. Mais detalhes em FOUCAULT,
Michel. Segurança, Território, População. São Paulo: Martins Fontes, 2008.
23
TERNON, Yves. El Estado Criminal – Los genocídios del siglo XX. Barcelona: Península, 1995, p. 282.
21

búlgaro Tzvetan Todorov24 será a base elementar para as descrições a seguir. Para ele, a des-
coberta da América, além de ser um encontro único, é o que anuncia e fundamenta nossa i-
dentidade presente.

Com relação a Colombo, sabe-se que os conquistadores espanhóis pertencem, em ter-


mos históricos, à época de transição entre o final da Idade Média, dominada pela religião, e a
Idade Moderna, a qual coloca os bens materiais no topo da escala de valores. E igualmente na
prática a conquista terá estes dois aspectos: os cristãos vêm para implementar, trazer a religi-
ão, e levam em troca ouro e riquezas.

O ano de 1492 inaugura a Era Moderna. É o ano em que Colombo atravessa o oceano
Atlântico, e em que inicia nossa genealogia25.

Pelos estudos de Todorov, pode-se dizer que o que levou Colombo à América foram a
necessidade de dinheiro e o desejo de impor o verdadeiro Deus. E ambos os objetivos não se
excluem. Chegando à América, Colombo descreve sua admiração pela natureza, seu interesse
em rebatizar os lugares, além de efetuar toda uma gama de interpretações (a sua visão) dos
costumes dos povos originários.

O primeiro gesto de Colombo em contato com as terras recentemente des-


cobertas (conseqüentemente, o primeiro contato entre a Europa e o que será a Amé-
rica) é uma espécie de ato e nominação de grande alcance: é uma declaração segun-
do a qual as terras passam a fazer parte do reino da Espanha. Colombo desce à terra
numa barca decorada com o estandarte real, acompanhado por dois de seus capitães,
e pelo escrivão real, munido de seu tinteiro. Sob os olhares dos índios, provavelmen-
26
te perplexos, e sem se preocupar com eles, Colombo faz redigir um ato .

No que concerne à linguagem, verifica-se que Colombo não reconhece inicialmente a


diversidade de línguas, recusando-se a aceitá-la, prometendo inclusive levar seis deles à Eu-
ropa para que aprendam a falar27. Com efeito, demonstra-se a pouca percepção que Colombo
tinha dos índios, aliada a um autoritarismo.

O navegador também qualifica os índios como seres desprovidos de propriedade cultu-


ral, pela ausência de costumes, rito e religião, vendo as coisas segundo sua conveniência: ‘Es-
sas gentes são muito pacíficas e medrosas, nuas, como já disse, sem armas e sem leis’28. E a-

24
TODOROV, Tzvetan. A Conquista da América – A questão do outro. São Paulo: Martins Fontes, 2003.
25
Idem, p. 07.
26
Ibidem, p. 39.
27
Ibidem, p. 42.
28
COLOMBO, citado por TODOROV, p. 49.
22

inda relata: ‘Não creio que haja no mundo homens melhores, assim como não há terras me-
lhores’29; ‘Seja coisa de valor ou coisa de baixo preço, qualquer que seja o objeto que lhes dá
em troca e qualquer que seja seu valor, ficam satisfeitos’30. É o aspecto assimilacionista inici-
al da descoberta e conquista da América.

E com relação a este aspecto da troca, houve um episódio em que alguns espanhóis
entram nas cabanas de alguns nativos e servem-se de todos os objetos. Contudo, os indígenas,
achando que tinham o mesmo costume, apanham o que pertencia aos cristãos. E a partir deste
momento, Colombo passa a declarar que os índios são todos ladrões; e imediatamente empre-
ga-lhes castigos, como retaliações em partes do corpo31. Desta forma, verifica-se claramente
que Colombo possui uma atitude para com os indígenas de acordo com sua percepção.

Já na segunda expedição, religiosos acompanham Colombo e passam a converter os


índios, punindo (fazendo com que fossem queimados) aqueles que renegavam esse poder pas-
toral. Os espanhóis passam a dar a religião e tomar o ouro, ou seja, a expansão espiritual é
vinculada à conquista material, e a violência se instaura.

Desta forma, paulatinamente Colombo passa do assimilacionismo à ideologia escrava-


gista, com a afirmação de inferioridade dos indígenas. ‘Servem para obedecer’; devem ser
bons servidores e industriosos’32; ‘é verdade que muitos deles morrem no momento, mas não
será sempre assim. Os negros e os canarinos tinham começado da mesma maneira’33. Colom-
bo ainda implementa, após sua volta à Espanha, a imposição de tributos em alguns locais34. O
tráfico de escravos dava-se da seguinte forma:

‘Mas quando atingimos as águas que cercam a Espanha, uns duzentos dos
índios morreram, creio que por causa do ar ao qual não estavam habituados, mais
frio do que o deles. Foram jogados no mar (...). Desembarcamos todos os escravos, a
metade deles doente’35.

29
COLOMBO, citado por TODOROV, p. 51.
30
Idem, p. 52.
31
Ibidem, p. 55.
32
Ibidem, p. 64.
33
Ibidem, p. 65.
34
De acordo com as descrições apresentadas por Josefina Oliva de Coll, “O Almirante impôs um tributo: todos
os vizinhos das minas com mais de quatorze anos de idade eram obrigados a entregar a cada três meses uma
grande quantidade de ouro. Os que viviam longe das minas foram obrigados ao pagamento de uma arroba de
algodão por pessoa. Para que ninguém pudesse iludi-lo, ordenou que cada tributário levasse pendurado no pesco-
ço uma moeda de cobre ou de latão, na qual se fazia uma marca especial por cada pagamento, para que ‘se co-
nhecesse quem pagou e quem não pagou, de maneira que quem não a trouxesse deveria ser castigado’”. Vide
COLL, Josefina Oliva de. A Resistência Indígena. Porto Alegre: L&PM, 1986, p. 19-20.
35
COLOMBO, citado por TODOROV, op. cit., p. 66.
23

Nesta primeira parte da conquista, verifica-se este duplo sentido: o outro, ao mesmo
tempo em que é descoberto, é também recusado, e este passa a ser objeto de imposição dos
próprios valores do colonizador. De fato, os primeiros contatos foram a inauguração de pro-
cedimentos de conquista que ainda estariam por vir.

1.1.3 Cortez

Enviada pelo governador de Cuba, a expedição de Cortez, no ano de 1519, será a ter-
ceira que chega à costa do México, com centenas de homens. E no momento em que toma co-
nhecimento da existência do império asteca, passa a desenvolver uma contínua progressão ao
interior, buscando obter a adesão das populações, pela promessa ou ainda pela guerra36.

Quando da chegada de Cortez, pelas descrições da época, os indígenas de outras partes


do México reclamavam dos danos causados pelos astecas, principalmente pelo imperador
Montezuma, através de seus coletores de impostos, que lhe roubavam bens, mulheres e fi-
lhas37. O ouro e metais preciosos já eram recolhidos como imposto pelos funcionários do im-
perador. É necessário salientar que os astecas foram os conquistadores anteriores daquelas
terras, e neste aspecto, é notória a existência, a transição que passa dos conquistadores velhos
aos novos. Um exemplo que caracteriza esta transição são os atos que os espanhóis realizam
durante a tomada do México. Queimam os livros dos mexicanos para apagar qualquer vestígio
de sua religião38; destroem monumentos para fazer desaparecer qualquer lembrança de uma
grandeza antiga. Porém, atos semelhantes já haviam sido praticados pelos astecas, que no pas-
sado destruíram todos os livros antigos, para escrever a história a seu modo39.

No tocante às estratégias implementadas por Cortez, verifica-se um constante exercí-


cio de interpretação, de aquisição de um saber; a utilização de estratégias, a partir das quais
submeterá e aniquilará a grande maioria daqueles povos originários. Um elemento que carac-
teriza esta técnica é a constante preocupação que Cortez atribuía à reputação de seu exército.

36
TODOROV, op. cit., p. 75.
37
Idem, p. 82.
38
Interessante a menção que Todorov faz acerca da religião. Ele afirma que do seu ponto de vista, “a posição dos
cristãos não é, em si, ‘melhor’ que a dos astecas, ou mais próxima da ‘verdade’. A religião, qualquer que seja seu
conteúdo, é um discurso transmitido pela tradição, e que importa enquanto garantia de uma identidade cultural”.
Ibidem, p. 116.
39
Ibidem, p. 83.
24

Mediante um jogo de representações, buscava afirmar sua superioridade militar sobre a popu-
lação.

O desfecho de uma guerra dependeria da reputação de seu exército. Tanto que quando
entra pela primeira vez na Cidade do México, dispensa a companhia de um grupo de índios
aliados, para não acarretar a suspeita de hostilidade; e quando recebe a visita de mensageiros
de chefes distantes, exibia todo o seu poder com a exibição dos cavalos em formação de bata-
lha e das armas40. Nesse sentido, é visível a eficácia simbólica da utilização das armas na
conquista. Contudo, além da eficácia simbólica, as armas também tinham a sua eficácia práti-
ca. Certa vez, Cortez ordena que cada um dos caciques faça vir seu herdeiro. Cumprida a or-
dem, todos os caciques são queimados em uma imensa fogueira, e seus herdeiros assistem à
execução. Logo após, Cortez os chama e pergunta se sabem como foi dada a sentença contra
seus pais; e ao final, argumenta que espera que o exemplo baste e que eles não sejam mais
suspeitos de desobediência41.

Outro fator que demonstra as técnicas empregadas para a conquista é a exploração dos
mitos indígenas pelos espanhóis em seu benefício, visando tornar mais eficiente o processo de
escravização. Os índios lucayos, por exemplo, atuais habitantes das Ilhas Bahamas, acreditam
que, após a morte, seus espíritos partem para uma terra prometida, um paraíso. Os espanhóis,
necessitando de mão-de-obra e sem encontrar voluntários, assimilam o mito e usam-no em
seu benefício.

Para tanto, Todorov transcreve a seguinte passagem:

‘Assim que os espanhóis souberam das crenças ingênuas dos insulares em


relação a suas almas que, após a expiação das faltas, devem passar das montanhas
geladas do norte para as regiões meridionais, tudo fizeram para persuadi-los a aban-
donar por iniciativa própria o solo natal e se deixar levar às ilhas meridionais de Cu-
ba e Hispaniola. Conseguiram convencê-los de que eles mesmos estavam chegando
ao país onde encontrariam seus pais e filhos mortos, todos os parentes e amigos, e
desfrutariam de todas as delícias nos braços daqueles que tinham amado. Como os
sacerdotes já tinham incutido neles essas falsas crenças, e os espanhóis confirma-
vam-nas, deixaram a pátria nessa vã esperança. Assim que encontravam nem os pa-
rentes nem pessoa alguma que desejavam e eram, ao contrário, forçados a suportar
fadigas e a executar trabalhos duros aos quais não estavam habituados, ficaram de-
sesperados. Ou se suicidavam, ou então resolviam morrer de fome e faleciam de
cansaço, recusando qualquer argumento, e até mesmo a violência, para se alimenta-
42
rem. (...) Assim, pereceram os desafortunados lucayos’ .

40
Idem, p. 166.
41
Ibidem, p. 167.
42
LAS CASAS, citado por TODOROV, op. cit., p. 170.
25

Esta menção demonstra claramente como ocorriam as explorações. A dominação do


saber do outro se intensifica como fator fundamental para a consecução dos objetivos da co-
lonização. E uma das armas mais eficazes será a apropriação do saber dos grupos indígenas.

Todavia, subsiste um fator que na conquista implementada por Cortez não existia
quando Colombo chega à terra firme. Ao contrário de Colombo, cuja mentalidade pendia para
a idéia de inferioridade dos povos indígenas que encontrava, os espanhóis que chegaram à Ci-
dade do México com Cortez manifestavam sua admiração pela organização do império asteca.
No pensamento de Cortez, a organização dos indígenas manifestava apreço justamente por se
tratar de características semelhantes aos espanhóis, no que tange à constituição da cidade,
dentre outros aspectos; ‘...os naturais deste país são muito mais inteligentes do que os das i-
lhas’43; ‘há muita gente pobre que, nas ruas, nas casas e nos mercados implora aos ricos, como
fazem os pobres da Espanha e em outros países onde há gente racional’44. Mas, no entanto,
pelas atuações na conquista, demonstra-se que Cortez apenas se admira com as produções dos
astecas, não reconhecendo esses povos como individualidades humanas equiparáveis a ele45.

Após delinear os aspectos referentes às ações realizadas por ambos os conquistadores


– Colombo e Cortez, Todorov efetua uma comparação de suma importância com relação a
ambos46. Nesse sentido, o filósofo afirma que, nas ações de Cortez, as coisas haviam mudado.
Colombo tratava os indígenas como uma espécie de coleção naturalista, colocando-os ao lado
das plantas e animais; o outro era eminentemente reduzido à condição de objeto. Já Cortez
possuía atitude distinta, mas nem por isso os índios tornam-se sujeitos comparáveis ao eu que
os concebe. Aqui, trata-se de um estado intermediário: são sujeitos, mas sujeitos reduzidos à
condição de produtores de objetos, artesãos, malabaristas, cujas atividades são admiradas, mas
uma admiração marcada pela distância que separa o europeu do nativo. Mesmo quando Cor-
tez compara o desempenho deles aos espanhóis, não se desvencilha do egocentrismo. Ao des-
crever sua opinião acerca da escravização dos índios, apenas reflete com base no ponto de vis-
ta da rentabilidade do negócio, nunca levando em conta o que os povos originários poderiam
desejar, querer. Parte-se da premissa de que os indígenas devem obedecer às ordens dos espa-
nhóis, qualquer que seja sua natureza. Portanto, admira a civilização asteca e ao mesmo tempo
mantém-se estrangeiro a ela. Fala-se bem dos índios, mas não se fala aos índios.

43
CORTEZ, citado por TODOROV, p. 184.
44
Idem, p. 184.
45
Vide TODOROV, p. 187.
46
Ibidem, p. 187-190.
26

Ainda nesta reflexão e dentro da referência às expressões ideológicas dos conquistado-


res, Todorov complementa:

Ora, é falando ao outro (não dando-lhe somente ordens, mas dialogando


com ele), e somente então, que reconheço nele uma qualidade de sujeito, comparável
ao que eu mesmo sou. Agora, portanto, é possível precisar as palavras que formam
meu título: se a compreensão não for acompanhada de um reconhecimento pleno do
outro enquanto sujeito, então essa compreensão corre o risco de ser utilizada com
47
vistas à exploração, ao “tomar” o saber será subordinado ao poder .

As menções, tanto em relação a Colombo quanto a Cortez, somente vêm demonstrar o


legado do qual a civilização ocidental é herdeira. Herdeira dos mecanismos da conquista, tan-
to dos pensamentos depreciativos pelo outro enquanto sujeito, quanto pela idéia de superiori-
dade institucional, em termos de constituição das sociedades. No primeiro, herdou-se a intole-
rância, pela incapacidade de reconhecer a diferença na relação intersubjetiva, o que muitas
vezes gera o racismo, o preconceito. No segundo, a ideologia colonial, segundo a qual o atual
estágio de formação da civilização ocidental seria um modelo em desenvolvimento, no qual é
inevitável que etnias que não fazem parte do processo constitutivo desse modelo sejam força-
damente incorporados a ela. Esta reflexão será retomada posteriormente ao decorrer do estu-
do.

1.1.4 Aspectos quantitativos e qualitativos da destruição dos povos originários

Consoante descrição de Todorov, pode-se examinar a destruição dos povos indígenas


no século XVI em dois planos: o quantitativo e o qualitativo48. No aspecto quantitativo, os
autores antigos, como Bartolomé de Las Casas49, afirmam a contagem de cem mil ou um mi-
lhão, ou ainda milhões de pessoas exterminadas na época da colonização da América. Com o
auxílio de estudos produzidos por historiadores na atualidade, conseguiu-se estimar de modo
verossímil a população da América nas vésperas na conquista. Em um parâmetro geral, a po-
pulação do globo estaria, em 1500, na faixa de 400 milhões, dos quais 80 habitariam as Amé-

47
Idem, p. 190.
48
Ibidem, p. 190.
49
Ibidem, p. 191. Bartolomé de Las Casas foi frei católico e participou dos processos de colonização e evangeli-
zação da América. Até hoje é tomado como referência em estudos históricos, notadamente pelos seus relatos da
conquista das Índias.
27

ricas. Em meados do século XVI, desses 80 milhões, teriam restado 10. E restringindo-se ao
México, nas vésperas da conquista, a população seria estimada em aproximadamente 25 mi-
lhões; já no ano de 1600, teria restado 1 milhão50. Tratar-se-ia de um recorde, não somente em
termos relativos, mas também em absolutos, eis que teria ocorrido a destruição de cerca de
90% de uma população estimada em 70 milhões de seres humanos. Algo incomparável se nos
voltarmos aos massacres ocorridos no século XX.

Ainda no plano quantitativo, poderíamos descrever três formas que levaram à diminu-
ição da população na época: a) os assassinatos diretos, decorrentes das guerras de conquista,
responsabilidade direta; b) os métodos de exploração colonial, ou maus-tratos; c) a diminui-
ção da natalidade e d) as epidemias, ou choque microbiano. As três últimas pela responsabili-
dade indireta.

No que tange ao assassinato direto, embora esta seja uma das causas, não foi a deter-
minante no processo de extermínio – ainda que seja considerável. As lutas militares foram de
pouca duração. Contudo, é fato evidente que as guerras decorrentes da conquista foram fato-
res que contribuíram para a destruição das Índias no século XVI51.

Com relação aos métodos de exploração colonial (maus-tratos), seriam basicamente


as condições de trabalho impostas pelos espanhóis, nas minas e em outros locais52. Devido ao
ritmo alarmante de produção e a necessidade de maior riqueza, os colonizadores procedem à
escravização, impondo ritmos insuportáveis de trabalho aos autóctones, causando debilidade
da saúde e, por conseguinte, a morte dos operários. Na época, a expectativa de vida de um
mineiro era de vinte e cinco anos53. É imprescindível levar mais ouro à Espanha, pagar as
primeiras expedições e apaziguar os colonos descontentes. Devido a este procedimento, houve
significativa mobilidade massiva de índios aos trabalhos forçados nas minas e na agricultura,
separando de forma violenta as famílias54.

Os primeiros colonizadores não se importavam com a debilidade física oriunda dos


trabalhos, porquanto tamanha era a rapidez da conquista que a morte de populações inteiras
não interessava. Sempre era possível trazer novos povos das terras recentemente conquistadas.

50
Idem, p. 191.
51
PEREÑA, Luciano. Genocidio en América. Madrid: Mapfre, 1992, p. 367.
52
TODOROV, op. cit., p. 193.
53
Idem, p. 193.
54
Com relação ao processo escravagista, Todorov transcreve o relato de Juan de Zumarraga, bispo da Cidade do
México, o qual descreve as atividades de Niño de Guzmán, conquistador e tirano: ‘Quando ele começou a go-
vernar esta província, ela continha 25.000 índios submissos e pacíficos. Vendeu 10.000 deles como escravos, e
os outros, temendo a mesma sorte, abandonaram suas aldeias’. ZUMARRAGA, Juan de, citado por TODOROV,
p. 194.
28

Aliada ainda aos trabalhos forçados, a exigência de impostos levava ao mesmo resultado. To-
dorov descreve a seguinte passagem:

‘Os impostos exigidos dos índios eram tão elevados que várias cidades, im-
possibilitadas de pagar, vendiam aos usuários que lá havia as terras e os filhos dos
pobres, mas como os impostos eram muito freqüentes, e eles não conseguiam pagá-
los nem que vendessem tudo o que tinham, algumas vilas ficaram totalmente despo-
55
voadas e outras perderam a população’ (III, 4) .

A diminuição da natalidade foi outro fator principal de decréscimo da população. O


indígena, pelas novas condições degradantes de vida a que lhe eram impostas, passou a ter
uma sensação de impotência, de inferioridade, pois o que se passava ao seu redor era superior
a sua capacidade de resistência. Tal fato gerava uma negativa de interesse pela relação conju-
gal, para que não se gerassem futuros escravos; a prática de aborto, além suicídios para não se
submeterem aos trabalhos forçados, eram também freqüentes56. Todorov cita a seguinte pas-
sagem, escrita pelo Frei Las Casas, que vivenciou as conquistas:

‘Assim, marido e mulher não ficavam juntos e nem se viam durante oito ou
dez meses, ou um ano; e quando, ao cabo desse tempo, se encontravam, estavam tão
cansados e abatidos pela fome, tão prostrados e enfraquecidos, tanto uns quanto ou-
tras, que pouco se preocupavam em manter relações maritais. Deste modo, pararam
de procriar. Os recém-nascidos morriam cedo, pois suas mães, cansadas e famintas,
não tinham leite para nutri-los. Por isso, enquanto eu estava em Cuba, 7.000 crianças
morreram em três meses. Algumas mães chegavam a afogar os filhos por desespero,
enquanto outras, vendo-se grávidas, provocavam abortos com certas ervas que pro-
57
duzem crianças natimortas (Historia, II, 13)’.

Por fim, as epidemias, a maior destruidora. Conjuntamente com os europeus, na che-


gada à América também vieram os micróbios e vírus. Quando se dissiparam aos indígenas, as
bactérias tomaram uma forma extraordinária de destruição.

Luciano Pereña58 refere que foram sobretudo as epidemias de sarampo que aniquila-
ram os indígenas. Além da gripe, a pneumonia e enfermidades similares se propagaram entre
os autóctones ao entrar em contato com os brancos, causando vítimas incontáveis, posto que o
indígena não possuía imunidade frente às doenças trazidas pelo europeu. Chega-se a referir

55
LAS CASAS, citado por TODOROV, p. 193.
56
PEREÑA. Genocidio en América. Op. cit., p. 369.
57
LAS CASAS, citado por TODOROV, op. cit., p. 194.
58
PEREÑA. Genocidio en América. Op. cit., p. 368.
29

que metade da população da América foi vítima de epidemias. E quanto mais isolada uma po-
pulação, mais destrutivo era o contágio; e quanto mais primitiva uma tribo, mais rapidamente
se extinguia. Pela ausência de imunidades, principalmente nos primeiros tempos da conquista
(primeiros 20 ou 30 anos), estima-se que devido ao sarampo, tifo e outros vírus, houve o ex-
termínio de aproximadamente ¾ (três quartos) dos indígenas59.

Contudo, não foi apenas a existência destas doenças que significou a alta mortalidade,
mas a vulnerabilidade que causava grande risco de contágio. Os indígenas encontravam-se
exauridos pelo trabalho e não sentiam gosto pela vida, como relatava o mestiço Juan Batista
Pomar, em sua Relación de Texcoco, terminada por volta de 158260.

Interessante ainda a referência que Todorov toma como base: as dez pragas61. Como
no Egito bíblico, o México torna-se culpado diante do verdadeiro Deus. Trata-se de uma des-
crição feita por Motolinia, membro do primeiro grupo de franciscanos que desembarca no
México em 1523; nestas descrições, relata-se as diversas formas de violência que chegaram
aos povos originários, como doenças, trabalho escravo, guerras, dentre outras. Para tanto, to-
das estas descrições anteriores seriam os fatores referentes ao aspecto quantitativo do exter-
mínio.

Passemos ao aspecto qualitativo da destruição. Embora na acepção de Todorov o ter-


mo estaria um tanto deslocado, o autor define este elemento como o caráter particularmente
impressionante, e talvez moderno, que a destruição tomou62. Descreve alguns relatos de tes-
temunhas oculares, o que representaria a realidade existente na época. O mais antigo seria o
relatório de um grupo de dominicanos, endereçado a M. de Chièvres, ministro de Carlos I, de
1516, o qual versa sobre os acontecimentos ocorridos nas ilhas do Caribe.

Em um relato sobre o modo de tratamento das crianças, Todorov cita:

‘Alguns cristãos encontraram uma índia, que trazia nos braços uma criança
que estava amamentando; e, como o cão que os acompanha tinha fome, arrancaram a
criança dos braços da mãe e, viva, jogaram-na ao cão, que se pôs a despedaçá-la di-
ante da mãe. (...) Quando havia prisioneiros mulheres recém-paridas, por pouco que
os recém-nascidos chorassem pegavam-nos pelas pernas e mandavam-os contra as
63
rochas ou jogavam-os no mato para que acabassem de morrer’ .

59
Idem, p. 369.
60
TODOROV, op. cit., p. 195.
61
Idem, p. 196-200.
62
Ibidem, p. 200.
63
Relatório citado por TODOROV, p. 202.
30

Quanto às relações com os trabalhadores nas minas:

‘Todos [os contramestres das minas] estavam acostumados a dormir com as


índias que dependiam deles, se lhes agradassem, fossem casadas ou solteiras. En-
quanto o contramestre ficava na cabana ou choça com a índia, mandava o marido ex-
trair ouro nas minas; e à noite, quando o infeliz voltava, não somente cobria-o de
golpes ou chicoteava-o por não ter trazido quantidade suficiente de ouro, como tam-
bém, muito freqüentemente, amarrava seus pés e mãos e jogava-o para baixo da ca-
64
ma como um cão, antes de deitar-se, bem acima, com sua mulher’ .

Acerca do tratamento da mão-de-obra:

‘Cada vez que os índios eram transferidos, eram tantos os que morriam de
fome no caminho que deixavam um rastro que bastaria, pode-se supor, para guiar até
o porto outra embarcação. (...) Mais de 800 índios tendo sido trazidos a um porto
dessa ilha, de nome Puerto de Plata, dois dias se passaram antes que os fizessem
descer da caravela. Morreram seiscentos deles, que foram lançados ao mar: flutua-
65
vam sobre as ondas como tábuas’ .

No entanto, o mais impressionante relato provém da descrição de Las Casas, acerca de


um episódio ocorrido em Cuba: o massacre de Caonao, perpetrado pela tropa de Narvaez, a
qual Todorov transcreve, verbis:

‘É preciso saber que os espanhóis, no dia em que ali chegaram, pararam de


manhã, para o desjejum, no leito seco de um riacho que, entretanto, ainda conservara
algumas pocinhas d’água, e que estava repleto de pedras de amolar: o que lhes deu a
66
idéia de afiar as espadas’ .

E prossegue:

‘Um espanhol, subitamente, desembainha a espada (que parecia ter sido


tomada pelo diabo), e imediatamente os outros cem fazem o mesmo, e começam a
estripar, rasgar e massacrar aqueles cordeiros, homens e mulheres, crianças e velhos,
que estavam sentados, tranqüilamente, olhando espantados para os cavalos e para os
espanhóis. Num segundo, não restam sobreviventes de todos os que ali se encontra-
vam. Entrando então na casa grande, que ficava ao lado, pois isso acontecia diante
da porta, os espanhóis começaram do mesmo jeito a matar a torto e direito todos os

64
Idem, p. 202.
65
Ibidem, p. 203.
66
LAS CASAS, citado por TODOROV, p. 204.
31

que ali se encontravam, tanto que o sangue corria de toda a parte, como se tivessem
67
matado um rebanho de vacas’ .

Por fim, outro relato, da expedição do navegador Vasco Nuñez de Balboa:

‘Assim como os açougueiros cortam em pedaços a carne dos bois e carnei-


ros para colocá-los à venda no açougue, os espanhóis cortavam de um só golpe o
traseiro de um, a coxa de outro, o ombro de um terceiro. Tratavam-nos como ani-
mais desprovidos de razão. (...) Vasco fez com que os cães despedaçassem uns qua-
68
renta deles’ .

Dentre os motivos pelos quais os atos foram praticados, um dos principais foi o desejo
de riquezas. Pois neste aspecto, o ouro proporcionava tudo: honra, nobreza, bens, família, lu-
xo, roupas, vingança sobre os inimigos e grande estima. Contudo, Todorov aponta que o dese-
jo de enriquecer não seria novo; esta paixão pelo ouro não teria nada de moderno. O que teria
necessariamente o caráter moderno seria a subordinação de todos os valores a este metal.
Como o conquistador aspirava a títulos de nobreza, de estima, para ele, tudo poderia ser obti-
do através do material. Assim, justamente esta homogeneização dos valores pelo dinheiro se-
ria um fato novo, anunciando a mentalidade moderna, igualitarista e economicista69.

Todavia, para Todorov, o desejo de enriquecer não explicaria tudo. Não se poderia
justificar o massacre de Caonao como uma cobiça qualquer, por exemplo. Seria como os con-
quistadores encontrassem um desejo de exercer poder sobre os outros, na demonstração de
sua capacidade de dar a morte, e certamente seria um erro limitar-se a termos afetivos como
“crueldade”.

Outro aspecto interessante é a distinção entre os objetivos das execuções de pessoas,


empregadas pelos astecas antes da conquista, e pelos espanhóis, durante a conquista. A distin-
ção ocorre pelo fato de que na religião asteca o sacrifício de seres humanos era elemento fun-
damental para o povo; esta sociedade valorizava o ritual, enquanto os espanhóis se caracteri-
zam por outro aspecto. Nesta linha, consoante Todorov, poderíamos opor dois modelos de
sociedade: as sociedades de sacrifício e as sociedades de massacre, constituindo-se como e-
xemplos os astecas e os espanhóis no século XVI, respectivamente70.

67
Ibidem, p. 204.
68
BALBOA, citado por TODOROV, p. 204.
69
TODOROV, p. 206.
70
Idem, p. 207.
32

Para Todorov, o sacrifício seria um assassinato religioso, em nome de uma ideologia


oficial, perpetrado em praça pública, à vista e conhecimento de todos. E a identidade do sacri-
ficado era restrita: não deveria ser estrangeiro demais, pois a carne de tribos distantes não era
comestível para seus deuses; porém não deveriam pertencer à mesma sociedade. Os sacrifica-
dos provinham de países limítrofes, que falavam a mesma língua, mas possuíam um governo
autônomo. O sacrificado era avaliado segundo suas qualidades pessoais: era apreciado o sacri-
fício de guerreiros valorosos, o que por outro lado os inválidos, por exemplo, eram considera-
dos impróprios para tal. O sacrifício ainda era executado em praça pública, evidenciando os
laços sociais e o predomínio do coletivo sobre o ser individual71.

O massacre, ao contrário, revelaria a fragilidade dos laços sociais, o desuso de princí-


pios morais que asseguravam a coesão do grupo; então, este seria executado de longe, onde a
lei dificilmente poderia incidir. Na América, para os espanhóis, longe da Espanha, por exem-
plo. Nesse sentido, o massacre estaria intimamente ligado às guerras coloniais, feitas longe da
metrópole. E quanto mais longínquos os massacrados, melhor: eram exterminados sem remor-
sos, assimilados mais ou menos a animais. A identidade individual do massacre seria, por de-
finição, não pertinente; se pertinente, tratar-se-ia de um assassinato: não havia tempo nem cu-
riosidade para saber quem se estaria matando naquele momento. Assim, ao contrário dos sa-
crifícios, os massacres nunca seriam reivindicados, e sua própria existência seria geralmente
mantida em segredo e negada. Isto ocorreria porque sua função social não seria reconhecida, e
se poderia ter a impressão de que o ato encontraria em si mesmo sua justificação: os sabres
seriam manejados pelo prazer de manejar os sabres; corta-se o nariz, a língua e o sexo do ín-
dio sem que o mínimo rito se manifeste no espírito do cortador de narizes72.

Desta forma, se no assassinato religioso tem-se um sacrifício, o massacre seria um as-


sassinato ateu. E para Todorov, parece que os espanhóis teriam inventado este tipo de violên-
cia, que seria abundante em nosso passado mais recente, quer seja no plano da violência indi-
vidual ou estatal. Como se tudo fosse permitido fora dos limites da lei real, não conservando
qualquer elemento de moralidade; não para revelar uma natureza primitiva, mas um ser mo-
derno. E esta barbárie, efetivamente, não possui nada de animalesca: “é bem humana e anun-
cia a chegada dos tempos modernos” 73.

71
Idem, p. 208.
72
Ibidem, p. 209.
73
Ibidem, p. 209.
33

1.1.5 Elementos jurídicos e político-ideológicos da conquista

Por fim, os elementos jurídicos e políticos da conquista. O que poderiam significar?


Qual a sua influência no processo de conquista da América? Estes fatores foram elementares
para a efetivação dos projetos de colonização e exploração. Pelo meio, tanto jurídico quanto
político, os colonizadores, religiosos e a Coroa espanhola puderam justificar a série de atos
perpetrados no seio da sociedade indígena.

Para fins de entendimento quanto a estes elementos, pode-se entender o elemento jurí-
dico – ou saber jurídico – como o instrumento justificador, produtor de uma norma fundada
em uma verdade construída, modelada, visando os objetivos almejados pela soberania euro-
péia: formas jurídicas produzindo um saber e exercendo um poder74. Um poder fundado em
uma norma imperativa e em uma verdade produzida, fabricada, que garantia a autoridade do
Rei da Espanha, incorporada pelos colonizadores. Ou seja, os instrumentos jurídicos serão os
meios legais produzidos para que o monarca e a religião cristã imponham sua vontade, sua
autoridade, por intermédio da figura do conquistador ou colonizador, que será a representação
do corpo do Rei e do corpo de Cristo.

No que concerne ao elemento político (ou saber político) no sentido ora abordado, po-
de-se entendê-lo como os meios utilizados através do discurso ideológico para justificar a in-
ferioridade dos indígenas e, por conseguinte, a possibilidade de sua subjugação, fazendo com
que esse discurso se propague e se constitua como uma realidade aceitável. É a política do
selvagem sub-humano, que necessita ser guiado na obediência ao Rei e na fé à Igreja.

Precisamente acerca do jurídico, na época das conquistas, o saber jurídico, tanto na


Espanha quanto em Portugal, ainda não possuía as características de um direito moderno. Não
havia instituições que fossem imparciais – no sentido jurídico – que seriam responsáveis pela
aplicação da lei. Seria o caso das Ordenações portuguesas, que não se constituíam como códi-
gos no sentido moderno, mas uma compilação de regras e costumes anteriores de forma es-
parsa, e que serviam de elemento legal para embasar a conquista. Gize-se que o Estado e a
Igreja se confundem, sendo o direito um produto da autoridade do rei e do poder eclesiásti-
co75.

74
Vide FOUCAULT, Michel. A verdade e as formas jurídicas. Rio de Janeiro: NAU, 2005.
75
CARVALHO, Lucas Borges de. Direito e barbárie na conquista da América indígena. Disponível em:
<http://www.buscalegis.ufsc.br/arquivos/direito%20e%20barb%E1rie.pdf>. Acesso em: 30 jan. 2008, p. 58.
34

Pode-se ressaltar dois tipos de normas que subsistiram na época. De um lado, havia
aquelas que autorizavam a guerra e a escravização dos ameríndios; de outro, as regras mais
“protetoras”.

No primeiro grupo, em 1493 foi criada a Bula Intercaetera, outorgada pelo Papa Ale-
xandre I. Chamada também de Bula de Participação, foi o primeiro documento jurídico relati-
vo à conquista, e atribuía total soberania, jurisdição e domínio à Coroa da Espanha sobre o
Novo Mundo. Em contrapartida, apenas se exigia que os reis difundissem a fé cristã entre os
povos nativos76.

Em 1514, o jurista e conselheiro dos reis católicos Palácios Rúbios elabora o chamado
Requerimiento77. É um dos mais importantes documentos jurídicos que garantia a intervenção
nas colônias, assim como a chamada guerra justa, em caso de resistência dos indígenas. A
justificativa do emprego de tal documento (que era lido diante dos nativos) era que Jesus Cris-
to era considerado o Senhor supremo de todas as terras e o “chefe da linhagem humana”. Je-
sus teria transferido a posse sobre o continente americano a São Pedro, que teria transmitido
por sua vez ao Papa, que por fim teria retransmitido aos reis católicos, Fernando de Aragão e
Isabel de Castela78. Este instrumento era lido a toda comunidade indígena prestes a ser inva-
dida; o Requerimiento informava ao povo sua condição de vassalos da Coroa, garantindo-lhes
a possibilidade de escolha: poderiam acatar a dominação de forma pacífica ou, ao contrário,
em caso de resistência, estava autorizada a guerra justa e a escravidão79.

Curiosamente, estes textos eram lidos sem qualquer intérprete, e muitas vezes os pró-
prios conquistadores dispensavam tal procedimento por questão de simplificação80. Enquanto
os espanhóis falavam, os indígenas apenas escutavam, sendo impelidos a suportar as conse-
qüências de uma suposta desobediência decorrente de sua incompreensão da linguagem do
outro. Ademais, o poder espiritual e o poder do homem conquistador são confundidos pela
conotação de que Deus está ao lado dos europeus e os indígenas, como inferiores, terão de
acatar as medidas.
76
Idem, p. 59.
77
Maiores detalhes sobre este instrumento jurídico do período da conquista constam na obra de PEREÑA, Luci-
ano. La Idea de Justicia en la Conquista de América. Madrid: Mapfre, 1992.
78
CARVALHO, Lucas Borges de. Op. cit., p. 59.
79
O conteúdo do documento era este: ‘Se não o fizerdes, ou se demorardes maliciosamente para tomar uma deci-
são, vos garanto que, com a ajuda de Deus, invadir-vos-ei poderosamente e far-vos-ei a guerra de todos os lados
e de todos os modos que puder, e sujeitar-vos-ei ao jugo e à obediência de Suas Altezas. Capturarei a vós, vossas
mulheres e filhos, e reduzir-vos-ei à escravidão. Escravos, vender-vos-ei e disporei de vós segundo as ordens de
Suas Altezas. Tomarei vossos bens e far-vos-ei todo o mal, todo o dano que puder, como convém a vassalos que
não obedecem a seu senhor, não querem recebê-lo, resistem a ele e o contradizem’. Citado por TODOROV, op.
cit., p. 213.
80
Idem, p. 214.
35

Outra questão pertinente em torno do Requerimiento era a possibilidade das “guerras


justas”. Esta idéia advinha dos estudos de Francisco de Vitória, teólogo, jurista e professor da
Universidade de Salamanca. Entre as razões para o emprego das guerras justas, poderiam ser
mencionados dois tipos: por um lado, na questão da reciprocidade, que seria aplicável a ín-
dios e espanhóis. Esta reciprocidade era também aplicada a partir do “direito natural de socie-
dade e de comunicação”81. Para esta doutrina, era natural que as pessoas pudessem circular
livremente fora de seu país de origem, devendo ser permitido a todos viajar ao país que qui-
sessem. Outro fundamento era a liberdade de comércio (também baseada na reciprocidade),
pois os príncipes indígenas não poderiam impelir seus vassalos de comerciarem com os espa-
nhóis e, inversamente, os príncipes espanhóis não poderiam proibir o comércio com os índios.
Havia também a noção de circulação de idéias, em que se partia da liberdade de se pregar o
evangelho para os índios82.

Por outro lado, tem-se outra noção que contribuirá para os fundamentos jurídicos da
conquista. Vitória considerava lícita uma intervenção se fosse feita em nome da proteção dos
inocentes contra a tirania dos chefes ou das leis indígenas, tirania esta que consistia, por e-
xemplo, ‘em sacrificar homens inocentes ou até mesmo executar homens não culpados para
comê-los’83.

Contudo, em realidade, como Todorov menciona, mesmo que esta regra fosse aplicada
de forma indiferente a índios e espanhóis, serão sempre estes últimos que decidem a conota-
ção da palavra tirania. Diferentemente dos indígenas, os espanhóis serão em um só corpo par-
te e juiz, porquanto eles escolhem os critérios segundo os quais o julgamento será pronuncia-
do; nesse sentido, eles decidem que o sacrifício é uma tirania, mas o massacre não84.

As justificativas para a intervenção, produzidas por Vitória, também possuíam como


base a necessidade do exercício do direito de tutela85, sob o fundamento de que os autóctones
seriam quase como loucos, incapazes de se governarem, etc. Nesse sentido, o aspecto da infe-
rioridade é também bem presente.

Outro elemento jurídico que servia como justificativa para a colonização foi criado a
partir dos ideários propostos tanto pela Bula de Participação quanto pelo Requerimiento. Era o
chamado regime de encomiendas. Em síntese, tratava-se de uma justificativa oficial para o

81
Idem, p. 215.
82
Ibidem, p. 215.
83
VITÓRIA, citado por TODOROV, p. 215.
84
Ibidem, p. 215.
85
Ibidem, p. 216.
36

implemento da escravidão. Os indígenas eram considerados livres, mas vassalos do rei, e de-
veriam pagar tributos. O indígena era encomendado – como escravo – e não pagava este tribu-
to diretamente ao seu senhor (que era o rei), mas ao encomendero, pessoa que usufruía deste
benefício, qual seja, o trabalho indígena, como recompensa dos serviços prestados à Coroa86.
E segundo a idéia do colonizador, nestes moldes a encomenda não era algo que implicava em
propriedade sobre os índios (que continuariam sendo vassalos livres) nem sobre suas terras.
Implicava apenas o usufruto de seu trabalho, obtido por produto de suas terras ou das proprie-
dades dos encomendeiros87. Até 1536, os índios eram outorgados em encomendas junto com
sua descendência, pelo prazo de duas vidas: a do encomendero e a do herdeiro imediato; a
partir de 1629, o regime estendeu-se por três vidas, e em 1704 chegou a quatro vidas nas loca-
lidades onde as Leis Novas (abordadas a seguir), sancionadas sob a pressão de Las Casas, não
foram adotadas88.

Por derradeiro, como havia sido descrito anteriormente, havia as legislações de cunho
mais escravagista e aquelas consideradas “a favor da liberdade dos índios”. Dentre estas, tem-
se a Lei de Burgos, promulgada em 1512, e as Leis Novas, de 1542. A Lei de Burgos, que era
composta de 35 artigos, demonstrava a “preocupação do Estado espanhol em cumprir os pro-
jetos de evangelização. Desta forma, era garantido o direito a bons tratos, alimentação ade-
quada e, ainda ao pagamento de um salário”89. Aliás, a evangelização dos índios e a instrução
dos filhos dos caciques passam a ser também tarefas obrigatórias para o encomendeiro.

Por sua vez, as Leis Novas, provenientes das atuações de Las Casas, visavam “prote-
ger a vida dos índios” e “frear o ímpeto demolidor e individualista dos conquistadores”90. Ti-
nham como objetivos a proibição de novas conquistas e o confisco de encomendas existentes.
No entanto, estas medidas não foram concretizadas, em razão da forte resistência por parte
dos encomendeiros, que inclusive realizavam motins. Logo após, criou-se um instituto jurídi-
co que permitia aos proprietários de escravos não acatarem a lei nova, havendo razões justifi-
cadoras. E mediante este dispositivo, a autoridade colonial poderia suspender o cumprimento
da lei da Coroa, cabendo ao rei homologar ou determinar o seu imediato cumprimento (o que
dificilmente ocorria). “Se acata pero no se cumple”91.

86
CARVALHO, Lucas Borges de. Op. cit., p. 60.
87
Idem, p. 60.
88
LAS CASAS, Bartolomé de. O Paraíso Destruído. Op. cit., p. 15.
89
CARVALHO, Lucas Borges de. Op. cit., p. 60.
90
Idem, p. 61.
91
Ibidem, p. 61.
37

No que tange ao elemento político-ideológico, aqui entendido como o discurso utiliza-


do para justificar a possibilidade de dominação, foi também o elemento preponderante. Ainda
que este ponto esteja de qualquer forma vinculado aos aspectos jurídicos (jurídico e político
são elementos ligados de certa forma), é pertinente referir que esta noção de inferioridade,
propagada entre as reuniões e na elaboração das leis, tinha claramente a tendência de apresen-
tar os indígenas como imperfeitamente humanos92. Nesse sentido, Todorov destaca dois tes-
temunhos: o primeiro, de um autor religioso; e o segundo, de um autor da área das letras e ci-
ências.

O primeiro é do dominicano Tomas Ortiz, que escreve ao Conselho das Índias:

‘Comem carne humana na terra firme. São sodomitas mais do que qualquer
outra nação. Não há justificativa entre eles. Andam completamente nus. Não respei-
tam nem o amor nem a virgindade. São estúpidos e tontos. Só respeitam a verdade
quando lhes é favorável; são inconstantes. Não fazem idéia do que seja a previdên-
cia. São muito ingratos e amantes das novidades. (...) São brutais. Gostam de exage-
rar seus defeitos. Não há entre eles nenhuma obediência, nenhuma complacência dos
jovens para com os velhos, dos filhos para com os pais. São incapazes de receber li-
ções. Os castigos de nada adiantam. (...) Comem piolhos, aranhas e vermes, sem co-
zê-los, e onde quer que os encontrem. Não praticam nenhuma das artes, nenhuma
das indústrias humanas. Quando se lhes ensinam os mistérios da religião, dizem que
essas coisas convêm aos castelhanos, mas não valem nada para eles e que não que-
rem mudar seus costumes. Não têm barba e, se porventura cresce, arrancam-na e de-
pilam-na. (...) Quanto mais envelhecem, piores ficam. Lá pelos dez ou doze anos,
pensamos que terão alguma civilidade, alguma virtude, porém, mais tarde transfor-
mam-se em verdadeiras bestas brutas. Assim posso afirmar que Deus nunca criou
raça mais cheia de vícios e de bestialidade, sem mistura alguma de bondade e de cul-
tura. (...) Os índios são mais idiotas do que os asnos, e não querem fazer esforço no
93
que quer que seja’ .

O segundo autor é de um historiador chamado Oviedo:

‘Quando se guerreia contra eles e se combate face a face, é preciso ser mui-
to prudente para não atingi-los na cabeça com a espada, pois vi muitas espadas se-
94
rem quebradas desse modo. Seus crânios são espessos e também muito fortes’ .

E adiante:

92
TODOROV, op. cit., p. 217.
93
ORTIZ, citado por TODOROV, p. 218.
94
OVIEDO, citado por TODOROV, p. 219.
38

‘Satã agora foi expulso dessa ilha [Hispaniola]; toda a sua influência desa-
pareceu agora que a maioria dos índios está morta. (...) Quem pode negar que usar a
95
pólvora contra os pagãos é oferecer incenso ao Nosso Senhor?’ .

Portanto, constata-se que a idéia índios/espanhóis, animais/humanos era o elemento


discursivo-político mais corrente, o que justificavam as ações perpetradas durante a conquista,
tanto por parte dos evangelizadores, quanto pelos colonizadores.

Por fim, interessante também salientar que na época houve muitos debates entre os
partidários da igualdade e os defensores da desigualdade dos indígenas e dos espanhóis. Nesse
sentido, podem-se citar as exposições do filósofo Gines de Sepúlveda e do Frei Bartolomé de
Las Casas, em 155096. O primeiro reconhecia a desigualdade como estado natural da socieda-
de humana, e sendo certo que os índios eram povos bárbaros – sem fé, sem lei, e ainda sacrifi-
cavam vidas humanas em cultos satânicos – era justo que os mesmos fossem dominados. Com
efeito, os conquistadores poderiam recorrer à violência para impor a dominação, visto que a
conquista era um ato de paz, justiça, oferecendo ao bárbaro as benesses da vida civilizada97.

De outro lado, Las Casas adotava uma perspectiva assimilacionista, não se opondo à
colonização em si, mas apenas aos métodos empregados, que eram violentos. A tese proposta
por Las Casas almejava tão somente substituir a conquista realizada pela violência – assassi-
natos e matanças – por outras formas mais brandas, mais humanas e mais eficazes para con-
verter os nativos à fé cristã98. É a diferenciação entre duas propostas. O escravismo, de um
lado, e o colonialismo de outro. No entanto, um aspecto é sempre presente: a necessidade de
submissão da América à Espanha e dos índios à religião cristã, o que demonstra que a violên-
cia em si subsistia. O que mudaria seriam as técnicas empregadas para a domesticalização e
exploração, mediante a imposição, seja por violência física, seja por uma violência sutil e
obscura.

Diante desses instrumentos jurídicos e políticos brevemente delineados, pode-se per-


ceber como a conquista foi ganhando forma, pela tomada do saber (com Colombo, mas prin-
cipalmente com Cortez) e a conseqüente instauração do exercício do poder. E os resquícios da
conquista certamente produziram efeitos até hoje, como atestam os massacres do século XX.
Assim, estes fatores históricos são o parâmetro necessário para compreender o que ainda esta-
rá por vir neste estudo sobre o genocídio, o etnocídio e o massacre de Haximu.
95
Idem, p. 219.
96
TODOROV, p. 219.
97
CARVALHO, Lucas Borges de. Op. cit., p. 64.
98
Idem, p. 65.
39

1.2 PARA O BRASIL, ORDEM E PROGRESSO: COLONIZAÇÃO, NEOCOLONI-


ZAÇÃO E POLÍTICA INDIGENISTA BRASILEIRA

A partir deste momento passa-se a seguir para mais perto do contexto atual, que irá re-
sultar no estudo dos crimes contra grupos étnicos e o massacre de Haximu. É a colonização e
a neocolonização que se instauram no Brasil. Este tópico será breve, pois muitas questões tra-
tadas na conquista da América são plenamente identificáveis também nesta realidade do con-
tinente americano: negação do outro, escravismo, extermínio cultural e físico, utilização do
saber jurídico e absorção do saber do outro (cultura, hostilidades entre tribos, etc) para a im-
plantação, a imposição, o exercício do poder pelo colonizador e neocolonizador.

Necessário tratar brevemente dos Séculos XVI a até o início do século XX, bem como
suas políticas indigenistas respectivas. Por isso atribuiu-se o título colonização (que se inicia
no Século XVI) e neocolonização (que se inicia no Século XVIII), cujas implicações surtirão
efeitos até final do Século XX e na realidade presente (Século XXI).

Estima-se que no Brasil havia milhões de habitantes quando os primeiros europeus


chegaram há 500 anos (nada distinto do que ocorreu na conquista da América Central e espe-
cificamente do México). Há cinco séculos as torturas, doenças e a exploração vêm devastando
povos que não aderem ao sistema produtivo e aos costumes dominantes. Atualmente no Brasil
a população indígena é situada na faixa de 350 mil habitantes99. Assim, apresentar uma breve
contextualização, agora neste País, é medida obrigatória para continuar o estudo.

Sabe-se que toda a área hoje habitada pelos “civilizados” no Brasil, onde se construí-
ram as cidades e plantações, foi conquistada em detrimento dos indígenas. Em estudo de auto-
ria de Julio Cezar Melatti100, verifica-se que no período colonial a luta entre colonizadores e
indígenas se fazia com a permissão do Governo metropolitano e até com a utilização de suas
tropas. Após a independência do Brasil, o Estado não mais permitiu a luta contra os índios,
que continuou, no entanto, sendo travada por iniciativa dos particulares.

Em todas as regiões de avanço dos colonizadores, a maior parte das tribos indígenas
desapareceu. E as poucas que restam até hoje estão em lugares que os “civilizados” ainda não
alcançaram ou só recentemente estão alcançando101.

99
Survival International. Deserdados. 2000, p. 01.
100
MELATTI, Julio Cezar. Índios do Brasil. 7ª ed. São Paulo: UNB, 1993.
101
Idem, p. 179.
40

No primeiro Século de conquista (Século XVI), os indígenas do litoral leste e sudeste


do Brasil entraram em conflito com os brancos. Estes não somente desejavam se apropriar das
terras para desenvolver as lavouras de cana-de-açúcar, mas se apoderar dos próprios indíge-
nas, transformando-os em escravos, fenômeno semelhante ao ocorrido no México. Nesta épo-
ca, começa a desaparecer a faixa litorânea dos índios do tronco Tupi que a habitavam, restan-
do hoje apenas os Pitiguára, no litoral da Paraíba, como seus últimos representantes102.

No século seguinte, o XVII, a economia brasileira, ainda dominada pela lavoura, in-
dústria da cana-de-açúcar e pelo gado, avançava pelo interior do Nordeste e pelo Rio São
Francisco; para seguir esta expansão, moviam-se lutas contra tribos que habitavam a região,
as quais eram dizimadas. O Governo português promovia a ocupação do Maranhão e do Pará,
e combates sangrentos davam-se entre brancos e índios. No Sul, os Paulistas começavam a
realizar expedições contra os índios do interior, com o objetivo de obter escravos103. Para tan-
to, a ação colonizadora no sudeste, por exemplo, é bem descrita pelas informações a seguir:

...os paulistas havião desenvolvido extrema actividade em cativar os genti-


os, exercendo sobre eles uma verdadeira caçada, e chegarão nas suas excursões até
os campos ao Norte de Guarapuava, e missões de Guayrá, onde os apreenderão por
104
milhares, que vinhão vender mesmo ao Rio de Janeiro .

No Século XVIII, a economia brasileira caracterizou-se pela exploração do ouro, ocor-


rendo a luta entre os “civilizados” e os índios que habitavam as regiões auríferas (Minas Ge-
rais, Goiás, Mato Grosso). Nessa época, começam a desaparecer os Kayapó do Sul, que habi-
tavam a região meridional de Goiás e o Triângulo Mineiro. No Maranhão, os criadores de ga-
do invadiam as terras dos índios Timbira105.

Já no Século XIX, os criadores de gado continuaram as invasões, avançando pelo cen-


tro do Brasil, em luta contra os índios Xavante e os Kayapó.

Neste período, igualmente ao que ocorreu nas conquistas espanholas, o grande fator de
extermínio deu-se devido às doenças sobre as quais os indígenas não possuíam proteção. En-
fermidades como gripe, sarampo, catapora, que para nós seriam algo corriqueiro, causam
grandes perdas de população, uma vez que se trata de doenças trazidas de fora para o conti-

102
Idem, p. 180.
103
Ibidem, p. 180.
104
MALHEIRO, Agostinho Marques Perdigão. A Escravidão no Brasil. Ensaio Histórico-Jurídico-Social. Rio
de Janeiro: Typographia Nacional, 1866, p. 53.
105
MELATTI, Julio Cezar. Op. cit., p. 180.
41

nente americano e que os organismos indígenas não tinham nenhuma resistência. Pode-se
mencionar ainda doenças mais graves, como a pneumonia, a varíola e a tuberculose. Nos pri-
meiros tempos da conquista, quando os missionários reuniam indígenas de vários locais a um
só aldeamento para facilitar a catequese, o surto de qualquer uma dessas doenças era desastro-
so, pois a reunião deles facilitava o contágio. As epidemias de varíola, entre 1562 e 1563 na
Bahia, mataram muitos indígenas que eram aldeados desta forma106.

No tocante à política indigenista utilizada para a sujeição dos indígenas, cada período
da história político-institucional do Brasil traz elementos introduzidos pelas políticas anterio-
res, juntamente com elementos novos. Para compreender isto, necessário estabelecer uma
breve distinção no tocante às ações efetuadas no período colonial, no período imperial e no
período republicano.

No período colonial, a Coroa portuguesa oscila entre os interesses dos colonos, que
desejavam escravizar os indígenas, e os esforços dos missionários, que tinham como objetivo
convertê-los ao cristianismo e ao mesmo tempo fazer com que os indígenas adotassem os cos-
tumes dos civilizados. Inclusive uma das primeiras disposições do Governo português, no re-
gimento trazido pelo Governo-Geral do Brasil, já continha esta contradição. O regimento pre-
conizava que a conversão dos indígenas constituía o motivo do povoamento do Brasil, reco-
mendando que fossem bem tratados e que, se sofressem algum dano, lhes fosse concedida a
reparação, punindo-se os responsáveis. No entanto, o mesmo documento permitia que se
combatesse os índios que agissem como inimigos, que os matassem e fossem feitos prisionei-
ros.

Neste período, o binarismo amigo/pacificado e inimigo/feroz é característico do pro-


cesso expansionista e colonizador. Os primeiros, convertidos na fé cristã e tornados força de
trabalho no processo econômico da época, muitas vezes tratados de forma pior do que os es-
cravos, eram considerados bons, merecedores de tratamento bondoso e pacífico; gize-se que
neste aspecto os indígenas tornados aliados foram atores significativos no processo de con-
quista, pois eram considerados aliados em caso de eventual batalha contra estrangeiros ou ou-
tros indígenas. Os segundos, que se insurgiam quanto ao processo de expropriação e evangeli-
zação ou praticavam hostilidades aos portugueses, sofriam as conseqüências do poder coloni-

106
Idem, p. 180.
42

al, como a guerra justa (fenômeno semelhante à conquista da América), a partir da qual se jus-
tificava a escravização; além disso, eram considerados bárbaros, ferozes e violentos107.

Ainda com relação à escravização, em face da fome da qual os indígenas foram alvo,
aqueles que não eram escravos eram obrigados a se submeter. Na Bahia, em 1564, houve o
seguinte episódio, citado por Manuela Carneiro da Cunha:

‘nesta fome tão desumana, não acabavam os males com os que morriam:
porque os vivos das aldeias vizinhas à cidade, levados do aperto, chegavam a ven-
der-se a si mesmos por cousas de comer. Houve tal, que entregou sua liberdade por
uma só cuia de farinha para livrar a vida: outros se alugavam para servir toda a vida,
ou parte dela: outros vendiam os próprios filhos que geraram; outros aos que não ge-
raram, fingindo-se seus; a tudo isso persuade a dura fome, e necessidade (Vasconce-
108
los, 1977, vol. 2: 101-102)’ .

Neste sentido, verifica-se que a justificativa do benefício da lei aos indígenas era uma
afirmação falsa, uma vez que a natureza dos dispositivos jurídicos dependia da influência que
os jesuítas ou colonos conseguiam sobre o Governo.

No período imperial, após a independência (1822) continuam a vigorar as legislações


anteriores. Somente durante o período regencial, em 1831, revogaram-se as legislações de
1808 e 1809, que haviam declarado guerra a certas tribos (no tocante a possibilidade de escra-
vização e extermínio)109. Contudo, os indígenas foram colocados à mesma proteção legal dos
órfãos. No ano de 1843, o Governo autoriza a vinda de missionários capuchinos para o Brasil,
e em 1845, outro Decreto dispunha sobre a instrução cívica e religiosa dos índios, sua inicia-
ção nas artes e ofícios dos “civilizados”, a fiscalização sobre a maneira como eram emprega-
dos como trabalhadores e o esforço para fixar as tribos nômades. Os indígenas passam a ser
inseridos no serviço militar, ainda que facultativamente110. Verifica-se, neste processo, uma
modificação da violência física, expressa, para a violência silenciosa, realizada a partir da su-
avização das técnicas de dominação aos grupos étnicos. Da força, da guerra, passa-se à instru-

107
Mais detalhes acerca da política indigenista neste período encontra-se na obra de Manuela Carneiro da Cunha,
em CUNHA, Manuela Carneiro da. História dos Índios no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 2006, p.
115-131.
108
VASCONCELOS, citado por CUNHA, Manuela Carneiro da. Antropologia do Brasil. São Paulo: Brasiliense,
1986, p. 151.
109
Ressalte-se que a escravização não é extinta totalmente: até a metade do século XIX, com as expansões em
Minas Gerais, Espírito Santo, e Rio Grande do Sul, grupos de brasileiros assaltavam aldeias à noite e tomavam
índios escravos. A caça prosseguia nas capitanias no norte, Pará e região do Amazonas. Vide PEREÑA, Luciano.
Genocidio en América. Op. cit., p. 374.
110
MELATTI, Julio Cezar. Op. cit., p. 188.
43

ção, à educação do outro a partir do saber europeu, integrando-o aos seus costumes e ao seu
modelo de Estado.

No período republicano, final do século XIX e início do Século XX, o Governo não
mais se interessava em promover o trabalho missionário; contudo, não causou obstáculo à a-
tuação dos evangelizadores que, por sua iniciativa, buscassem catequizar os indígenas111. O
século XIX, marcado pelas descobertas e teorias das ciências naturais, transporta este tipo de
discurso às tribos indígenas: é o momento em que se discute a sua humanidade ou animalida-
de (no sentido cientifico da época); em conseqüência se discute a possibilidade/necessidade
de civilizá-los ou exterminá-los112. Carlos Augusto Valle Evangelista destaca que

O paradigma evolucionista guiou por muito tempo tanto o pensamento an-


tropológico como as correntes do pensamento social brasileiro. Dentro de tal pensa-
mento, os índios desapareceriam em um breve espaço de tempo. A extinção pairava
sobre essas comunidades. Não totalmente desvencilhado desse pensamento, nos me-
ados do século XX, veremos que a proposta de integração do índio pela antropologia
brasileira dava caminho diferente para o mesmo desfecho. A integração total do ín-
dio à comunidade nacional povoou o imaginário antropológico até quase nossos di-
as. Ela tem, ainda em seu bojo, toda a carga de transfiguração ou de homogeneiza-
113
ção que tanto se desejou para a população brasileira .

Outro acontecimento marcante neste período é a criação do Serviço de Proteção aos


Índios e Localização de Trabalhadores Rurais (SPILTN), em 1910. Esta instituição inaugura
um novo tipo de política indigenista, de encobrimento do outro: os indígenas passam a ter o
direito de viver segundo suas tradições, sem abandoná-las necessariamente. Com o choque
entre os índios e de outro lado os “civilizados”, que penetravam nos territórios, o SPILTN to-
ma providências no sentido de pacificar as tribos indígenas que estavam se chocando com os
brancos. Mantendo o paradigma evolucionista e a visão de integração, visava-se amenizar os
impactos do processo civilizatório, tido como uma conseqüência inevitável. Assim, o desapa-
recimento do indígena aconteceria com a adaptação ou assimilação deles à comunidade na-
cional114.

A criação do SPILTN ocorre em 20 de junho de 1910, pelo Decreto n. 8.072, como


parte integrante do Ministério da Agricultura, Indústria e Comércio, resultado de projeto en-

111
Idem, pg. 189.
112
EVANGELISTA, Carlos Augusto Valle. Direitos indígenas: o debate na constituinte de 1988. Disponível
em: <http://www1.capes.gov.br/teses/pt/2004_mest_ufrj_carlos_augusto_vale_evangelista.pdf>. Acesso em: 30
jan. 2008, p. 19.
113
Idem, p. 19.
114
Ibidem, p. 19.
44

caminhado pelo Ministro Rodolfo Miranda ao Presidente Nilo Peçanha. Nasce diante de um
Ministério sem grande força política, pois em contraposição aos cafeicultores, teria como con-
seqüência a destinação de poucos recursos a esse Ministério. A presença militar dentro do SPI
era outra característica do programa de proteção. Além da proteção aos índios, tinha como
função o recrutamento de trabalhadores nacionais, composto principalmente por antigos es-
cravos, por meio de fixação no campo de mão-de-obra rural e treinamento dos mesmos115.

Neste período ainda se concretiza a laicização da educação, casamento e outras institu-


ições; e isso se estende às populações indígenas, através da adoção do caráter protetor e não
catequizador do decreto de criação do SPILTN. Este período caracteriza-se pela penetração
econômica, na qual se estava ampliando a ocupação do território brasileiro, e que, por conse-
guinte, criava novas zonas de tensão entre índios e brancos. Ao Estado era exigida ação contra
insegurança nos investimentos da colonização destes novos espaços, bem como a recuperação
da sua imagem no plano internacional, após denúncia em Viena (1908) sobre o massacre de
indígenas116.

Na criação do SPILTN, contava-se com fatores favoráveis em relação ao projeto que


visava se implantar, tais como: a) a continuidade de estratégias utilizadas, no contato com ín-
dios arredios, pela Comissão de Linhas Telegráficas; b) a experiência no sertão de seus fun-
cionários; c) a formação ideológica com base na filosofia positivista e do movimento republi-
cano, acreditando-se na missão cívica que a história havia lhes reservado; d) por serem milita-
res em sua maioria, representariam simbolicamente a lei, ausente no sertão; e) a reputação e
prestígio que desfrutava Cândido Rondon117.

O Decreto 8.072, como primeiro ato da República a regulamentar a situação jurídica


do índio brasileiro, estabelecia os seguintes objetivos: a) fazer com que os índios estivessem
sob o cuidado do Estado, para assegurar-lhes proteção e resistência e b) tornar segura a ex-
pansão econômica118. Na lição de Carlos Augusto Valle Evangelista:

Dois objetivos seriam difíceis de se efetivar se não fosse pelo viés integra-
cionista, como falado anteriormente. A tarefa mais imediata do órgão era contatar os
índios que resistiam nas novas zonas de conflito. É curioso, neste sentido, que o de-
creto conte com dispositivos que ao mesmo tempo em que garantiam a posse de ter-
ra aos índios, e direcionavam-se, pelos menos formalmente, para a defesa destes,
poderiam também removê-los da zona de conflito.

115
Idem, p. 21.
116
Ibidem, p. 21.
117
Ibidem, p. 21.
118
Ibidem, p. 22.
45

Ainda neste decreto, se previa a substituição dos aldeamentos por povoa-


ções indígenas, que teriam em suas estruturas: escolas de ensino primário, aulas de
músicas, oficinas, máquinas e utensílios agrícolas. Estrutura necessária para assimi-
lação destes grupos. Dividia as populações indígenas em: nômades, aldeados e em
contato com a civilização. Todas as três categorias gozariam dos direitos previstos
em lei, sendo que aos índios nômades se pretendia estabelecer relações amigáveis e
119
aos aldeados reconhecer-lhes o direito à posse da terra .

Com o Código Civil de 1916 definindo a incapacidade, o indígena é equiparado a in-


capaz e merecedor de tutela especial do Estado. Porém foi somente o Decreto n. 5.484/28 que
extinguiu a tutela orfanológica instituída na época do Império. E no interstício entre estes dois
atos, o SPILTN divide-se e passa a denominar-se apenas SPI120. Este decreto mencionado
classificou a população indígena em nômades, aldeados, pertencentes a povoações indígenas e
aqueles em contato com a civilização. Somente estes três últimos seriam alvo da tutela estatal.
Este decreto ainda previa que a catequização poderia ser feita, desde que por iniciativa parti-
cular121.

Em 1934, o SPI passa a sofrer mudanças internamente, fazendo parte do Ministério da


Guerra e em 1939 do Ministério da Agricultura. Quando o SPI esteve como parte do Ministé-
rio da Guerra, visava-se a proteção das fronteiras, onde o indígena era necessário por suas
qualidades físicas e adaptabilidade ao clima. A educação incluía a transmissão de deveres cí-
vicos, exercícios físicos, educação moral e cívica, culto à bandeira e canto dos hinos. Inclusi-
ve estes elementos morais e nacionalistas estavam presentes no sistema educacional na épo-
ca122.

Quando o SPI esteve ligado ao Ministério da Agricultura, foi criado o Conselho Na-
cional de Proteção aos Índios, que funcionaria junto ao SPI, e que se encarregaria das funções
executivas, o que na prática não ocorreu123.

Em 1967, com a propagação de informações sobre práticas de corrupção e genocídio


pelo Estado brasileiro, principalmente no âmbito internacional, o Ministro do Interior, Gene-
ral Albuquerque Lima propõe ao Procurador-Geral Jader Figueiredo a extinção do SPI, substi-
tuindo-o pela FUNAI (Fundação Nacional do Índio), para executar a tutela do Estado sobre os
povos indígenas no território nacional, mantendo ainda uma atuação integracionista para a
região amazônica e se caracterizando mais por conter situações emergenciais do que pela im-

119
Idem, p. 22.
120
Ibidem, p. 22.
121
Ibidem, p. 22.
122
Ibidem, p. 23.
123
Ibidem, p. 23.
46

plementação de um planejamento sólido e a longo prazo, bem como pelas posturas distintas
dos administradores do órgão124.

No período de 1970 a 1974, durante a gestão do General Oscar Jerônimo Bandeira de


Melo, foi encaminhado ao Congresso Nacional a Lei 6.001, promulgada em 1973 (Estatuto do
Índio), consistindo em uma estratégia visando reverter a imagem do país no plano internacio-
nal, demonstrando preocupação com os povos indígenas. Este estatuto surge em um período
de autoritarismo, onde se excluía todos os setores da sociedade na elaboração das políticas
sociais125. O período da gestão militar foi caracterizado pela abertura das terras indígenas aos
interesses econômicos nacionais e internacionais.

Com o advento da Constituição de 1988, cuidou-se de regular a matéria relativa aos


direitos dos povos indígenas nos arts. 231 e 232. As prerrogativas estabelecidas pela Constitu-
ição foram: a) o reconhecimento das organizações indígenas como parte legítima para ingres-
sar em juízo em defesa dos seus direitos; b) o reconhecimento da diversidade cultural existen-
te no Brasil, a partir do reconhecimento das diversas línguas e culturas indígenas; c) educação
diferenciada para cada povo indígena; d) reconhecimento do direito à posse da terra; e) a exi-
gência de autorização do Congresso Nacional para a exploração mineral em áreas indígenas;
f) a proteção e a demarcação das terras como obrigação do Estado; g) a nulidade dos atos que
tenham como objeto o domínio ou a posse de terras indígenas126.

Contudo, em que pese a Constituinte de 88 ter recepcionado direitos aos povos indíge-
nas, ainda não descartou a possibilidade de utilização de suas terras para exploração mineral,
o que é tema de muita controvérsia127. E os preceitos basilares estabelecidos na Carta Magna
não foram implementados de fato, sendo que ao final da década de 80 e no transcorrer da dé-
cada de 90 até os dias atuais seguem as políticas de execração dos povos originários, seja pelo
setor público ou privado.

A partir destes períodos da História do Brasil e suas políticas de integração, desde a


colônia, passando pelo período imperial, o regime republicano, ditatorial e com a Constituição
de 88, é presente a mutação dos processos de inclusão e submissão dos povos originários ao
planejamento político do Estado, passando do escravagismo até a integração das etnias ao
projeto expansionista econômico mediante a incorporação do saber central (o saber dito civi-
124
Idem, p. 23-25.
125
Ibidem, p. 27.
126
Ibidem, p. 70.
127
Atualmente, na questão relativa à TI Raposa Serra do Sol, a situação é preocupante. Há 26 áreas de garimpo
ilegal de diamante, e 800 processos de requisição de autorização para a pesquisa de mineração neste território
indígena. Disponível em: <www.noticiasdaamazonia.com.br>. Acesso em: 13 nov. 2008.
47

lizado), o que ocorria inclusive pelas legislações ditas “protetivas”, e resultando em conflitos
entre particulares e indígenas, com a complacência estatal. O saber jurídico, institucionalizado
pelo Estado Monárquico, Republicano, Ditatorial e posteriormente pelo “Democrático”, mo-
difica as técnicas de controle, em especial formas jurídicas de produção de uma verdade, for-
jada a partir do cunho ideológico vigente. Os problemas relativos à terra, fome e violência de-
correntes de conflitos e exclusão pelo próprio corpo social continuam a subsistir, causando
perigo e risco de destruição de etnias.

1.3 BRASIL: MODERNIZAÇÃO, GLOBALIZAÇÃO = EXTINÇÃO

Compreender o processo de modernização é mais uma das chaves para entender o con-
junto de práticas que revestem a realidade presente. A idéia de modernidade, em síntese, refe-
re-se à idéia de novo, avançado, racional. Tal concepção é responsável pelo fenômeno da glo-
balização, tão presente na realidade atual, e que ainda possui em seu bojo o processo moder-
nizador.

Em uma reflexão acerca deste processo de modernização, Zygmunt Bauman128, refe-


rindo-se ao advento da Era Moderna, esclarece que

...o advento da era moderna significou, entre outras coisas, o ataque consci-
ente e sistemático dos “assentados”, convertidos ao modo sedentário de vida, contra
os povos e o estilo de vida nômades, completamente alheios às preocupações territo-
riais e de fronteiras do emergente Estado Moderno.
(...)
Os nômades, que faziam pouco das preocupações territoriais dos legislado-
res e ostensivamente desrespeitavam seus zelosos esforços em traçar fronteiras, fo-
ram colocados entre os principais vilões na guerra santa travada em nome do pro-
gresso e da civilização. A “cronopolítica” moderna os situa não apenas como seres
inferiores e primitivos, “subdesenvolvidos” e necessitados de profunda reforma e es-
clarecimento, mas também como atrasados e “aquém dos tempos”, vítimas da “defa-
sagem cultural”, arrastando-se nos degraus mais baixos da escala evolutiva, e imper-
doavelmente lentos ou morbidamente relutantes em subir nela, para seguir o “padrão
universal de desenvolvimento”.

Pelas descrições feitas, corroboradas ainda pelas informações vertidas nos tópicos an-
teriores, verifica-se que o homem moderno, a partir de sua concepção de mundo, veio à Amé-
rica com o propósito de aniquilar tudo que não fosse identificado consigo mesmo. As implica-
128
BAUMAN, Zygmunt. Modernidade Líquida. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001, p. 19-20.
48

ções do processo expansionista e colonizador não trouxeram apenas o desejo de riqueza e


prestígio: trouxeram ainda uma perspectiva, por parte deste homem, de um ideal de saber, de
um ideal de constituição da sociedade, a expansão de seus valores e o extermínio da cultura
alheia, justificando-se em face da sua superioridade. De fato, Colombo não imaginava que
todo o seu desejo de pregação dos valores europeus, do homem moderno, chegariam a estar
tão arraigados como hoje.

Mas para compreender todo este processo de modernização, necessário tecer alguns
aspectos basilares, notadamente em torno da noção de colonialidade do poder, tema abordado
pelo autor Aníbal Quijano129. De importância para este trabalho, a reflexão deste autor defen-
de a tese de que a atual globalização é resultante de um processo que se iniciou com a consti-
tuição da América e do capitalismo colonial/moderno e eurocentrado, um novo padrão de po-
der mundial. Um dos seus eixos fundamentais seria a idéia de raça130, construção mental que
expressaria a dominação colonial que desde então permeia as dimensões do poder mundial,
contribuindo ainda para este processo a sua racionalidade que lhe é específica, o chamado eu-
rocentrismo. Para tanto, este eixo de estudo, que compreende a constituição do capitalismo
moderno a partir do eurocentrismo e da noção de raça, perfaz-se em uma genealogia do pro-
cesso colonial, que se constitui em um padrão de colonialidade do poder até hoje hegemônico.

Em primeiro lugar, a idéia de raça na América foi uma forma de legitimar as relações
de dominação impostas pela conquista. A constituição da Europa e a expansão do colonialis-
mo europeu até a América e outras regiões conduziram a uma interpretação eurocêntrica do
mundo, tendo construído a idéia de raça como um fenômeno natural das relações coloniais de
dominação entre europeus e não-europeus131.

Em segundo lugar, com o capitalismo mundial que passa a emergir, a Europa não so-
mente tinha controle do mercado mundial, mas conseguiu impor seu domínio colonial em to-
das as regiões do planeta, incorporando-a ao seu sistema-mundo e ao seu padrão de poder. E
no processo que levou a este resultado, os principais fatores contribuintes foram: a) a expro-
priação das populações colonizadas, em benefício do capitalismo do centro europeu (poden-
do-se inserir principalmente a tomada de territórios); e b) a imposição da cultura dos domina-

129
QUIJANO, Aníbal. Colonialidade do poder, eurocentrismo e América Latina. Disponível em:
<http://bibliotecavirtual.clacso.org.ar/ar/libros/lander/pt/Quijano.rtf>. Acesso em: 30 jan. 2008.
130
Como exemplo característico deste pensamento, pode-se citar os trabalhos e Nina Rodrigues, que disserta,
dentre outros aspectos, sobre uma incapacidade orgânica por parte dos aborígenes de adaptação social, sendo
considerados “raças inferiores”. Vide RODRIGUES, Nina. As raças humanas e responsabilidade penal no Bra-
sil. Rio de Janeiro: Guanabara, 1891, p. 34-35.
131
QUIJANO, Aníbal. Op. cit., p. 04.
49

dores em tudo que fosse útil para a reprodução da dominação, notadamente no campo da ati-
vidade religiosa. A partir destes procedimentos, desenvolveu-se o chamado etnocentrismo132 e
a classificação racial universal. Neste sentido, os europeus eram considerados naturalmente
superiores aos demais povos do mundo, em especial frente aos colonizados133.

Com base nos fundamentos expostos, pode-se iniciar esta reflexão acerca da moderni-
dade, do processo de modernização. Os europeus imaginavam a realidade a partir deste siste-
ma de pensamento, o que os levou a pensarem-se como os modernos da humanidade, e sua
história como a mais avançada da espécie. Isto ocorreu pelo fato de que eles foram capazes de
difundir e estabelecer esta perspectiva histórica como algo hegemônico dentro do padrão
mundial de poder134.

Contudo, cabe ressaltar que este processo de modernização não foi uma patente euro-
péia, embora tenha sido reproduzida de forma mais significativa por esta cultura. Além do
antigo mundo heleno-germânico, havia forte influência islâmico-judaica, ramos que trouxe-
ram a mercantilização da força de trabalho e a relação capital-salário, que foram incorporados
pelo ideal europeu135.

No entanto, pode-se atribuir um conceito de modernidade novo no atual sistema-


mundo. Justifica-se isto pelo fato de que o atual padrão de poder mundial é o primeiro efeti-
vamente propagado em escala global na história, produzindo mudanças em todas as relações
sociais ao redor do globo. Esta imposição adveio do processo de ascensão do capitalismo, que
põe como regra geral nas relações sociais a exploração, a dominação e a degradação dos de-
mais modos de vida em prol da expansão econômica. A modernidade, portanto, é também
uma questão de conflito de interesses sociais, a partir do qual imperou o eurocentrismo136. No
momento em que esta modernização passa a tomar efeitos planetários, alcançando as partes
mais remotas do planeta, a quase totalidade da produção e do consumo humanos se tornam
mediados pelo dinheiro e pelo mercado. Assim, a mercantilização, a comercialização e a mo-

132
Quando a sociedade e a cultura a qual pertence um indivíduo é entendida como a única verdadeira e é utiliza-
da como a medida de todas as coisas, implicando o não reconhecimento de outros povos e culturas, se estará
diante do etnocentrismo. Vide CALEFFI, Paula. “O que é ser índio hoje?” A questão indígena na América Lati-
na/Brasil no início do Século XXI. Disponível em: <http://redalyc.uaemex.mx/redalyc/pdf/162/16200702.pdf>.
Acesso em: 10 fev. 2008.
133
Idem, p. 06.
134
Ibidem, p. 06.
135
Ibidem, p. 06.
136
Ibidem, p. 13.
50

netarização dos modos de subsistência dos seres humanos penetraram em muitos recantos do
globo terrestre137.

Com base nestas perspectivas, o mundo europeu ingressa na realidade latino-


americana, incorporando-se e estabelecendo a imposição do processo civilizador138. Os não-
europeus, não modernos, com o tempo serão modernizados. O homem moderno, durante a
imposição da civilização aos “des-civilizados”, buscará expandir-se como se fosse o único, o
eternamente novo, imagem a qual todos deverão aceitar o padrão dominante e serem subjuga-
dos, execrando culturas e modos de viver distintos. Como refere Bauman, “a existência é mo-
derna na medida em que é guiada pela premência de projetar o que de outra forma não esta-
ria lá: de projetar a si mesma”139.

1.3.1 O processo de modernização e atual globalização: produção da sociedade do


risco

De fato, a mente moderna surge com a idéia de que o mundo pode ser transformado.
Esta modernidade refere-se à rejeição do mundo tal como ele tem sido até agora e à decisão
de transformá-lo. A forma de ser moderna possui uma mudança compulsiva, obsessiva: refu-
ta-se o que meramente é, para que seja dado lugar ao que poderia – ou deveria – ser posto em
substituição a este é. Trata-se de um mundo que possui o desejo e a determinação de constan-
temente se refazer, um permanente movimento. Diante disto, a escolha será modernizar-se ou
perecer140. Uma espécie de condução compulsiva e viciosa de projetos modernizadores, um
estado de perpétua emergência141.

Outro fenômeno que é característico da modernidade, do processo de modernização: a


produção do refugo humano. Os seres humanos não reconhecidos como tais configuram-se
como o produto inevitável da modernização. É o efeito colateral da construção da ordem –
que define quais parcelas da população serão deslocadas, inaptas ou indesejáveis – e do pro-
gresso econômico – que não pode se concretizar sem degradar ou desvalorizar os modos ante-

137
BAUMAN, Zygmunt. Vidas desperdiçadas. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2005, p. 13.
138
Com relação ao processo civilizador, vide ELIAS, Norbert. O Processo Civilizador. Vol. 2. Rio de Janeiro:
Jorge Zahar, 2008.
139
BAUMAN, Zygmunt. Modernidade e Ambivalência. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1999, p. 15.
140
BAUMAN, Zygmunt. Vidas desperdiçadas. Op. cit., p. 34.
141
Idem, p. 41.
51

riores de vida142. Bauman ressalta que o modelo típico de pessoa excluída é o denominado
homo sacer de Giorgio Agamben143, uma categoria do antigo direito romano que era estabele-
cida fora da condição de ser humano sem ser trazida para o meio da lei divina. A vida de um
homo sacer não possui valor, seja na perspectiva humana ou divina. Privada da lei humana e
divina, sua vida é inútil. Na versão atual, Bauman salienta que o homo sacer se constitui como
a principal categoria de refugo humano estabelecido no curso da produção de domínios sobe-
ranos144.

Contudo, o que relaciona esta produção de excedentes humanos, de dejetos improduti-


vos, com a incorporação de outras etnias e o processo de modernização? A era moderna foi
caracterizada como o período de grandes migrações. O extermínio de povos indígenas foi uma
conseqüência da abertura de novos espaços para os excedentes populacionais da Europa, pre-
parando estes locais como depósitos do refugo humano produzido pelo progresso econômico.
Theodore Roosevelt, antigo presidente dos Estados Unidos, apresentava o extermínio dos po-
vos indígenas norte-americanos como um serviço altruísta, que era prestado em defesa da ci-
vilização145. A expansão econômica, condição do processo de modernização, se espalhará pe-
los locais mais remotos, exterminando todas as formas de vida remanescentes que, com suas
culturas originárias, não faziam parte da sociedade do capital.

Por fim, outro elemento que caracteriza esta modernização é a necessidade de assimi-
lação. Na forma literal, assimilar significa tornar semelhante a. Nos estudos biológicos do sé-
culo XVI significava a absorção e incorporação realizados por organismos vivos146. E este
processo se reforça com o Estado moderno, que busca eliminar organizações sociais distintas,
promovendo uma espécie de uniformidade147, método bem característico das medidas expan-
sionistas da época do Brasil colonial e neocolonial, e que perdura até hoje. Substituir o estado
natural das coisas por uma ordem artificialmente planejada: eis a função do programa políti-
co liberal, do projeto civilizador148, da razão governamental149 (ou seja, como conduzir a po-

142
Idem, p. 12.
143
Conforme os estudos de Agamben, o homo sacer era uma figura existente no direito romano, indivíduo que
poderia ser executado por qualquer pessoa; uma espécie de assassinato permitido. A impunidade de sua morte
era um dos elementos que caracterizavam o homo sacer. Vide AGAMBEN, Giorgio. Homo sacer – o poder so-
berano e a vida nua I. Belo Horizonte: UFMG, 2002, p. 79-81.
144
BAUMAN, Zygmunt. Vidas desperdiçadas. Op. cit., p. 44.
145
Idem, p. 51.
146
BAUMAN, Zygmunt. Modernidade e Ambivalência. Op. cit., p. 115.
147
Idem, p. 117.
148
Ibidem, p. 118-119.
149
Este conceito é trabalhado por Foucault, que busca traçar os aspectos concernentes à condução das vidas, das
populações. Vide FOUCAULT, Michel. Segurança, Território, População. São Paulo. Martins Fontes, 2008.
52

pulação de determinada forma na produção de um saber uno e na instauração de um poder


totalizante).

Com base nestas exposições anteriores, pode-se dizer que as etnias que não se consti-
tuem como corpo produtivo, quando se integram totalmente no nosso sistema global pagam
com suas terras, com a perda de suas identidades culturais e muitas vezes com suas vidas. E o
que irá contribuir para isto será a modernização, com seu efeito mais atual: a globalização.
Esta se define como

a intensificação das relações sociais em escala mundial, que ligam localida-


des distantes de tal maneira que acontecimentos locais são modelados por eventos
150
ocorrendo a muitas milhas de distância e vice-versa .

A adaptação de todo o planeta ao mercado livre reconhece apenas como fundamento


moral os valores gerados pelas necessidades desta globalização151. Isto tem por efeito a devas-
tação de florestas e de modos de cultura originariamente mantidas há gerações, fomentando
um contínuo processo de inserção de etnias a serem expoliadas, proletarizadas e por fim ex-
cluídas pela mesma causa que as incorporou (a modernização). A América Latina vem so-
frendo ajustes estruturais mortais para pagar as dívidas contraídas por ocasião da construção
de grandes obras como Grande Carajás, do Polonoroeste, que submergiu mais de 30 mil indí-
genas da Amazônia. Obras faraônicas – muitas vezes sem estudo de viabilidade ambiental e
até mesmo ocultando a existência de povos originários na localidade – vêm destruindo modos
de vida milenares152, mediante a remoção local ou a inserção destas etnias diversas dentre os
excluídos urbanos, mortos-vivos da globalização.

Darcy Ribeiro, abordando sobre como ocorre o processo a que denomina de transfigu-
ração étnica, assevera que os índios Agavotokueng, por exemplo, que se encontram nas nas-
centes do rio Xingu, sofrem com o efeito da bolsa de Nova York ou a paz e guerra entre Esta-
dos longínquos. Isto ocorre devido à cotação internacional da borracha, da castanha e de al-
guns artigos florestais, fato este que faz avançar ou refluir ondas de seringais e castanheiros
que vão desalojando tribos vizinhas e lançando-as sobre as aldeias desse povo153.

150
GIDDENS, Anthony. As conseqüências da modernidade. São Paulo: UNESP, 1991, p. 69.
151
PERRAULT, Giles. O Livro Negro do Capitalismo. 4ª ed. Rio de Janeiro: Record, 2005, p. 465.
152
Idem, p. 473.
153
RIBEIRO, Darcy. Os Índios e a Civilização. São Paulo: Companhia das Letras, 2005, p. 295.
53

O modelo globalizado caracteriza-se pelo seu ataque de forma oculta: não se sabe co-
mo, onde, quando ou a quem será dirigido o próximo ato que deverá remover os “empecilhos
humanos” ou o refugo humano que já se incorporou no sistema de proletarização, mas não
consegue sobreviver a esta continuação de modelo excludente. É a extensão totalizante a to-
dos os aspectos da vida154. E neste modelo globalizado, em que o processo de modernização é
constantemente circulante, a noção de risco é de suma importância155. Boaventura Souza San-
tos, com base nos estudos de Ulrich Beck, caracteriza a sociedade do risco como um perigo
externo, fenômeno global, que escapa à percepção humana; e os impactos provenientes das
situações de risco não escolhem grupos específicos: incidem sobre a existência humana, em
escala global156. Poder-se-ia tomar como exemplo a questão da sustentabilidade ambiental;
contudo, este risco não está restrito a este aspecto: também pode estar associado à desagrega-
ção de grupos sociais e práticas sociais. Eis mais um efeito do processo de modernização me-
diante a extensão do processo globalizante: o agravamento do risco social na contemporanei-
dade.

Esta concepção de risco social possui uma importância salutar. Tendo em vista que a
modernização agora globalizada busca se instaurar sobre todas as relações, sobre todos os se-
res humanos, um dos alvos certamente será a incorporação de etnias que mantêm estruturas
sociais originárias, como os povos indígenas. Focalizando o aspecto do risco social para estes
povos, pode-se inferir que devido a sua fragilidade frente ao processo modernizante, estes po-
vos deverão ser assimilados (incorporados) de qualquer maneira, buscando não apenas reali-
zar expropriações constantes, mas execrar suas culturas e inseri-los nos mecanismos de poder
da razão governamental modernizante157 (nas camadas pobres das zonas colonizadas, trans-
formando-os de incluídos a excluídos). A noção de risco, neste aspecto, denota-se a partir do
fato de que estes grupos étnicos são constantemente ameaçados por este tipo de invasão mo-
dernizante global. Sua condição diante desta conjuntura é de vulnerabilidade, tanto cultural
quanto no que se refere à preservação de suas próprias vidas.

Com base nestas informações, buscou-se explanar aspectos importantes do processo


de modernização que gerou a atual globalização, e como estes fenômenos intrinsecamente re-
lacionados influem na produção de exclusão social, procedimento ao qual muitos grupos étni-

154
BAUMAN, Zygmunt. Globalização: as conseqüências humanas. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1999, p. 73.
155
Com relação à sociedade do risco, vide BECK, Ulrich. La sociedad del riesgo. Barcelona: Paidós, 1998.
156
SANTOS, Boaventura de Sousa. A Globalização e as Ciências Sociais. 2ª ed. São Paulo: Cortez, 2002, p.
199.
157
Pode-se exemplificar a partir dos métodos de condução da população, como evangelização, expropriação,
inclusão em atividades de trabalho, até mesmo escravo, etc.
54

cos de culturas originárias são constantemente ameaçados, seja pela incorporação forçada,
seja pelo efetivo extermínio previamente deliberado.

1.3.2 A expansão econômica: o colonialismo interno

Hannah Arendt, em sua obra A Condição Humana, traz as seguintes palavras sobre o
trabalho do chamado homo faber:

A fabricação, que é o trabalho do homo faber, consiste em reificação. A so-


lidez, inerente a todas as coisas, até mesmo às mais frágeis, resulta do material que
foi trabalhado; mas esse mesmo material não é simplesmente dado e disponível, co-
mo os frutos do campo e das árvores, que podemos colher ou deixar em paz sem que
com isso alteremos o reino da natureza. O material já é um produto das mãos huma-
nas que o retiraram de sua natural localização, seja matando um processo vital, como
o caso da árvore que tem que ser destruída para que se obtenha a madeira, seja inter-
rompendo algum dos processos mais lentos da natureza, como no caso do ferro, da
pedra ou do mármore, arrancados do ventre da terra. Este elemento de violação e de
violência está presente em todo processo de fabricação, e o homo faber, criador do
158
artifício humano, sempre foi um destruidor da natureza .

Novamente, acerca do homem que fabrica, produz, a autora menciona:

Na medida em que é homo faber, o homem “instrumentaliza”; e este em-


prego das coisas como instrumentos implica em rebaixar todas as coisas à categoria
de meios e acarreta a perda do seu valor intrínseco e independente; e chega um pon-
to em que não somente os objetos da fabricação, mas também a ‘terra em geral e to-
das as forças da natureza’ – que evidentemente foram criadas sem o auxílio do ho-
mem e possuem uma existência independente do mundo humano – perdem seu valor
159
por não serem dotadas de reificação resultante do trabalho .

Por certo, a partir do instante em que o homo faber descobriu sua capacidade de trans-
formação dos objetos, desenvolveu também sua capacidade de transformação da natureza, do
seu meio, para a consecução dos produtos almejados. O minério e o diamante extraídos da
terra, por exemplo, transformam-se em material de valor vultuoso na economia do mercado.
A partir deste momento, a relação comercial e lucrativa do homem com o mundo natural tor-
na-se a mais intensa e a mais destruidora.

158
ARENDT, Hannah. A Condição Humana. 10ª ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2007, p. 152.
159
Idem, p. 169.
55

A atividade de mineração é exemplo muito característico das formas modernizantes de


destruição. Com relação à natureza e as formas de se criar o novo, Bauman traz à tona a ale-
goria da agricultura e da mineração, do autor Lewis Mumford160. Para este autor, a agricultura
busca devolver o que o homem extrai da terra. Ao contrário, a mineração é destrutiva: o que
se retirou da pedreira ou do poço de mina não pode ser substituído. Portanto, a mineração a-
presenta-se como a imagem da descontinuidade humana, hoje presente, amanhã desaparecida;
ora fervilhante de ganhos e hora exaurida e vazia161. Desta forma, as modernas formas de criar
(ou destruir) foram moldadas segundo o padrão de mineração.

Se a agricultura apresenta uma continuidade (o grão é substituído por outros, o cres-


cimento sem perdas, a eterna continuidade dos seres), a mineração será a ruptura, a desconti-
nuidade. O novo que é almejado não poderá nascer sem que algo seja descartado, destruído. O
novo será criado no curso de uma dissonância entre o produto-alvo e o que está no caminho.
Os metais puros somente poderão ser obtidos quando se remove a escória e o borralho do mi-
nério. Cada ponto em que ela atravessa seria um ponto sem retorno, irreversível162. E tal modo
de manejar a natureza se constituiu como um dos meios mais rentáveis de gerar prestígio,
movimentar a economia e alimentar o sonho de riqueza aos trabalhadores do garimpo, o que
não difere das promessas dos grandes navegadores aos seus companheiros na época da con-
quista do Novo Mundo. Contudo, esta busca pelo metal precioso terá um preço: o que não é
proveitoso deve ser extirpado, exterminado, seja a natureza em si, enquanto fauna e flora, ou
até mesmo o homem que nela vive com sua cultura. É o que este tópico trata, pois se insere no
contexto a partir do qual ocorreu o massacre de Haximu.

A utilização de recursos minerais cresce principalmente a partir da Revolução Indus-


trial, nos séculos XVIII e XIX163. Mas na região da Amazônia especificamente, é ao final do
século XX que surge forte crescimento do setor do minério informal, com o surgimento do
garimpo, que consiste na exploração do ouro em forma artesanal. Utilizando de mão-de-obra
intensiva, a atividade trouxe um contingente de trabalhadores marginalizados pelo processo
sócio-econômico do País, provenientes de outras regiões, buscando encontrar um modo de

160
BAUMAN, Zygmunt. Vidas desperdiçadas. Op. cit., p. 30.
161
Idem, p. 30.
162
Ibidem, p. 31.
163
VILLAS BÔAS, Hariessa Cristina. Mineração em terras indígenas: à procura de um marco legal. Disponível
em: <http://www.cetem.gov.br/publicacao/livros/mineracao_terras_indigenas.pdf>. Acesso em: 30 jan. 2008, p.
111.
56

sobrevivência164. Assim, o garimpo levou a pobreza, o refugo humano produzido em diversas


partes do Brasil, e que os aglomerados urbanos não conseguiam integrar no mercado das me-
trópoles, para dentro das florestas: o colonialismo interno da região Amazônica inicia, e irá se
deparar com um obstáculo: as etnias residentes na floresta.

As conseqüências que este processo desencadeou foram a degradação ambiental, a


inserção de doenças e violência para os habitantes das florestas. A atividade garimpeira, por
exemplo, utiliza o mercúrio na purificação do ouro. Este processo é conhecido como amalga-
mação. Misturando-o com o material coletado, o mercúrio adere ao ouro, e forma um amál-
gama. Posteriormente, este amálgama é aquecido e o mercúrio vaporizado, o que gera o ouro
puro165. Nesse sentido, existem dois tipos de mercúrio: o metilmercúrio (forma orgânica), e o
mercúrio metálico, vaporizável. O mercúrio metálico é absorvido pela via respiratória quando
da vaporização. Por sua vez, o metilmercúrio se acumula nos peixes e outros animais silves-
tres, geralmente absorvido pela via digestiva166. Portanto, a contaminação por mercúrio causa
graves danos ao organismo humano.

Com o advento dos colonizadores internos167, também houve a disseminação da malá-


ria, devido ao aumento da população e precárias condições sanitárias do garimpo168. Mas na
chegada do homem-mercado na floresta através deste colonialismo interno, além destes mo-
dos de violência, também se trouxe os conflitos e massacres, violências físicas, mediante ex-
termínio de povos, atos oriundos de hostilidades entre os neocolonizadores (geralmente ga-
rimpeiros) e os indígenas.

1.3.3 A resultante da produção invasora e modernizadora: a violência

Existem muitas formas de violência. Este fator conseqüente do projeto ideológico-


modernizador possui muitas faces, além do seu caráter instrumental169. A partir dos aponta-

164
JUNIOR, José Luiz Jaborandy. Principais problemas da Amazônia brasileira com repercussão internacional
– seus riscos para a soberania do Brasil e para a segurança hemisférica. Disponível em:
<http://library.jid.org/en/thesis/Jaborandy.pdf>. Acesso em: 14 fev. 2008, p. 41.
165
Idem, p. 43.
166
Ibidem, p. 43.
167
Pode-se conceituá-los como aqueles provenientes de aglomerados urbanos de outros Estados do Brasil, não
integrados no processo econômico da metrópole, e que buscavam na floresta uma possibilidade de riqueza.
168
JUNIOR, José Luiz Jaborandy. Op. cit., p. 44.
169
Hannah Arendt refere em sua obra sobre a violência: “A violência é por natureza instrumental; como todos os
meios, ela sempre depende da orientação e da justificação pelo fim que almeja. E aquilo que necessita de justifi-
57

mentos do autor Nilo Odalia170, a violência pode ser definida como uma privação. E esta pri-
vação, para tanto, pode ser de várias formas: a) a violência física, que atinge diretamente o
homem, seja naquilo que ele possui (seu corpo, seus bens), ou até mesmo naquilo que ele
mais ama (sua família, amigos, ou até mesmo seu povo); b) a violência institucionalizada, que
se dá a partir de desigualdade social, do sofrimento, da dor, da produção da indiferença pelos
outros, impondo a ausência de qualquer sentimento de solidariedade, admitindo que esta indi-
ferença é uma relação natural; c) a violência social, que atinge de forma seletiva certos seg-
mentos da população (os mais vulneráveis) e que se apresenta como uma condição necessária
para o futuro da sociedade – como a distinção entre pobres e ricos e a discriminação racial e a
poluição ambiental; d) a violência política (assassinato político, invasão de um País sobre ou-
tro, ou até mesmo leis que visam violar determinados segmentos da sociedade, grupos sociais
e políticos); e e) a violência revolucionária, que ocorre em uma busca de modificação de um
contexto sócio-político, empregando técnicas de privação dos indivíduos, de violência.

Podemos referir que os tipos mais presentes de violência que se apresentam no contato
do homem modernizador com os grupos étnicos distintos são a violência física, institucionali-
zada, social e política171.

Afora todos os outros povos que sofreram com a violência na História da constituição
do Estado Brasileiro, o povo Cinta-Larga foi um dos alvos deste processo de expansão mo-
dernizadora, sofrendo principalmente violências físicas e ao mesmo tempo as praticando.

As informações mais precisas sobre os Cinta-Larga vieram da Comissão Rondon, em


maio de 1915; um dos empreendimentos que notabilizou esta Comissão foi a chamada Expe-
dição Roosevelt-Rondon, que buscava atender os interesses do ex-presidente norte-americano,
buscando obter exemplares para um Museu de New York172.

Em 1928, um bando de seringueiros, chefiados por Julio Lopes e sob o comando do


peruano Alejandro Lopes (seringalista que dominava o Rio Aripuanã), efetuou o massacre de

cação por outra coisa não pode ser a essência de nada”. ARENDT, Hannah. Sobre a Violência. 3ª ed. Rio de Ja-
neiro: Relume Dumará, 2001, p. 40-41.
170
ODALIA, Nilo. O que é violência? São Paulo: Brasiliense, 2004.
171
Contudo, é de ressaltar que a violência revolucionária também atingiu etinas. Pode-se citar como exemplo a
Revolução Comunista na Nicarágua, em que as tropas do exército popular sandinista, além de assassinar indíge-
nas, praticaram a integração forçada de tribos e deslocamento destas populações para o interior do País, pois a
Revolução não deveria comportar exceções. Para mais informações a respeito, vide COURTOIS, Stéphane. O
Livro Negro do Comunismo. 4ª ed. Rio de Janeiro: Betrand Brasil, 2005, p. 794.
172
CURI, Melissa Volpato. Mineração em terras indígenas: caso terra indígena Roosevelt. Disponível em:
<http://libdigi.unicamp.br/document/?code=vtls000375632>. Acesso em: 10 fev. 2008, p. 123.
58

uma aldeia de indígenas chamados Iamé. O caso foi levado ao Serviço de Proteção ao Índio,
que realizou um inquérito com poucos resultados173.

Na década de 50, ocorrem grandes invasões do território dos Cinta-Larga por empre-
endimentos de mineração e seringalistas; na década de 60, os conflitos se agravam com a
construção da rodovia Cuiabá-Porto Velho (BR 364). Representando obstáculo ao “desenvol-
vimento”, os cinta-larga foram alvo de “operações de limpeza”, organizadas notadamente pelo
empreendimento Arruda e Junqueira, que explorava seringais e pesquisava ouro e diamantes
na região174.

No ano de 1963, ocorre um massacre de grande repercussão, inclusive internacional.


Trata-se do Massacre do Paralelo 11, que veio a atestar a prática de genocídio no Brasil. O
episódio veio a público quando um dos participantes do delito, Atayde Pereira dos Santos, em
razão de não ter recebido o pagamento prometido, comparece à sede da Inspetoria do SPI em
Cuiabá/MS para noticiar o caso e apontar os mandantes. No depoimento de Atayde, a expedi-
ção teria partido em julho de 1963 da sede da Arruda e Junqueira, sendo um dos donos o se-
ringalista Antônio Mascarenhas Junqueira, o mandante. Tendo andado mais de dois meses
pela mata, seguindo as picadas dos Cinta-Larga e abastecidos de alimentos e munição jogados
de aviões, o grupo encontrou os indígenas às margens do Rio Aripuanã, à altura do Paralelo
11. Ainda de acordo com Atayde, o extermínio teria ocorrido de forma cruel, executando ho-
mens, mulheres e crianças175. Frise-se que o extermínio teria sido iniciado mediante o arre-
messo de dinamite na aldeia, com a posterior invasão por terra. Em 1975, um dos executores
do crime, José Duarte do Prado, recebeu sentença de 10 anos, mas foi perdoado ainda no
mesmo ano176.

Nesta mesma década aumentam as pressões sobre este povo, o que levou o SPI a or-
ganizar expedições de “pacificação”, visando neutralizar a resistência dos indígenas à invasão
de suas terras177.

Passados os anos, em abril de 2004 foi objeto de repercussão a chacina de 29 garim-


peiros por índios Cinta-Larga na TI Roosevelt, habitada por estes. Com a apuração judicial do
ocorrido, os indígenas defenderam-se das acusações da mídia (principalmente local), referin-
do que estavam defendendo seu território, suas mulheres e crianças. Também haviam denún-

173
Idem, p. 123.
174
Ibidem, p. 124.
175
Ibidem, p. 124.
176
Survival International. Deserdados. Op. cit., p. 15.
177
CURI, Melissa Volpato. Op. cit., p. 125.
59

cias de que políticos da região, empresários e membros da imprensa teriam incitado a invasão
à TI Roosevelt178.

A razão governamental produz ainda as mais variadas formas de violência, de priva-


ção, no que tange à sua relação com grupos de distinta etnia. É surpreendente a gama de fatos,
de causas das mais diversas, relacionadas às formas de violência anteriormente expostas (des-
de a física até a política) que contribuem para o extermínio de etnias. Os relatórios de violên-
cia contra povos indígenas (período de 2003 a 2005), provenientes de estudos do CIMI (Con-
selho Indigenista Missionário), apontam diversas outras formas de violência, tais como a) vio-
lências decorrentes de conflitos relativos a direitos territoriais; b) violências contra a pessoa
por particulares e agentes do Poder Público; c) violências provocadas por omissões do poder
público e d) violências contra povos indígenas isolados e de pouco contato179.

No tocante às violências decorrentes de conflitos relativos a direitos territoriais, tem-se


como fatores determinantes: a) invasões possessórias, exploração ilegal de recursos naturais e
danos diversos ao patrimônio; b) danos ambientais e biológicos em terras indígenas e c) vio-
lências contra o patrimônio – descumprimento de prazos de demarcação de terras indígenas.

Quanto às violências contra a pessoa por particulares e agentes do Poder Público, têm-
se como fatores mais relevantes os assassinatos e tentativas de assassinato de indígenas, ho-
micídios culposos, ameaças de morte e outras formas de ameaça, lesões corporais, racismo e
discriminações étnico-culturais, violências sexuais e apropriações indébitas.

Na seara das violências provocadas por omissões do poder público, têm-se os suicídios
e tentativas de suicídio, desassistência à saúde (inclusive com mortes), mortalidade infantil,
mortes de crianças por desnutrição, desassistência na área de educação, disseminação de be-
bidas alcoólicas e desassistência à produção agrícola.

Por fim, temos as violências contra povos indígenas isolados e de pouco contato, que
são as mais graves – ainda que as demais possuam gravidade extrema. Esta forma de violên-
cia vem rondando tanto povos isolados quanto àqueles em contato recente com a civilização,
ameaçando-os de extinção, principalmente na região amazônica.

Recentemente, foi publicado o relatório de violência contra os povos indígenas, do pe-


ríodo de 2006 a 2007, atestando que as diversas formas de privação ainda continuam. A situa-
ção do povo Guarani-Kaiowá, por exemplo, é delicada. Os estudos recentes do CIMI apon-
178
Idem, p. 125.
179
A íntegra do relatório de violência contra os povos indígenas do Brasil consta no site:
<http://www.cimi.org.br/pub/publicacoes/1149024839_1.pdf>. Acesso em: 25 ago. 2008.
60

tam que a situação do povo Guarani-Kaiowá permanece igual àquela retratada no relatório “A
Violência contra os Povos Indígenas no Brasil - 2003-2005”; os dados recentemente coletados
mostram que o projeto genocida continua em curso no Estado do Mato Grosso do Sul: este
Estado, de acordo com o CIMI, possui o maior número de vítimas de assassinato, tentativas
de assassinato, suicídios; índices ainda altos de desnutrição, mortalidade infantil, alcoolismo,
agressões e ameaças. Indígenas morrem por atropelamentos, mendigam nas cidades, sofrem
violências sexuais, são presos e vivem em meio a grandes plantações (cana, soja, milho) e pe-
cuária extensiva; e com a contaminação das fontes de água com agrotóxicos, são provocadas
doenças, não deixando espaço para a agricultura familiar180.

Destes aspectos, pode-se entender como as diversas formas de violência, característi-


cas do processo modernizador, afetam os grupos étnicos distintos. Deste estudo, fica a refle-
xão sobre como o atual sistema-mundo atua. Estes estudos até agora realizados têm suma im-
portância, pois contribuem para compreender o contexto de Haximu e mais do que isso: com-
preender nossa constituição como sujeitos-produto da modernidade e integrantes deste com-
plexo social ao qual vivemos, e como aqueles que não aceitam as regras desta sistemática pa-
recem não possuir espaço para permanecer, tampouco direito de existir.

180
O relatório da Violência contra os Povos Indígenas no Brasil - 2006-2007 consta no site:
<http://www.cimi.org.br/pub/publicacoes/1208873764_1%20Relat%20Violencia%20-%202006-2007-
%20Abertura%20e%20Cap%20I.pdf>. Acesso em: 25 ago. 2008.
61

CAPÍTULO II – DAS PRÁTICAS CONTRA GRUPOS HUMANOS E SUA IDENTI-


DADE CULTURAL

“O que de fato aconteceu no curso do processo civilizador foi a reutilização


da violência e a redistribuição do acesso à violência. Como tantas outras coisas que
fomos treinados a abominar e detestar, a violência foi retirada da vista, não da exis-
181
tência”. (Zigmunt Bauman – Modernidade e Holocausto)

2.1 DO GENOCÍDIO: EXTERMÍNIO DE UM POVO

O extermínio de povos é um fenômeno antigo. Sabe-se que a antiguidade é marcada


por conquistas e massacres de povos inteiros. Os motivos sempre foram os mais variados: ó-
dios nacionais, religiosos, raciais, políticos, desejo de dominação, vingança.

São muitos os exemplos: a destruição de Cartago no ano 146 a.C.; de Jerusalém por
Tito, no ano de 72 d.C.; as Cruzadas; os massacres completos nas guerras empreendidas por
Gengis Khan, dentre outros182.

Passados os séculos, os massacres ainda subsistem, com contornos distintos devido à


progressão tecnológica e à continuidade dos conflitos. O genocídio armênio, a morte de mi-
lhares de ucranianos arquitetada pelo regime stalinista, o extermínio de judeus e ciganos na
Alemanha nazista, a bomba de Hiroshima, a guerra no Vietnã, a guerra na Argélia, os genocí-
dios em Ruanda, a fome em Biafra e o extermínio de indígenas nos Estados Unidos – este úl-
timo desenvolvido pela expansão capitalista, mediante limpezas étnicas183 – são alguns dos
vários exemplos de crimes de lesa humanidade perpetrados no âmago do processo civilizató-
rio e modernizante.

O enfoque no presente estudo busca abordar a questão específica do massacre de Ha-


ximu e toda a sua conjuntura. Após toda a explanação do capítulo anterior, desde a coloniza-
ção até o atual processo modernizador, pode-se vislumbrar que o fenômeno genocida está
contido no âmago desta modernidade. Trata-se de elemento que não deixou de ser útil para as
conquistas passadas e atuais. O crime de genocídio foi fator preponderante para ultrapassar

181
BAUMAN, Zygmunt. Modernidade e Holocausto. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998, p. 114.
182
RAMELLA, Pablo A. Crimes contra a Humanidade. Rio de Janeiro: Forense, 1987, p. 34.
183
Para mais detalhes sobre os extermínios propagados na expansão capitalista norte-americana, vide GALKIN,
Alexandr A. Genocidio. Moscou: Progreso, 1986.
62

fronteiras, impor a cultura do vencedor, escravizar e exterminar. E na fase da integração do


homem ao processo de modernização, o genocídio não se constitui mais como elemento ape-
nas para a conquista do reino ou das tribos, massacres e escravagismo mediante a coloniza-
ção, como se pôde ver na América e no Brasil colonial: agora, com o colonialismo interno, o
genocídio será elemento intrínseco da produção do homem integrante do mercado, e todos os
povos que se constituírem como barreiras deverão se modernizar, tornando-se corpo produti-
vo, razão única para a existência do homem com base nesta ideologia.

Mas para continuar com esta abordagem, é necessário traçar um breve estudo dos deli-
tos de genocídio e etnocídio na sua acepção jurídica.

2.1.1 O processo de normatização do delito no plano internacional

Etimologicamente, a palavra genocídio possui algumas divergências quanto ao seu


sentido. Para Nelson Hungria, empregando a linguagem latina, a palavra adviria de genus (ra-
ça, povo, nação) e excidium (destruição, ruína)184. Francisco Laplaza advoga que o termo mais
adequado seria o genticídio, que derivaria de gens (raça, estirpe, país, povo, família). Com
isso, se expressaria o sentido técnico da palavra, indicando grupo ou uma pluralidade de pes-
soas ligadas por pertencer a uma mesma raça, estirpe ou povo, bem como a ação, a capacidade
de dar a morte com o intuito de exterminar uma coletividade, pois o objeto do delito seria a
gens, identificado por todos e cada um dos integrantes de determinado grupo. Ademais, tratar-
se-ia de avocar os interesses fundamentais da humanidade que estão na repressão a este delito,
quando se fala em gens humana, ou seja, o gênero humano185.

Já para Rafael Lemkin, tratar-se-ia de um termo híbrido, que derivaria de genos (raça,
nação ou tribo) e do sufixo latino cidio (matar)186. Com relação ao presente estudo, adotar-se-
á este último, não obstante as importantes justificativas apresentadas por Laplaza.

O fundador desta espécie de delito foi Rafael Lemkin, jurista de origem polonesa.
Muito antes do advento do Holocausto, esse autor já defendia a necessidade de se reprimir a
destruição de coletividades raciais, religiosas ou sociais como um delito de caráter universal,

184
LAPLAZA, Francisco P. El Delito de Genocidio o Genticidio. Buenos Aires: Arayú, 1954, p. 64.
185
Idem, p. 65.
186
TORRES, Luís Wanderley. Crimes de Guerra e Crimes contra a Humanidade. São Paulo: 1955, p. 53.
63

aplicável a todos os povos187. Na V Conferência Internacional para a Unificação do Direito


Penal, realizada em 1933 em Madrid, Lemkin apresentou um projeto de convenção para re-
primir determinadas ações, que seriam o delito de barbárie, ou também identificado como
atentado contra a vida, integridade física, liberdade e dignidade de uma pessoa pertencente a
uma determinada coletividade. E com a denominação de delito de vandalismo identificou a
destruição de obras culturais e artísticas em situações semelhantes188.

No ano de 1944, em plena Segunda Guerra Mundial e pelos atos cometidos durante o
nazismo, Lemkin estuda sobre a ocupação da Europa pelos Países do Eixo. Após, aborda sua
concepção de genocídio, que seria a destruição de uma nação ou grupo étnico, mediante um
plano de ações com o fim de praticar tal desintegração. Ademais, ressaltava que o campo do
genocídio não seria levado a cabo contra indivíduos em razão de suas qualidades pessoais,
mas simplesmente por pertencerem a um grupo189.

No processo inicial de normatização do genocídio, pode-se elencar dois antecedentes


que marcaram os primeiros debates desta espécie de crime no âmbito jurídico: por primeiro, o
acordo de Londres, estabelecido em 8 de agosto de 1945 pelos Estados Unidos, União Sovié-
tica, Inglaterra e França, para julgar os oficiais nazistas. Estes eram acusados por crimes de
guerra, crimes contra a paz e crimes contra a humanidade, sendo este o primeiro esquema para
a formulação do delito de genocídio190. O artigo 6º da Carta de Londres definia os delitos con-
tra a humanidade como

assassinatos, exterminação, redução à escravatura, deportação, e outros atos


inumanos cometidos contra qualquer agrupamento civil antes ou durante a guerra,
ou perseguições por motivos políticos, raciais, ou religiosos, em execução ou em co-
191
nexão com qualquer crime, etc .

De fato, o julgamento dos crimes cometidos pelos oficiais do III Reich ocorreu, e os
acusados, na sua maioria, foram executados ou condenados à prisão perpétua, em que pese as
grandes controvérsias sobre a constituição do Tribunal de Nuremberg (um Tribunal de Exce-
ção) no sentido de que se caracterizava mais como uma medida de vingança pelas potências
vencedoras da guerra, o que se constitui como fato histórico. Por outro lado, não se trata de

187
Idem, p. 54.
188
Ibidem, p. 54.
189
TERNON, Yves. Op. cit., p. 15.
190
LAPLAZA, Francisco P. Op. cit., p. 50-52.
191
Carta de Londres citado por TORRES, Luís Wanderley. Op. cit., p. 55.
64

absolver os atos nefastos perpetrados pelos oficiais nazitas, mas deve-se lembrar que as mes-
mas potências que presidiram o julgamento foram responsáveis por delitos graves praticados
na colonização na América do Norte, com a limpeza étnica de indígenas; pelo regime soviéti-
co, com o Holodomor (genocídio em massa de ucranianos sob a autoridade de Stálin); ou até
mesmo com os projetos colonizadores de massacre e escravização de africanos pelas potên-
cias européias na invasão da África192.

Outro antecedente jurídico que marcou a inserção da concepção do genocídio no âm-


bito jurídico foi uma legislação nacional. A Polônia adotou, em 1946, uma legislação penal
que previa em seu texto os atentados à honra ou à inviolabilidade corporal de um grupo de
pessoas ou de um indivíduo, por motivos de nacionalidade, religião ou raça193.

Mas o projeto efetivo de normatização do delito de genocídio no âmbito internacional


começa a ser debatido após a constituição da ONU (Organização das Nações Unidas). Em no-
vembro de 1946, a questão do genocídio foi submetida à Assembléia Geral mediante um pro-
jeto de resolução apresentado por Cuba, Índia e Panamá194. Em seguida, no mesmo dia, foi
confirmada a resolução 95 (I), adotando os princípios do direito de Nuremberg, e após a reso-
lução 96 (I), concluída em 11 de dezembro de 1946. Esta última resolução era o projeto para a
convenção sobre o genocídio, ao espírito dos estudos de Rafael Lemkin. Nesta resolução ado-
tou-se uma definição mais ampla do crime de genocídio, elaborada pelo Conselho Econômico
e Social, em que participaram os juristas Rafael Lemkin, Donnedieu de Vabres e Vespasiano
Pella195. Falava em grupos humanos, tais como raciais, nacionais, idiomáticos ou religiosos,
abarcando ainda a possibilidade de extermínio de grupos políticos e a concepção de genocídio
cultural, que era previsto no artigo I196. Este último conceito era caracterizado por atos que
tivessem como objetivo destruir a língua, religião ou cultura dos grupos protegidos, proibir o
uso da língua entre seus membros ou destruir locais característicos de uma cultura197.

Contudo, ambos os termos – grupos políticos e o genocídio cultural – não foram re-
cepcionados após a apreciação do projeto pela Comissão que integrava os Estados. Os grupos

192
Nesse sentido, vide as informações trazidas pela revista Leituras da História especial, a qual trata especifica-
mente dos grandes genocídios ocorridos. Revista Leituras da História especial - Grandes Genocídios, ano I, n. 2,
Editora Escala, 2008.
193
LAPLAZA, Francisco P. Op. cit., p. 55 e 56.
194
RAMELLA, Pablo A. Op. cit., p. 35.
195
TERNON, Yves. Op. cit., p. 38.
196
ROBINSON, Nehemiah. La Convencion sobre Genocidio. Buenos Aires: Bibliográfica, 1960, p. 112.
197
CAMPOS, Paula Drumond Rangel. O crime internacional de genocídio: uma análise da efetividade da Con-
venção de 1948 no Direito Internacional. Disponível em:
<http://www.cedin.com.br/revistaeletronica/artigos/O%20CRIME%20INTERNACIONAL%20DE%20GENOC
%CDDIO%20Paula%20Campos.pdf>. Acesso em: 30 jan. 2008, p. 21.
65

políticos foram retirados, principalmente devido à pressão soviética, o que oferecia a estes
Estados a possibilidade de exterminar grupos humanos apenas definindo-os de forma diferen-
te198.

Quanto ao genocídio cultural, também foi excluído, dentre outras justificativas, pelo
fato de que seria um conceito muito indefinido199. A proposta foi retirada por sugestão dos
Estados Unidos, Reino Unido, França, além do Brasil200. Desta forma, tanto os grupos políti-
cos quanto o genocídio cultural restaram excluídos do projeto.

De fato, como observa Yves Ternon, a intervenção dos representantes dos Estados-
Membros havia modificado o espírito da resolução 96 (I), o que parecia demonstrar que os
Estados haviam tomado consciência dos riscos que corriam ao outorgar à ONU o direito de
responsabilizá-los por ações passadas, presentes ou futuras; contudo, devido ao fato de que
não podiam se eximir da obrigação de proteger os direitos humanos, se esforçaram em limitar
o alcance do compromisso celebrado201.

Após todos os entraves e alterações de ordem política no texto, a ONU aprova, medi-
ante a resolução 260 A (III), em 9 de dezembro de 1948, a Convenção para a prevenção e re-
pressão ao crime de genocídio, com o emprego da raiz etimológica defendida por Lemkin202.
Como se percebe, as limitações impostas pelos países durante a elaboração da convenção e
sua inserção no ordenamento jurídico significaram um retrocesso às propostas previstas na
resolução 96 (I).

Em 1965, muitos países estavam diante do problema da prescrição prevista nas suas
legislações nacionais. E em 26 de novembro de 1968, pela resolução 2.391 (XXIII), a Assem-
bléia Geral da ONU adotou a Convenção sobre a imprescritibilidade dos crimes de guerra e
contra a humanidade, no artigo I, alínea b, retomando ainda a concepção de crime de genocí-
dio tal como definido pela Convenção de 1948203.

São estes, portanto, os fatos que ensejaram a normatização do delito de genocídio,


sendo que principalmente a definição instituída pela Convenção serviu de base pelas legisla-
ções nacionais.

198
TERNON, Yves. Op. cit., p. 45.
199
ROBINSON, Nehemiah. Op. cit., p. 61.
200
CAMPOS, Paula Drumond Rangel. Op. cit., p. 21.
201
TERNON, Yves. Op. cit., p. 40.
202
Idem, pg. 39.
203
Ibidem, p. 53-54.
66

2.1.2 Características do genocídio

Para a compreensão das características deste delito, necessário uma breve exposição
do artigo 2º da Convenção para a prevenção e repressão ao crime de genocídio204. Diz o texto:

Artigo 2º
Na presente convenção, entende-se por genocídio qualquer dos seguintes
atos, cometidos com a intenção de destruir, no todo ou em parte, um grupo nacional,
étnico, racial ou religioso, tal como:
a) Assassinato de membros do grupo.
b) Dano à integridade física ou mental de membros do grupo.
c) Submissão intencional do grupo a condições de existência que lhe ocasi-
onem a destruição física total ou parcial.
d) Medidas destinadas a impedir nascimentos no seio do grupo.
e) Transferência forçada de menores do grupo para outro.

Pela leitura do dispositivo, verifica-se que o delito se define pela intenção especial de
destruir um grupo humano como tal, no todo ou em parte. O ato não é cometido com a inten-
ção de eliminar um indivíduo em especial, mas em razão de pertencer a um determinado gru-
po humano. Matar pessoas negras por serem negras, por exemplo, sem que importe a identi-
dade pessoal determinada; o genocídio visa destruir um vínculo de sangue ou de espírito me-
diante a destruição das pessoas que estão vinculadas205. É, portanto, o caráter da impessoali-
dade do sujeito passivo206 que guia o agente, visando exterminar um grupo humano. Esta in-
tenção207 é caracterizada pelo dolo especial – dolus especialis208 – que irá configurar o delito,
mediante o exercício de uma atividade finalista específica209. São, portanto, dois elementos
básicos: a) a vítima deve pertencer a um grupo humano e b) a intenção do autor é direcionada

204
BRASIL. Decreto nº 30.822, de 6 de maio de 1952. Promulga a convenção para a prevenção e a repressão
do crime de Genocídio, concluída em Paris, a 11 de dezembro de 1948, por ocasião da III Sessão da Assembléia
Geral das Nações Unidas. Disponível em: <http://www2.mre.gov.br/dai/genocidio.htm>. Acesso em: 31 out.
2008.
205
LAPLAZA, Francisco P. Op. cit., p. 76.
206
GUIMARÃES, Byron Seabra. Genocídio. In Repositório oficial da jurisprudência do Supremo Tribunal Fede-
ral, ano V, n.19, julho a setembro de 1976, p. 33.
207
Interessante ressaltar que o Tribunal Penal Internacional de Ruanda já se manifestou que diante da falta da
confissão por parte do acusado, poderia se deduzir a configuração do genocídio e a intenção de praticá-lo pela
circunstância dos fatos. Ou seja, seria possível concluir que houve a intenção genocida mediante um conjunto de
atos praticados pelo acusado, dento de um contexto geral de realização de atos dirigidos contra um grupo, em
uma região ou um país, ou o fato de se escolher de maneira deliberada as vítimas, por pertencer a um grupo em
particular, ao mesmo tempo excluindo outros grupos. Nesse sentido, vide VERDUZCO, Alonso Gomez Roble-
do. El crimen de genocidio em derecho internacional. Boletín Mexicano de Derecho Comparado. Disponível
em: <http://www.juridicas.unam.mx/publica/rev/boletin/cont/105/art/art6.htm>. Acesso em: 03 ago. 2008, p. 10.
208
Idem, p. 10.
209
Em síntese, a teoria finalista da ação preconiza que a ação delituosa é praticada visando uma determinada
finalidade pelo agente. Nesse sentido, vide WELZEL, Hans. Direito Penal. Campinas: Romana, 2003, p. 79.
67

no sentido de destruir um grupo humano enquanto tal. Eis os elementos objetivo e subjeti-
vo210, respectivamente.

Em geral, é praticado mediante ações comissivas. Mas pode ser cometido por uma o-
missão, desde que presente a intenção de extermínio, como no caso de negação de alimentos e
de prestação sanitária211.

Os grupos recepcionados na convenção são nacionais, étnicos, raciais ou religiosos.


Byron Seabra Guimarães212 refere que

Nacional, na intenção legislativa, é a pessoa pertencente a uma nação, não


importa seja natural ou não do lugar, e mesmo não importa a vinculação bio-
somática. São os casos das novas nações africanas, formadas de vários grupos tipo-
lógicos humanos, mas todos com intenção de criar uma nacionalidade, como reali-
dade sociológica, ao contrário da intenção de Estado, como realidade jurídica.
Por isso que o termo nacional tanto se dirige à formação natural (territórios,
unidades étnicas e idioma comum) como à histórica (tradição, costume, religião e
lei) e mesmo à psicológica (aspiração comum, consciência nacional).
Étnico é a referência ao povo, na conceituação bio-tipológica do grupo. Re-
ferência genética da homogeneidade grupal.
O conceito de raça é por demais discutido. Chegam mesmo os especialistas
a dizerem que não existe uma raça. No sentido de raça pura (aliás, diga-se, uma das
causas do genocídio da segunda grande guerra: a raça pura ariana).
Entretanto, hoje, já se parte para um conceito eminentemente biológico de
raça. Levando-se em conta os aspectos hereditários-somáticos do grupo. Os gens,
determinam a raça.
(...)
Contra o grupo religioso, ainda se pratica o genocídio. Não importando
mesmo se ateísta, monoteísta ou poli. Como indiferente, na religiosidade, os tipos
raciais e nacionais dos religiosos.

No que concerne aos grupos raciais e étnicos, teóricos defendem que os primeiros (ra-
ciais) são definidos por um conjunto de caracteres biológicos; ao passo que os segundos (étni-
cos) são configurados em torno de fatores culturais213.

Merece ser ressaltado ainda que, ao nosso entender, a proteção de grupos não deveria
estar restringida aos tipificados no texto da convenção. Grupos políticos e grupos sociais por
vezes podem ser alvo de um plano genocida. Ou seja, poderia ocorrer mediante a implemen-
tação de um assassinato coletivo de pessoas ligadas por uma opinião e concepção política, ou
até mesmo identificadas por sua condição social. Veja-se, por exemplo, no tocante aos grupos
210
AMBOS, Kai. La Parte General del Derecho Penal Internacional. Montevideo: Fundación Konrad-
Adenauer, 2005, p. 117-123.
211
CAMPOS, Paula Drumond Rangel. Op. cit., p. 18.
212
GUIMARÃES, Byron Seabra. Op. cit., p. 33-34.
213
PIPAON Y MENGS. Javier Saenz. Delincuencia Politica Internacional. Madrid: Instituto de Criminologia de
la Universidad Complutense de Madrid, 1973, p. 113.
68

sociais, tanto os massacres do Carandiru – execução em massa de detentos – como da Cande-


lária – em que as vítimas eram de menores de rua, fatos que poderiam ser enquadrados perfei-
tamente no delito de genocídio214.

Ainda de acordo com o art. 2º, a intenção não precisa ser necessariamente a destruição
total de um grupo; também se configura como genocídio o ato praticado com a intenção de
destruir parcialmente determinado grupo humano. Basta que a ação seja desenvolvida visando
a destruição de um subgrupo dentro de uma raça, etnia, nacionalidade ou religião. Pode ser
praticado, portanto, contra um subgrupo, dentro de um país, região ou uma comunidade de-
terminada215. Existe também a possibilidade de se configurar o genocídio quando o agente
mata apenas um membro de determinado grupo, mas com a intenção de seguir repetindo os
atos sobre o grupo ou subgrupo escolhido (matar o resto do grupo, um por um)216.

No que tange ao sujeito ativo (o agente que pratica a ação), poderá ser um governante,
funcionário ou particular, a teor do art. 4º da Convenção. Existem também estudos críticos
acerca da falta de responsabilização das pessoas jurídicas, no sentido de que estas poderiam
contribuir de maneira significativa para a ocorrência de genocídios. Neste aspecto, no genocí-
dio perpetrado na Alemanha do III Reich teve grande contribuição a empresa IBM, a qual ce-
lebrou contrato diretamente com o Estado alemão em New York, para fabricar os cartões de
identificação de prisioneiros, o que teria facilitado e sistematizado o extermínio; outro exem-
plo de contribuição de pessoas jurídicas é a Radio-Television Libre des Mille Collines, a qual
teve papel significativo na incitação do genocídio em Ruanda217.

Os atos que configuram o genocídio estão elencados nas alíneas do art. 2º da Conven-
ção. As alíneas a a c tratam do genocídio físico (matanças de membros de um grupo, lesão
grave à integridade física ou mental e submissão do grupo a condições que possam levar sua
destruição física), enquanto as alíneas d e e versam sobre o genocídio biológico (impedimento
de nascimentos e transportação de crianças de um grupo para outro)218. Interessante mencio-
nar que o TPIR – Tribunal Penal Internacional para Ruanda – reconheceu que a violência se-
xual contra a mulher por meio de estupros sistemáticos pode configurar ato de genocídio, vis-
214
Nesse sentido: CINTRA JÚNIOR, Dyrceu Aguiar Dias. Judiciário, violência, genocídio. In Revista Trimes-
tral da FASE, Ano 22, n. 60, março de 1994, p. 49.
215
GIL, Alicia Gil. Los crímenes contra la humanidad y el genocidio em el Estatuto de la Corte penal interna-
cional a la luz de los elementos de los crímenes. In O Direito Penal no estatuto de Roma: leituras sobre os fun-
damentos e a aplicabilidade do tribunal penal internacional. AMBOS, Kai e CARVALHO, Salo de (Org.). Rio
de Janeiro: Lúmen Júris, 2005, p. 252-253.
216
GIL, Alicia Gil. Idem, p. 254-255.
217
CAMPOS, Paula Drumond Rangel. Op. cit., p. 19-20.
218
VIEIRA, Manuel A. Derecho penal internacional y derecho internacional penal. Montevideo: Fundacion de
cultura universitaria, 1970, p. 309.
69

to que não seria necessário destruir o grupo; bastaria que o debilitasse de tal forma que o dei-
xasse incapaz de perpetuação ou à margem da sociedade, o que freqüentemente ocorria com
as mulheres estupradas na região219. Outro fator que merece destaque seria a possibilidade de
prática do genocídio de populações indígenas mediante a poluição ambiental, típica da época
contemporânea, o que pode impedir a sobrevivência de grupos humanos inteiros220.

Outras características do genocídio são221: a) trata-se de um crime, pois atenta contra


um bem jurídico fundamental cuja violação é reprimida pela lei penal222; b) é um delito iuris
gentium, pois é reprimido pelo Direito Internacional, violando bens jurídicos da comunidade
humana universal, como a dignidade do homem (art. 1º da convenção); c) um crime propria-
mente internacional, porquanto pode ser julgado por um Tribunal Penal Internacional223; d) é
um delito comum, visto que não é considerado crime político para efeitos de extradição; e) é
um crime de intenção ou utilitário, de modo que há uma vontade específica por parte do agen-
te – dolo especial, como abordado; f) pode ser um delito permanente, porque mediante a ma-
nifestação do agente, há a possibilidade de ser praticado ao decorrer do tempo, como no caso
das alíneas c e e do art. 2º da convenção e g) é um delito pluriofensivo, pois supõe um ataque
a uma pluralidade de bens jurídicos, notadamente direitos fundamentais da pessoa humana.

São estas, portanto, as características do crime de genocídio. Passemos ao breve estu-


do da recepção do delito no plano legislativo brasileiro.

2.1.3 Breves notas sobre o genocídio no direito brasileiro

No Brasil, a Constituição Federal de 1988 prevê no art. 5º, inciso XLIII que os crimes
definidos como hediondos serão considerados pela lei como inafiançáveis, e insuscetíveis de

219
CAMPOS, Paula Drumond Rangel. Op. cit., p. 35.
220
CUSTÓDIO, Helita Barreira. Poluição ambiental e genocídio de grupos indígenas. In Revista de Direito Ci-
vil, imobiliário, agrário e empresarial. Ano 16, n. 59, Jan/Mar/1992.
221
PIPAON Y MENGS, Javier Saenz. Op. cit., p. 114-125.
222
Em entendimento diverso, esta característica é fundamentada na acepção de que os crimes seriam infrações de
direitos naturais, como a vida, a liberdade; os delitos violam direitos criados pelo contrato social, como a propri-
edade; e as contravenções infringem regras e disposições de polícia. Idem, p. 116.
223
Atualmente no Brasil está em vigor o Decreto nº 4.388/2002, o qual promulgou o Estatuto de Roma do Tri-
bunal Penal Internacional, constituído em 1998 para julgar os crimes de genocídio, crimes contra a humanidade,
crimes de guerra e crimes de agressão. O Brasil aderiu à jurisdição do ERTPI pela emenda constitucional 45/04,
a qual inseriu o § 4º ao art. 5º da Constituição Federal do Brasil. BRASIL. Decreto nº 4.388, de 25 de setembro
de 2002. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/2002/D4388.htm>. Acesso em: 31 out.
2008.
70

graça ou anistia, por eles respondendo os mandantes, executores e os que, podendo evitá-los,
se omitirem. Na lei dos crimes hediondos (Lei 8.072/90), o art. 1º, em seu parágrafo único,
prescreve que o genocídio é considerado como crime hediondo, seja na maneira tentada ou
consumada224.

O crime de genocídio foi recepcionado no ordenamento jurídico brasileiro primeira-


mente com a ratificação da Convenção de 1948 em 15 de abril de 1952; após, houve a pro-
mulgação da convenção internacional sobre o delito pelo Decreto nº 30.822/52. Acolhida a
convenção no ordenamento jurídico interno, sobreveio a Lei 2.889, de 1º de outubro de 1956,
a qual foi instituída para definir e punir o crime de genocídio, segundo recomendações da
ONU para inseri-lo como parte da legislação penal brasileira225.

O texto do art. 1º da Lei 2.889/56 transcreve literalmente a definição jurídica do delito


contida na Convenção internacional. Contudo, no que tange à penalidade, o art. 1º abarca a
respectiva pena para cada ato de acordo com as alíneas a a e. Para a aplicação das penalida-
des, o dispositivo remete à aplicação de várias condutas já tipificadas pelo Código Penal Bra-
sileiro. No caso de assassinato de membros de um grupo (alínea a), aplica-se a pena prevista
no art. 121, § 2º do CP, homicídio qualificado; no caso da alínea b, a pena de lesão corporal
gravíssima (art. 129, § 2º, CP); na alínea c, a pena referente a envenenamento de água potável
ou de substância alimentícia ou medicinal (art. 270, CP); na alínea d, a penalidade referente
ao aborto provocado por terceiro (art. 125, CP) e no caso da alínea e, a pena concernente ao
crime de seqüestro e cárcere privado (art. 148, CP)226.

São estes, portanto, os instrumentos normativos que instauraram a previsibilidade pe-


nal do genocídio no ordenamento jurídico brasileiro. Esclarecidos os pontos acerca desta es-
pécie delitiva, passemos ao contexto do etnocídio.

224
BARBOSA, Licínio. Dos crimes hediondos. In Revista de informação legislativa do Senado Federal, ano 28,
n. 112, outubro/dezembro de 1991, p. 161.
225
PEDROSO, Regina Célia. In Revista Leituras da História especial – Grandes Genocídios. Op. cit., p. 15.
226
Necessário salientar que na aplicação das penalidades, verificada a intenção especial de eliminar o grupo,
ocorrendo, contudo, a morte de uma pessoa apenas, será suficiente a aplicação de um genocídio, que corresponde
a um homicídio qualificado (reclusão de 12 a 30 anos). Todavia, se for constatado que na prática do genocídio
houve o assassinato massivo de cerca de cinqüenta pessoas, por exemplo, a pena não será a mesma (reclusão de
12 a 30 anos), como se tivesse cometido um único genocídio; ao contrário, será indispensável que seja aplicado o
concurso de crimes. Vide NUCCI, Guilherme de Souza. Leis penais e processuais penais comentadas. São Pau-
lo: Revista dos Tribunais, 2006, p. 285.
71

2.2 DO ETNOCÍDIO: EXTERMÍNIO DE UMA IDENTIDADE CULTURAL

Outra noção de lesão grave que atenta contra os direitos dos seres humanos é o etnocí-
dio. Pode-se afirmar que esta espécie de prática, conjuntamente com o genocídio, é por de-
mais antiga, pois se nos voltarmos ao passado – e em especial às conquistas das Américas –
constatar-se-á a sua prática como instrumento de formação do que hoje se entende por civili-
zação. Para tanto, tendo em vista o contexto do estudo proposto, a sua abordagem é funda-
mental.

2.2.1 Gênese e conceito

Alguns autores defendem que o termo etnocídio (ou genocídio cultural) deriva de etno,
que provém do grego ethnos (povo, nação), e cídio, que significa matar. Com efeito, o etnocí-
dio seria um atentado contra um povo ou uma nação227. Contudo, esta singela definição pode-
ria causar dúvidas, pois o genocídio igualmente é um ato contra a existência de um povo. Para
tanto, deve-se entender a origem e a definição desta prática lesiva, que se distingue do geno-
cídio.

O termo adveio dos estudos antropológicos e etnológicos, com enfoque principal na


questão indigenista. O criador desta definição foi o etnólogo francês Robert Jaulin, o qual ex-
pôs em sua obra “La Paix Blanche: introduction à l’ethnocide” a destruição dos índios Bari,
na fronteira entre a Venezuela e a Colômbia228. Esta destruição formava-se a partir de múlti-
plos vetores: pelas ações da Igreja, dos exércitos venezuelanos e colombianos, além das com-
panhias americanas de petróleo que passaram a se instalar no local onde vivia a tribo229. Para
o criador deste termo ‘etnocidio indica el acto de destrucción de uma civilización, el acto de
des-civilización’230.

227
CUSTÓDIO, Helita Barreira. Op. cit., p. 88.
228
Vide JAULIN, Robert. La Paz Blanca – Introdución al etnocídio. Buenos Aires: Tiempo Contemporaneo,
1973.
229
MONTENEGRO, Miguel. Robert Jaulin and Ethnocide. Disponível em:
<http://www.miguel-montenegro.com/EthnocideWik.htm>. Acesso em: 14/02/2008, p. 02.
230
JAULIN, citado por CIFUENTES, José Emilio Rolando Ordoñez. La cuestión étnico nacional e derechos
humanos: el etnocidio – Los problemas de la definición conceptual. Op. cit., p. 28.
72

Na década de 60, muitos antropólogos passaram a denunciar as políticas indigenistas


dos Estados e as atividades próprias da antropologia, as quais estariam sendo complacentes
com um discurso indigenista genocida e etnocida231.

Este movimento crítico composto por antropólogos mexicanos e latino-americanos, lí-


deres indígenas e missionários formaram o chamado Grupo Barbados. Esta denominação do
grupo adveio das primeiras reuniões que ocorreram na Ilha de Barbados nos anos de 1971 e
1977, sendo que a terceira reunião ocorreu no Rio de Janeiro, em 1993. Estas reuniões gera-
ram recomendações aos Estados e demais setores da sociedade dos países da América Latina
sobre o estado de marginalização e perigo de extinção de grupos indígenas no Continente232.

Enquanto a Declaração de Barbados I buscou discutir os problemas provenientes das


fricções interétnicas na América233, na Declaração de Barbados II, por exemplo, que foi for-
mulada na reunião de 1977, foram descritas as formas de dominação dos povos indígenas na
América, tais como: a) a dominação física, que se expressa pelo despojo de terras e dos recur-
sos naturais, bem como pela exploração da força de trabalho, e b) pela dominação cultural,
mediante a imposição da cultura ocidental do colonizador, sendo a cultura indígena algo em
atraso, subdesenvolvida, e que deve ser superada; tal espécie de dominação não permite a ex-
pressão da cultura indígena, seja pelo sistema educativo formal (que traduz a superioridade do
branco), seja pelos meios de comunicação de massa234.

O documento que tratou expressamente sobre o termo foi a Declaração de San José,
celebrado na Costa Rica, sob os auspícios da UNESCO em dezembro de 1981. O documento
expõe que o etnocídio tratar-se-ia de um processo complexo, que possui raízes históricas, so-
ciais, políticas e econômicas. Também ressalta que há alguns anos vinha sendo denunciada

231
VÁSQUEZ. Ladislao Landa. Pensamientos indígenas em nuestra América. Disponível em:
<http://64.233.169.104/search?q=cache:0XK5pH7Fe2EJ:bibliotecavirtual.clacso.org.ar/ar/libros/becas/sin%2520
u-
sar/SEN%2520Y%2520SEMI%252004%2520ENSAYOS%2520LEGADOS/landa%2520v%25E1squez%2520e
nsa-
yo%2520revisado%2520sin%2520preedici%25F3n.doc+%22declaracion%22+%2B+%22barbados%22+%2B+
%22etnocidio%22&hl=pt-BR&ct=clnk&cd=1&gl=br>. Acesso em: 14 out. 2008, p. 38.
232
Idem, p. 39.
233
CIFUENTES, José Emilio Rolando Ordoñez. El aporte doctrinario de la antropologia crítica latinoamerica-
na y sus premissas sócio/jurídicas. Disponível em: <http://www.juridicas.unam.mx/sisjur/internac/pdf/10-
487s.pdf>. Acesso em: 14 fev. 2008, p. 01.
234
Declaracíon de Barbados II. Disponível em:
<http://www.nativeweb.org/papers/statements/state/barbados2.php>. Acesso em: 14 fev. 2008.
73

em foros internacionais a problemática da perda da identidade cultural das populações indíge-


nas da América Latina235. No tocante à definição consagrada no documento

El etnocidio significa que a uno grupo étnico, colectiva o individualmente,


se le niega su derecho de disfrutar, desarrollar y transmitir su própria cultura y su
própria lengua. Esto implica una forma extrema de violación masiva de los derechos
humanos, particularmente del derecho de los grupos étnicos al respecto de su identi-
dad cultural, tal como lo establecen numerosas declaraciones, pactos y convênios de
las Naciones Unidas y sus organismos especializados, así como diversos organismos
regionales intergubiernamentales y numerosas organizaciones no gubiernamenta-
236
les .

Ainda no texto da Declaração, há referência expressa que o etnocídio – ou genocídio


cultural – é um delito de direito internacional igual ao genocídio237. Para esta conclusão se
tomou como base o direito às diferenças e o princípio da autonomia dos grupos étnicos238.

Contudo, é pertinente ressaltar que esta prática lesiva aos direitos humanos ainda não é
recepcionada como crime de acordo com o Direito Penal, posto que não há referência expres-
sa em lei penal internacional ou nacional. Logo, no Brasil, ainda não há a previsão de crime
de etnocídio. Trata-se de uma violação grave de bens jurídicos fundamentais que, todavia, não
está tipificada como crime.

O etnocídio traduz uma repressão ou um extermínio dos traços culturais de um povo –


principalmente indígenas ou afrodescendentes. Cabe ressaltar que ele pode ser perpetrado a-
inda que os membros do grupo sobrevivam como indivíduos, porquanto este crime implicará
na desaparição da especificidade cultural de um povo. Seja pela colonização violenta na for-
ma expressa – como ocorreu na conquista da América – ou ainda pelo neocolonialismo pací-
fico e mercantil (violência oculta), o denominador comum entre estes atos é impor a sua visão
de mundo239. Domina-se fisicamente, psíquica e culturalmente as populações de potenciais
áreas de expansão projetada pelo homem moderno, julgando-se uma sociedade “selvagem”,
“sub-humana”, uma espécie de infracultura. Estas estão destinadas a serem “elevadas” medi-

235
Declaración de San José. Disponível em: <http://www.politicaspublicas.cl/iwgia/1982_1.pdf>. Acesso em:
14 fev. 2008, p. 39.
236
Idem, p. 39.
237
Ibidem, p. 39.
238
CIFUENTES, José Emilio Rolando Ordoñez. La cuestión étnico nacional e derechos humanos: el etnocidio –
Los problemas de la definición conceptual. Op. cit., p. 25.
239
MOLINA, Lucrecia. Glossario – Elementos conceptuales y vocabulário incluídos em los documentos. Dispo-
nível em: <http://www.iidh.ed.cr/comunidades/diversidades/docs/div_vocabulario/capiracismo05.pdf>. Acesso
em: 10 fev. /2008, p. 230-231.
74

ante a dominação, a assimilação (incorporação forçada)240. Os outros são “maus”, mas podem
ser melhorados, obrigando-os a transformarem-se no corpo produtivo do projeto civiliza-
dor241. O Outro é despojado de sua identidade cultural.

2.2.2 Características no campo jurídico

No âmbito jurídico, uma abordagem ainda mais profunda do etnocídio ainda é obstá-
culo no Ocidente. Todavia, existem estudos sobre a possibilidade de sua recepção no âmbito
jurídico-criminal. No tocante a este tratamento na seara do Direito, José Maria Alencar e José
Heder Benatti242 tratam de questões sobre o conceito de etnocídio, voltado para o Direito Pe-
nal. Para estes autores, a destruição proveniente do etnocídio não está limitada ao aspecto físi-
co: a característica deste ato é a aculturação forçada de uma etnia ou grupo étnico por outra
mais poderosa, levando ao desaparecimento das vítimas243. Destroem-se os valores sociais e
morais tradicionais, culminando na sua desintegração e posterior desaparecimento244.

Propondo uma definição que venha a ser recepcionada no campo jurídico, os autores
definem o etnocídio como “a conduta delituosa da qual resulta a vitimização, a destruição de
uma etnia ou grupo étnico”. Poderia se configurar como um crime doloso ou culposo, que
consiste na destruição parcial ou total da identidade étnica que propicia a cada grupo étnico ou
etnia o seu caráter próprio, particular. Objetiva-se com esta definição englobar as formas bru-
tais ou sutis de destruição de etnias ou grupos étnicos.245

A proposta de José Maria Alencar e José Heder Benatti, no que concerne a uma possí-
vel legislação penal, perpassaria os seguintes pontos: a) no que tange ao bem jurídico tutela-

240
Idem, p. 231.
241
Além desta justificativa do etnocídio como uma ação para o “bem” de um determinado povo, é de se conside-
rar que esta prática poderia ser perpetrada para fins de dominação, mediante a intenção de destruição dos traços
culturais, o que ocorreu durante o processo colonial e neocolonial no Brasil. Outro exemplo que caracteriza esta
espécie de etnocídio institucionalizado é a Argentina, em que se oferecia um suposto direito à existência aos po-
vos indígenas (ser cidadão argentino), desde que assumissem o suicídio cultural. Nesse sentido, vide BARTO-
LOMÉ, Miguel Alberto. Los pobladores del “desierto” – Genocidio, etnocidio y etnogénesis en la Argentina.
Disponível em: <http://alhim.revues.org/document103.html>. Acesso em: 10 fev. 2008, p. 05.
242
Nesse sentido, vide ALENCAR, José Maria; BENATTI, José Heder. Os crimes contra etnias e grupos étni-
cos: questões sobre o conceito de etnocídio. In Os Direitos Indígenas e a Constituição. Porto Alegre: Fabris,
1993.
243
Quanto à distinção entre etnia e grupo étnico: “A diferença entre um e outro está, portanto, como que em uma
relação de continência e conteúdo. Etnia seria larga o bastante para abarcar grupo étnico, enquanto este, mais
restrito, estaria contido naquela”. Idem, p. 211.
244
Ibidem, p. 214.
245
Ibidem, p. 219.
75

do, seriam os grupos étnicos e etnias, que se auto-identificam ou são identificados; b) o sujeito
ativo seria qualquer pessoa (inclusive pessoa jurídica), individualmente ou em conspiração
com outras pessoas; c) o sujeito passivo seria o grupo étnico ou etnia e d) a ação incriminada
seria a destruição do bem tutelado (grupo étnico ou etnia), podendo ser comissiva ou omissi-
va, admitindo-se ainda a tentativa. Quanto aos aspectos subjetivos do crime, seriam a culpa e
o dolo. Sustenta-se também a sua imprescritibilidade, assim como ocorre com o genocídio246.

Ao nosso parecer, manifestamos nossa posição de que o bem jurídico, no caso do et-
nocídio, não seria propriamente o grupo étnico ou etnia, mas uma identidade cultural. Consi-
derando que o sujeito passivo do ato é a etnia ou grupo étnico, não seria conveniente nomear
como bem jurídico novamente o sujeito passivo. Ou seja, assim como o homicídio é um ato
cometido contra uma pessoa individualmente considerada, visando extirpar-lhe a vida, o etno-
cídio é perpetrado contra uma etnia ou grupo étnico, mediante uma situação de fricção inte-
rétnica, com o intuito de exterminar sua identidade cultural, a partir de diversas formas de vi-
olência.

Como exemplo de práticas desta espécie de violação aos direitos humanos, tem-se a
exploração petroleira e a ação criminosa do Estado colombiano em Catatumbo247. Com o pre-
texto de incorporar os índios Bari à “civilização” para que estes desfrutassem do “progresso”,
os indígenas foram submetidos a um contínuo processo de aculturação; na medida em que
aumentava o grau de resistência era justificado o etnocídio.

Outro episódio que retrata a prática do etnocídio são as violações de direitos humanos
decorrentes da fricção interétnica no Estado de Rondônia, em que os indígenas do Povo Oro-
Win são retirados das aldeias e conduzidos a barracões de seringais para serem mantidos em
semi-escravidão, em troca de comida248. Estes são, dentre outros, exemplos de práticas etno-
cidas.

246
Idem, p. 221-222.
247
Para maiores detalhes sobre o episódio, vide CANTOR, Renan Vega. Explotación petrolera y etnocidio en
Catatumbo: Los Barí y la consesion Barco. Disponível em:
<http://www.espaciocritico.com/articulos/rev07/n7_a12.htm>. Acesso em: 14 fev. 2008.
248
PRADO, Rafael Clemente Oliveira; BRITO, Antônio José Guimarães; AMARAL, José Januário de Oliveira.
Além do Genocídio: o Etnocídio do Povo Oro-Win e a fricção interétnica nas cabeceiras do Rio Pacaás-Novos:
um caso de violação de direitos humanos. In Revista Jurídica da Universidade de Cuiabá. v. 8, n. 2, UNIC,
jul/dez, 2006, p. 185.
76

2.2.3 Genocídio e etnocídio

No ano de 1974, o antropólogo e etnólogo francês Pierre Clastres publicou o texto


chamado Do etnocídio249. Neste texto, sustenta que as populações indígenas na América do
Sul são simultaneamente vítimas do genocídio e do etnocídio. E a partir deste pressuposto ex-
põe distinções importantes entre estes atos.

Clastres sustenta que se o genocídio pressupõe a idéia de “raça” e a vontade de exter-


mínio de uma minoria racial, o etnocídio apontaria não para a destruição física, mas para o
extermínio de sua cultura. Nesse sentido, o etnocídio é a destruição de modos de vida e pen-
samento de povos distintos daqueles que praticam esta destruição. “Em suma, o genocídio
assassina os povos em seu corpo, o etnocídio os mata em seu espírito” 250. É uma morte dife-
rente, uma espécie de morte em vida, morrer em vida.

O aspecto comum entre genocídio e etnocídio seria uma visão idêntica do Outro, como
uma má-diferença. Mas enquanto o genocida puramente nega aquele que é distinto, extermi-
nando-o porque é absolutamente mau, o etnocida admitiria a relatividade deste mal na dife-
rença; os Outros são maus, mas poderão ser melhorados, aperfeiçoados, desde que sejam o-
brigados a se transformar até se tornarem corpos idênticos ao modelo imposto. “A negação
etnocida do Outro conduz a uma identificação a si”251.

Além de expor estas considerações, Clastres refere que o horizonte em que se desta-
cam o espírito e a prática do etnocídio pode ser entendido a partir de dois elementos: o primei-
ro seria a hierarquia das culturas, ou seja, as superiores e as inferiores; o segundo seria a a-
firmação da superioridade absoluta da cultura ocidental. Esta mantém com as outras culturas
uma relação de negação252. Contudo, no etnocídio, seria uma espécie de negação positiva, vi-
sando suprimir o inferior e lançá-lo à condição de “superior”, com base no etnocentrismo
(condição de avaliar as diferenças pela sua própria cultura). Levando em conta estes critérios,
portanto, distingue-se e se estabelece o elo comum entre estas práticas violentas. Passemos ao
contexto da guerra oculta.

249
CLASTRES, Pierre. Arqueologia da Violência. São Paulo: Cosac & Naify, 2004.
250
Idem, p. 83.
251
Ibidem, p. 83.
252
Ibidem, p. 84.
77

2.3 A GUERRA OCULTA

Por fim, o presente tópico trata do estado da sociedade (e o Estado inclusive) resultan-
te do fenômeno moderno e produtor de uma guerra oculta. Como visto em momentos anterio-
res, seja pelas condições históricas e sócio-políticas do extermínio, perpassando pelas noções
das práticas de genocídio e etnocídio e todas as suas características, é possível constatar que o
projeto da filosofia política de Thomas Hobbes253 – buscando proteger o homem do seu esta-
do de natureza ao instaurar o poder soberano pelo contrato entre os indivíduos – não veio a
extirpar o estado de guerra, como era o propósito da filosofia hobbesiana. Ao contrário, este
estado ainda permanece, com conotações outras.

Para isso, é necessário traçar uma reflexão além da teoria jurídica da soberania, para
então verificar os mecanismos de poder que instauram um estado permanente de dominação,
técnicas situadas fora do Leviatã (o que não excluem a possibilidade de serem corresponden-
tes com a manutenção do aparelho de Estado)254.

Neste campo que liga a nossa sociedade e o Estado deve ser considerada a relação de
poder que constantemente circula. Na acepção de Foucault, o poder é uma relação de força,
um enfrentamento de forças; a guerra como política continuada por outros meios. Isto signi-
fica dizer que: a) o poder político reinsere constantemente uma relação de força, mediante
uma guerra silenciosa, refletindo-se nas instituições, nas desigualdades econômicas, nos cor-
pos; b) no interior desta “paz civil”, os enfrentamentos provenientes do poder são uma conti-
nuação da guerra e c) a decisão final somente poderia vir da guerra, ou seja, de uma prova de
forças em que as armas serão os juízes. O fim político seria a batalha, que suspende o exercí-
cio desta guerra continuada255.

É possível verificar que no interior de uma sociedade – notadamente nossa sociedade


modernizadora, proveniente do processo civilizador – subsiste uma espécie de guerra oculta,
constantemente travada, em que se chocam corpos e instituições. Mas para compreender co-
mo se produz esta guerra silenciosa e como ela é atuante na relação corpos-instituições, é pre-
253
Na acepção de Hobbes, sua descrição é feita no sentido de que durante o lapso temporal em que os homens
vivem sem um poder comum que seja capaz de mantê-los em um temor respeitoso, eles se encontrarão na condi-
ção de guerra, onde os homens viveriam sem qualquer outra segurança senão pela sua própria força e invenção.
E como exemplos da condição de guerra – em que existe constantemente a vontade de travar batalha, não haven-
do trabalho, cultivo da terra, navegação ou uso de mercadorias – Hobbes cita os “selvagens” da América, que
viveriam constantemente num estado brutal de medo contínuo e perigo de morte violenta. Vide HOBBES, Tho-
mas. Leviatã. São Paulo: Martins Fontes, 2003, p. 106-111.
254
FOUCAULT, Michel. Em Defesa da Sociedade. São Paulo: Martins Fontes, 2005, p. 40.
255
Idem, p. 21-26.
78

ciso ter presente que ela existe de forma permanente na nossa civilização a partir de dois seg-
mentos: a sociedade modernizadora e o Estado – ou o Direito. A sociedade modernizadora
produz e reproduz a sua concepção de mundo, fundando práticas de relação entre seres huma-
nos, e almejando a totalização desta mesma concepção; o Estado – ou Estado Criminal – ar-
quiteta, mediante as regras jurídicas, a fundação de verdades sobre este mundo concebido. É o
sistema jurídico como uma técnica de sujeição, relação de domínio256 proveniente da violên-
cia conservadora do direito257.

Nesse sentido a guerra oculta se reproduz: a partir da sociedade modernizadora e do


Estado Criminal, estabelecendo uma relação de dominação. Para isto, Foucault utiliza algu-
mas precauções de método258, as quais serão importantes para o desenvolvimento deste tópico
final. Primeiro, apreender o poder nas suas formas, instituições; como ele vai além das regras
de direito, a partir de instrumentos de intervenção materiais e até mesmo violentos. Segundo,
partir de um estudo do poder no sentido de que ele está concentrado no interior das práticas
reais e efetivas; o ponto em que ele está em relação direta e indireta com o que se pode domi-
nar, ou seja, seu alvo de aplicação (além do soberano: analisar os súditos). Terceiro, não com-
preender o poder como fenômeno de dominação em que uns subjugam os outros, mas no sen-
tido de que o poder circula, funciona; se exerce em rede, e nela os indivíduos estão sempre
submetidos e em posição de exercê-lo; o poder como algo que transita pelo indivíduo. Quarto,
partir dos seus mecanismos e verificar como eles atuam cada vez mais em forma global e co-
mo, nos níveis mais baixos, as técnicas e procedimentos atuam.

A partir destes métodos, Foucault exemplifica com a situação da loucura, no século


XVI e XVII, bem como acerca da sexualidade nos Séculos XVII, XVIII e XIX e da figura do
delinqüente259. Pelo sistema-mundo constituído, não há interesse pelo louco, ou pelo delin-
qüente, por exemplo, mas como excluí-lo por ser economicamente viável para o sistema-
mundo moderno.

Nesta exposição, pode-se inserir neste processo de exclusão o mito do “selvagem”.


Os mecanismos de poder, dentro desta guerra oculta, serão responsáveis pela integração do
indígena, sua proletarização ou extinção. Portanto, igualmente com etnias diversas, no proces-

256
Idem, p. 32.
257
Sobre a questão das violências instauradora e conservadora do direito, vide DERRIDA, Jaques. Força de Lei.
São Paulo: Martins Fontes, 2007.
258
As precauções de método (e adotadas nesta fase do trabalho) são desenvolvidas por Foucault no seu estudo
sobre o problema da guerra, a fundação da sociedade civil e a temática da raça. Vide FOUCAULT, Michel. Em
Defesa da Sociedade. Op. cit., p. 32-40.
259
Idem, p. 39.
79

so econômico-politico da sociedade e do Estado Criminal, apenas será economicamente viá-


vel integrar ou, se for preciso, exterminar. Fazer com o que aquilo que é nocivo à expansão
do ideal projetado pelo corpo produtivo seja integrado no seu mundo ou que lhe seja retirada a
condição de existência, rompendo o obstáculo humano frente ao expansionismo moderno e
econômico.

2.3.1 O genocídio e o etnocídio como elementos intrínsecos ao contexto da sociedade


modernizadora e do Estado criminal

Por conseguinte, o que se insere nas práticas projetadas pelos mecanismos de poder a
etnias não integrantes do sistema-mundo “civilizado” serão o genocídio e o etnocídio. Estas
violações de direitos humanos são a resultante da guerra oculta instalada no seio da sociedade
e do Estado modernos.

Como visto nos pontos anteriores, pode-se verificar que tanto o genocídio quanto o et-
nocídio, apesar das suas formas de operação distintas, principalmente pela sua intenção, pos-
suem um elemento comum: o extermínio. O genocídio extermina um grupo enquanto tal; o
etnocídio elimina os traços culturais que identificam o grupo, restando às vítimas completa
destruição de sua identidade, geralmente por intermédio da escravidão.

O extermínio é o fenômeno sócio-político de eliminação de grupos. Pode-se dizer que


ele possui algumas características, a saber260: a) ele é parte integrante de um processo político
de grupos que se arrogam o direito de selecionar certas camadas da estrutura social, devendo
serem eliminadas, expulsas ou circunscritas; b) as vítimas geralmente são aquelas que, identi-
ficadas, possuem atributos que importunam ou que se tornam insuportáveis aos olhos dos ani-
quiladores; c) ele constrói-se em torno de uma idéia de limpeza social. As vítimas seleciona-
das são rejeitadas por serem “indignas”, “demoníacas”, “inúteis”, ou “pesos mortos para a so-
ciedade”261.

Estas espécies de discursos negam qualquer modo de vida diferente daquele que é vi-
vido pela maioria. O modelo de desenvolvimento urbano e industrial, sem levar em conside-

260
Com relação ao extermínio, vide CRUZ-NETO, Otávio. Extermínio: violentação e banalização da vida. Dis-
ponível em: <http://www.scielosp.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-311X1994000500015>. Acesso
em: 30 jan. 2008.
261
Idem, p. 204.
80

ração etnias que não se constituem como corpos produtivos para o sistema capitalista, traduz-
se como arma violenta, produzindo em larga escala, ainda que esta produção venha a implicar
o aniquilamento do homem e seu ambiente262, resultando, por vezes, em genocídio, ou etnocí-
dio, ou em ambos. Estas práticas – genocídio e etnocídio – violam a humanidade; ambas des-
troem a pluralidade e a diversidade que compõem a nossa condição humana.

No contexto social, nossa civilização busca converter todas as outras. Deve ocorrer a
aliança ou o acordo com os brancos. Este colonialismo é o caráter fundamental do etnocí-
dio263. Outra questão que deve ser ressaltada é que, se havia uma espécie de submissão de
uma classe por outra – classe trabalhadora pela patronal no Século XIX – esta relação é subs-
tituída eminentemente pela privação forçada de um grupo de suas características culturais,
típico do modernismo político-cientificista264 (ainda que tenha sido praticada, de certa forma,
desde a chegada de Colombo à América). Assim, a busca da totalidade, mediante a extensão
de si mesmo, resultando na negação do outro265, são elementos que circundam as relações na
sociedade industrial, globalizada e etnocentrista.

Outro fator importante é que este objetivo pela totalidade, pela integração ou destrui-
ção de “empecilhos humanos do progresso” é instrumentalizado em práticas sociais. Tendo
em vista que as sociedades primitivas são uma recusa ao Estado e à relação de comando-
obediência inerente à formação deste266, o regime de produção econômica, visando abolir a
diferença, será considerado uma formidável máquina de produzir, tornando-se também uma
terrível máquina de destruir267, produzir genocídio e etnocídio. O racismo universalista268 in-
tegrado no poder disciplinar (este responsável pela docilização e adestramento dos corpos)269,
atua mediante instituições religiosas, atividades colonizadoras subsidiadas pelas políticas in-
digenistas integracionistas, ou pelo colonialismo interno, mediante a ocupação dos territórios
em que vivem etnias diversas pelo refugo humano produzido nas zonas urbanas. O resultado
destas mecânicas de poder será a conversão de etnias a um produto da relação colonial270, in-
tegrando-as como corpo produtivo, ou destruí-las enquanto seres não submetidos ao discipli-

262
LUZARDO, Alexander. Ecocidio y etnocidio en la Amazonia. Disponível em:
<http://www.nuso.org/upload/articulos/842_1.pdf>. Acesso em: 10 fev. 2008, p. 05.
263
JAULIN, Robert. Op. cit., p. 263.
264
Idem, p. 263.
265
Ibidem, p. 355-374.
266
Com relação às sociedades primitivas e a questão do Estado, vide CLASTRES, Pierre. A Sociedade contra o
Estado. São Paulo: Cosac & Naify, 2003.
267
CLASTRES, Pierre. Arqueologia da Violência. Op. cit., p. 91.
268
WIEVIORKA, Michel. O racismo, uma introdução. São Paulo: Perspectiva, 2007, p. 43.
269
FOUCAULT, Michel. Microfísica do Poder. 20ª ed. Rio de Janeiro: Graal, 2004, p. 224.
270
MORIN, Françoise. Indianidad, etnocidio, indigenismo en América Latina. México: Ed. Centre d’ Etudes
Mexicaines et Centraméricaines y Instituto Indigenista Interamericano, 1988, p. 16.
81

namento do processo civilizador. Para tanto, o genocídio e o etnocídio figuram como elemen-
tos integrantes da expansão da sociedade modernizadora e do Estado criminal; e nesta estrutu-
ra, os grupos se constituirão como um obstáculo ou uma ameaça271.

2.3.2 Condição de vulnerabilidade e vítimas em potencial

Diante dos aspectos expostos anteriormente, dois elementos são característicos do ge-
nocídio e etnocídio, perpetrados contra etnias que possuem seu próprio modo de vida e traços
culturais: a condição de vulnerabilidade que se instaura no grupo e o caráter de vítimas em
potencial, diante da sua fragilidade frente à expansão do sistema-mundo moderno. Estas ca-
racterísticas que se fazem presentes no caso de grupos humanos ameaçados provêm da socie-
dade do risco, a qual põe em perigo a si mesma e às outras sociedades que não compartilham
sua visão de mundo, em face da globalidade que sua ameaça proporciona272.

Nesse contexto, a vulnerabilidade pode ser constatada pelo fato de que o grupo a que
se visa eliminar – fisicamente ou culturalmente – possui uma capacidade de resistência míni-
ma, insignificante frente ao agente do ato. A vitima estará condenada a sofrer esta espécie de
“fatalidade”, por não ter meios para mudar seu destino273. Assim, a condição vulnerável que a
vítima possui advém, além das suas características de identidade e modo de vida enquanto
grupo, da sua impotência em romper com a prática genocida e etnocida. Os agentes, diante da
força desproporcional que se estabelece, praticam um ato de covardia.

Já o caráter de vítima em potencial provém do grupo considerado estorvo para a ex-


pansão civilizatória. Sua identidade e sua existência estão constantemente ameaçadas pela ex-
pansão da sociedade moderna do risco. Um estado de perigo permanente274, em que os grupos
essencialmente vulneráveis275 frente ao processo de desenvolvimento econômico e social se
encontram muito mais propícios à degradação cultural e ao extermínio físico. Daí seu caráter
da potencialidade de ser vítima, diante da sua fragilidade e estado de perigo em face da estru-
tura de poder, instaurada pelos processos de colonização históricos e atuais.

271
TERNON, Yves. Op. cit., p. 83.
272
Vide BECK, Ulrich. Op. cit., p. 28.
273
TERNON, Yves. Op. cit., p. 78.
274
Idem, p. 76.
275
TRINDADE, Antônio Augusto Cançado. Direitos Humanos e Meio Ambiente: paralelo dos sistemas de pro-
teção ambiental. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris Editor, 1993, p. 91.
82

Para tanto, tais características são importantes para avaliar em que circunstância gra-
ves violações de direitos humanos – como o genocídio e o etnocídio – são praticados. E sob
esta ótica, a condição de vulnerabilidade e a potencialidade de se tornar vítima sobrevêm co-
mo fatores produzidos no interior desta guerra oculta, produtora de violência, instaurada no
âmago da sociedade moderna do risco e do Estado criminal. Trazendo à tona uma idéia de
Celso Lafer e a expondo com base nas nossas reflexões, nenhum povo da terra pode sentir-se
razoavelmente seguro em casa e no mundo, na medida em que se admita o genocídio e o et-
nocídio como probabilidade futura276.

276
LAFER, Celso. A Reconstrução dos Direitos Humanos. 6ª ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2006, p.
182.
83

CAPÍTULO III – 1993: O MASSACRE DE HAXIMU

“Cuando los dirigentes de un país constatam que sus próprios ciudadanos


amenazan la existencia de um grupo humano, tienen el poder de terminar com esa
ilegalidad. Si no lo hacen, son cómplices del crimen; aún mas, afirmam su intención
de dejarlo ejecutar, a menos que no conserven el control real del poder. La intenci-
277
ón de dejar hacer equivale, para um Estado, a la intencíon de hacerlo.” (Yves
Ternon – El Estado Criminal - Los genocídios del siglo XX)

3.1 O ANTES

Com todas as explanações anteriores, desde os contextos históricos, sociais e políticos,


passando pelas definições jurídicas do genocídio e etnocídio, faz-se pertinente a abordagem
do caso do Povo Yanomami. Trata-se de caso prático que demonstra como um povo tornou-se
empecilho para os projetos de expansão da visão de mundo moderna, produtora do colonia-
lismo interno que posteriormente ocasionou o chamado Massacre de Haximu, objeto de estu-
do deste capítulo. Desta forma, com base nos pontos precedentes, é como presenciar de que
maneira uma etnia sofreu, no seu corpo, um processo de extermínio. Estudar a forma pela
qual ocorreu o caso de Haximu, portanto, é compreender na seara prática de que modo o
mundo criado a partir da imagem e semelhança do expansionismo mercadológico etnocentris-
ta chegou até os Yanomami, resultando em um massacre cujo teor é produto deste processo
civilizatório.

3.1.1 Exploração do garimpo, invasão da área Yanomami e estatística do extermínio

Os Yanomami vivem nas florestas da Amazônia, entre as cabeceiras das bacias dos ri-
os Orinoco (na Venezuela) e Amazonas (no Brasil), sendo que a fronteira entre o Brasil e a
Venezuela passa pelo seu território. Estima-se que são cerca de 22.500 indígenas, a maior
comunidade das Américas ainda a viver de forma tradicional278. São aldeados em 320 aldeias,
sendo a maioria da população semi-isolada. Trata-se de um grupo seminômade, que se deslo-

277
TERNON, Yves. Op. cit., p. 92.
278
ROCHA, Jan. O massacre dos Yanomami e suas conseqüências. São Paulo: Casa Amarela, 2007, p. 63.
84

ca na mata periodicamente num raio de 10 a 30 Km. Cada aldeia possui entre 30 e 100 pesso-
as, ligadas por laços de parentesco e residentes numa única habitação279. Como ilustração, a
imagem a seguir demonstra a localização das habitações280:

Foto 1 – Aldeia “Serra do vento” (Demini). Foto de Carlos Zacquini.

Os índios Yanomami tiveram seus primeiros contatos diretos com trabalhadores, caça-
dores, membros da antiga SPI e viajantes estrangeiros (dentre outras pessoas) nas primeiras
décadas do século XX, aproximadamente entre as décadas de 10 e 40. Ao final dos anos 40 e
meados de 60 foi promovida a abertura de missões católicas e evangélicas, bem como alguns
postos do SPI, estabelecendo-se os primeiros pontos de contato permanente281.

Mas é principalmente nas décadas de 70 e 80 que se estabelecem contatos maciços. Os


projetos de desenvolvimento, em especial a oeste do Estado de Roraima – mediante a constru-
ção de estradas, projetos de colonização, fazendas, serrarias, canteiros de obras e primeiros
garimpos – causaram um choque epidemiológico grande, o que culminou em graves perdas
demográficas282.

Nos anos 70, foram implantados grandes projetos de desenvolvimento na região, de-
correntes do Plano de Integração Nacional, projetado pelos governos militares. A principal
obra que inicia este processo foi a construção da Perimetral Norte (subsidiada pela construtora

279
SANTOS, Silvio Coelho dos. Povos indígenas e desenvolvimento hidrelétrico na Amazônia. Disponível em:
<http://www.anpocs.org.br/portal/publicacoes/rbcs_00_08/rbcs08_05.htm>. Acesso em: 10 fev. 2008, p. 06.
280
Aldeia “Serra do vento” (Demini). Foto de Carlos Zacquini. Disponível em:
<http://www.proyanomami.org.br>. Acesso em: 01 nov. 2008.
281
ALBERT, Bruce. Urihi: terra, economia e saúde yanomami. Disponível em:
<http://www.unb.br/ics/dan/Serie119empdf.pdf>. Acesso em: 03 dez. 2007, p. 04.
282
Idem, p. 04.
85

Camargo Corrêa e subempreiteiras). A rodovia é conhecida como BR-210 (1973-1976) 283.


Também sobrevieram projetos de colonização pública (1978-1979), que penetraram no terri-
tório Yanomami284. A Perimetral Norte, por exemplo, cortava a região dos rios Catrimani e
Ajarani, onde se localizavam várias aldeias. Como resultado deste contato, nos primeiros 130
Km da rodovia (Caracaraí-RO, para Icana-AM) cerca de 650 índios de três aldeias morreram.
Dos sobreviventes, 15% do total da população original da área vivia em estado de degradação
psicológica e cultural285. Epidemias de sarampo e gripe, doenças as quais os indígenas têm
pouca imunidade, dizimaram várias aldeias nas proximidades da rodovia, levando à morte
72% da população de duas comunidades286.

Em suma, a referida construção partia do pressuposto de que a Amazônia era uma im-
portante zona estratégica, porém vazia demograficamente. Com efeito, fazia-se com que a co-
lonização por não-indígenas fosse um fator fundamental para se assegurar a posse do território
e a soberania do País. Como aponta Marcelle Ivie da Costa Silva, há uma significativa mu-
dança no papel dos indígenas por parte das Forças Armadas brasileiras, pois se no período
colonial os índios eram vistos como agentes importantes para a manutenção da soberania
(como guardas de fronteiras), a partir dos anos 70 passam a ser considerados obstáculos ao
desenvolvimento e à integridade territorial287.

Interessante ainda ressaltar que ao Batalhão Especial de Fronteira (BEF), além de


guardar os limites territoriais, cumpre a função de criar um núcleo de povoamento, buscando
atrair um pequeno contingente populacional (índios, não-índios e caboclos), para a partir deste
modo possibilitar a criação de uma futura cidade. Esta tática provém do período colonial, em
que o Estado português criava fortificações em pontos estratégicos. Já na República, o mesmo
papel foi desempenhado pelos projetos de Rondon, seguido posteriormente pelos Postos Indí-
genas e Batalhões Especiais de Fronteira288.

283
Para mais informações sobre o impacto da construção da Perimetral Norte aos Yanomami, vide VIEIRA, Jaci
Guilherme. Missionários, fazendeiros e índios em Roraima: a disputa pela terra - 1777 a 1980. Disponível em:
<http://www1.capes.gov.br/teses/pt/2003_dout_ufpe_jaci_guilherme_vieira.PDF>. Acesso em: 28 jan. 2008, p.
145.
284
ALBERT, Bruce. Urihi: terra, economia e saúde yanomami. Op. cit., p. 04.
285
SANTOS, Silvio Coelho dos. Povos indígenas e desenvolvimento hidrelétrico na Amazônia. Op. cit., p. 6.
286
ROCHA, Jan. Op. cit., p. 69.
287
COSTA SILVA, Marcelle Ivie da. Amazônia e política de defesa no Brasil (1985-2002). Disponível em:
<http://www.santiagodantassp.locaweb.com.br/br/arquivos/defesas/marcele.pdf>. Acesso em: 30 nov. 2007, p.
68.
288
Idem, p. 69.
86

Corroborando o exposto, ainda na década de 70, após a implementação do programa


de levantamento de recursos amazônicos (Projeto Radam)289 e a constatação de existência de
importantes jazidas minerais, houve um desencadeamento de migração progressiva de garim-
peiros para região Yanomami290. Com o processo de colonização interna, vieram novas doen-
ças, como a tuberculose, e aumentaram significativamente a incidência de doenças como a
malária e oncocercose. Os indígenas começam a mendigar à beira da estrada e as mulheres
levadas a se prostituir291; um indício forte de etnocídio.

Outro projeto que se desenvolveu pelo regime militar, já ao seu final, foi o projeto
chamado Calha Norte, em 1985. Elaborado visando ocupar e desenvolver a região amazônica,
foi um produto das preocupações geopolíticas e nacionalistas do Conselho de Segurança Na-
cional. Projetada a partir de idéia do “imenso vazio demográfico”, “o ambiente pouco conhe-
cido”, a questão do “Suriname e Guiana ligados à influência da ideologia marxista” e o perigo
de um “Estado Yanomami independente”, a medida propôs a construção de uma vasta infra-
estrutura, incluindo aeródromos, rodovias, quartéis, escolas, bancos e distribuidores de ali-
mentos, com o objetivo de “vivificação” da zona de fronteira292. Esta “vivificação” consistia
no assentamento de colonos brasileiros293 e a instalação de projetos minerais, a fim de de-
monstrar o poder e o controle do Estado brasileiro, visando obter a hegemonia geopolítica na
região amazônica294. Contudo, a justificativa do resguardo das fronteiras veio à tona quando
as Forças Armadas se omitiram na prevenção e controle das atividades ilegais de dezenas de
milhares de garimpeiros que, a partir de agosto de 1987, invadiram as terras Yanomami295.

Sobre o colonialismo e as contradições do modo de desenvolvimento, Davi Kopenawa


Yanomami296 aponta:

289
VIEIRA, Jaci Guilherme. Op. cit., p. 49.
290
Em síntese, trata-se de grandes contingentes populacionais oriundos dos aglomerados urbanos, com baixa
qualificação profissional, que se infiltravam no território em busca de riqueza e vidas melhores.
291
ROCHA, Jan. Op. cit., p. 69.
292
RAMOS, Alcida Rita. O papel político das epidemias: o caso yanomami. Série antropologia n. 153. Brasília:
1993, p. 04-05.
293
Interessante referir que no final dos anos 70 chegavam a Roraima cerca de 200 pessoas por dia. A população
dobrou para 80.000 pessoas na década de 70 e em 1991 atingiu 215.000. Três quartos dos migrantes eram oriun-
dos do Nordeste, 60% deles de um único Estado, o Maranhão, onde os latifundiários detinham grande parte das
terras e os pobres vilarejos de terra batida existiam em condições feudais, sem eletricidade, água encanada ou
sistema de esgotos, com as crianças condenadas ao analfabetismo. Muitos deixaram a terra à procura de trabalho
nas cidades. E para estas pessoas, o garimpo significava a única chance de sucesso na vida, a única chance de
riqueza. Vide ROCHA, Jan. Op. cit., p. 85.
294
RAMOS, Alcida Rita. O papel político das epidemias: o caso yanomami. Op. cit., p. 06.
295
Idem, p. 07.
296
YANOMAMI, Davi Kopenawa, Folha de São Paulo de 30/08/1993, citado por ZHOURI, Andréa. O fantasma
da internacionalização da Amazônia revisitado: ambientalismo, direitos humanos e indígenas na perspectiva de
87

Os garimpeiros não têm trabalho. Por isso eles vêm aqui. Os garimpeiros
não têm terra. Por isso eles vagam. Eles são pobres. Eles não têm nada. Seus filhos e
esposas ficam doentes. O governo não lhes dá terra e emprego. Se houvessem em-
pregos nas cidades eles ficavam lá. Como eles não têm nada, eles querem entrar na
reserva. Eles são incitados por outros atrás deles. Eles atacam os Yanomami e têm
os patrões deles para defendê-los nas cidades...A culpa é dos homens que moram nas
mansões na cidade. Eles não gastam energia ou sujam as mãos. Os garimpeiros são
pagos para matar os índios e criar problemas. É por isso que eles são perigosos. Os
garimpeiros estão sempre rindo. Os Yanomami estão chorando. Mais tarde os ga-
rimpeiros vão pagar por nossos mortos. Seus filhos vão sofrer. Suas famílias vão so-
frer comendo lixo nas ruas das grandes cidades. Isso já está acontecendo com as cri-
anças por causa dos erros dos pais e erros dos governos e dos políticos.

Em 1986, após as medidas de implantação do projeto Calha Norte, enquanto a chegada


de garimpeiros – promovida com o auxílio de uma comissão formada pelo Governo de Ro-
raima e integrantes do Batalhão Especial de Fronteira, visando ordenar o assentamento dos
garimpos – provocava devastadoras epidemias de malária, médicos, missionários e antropólo-
gos foram expulsos da área. Alguns jornalistas que conseguiram se infiltrar trouxeram fotos e
vídeos de casos graves de desnutrição em homens, mulheres e crianças297, vindo a se estender
até 1991, conforme demonstra a imagem:

298
Foto 2 – Posto de Homoxi, 1991. Foto de M. Guran .

militares e políticos brasileiros. Disponível em: http://www.comciencia.br/reportagens/2005/08/img/artigo.pdf>.


Acesso em: 30 nov. 2007, p. 20.
297
RAMOS, Alcida Rita. O papel político das epidemias: o caso yanomami. Op. cit., p. 09.
298
Mulher e crianças Yanomami em estado de desnutrição. Posto de Homoxi, 1991. Foto de M. Guran. Disponí-
vel em: <http://www.proyanomami.org.br>. Acesso em: 01 nov. 2008.
88

A crescente infiltração de garimpeiros resultou na corrida do ouro no final da década


de 80, precisamente a partir de 1987 a 1989, em que o número de trabalhadores na região foi
estimado em até 40.000 pessoas; em agosto de 1987, milhares de garimpeiros invadem a área
Yanomami, provocando a maior epidemia de malária já vista299. Um relatório do governo de
Roraima, de 1989, apontava que as terras Yanomami estavam quase que totalmente cobertas
por 451 alvarás e requerimentos de prospecção mineral, registradas no Departamento Nacio-
nal de Produção Mineral por empreendimentos públicos e privados, dentre estes nacionais e
multinacionais300. Em simpósio organizado por alguns militares em 1991, haviam 717 pedi-
dos para exploração dos recursos minerais na área Yanomami, aguardando autorização do
Congresso301.

Já em meados de 1990, estimou-se que mais de 1.500 Yanomami teriam morrido de-
vido às invasões de garimpeiros, a maioria de malária e outras doenças, e também por feri-
mentos a tiros. Em maio de 1988, por exemplo, quatro indígenas teriam sido espancados até
desmaiar e uma menina índia ferida a chumbo, durante um conflito com garimpeiros302.

3.1.2 Confrontos e poder político

Dentre confrontos entre os Yanomami e garimpeiros, afora o descrito anteriormente, o


primeiro caso sério ocorreu em 1987, quando quatro Yanomami e um garimpeiro foram mor-
tos próximo ao rio Mucajaí. Em que pese as tentativas de remoção dos garimpeiros do local,
as medidas restaram inexitosas, devido à falta de vontade política e a febre do ouro que se es-
tendida às repartições governamentais. No mesmo ano, a Associação de Garimpeiros de Boa
Vista publica um comunicado assinado por mais de 1.000 mineradores. O comunicado refe-
ria303:

Não temos medo da polícia, nem da FUNAI. Não abandonaremos a região.


Temos garantias políticas de que o Exército e a Força Aérea não intervirão. Temos o
apoio da classe empresarial de Roraima de que não seremos retirados das áreas de
mineração de ouro.

299
RAMOS, Alcida Rita. Por falar em paraíso terrestre. Disponível em:
<http://www.unb.br/ics/dan/Serie191empdf.pdf>. Acesso em: 30 nov. 2007, p. 07.
300
ALBERT, Bruce. Urihi: terra, economia e saúde yanomami. Op. cit., p. 05.
301
ZHOURI, Andréa. Op. cit., p. 15.
302
ROCHA, Jan. Op. cit., p. 70.
303
Idem, p. 95.
89

Assim, ao invés de proceder a expulsão dos invasores, a FUNAI baniu agentes de saú-
de, antropólogos e missionários. Deixados a sós, os indígenas permaneceram ao abrigo apenas
das doenças e da destruição. Ao final de 1987, haviam postos de garimpo localizados nas ca-
beceiras do rio Mucajaí, Apiaú e do Couto de Magalhães, os quais eram três importantes rios
da reserva Yanomami. Tem-se a estimativa de que mais de 200 garimpos foram explorados,
de 1986 a 1992304.

Os interesses políticos também contribuíram para o tratamento imposto aos Yanoma-


mi. Em 1983, congressistas de Roraima apresentam vários projetos com o objetivo de abrir as
terras Yanomami para mineração. Os deputados Mozarildo Cavalcanti (PTB) e João Batista
Fagundes (PMDB) apresentaram um projeto para autorizar a abertura da área de Surucucus à
mineração de cassiterita (PL 1.779/83), que obteve aval do Governo de Roraima; era conheci-
do como “projeto de genocídio”, pois a região não somente possuía a maior população Yano-
mami como também aldeias totalmente isoladas305.

Após um longo processo de reconhecimento, houve a publicação da Portaria nº


1.817/E, em 8 de janeiro de 1985, reconhecendo a área de aproximadamente 9 milhões de
hectares306. Em 1988, 150.000 pessoas de todo o mundo assinaram um documento, o qual foi
enviado ao Secretário-Geral da ONU, referindo que os Yanomami estavam em perigo de ex-
tinção307. Em setembro do mesmo ano, de forma inesperada, o presidente José Sarney declara
uma área contínua de mais de 8 milhões de hectares308; mas, logo após, com a contra-
assinatura do general Bayma Denys (chefe do gabinete militar e secretário do Conselho de
Segurança Nacional), aliado ao aumento do preço do ouro e as invasões de garimpeiros à re-
serva, José Sarney anuncia uma reserva fragmentada em 19 ilhas, rodeadas por locais nos
quais a mineração seria permitida. Isso significava que as aldeias ficariam separadas umas das
outras por terras chamadas de “florestas nacionais”, onde garimpeiros poderiam exercer influ-
ência, processo este resultante do lobby dos mineradores309. Dentre os atores desta reforma,
figurava o então governador do Estado de Roraima na época, Romero Jucá310.

304
Idem, p. 96.
305
Ibidem, p. 107.
306
Ação pela cidadania – 1990. Yanomami: a todos os povos da Terra. São Paulo: CCPY, Cedi, Cimi, NDI, ju-
lho/1990, p. 17.
307
ROCHA, Jan. Op. cit., p. 111.
308
Idem, p. 112.
309
Ibidem, p. 96.
310
Ibidem, p. 112.
90

Em 1989, Fernando Collor é eleito presidente, sucedendo Sarney, num período em que
os temas ambientais haviam adquirido importância global. Visando credibilidade internacio-
nal, Collor ordena a retirada de garimpeiros, anunciando uma operação de noventa dias para
retirar 45.000 garimpeiros da reserva, momentaneamente pondo fim à mineração em 1990.

Neste período, em julho 1989, o Ministério Público Federal ajuíza ação civil pública
visando a interdição das pistas de pouso clandestinas, abertas pelos garimpeiros dentro do ter-
ritório. No mesmo ano, em outubro de 1989, o MPF ingressa com medida cautelar (nº XII-
244/89) na Justiça Federal do Distrito Federal, solicitando a retirada imediata dos invasores e
a interdição da área demarcada; o juiz da 7ª Vara da Justiça Federal do Distrito Federal, No-
vély Vilanova da Silva Reis, profere decisão interlocutória concedendo liminarmente a inter-
dição dos 9 milhões de hectares e a retirada dos invasores311.

Em março de 1990, Collor organiza a operação selva livre, para retirar os garimpeiros
e explodir as pistas de pouso. Em abril de 1991, Collor revoga o decreto que fragmentava o
território em ilhas e institui o Distrito de Saúde Yanomami312.

Em novembro de 1991, seis meses antes de o Brasil recepcionar a Conferência da


ONU sobre o meio ambiente, que seria realizada em 1992, o governo brasileiro anuncia a cri-
ação da reserva Yanomami, com 9 milhões de hectares. Mas após a realização da conferência,
sobrevém a renúncia de Collor da presidência no final do mesmo ano pela acusação de cor-
rupção. No início do ano de 1993, cerca de 12.000 mineradores retornam à reserva Yanoma-
mi, mesmo demarcada; a FUNAI, com mais de 80% do seu orçamento cortado, não deteve a
invasão. Assim, mesmo após a demarcação do território decorrente das pressões nacionais e
internacionais, ocorre a invasão, que viria a causar conseqüências mais graves.

3.2 O DURANTE

Dentre as aldeias Yanomami localizadas na fronteira entre o Brasil e a Venezuela, Ha-


ximu situa-se em território venezuelano, próximo ao rio Orinoco. O crime perpetrado ficou
conhecido como massacre de Haximu, por ter ocorrido nas proximidades desta aldeia, no ano
de 1993 (como referido anteriormente), em meio a um conflito envolvendo problemas sociais

311
Ação pela cidadania – 1990. Yanomami: a todos os povos da Terra. Op. cit., p. 20.
312
ROCHA, Jan. Op. cit., p. 113-114.
91

e econômicos. Para tanto, considerando todas as abordagens anteriores, pode-se compreender


melhor em que contexto advieram as graves violações de direitos humanos.

De início, necessário esclarecer como o genocídio veio a ocorrer. Tais informações


constituem-se como elementos fundamentais para se compreender de que maneira os atos fo-
ram perpetrados.

Sobre os fatos que precederam o massacre, o antropólogo Bruce Albert – em um texto


de sua autoria publicado no jornal Folha de São Paulo, em 03 de outubro de 1993 – relata que
o massacre de Haximu possui na sua origem uma situação crônica de conflito interétnico cria-
da na área Yanomami, devido à presença predatória das atividades garimpeiras313. Sobre o
início dos contatos entre brancos e indígenas na região, o autor esclarece:

Ao instalar-se num novo sítio dentro da área yanomami, os garimpeiros


vêm primeiro em pequenos grupos. Sendo poucos, sentem-se vulneráveis perante a
população indígena. Temendo uma reação negativa dos índios, tentam comprar a sua
anuência com farta distribuição de bens e comida. Por sua vez, os índios têm pouca
ou nenhuma experiência com brancos e tomam essa atitude como uma demonstração
de generosidade que se espera de qualquer grupo que quer estabelecer laços de ali-
anças intercomunitárias. Enquanto se desenrola esse mal-entendido cultural, os ín-
dios ainda não sentem o impacto sanitário e ecológico das atividades de garimpo. A
seus olhos, o trabalho dos garimpeiros parece ainda algo enigmático e irrelevante.
Com ironia e condescendência, chamam-nos de "comedores de terra" ao compará-
los a um bando de queixadas (porcos selvagens) fuçando na lama.
Num segundo momento, o número de garimpeiros aumenta substancial-
mente e já não é preciso manter aquela generosidade inicial. Os índios passam de
ameaça a estorvo com suas insistentes demandas pelos bens que se acostumaram a
receber. Os garimpeiros irritam-se e tentam afastá-los dos garimpos com falsas pro-
messas de presentes e com atitudes impacientes ou agressivas.
A essa altura, os índios já começam a sentir uma rápida deterioração em
sua saúde e meios de subsistência. Os rios ficam poluídos, a caça foge e muita gente
morre em constantes epidemias de malária, gripe, etc., desestruturando a vida eco-
nômica e social das comunidades. Desse modo, os índios passam a ver os bens e a
comida que vêm dos garimpeiros como uma compensação vital e inquestionável pe-
la destruição causada. Negada tal compensação, cria-se no seu entender uma situa-
ção de hostilidade explícita.
Surge assim um impasse: os índios se tornam dependentes dos garimpeiros
no exato momento em que estes se dispensam de comprar a boa vontade indígena.
Essa contradição está na raiz de todos os conflitos envolvendo índios e garimpeiros
na área Yanomami. Com ela abre-se a possibilidade para que o menor incidente de-
genere em conflito aberto. Como a disparidade de forças entre garimpeiros e índios é
enorme, a balança da violência pende sempre contra os Yanomami. Esse tipo de si-
tuação mostra claramente até que ponto a lógica da economia garimpeira repele a
participação dos índios e até a sua simples presença. Garimpeiros que utilizam técni-
cas mecanizadas não têm qualquer interesse nos índios, nem sequer como mão-de-
obra. Na melhor das hipóteses, são inconvenientes, na pior, são uma ameaça à sua

313
ALBERT, Bruce. O massacre dos Yanomami de Haximu. Disponível em:
<http://www.proyanomami.org.br/v0904/index.asp?pag=htm&url=http://www.proyanomami.org.br/v0904/docu
mentos/anexo_1.htm>. Acesso em: 03 dez. 2007, pg. 01.
92

segurança. Se com brindes e promessas não conseguem afastá-los, então a solução é


314
intimidá-los ou exterminá-los .

Em meados de 1993, a situação entre os garimpeiros brasileiros do “rio Taboca” (alto


Orinoco, na venezuela) e os Yanomami de Haximu já havia chegado a este ponto. Nesse sen-
tido, Bruce Albert destaca que eram cada vez mais freqüentes as visitas dos índios aos garim-
pos em busca de comida e objetos. Em certa ocasião, dois donos de balsa prometeram rede,
roupa e munição a um jovem líder da comunidade. Não cumprida a promessa, o jovem foi até
o barracão de um dos donos de balsa. Após discutir com um empregado, acabou por afugentá-
lo com um tiro de espingarda. Com o barracão vazio, o índio e seus companheiros cortaram as
redes, jogaram lona e cobertores no mato e levaram rádio e panelas. Após o ocorrido, os ga-
rimpeiros decidem matar os índios se estes voltarem a incomodá-los315.

A partir do dia 15 de julho de 1993 a situação se agrava. Outro grupo de seis rapazes
chega a outro barracão para pedir comida, bens de troca e levar de volta aos garimpeiros uma
espingarda, de acordo com a recomendação dos seus parentes mais velhos. Ao chegar, rece-
bem comida e um bilhete para ser entregue em outro barracão, mediante a promessa de que no
próximo eles obteriam mais objetos. Chegando ao próximo barracão, os índios encontram
uma turma de garimpeiros jogando dominó. São recebidos por uma cozinheira, que lê o bilhe-
te e joga-o no fogo, mandando os índios embora com mais mantimentos e roupa. O bilhete
dizia: “faça bom proveito desses otários”. Com esse sinal, os garimpeiros chegam a cogitar de
matar o grupo de índios ali mesmo, porém desistem, temendo que outros índios estivessem
próximos ao local. Assim, decidem atacá-los na trilha de volta às malocas316.

Após alguns minutos, os rapazes Yanomami param para comer o que receberam nos
barracões. Com isso, chegam cerca de cinco a seis garimpeiros armados, que os convidam pa-
ra ir caçar anta e visitar outro barracão. Apesar de estranhar o convite, os índios aceitam dian-
te da insistência; forma-se uma fila indiana entre índios e garimpeiros, alternadamente. Poste-
riormente, um dos Yanomamis – chamado Paulo Yanomami – pára durante a caminhada para
defecar, passando sua espingarda para outro dos rapazes, chamado Geraldo (também Yano-
mami). Contudo, os garimpeiros não seguem caminhando. De repente, um deles segura o bra-
ço de Geraldo Yanomami, que segurava a arma, e atira no ventre deste com uma espingarda.
Neste momento, mais três índios são executados pelos outros garimpeiros. Um dos executores

314
Idem, p. 01 e 02.
315
Ibidem, p. 02.
316
Ibidem, p. 02.
93

conta posteriormente a um companheiro de garimpo que um dos rapazes se agachou com a


mão no rosto e havia suplicado “garimpeiro amigo”; o mesmo foi assassinado com um tiro no
rosto317. Nesta emboscada morreram os índios Geraldo (Bauxi), Makuama e Kaperiano.

Neste tempo, o Yanomami que estava no mato (Paulo), depois de escutar os tiros, jo-
ga-se no rio Orinoco e consegue fugir. Um jovem de 18 anos, chamado Reikim, também es-
capa ferido, enquanto os garimpeiros carregavam suas armas. Este jovem também se joga no
rio e, desta posição, vê os garimpeiros enterrar os três índios mortos – sendo que o enterro, na
cultura Yanomami é considerado uma profanação, algo inaceitável318. Após, os sobreviventes
desenterram os três mortos e levam os corpos para serem cremados. Coletam os ossos neces-
sários para realizar os ritos funerários e voltam para casa para planejar a vingança das mortes
com ataques guerreiros, onde os alvos são os homens – nunca mulheres e crianças319.

Após dois dias de caminhada pela mata, um grupo de guerreiros chega nas imediações
do garimpo. Por volta das dez horas da manhã seguinte, chegam a um barracão onde encon-
tram dois homens. Um dos índios acerta um dos homens, chamado “Fininho”, com um tiro na
cabeça; o outro foge, porém ferido. O homem executado tem sua cabeça partida com golpes
de machado, além de ser alvo de flechas. Após a vingança, os Yanomamis apanham tudo que
encontram no barracão, inclusive cartuchos e espingarda do homem morto320.

Depois do ataque, retornam à aldeia. Temerosos, deixam suas malocas com todos os
seus bens, dirigindo-se a outro local, uma roça velha, visando segurança321. Passado mais de
uma semana, os Yanomamis receberam a presença de alguns índios da maloca do Simão (co-
munidade de Makayu), que os convidaram para uma festa. No mesmo dia, quase a totalidade
dos homens de Haximu segue para a festa em Makayu, e decidem deixar no local apenas al-
guns homens, mas a maioria mulheres e crianças; para os Yanomami, como mulheres e crian-
ças nunca são alvo de ataque, não haveria receio de estas serem objetos de vingança por parte
dos garimpeiros; elas estariam seguras, mesmo em se tratando de ataques inimigos322.

317
Idem, p. 02-03.
318
Na cultura Yanomami, os seus mortos são cremados, conjuntamente com seus pertences; enterrar um de seus
parentes é algo terrível para eles.
319
ALBERT, Bruce. O massacre dos Yanomami de Haximu. Op. cit., p. 03.
320
Idem, p. 03.
321
MAIA, Luciano Mariz. HAXIMU: Foi Genocídio! Disponível em:
<http://www.proyanomami.org.br/v0904/index.asp?pag=htm&url=http://www.proyanomami.org.br/v0904/docu
mentos/haximu_new.htm>. Acesso em: 03 dez. 2007, p. 04.
322
ROCHA, Jan. Op. cit., p. 26.
94

3.2.1 Do massacre

O ataque dos Yanomami causa ódio aos garimpeiros. Após enterrarem o homem mor-
to na cozinha do barracão, abandonam o local e levam o outro homem que foi ferido para uma
pista de pouso há cerca de dois dias de caminhada, sendo que neste tempo começam a plane-
jar a vingança323. Depois de duas reuniões (e com o patrocínio de quatro empresários dos ga-
rimpos atuantes na região, liberando empregados, munição e armas) decidem matar todos os
moradores das malocas da aldeia de Haximu, um total de 85 pessoas; os quatro financiadores
da operação de extermínio foram: João Neto, proprietário rural; seu cunhado, Chico Ceará;
Eliézio, dono de uma cantina; Pedro Prancheta, autor do bilhete que teria sido escrito no ata-
que anterior dos garimpeiros, além do Sr. Juvenal Silva (vulgo Cururupu)324. Estes distribuí-
ram as munições e armas aos garimpeiros Goiano Doido, Pedão, Neguinho, Parazinho, Ceará
Perdido, Goiano Boiadeiro, Japão, Boroca, Maranhão (Uriçado), Adriano, Paraná Aloprado,
Barbacena, Goiano Barbudo e Silva. Pernoitaram no barraco de Cururupu; no dia seguinte,
Pedro Prancheta e os demais, armados com 15 espingardas, 7 revólveres e alguns facões e fa-
cas, determinados a exterminar todos os habitantes da aldeia Haximu, abrem caminho até o
local325.

O bando caminhou cerca de dois dias inteiros no mato, até alcançar a primeira maloca
de Haximu, quando já chegava a noite; contudo, a mesma estava vazia. Chegam a uma segun-
da maloca, também vazia; nesta, os agentes decidem ocupá-la para o pernoite, a fim de conti-
nuar a busca quando chegasse a manhã326.

Pela manhã, os Yanomamis que foram até a festa de Makayu ainda não tinham regres-
sado. No local, boa parte das mulheres e crianças havia ido apanhar ingá na mata. Apenas es-
tavam nos tapiris (casas) algumas mulheres e crianças. Algumas horas depois, por volta do
meio-dia, os garimpeiros chegam ao acampamento e o cercam de um lado. Enquanto as crian-
ças brincavam, as mulheres cortavam lenha e os demais estavam deitados nas redes, um ho-
mem do bando dispara um tiro e todos os outros seguem o mesmo, abrindo fogo e avançando
até as vítimas. No meio do tiroteio, escapam quatro homens e uma mulher de meia idade, duas
meninas de seis e sete anos e uma menina de cerca de 10 anos, por se esconderem na vegeta-
ção. As duas meninas pequenas e um dos homens saem feridos com chumbo espalhado no

323
MAIA, Luciano Mariz. Op. cit., p. 04.
324
ALBERT, Bruce. O massacre dos Yanomami de Haximu. Op. cit., p. 03.
325
MAIA, Luciano Mariz. Op. cit., p. 05.
326
Idem, p. 05.
95

rosto, pescoço, costas e braços; a menina maior recebe um ferimento grave na cabeça, vindo a
falecer mais tarde. Do seu esconderijo, os sobreviventes continuaram a ouvir gritos abafados
pelo som dos tiros. Logo após, os garimpeiros interrompem os tiros e entram nos abrigos para
terminar de matar quem ainda está vivo a golpes de facão, mutilando e esquartejando todos os
cadáveres crivados de balas327.

Dois dos homens sobreviventes foram Simão e Paulo Yanomami. O primeiro relata:

‘Que ainda se encontrava deitado (buruoma), por volta de 10:00 para 11:00
hs, ocasião em que foram surpreendidos pelos ataques dos garimpeiros e o informan-
te levou um tiro do lado direito pegando vários caroços de chumbo na costela, pes-
coço e três bem próximos uns dos outros na face, perto da orelha do lado direito e os
caroços de chumbo ainda não foram retirados, em seguida o informante correu para
328
o mato’ .

Paulo Yanomami, também sobrevivente, informou

‘Que, no dia seguinte, por volta das 9:00 para 10:00 h, o informante estava
deitado em uma rede de casca e no momento ouviu alguns tiros e um garimpeiro ati-
rou em sua direção e ele conseguiu evitar que o tiro pegasse e no momento em que o
garimpeiro estava trocando o cartucho aproveitou para correr, ficando ali à distância
escondido dentro do mato, ainda na roça velha e dali escutou gritos e muitos tiros e
no final ouviu os garimpeiros dizendo: "Embora, Embora, Embora"; que, em segui-
da o informante foi procurar as mulheres, ou seja, chegou até o local onde se encon-
trava a maioria das mulheres e crianças que tinham saído dos tapiris de manhã para
apanhar frutos, ingás, etc; que após os garimpeiros terem saído o informante retor-
nou ao local dos tapiris à procura de sua espingarda e não mais encontrou pois os ga-
rimpeiros a tinham levado e naquele momento gritou para a turma de indígenas que
estava apanhando ingá, para virem até o local, tendo observado que haviam muitos
mortos com marcas de tiros e cortes de terçado na maioria deles, inclusive mulheres
329
e crianças; que entre os corpos estava o de sua filha de três a quatro anos’ ;

Ainda durante o massacre, constatou-se que um dos integrantes – Goiano Doido – ma-
tou um bebê; também uma idosa foi morta pelo grupo330.

A narrativa do ocorrido inclusive é confirmada por Pedro Prancheta, integrante do


grupo que realizou o extermínio:

327
ALBERT, Bruce. O massacre dos Yanomami de Haximu. Op. cit., p. 05.
328
Depoimento de Simão Yanomami, citado pelo Procurador da República Dr. Luciano Mariz Maia, o qual par-
ticipou da equipe de trabalho na investigação e denúncia do massacre de Haximu. Vide MAIA, Luciano Mariz.
Op. cit., p. 06.
329
Depoimento de Paulo Yanomami, citado por MAIA, Luciano Mariz. Idem, p. 06.
330
ROCHA, Jan. Op. cit., p. 28.
96

‘Que, no dia seguinte, saíram por volta das 7:00 hs e só retornaram após
três dias e o reinquirido conversou pessoalmente com "Japão" e este por sua vez lhe
contou que saíram em direção às malocas, que eram em número de duas, uma pró-
xima da outra e lá chegando não tinha nenhum índio, tendo então eles dormido ali e
no dia seguinte pela manhã saíram no rastro dos índios e após três horas de cami-
nhada encontraram umas barraquinhas no meio da mata e ali estavam os índios, on-
de haviam algumas crianças brincando, ocasião em que os garimpeiros ficaram to-
dos de um lado e atiraram por alguns minutos matando todos que ali se encontra-
vam, tendo também sabido, através de ‘Japão’, que ‘Goiano doido’ meteu a faca
numa criancinha e ele só ouviu ela gritar e logo após saíram todos correndo com
medo dos outros índios em direção às malocas e na ocasião atearam fogo nas mes-
mas, antes porém deram vários tiros em panelas e em tudo que viam pela frente e em
331
seguida retornaram aos seus barracos’ .

Outra informação que corrobora os fatos é trazida pela Sra. Silvânia Santos Menezes,
conhecida por Silvinha, cozinheira do garimpeiro João Neto:

‘Que, quando eles retornaram disseram aos demais garimpeiros, bem como
à declarante que eles teriam ido primeiro na chapona e lá não haviam achado nin-
guém e saíram dali e encontraram os índios e segundo eles mataram uns vinte, entre
homens, mulheres e crianças; que, segundo eles, quem começou a atirar foi "Goiano
Boiadeiro" e depois todos atiraram; que, gostaria de esclarecer que ouviu os garim-
peiros dizerem que na chapona arrumaram as panelas, deram vários tiros e depois
atearam fogo nas mesmas e de lá saíram à procura dos índios; que presenciou "Goi-
ano Boiadeiro" dizer: "que havia uma criança deitada numa rede e ele enrolou a cri-
332
ança em um pano e meteu a faca de um lado para o outro’ ;

O antropólogo Bruce Albert, bem como o Procurador da República que atuou no caso
na época – Dr. Luciano Mariz Maia – apontam o número de doze pessoas executadas333: um
homem adulto de idade avançada; duas mulheres idosas, sendo uma cega; uma jovem adulta,
identificada como Masena, de aproximadamente dezoito anos, vinda de uma aldeia vizinha,
chamada Homoxi; três meninas adolescentes; três meninas de 1, 7 e 8 anos; e dois meninos (7
e 8 anos). Além de feridos (Simão, de 20 anos, e duas meninas, de 6 e 7 anos, respectivamen-
te). Três destas crianças executadas eram órfãs de pais mortos pela malária.

Terminado o “serviço”, os garimpeiros do grupo se dão conta que não haviam exter-
minado todos os habitantes de Haximu. Por isso, levaram espingardas que estavam nos abri-

331
Depoimento de Pedro Prancheta, citado por MAIA, Luciano Mariz. Op. cit., p. 06. Também consta neste tex-
to, dentre outras informações, as descrições de onde os depoimentos foram coletados. Nesse sentido, o relatório
de conclusão do inquérito policial 078/93-DPF/RR, que serviu de base para denúncia, e ação penal 242/93-RR.
332
Depoimento de Silvânia Santos Menezes, citado por MAIA, Luciano Mariz. Op. cit., p. 07.
333
ALBERT, Bruce. O massacre dos Yanomami de Haximu. Op. cit., p. 05; MAIA, Luciano Mariz. Op.cit., p.
08.
97

gos, dispararam foguete para despistar eventuais perseguidores e se dirigiram de volta ao ga-
rimpo334.

Sobre os corpos, Waythereoma Hwanxima, mulher Yanomami que estava na festa


quando ocorreu o massacre, relata o que viu quando retornou ao local após a saída dos garim-
peiros:

‘...foram feitas duas fogueiras na área dos tapiris e foram cremados um ho-
mem numa e uma mulher e sua filha em outra, esclarecendo que a mulher era a ido-
sa, cega, irmã da informante; que recolheram o restante dos corpos e caminharam
meia hora, aproximadamente, a pé do local onde foram mortos e lá fizeram outros
tapiris, providenciaram lenha para fazer a cremação dos corpos, sendo seis foguei-
ras, onde foram cremadas as crianças e uma moça e outra fogueira próxima onde foi
cremada uma moça mais velha, esclarecendo que nas seis fogueiras foram cremadas
cinco crianças e uma moça; que, no local das duas primeiras fogueiras, onde foram
cremados o homem, a velha cega e a criança, deixaram o corpo não cremado da ín-
dia dos Homoxitheri, que não tinha parentes, entre os que ali se encontravam, razão
pela qual não foi cremada, recordando-se que haviam furos de balas na cabeça e cor-
tes nos braços, barriga, peito, cabeça e pernas; havia também um corte profundo do
335
lado direito da face da mesma, tendo a cabeça ficado aberta ’;

A índia que não foi cremada era Masena, de Homoxi, pois era visitante dos habitantes
de Haximu, e não tinha parentes que lhe chorassem a morte – o que faz parte da cultura dos
Yanomami, quando um parente falece, o outro chora-lhe a morte durante os ritos fúnebres,
que incluem a cremação. Após realizarem a cremação dos mortos, começam uma fuga em
mata fechada num imenso desvio para despistar os garimpeiros.

No dia 17 de agosto, 25 dias após o ataque em Haximu, o funcionário da FUNAI,


Luis Eustorgio Pinheiro Borges, recebe um comunicado da religiosa Luzia Pereira Leite, co-
nhecida como Irmã Aléssia, do Posto da FUNAI de Xidéia. A correspondência mencionava o
relato feito pelo Tuxaua Antônio, e pedia que fosse apurada a morte de sete crianças, cinco
mulheres, dois homens e a destruição da maloca336. Dizia o comunicado:

‘Os índios de Yababak estão todos aqui. O Tuxaua [chefe] Antônio dizendo
que não querem voltar porque os garimpeiros foram a uma maloca próxima à deles
em dia de caminhada e mataram sete crianças, cinco mulheres e dois homens, e des-
truíram a maloca. Poucos homens conseguiram fugir. Acredito ser verdade, pois es-
tão amedrontados.
Pedi na Funai aqui para passar um rádio pedindo para a Polícia Federal in-
vestigar o caso. Disseram que primeiro precisam da certeza. Foram a uma pista pró-
334
ALBERT, Bruce. O massacre dos Yanomami de Haximu. Op. cit., p. 05.
335
Depoimento de Waythereoma Hwanxima, citado por MAIA, Luciano Mariz. Op. cit., p. 07.
336
Idem, p. 07.
98

xima daqui ver se lá tem garimpeiros, mas o que aconteceu foi um uma maloca, di-
visa com a Venezuela, chamada Haximu, não temos o censo dela. Temos notícia por
índios daqui, que vão lá, é uma maloca de pouco contato com [ilegível].
Peço ver o que pode fazer, falar com a Funai aí, para que possamos saber a
verdade. Obrigada.
337
Irmã Aléssia’ .

Durante praticamente um mês nada ocorre. Os garimpeiros voltam à atividade até que
ouvem a transmissão da notícia através da Rádio Nacional da Amazônia de que o fato foi des-
coberto, provocando revolta no país e no exterior. Em pânico, os homens decidem deixar a
área e iniciar uma marcha de dois dias até a pista de pouso clandestina Raimundo Nenê. Che-
gando, embarcam à força nos primeiros aviões que aparecem e ameaçam matar quem dê in-
formações sobre eles338. Chegando a Boa Vista/RR, alguns garimpeiros se dispersam, e outros
permanecem na cidade e acabam sendo presos pela Polícia Federal. É o caso de Pedro Pran-
cheta e Eliézer339.

3.2.2 A repercussão

Em agosto de 1993, dias seguintes à notícia do massacre, cresce a reação internacio-


nal, com protestos nas embaixadas e consulados de Washington, Nova York, Houston, São
Francisco, Londres e outras capitais européias, bem como na ONU. No dia 19 de agosto, a
notícia estava estampada nos jornais; políticos, policiais, chefes militares e antropólogos tra-
ziam suas teses sobre o acontecido, alguns inclusive negando o fato; enquanto isso, jornalistas
não paravam de chegar em Roraima, à procura de corpos. No mesmo dia, chegam à Brasília
as primeiras notícias340.

Com o fato nos noticiários, o então Ministro da Justiça, Maurício Corrêa, o Procura-
dor-Geral da República, Aristides Junqueira e o presidente da FUNAI se dirigem até o local –
embora soubessem mais tarde que o fato teria ocorrido em território venezuelano, o que exigi-
ria autorização do governo do País vizinho. Após incidentes com políticos locais, as autorida-

337
Vide ROCHA, Jan. Op. cit., p. 31. Na obra também consta, no apêndice, a cópia do documento enviado, na p.
139, bem como a descrição feita por um funcionário da Funai, informando duas malocas totalmente destruídas
(p. 140).
338
Idem, p. 29.
339
MAIA, Luciano Mariz. Op. cit., p. 08.
340
ROCHA, Jan. Op. cit., p. 33.
99

des conseguem ir até a reserva Yanomami, juntamente com aqueles341. O Procurador-Geral


começava a falar em genocídio.

Contudo, autoridades de Boa Vista negavam o massacre. O então Governador do Es-


tado, Ottomar Pinto, sustentava que se trataria de uma “invenção” dos interessados em apres-
sar a demarcação das terras indígenas, como a igreja progressista e as companhias estrangei-
ras, em busca da “internacionalização da Amazônia” e exploração das riquezas localizadas no
território; ademais, falava-se em uma farsa, uma vez que não haviam sido encontrados os cor-
pos das pessoas assassinadas. No entanto, para o Procurador-Geral, era o oposto, visto que os
interesses econômicos eram opostos à demarcação, precisamente para explorar os minerais342.

Enquanto o debate sobre o fato crescia, Davi Kopenawa auxiliava na busca de pistas
na área de Haximu:

‘Achamos muitas fogueiras, carvão de lenha, com muitos ossos. Muitos pe-
dacinhos, porque o calor do fogo destrói, quebra os ossos. Muitas pessoas podem
haver sido incineradas. Achamos muitos ossos socados, pulverizados. Fazemos uma
trouxa, com folhas de bananeira. Colocamos em cabaças. Essas trouxas foram en-
contradas no acampamento. Na floresta, achamos caixas de cartucho calibre 12, fu-
ros de revólver e de chumbo. Já há muita coisa para provar, mataram muitos de nos-
343
sos parentes’ .

Para tanto, a repercussão ocasionou os mais diversos fundamentos em torno do ocorri-


do, ocasionando revolta, tanto por parte daqueles que constataram a existência do massacre,
quanto para aqueles que buscavam negá-lo, seja por falta de informações, seja por interesse
próprio em desfigurar os fatos.

3.2.3 Investigação do crime e julgamento

O investigador da Polícia Federal, Raimundo Soares Cotrim, nomeado pelo Procura-


dor-Geral da República em substituição ao investigador Sidney Lemos, aproveitou as lealda-
des divididas entre os garimpeiros para localizar aqueles que estariam dispostos a colaborar;
também procurou localizar as mulheres empregadas como “cozinheiras” (que também desen-

341
Idem, p. 35.
342
Ibidem, p. 34.
343
Informação de Davi Kopenawa citado por ROCHA, Jan. Ibidem, p. 44.
100

volviam atividades de acompanhantes). No dia 21 de agosto, Cotrim requereu mandado de


prisão contra João Neto; contudo, este tinha desaparecido, abandonando casa e negócios. A
maioria dos outros da lista também havia desaparecido344.

Em que pese a maioria ter desaparecido, Cotrim usou os depoimentos das cozinheiras
para reconstituir o que teria se passado entre os garimpeiros. No dia 6 de setembro tomou o
depoimento de Eva Souza e Silvânia – conforme relato transcrito anteriormente; ambas havi-
am cozinhado para João Neto. Silvânia inclusive (de 19 anos) no início tinha medo de falar,
porque havia recebido ameaças. Disse que teria visto os corpos e relatou que teria ouvido que
um índio havia ajoelhado e falado “garimpeiro amigo”, e que haviam atirado no rosto do ra-
paz. Cotrim listou 23 suspeitos345.

Colhidas as informações, localizou o garimpeiro Juvenal Silva, que negou ter partici-
pado do massacre; porém, informou que sabia sobre o assunto. Em 7 de setembro, Cotrim de-
teve Pedro Emiliano Garcia (Pedro Prancheta), um dos quatro para os quais foi emitido man-
dado de prisão. O investigado negou ter participado, mas disse que sabia quem o fez, bem
como admitiu ter enviado o bilhete com os dizeres: “faça bom proveito desses otários”. For-
neceu descrições de 17 homens. Também contou que houve a participação de um pistoleiro
chamado Pedão, e forneceu a lista de assassinatos atribuídos a ele e a Parazinho, outro pisto-
leiro. Mais tarde, em juízo, Garcia não confirmou a confissão346.

No dia 9 de setembro, o juiz Renato Martins Prates ordena a prisão, por trinta dias, de
dezenove pessoas acusadas dos fatos; solicitou que os envolvidos fossem identificados pelos
seus nomes verdadeiros, vez que eram conhecidos somente por seus apelidos. Destes, somente
dois foram encontrados: Pedro Prancheta (Pedro Emiliano Garcia) e Eliézer (Eliezio Monteiro
Néri), ambos presos para aguardar julgamento. Durante a investigação, 38 pessoas foram ou-
vidas, dentre cozinheiras, índios e outros347.

Em 15 de setembro, foi solicitada uma autorização à Venezuela para entrada de um


helicóptero da polícia para investigações. Embora o massacre tenha ocorrido em solo venezu-
elano, os perpetradores eram brasileiros, podendo ser julgados no Brasil348. Apesar dos Minis-

344
Idem, p. 47.
345
Ibidem, p. 50.
346
Ibidem, p. 51.
347
Ibidem, p. 51.
348
Conforme o Código Penal: “Art. 7º: Ficam sujeitos à lei brasileira, embora cometidos no estrangeiro:
I – os crimes:
(...)
d) de genocídio, quando o agente for brasileiro ou domiciliado no Brasil”. BRASIL. Decreto-Lei 2.848, de 07
de dezembro de 1940. Disponível em: <www.planalto.gov.br>. Acesso em: 13 nov. 2008.
101

térios Públicos do Brasil e Venezuela terem firmado um termo de cooperação nas investiga-
ções, decidiram por fazer diligências em separado349.

Em 15 de outubro de 1993, a equipe de procuradores da República, sob a coordenação


do Dr. Luciano Mariz Maia, apresenta as denúncias contra nove pessoas, após semanas de e-
xame de provas e estudo da cultura Yanomami. Em 29 de dezembro de 1993, foram deferidos
os recursos dos dois únicos réus presos, os quais obtiveram o direito à prisão domiciliar; os
procuradores recorreram desta decisão350.

Após quatro audiências adiadas e dificuldades em encontrar testemunhas e outros ga-


rimpeiros, em 23 de março de 1994 a FUNAI envia um avião para trazer à Boa Vista Waythe-
reoma e Paulo Yanomami, as duas únicas testemunhas indígenas ouvidas pelo juiz351.

O antropólogo Bruce Albert, que participava das diligências352, verificou que os so-
breviventes traziam consigo quatorze cabaças com as cinzas dos parentes assassinados; era a
uma forte evidência do massacre. Mas havia um dilema, o qual as autoridades que dirigiam a
investigação passaram a enfrentar: não violar os costumes dos índios ou apanhar as cabaças
para colheita de provas? Enquanto isso, o lobby anti-indígena continuava na região de Rorai-
ma; inclusive um autor desconhecido, chamado Janer Cristaldo, chegou a defender a teoria de
que tudo seria uma farsa, escrevendo um artigo chamado “Os bastidores do Ianoblefe”353.

Por fim, Bruce Albert identificou as cinzas em cada uma das cabaças, por seu nome, e
cada uma foi individualmente fotografada nas mãos do respectivo parente, como mostra a foto
a seguir:

349
Idem, p. 51.
350
Ibidem, p. 53.
351
Ibidem, p. 53.
352
Bruce Albert traz inclusive informações e experiências pessoais sobre sua participação na colheita das evi-
dências que comprovaram o massacre. Nesse sentido, vide ALBERT, Bruce. Direitos Humanos e ética de pes-
quisa entre povos indígenas. Disponível em:
<http://www.proyanomami.org.br/v0904/documentos/doc2/part5.pdf>. Acesso em: 03 dez. 2007, p. 05-07.
353
ROCHA, Jan. Op. cit., p. 54.
102

354
Foto 3 – Parentes das vítimas do massacre de Haximu. Foto de Carlos Zacquini .

Contudo, um corpo não havia sido cremado: o da jovem Masena, cuja idade foi calcu-
lada em 18 anos. Levado seu corpo para exame no Instituto Nacional de Criminalística da Po-
lícia Federal em Brasília, o laudo pericial declarou que recebera, em 27 de agosto de 1993,
uma caixa de papelão contendo um esqueleto, fragmentos de ossos queimados, mechas de ca-
belo e invólucros de folha de bananeira. O laudo ainda apontava a existência de buracos de
bala no crânio e feridas de facão nos braços, abdome, peito, cabeça e pernas, bem como um
corte profundo no lado direito do rosto, que lhe partiu a cabeça355.

Nesse sentido, apontou o laudo:

‘Como bem ficou demonstrado na descrição, a coluna vertebral encontrava-


se inscrustrada na sua face ventral de vários pequenos projéteis metálicos compatí-
veis com carga de espingarda, cujo nível inferior se situava em L3 e o superior em
T5. Havia também um projétil na epífese distal da clavícula direita e um outro na fa-
ce anterior do terço antero-lateral do quinto arco costal direito, além de um orifício
produzido por projétil semelhante na pars zigomática da órbita direita. Estes elemen-
tos permitem concluir por um disparo de arma de fogo do tipo espingarda, com traje-
tória de diante para trás e a uma distância que estima-se ter se situado entre 5 e 10
metros. No crânio, posteriormente, foram encontrados vários orifícios localizados
nos ossos parietal e temporal esquerdos, produzidos por projéteis semelhantes, desta
feita, a uma distância estimada não superior a dois metros, com uma trajetória de
trás para diante e da esquerda para a direita.
Embora não dispondo de observações periciais do local do evento, os acha-
dos permitem fazer suposições acerca da dinâmica do mesmo. Levando-se em con-
sideração que o disparo frontal que atingiu o tórax, o abdômen e a órbita direita deu-
se a uma distância estimada de cinco a dez metros, este deve ter sido o primeiro,
quando a vítima encontrava-se provavelmente de pé. Momentos após, em decorrên-
cia de provável perda sangüínea vultosa, a mesma deve ter caído, no que o agressor

354
Parentes das vítimas do massacre de Haximu. Eles estão segurando cabaças contendo as cinzas dos corpos
cremados dos seus parentes. Foto de Carlos Zacquini. Disponível em:
<http://www.proyanomami.org.br/frame1/massacreHX.htm>. Acesso em: 14 dez. 2008.
355
ROCHA, Jan. Op. cit., p. 55.
103

se aproveitou, desta vez de uma distância menor, para desferir o segundo disparo na
356
cabeça. (Laudo, fls. 356 do IP)’ .

Após a autópsia, o esqueleto de Masena foi devolvido aos parentes para cremação ri-
tual. Não obstante as “teses” contrárias, estava comprovada a prática do crime.

Os procuradores sustentaram que se tratava de crime de genocídio, ou seja, a destrui-


ção intencional de um grupo humano. Os garimpeiros mataram pessoas cujos nomes sequer
conheciam, contra as quais não tinham razões para praticar tais atos. Uma forma de violência
impessoal357, além da frágil condição das vítimas – mulheres, crianças e idosos.

No início de dezembro 1996, o governo brasileiro foi denunciado na Comissão Inte-


ramericana de Direitos Humanos da Organização dos Estados Americanos (OEA), como res-
ponsável pelo massacre, devido à negligência e omissão para com os Yanomami. O caso, sob
o nº 11.745, denunciava que em razão da omissão e negligência do governo brasileiro, havia
ocorrido graves violações de direitos humanos358.

No mesmo ano, em 19 de dezembro de 1996, o juiz federal Itagiba Catta Preta Neto
condena Pedro Emiliano Garcia (Pedro Prancheta), João Pereira de Morais (João Neto), Elie-
zio Monteiro Néri (Eliézer), Francisco Alves Rodrigues (Chico Ceará) e Juvenal Silva (Curu-
rupu), por crime de genocídio. Cada um recebeu pena de dezenove anos e seis meses359.

Contudo, quando prolatada a sentença, os réus estavam em liberdade. Mais tarde, a po-
lícia deteve João Neto, e em agosto de 1997, Pedro Prancheta. Em relação aos demais, teriam
sido vistos em garimpos dentro da área Yanomami360.

Ainda na sentença, o magistrado concluiu que sendo crime contra a etnia, o juízo
competente seria o juiz singular, e não o tribunal do júri361. Contudo, em sede de apelação
criminal362, o Tribunal Regional Federal da 1ª Região decidiu, por maioria, anular a sentença
proferida pelo juiz para determinar que o julgamento deveria ocorrer pelo tribunal do júri. A
decisão sustentava que embora havendo o genocídio, tal delito teria sido praticado mediante o

356
Laudo do Instituto Nacional de Criminalística da Polícia Federal em Brasília, citado por MAIA, Luciano Ma-
riz. Op. cit., p. 12.
357
Idem, p. 11.
358
PIOVESAN, Flávia. Direitos Humanos e o Direito Constitucional Internacional. 7ª ed. São Paulo: Saraiva,
2007, p. 288.
359
ROCHA, Jan. Op. cit., p. 59.
360
Idem, p. 59.
361
MAIA, Luciano Mariz. Op.cit., p. 15.
362
Vide AC 1997.01.00.017140-0/RR. TRF 1ª Região.
104

assassinato de membros do grupo, o que se equipararia ao delito de homicídio quanto à com-


petência363.

Contudo, o MPF não se conformou com o pronunciamento e recorreu junto ao Superi-


or Tribunal de Justiça (STJ), considerando a necessidade de se fazer reconhecer que no delito
de genocídio visava-se proteger uma etnia. Em 12 de setembro de 2000, o STJ, no Recurso
Especial nº 222.653/RR, sob a relatoria do Min. Jorge Scartezzini, pela 5ª Turma e por una-
nimidade, decidiu que no genocídio o bem jurídico protegido seria a etnia, e o julgamento de
competência do juiz singular, restaurando a sentença anulada.

A decisão do Tribunal Superior foi assim resumida:

CONSTITUCIONAL E PROCESSUAL PENAL - RECURSO ESPECIAL


- CRIMINAL - CRIME DE GENOCÍDIO CONEXO COM OUTROS DELITOS -
COMPETÊNCIA – JUSTIÇA FEDERAL - JUIZ SINGULAR - ETNIA - ÍNDIOS
YANOMAMI - ALÍNEA "A", DO ART. 1º, DA LEI Nº 2.889/56 C/C ART. 74,
PARÁG. 1º, DO CPP E ART. 5º, XXXVIII, DA CF - PREQUESTIONAMENTO
IMPLÍCITO - CONHECIMENTO - SENTENÇA MONOCRÁTICA RESTABE-
LECIDA.
1 - Inicialmente, reconhecida extinta a punibilidade de FRANCISCO AL-
VES RODRIGUES, em virtude de seu falecimento, conforme certidão de óbito jun-
tada às fls. 1.807 dos autos (art. 107, I, CP).
2 - Aos réus-recorridos é imputada a perpetração dos delitos de lavra
garimpeira ilegal, contrabando ou descaminho, ocultação de cadáver, dano,
formação de quadrilha ou bando, todos em conexão com genocídio e associação
para o genocídio, na figura da alínea "a", do art. 1.º da Lei n.º 2.889/56, come-
tidos contra os índios YANOMAMI, no chamado "MASSACRE DE HAXI-
MÚ", que resultou na morte de 12 índios, sendo 01 homem adulto, 02 mulheres,
01 idosa cega, 03 moças e 05 crianças (entre 01 e 08 anos de idade), bem como
em 03 índios feridos, entre eles, 02 crianças.
3 - Esta Corte, através de seu Órgão Especial, posicionou-se no sentido de
que a violação à determinada norma legal ou dissídio sobre sua interpretação, não
requer, necessariamente, que tal dispositivo tenha sido expressamente mencionado
no v. acórdão do Tribunal de origem. Cuida-se do chamado prequestionamento im-
plícito (cf. EREsp nºs 181.682/PE, 144.844/RS e 155.321/SP). Sendo a hipótese dos
autos, afasta-se a aplicabilidade da Súmula 356/STF para conhecer do recurso, no
tocante à suposta infringência aos arts. 74, parág. 1º, do Código de Processo Penal e
1º, "a", da Lei nº 2.889/56.
4 - Como bem asseverado pela r. sentença e pelo v. decisum colegiado,
cuida-se, primeiramente, de competência federal, porquanto deflui do fato de terem
sido praticados delitos penais em detrimento de bens tutelados pela União Federal,
envolvendo, no caso concreto, direitos indígenas, entre eles, o direito maior à pró-
pria vida (art. 109, incisos IV e XI, da Constituição Federal). Precedente do STF
(RE nº 179.485/2-AM). Logo, a esta Corte de Uniformização sobeja, apenas e tão
somente, a análise do crime de genocídio e a competência para seu julgamento, em
face ao art. 74, parág. 1º, do Código de Processo Penal, tido como violado.
5 - Pratica genocídio quem, intencionalmente, pretende destruir, no to-
do ou em parte, um grupo nacional, étnico, racial ou religioso, cometendo, para
tanto, atos como o assassinato de membros do grupo, dano grave à sua integri-
dade física ou mental, submissão intencional destes ou, ainda, tome medidas a

363
MAIA, Luciano Mariz. Op. cit., p. 15.
105

impedir os nascimentos no seio do grupo, bem como promova a transferência


forçada de menores do grupo para outro. Inteligência dos arts. 2º da Conven-
ção Contra o Genocídio, ratificada pelo Decreto nº 30.822/52, c/c 1º, alínea "a",
da Lei nº 2.889/56.
6 - Neste diapasão, no caso sub judice, o bem jurídico tutelado não é a
vida do indivíduo considerado em si mesmo, mas sim a vida em comum do gru-
po de homens ou parte deste, ou seja, da comunidade de povos, mais precisa-
mente, da etnia dos silvícolas integrantes da tribo HAXIMÚ, dos YANOMAMI,
localizada em terras férteis para a lavra garimpeira.
7 - O crime de genocídio têm objetividade jurídica, tipos objetivos e
subjetivos, bem como sujeito passivo, inteiramente distintos daqueles arrolados
como crimes contra a vida. Assim, a idéia de submeter tal crime ao Tribunal do
Júri encontra óbice no próprio ordenamento processual penal, porquanto não
há em seu bojo previsão para este delito, sendo possível apenas e somente a
condenação dos crimes especificamente nele previstos, não se podendo neles in-
cluir, desta forma, qualquer crime que haja morte da vítima, ainda que causa-
da dolosamente. Aplicação dos arts. 5º, inciso XXXVIII, da Constituição Fede-
ral c/c 74, parág. 1º, do Código de Processo Penal.
8 - Recurso conhecido e provido para, reformando o v. aresto a quo, decla-
rar competente o Juiz Singular Federal para apreciar os delitos arrolados na denún-
cia, devendo o Tribunal de origem julgar as apelações que restaram, naquela oportu-
nidade, prejudicadas, bem como o pedido de liberdade provisória formulado às fls.
1.823/1.832 destes autos. Decretada extinta a punibilidade em relação ao réu
FRANCISCO ALVES RODRIGUES, nos termos do art. 107, I, do CP, em razão de
364
seu falecimento .

Como relata o procurador Luciano Mariz Maia, a decisão do STJ foi paradigmática,
constituindo-se em um importante precedente. Considerando que o crime de genocídio é um
delito contra um grupo humano enquanto tal, afasta a possibilidade de ser julgado pelo júri
popular. Outra questão que se apresenta como fundamento: o tribunal do júri é formado por
pessoas da sociedade envolvente (branca), majoritária, a qual muitas vezes possui preconceito
e discriminação, além da possibilidade de comprometer a imparcialidade do julgamento, em
se tratando de garimpeiros, fazendeiros, madeireiros e outras pessoas que fazem parte de gru-
pos sociais e econômicos365, direta ou indiretamente, como proprietários ou empregados; em
muitas vezes, tais pessoas podem influenciar o julgamento do júri a seu favor.

Com o julgamento do recurso especial, foi interposto recurso de embargos de declara-


ção, o qual foi negado pelo mesmo relator. Por fim, foi manejado recurso extraordinário junto
ao Supremo Tribunal Federal (RE 351.487/RR), que confirmou por unanimidade a decisão do
STJ, negando provimento ao recurso dos réus. A decisão foi proferida no seguinte sentido:

364
BRASIL. Resp 222.653/RR, 5ª Turma, Relator Ministro Jorge Scartezzini, julgado em 12/09/2000. Disponí-
vel em: <http://www.stj.jus.br>. Acesso em: 14 out. 2008.
365
MAIA, Luciano Mariz. Op. cit., p. 15.
106

EMENTAS: 1. CRIME. Genocídio. Definição legal. Bem jurídico pro-


tegido. Tutela penal da existência do grupo racial, étnico, nacional ou religioso,
a que pertence a pessoa ou pessoas imediatamente lesionadas. Delito de caráter
coletivo ou transindividual. Crime contra a diversidade humana como tal. Con-
sumação mediante ações que, lesivas à vida, integridade física, liberdade de lo-
comoção e a outros bens jurídicos individuais, constituem modalidade executó-
rias. Inteligência do art. 1º da Lei nº 2.889/56, e do art. 2º da Convenção contra
o Genocídio, ratificada pelo Decreto nº 30.822/52. O tipo penal do delito de ge-
nocídio protege, em todas as suas modalidades, bem jurídico coletivo ou tran-
sindividual, figurado na existência do grupo racial, étnico ou religioso, a qual é
posta em risco por ações que podem também ser ofensivas a bens jurídicos in-
dividuais, como o direito à vida, a integridade física ou mental, a liberdade de
locomoção etc.. 2. CONCURSO DE CRIMES. Genocídio. Crime unitário. Delito
praticado mediante execução de doze homicídios como crime continuado. Concurso
aparente de normas. Não caracterização. Caso de concurso formal. Penas cumulati-
vas. Ações criminosas resultantes de desígnios autônomos. Submissão teórica ao art.
70, caput, segunda parte, do Código Penal. Condenação dos réus apenas pelo delito
de genocídio. Recurso exclusivo da defesa. Impossibilidade de reformatio in peius.
Não podem os réus, que cometeram, em concurso formal, na execução do delito de
genocídio, doze homicídios, receber a pena destes além da pena daquele, no âmbito
de recurso exclusivo da defesa. 3. COMPETÊNCIA CRIMINAL. Ação penal.
Conexão. Concurso formal entre genocídio e homicídios dolosos agravados. Fei-
to da competência da Justiça Federal. Julgamento cometido, em tese, ao tribu-
nal do júri. Inteligência do art. 5º, XXXVIII, da CF, e art. 78, I, cc. art. 74, § 1º,
do Código de Processo Penal. Condenação exclusiva pelo delito de genocídio, no
juízo federal monocrático. Recurso exclusivo da defesa. Improvimento. Compete
ao tribunal do júri da Justiça Federal julgar os delitos de genocídio e de homicídio
366
ou homicídios dolosos que constituíram modalidade de sua execução .

Todavia, embora julgada a questão referente à competência e sobre aspectos teóricos


sobre o genocídio, o TRF da 1ª Região deverá julgar posteriormente o mérito, ou seja, se os
réus que recorreram realmente teriam participado do massacre.

Enquanto corre o processo criminal, os 69 sobreviventes de Haximu tentam reconstru-


ir novas casas e uma nova vida. E como relata Bruce Albert, os guerreiros de Haximu desisti-
ram de se vingar dos garimpeiros que praticaram os atos, pois para eles, estes não são dignos
de ser considerados inimigos; apenas esperam que os culpados sejam “trancados” por outros
brancos para nunca mais voltar em suas terras367.

366
RE 351.487/RR, Tribunal Pleno, Relator Ministro Cezar Peluso, julgado em 03/08/2006. Disponível em :
<http://www.stf.gov.br/portal/jurisprudencia/listarJurisprudencia.asp>. Acesso em: 14 out. 2008.
367
ALBERT, Bruce. O massacre dos Yanomami de Haximu. Op. cit., p. 10.
107

3.3 O DEPOIS

Passados os anos, em que pese todos os problemas (principalmente do final da década


de 80) que resultaram no massacre de Haximu, as adversidades continuam. Problemas com a
assistência à saúde, ameaças e tentativas de implementação de mineração no território (até
mesmo por autoridades públicas) ainda existem.

3.3.1 A condição dos Yanomami após o massacre

Em dezembro de 1995, a Comissão de Direitos Humanos da OEA visita a área Yano-


mami, relatando que as ações tomadas pelo Estado de Roraima contribuíram para a degrada-
ção dos povos indígenas da região. A Comissão também concluiu que a proteção oferecida
pelo Estado aos Yanomami contra invasores e a poluição ambiental era frágil e irregular,
mantendo um permanente estado de perigo e contínua deterioração do habitat368.

Em janeiro de 1995, com a sucessão na presidência, Itamar Franco é substituído por


Fernando Henrique Cardoso. O novo presidente foi responsável pela introdução do Decreto nº
1.775, que permitia a contestação da demarcação de muitas terras indígenas pelas partes inte-
ressadas369.

Em março de 1996, a FUNAI fica sem recursos para manter operações de vigilância
permanente sobre a reserva Yanomami. Dentro de 24 horas, foram vistos aviões carregando
garimpeiros e equipamentos, bem como relatos de que se estava distribuindo armas para os
índios. Foram apurados posteriormente vários casos de morte e ferimentos à bala. No mesmo
ano, o então Ministro da Justiça, Nelson Jobim, promete efetuar uma operação para retirar os
garimpeiros da área; no entanto, nada acontece370.

Ainda no mesmo ano, o CIMI publica relatório afirmando que no período de 1994 a
1995, um terço da população indígena sofria de desnutrição, 75 indígenas teriam sido assassi-

368
ROCHA, Jan. Op. cit., p. 116.
369
Idem, p. 117.
370
Ibidem, p. 117.
108

nados, e 46 reservas indígenas – a maioria na região amazônica – teriam sofrido novas inva-
sões as quais, segundo o CIMI, foram resultado da promulgação do Decreto 1.775371.

A ameaça aos Yanomami também veio de alguns integrantes do Poder Legislativo. O


senador Romero Jucá, integrante do PMDB de Roraima, apresentou um projeto de lei (Projeto
1.610/96), o qual dispõe sobre a mineração em terras indígenas. O senador, ex-presidente da
FUNAI entre maio de 1986 e setembro de 1988 – na época da corrida do ouro no território –
foi acusado pelos indígenas de ter permitido a ocupação de suas terras pelos garimpeiros, o
que teria provocado a morte de muitos Yanomami. Enquanto prossegue o projeto de minera-
ção, o Estatuto das Sociedades Indígenas está parado no Congresso Nacional há anos372.

Em novembro de 1997, em razão das contínuas pressões das organizações não-


governamentais que atuam junto aos Yanomami – notadamente a CCPY e a Survival Interna-
tional – a operação de retirada dos garimpeiros foi reiniciada e durou três meses, com a retira-
da de aproximadamente 2.000 pessoas. Ao mesmo tempo, Fernando Henrique anuncia uma
política de defesa da Amazônia, visando aumentar a presença militar, visando transformar os
limites em “fronteiras vivas”; também autorizou o aumento da BR 174373.

Em dezembro do mesmo ano, o presidente Fernando Henrique lança um programa na-


cional de direitos humanos. Pouco tempo depois, o governo inaugura um site na internet, o
qual incentivava investimentos em Roraima, mediante a oferta de milhões de acres de terras
férteis, estradas e infra-estrutura, sem observar, contudo, que 24% da população do Estado
pertence a diversas comunidades indígenas, ocupando 43% da área374.

3.3.2 Assistência à saúde

Outra questão que não foi solucionada, mesmo após todos os problemas e o massacre,
é a saúde do Povo Yanomami. Apesar da criação do Distrito Sanitário Yanomami (DSY) em
1991, com a colaboração de órgãos nacionais, antropólogos e membros de organizações de
proteção aos povos indígenas – visando combater as doenças trazidas pelas invasões, especi-
almente surtos de malária e tuberculose, em 1994 a coordenação da saúde retorna eminente-

371
Idem, p. 118.
372
Ibidem, p. 131.
373
Ibidem, p. 118.
374
Ibidem, p. 120.
109

mente à FUNAI e ao Ministério da Saúde375. Em 1998, conforme os próprios relatos da FU-


NASA (Fundação Nacional de Saúde), neste ano teriam falecido cerca de 180 Yanomami; o
índice de mortalidade atingiu em média 160 mortes de crianças menores de 1 ano para cada
mil nascidos vivos, índice superior às regiões menos aparelhadas do Terceiro Mundo. O índi-
ce de mortalidade geral era quatro vezes maior que o registrado em toda a população brasilei-
ra376.

No final de 1999, foi firmado um programa de saúde para quase toda área Yanomami,
sendo a CCPY convidada a colaborar. Contudo, pelas pressões de organismos locais do Esta-
do de Roraima, sob o fundamento da “ameaça internacional”, a área de atribuição da CCPY
foi reduzida. Em que pese o ocorrido, a CCPY decide criar uma organização independente, a
Urihi. No período entre 2001 e 2004, nenhum Yanomami morreu de malária, e esta foi redu-
zida em 99%377.

Todavia, a partir de 2003, sob o governo do presidente Luis Inácio Lula da Silva, a re-
lação entre a FUNASA e as ONGs que atuavam em parte dos territórios começa a ter proble-
mas378. Em 2004, a FUNASA anuncia uma nova política indigenista. A Urihi decide inter-
romper a parceria, pois entendia que a proposta seria uma contra-reforma. Um ano depois
(2005), a FUNASA passava a gastar o dobro de dinheiro e o atendimento ficava cada vez
mais trágico. Para a Urihi, esta situação teria ocorrido devido às interferências políticas locais
anti-indígenas envolvidas em irregularidades379.

Em 2006 foi registrada uma epidemia de malária séria. Somente no primeiro semestre
de 2006 foram notificados 2.591 casos, um aumento de 470% em relação ao mesmo período
do ano anterior380.

3.3.3 O homem branco ainda ronda a floresta

No ano de 2007, cerca de 17 anos após a primeira operação de retirada de invasores e


13 anos após Haximu, a região continua sendo alvo de cobiça, com a utilização de máquinas

375
Idem, p. 125.
376
Ibidem, p. 126.
377
Ibidem, p. 127.
378
Ibidem, p. 127.
379
Ibidem, p. 128.
380
Ibidem, p. 129.
110

para garimpo. Também constantemente são distribuídas armas e munições aos indígenas; em
fevereiro de 2004, um grupo de garimpeiros executou com um tiro o funcionário da FUNAI,
Valdes Marinho Lima, indígena que trabalhava no órgão desde 1986381.

Não obstante os apelos feitos às autoridades federais, não houve retirada dos garimpei-
ros. Uma lei promulgada em outubro de 2004, que autoriza as Forças Armadas a disparar con-
tra aviões suspeitos dentro da área amazônica, não interrompeu o fluxo de aviões à Terra Ya-
nomami, não havendo qualquer controle pela Polícia Federal ou autoridades militares382.

Em 14 de fevereiro de 2008, uma Comissão Especial da Câmara Federal que analisa o


projeto de mineração em terras indígenas (1.610/96), chegou às 12 horas para visitar a região
do Surucucu e Auaris. A comissão tinha como representantes os Deputados Federais Édio Vi-
era Lopes (PMDB/RR), Eduardo Valverde (PT/RO), Márcio Junqueira (DEM/RR) e João
Almeida; também figuravam como convidados o General Eliézer Monteiro Filho, comandante
da 1ª Brigada de Infantaria de Selva no Estado, o consultor legislativo Luiz Miranda e o De-
putado Estadual de Roraima, Chico Guerra. A comissão se deslocou até o local para falar so-
bre mineração e os seus “benefícios”383. Por parte dos Yanomami, acompanharam a comissão
Dário Vitório Xiriana (Tesoureiro da Hutukara Associação Yanomami) e Raul Luiz Yacashi
Rocha (Professor Yanomami), expondo que a comunidade não admite mineração em suas ter-
ras. Representantes do MPF e FUNAI não estavam presentes.

Após a reunião nas comunidades de Surucucus e Auaris, Dário e Raul concluíram no


relatório:

Percebemos que todos os Deputados da Comissão e o General Eliézer Mon-


teiro Filho, não estão dispostos a ajudar os índios que habitam o Território Yano-
mami. Eles colocaram dificuldades para nos levar, tentaram convencer as lideranças
vendendo benefícios da Mineração e ofertando presentes (Márcio Junqueira – Depu-
tado Federal – DEM/RR). O que nós falamos e as lideranças falaram eles nem se-
quer fizeram anotações, não chamaram a gente para a entrevista coletiva que fizeram
no dia 14/02/2008 à noite na Assembléia Legislativa de Roraima, não disseram na
imprensa que os Yanomami são contra o Projeto de Lei de Mineração. Só sabem fa-
lar que os Yanomami são manobrados por órgãos externos. Não querem reconhecer
a legitimidade da Hutukara Associação Yanomami – HAY como organização de re-
presentação do nosso povo, não estão respeitando as nossas comunidades quando o
pessoal do Exército traz autoridades sem consultar, sem informação. Chegam de re-
pente e exigem que as lideranças reúnam os seus parentes para ouví-los, direciona-

381
Idem, p. 130.
382
Ibidem, p. 130.
383
O relatório da visita dos parlamentares, com as conversas travadas na reunião, consta no site
<www.proyanomami.org.br>. Acesso em: 21 fev.2008. Além do relatório, podem ser acessadas na mesma pági-
na as notícias Yanomami na imprensa, de 16 de fevereiro e 21 de fevereiro de 2008.
111

ram as visitas para as proximidades das bases do Exército para influenciar nos resul-
tados das conversas.
É MUITO PREOCUPANTE a posição do Relator já favorável ao Projeto
de lei de Mineração e aceitando a maneira de condução dos trabalhos feitos pelo
Presidente da Comissão, que todos nós sabemos em Roraima é contra índios. Outra
preocupação é com o Senhor Márcio Junqueira (Deputado Federal – DEM/RR) que
já foi garimpeiro na região do Homoxi (alto Mucajaí) e contribuiu com isso para o
sofrimento de muitos Yanomami e também é hoje o representante dos fazendeiros,
384
madeireiros e arrozeiros no Estado de Roraima .

Após o ocorrido, o líder Davi Kopenawa foi até a Câmara dos Deputados para denun-
ciar as irregularidades da visita, bem como esclarecer que o projeto causará um grande perigo
ambiental em decorrência da exploração de terra e a destruição das florestas para a retirada de
minério.

Assim, o clima de tensão, de guerra oculta ainda perdura após o massacre. O homem
branco ainda ronda a floresta.

384
Relatório de visita parlamentar na TI Yanomami. Disponível em: <www.proyanomami.org.br>. Acesso em:
21 fev. 2008.
112

CAPÍTULO IV – DIREITO À EXISTÊNCIA E À IDENTIDADE CULTURAL

“Eu fico preocupado com nossos filhos. Eles vão sofrer mais que agora. Eu
sempre lembro dos netos; eles vão sofrer mais que nós se a gente não lutar para de-
385
fender, para salvar a vida do povo”. (Davi Kopenawa Yanomami)

4.1 A LUTA PELA EXISTÊNCIA E PELA IDENTIDADE CULTURAL

O direito à existência e à identidade cultural são direitos constantemente violados e


objeto de luta, principalmente por parte dos povos indígenas. No primeiro plano, o direito a
existir deve corresponder ao direito de um grupo humano ou de um povo poder se perpetuar.
Mais do que um direito à vida no plano individual, deve ser um direito à existência de uma
coletividade de seres humanos, que se identificam pelas suas tradições, língua, caracteres físi-
cos e modo de vida; o objetivo maior é assegurar a vida do grupo, ou de um povo. O direito à
identidade cultural, por sua vez, deve corresponder ao direito de poder transmitir suas tradi-
ções, seus costumes, língua, modo de vida. Além de proteger a existência do grupo humano, é
necessário preservar seus traços culturais que o caracterizam como um povo distinto ou um
grupo específico.

Ao nosso sentir, neste âmbito devem ser atuantes os direitos humanos; porém, longe
de se constituírem como uma pretensão universal a partir da cultura dominante, devem servir
como um instrumento intercultural que objetive preservar a existência dos seres humanos e
seus aspectos culturais característicos (como língua, tradições e território, por exemplo). Nes-
te aspecto, o conceito de tolerância é uma chave para uma abordagem dos direitos humanos e
do seu campo específico: o direito dos povos. A seguir, será feita uma exposição sobre um
exemplo característico de luta pela existência e pela identidade cultural: a Hutukara, associa-
ção dirigida pelos Yanomami em defesa de seus direitos coletivos especiais.

385
Ação pela cidadania – 1990. Yanomami: a todos os povos da Terra. Op. cit., p. 04.
113

4.1.1 Tolerância

Primeiramente, a fim de compreender a importância da questão da tolerância como


fundamento dos direitos humanos e direito dos povos, é necessário traçar algumas considera-
ções acerca de duas palavras que norteiam a noção de tolerância: sob a nossa compreensão,
são a identidade e a diferença. A identidade é aquilo que se é (ser brasileiro, ser homem, ser
negro, ser indígena). Nesse sentido, a identidade somente terá referência a si própria, ou seja,
é uma concepção auto-suficiente386. O idêntico (que constitui a identidade), em latim idem,
significa o mesmo. E como Heidegger leciona, em cada identidade incidirá uma relação
“com”, uma união numa unidade387.

Já a diferença é aquilo que o outro é (ele é estrangeiro, ele é negro, etc). Da mesma
forma que a identidade, a diferença remete a si própria. Assim, a diferença, tal como a identi-
dade, simplesmente existe, e ambas estão em estreita relação de dependência388. Se sou negro,
por exemplo, não sou branco. Trata-se de uma típica relação que exprime uma identidade (sou
negro, faço parte de uma unidade determinada) e diferença (não sou branco, existem outros
colegas, outros amigos que o são) 389.

De um modo geral, considera-se a diferença um produto derivado da identidade; ou


seja, a identidade define a diferença. Tal pensamento refletirá numa tendência a tomar aquilo
que somos como sendo a norma pela qual avaliamos aquilo que não somos390. Isto gera nor-
malmente a intolerância (seja religiosa, racial, étnica ou política), resultando em perseguição
religiosa ou política, assimilação forçada de grupos étnicos (etnocídio) ou purificação étnica,
mediante a prática do genocídio.

Para tanto, a concepção de tolerância deve ser considerada no diálogo com a diferença
e a identidade. Ela possibilita a coexistência de grupos de pessoas com histórias, culturas e
identidades diferentes391.

Um dos primeiros escritos sobre o tema foi feito por John Locke, na obra Cartas sobre
Tolerância, em que o filósofo defendia que nenhum homem poderia privar outro homem (que

386
SILVA, Tomaz Tadeu da; HALL, Stuart; WOODWARD, Kathryn. Identidade e diferença: a perspectiva dos
estudos culturais. 2ª ed. Petrópolis: Vozes, 2003, p. 74.
387
HEIDEGGER, Martin. Identidade e diferença. Petrópolis: Vozes, 2006, p. 39.
388
SILVA, Tomaz Tadeu da; HALL, Stuart; WOODWARD, Kathryn. Op. cit., p. 74.
389
Idem, p. 75.
390
Ibidem, p. 76.
391
WALZER, Michael. Da tolerância. São Paulo: Martins Fontes, 1999, p. 04.
114

não seja de sua igreja ou fé) da liberdade ou de seus bens por conta da diferença religiosa que
exista entre eles392.

Na modernidade do Século XXI, especialmente com relação às etnias distintas da cul-


tura dominante etnocentrista (esta hoje estendida ainda mais pela globalização), o grande de-
safio é a prática da tolerância. A carência deste preceito é um dos fatores que desencadeiam
processos de extermínio físico e cultural de grupos humanos inteiros, principalmente pelo fato
de determinados grupos valorizarem coisas que não valorizamos. Exemplo característico é a
grande discriminação, tanto legal como de fato, aos diversos povos indígenas no Estado brasi-
leiro, os quais muitos têm se organizado – inclusive em associações – para garantir o direito
de continuarem existindo na forma de comunidades distintas, portadoras de traços culturais e
território próprio, preservados ao longo de séculos393.

Um documento importante (que embora não tendo força cogente de convenção ou lei
nacional) veio a demonstrar a necessidade de se observar o preceito da tolerância é a Declara-
ção de Princípios sobre a Tolerância, aprovada pela UNESCO, em 1995. Nesta declaração, a
tolerância é definida no art. 1.1 como

o respeito, a aceitação e o apreço da riqueza e da diversidade das culturas


de nosso mundo, de nossos modos de expressão e de nossas maneiras de exprimir
nossa qualidade de seres humanos. É fomentada pelo conhecimento, a abertura de
espírito, a comunicação e a liberdade de pensamento, de consciência e de crença. A
tolerância é a harmonia na diferença. Não só é um dever de ordem ética; é igualmen-
te uma necessidade política e jurídica. A tolerância é uma virtude que torna a paz
394
possível e contribui para substituir uma cultura de guerra por uma cultura de paz .

Por esta definição, ela não é compreendida como uma concessão, caridade ou condes-
cendência, mas, antes de tudo, uma atitude ativa, fundada no reconhecimento dos direitos uni-
versais da pessoa humana395 e das liberdades fundamentais do outro, não podendo ser invoca-
da para justificar lesões a esses valores fundamentais (art. 1.2); é o sustentáculo dos direitos
humanos e do pluralismo (inclusive cultural), conforme preconiza o art. 1.3.

A declaração defende ainda que a prática da tolerância deve ser compreendida no se-
guinte aspecto (art. 1.4):
392
LOCKE, John. Cartas sobre Tolerância. São Paulo: Ícone, 2004, p. 86.
393
GRUPIONI, Luís Donisete Benzi; VIDAL, Lux; FISCHMANN, Roseli. Povos indígenas e tolerância: cons-
truindo práticas de respeito e solidariedade. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2001, p. 89.
394
Idem, p. 281.
395
Sobre a questão da universalidade relacionada aos direitos humanos (e à dignidade, por conseguinte), aborda-
remos em especial no próximo tópico.
115

Em consonância ao respeito dos direitos humanos, praticar a tolerância não


significa tolerar a injustiça social, nem renunciar às próprias convicções, nem fazer
concessões a respeito. A prática da tolerância significa que toda pessoa tem a livre
escolha de suas convicções e aceita que o outro desfrute da mesma liberdade. Signi-
fica aceitar o fato de que os seres humanos, que se caracterizam naturalmente pela
diversidade de seu aspecto físico, de sua situação, de seu modo de expressar-se, de
seus comportamentos e de seus valores, têm o direito de viver em paz e de ser tais
396
como são. Significa também que ninguém deve impor suas opiniões a outrem .

De acordo com os apontamentos dos antropólogos Luís Donizete Benzi Grupioni e


Lux Boelitz Vidal, o direito de viver em paz e ser como são talvez seja o direito que mais foi
negado aos povos indígenas em termos históricos. Ou seja, o direito de se manterem e serem
reconhecidos como grupos culturalmente distintos, portadores de tradições, de modo de ser e
viver próprio e uma visão de mundo particular397.

Ademais, como prevê a declaração, a tolerância é um preceito necessário, principal-


mente pelo fato de que vivemos em uma época marcada pela mundialização da economia, a-
celeração da comunicação, dos deslocamentos de populações, urbanização e transformação
das formas de organização social. Ainda pelo fato de que todo o mundo é marcado pela diver-
sidade, a intolerância e os confrontos decorrentes dela se constituem uma ameaça em potenci-
al para todas as regiões (art. 3.1, DPT). É um fenômeno da sociedade do risco, que produz
mais do que nunca um estado de perigo permanente, em que comunidades étnicas, pela sua
vulnerabilidade, podem ser vitimadas a qualquer momento pela intolerância e pela violência,
como ocorreu no caso dos Yanomami.

Destarte, entender a concepção de tolerância é um elemento indispensável para se re-


conhecer que vivemos em uma sociedade pluriétnica, em que as comunidades distintas mere-
cem respeito e reconhecimento de suas culturas e modos de vida, bem como seu direito à exis-
tência enquanto grupo humano.

396
GRUPIONI, Luís Donisete Benzi; VIDAL, Lux; FISCHMANN, Roseli, Op. cit., p. 282.
397
Idem, p. 31.
116

4.1.2 Direitos Humanos

A tolerância, como abordado, é a base dos direitos humanos e do pluralismo. Mas para
tratar ainda da questão dos direitos humanos relacionados com a proteção dos povos e grupos
humanos, necessário tecer algumas considerações iniciais sobre a concepção e desenvolvi-
mento da idéia de direitos humanos, que resulta na questão atinente à proteção dos grupos e
povos (minorias étnicas, raciais, religiosas, políticas, etc., em condição de vulnerabilidade).

Para alguns, os direitos humanos seriam aqueles inerentes à vida, à segurança indivi-
dual, aos bens, etc; para outros, direitos humanos significa valores superiores que regem os
homens; uns entendem que são direitos inerentes à natureza humana; outros sustentam que é
uma conquista social através da luta política398. E nesse sentido, é pertinente esclarecer que os
direitos humanos, antes de qualquer coisa, provêm historicamente de um conteúdo político399.
Ou seja, se os direitos humanos no plano histórico já foram entendidos de diferentes maneiras
(provenientes da vontade divina; direitos que já nascem com o indivíduo; emanados do poder
do Estado; ou um produto da luta de classes), isso significa que cada uma dessas concepções
representou distintos momentos na história do pensamento e das sociedades humanas400. São
noções de direitos ou valores fundamentais que se transformaram de acordo com o modo de
organização social. Com efeito, é impossível concluir que exista apenas uma única fundamen-
tação e concepção para os direitos humanos401. Mas de certa forma, o que fundamenta a dou-
trina jurídica dos direitos humanos é a dignidade da pessoa humana402.

As origens mais antigas da fundamentação filosófica dos direitos fundamentais da pes-


soa humana advêm dos primórdios da civilização. No mundo antigo, diversos princípios ser-
viam como base dos sistemas de proteção marcados pelo humanismo ocidental judaico-cristão
e greco-romano, ou pelo humanismo oriental, através das tradições hindu, chinesa e islâmica.
Assim, diferentes ordenamentos jurídicos da Antigüidade, como as leis hebraicas, estabeleci-
am princípios de proteção de valores humanos mediante uma hermenêutica religiosa403.

Com o passar dos tempos, surgiram três principais concepções, com seus respectivos
fundamentos: A primeira – concepção idealista – fundamentava os direitos do homem através
de uma visão metafísica, pela qual se identificava direitos e valores supremos a partir de uma
398
DORNELLES, João Ricardo W. O que são direitos humanos. São Paulo: Brasiliense, 2007, p. 09.
399
Idem, p. 10.
400
Ibidem, p. 12.
401
Ibidem, p. 16.
402
PERELMAN, Chaïm. Ética e Direito. São Paulo: Martins Fontes, 2002, p. 401.
403
DORNELLES, João Ricardo W. Op. cit., p. 14.
117

ordem transcendental, manifestada na vontade divina (como no feudalismo), ou na razão natu-


ral humana (como ocorreu a partir do século XVII, com o advento da Escola do Direito Natu-
ral). Desta concepção vinha a idéia de que os direitos são inerentes ao homem, ou nascem pe-
la força da sua natureza (os homens já nascem livres, dignos, iguais; ou pela graça do espírito
santo). Direitos à segurança e à liberdade existiriam independentemente da existência do Es-
tado404.

A segunda concepção – a positivista – fundamentava os direitos essenciais ao homem


desde que reconhecidos pelo Estado por uma ordem jurídica positiva. Com efeito, os direitos
humanos seriam resultantes da força do Estado, mediante o processo de legitimação e reco-
nhecimento legislativo (reconhecimento pelo Poder Público), e não produto de uma força su-
perior estatal, como Deus ou a razão humana. Cada direito humano existe quando está previs-
to na lei405.

A terceira concepção – crítico-materialista – desenvolveu-se no século XIX, por uma


fundamentação histórico-estrutural. Ela surge como uma crítica ao pensamento liberal, e en-
tende que os direitos do homem, previstos nas declarações de direitos e nas Constituições dos
séculos XVIII e XIX seriam uma expressão formal de um processo político-social e ideológi-
co, realizado pelas lutas sociais quando a burguesia ascendeu ao poder político. Esta concep-
ção surge principalmente das obras filosóficas de Karl Marx406.

Assim, com base nestas diferentes concepções e fundamentações acerca dos direitos
humanos é que se desenvolveram as chamadas “gerações” de direitos humanos. Contudo, ao
nosso entender – e seguindo a doutrina de Ingo Sarlet407 – o termo “gerações” porventura po-
de causar a impressão de que haveria uma substituição gradativa de uma geração por outra, o
que não seria conveniente em termos de direitos humanos e fundamentais. Ou seja, há em
verdade uma complementaridade, que advém de um processo cumulativo de novas reivindi-
cações. Assim, seguindo a lição do autor, faz-se mais adequada a utilização do termo dimen-
sões. Esta estrutura vincula os direitos humanos, mas também os direitos fundamentais de cu-
nho constitucional408.

A primeira dimensão é caracterizada pelos direitos individuais. Com as idéias contra-


tualistas do século XVII, especialmente de Hobbes com o Estado político e John Locke com a
404
Idem, p. 16.
405
Ibidem, p. 16.
406
Ibidem, p. 17.
407
SARLET, Ingo Wolfgang. A Eficácia dos Direitos Fundamentais. 8ª ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado,
2007, p. 54.
408
Idem, p. 55.
118

teoria da liberdade natural do ser humano e o direito fundamental à propriedade, se desenvol-


ve a concepção dos direitos individuais409. Já no século XVIII com Rousseau, numa época em
que houve o confronto direto da burguesia revolucionária com o regime absolutista, este filó-
sofo defendia que a propriedade era a fonte da desigualdade humana, e que o princípio da i-
gualdade era a condição essencial para o exercício da liberdade410. Neste período revolucioná-
rio sobrevieram a Declaração da Virgínia de 1776 e a Declaração Universal dos Direitos do
Homem e do Cidadão, de 1789.

Essa primeira dimensão é marcada eminentemente pelas reivindicações da burguesia,


dentro do processo de constituição do mercado livre. Direitos como a liberdade, a livre inicia-
tiva, livre manifestação da vontade, liberdade de ir e vir, liberdade de pensamento e expressão
e mão-de-obra livre criavam a consolidação do modo de produção capitalista e do Estado Li-
beral411. Trata-se de direitos de cunho negativo, exigindo-se uma resistência, uma oposição
perante o Estado.

A segunda dimensão é definida pelos direitos coletivos. Com a consolidação do Esta-


do Liberal (e da burguesia, a qual deixa de ser revolucionária) e o modelo de desenvolvimento
da economia nos primeiros setenta anos do século XIX (concentração de mão-de-obra, ampli-
ação dos mercados, lucros e incorporação do maquinário moderno ao processo produtivo),
passa a emergir uma massa de pessoas pobres, expropriadas e insatisfeitas por não usufruir
das conquistas alcançadas na luta pela “liberdade, igualdade e fraternidade”, bandeira da bata-
lha contra o absolutismo monárquico. Assim, o desenvolvimento do modelo industrial e a
concentração de trabalhadores em uma mesma unidade de produção, que eram submetidos a
uma única disciplina imposta pela fábrica, fizeram com que surgisse uma nova classe social: o
proletariado (classe operária urbano-industrial)412.

O surgimento da classe operária no século XIX e início do século XX, o domínio da


burguesia industrial e o Estado Liberal não-intervencionista propiciaram o desenvolvimento
de uma crítica social pelas idéias socialistas dos setores mais populares, principalmente de-
senvolvido pelo pensamento de Karl Marx. Assim, houve uma reflexão crítica sobre os direi-
tos fundamentais proclamados pelas declarações anteriores, que seriam enunciados de caráter
individualista a todos os povos. Para tanto, principalmente com o texto “A questão judaica”
de Marx (em 1844) questionava-se a existência de uma grande contradição entre os princípios

409
DORNELLES, João Ricardo W. Op. cit., p. 19.
410
Idem, p. 20.
411
Ibidem, p. 21.
412
Ibidem, p. 23.
119

consagrados nas declarações e a realidade vivida pela maioria do povo (especialmente as con-
dições degradantes impostas aos trabalhadores europeus)413.

Para tanto, as lutas operárias e populares marcaram a reivindicação por direitos soci-
ais, econômicos e culturais, através de uma ação efetiva do Estado – com a revolução mexica-
na, a revolução russa de 1917, a Constituição da República de Weimar na Alemenha e a cria-
ção da OIT em 1919. São os direitos de ação positiva do ente estatal, direitos de dimensão po-
sitiva. Dentre eles, sobrevieram o direito ao trabalho, direito à organização sindical, direito à
previdência social, direito à greve, direito a serviços públicos, moradia, etc., frutos das críticas
socialistas, com o Estado como agente interventor414.

A terceira dimensão dos direitos humanos é também chamada de direitos de solidari-


edade ou direitos de fraternidade, ou direito dos povos. Com os regimes totalitários da União
Soviética stalinista e da Alemanha nazista e o término da Segunda Guerra Mundial, iniciaram-
se novas demandas em termos de direitos humanos. Os direitos dos povos são ao mesmo tem-
po direitos individuais e direitos coletivos415. Outro fator que também contribuiu para o ad-
vento da terceira dimensão de direitos foi o constante estado de medo que o mundo enfrentou
com a Guerra Fria, mediante a constituição do bloco americano e de outro lado, o soviético. O
mundo presenciava, após os genocídios destruidores de classes, de grupos étnicos, raças ou
grupos culturais uma outra ameaça: a atômica, a partir da qual poderia haver uma guerra em
que não existiriam vencidos, mas uma catástrofe que atingiria toda a espécie humana416.

Por fim, outra questão que marca o advento dos direitos de terceira dimensão foi a no-
va divisão do trabalho e a “Era das multinacionais”. Especialmente no período de 1945 até
1960, o grande impulso econômico com base no capital das multinacionais e o uso intensivo
das fontes de energia e recursos naturais de todas as regiões do mundo levaram a um nível de
desenvolvimento da produção que causou – e ainda hoje se estende – um grande quadro de
destruição ambiental417.

Para tanto, no século XX houve uma constante ameaça de extermínio de grupos hu-
manos, dos recursos naturais, e até mesmo uma ameaça de destruição total da vida no planeta,
o que ensejou a emergência de uma nova concepção acerca dos direitos humanos: Direito à
paz, direito ao ambiente, direitos de proteção aos grupos humanos (repressão ao genocídio, à

413
Idem, p. 25.
414
Ibidem, p. 30.
415
Ibidem, p. 33.
416
Ibidem, p. 34.
417
Ibidem, p. 35.
120

discriminação, proteção às minorias). Estes direitos, portanto, desprendem-se da figura do


homem enquanto indivíduo passando à proteção de grupos humanos; direitos eminentemente
de titularidade coletiva ou difusa418. Visam proteger, portanto, a família, o povo, a nação, co-
letividades regionais ou étnicas, e inclusive a própria humanidade419.

Com todos estes fatores, foi necessária a criação de mecanismos que estabelecessem
um limite à atuação dos Estados pelas leis internacionais, embora a maioria não disponha de
poder coercitivo, mas apenas de conteúdo moral420.

Hoje se desenvolve um processo de universalização da temática dos direitos humanos,


que acompanha a política e a economia internacional. O ser humano passa a ocupar destaque
na seara internacional, tendo direitos universalmente reconhecidos421. Leis internacionais de
proteção ao meio ambiente, leis contra a discriminação racial e pela proteção dos povos, lutas
contra opressão, exploração econômica e contra a miséria, são características do processo de
universalização dos direitos humanos, embora estas não tenham caráter cogente. Todavia, esta
universalidade deve ser parcial, pois não existem direitos humanos universais, mas um direito
universal de cada povo elaborar seus direitos humanos com a condição de não violar os direi-
tos dos outros povos422. Não se trata, portanto, de uma absorção da concepção ocidental de
direitos humanos, mas de se estabelecer uma convivência, reconhecendo a pluralidade, a so-
cio-diversidade e os problemas que são comuns aos povos, estabelecendo uma reflexão inter-
cultural423.

418
SARLET, Ingo Wolfgang. Op. cit., p. 58.
419
LAFER, Celso. Op. cit., p. 131.
420
DORNELLES, João Ricardo W. Op. cit., p. 39.
421
Idem, p. 40.
422
SOUZA FILHO, Carlos Frederico Marés de. A universalidade parcial dos direitos humanos. In GRUPIONI,
Luís Donisete Benzi; VIDAL, Lux; FISCHMANN, Roseli. Op. cit., p. 258-261.
423
Nesse sentido, é pertinente ainda a abordagem crítica que Boaventura de Souza Santos traça sobre os direitos
humanos. Na sua visão, não devem se constituir como uma política universal cultural hegemônica (do ocidente
industrial, por exemplo, ocasionando um imperialismo cultural). Ou seja, deve haver um diálogo intercultural no
que tange aos direitos humanos, a partir da igualdade e do reconhecimento da diferença. Na proposta de uma
política contra-hegemônica de direitos humanos, Boaventura parte das seguintes premissas, dentre outras: a)
superar o debate entre universalismo x relativismo, e estabelecer um diálogo intercultural sobre preocupações
convergentes entre as diferentes sociedades; b) identificar as preocupações entre as diferentes culturas, pois todas
possuem uma concepção de dignidade humana, mas nem todas tratam em termos de direitos humanos; c) propor
uma concepção multicultural de direitos humanos, através da consciência da incompletude das culturas, do diá-
logo entre elas; d) buscar compreender a luta pela igualdade e a luta pela diferença a fim de promover uma polí-
tica emancipatória de direitos humanos. Mais detalhes em SANTOS, Boaventura de Souza. A gramática do tem-
po – para uma nova cultura política. 2ª ed. São Paulo: Cortez, 2008, p. 445-447.
121

4.1.3 Direito dos Povos

Como referido anteriormente, com os novos problemas advindos do século XX (ex-


termínio em massa de grupos humanos, degradação ambiental e o perigo de extinção da vida
no planeta), surge a emergência de se criar mecanismos de proteção dos grupos humanos, da
natureza e da humanidade. O direito dos Povos – direitos de terceira dimensão – é um elemen-
to importante para situar nosso estudo, pois esta dimensão de direitos (complementada com as
demais dimensões) propicia a proteção de grupos humanos, em especial etnias distintas que se
situam dentro do Estado de Direito contemporâneo. Este Direito restringe a soberania absoluta
dos Estados de fazer o que quiser com os povos dentro de suas fronteiras424. A proteção dos
povos, portanto, independe da condição de se pertencer a um Estado-Nação425.

Esta necessidade de proteção de povos que se encontram dentro do Estado advém das
conquistas históricas e da imigração, o que causou a mistura e coexistência de grupos huma-
nos com culturas e memórias históricas diferentes426. Assim, com relação ao Direito dos Po-
vos na proteção de grupos humanos específicos (por sua vulnerabilidade e condição de vítima
em potencial, como determinadas comunidades indígenas), ele surge visando coibir grandes
males da história humana, como guerras injustas (dizendo serem justas), opressão, persegui-
ção religiosa (nos fundamentalismos religiosos), negação da liberdade de expressão e de
consciência (principalmente correntes nas ditaduras latino-americanas), além dos genocídios
dos regimes totalitários e do etnocídio e genocídio provenientes das conquistas histórico-
coloniais e do expansionismo econômico e modernizador.

Dentro deste campo do direito dos Povos, temos como um ramo deste a questão ati-
nente à proteção dos povos indígenas, portadores de identidade cultural distinta da sociedade

424
RAWLS, John. O Direito dos Povos. São Paulo: Martins Fontes, 2001, p. 34. Contudo, necessário ressaltar
que esta proteção não deve servir como escudo, justificativa para se efetivar intervenções nas nações com o obje-
tivo de satisfazer os interesses de determinados governos, como já ocorreu com guerras realizadas por diversos
governos americanos anteriores.
425
Ao nosso parecer, a condição de povo tem muito mais um valor antropológico e sociológico, o que permite
atribuir uma proteção a determinados povos que se situam no âmago dos Estados Nacionais, possuindo cultura e
modo de vida distintos, embora estejam dentro deste mesmo Estado. São etnias que constituem uma identidade
cultural distinta. Nesse sentido, é necessário não se vincular a noção de povo com a existência de um Estado;
podem existir povos dentro deste Estado. Maiores informações acerca da noção de povo estão na introdução des-
te trabalho, bem como em AGUIRRE, Francisco Ballón. Manual del Derecho de los Pueblos Indígenas. Doctri-
na, principios y normas. 2ª ed. Lima: Defensoria del Pueblo. Programa de comunidades nativas, 2004. Disponí-
vel em: <http://www.indecopi.gob.pe/portalctpi/archivos/docs/articulos/87-2005-1/Pueblos_indigenas_4.pdf>.
Acesso em: 21 jul. 2008.
426
RAWLS, John. Op. cit., p. 32.
122

majoritária, e que são detentores de direitos coletivos especiais para a proteção de sua existên-
cia enquanto grupo humano.

Neste aspecto, podemos estabelecer alguns pontos que caracterizam o direito dos po-
vos (pertencentes à minorias) à existência, e que se estendem notadamente à proteção das co-
munidades indígenas427: a) é antecedente ao Estado nacional, ou seja, povos específicos pos-
suem um direito preexistente, que geralmente é recepcionado nas constituições dos Estados,
reconhecendo as comunidades indígenas principalmente como portadoras de direitos especiais
que antecedem a formação dos Estados; b) é incontestável, no sentido de ser um direito que
persiste embora a lei eventualmente o negue, o esqueça ou o ignore, pois sempre mantém a
sua validade; c) é específico, porquanto suas características se aplicam, ao nosso entender, a
grupos humanos determinados, principalmente às comunidades indígenas (dentre outras); um
direito típico coletivo; d) é contemporâneo, visto que se admite a recepção destes direitos em
novas condições criadas pelo Estado de Direito. Advém das condições atuais do sistema jurí-
dico nacional e internacional e e) é auto-afirmação, pois é reconhecido a estes grupos o direi-
to de contar com uma organização legitimamente representativa, e este povo se auto-
reconhece por compartilhar um território, uma língua, história e valores que lhe são comuns
(identidade do povo). Nesse campo, podemos enfatizar a organização em associação.

Na seara dos direitos específicos dos povos indígenas428 temos a) o direito à auto-
afirmação – direito de definir-se frente a terceiros, se reconhecer e ser reconhecido como tal;
é a vontade coletiva do grupo que se identifica como uma comunidade específica entre si e no
âmbito externo; b) o direito à auto-definição – a pessoa enquanto indivíduo que é admitida
como pertencente ao grupo pelo próprio grupo e reconhecida perante os demais; c) o direito à
autodeterminação e representação política, ou seja, de possuir uma organização política in-
terna (que não se confunde com a existência de um Estado) e ser respeitada e ouvida em even-
tuais processos legislativos que venham à afetá-la; d) o direito à autonomia interna, ou seja, o
direito do grupo de regular sua própria vida, com seus valores sócio-culturais e e) o direito à
proteção do patrimônio cultural e natural, para preservar sua existência enquanto grupo, me-
diante a preservação do habitat natural, bem como suas tradições (língua, costumes, etc).

No campo jurídico internacional, dentre outros documentos, tem-se a Declaração so-


bre os Direitos das Pessoas pertencentes a Minorias Nacionais ou Étnicas, Religiosas e Lin-
güísticas, a qual visa proteger a identidade de um grupo humano dentro do território dos Esta-

427
AGUIRRE, Francisco Ballón. Op. cit., p. 51-56.
428
Idem, p. 67-87.
123

dos429; a Carta Africana dos Direitos Humanos e dos Direitos dos Povos, aprovada em 1981
em Nairóbi, no Quênia, visando afirmar que os povos também são titulares de direitos huma-
nos no plano interno e internacional, bem como assegurar o direito dos povos à existência
(art. 20)430; a Declaração sobre Raça e Preconceito Racial, aprovada pela UNESCO em 1978,
que objetiva reconhecer aos grupos humanos o direito à diferença431; e a recente Declaração
da ONU sobre os Direitos dos Povos Indígenas, aprovada em 13 de dezembro de 2007 pela
Assembléia Geral da ONU.

No Brasil, o reconhecimento da diversidade cultural e da necessidade de respeitá-la é


hoje mais explícito, não obstante as dificuldades e denúncias ainda existentes. Nesse sentido,
a Constituição de 1988, após décadas e séculos de políticas de extermínio e assimilação de
diversas etnias, veio buscar assegurar o direito à diferença e à identidade cultural, mediante o
reconhecimento, aos povos indígenas, de sua organização social, costumes, línguas, crenças e
tradições432, como titular de direitos coletivos especiais (arts. 231 e 232).

4.1.4 Hutukara Associação Yanomami

Hannah Arendt, em sua obra Sobre a Violência, elabora uma reflexão principalmente
em torno da distinção entre poder e violência. Para ela, a violência tem um caráter instrumen-
tal, e depende da orientação e da justificação pelo fim que se almeja433; quando as ordens não
são mais generalizadamente acatadas, por falta de consenso e opinião de muitos, isso pode
gerar a violência. Já o poder corresponde à habilidade humana para agir em conjunto; ele
pertence a um grupo e permanece em existência na medida em que o grupo permanece uni-
do434; ele é inerente às comunidades políticas, e tem como pressuposto a legitimidade – requer
o consenso de muitos no curso da ação.

Assim se insere a importância do direito de associação para uma comunidade políti-


435
ca , pois ela gera o poder, pela conjunção das pessoas em um objetivo comum.

429
Aprovada pela Assembléia Geral da ONU de 18 de dezembro de 1992.
430
COMPARATO, Fábio Konder. A Afirmação Histórica dos Direitos Humanos. 5ª ed. São Paulo: Saraiva,
2007, p. 395.
431
Idem, p. 398.
432
GRUPIONI, Luís Donisete Benzi; VIDAL, Lux; FISCHMANN, Roseli. Op. cit., p. 95.
433
ARENDT, Hannah. Sobre a Violência. Op. cit., p. 41.
434
Idem, p. 36.
435
LAFER, Celso. Op. cit., p. 25.
124

Trazendo esta reflexão, um exemplo característico e atual de organização associativa


implementada pelos membros de um grupo étnico específico é a Hutukara Associação Yano-
mami (HAY). Ela foi criada em 2004 pela própria comunidade, com o objetivo de garantir
seus direitos enquanto grupo humano. Hutukara, na linguagem Yanomami, significa “terra
ancestral”436. O presidente é Davi Kopenawa Yanomami, que juntamente com outras lideran-
ças vem trabalhando na defesa pela existência e território do povo, comparecendo a reuniões
com outras comunidades e expondo os problemas que devem ser vencidos. Para os Yanoma-
mi, a floresta – urihi – é o lar, o lugar ao qual o povo pertence; lá moram seus espíritos437.

Dário, filho de Davi Kopenawa, esclarece como, mesmo com o constante perigo de
violência que os envolve (invasão de território, doenças, etc), os Yanomami vêm lutando pe-
los seus direitos especiais438:

...Nós, Yanomami, aprendemos com o massacre de Haximu a fazer mudan-


ças. Agora sabemos que se não estudarmos, se não aprendermos a falar o português,
não vamos aprender a nos defender e os garimpeiros vão continuar a entrar em nos-
sas terras e nos matar. Vamos estudar, aprender a falar o português, aprender a nos
defender, a falar com os políticos, mandar documentos para a Polícia Federal, o Mi-
nistério Público, o Presidente. Vamos aprender a falar com os brancos. Senão, não
vão entender nossa realidade...
...A gente criou nossa Hutukara para transmitir o conhecimento da medici-
na tradicional, a cultura de nosso povo e para saber preservar a floresta...
...Tenho vontade de ser advogado, me especializar em direitos indígenas.
Quero entender a Constituição Federal do Brasil. Tudo para ajudar minha comuni-
dade, todas as comunidades, minha família, meus parentes, e preservar a terra tam-
bém, principalmente a terra.

Para tanto, verifica-se como uma comunidade que esteve sob o perigo quase de extin-
ção física e cultural vem lutando pelo seu direito à existência (território, saúde, integridade
física, dentre outros), mediante a informação e o diálogo439. É a grande resposta à violência: o
poder do agir em conjunto.

436
ROCHA, Jan. Op. cit, p. 132.
437
PREZIA, Benedito; HOORNAERT, Eduardo. Brasil Indígena – 500 anos de resistência. São Paulo: FTD,
2000, p. 85.
438
ROCHA, Jan. Op. cit., p. 136-137.
439
Um exemplo de atuação da Hutukara são as denúncias de invasão no território Yanomami. Nesse sentido,
vide a denúncia de garimpo ilegal, poluição dos rios, morte de peixes e ameaça de morte na região do Alto Ca-
trimani e Papiú. O inteiro teor está no site:
<http://www.proyanomami.org.br/v0904/index.asp?pag=noticia&id=4725>. Acesso em: 23 out. 2008.
125

4.2 FILOSOFIA E ÉTICA DA LIBERTAÇÃO

A filosofia e a ética da libertação são fatores importantes para se conseguir uma proje-
ção ético-crítica com o intuito de se compreender a realidade existente e a possibilidade de se
buscar transformá-la pela via informativo-teórica, ou em termos de ação visando à proteção
da existência de grupos humanos vulneráveis, bem como sua identidade cultural. A prática
filosófica, mediante o exercício do juízo ético-crítico, é uma alternativa para se buscar com-
preender a diversidade que é inerente à condição humana, ou seja, a pluralidade. A filosofia,
portanto, entendida como prática libertadora na proteção aos grupos humanos e etnias diver-
sas.

Destarte, é necessário tratar, ainda que brevemente, sobre a origem e a concepção da


filosofia da libertação, para posteriormente explanar sobre a possibilidade de sua contribuição
à primazia ao direito à existência e à identidade cultural, bem como a sua importância para se
promover um juízo filosófico e ético-crítico por parte dos agentes sociais440.

4.2.1 Origens e definição da filosofia da libertação

A filosofia da libertação surge ao final da década de sessenta e início da década de se-


tenta na Argentina, quando um grupo de filósofos proclamou a opção por se voltar à condição
dos pobres desde o âmbito filosófico. Este grupo de filósofos críticos seguia uma linha de
pensamento que se caracterizava a partir destes elementos441: a) consideravam que a filosofia
desenvolvida até então não tratava da realidade latino-americana, e era preciso desenvolver
um estudo que trabalhasse esta realidade e que se tomasse consciência de sua existência; b)
para fazer isto, era preciso romper com o sistema de dependência e com o componente filosó-
fico que o representava e o legitimava. Assim, o grupo de estudiosos argentinos voltou-se à

440
Entendemos por agentes sociais os diversos atores que desenvolvem atividades na relação direta ou indireta
com os direitos humanos e direito dos povos, enfim, todos aqueles que podem ter as condições de agir na esfera
pública ou privada para garantir os direitos dos grupos humanos ameaçados pelo extermínio físico ou cultural,
seja pela falta de território, falta de assistência à saúde ou violência ocorrente em localidades próximas a deter-
minadas etnias (comunidades indígenas no Brasil, por exemplo).
441
RUBIO, David Sánchez. Filosofía, Derecho y Liberación en América Latina. Bilbao: Desclée de Brouwer
1999. Disponível em:
<http://www.crefal.edu.mx/bibliotecadigital/CEDEAL/acervo_digital/coleccion_crefal/no_seriados/enrique_duss
el/html/b06.html>. Acesso em: 24 out.2008, p. 29.
126

necessidade de desmascarar e superar o discurso filosófico convencional, através do qual o


Ocidente influenciava significativamente: o discurso da modernidade.

Além disto, o filósofo deveria ser um intérprete crítico e considerar a figura do pobre e
oprimido, fato sobre o qual este deveria pensar. A essência autêntica do latino-americano e-
mergia nesta sua condição como marginalizado442.

Principalmente pelos trabalhos do filósofo mexicano Leopoldo Zea – que inclusive foi
um dos primeiros estudiosos a tematizar a questão da libertação, opondo a uma cultura de
dominação européia uma cultura de libertação latino-americana – passou-se a desenvolver
uma filosofia da história que abordava sobre o tratamento desigual do Ocidente frente à Amé-
rica Latina. A temática dos filósofos criadores da filosofia da libertação também assentava
suas bases teóricas na diversidade humana como um expoente universal. A idéia de libertação
é o elemento basilar do pensamento latino-americano que originou este movimento. Em sínte-
se, é um movimento filosófico contemporâneo, que surgiu na América Latina no início da dé-
cada de setenta na Argentina, e que desenvolve muitos temas comuns entre seus membros,
principalmente relativos à pobreza, ética da alteridade, humanismo e identidade cultural, entre
outros. Para David Sánchez Rubio, é um dos movimentos filosóficos mais interessantes e de
maior originalidade443.

Os expoentes da filosofia da libertação, dentre outros estudiosos, são Leopoldo Zea e


Enrique Dussel. Enquanto Zea é considerado precursor desta idéia (com um estudo centrado
na temática da identidade nacional e cultural dos países latino-americanos), Dussel é muito
conhecido pelos seus estudos a partir da filosofia da libertação na atualidade. São, dentre ou-
tros, os personagens que interpretam a realidade latino-americana desde a descrição de todos
os elementos discriminadores e opressores do ser humano444.

A filosofia da libertação do mexicano Leopoldo Zea445, partindo do pressuposto de


que a filosofia é o resultado do enfrentamento do homem e sua circunstância, foi um elemento
importante para a compreensão da realidade e para responder à necessidade de afirmar a iden-
tidade cultural de cada povo e a condição humana de seus membros, objetivando contribuir
para a libertação dos dominados e voltar-se contra a fundamentação teórica do poder opressor
entre os homens. As primeiras idéias sobre a filosofia da libertação partem do pressuposto de

442
Idem, p. 30.
443
Ibidem, p. 31.
444
Ibidem, p. 47.
445
Rubio refere que uma das obras que marcam a gênese da filosofia da libertação com Leopoldo Zea é a sua
obra América em la historia, de 1957, descrevendo que a América Latina estava fora da história. Ibidem, p. 48.
127

que o filósofo deveria despertar a consciência na sociedade para atuar em cada pessoa que a
integra, orientando-a até a libertação mediante o reconhecimento do ser humano como sujeito
de direitos446.

Outro autor de contribuiu para o nascimento da filosofia da libertação foi Augusto Sa-
lazar Bondy, que afirmava a necessidade de uma filosofia da libertação que ajudasse a superar
o subdesenvolvimento e a dominação da América Latina. Seria, em suma, uma filosofia que
convertesse a consciência de nossa condição deprimida como povo em uma reflexão capaz de
desencadear e promover a superação desta condição447.

Tanto na proposta de Leopoldo Zea quanto a de Augusto Salazar, a filosofia seria vista
como um instrumento de libertação, com o escopo de contribuir para criar a consciência da
situação histórica da América Latina, bem como orientar no âmbito teórico e prático para al-
cançar esta libertação. Era uma filosofia também prática, encarando a realidade para buscar
métodos que discutissem sobre os problemas que se apresentavam ao ser humano na sua luta
pela existência448.

A única forma para o oprimido tomar consciência da opressão era descobrir a relação
de dominação. A tarefa da filosofia latino-americana seria buscar superar o discurso teórico
do processo de modernização, detectando os riscos desta dialética de dominação que estavam
em seu próprio ser oprimido e dependente, para transformar esta relação449.

Enrique Dussel, por sua vez, relata que a experiência originária da filosofia da liberta-
ção consiste em descobrir o elemento de dominação: no plano mundial, com o começo da
modernidade que criou o eixo centro-periferia (1492); no plano nacional (elite e massas); no
plano erótico (submissão da mulher pelo homem); no plano pedagógico (imposição da cultura
imperial, elitária, frente à cultura periférica, popular); no plano religioso; e também no nível
racial (discriminação das raças não-brancas), etc. Esta experiência originária da filosofia da
libertação, portanto, ocorre com o olhar sobre o pobre, o dominado, o índio, o negro, a mulher
como objeto, a criança no processo de manipulação ideológica; o oprimido, o torturado, des-
truído em sua corporalidade em muitos aspectos. O fator exclusão é o ponto de partida da fi-
losofia da libertação (exclusão das culturas dominadas, da comunidade filosófica latino-

446
Idem, p. 46.
447
Ibidem, p. 32.
448
Ibidem, p. 32.
449
Ibidem, p. 33.
128

americana, etc). Uma filosofia voltada à realidade do Terceiro Mundo, em especial a latino-
americana450.

Nos dias atuais, a filosofia da libertação (com os estudos de Enrique Dussel) está em
nova etapa. Nesse sentido, Dussel refere que

A filosofia da libertação é um contradiscurso, é uma filosofia crítica que


nasce na periferia (e a partir das vítimas, dos excluídos) com pretensão de mundiali-
dade. Tem consciência expressa de sua perifericidade e exclusão, mas ao mesmo
tempo tem pretensão de mundialidade. Enfrenta conscientemente as filosofias euro-
péias, ou norte-americanas (tanto pós-moderna como moderna, procedimental ou
451
comunitarista, etc)...

A partir de uma ética da alteridade, Dussel apresenta uma nova etapa da filosofia da
libertação no século XXI, a partir da exterioridade do pobre, da mulher, da cultura popular
marginalizada, das raças não-brancas, da destruição ecológica da terra, fatores que se lançam
num discurso filosófico crítico e que são assuntos importantes na abordagem da filosofia da
libertação. Esta prática filosófica terá como fundamento o princípio material universal de
produção, reprodução e desenvolvimento da vida humana452. E nesta linha, advoga-se que a
realidade dependente dos excluídos exige uma filosofia totalmente voltada à defesa dos seres
humanos, em especial aqueles que se encontram em situação de marginalização e pobreza.
Para isto, uma reflexão crítica e ética sobre a condição política, social e econômica dos seres
humanos oprimidos em todos os aspectos, olhando o ser humano que está fora do sistema-
mundo e da sociedade que o exclui; este será o princípio da libertação453.

4.2.2 A filosofia da libertação no reconhecimento dos direitos dos povos

A filosofia da libertação é importante para compreendermos a posição do ser humano


– e da vida em si inclusive – frente ao sistema-mundo. Partindo de todas as considerações an-
teriores, é possível buscar entender a necessidade do reconhecimento dos direitos dos povos,

450
Vide a biografia de Enrique Dussel em <http://www.enriquedussel.org/Home_cas.html>. Acesso em: 28 out.
2008.
451
DUSSEL, Enrique. Ética da libertação na idade da globalização e da exclusão. Petrópolis: Vozes, 2007, p.
73.
452
RUBIO, David Sánchez. Op. cit., p. 115.
453
Idem, p. 118.
129

grupos humanos e suas diversas etnias, principalmente pelo fato de não estarem incluídos no
sistema-mundo dominante, o que leva à exclusão (e muitas vezes ao extermínio).

As reflexões da filosofia da libertação (não só voltando-se à América Latina, mas no


âmbito mundial) retratam que a subjugação de povos ao processo modernizador globalizado
se constitui como uma ameaça à reprodução da vida humana em si, e também à existência de
grupos humanos que possuem modo de vida próprio e suas tradições. A prática filosófica li-
bertadora permite contribuir para o direito dos povos, principalmente na luta pela existência e
pela identidade cultural.

No tocante à questão da libertação contextualizada na sua relação com os direitos hu-


manos – e também com o direito dos povos – é pertinente esclarecer a sua contribuição neste
campo a partir de três perguntas: desde onde? para quem? e para quê?454

Desde onde? É necessário responder esta questão para referir que devemos nos situar
na realidade latino-americana455, a qual vivenciamos.

Em segundo lugar, para quem? São as maiorias populares marginalizadas e oprimi-


das, denominadas vítimas. Pode-se também, ao nosso parecer, inserir neste contexto das víti-
mas as minorias étnicas (em especial comunidades indígenas), que são muitas vezes incorpo-
radas de maneira forçada às maiorias marginalizadas, dentre outras ações violentas.

Terceiro, para quê? A libertação no contexto dos direitos humanos visa (do ponto de
vista jurídico) estar vinculada ao conteúdo fundamental de todos os direitos humanos: o direi-
to de ter a possibilidade de exercer direitos, ou seja, a possibilidade de cada pessoa humana –
ou grupo humano – ser reconhecido como sujeito de direitos e de dignidade humana. Os gru-
pos humanos e povos (numa acepção mais ampla) devem ter reconhecidos os direitos à exis-
tência e à identidade cultural, além de poder realizar ações que possam contribuir com a pre-
servação destes direitos essenciais – nesse contexto, a Hutukara Associação Yanomami é um
exemplo característico desta luta pela dignidade de um povo.

A partir dos estudos da filosofia da libertação, portanto, pode-se propor uma reflexão
ético-crítica que auxilia na compreensão da realidade, da violência que envolve muitos grupos
ameaçados, além de contribuir para uma prática filosófica que se empenhe na busca do reco-
nhecimento dos direitos dos seres humanos enquanto membros de um povo, de uma etnia.

454
Idem, p. 160-162.
455
O que não quer dizer que ao nosso entender também não possa ser explorada a partir da realidade em outras
localidades, como a africana, a asiática, etc. O contexto local, em nossa opinião, ultrapassa as fronteiras, pois a
realidade dos processos populares e sociais é corrente em diversos segmentos territoriais do planeta.
130

4.2.3 Por uma prática jushumanista-pluralista a partir da ética da libertação

Por fim, com base nas exposições sobre a filosofia da libertação, necessário agora tra-
çar o último ponto, que buscará expor a possibilidade de uma prática jushumanista-pluralista
pela ética da libertação.

Enrique Dussel refere que estamos diante de um sistema-mundo que está se globali-
zando e excluindo, paradoxalmente, a maioria da humanidade. Um problema de vida ou mor-
te. Para isso, a emergência de uma ética da libertação, que afirme a vida humana456 ante o as-
sassinato coletivo para o qual a humanidade se encaminha, é um aspecto importante para se
compreender a necessidade de se reconhecer o direito à existência aos grupos humanos – e
também da maioria excluída do sistema global.

A ética da libertação de Enrique Dussel nos ajuda a pensar filosófico-racionalmente


esta situação real da maioria da humanidade457. A partir dela, no final do século XX surgem
novos movimentos e ações sociais, políticos, raciais, ecológicos e étnicos. Uma ética que se
fundamenta a partir do reconhecimento das vítimas, e que pode atuar nas normas, ações, mi-
croestruturas. É uma ética da vida cotidiana, que questiona os efeitos negativos (as vítimas)
dos modelos vigentes458. A espantosa miséria que aniquila a maioria da humanidade no final
do século XX, a contaminação ecológica da Terra e a destruição massiva de povos e culturas
exigem esta reflexão ética459. A ética da libertação, na acepção de Dussel, não busca ser uma
filosofia crítica para minorias, nem para épocas de conflito ou revolução. É uma ética cotidia-
na, a favor das imensas maiorias da humanidade excluídas da globalização460, as vítimas do
sistema-mundo.

Seu marco teórico é a globalização e a exclusão. Estas palavras indicam o duplo mo-
vimento em que está a Periferia Mundial: de um lado, a pretensa modernização na globaliza-
ção formal do capital; por outro lado, a exclusão material das vítimas deste processo. A ética
da libertação ajuda a compreender este processo contraditório, permitindo pensar filosofica-
mente o sistema-mundo que vivemos, e afirmar uma ética da vida, que auxilie a pensar criti-

456
Vida humana, para a ética da libertação, corresponde à “vida do ser humano em seu nível físico-biológico,
histórico cultural, ético-estético e até mesmo místico-espiritual, sempre num âmbito comunitário...”. Vide
DUSSEL, Enrique. Ética da libertação na idade da globalização e da exclusão. Op. cit., p. 632.
457
Idem, p. 11.
458
Ibidem, p. 13.
459
Ibidem, p. 15.
460
Ibidem, p. 15.
131

camente461. Com base no exercício ético-crítico, afirma-se a dignidade negada da vítima hu-
mana, oprimida ou excluída. A partir da vítima, a verdade começa a ser descoberta. Nesse
sentido, é importante reconhecer as vítimas como sujeitos éticos, como seres humanos que
não podem reproduzir ou desenvolver sua vida, que foram excluídas da participação na dis-
cussão, e que são afetados por alguma situação de morte462.

Destarte, partindo da razão ético-crítica, aquele que pensa sobre o sistema e seus fun-
damentos descobre a dignidade dos sujeitos e a impossibilidade de reprodução da vida da ví-
tima, constata a exclusão vivida por esta463. Precisamos reconhecer a alteridade da vítima, da
dor da sua corporalidade; isto é a origem de toda a crítica ética possível, na lição de Dussel464.
Uma ética crítica é aquela que parte da negação da vida humana e que se expressa no sofri-
mento das vítimas, seja escravo, operário, explorado asiático, criança de rua abandonada, imi-
grante estrangeiro refugiado, gerações futuras que sofrerão em sua corporalidade a destruição
ecológica, povos indígenas sob ameaça de extermínio. A tomada de consciência desta negati-
vidade é elementar para a ética da libertação. A “verdade” do sistema-mundo é negada a partir
da “impossibilidade de viver das vítimas”. Nas palavras de Dussel, “a existência da vítima é
sempre refutação material ou ‘falsificação’ da verdade do sistema que a origina”465.

No âmbito da ética da libertação, portanto, são situações-limite como a discriminação


de etnias, as culturas populares e indígenas sufocadas, a situação de não-direito na maioria
dos Estados da Periferia (diga-se América Latina e África, por exemplo), que propiciarão tra-
zer à tona uma reflexão a partir da ética da libertação.

Mas como a ética da libertação pode contribuir para uma prática jushumanista-
pluralista? Primeiramente, para efeitos do presente estudo, a prática jushumanista-pluralista
consiste basicamente na prática que tem como parâmetro a efetivação dos direitos humanos
dos povos, visando o respeito e a preservação da existência dos grupos humanos e sua identi-
dade cultural. Ações, debates, tudo contribui para que se possa (a partir do juízo ético-crítico)
verificar como são produzidas as vítimas e como elas muitas vezes podem estar sob o perigo
do extermínio. A informação, fundada em ações que objetivem assegurar os direitos humanos
de terceira dimensão (direito dos Povos), pode se constituir como contribuição para se trans-
formar a realidade negativa, no plano teórico e até prático.

461
Idem, p. 17.
462
Ibidem, p. 303.
463
Ibidem, p. 303.
464
Ibidem, p. 306.
465
Ibidem, p. 375.
132

Para tanto, é necessário institucionalizar, no plano teórico, pelos direitos humanos e


direitos dos povos, e no campo prático pelos agentes sociais uma substituição do discurso he-
gemônico exercido por pólos dominantes (meios de comunicação, meio acadêmico, etc) por
outro vinculado ao reconhecimento dos direitos dos povos e grupos humanos. Podemos inserir
também dentro desta proposta a atuação dos agentes sociais para se buscar a proteção do di-
reito à existência e à identidade cultural (por parte de procuradores, dentre outros profissio-
nais da prática jurídica, por exemplo).

Nesse sentido, a prática da ética da libertação se constitui como uma ação possível que
transforma a realidade (tanto subjetiva quanto social), tendo como referência a vítima ou co-
munidade de vítimas. A possibilidade de libertá-las será o critério sobre o qual se funda esta
ética466.

O diálogo interétnico e a ética da libertação voltada a uma perspectiva dos direitos


humanos num âmbito plural, objetivando o respeito à dignidade dos povos e etnias diversas
não são um projeto utópico. O diálogo interétnico e a ética da libertação na perspectiva dos
direitos humanos partem da nossa reflexão e ação cotidiana, seja pela informação, seja pelo
meio acadêmico (através de um trabalho voltado à questão dos direitos dos povos, como este),
pelos profissionais que se constituem como agentes sociais na defesa dos povos e grupos hu-
manos, ou até mesmo por entidades associativas (como o trabalho da Hutukara Associação
Yanomami). Isto mostra que fazer algo em prol da proteção dos grupos humanos não é algo
impossível, mas possível.

466
Idem, p. 558.
133

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Costuma-se dizer que um trabalho acadêmico nunca é concluído: apenas cessamos de


fazê-lo. É esta a sensação que sentimos no caso deste estudo, pois se poderia seguir ainda
mais na sua elaboração, em face da riqueza de informações que tivemos a felicidade de obter
e os assuntos contidos nele (ainda que esta descrição seja um tanto parcial, pois provém do
próprio autor). Sem dúvida, ele não esgota o assunto: pelo contrário, inicia um caminho para
seguir discutindo os temas propostos. Dentre outros objetivos, o intuito de despertar a reflexão
no que tange ao direito dos povos, sobre a proteção de grupos humanos contra o genocídio e o
etnocídio, abordando como caso prático o massacre dos Yanomami de Haximu, e a breve ex-
posição sobre a importância de um pensamento ético-crítico libertador no reconhecimento dos
direitos dos grupos humanos foram alguns dos objetivos propostos.

Por conclusão também se pode verificar, em torno da memória, como é necessário ob-
servá-la se quisermos transformar uma realidade, ainda que seja em nossa forma de pensar o
mundo. Memória que nos liga ao passado, pois a partir dela conhecemos a história. Como re-
fere François Ost, “uma sociedade amputada de suas raízes, órfã de sua história, encontra
barrado seu acesso ao futuro”467.

Ou seja, neste estudo, conhecer o passado de forma inicial foi um fator muito impor-
tante. A partir das informações sobre a conquista da América e os aspectos que influenciaram
na destruição da maioria dos povos originários deste Continente, dentre as mais variadas for-
mas de violência, conseguimos observar quais são os paradigmas que herdamos (dentre eles, a
busca de riqueza e o desejo de produzir uma realidade à imagem e semelhança do coloniza-
dor). A parte que expusemos sobre a conquista da América permite refletirmos de que manei-
ra fomos constituídos como seres humanos projetados a partir do projeto modernizador, que
se iniciou em 1492, com a chegada de Colombo. Em torno do passado das vítimas conquista-
das, podemos ver a maneira pela qual este sistema-mundo em que vivemos foi originado.

Ainda, estudar a conquista da América como processo genealógico do extermínio de


grupos humanos indígenas, para após abordar o caso Yanomami, foi uma oportunidade de se
observar o início do encobrimento do outro e a introjeção no Continente do mito da moderni-

467
OST, François. O tempo do direito. Bauru: EDUSC, 2005, p. 29.
134

dade468. Pois este Outro – o ser humano colonizado, não-europeu, indígena – na época não foi
descoberto, mas foi encoberto pelo projeto civilizador, tanto fisica quanto culturalmente. So-
mos resultantes, herdeiros desta violência, em que projetamos nossa concepção de ser, não
buscando conhecer o ser-do-outro. Para tanto, compreender a origem da expansão civilizado-
ra auxilia na avaliação das situações de violência a grupos humanos, principalmente indíge-
nas, no contexto atual (a idade da globalização). E é a partir da memória, portanto, que se po-
de avaliar esta conjuntura, tanto em relação à concepção de mundo quanto em face da nossa
constituição como ser humano oriundo da modernização.

Em um segundo momento do capítulo primeiro, também tratamos da questão da mo-


dernização em torno da colonização, neocolonização, política indigenista e globalização. En-
fim, fatores que compuseram os mecanismos de extermínio, em especial no Brasil. Esses ele-
mentos vinculados à ideologia etnocentrista, que dentro da colonização interna buscava for-
mar corpos produtivos, enfrentava situações nas quais ou se praticava a assimilação de grupos
humanos indígenas, integrando-os como corpos do processo econômico, muitas vezes pelo
etnocídio, ou o extermínio devido à resistência praticada por esses grupos, por meio do geno-
cídio.

Nesta segunda etapa, tivemos a oportunidade de verificar inclusive como as violências


provenientes da colonização e as premissas eurocêntricas da modernidade forjaram na reali-
dade brasileira (e inclusive no Continente americano como um todo) um sistema jurídico que
tinha a finalidade precípua de manter relações de exploração estabelecidas entre centro (Euro-
pa) e periferia (América), por meio de dogmas do direito ocidental469, formas jurídicas susten-
tadas inclusive até pouco tempo nos governos militares brasileiros (com resquícios até a atua-
lidade), mediante perspectivas assimilacionistas, projetos de “civilização”, colonização de ter-
ritórios habitados por grupos indígenas, dentre outras medidas.

Para tanto, a conquista e a colonização do Brasil fundaram-se na transferência de ri-


quezas naturais à metrópole e na exploração da mão-de-obra indígena em um primeiro mo-
mento e da africana durante centenas de anos, demonstrando que a construção do sistema ju-

468
Nesse sentido, vide DUSSEL, Enrique. 1492. El encubrimiento del otro, hacia el origen del “mito de la mo-
dernidad”. La Paz: Plural editores – Facultad de Humanidades y Ciencias de la Educación – UMSA, 1994. Dis-
ponível em: <www.enriquedussel.org>. Acesso em: 29 out. 2008.
469
GIAMBERARDINO, André Ribeiro. Colonialismo e Teoria Geral do Direito: diálogos com a História do
Brasil a partir da vida negada. Disponível em:
<http://calvados.c3sl.ufpr.br/ojs2/index.php/direito/article/viewFile/6980/4958>. Acesso em: 30 jan.2008, p. 01.
135

rídico tinha por finalidade precípua a viabilização dos propósitos mercantis, seja enquanto Co-
lônia, Império ou República, e sempre se pautaram pelo atendimento a interesses externos470.

A idéia de relações jurídicas no Brasil (e na América Latina) é a história dos povos co-
lonizados, marcada pelo genocídio, etnocídio, escravismo e discriminação471, por meio de vio-
lências físicas, psicológicas, e oriundas das formas jurídicas de produção de uma verdade;
como exemplo, tem-se o viés religioso e salvacionista da colonização, que buscava justificar a
doutrinação dos indígenas e a escravidão dos africanos, bem como o positivismo jurídico, que
compõe a tradicional teoria geral do direito ocidental472 (eminentemente do século XIX, com
resquícios até o regime militar), com o viés nacionalista e integracionista, que visava a incor-
poração de grupos humanos à “civilização”.

O primeiro capítulo, portanto, teve o objetivo de propor uma libertação do mito da


modernidade e do encobrimento da vítima, ocultada pelo discurso e pelas diversas práticas de
violência, e verificar ainda o estado de perigo permanente que atravessam etnias constante-
mente ameaçadas pela sociedade do risco. Foi um dos propósitos para se seguir o estudo até o
massacre de Haximu de 1993, o qual foi um produto, um resultado de todas as medidas histó-
ricas, sociais e políticas – colonização, invasão de território, assassinatos, ameaças, manobras
político-jurídicas, dentre outras.

O segundo capítulo comportou uma abordagem mais jurídica, em que pese as observa-
ções feitas na sua terceira parte, de cunho mais sociológico (a guerra oculta). Após compreen-
dermos a conjuntura histórica e sócio-política do extermínio a partir de uma viagem da Amé-
rica ao Brasil, foi necessário expor como as noções de graves violações de direitos humanos
como o genocídio e etnocídio foram formadas. Os estudos do genocídio (extermínio de um
povo) e do etnocídio (extermínio de uma identidade cultural)473, ambos atentados contra a
pluralidade inerente à condição humana, demonstram a forma pela qual a sociedade do risco e
o Estado Criminal, no contexto de uma guerra oculta, submetem etnias a uma condição de
vulnerabilidade e de vítimas em potencial. Estes entendimentos foram o segundo passo para
se chegar até Haximu.

Por fim, se seguiu uma abordagem minuciosa do caso dos Yanomami no terceiro capí-
tulo. O massacre de Haximu, dentre outros (como o dos Cinta-Larga na década de 60), retrata
470
Idem, p. 03.
471
Ibidem, p. 03.
472
Ibidem, p. 04.
473
Como expusemos na parte referente ao etnocídio, esta violação não está tipificada como crime. Ao nosso en-
tender, é urgente se discutir sobre esta prática. Igualmente ao genocídio, se trata de uma violação grave de direi-
tos humanos, e que merece ser reprimida pela sociedade internacional, bem como pelas leis nacionais.
136

tudo o que foi abordado nos capítulos anteriores. O caso de Haximu permite-nos refletir sobre
a condição dos grupos humanos ameaçados e de que maneira o processo civilizador gera ge-
nocídios e etnocídios. Como um espelho que reflete uma imagem, este episódio reflete o sis-
tema-mundo que foi projetado e introjetado. Nesse sentido, o círculo do nosso trabalho se fe-
cha.

Contudo, o massacre de Haximu não ensina apenas isso. Também nos faz pensar sobre
a necessidade de se respeitar as diferenças, e que os grupos humanos merecem ser reconheci-
dos em dignidade. Nesta perspectiva, as concepções de tolerância, direitos humanos e direito
dos povos foram as bases para a primeira parte do quarto capítulo, em torno do direito à exis-
tência (enquanto necessidade de respeito à vida do grupo humano) e do direito à identidade
cultural, como respeito aos traços culturais que o identificam por ser um povo específico, por-
tador de tradições, costumes, crenças, habitat. São preceitos basilares para o combate ao ge-
nocídio e ao etnocídio.

Por fim, buscamos sinteticamente expor uma reflexão a partir da filosofia e da ética da
libertação, em especial a partir dos estudos de Enrique Dussel. Com base neste movimento
filosófico, vimos a possibilidade de se produzir uma reflexão ético-crítica a partir do reconhe-
cimento dos direitos dos povos e se propor uma prática jushumanista-pluralista a partir da éti-
ca da libertação. Uma ética voltada à vítima, à exclusão, e ao reconhecimento das vítimas co-
mo um ponto de partida para se tratar de direitos humanos, em especial os de terceira dimen-
são – direito dos povos. Também propusemos de que maneira hoje o agente social (seja ele
funcionário, profissional da área jurídica ou até mesmo acadêmico) pode contribuir com uma
prática ética libertadora. Pode-se transformar uma realidade a partir de pequenas ações, pois
por mais que se diga que o mundo não mude, após uma pequena ação ele nunca será mais o
mesmo. Ou nas palavras de Boaventura Souza Santos, se reportando a Sartre, ‘antes de con-
cretizada, uma idéia apresenta uma estranha semelhança com a utopia’474.

Portanto, inclusive no âmbito jurídico, temos a certeza de que cabe ao agente social, a
partir do juízo ético-crítico, constituir um saber jurídico libertador, que seja voltado ao res-
peito e à defesa da existência física e cultural dos grupos humanos em condição de vulnerabi-
lidade. E nesse âmbito, a informação é essencial. Aqueles que não se preocupam em saber,

474
SARTRE, citado por SANTOS, Boaventura de Souza. A gramática do tempo – para uma nova cultura políti-
ca. Op. cit., p. 470.
137

bem como aqueles que se abstêm de informar são culpados diante de sua sociedade; ou seja, a
função da informação é uma função social muito significativa475.

À guisa de conclusão, o presente estudo, em suma, foi abarcado a partir de três pilares
que ligam o tempo: o passado, o presente e o futuro. Sem eles não seria possível a concretiza-
ção do trabalho.

Por primeiro, entendemos que conhecer o passado – e vinculando-o à idéia de memó-


ria, como exposto – é buscar os fundamentos da história da conquista, a formação do que hoje
entendemos por América, e de que modo fomos constituídos. O conhecer o passado e questi-
oná-lo foi um elemento fundamental, buscando as origens, as causas, para entender o hoje.

Segundo, o presente. Os problemas que hoje se enfrenta com a constante ameaça de


extermínio de grupos humanos é algo real, presente, que necessita ser combatido. Enfrentar o
presente é pensar o sistema-mundo no qual estamos contidos e apresentar propostas para
transformar este presente.

Por fim, o futuro. Na medida em que formamos propostas para mudar o presente, te-
mos o objetivo de construir um futuro, projetá-lo como tarefa. Garantir a vida, a existência
dos seres humanos, notadamente grupos diversos. Uma projeção para o futuro que parte da
nossa reflexão e ação. Para tanto, este estudo, ainda que limitado, se propôs e se conclui nesta
seguinte idéia: conhecer o passado como necessidade, enfrentar o presente como responsabi-
lidade e projetar o futuro como tarefa476.

475
TODOROV, Tzvetan. Op. cit, p. 265.
476
BOLESO, Héctor Hugo. Memoria, Derecho y Liberación. Disponível em:
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