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ARCHINOV HISTORIA DO MOVIMENTO MACKNOVISTA (4 INSURREICAO DOS CAMPONESES DA UCRANIA) com um prélogo de Voline A ASSINIO & aVIM radernos peninsula nova série ensaio 17 Todos os direitos desta edi¢io reservados por ASSIRIO & ALVIM, Sociedade Editorial ¢ Distribuidors, Lda R. Passos Manuel, 67-B — Lisboa 1. (Maio 1976) Capa de: Dorindo Carvalho NOTA DO EDITOR Esta edicéo reproduz apenas com a grafia actualizada o livro publicado nos anos 20 pelas Edicdes Spartacus, dirigidas por Campos Lima do Partido Socialista de entio. LSP Pu PROLOGO E importante para o leitor desprevenido que aborda esta obra saber o que ela trata. Serd um estudo sério e consciente ou um conto fantdstico e insensato? Poder-se-4 confiar no autor, pelo menos no que diz respeito aos factos e @ sua cronologia, ao material que expde? Serd suficiente- mente imparcial? Nao violentard a verdade, para com isso elevar as suas ideias e rebaixar as de outros? Estas sto vas perguntas. E essencialmente necessdrio tratar com a maior pru- déncia todos os documentos sobre 0 movimento mackno- vista. O leitor assim o compreenderd, se analisar de perto alguns dos seus trechos. Por um lado, a macknovstchina é um fenédmeno de imenso alcance, de uma grandeza e de uma importancia extremas; um fendmeno que se desenrolou com uma forca completamente excepcional, que desempenhou um papel extraordindrio e excessivamente complicado na continua- ¢Go da Revoluc@o Russa, que manteve uma luta titdnica contra a reaccao, qualquer que ela fosse e que mais de uma vez salvou a revolucao do desastre; é, para mais, um movi- mento bastante rico em episddios brilhantes e que atraiu 6 PROLOGO a atencao e 0 interesse geral, nao s6 na Rissia como em todo o Mundo. Por outro lado a macknoystchina despertou nos diferentes partidos revoluciondrios ¢ reacciondrios os sentimentos mais diversos, a comecar pelo ddio e a feroz hostilidade, passando pelo assombro, pela desconfianca e pela suspeita, terminando com a simpatia e a admiragao mais profundas. No que concerne au partido comunista @ ao «poder sovietistay, que monopolizaram a revolugao, a macknovst- china viu-se obrigada a travar contra eles uma luta san- grenta, como a travada contra a reaccao, acertando-lhes uma série de golpes morais e fisicos fortissimos. Por fim, a personalidade de Mackno, completa, bri- lhante ¢ poderosa, como o préprio movimento, nao deixou de atrair a atencao geral, despertando nalguns a simples curiosidade ou assombro, noutros a indignacao esttipida ou o espanto irreflectido, noutros ainda um dio impla- cavel ou, por tiltimo, um amor sem limites. E, pois, natural que a macknovstchina possa dar lugar a alguns relatos impulsionados por outras consideracdes que as do verdadeiro conhecimento de causa e que o desejo de a tornar compreensivel, como a descricéio imparcial, o esclarecer dos factos e o fixar dos acontecimentos aos demais de uma forma precisa, a fim de serem entregues a disposigao dos historiadores. Uns entpunham a caneta mo- vidos por razbes politicas: a necessidade de justificaremt e afirmarem as suas posicées, aviltando e caluniando o mio- yvimento hostil aos seus chefes. Outros créem-se obrigados a dar mais um pontapé num fendmeno que esta acima das suas coimpreensdes, que os espantou e os incomodou. Outros ainda, seduzidos pela lenda que loga rodeou a mo- vimento, escrevem somente porque é um tema de sensagao, pelo interesse aceso do grande pitblico, pela perspectiva tentadora de gankar dinheiro com algumas pdginas de novela, Finalmente os que tém a mania do jornalismo. E deste modo acrescentam-se os «materiaisn que nao podem servir para mais do que para embrulhar desespera- PROLOGO damente as nogées do leitor o destruir-lhe qualquer possi- bilidade de conhecer a verdade ('). Por outro lado, 0 movimento, apesar do seu grande alcance local ter um cardcter restrito e concentrado, des- viou forgosamente a consequéncia das suas condi¢des especiais. Sendo produzido pura e unicamente pelas cama- das mais «baixas» das massas populares, estranhas a toda @ pretensao de esplendor, de dominacao e de gloria, tendo a sua origem nos limites da Russia, longe dos seus grandes centros; desenvolvendo-se num espaco circunscrito; sepa- rado niio sé do mundo inteiro mas também de todas as outras regides do pais, o movimento permaneceu nesses factores essenciais, pouco conhecido afora dos seus limites. Desenrolando-se, quase sem intervalos, em condigées de luta armada, incrivelmente tenazes e penosas; rodeado de todas as partes por inimigos; com poucos adeptos entre as esferas nao trabalhadoras; cambatido sem quartel pelo par- tido governante e ensurdecido pelo alvoro¢co sangrento da actividade zstatal que esse partido desenvolvia; tendo per- dido, pelo menos, 90 por cento dos seus melhores partici- pantes; n@o tendo tido tempo nem possibilidade de fixar, de juntar, de conservar os seus actos, palavras e pensamen- () Para além de uma quantidade de artigos disseminados pelos diferentes jornais da Russia e do estrangeiro, que’ testemu- nham um talento pouco comum entre os caluniadores ou um impudor Hterario incrivel nos seus autores, existem j4 trabalhos de dimensdes mais ou menos grandes, que querem ter uma certa importincia desde o ponto de vista ideolégico ou da histéria, mas que na realidade nado passam de uma falsificacZo consciente da verdade ou de fabulas estipidas. Citernos, como exemple, o livro do bolchevique J. Jakolev «O Anarquismo Russo na Grande Revo- lugdo Russaa, que aparece em varias odigdes russas ¢ estrangerras, livro que nao é mais que uma vaga de falsificacdes e de mentiras flagrantes, Por ultimo, anotemos o grande artigo, muito presun- goso, de um certo Guerasimenko, na coleceSo «O Historiador eo Contemporineos (edicSo Olga Diakov ¢ C.*, livro III, Berlim 1922, pag. 151), artigo intitulado «Mackno», onde sio retatadas coisas t&o fantésticas que nos envergonhamos pelo «autors ¢ pela «colec- gio». Devemos, igualmente, assinalar que na imprensa anarquista, 8 PROLOGO tos para a posteridade, o movimento deixou poucos documentos vivos. As acgées da macknovstchina produ- ziram-se sem serem recolhidas em parte alguma. A sua documentacgio nao foi nem difundida nem conservada. Resulta disso que, na sua maior parte, 0 movimento con- tinue desconhecido no estrangeiro e oculto aos olhares do investigador. Nao € facil penetrar até & sua esséncia pro- funda. Assim como milhares de herdis «modestos» das épocas revoluciondrias permanecem desconhecidos para sempre, do mesmo modo o movimento macknovista, a epo- peia dos trabalhadores ucranianos esté em perigo de sofrer a mesma sorte. O riquissimo tesouro dos seus acontecimen- tos permanece ainda hoje intacto. E se o destino nao tivesse conservado com vida alguns dos participantes do movi- mento, que o conhecem a fundo e stio capazes de dizer toda a verdade sobre ele, poderia ficar ignorado para sempre... Tal estado de coisas cria, para o leitor atento ou para o historiador, uma situagéo extremamente delicada; um e outro véem-se obrigados a dissecar e criticar, por eles prdprios, as obras e os elementos mais contraditdrios; e nao sé sem factos imediatos que possam orientd-los como que trata geralmente o movimento macknovista de uma forma reflectida e honesta, que o considera a partir de um outro ponto de vista ¢ com um outro objectivo distinto daquele dos autores acima referidos, existem também muitos erros, consequéncia duma nao participag¢io pessoal e activa dos autores no movimento que por isso 0 descrevem, somente, através de materiais j4 publicados e de relatos e impressdes de teroeiras pessoas. (Veja-se, por exem- plo, o folheto de P. Rudenko «A insurreigio € o movimento macknovista na Ucrania», publicado pelo grupo editor operério na Argentina (em russo) ¢ pela editorml La Protesta (em espa- nhol), em 1922, e que repete o artigo do periddico «El Trabajo Libres (Volni Trud), érgio da Federacdo dos Grupos Anarquistas de Petersburgo, Outubro de 1919. No folheto, assim como no artigo, existiam grandes erros, que se explicam precisamente pelo facto de o autor nao ter tomado parte, activa e directamente, neste movimento insurreccional ¢ de nao ter podido seguir de perto todas as suas complicadas peripécias. PROLOGO 9 também sem o menor indicio de «onde» e «como» poderiam ser encontrados. Eis aqui por que é necessdrio ajudar o leitor a separar 0 trigo do joio. Eis aqui por que o problema da pessoa do autor e do cardcter da sua obra devem ter, nesta ocasiao, um significado completamente diferente. Eu atrevi-me a escrever um prefdcio para este livro e a fornecer luz sobre estas questdes, porque a sorte quis que fosse eu um dos participantes da macknovstchina, e que, tendo-lhe sobrevivido, possua um conhecimento suficiente do movimento e do autor do livro e das condigdes em que a obra foi realizada. Permito-me, primeiramente, uma reserva pessoal. Se me pudesse perguntar (o que, por outro lado, me sucede frequentemente) por que nao escrevo eu prdprio sobre o movimento macknovista. Nao o.facgo por causa de diversas razGes a tomar em conta; eis aqui algumas: Somente, quando se esté na posse de todos os elemen- tos, rigorosa e escrupulosamente, é possivel abordar a tarefa de expor os factos e aclarar o fundo deste movimento. Tal tema exige um trabalho especial, ampla. Pois. bem; esse trabalho foi-me até hoje impossivel por varias razdes e, por isso, em primeiro lugar, creio necessdrio abster-me de momento. A epopeia macknovista é demasiado grave, sublime e trdgica; esté demasiadamente regada com o sangue dos seus participantes; é bastante profunda, complicada e ori- ginal para que se possa tratar ligeiramente, fundamen- tando-se, por exemplo, nos relatos e nos testemunhos con- traditérios dos seus diversos personagens. Expor a matéria, servindo-nos unicamente dos documentos, no é para jd a nossa intengdo, porque os documentos sGo coisas mortas, que esto distantes de reflectir a vida. Escrever com o apoio tinico de papéis seré o trabalho dos futuros historia- dores, que nao tenham outros elementos a sua disposi¢ao. Os contempordneos devem ser, em relagGo & obra e a si proprios, muito mais exigentes e severos, porque sera a eles que a histéria fard as suas reclamagées. Devem abs- 10 PROLOGO ter-se de narragées e de juizos sobre os factos em que nao tenham tomado uma intervengéo activa e pessoal. Nao devem, tao-pouco, deixar-se seduzir pelos relatos e docu- mentos para «fazer histéria, sem se darem ao trabalho de fixar a sua experiéncia pessoal, se é que a tiveram. Em caso contrdrio, correriam o risco de deixar na sombra ou, o que seria pior, de corromper a verdade essencial, @ alma viva dos acontecimentos, 2 de fazer cair em grave erro o leitor e o historiador. Até mesmo as suas experiéncias pessoais nao esto isentas de inexactid6es e equivocos. Mas isso n@o tem nenhuma importancia neste caso. Dar uma visto real, viva e substantiva dos acontecimentos é, sin, o ponto capital. Sobrepondo esta visio com os documen- tos e os outros elementos serd facil ultrapassar certos erros secundarios. Eis, aqui, por que o relato de um participante, de uma testemunha ocular do sucedido tem uma impor- tancia especial. Quanto mais profunda e completa tenha sido a experiéncia tanto mais importante e urgente a reali- zacao deste trabalho. Se, para mais, esse participante se encontra, também, na posse de uma vasta documentacado ¢ de testemunhos de outros participantes, o seu relato adquire uma significagao de primeira ordem. Terei de falar da macknovstchina mais tarde, sob uma forma e uma luz especiais. Mas n@o posso escrever uma «histéria completan do movimento macknovista, porque nao possuo um conhecimento detalhado e completo do assunto. Tomei parte nele durante cerca de seis meses, desde Agosto de 1919 a Janeiro de 1920; 0 que é dizer que estou longe de té-lo observado em toda a sua extensdo. Encontrei Mackno pela primeira vez em Agosto de 1919. Perdi logo completamente de vista o movimento e o préprio Mackno (por ter sido detido também) em Janeiro de 1920, € nao estive em contacto, depois disso, mais que 15 dias de Novembro (do mesmo ano) na época do tratado de Mackno com o governo sovietista. Depois perdi outra vez de vista o movimento. E evidente que o meu conhecimento pessoal nao poderia ser perfeito, apesar do que observei, experi- mentei e reflecti sobre ele. PROLOGO Al Portanto, qui. me interroguei por que nado escrevia sobre a macknovotchina, respondi sempre: porque deve fazé-lo outro melhor documentado que eu. Falava justa- mente do autor da presente obra. Sabia que tinha actuado continuamente neste movi- mento, Ein 1919, trabalhdmos juntos, Sabia também que recolhia os elementos necessdrios. Sabia que escrevia labo- riosamente na historia completa; sabia, enfim, que o livro tinha sido terminado e que o autor estava disposto a publicd-lo no estrangeiro. E estimava que era justamente essa obra que: deveria aparecer antes de qualquer outra; era «una histéria completa da macknovstchina, escrita por um que, tendo participado no movimento, possula um tesouro de materiais». Fxistem, ainda, muitas pessoas convencidas de que Mackno néo era mais que «um simples bandido», um ainstigador de insurreic¢des», que arrastou a massa obscura dos suldados e dos camponeses, sempre disposta ao saque, para a guerra. Ha outros que o consideram como um «aventureiro» ¢ que dao ouvidos aos contos malévotos ¢ absurdos que dizem ter «aberto a frenten em Denikin, ter «confraternizado» com Petlura, ter-se «aliado» a Wrangel... Por causa dos bolchevistas, muita gente continua calu- niando Mackno como «chefe do movimento contra-revolu- ciondrios dos camponeses kulaks (*)» ¢ consideram o anar- quismo de Mackno como invencao ingénua de alguns anar- quistas, da qual ele soube habilmente tirar partido... Mas Denikin, Petlura, Wrangel ndo sao mais que bri- Ihantes episédios de guerra; valem-se deles para acumular mais mentiras. Pois bem: a luta contra os generais reaccio- irios néo poderia encontrar os quadros da macknovyst- china. O fundo essencial do movimento macknovista, a sua substancia verdadeira, as suas acgGes organicas permanecent quase desconhecidas. Na@o se poderia emendar este estado de coisas por meio de artigos sem conexGo, de notas isoladas, de obras mM (?) Camponeses enriquecidos. acomodados. 12 PROLOGO parciais. Quando se tem que tratar um fendmeno de uma grandeza e de uma complexidade tais, como as que carac- terizam a macknovystchina, semelhantes artigos 2 obras ofe- recem poucos recursos, nao iluminam o conjunto do qua- dro, sao devorados quase sem deixar rasto no mar de papel impresso. Para dar um golpe decisivo a todas as fabulas e 0 impulso a um interesse e a um estudo profundo do assunto, é necessdrio publicar uma obra mais ou menos completa, depois da qual seré proveitoso tratar separadamente os diferentes problemas, os episddios particulares e os detalhes. E essa obra que aqui se apresenta. O seu autor estava chamado ‘a realizd-la melhor que qualquer outro e é de lamentar que, como consequéncia de diversas circunstancias desastrosas, tenha aparecido com um atraso considerdvel (*). * * * E significativo que um operdrio seja o primeiro histo- riador do movimento macknovista. Este nio é um simples acaso. Durante toda a sua existéncia, o movimento nao pode dispor, tanto do lado teédrico como do lado organizativo, mais do que das suas préprias forcas, dos seus préprios recursos, pela massa dos operdrios 2 camponeses. O ele- mento «inteligéncia» teoricamente educado nao esteve com ele, salvo raras excepgdes. Portanto, o movimento foi aban- donado aos seus préprios recursos e meios. E o historiador que nos explica esse movimento e encontra a sua base ted- rica sai dos mesmos meios operarios. O autor desta obra, Pedro Archinov, filho de um ope- rério de Ekaterinoslav, é um operdrio, serralheiro chegado aum certo grau de instrucao por um trabalho pessoal bas- tante assiduo. Em 1904, e com a idade de dezassete anos, ©) Antes da publicagia desta e com o fim de fazer conhe- cet aos operdrios e aos camaradas estrangeiros alguns factos essen- ciais da macknovstchina, publicou nos jornais estrangeiros dois artigos intitulados «Nestor Mackno» e «A macknovstchina e o anti-semitismon. PROLOGO 13 associou-se ao movimento revoluciondrio. Em 1905, quando trabalhava na qualidade de serralheiro nas oficinas ferro- vidrias na cidade de Khisil-Arvate (Asia Russa), tornou-se membro da organizagao local do partido bolchevique. Cedo comecou a desempenhar ali um papel activo e chegou a ser dos membros mais destacados e redactor do drgéo ilegal dos operdrios, «Molot» («O Martelo», este drgado estava dijundido em todas as ferrovias da Asia Russa e tinha uma grande importdncia para 0 movimento revolu- ciondrio dos ferrovidrios.) Em 1906, perseguido pela policia local, Archinov abandonou a Asia para se deslocar & Ucra- nia, a Ekaterinoslav. Aqui se converteu em anarquista e continuou como tal o seu trabalho revoluciondrio entre os operdrios da regiaio. A causa que o levou a passar ao anar- quismo foi o minoritarismo dos bolchevistas, que nao correspondia, segundo as convicgdes de Archinov, ds aspi- racées dos operdrios e que originou 0 mesmo que o mino- ritarismo dos partidos politicos na derrota da Revolugao de 1905-6. No anarquismo Archinov encontrou, segundo as suas proprias palavras recolhidas e concretizadas, as espe- rangas libertdrias e o espirito de igualdade dos trabalha- dores. Em 1906-7, quando 0 governo czarista cobriu a Russia com uma rede de tribunais militares, foi absolutamente impossivel qualquer actividade de alguma extensao. Archi- nov, impulsionado pelas circunstdncias extraordindrias, arrastado pelo seu temperamento combativo, realizou varios atentados terroristas. Em 23 de Dezembro de 1906, em companhia de varios camaradas, assaltou um posto de Policia no bairro operd- rio de Arur, de Ekaterinovslay. (Trés oficiais cossacos, de policia e agentes morreram.) Gracas @ habil organizagéo desta acgao, nem Archinov nem os seus camaradas foram objecto de suspeita. Em 7 de Marco de 1907, Archinov disparou contra o chefe das principais oficinas ferrovidrias da cidade de Ale- xandrovsk, um tal Vassilenko. O crime deste ultimo contra a classe operdria consistia em ter entregue ao tribunal 14 PROLOGO militar cem operdrivs (acusados de terem tomado parte num motim armado no més de Dezembro de 1905), dos quais muitos foram, em consequéncia do testemunho de Vassilenko, condenados @ morte ou a@ trabalhos forgados. Para mais, antes como depois deste acontecimento, Vassi- lenko tinha-se mostrado sempre opressor activo e impio com os operdrios. Por sua prépria iniciativa, mas em con- jormidade com o juizo geral das massas trabalhadoras, Archinov custigou severamente este inimigo dos trabalha- dores: matou-o com um tiro de revdlver perto das oficinas e diante duma multid@o de operdrios. Ali mesmo, Archinov, foi detido pela Policia e cruelmente maltratado e, dois dias depois, condenndo 4 forca pelos tribunais marciais. No entanto, n@o foi marcada a data da execugao por ter sido estabelecido que o assunto nao correspondia ao tribunal marcial, mas sim ao tribunal militar superior. Esta dilacgao deu a Archinov a possibilidade de se evadir na noite de 22 de Abril de 1907, durante a missa de Pascoa, na igreja da prisdo de Alexandrovsk. Os guardas encarregues de vigiar os presos foram surpreendidos, de repente, pelo assalto audaz de vdrios camaradas. Foi oferecida a possibilidade de evasto a todos os detidos; mais de quinze pessoas o aproveitaram. Como consequéncia disto, Archinov passou cerca de dois anos no estrangeiro, a maior parte desse tempo em Franca. Em 1909 voltou @ Riissia e militou clandestina- mente durante um ano e meio, prosseguindo a obra de pro- paganda e de organizac&o anarquista nos meios operdrios. Em 1910 foi detido pelas autoridades austriacas com transporte de armas # de literatura libertdria para a Russia. Ficou fechado cerca de um ano na prisio de Tarnopol. depois da qual, solicitado pelo governo russo foi entregue as autoridades de Moscovo e condenado pelos tribunais a vinte anos de trabalhos forcados. Em Moscovo, na prisdo de Butirki, era o local onde Archinov devia cumprir a sua pena. Ali encontrou pela primeira vez o jovem Nestor Mackno, condenado igualmente por actos terroristas, em PROLOGO 15 1910, a trabalhos forcados perpétuos. Mackno conhecia Archinov, sem o ter visto, desde a época em que trabalhou no Sul da Russia. Permaneceram durante a priséo como camaradas e sairam do cércere nos primeiros dias da Revo- lugG@o de 1917. Mackno dirigiu-se a Ucrdnia e veltou a Golai-Polé, sua aldeia natal, para continuar o trabalho revolucionario. Archinov ficou na cidade e tomou energicamente parte na actividade nascente da Federac@o dos Grupos Anarquistas de Moscovo, Quando, no Verao de 1918, depois da ocupaga@o da Ucrdénia pelos austro-alemées, Mackno foi a Moscovo acon- selhar-se com os camaradas, habitou a casa de Archinov. Travaram entao um conhecimento mais intimo e discutiram ardentemente os problemas da revoluca@o e do anarquismo. Ao separarem-se, depois de trés ou quatro semanas, quando Mackno quis volver a Ucrénia nao suspenderam as suas relag6es. Mackno prometeu que nao esqueceria Moscovo e que a acudiria mediante o envio de dinheiro em ajuda do movimento. Falaram em fundar uma revista... Mackno manteve a sua palavra. Enviou dinheiro que, em conse- quéncia de nojentas circunstdncias, Archinov nao recebeu, 2 escreveu a este varias vezes. Nas suas cartas convidava-o a ir trabalhar para a Ucrénia; esperava-o e aborrecia-se por ele nao aparecer... Algum tempo depois, os jornais comecaram a falar de Mackno, guia de um destacamento de guerrilheiros bastante forte. No més de Abril de 1919, no principio da acgéo mack- novista, Archinov foi a Gulai-Polé e desde entéo nao aban- donou a regia@o até a sua derrota, em 1921, Ocupou-se principalmente do aspecto cultural e educacional e da organizacao geral. Dirigiu durante algum tempo a secgao de educacao, foi redactor do periddico dos insurrectos, «Putk Svobode» («Luta pela Liberdade»), etc. Nao se afas- tou da regiao mais que o Verao de 1920, quando teve lugar uma séria derrota no movimento. Nessa época foi quando se extraviou o primeiro manuscrito desta historia. Com grande trabalho voltou a entrar, depois desta auséncia, ne 16 PROLOGO regiao atacada pelos brancos e pelos vermelhos. Ali perma- neceu desde o comego de 1921. No principio desse ano, depois da derrota desastrosa infligida ao movimento pelo poder soviete(*), Archinov abandonou a regido, tendo sido desta vez formalmente encarregado de acabar o seu trabalho sobre a macknoyst- china. Levou o seu trabalho a bom fim, apesar das condi- ¢6es penosas em que se encontrava, em parte na Ucrdnia, depois em Moscovo. O autor deste livro é, pois, um homem dos mais com- petentes. Conheceu Nestor Mackno muito antes dos apon- tamentos que descreve e observou-o de perto, em grandes momentos durante o rolar dos acontecimentos. Conheceu igualmente todos os participantes mais notdveis do movi- mento, ele mesmo tomou parte activa nos acontecimentos e viveu o seu desenrolar trdgico e grandioso. Ele mais que qualquer outro chegou ao fundo mais intimo da mackno- vstchina, dos seus anseios, aspiragGes e esperancas, tanto desde o ponto de vista tedrico como do organizativo, Foi testemunha da sua luta titanica contra as forcas inimigags que investiam por todas as frentes. Operdrio, estava per- feitamente mergulhado no verdadeiro esptrito do movi- mento; o desejo poderoso, esclarecido pela ideia libertdria, das massas trabalhadoras de tomar «efectivamente» o des- tino nas suas préprias maos e de conduzir a seu modo a construgéo do mundo novo. Operdrio inteligente e ins- truido, soube escutar profundamente a esséncia do movi- mento e opé-la contra a ideologia das outras forgas, dos outros movimentos e correntes. Enfim, estudou cuidado- () Durante o combate, aquando duma carga da cavalaria dos «cossacos vermelhos», Archinov salvou-se milagrosamente. Os camaradas mais proximos foram massacrados diante dos seus olhos e ele mesmo nao conseguiu esgueirar-se a uma sabrada. PROLOGO 7 samente todos os documentos da macknovstchina. Mais que qualquer outro, teve os meios de tratar criticamente todas as informagdes e elementos, de separar o essencial do insignificante, o tipico e o importante do futil, o funda- mental do secundario. Tudo isto lhe permitiu aprofundar e esclarecer de modo brilhante, apesar das condigdes mais adversas e da perca reiterada dos manuscritos e documentos, um dos episddios mais originais e mais notdveis da Revolugao Russa. * ek Sera preciso falar separadamente das qualidades desta obra? Parece-nos que este livro fala por si. Sublinhemos, primeiramente, que foi escrito com um cuidado e uma escrupulosidade especiais, no que se refere 4 precis@o. Nenhum facto duvidoso, por pouco que o fosse, teria lugar nesta obra. Pelo contrdrio, uma grande quan- tidade de episddios interessantes e caracteristicos foram omitidos pelo autor a fim de economizar pdginas e digress0es. Certos momentos notdveis, alguns factos caracteristi- cos, diversos acontecimentos que nao podiam ser apoiados por dados precisos foram igualmente postos de parte. A perca de toda uma colecgéo de documentos mais caracteristicos prejudicou muito a obra. A quarta e ultima desaparig@o dos materiais (e também do manuscrito) ater- rou o autor de tal modo que vacilou durante algum tempo entre reempreender ou nao o trabalho. Unicamente, a cons- ciéncia da necessidade de dar um compéndio histdrico, todavia incompleto, da macknovstchina o decidiu a voltar @ tomar a caneta. Certamente, os estudos ulteriores sobre 0 movimento macknovista serao ampliados e completados com 2lemen- tos novos. O movimento é tao vasto, tGo original, que a sua apreciacGo definitiva nao serd sequer uma obra de amanha. Este livro nao é mais que a primeira pedra para o edificio de um dos mais vastos e instrutivos movimentos da Histéria. 18 PROLOGO Alguns principios do autor podem provocar discussao. Mas nao séo eles que formam a verdadeira substancia do livro nem, para mais, estao suficientemente desenvolvidos. Notemos que a classificagéo original do bolchevismo, como uma nova casta de amos que vém a revelar-se como uma burguesia e aspirar conscientemente a dominagdo econ6- mica e politica sobre as massas trabalhadoras, apresenta um interesse considerdvel. No que concerne ao ponto essencial da macknovst- china, esta obra p6e-no ein relevo. Ao mesmo tempo, o proprio termo «macknovstchina» recebe, debaixo da caneta do autor, um sentido muito amplo, quase geral. O autor refere-se com este termo a um movimento de classe, movi- mento revoluciondrio dos trabalhadores, particular, original e independente, que aparece no plano da acgGo histérica e que se faz, pouco a pouco, consciente da sua evolugao e fim. O autor considera a macknovstchina na Russia como uma das primeiras e mais notdveis manifestagdes dum novo movimento das classes trabalhadoras e o apoio, como tal, as outras forcas e movimentos da Revolucao. Deduz-se disto que o termo «macknovstchina» é fortuito; se nao tivesse existido Mackno o movimento existiria, nao obstante, por- que existiriam sempre as forcas vivas, as massas que o cria- ram e que o desenvolveram, levando Mackno somente como chefe de guerra. O fundo essencial do movimento teria sido ele proprio, mesmo que o seu nome tivesse sido outro e que tendéncia ideoldgica tivesse tido outra definigao menos precisa. A individualidade e a misstio de Mackno estéo perfei- tamente expostas nesta obra. PROLOGO 19 As relag6es entre 0 movimento macknovista e as dife- rentes forgas inimigas—~a contra-revolugéo e o bolche- visrno — estdo aqui tratadas de uma forma muito circuns- tanciada. O interessante problema das relacdes entre a mackno- vstchina e o anarquismo nao estd suficientemente tratado pelo autor, que se limitou a formular uma tese geral, a acgdo mais importante: em suma, os anarquistas — mais exactamente as «ctipulas» anarquistas — mantiveram-se fora do movimento; segundo a expressdo do autor, pas- saram-no «a dormir». O autor encontra a explicagiio disto numa certa camada de anarquistas que esté afectada pelas tendéncias de «partido», pelo desejo de «guiar» as massas, suas organizagdes e movimentos, E, dat, a sua incapacidade para compreender os movimentos de massas, «verdadeira- mente independentes», que nascem por impulso préprio e que n@o pedem mais que uma assisténcia ideoldgica, sin- cera e abnegada, Dai também a sua atitude de prevencio e de desdém por essa espécie de movimento. Mas esta afirmagao nao dd, todavia, uma explicacgao suficiente. O assunto deveria ser aprofundado e desenvolvido, Exis- tian entre os anarquistas trés correntes de opinido sobre a macknovstchina: uma, claramente céptica, outra intermé- dia e a terceira de aprovacio. O prdéprio autor pertence, sem dtvida alguma, 4 terceira. Mas a sua posigdo é discu- tivel e por isso este problema deveria ser tratado a fundo. Na verdade ele néo tem uma relag&o directa com a obra. E, por outro lado, o ponto de vista do autor esté forte- mente apoiado nos factos que expde... Esperemos que esta questo levantada seja levada ds paginas da imprensa liber- ‘dria @ que a@ sua discusso resulte, trazendo conclusées \teis para o movimento anarquista, 20 PROLOGO Este livro vai por fim a todas as fabulas sobre o ban- ditismo, 0 anti-semitismo e a outras mentiras inerentes ao movimento macknovista, Se a macknovstchina, como toda a obra humana, teve erros, desvios e aspectos negativos, estes defeitos sao, segundo o autor, tao fliteis, tao pouco importantes em com- paragio com a sublime esséncia do movimento que nao merecem ser tomados a sério. Com uma claridade suficiente a obra mostra-nos a sensibilidade, a facilidade, o impeto natural que manifestou o movimento ao passar por cima dos prejuizos nacionais, religiosos e outros. O facto é muito caracteristico; teste- munha, uma vez mais, do que as massas s@o capazes entu- siasmadas com um verdadeiro impeto revoluciondrio, «a condigéo de que sejam elas mesmas a produzir a revolu- Go», de que lhes seja deixada a liberdade total de actuar. * Mas o que nos parece sobretudo importante e o que merece a maior atencGo na presente obra é isto: 1) O autor demonstra, com a ajuda de dados incon- testaveis, a falsidade da opinido dos que na@o viam—e nao yéem ainda—na macknovstchina mais que um episddio guerreiro, uma ace&o audaz de franco-atiradores, de guer- rilheiros, que sofria todos os defeitos, toda a esterilidade do militarismo. (Sobre essa falsa opiniao fundavam alguns de entre nds o seu ponto de vista negativo frente a mack- novstchina). Com a maior precis&o, provido de dados pal- PROLOGO 21 paveis, o autor desenrola diante dos nossos olhos o quadro dum movimento livre —todavia de curta durag@o — per- passado por uma ideia profunda, essencialmente criador e organizador, um movimento de amplas massas trabalha- doras, que nao formavam as suas forcas militares, estreita- mente unidas a ela, mas somente com o fim de defender a revolucao e a sua liberdade. E deste modo destrdi um falso juizo sobre a macknovstchina. Ha que notar que, se o autor censura a macknovyst- china, é justamente no aspecto militar e estratégico. No capitulo sobre os erros dos «macknovstzi», afirma que, se eles tivessem organizado a tempo uma guarda segura das fronteiras, o maior possivel, a revolucGo ucraniana, primei- ramente, e a revolucéo em geral, em seguida, desenrolar- -se-iam de outro modo. Se o autor tem razio, poder-se-ia relacionar, neste aspecto, a sorte da macknovstchina com a de cutros movimentos revoluciondrios do passado em que os erros militares também jogaram um papel fatal. Em todo o caso, chamamos particularmente a atencdo dos lei- tores sobre este ponto, que dé motivo a muitas reflexdes. 2) A independéncia verdadeira e completa do movi- mento, que foi consciente e energicamente garantida contra as forgas intrusas, esté neste livro claramente expressa. 3) A conduta dos bolcheviques e do poder soviético face & macknovstchina esté demonstrada duma maneira fixa e precisa. Da-se um golpe fulminante a todas as inven- Ges e «justificagdes» dos comunistas, Todas as suas maqui- nacées criminosas, todas as suas mentiras, todo o seu fundo contra-revoluciondrio foram postos a nu. Poder-se-ia por como epigrafe a esta parte do livro as palavras que se escaparam da boca do chefe da Secc&o de Operacdes Secretas da Vetcheka, Samsonof, durante a minha deten- ¢Go, ao ser chamado a comparecer ao interrogatério. Quan- do Ihe disse que considerava pérfida a conduta dos bolche- vistas em relacdo a Mackno na época do seu tratado com eles, Samsonof replicou vivamente: «Chama-lhe, a isso, Perfidia? Pois bem, na nossa opiniGo, isso sé demonstra que somos estadistas bastante hdbeis: enquanto tivemos 22 PROLOGO necessidade de Mackno, soubemos tirar partido dele; ¢ quando ja nos nao era necessdrio soubemos desfazer-nos dele» 4) Muitos revoluciondrios sinceros créem que o anar- quismo é uma fantasia idealista e justificam o bolchevismo como a tnica realidade possivel, inevitdvel e indispensdvel no desenvolvimento da revolucgaéo mundial e que marca uma certa etapa nessa revolugao. Por acaso os aspectos sombrios do socialismo parecem pouco importantes e en- contram a sua justificagao histdrica. A presente obra dé um golpe mortal nessa concepgao. Estabelece dois pontos cardiais: a) as aspiragdes anarquis- tas apareceram na Revolucao Russa — tanto que esta tltima mostrou-se como uma verdadeira revolugdo de massas trabalhadoras, feita por elas préprias—nao como uma utopia danosa de sonhadores mas como um movimento revoluctondrio de massas perfeitamente concreto e real; 4) como tal, foi consciente, cruel e cobardemente aplacado pelo bolchevismo. Os factos expostos neste livro demonstram claramente que a &realidade» do bolchevismo é, no fundo, a mesma do czarismo e op6e a chamada «realidade» a verdadeira e profunda tealidade do anarquismo como tnica ideologia verdadeiramente revolucionaria do trabalho. Portanto, estes factos privam o bolchevismo de qualquer sombra de uma justificagao histérica. 5) Este livro oferece aos anarquistas uma quantidade de documentos que ajudam e incitam a rever algumas das suas ideias: promove novas questdes, expde factos que ajudaram muito a resolugéo de problemas antigos e, por ultimo, confirma algumas verdades esquecidas ¢ que seria muito util recordar. Uma palavra ainda. Tendo sido este livro escrito por um anarquista, o seu interesse e a sua significacGo sGo tais que os seus leitores nao se limitam a um circulo determinado. PROLOGO 23 Para bastante gente esta obra serd uma revelacao. Para outras sera mais elementos a juntar aos seus conhecimentos. Nao sé o operdrio ou 0 camponés que saiba ler, ou todo 0 revoluciondrio, mas também todo o homem que pense e que se interessa com o que se passa @ sua volta deverd ler este livro, meditar nas conclusdes que ele impée, dar claramente conta do que Sse relata. Na nossa época, quando a vida esté cheia de aconte- cimentos e o mundo se perde em guerras; quando a revo- lug&io chama a todas as portas, disposta a arrastar com o seu furacio todo o ser humano; na hora actual, quando se abre, em toda a sua amplitude, a enorme luta entre o Tra- batho e o Capital, entre 0 mundo moribundo e o mundo nascente, e também entre os partiddrios de diferentes vias de luta e de construcgéo; nesta hora em que o bolchevismo chega & terra com o seu fracasso terrivel, exigindo sangue e mais sangue como prémio da sua traigéo a revolucao e recrutando os seus partiddrios para o engano, pela forca e pelo suborno; o unico consolo para Mackno, que definha numa pristéo em Varsdvia (°*), seria saber que as ideias pelas quais combateu nao morrem e crescem e se difundem; neste momento, digo, todo o livro que ilumine a estrada das grandes lutas revoluciondrias deverd ser o livro mais digno de ser lido. O anarquismo nao é um privilégio de eleitos, antes uma doutrina profunda e vasta: uma concepcGo do mundo que deveria ser conhecida por todos. E possivel que o leitor no seja anarquista. Mas que nao lhe suceda 0 mesmo que a um velho professor que assistiu, por acaso, a uma conferéncia libertdria, Emocio- nado, id com lagrimas, dizia depois da sessdo aos presentes: «Sou professor, tenho os cabelos brancos e nao sabia, ©) Depois da publicagdo deste livro em russo, Mackno foi julgado por um tribunal polaco, acusado de alta traigio (por ter fomentado uma sublevacio na Galiza, de acordo com os bolche- viques), mas, tendo sido reconhecida como falsa, foi retirada a acusagio. 24 PROLOGO até hoje, que existia uma doutrina tao bela, tao humana. Envergonho-me...» Que o leitor nunca venha a ser anarquista: nao é obrigatorio sé-lo. Mas o que deveria realmente ser um dever de todos era conhecer o anarquismo. Voline Maio de 1923 PREFACIO A macknoystchina (movimento macknovista) é um facto colossal da actualidade russa. Pela profundeza e alcance das suas ideias, ela ultrapassa todos os movimen- tos naturais, expontaneos, das massas trabalhadoras vistos até ao presente. O vasto campo de factos de que se com- poe este movimento é enorme. Infelizmente, nas condicdes da actualidade «comunista», no se pode pensar em reco- ther tudo o que poderia fazé-lo destacar a luz. Serd isso a obra do futuro. Quatro vezes comecei a histéria do movimento ma- cknovista, Com esse propésito cheguei a reunir escrupulo- samente toda a documentacao que dizia respeito ao assunto. Quatro vezes o trabalho foi destruido quando ia a mais de meio. Duas vezes foi inutilizado na frente, no decurso de combates, duas ou trés vezes em lugares onde naio havia combates, mas em que se faziam buscas domicilidrias. Foi principalmente em Janeiro de 1921, em Kharkov, que uma documentacao muitissimo abundante e preciosa teve de ser destruida. Tudo o que se tinha podido encontrar na frente, no campo e nos arquivos pessoais de Mackno: as suas me- mérias, assinalando uma grande quantidade de factos, a 26 PREFACIO maior parte das publicagdes e documentos relativos ao movimento, a colecgav completa do Putek Svobodé (O Ca- minho para a Liberdade), notas biograficas minuciosas sobre os participantes mais ardentes do movimento, tudo isso ali se encontrava, E absolutamente impossivel reconsti- tuir, por enquanto, mesmo parcialmente, a documentacao que desapareceu. Fiz, pois, esta obra, faltando-me elementos muito necessdrios. Por outro lado, teve esta obra de ser escrita entre combates, depois com a ameaca constante de perseguic6es policiais; foi-me necessdrio, para a poder rea- lizar, empregar os mesmos processos dos prisioneiros das cadeias czaristas quando escreviam, escondendo-se nos cantos, por detrés duma mesa, com o receio constante de que o guarda de vigia os surpreendesse. Nestas condicées é natural que seja muito sumdria e um pouco apressada, que tenha bastantes lacunas. O estado actual das coisas na Ruissia exige contudo que uma resenha histérica, mesmo incompleta, do movimento seja publi- cada jd. Esta obra nao é definitiva. Ela n@o esgota o assunto, nao é sendo o inicio dum trabalho que vird a ter a sua ampliagdo. Para isso sera indispensdvel que se reunam todos os documentos que a ele se referem. A todos os cama- radas que possuam alguns ou que possam adquiri-los se pede que os remetam ao autor. Alguimas palavras aos camaradas operdrios dos outros paises: muitos deles, vindo & Russia para assistir a qualquer congresso, s6 véem a actualidade russa nos quadros oficiais. Visitam as oficinas de Petrogrado, de Moscovo e outras grandes cidades, ficam a conhecer a situagdo segundo os dados do partido governamental ou dos grupos politicos da mesma tendéncia. Um inquérito assim feito n@o tem nenhum valor. PREFACIO 27 S6 se mostra aos hdéspedes uma vida que difere mui- tissimo da realidade. Tomemos um exemplo: em 1912 ou 1913, um sdbio de Amsterdao — Israel Van-Kan, se nao estou em erro— vem @ Rissia para se documentar sobre as cadeias. O Governo do czar deu-lhe a possibilidade de yisitar as diferentes cadeias da capital e doutras cidades. Andava de cela em cela, informava-se da situagao dos detidos, conversava com eles. Travou relagdes com forgados politicos (José Minor e outros). Apesar de tudo, sé viu o que a administragdo penitencidria quis que ele visse. O que havia de caracteristico, de especifico, nas cadeias russas escapou-lhe, Os camaradas estrangeiros que vém a Russia esperando, em pouco tempo, com o auxilio das indicagdes do partido dirigente ou de homens politicos rivais, conhecer a vida russa encontram-se na mesma situagdo do sdbio Van-Kan. CometerGo infalivelmente graves erros. Para esclarecer e atingir a realidade russa, é indispen- sdvel ir ao campo na qualidade de operdrio agricola ou a oficina como simples trabalhador. Tem de receber o «paiok» (ragao) econémico... e politico atribuido ao povo pelo poder comunista. Tem de exigir os direitos sagrados dos trabalhadores, lutar para os obter quando lhos recu- sam, lutar revolucionariamente, porque a revolugao é o direito supremo dos trabalhadores. Sé entio a realidade efectiva, verdadeira e nao ficticia e simulada, se revelard luminosamente a esse audacioso. E entao nao o surpreen- deré a historia contada neste livro. Com horror e indigna- Go vera que actualmente na Riissia, como em toda a parte, a Verdade dos trabalhadores é crucificada. Compreenderd ¢ admirard o heroismo dos macknovistas defendendo essa Verdade. Eu penso que todo o proletario reflectido, preocupan- do-se com os destinos da sua classe, concordard em que € sé desta maneira que é possivel informar-se a respeito da vida russa, como afinal a respeito de qualquer outra. Ora tudo o que tem sido feito pelas delegacées estrangeiras, 28 PREFACIO com muito raras excepcdes, para o estudo da vida russa tem-se limitado a bagatelas, a ilusdes, a uma pura perda de tempo. Moscovo, Abril de 1921. Archinov (1918-1921) CAPITULO | A DEMOCRACIA E AS MASSAS TRABALHADORAS NA REVOLUCAO RUSSA Nao existe na historia do mundo uma Unica revolugao que tenha sido levada a cabo pelo povo trabalhador no seu proprio interesse, isto 6, pelos operdrios das cidades e Os camponeses pobres que nao exploram o trabalho de outrem. Embora a forga principal de todas as importantes revolugGes resida nos operdrios e nos camponeses, fazendo grandes e intimeros sacrificios para triunfarem, os guias, Os organizadores dos meios, os idedlogos dos objectivos foram, invariavelmente, nao operdrios e camponeses, mas elementos 4 parte: elementos que lhes eram estranhos, geralmente intermedidrios, hesitando entre a classe domi- nante da época a terminar e o proletariado das cidades dos campos. £ sempre a desagregagio do regime em derrocada, do velho sistema de Estado, acentuada pelo impulso das 30 HISTORIA DO MOVIMENTO MACKNOVISTA massas escravas para a liberdade que desenvoilve e aumenta esses elementos. E pelas suas qualidades particulares de classe ¢ a sua pretencdo ao Poder no Estado que eles tomam uma posig’o revoluciondria em face do regime politico agonizante e se tornam facilmente os guias dos oprimidos, os condutores dos movimentos populares. Mas, ao mesmo tempo que organizam a revolucio e a dirigem sob a égide do pretexto dos interesses vitais dos trabalhadores, tratam sempre dos seus interesses estreitos de grupos ou de castas. Aspiram a aproveitar a revolugao para assegurar a sua preponderancia no pais. Sucedeu assim na Revolugdo Inglesa; na grande Revo- lugao Francesa; nas revolugGes francesa e alema de 1848; enfim, em todas as revolugdes em que o proletariado das cidades e dos campos derramou o seu sangue na luta pela liberdade. Foram sempre os dirigentes, os politicos de todas as faccGes que dispuseram e aproveitaram os frutos dos esforgos e sacrificios dos trabalhadores, explorando 4 som- bra do povo os problemas 2 os objectivos da revolucao em proveito dos interesses dos seus grupos. Na grande Revolugdo Francesa, os trabalharoes em- pregaram esforcos sobre-humanos para o seu triunfo, Mas os homens politicos desta revolugéo eram porventura os filhos do proletariado e lutavam pelas suas aspiracdes: Liberdade, Igualdade e Fraternidade? Nao. Danton, Robes- pierre, Camilo, Desmoulins e muitos outros «pais» da revo- lugdéo foram essencialmente representantes da burguesia Jiberal de entéo. Lutavam tendo em vista uma estrutura determinada — burguesa —da sociedade, nao tendo de facto nada de comum com as ideias de liberdade e de igualdade das massas populares da Franca do século XVIII. Eram e sdo contudo considerados como os guias de toda a Grande Revolucao. Em 1848, a classe operdria francesa, que tinha dado a revolugio o sacrifficio de trés meses de esforgos heréicos, de misérias, de privagdes, de fome, obtém, porventura, essa «Reptiblica Social» que lhe havia sido prometida pelos diri- gentes da revolucdo? O que essa classe s6 deles colheu foi HISTORIA DO MOVIMENTO MACKNOVISTA 31 a escraviddo, o exterminio em massa: o espingardeamento de 50000 operdrios de Paris, quando tentaram insurgir-se contra Os que os tinham traido. Em todas as revolugées passadas, os operdrios e os camponeses ndo conseguiram sendo esbocar sumariamente as suas aspiragdes fundamentais, formar apenas a sua cor- rente, garalmente desnaturada e por fim liquidada por diri- gentes da revolugao mais velhacos, mais astuciosos, mais astutos e mais instruidos. O maéximo das suas conquistas limitava-se a um osso bem magro: um direito insignificante de reuniio, de associagio, de Imprensa ou o direito de se darem governantes. Mas mesmo esse «osso ilusério» nao Ihes era confiado sendo o tempo necessdrio ao novo regime para se consolidar. Depois disto, a vida das massas reto- mava © seu antigo curso de submissdo, de exploracaio e de embuste. $6 nos movimentos profundos de baixo, como a revolta da Rasine e as insurreigdes camponesas e operdrias destes Ultimos anos, € que o povo é e permanece mais ou menos tempo senhor do movimento e lhe comunica a sua esséncia e a sua forma. Mas estes movimentos habitualmente aco- lhidos com censuras e maldicdes da parte de toda «a huma- nidade pensante» nunca chegaram a triunfar. Além disso distinguem-se muito das revolucdes dirigidas por grupos ou partidos politicos, A nossa Revolugio Russa é sem nenhuma divida e até ao presente uma revolucdo politica que realiza pelas forgas poulares interesses estranhos ao povo. O facto funda- mental e saliente desta Ultima revolucio é—a custa dos sacrificios, dos sofrimentos e dos maiores esforcos revolu- ciondrios dos operdrios ¢ camponeses —a conquista do Poder politico por um grupo intermédio: a «inteligenziay (camada inteligente) socialista revolucion4ria—-na_reali- dade social-democrata. Tem-se escrito muito sobre esta «inteligenziay russa. Ordinariamente elogiam-na denominando-a a «condutora de ideais humanos superiores» pioneira da verdade. Foi também algumas vezes, mas muito raras, censurada, inju- 32 HISTORIA DO MOVIMENTO MACKNOVISTA riada, Tudo 0 que se disse e escreveu sobre ela, quer bem quer mal, tem um defeito muito grande: era ela propria que se definia, que se censurava ou se elogiava. Para o espirito independente dos operdrios e dos camponeses, este método nao € nada persuasivo e no pode ter nenhuma influéncia nas suas relagdes. Nestas relagdes, 0 povo nao repara sendo em factos. Ora, o facto real, incontestavel, na vida da «inte- ligenzia» socialista é que ela gozava sempre duma situagdo social privilegiada. Vivendo nos privilégios, o intelectual torna-se privile- giado, ndo apenas socialmente mas também psicologica- mente. Todas as suas aspiragoes espirituais, tudo o que se entende por o seu «ideal social» encerra infalivelmente o espirito do privilégio de casta. Este espirito manifesta-se em todo o desenvolvimento da «inteligenzia». Se tomamos a época dos decabristas (*) como inicio do movimento revo- lucionrio da «inteligenzia», passando conseculivamente por todas as fases deste movimento, 0 narodnitschestvo (*), o narodovoltchestvo(?), 0 marxismo, © socialismo em todas as suas ramificagdes, encontramos sempre este espirito de privilégio de casta claramente expresso. Seja qual for, na aparéncia, a elevagéo dum ideal social, se ele contém privilégios para os quais 0 povo devera contribuir sacrificando-lhes o seu trabalho e os seus dirci- tos, deixa de ser uma verdade completa. Ora um ideal social que no oferece ao povo a verdade completa é para cle () Participantes do primeiro levantamento revoluciondrio russo que se deu principalmente em S. Petersburgo em Dezembro de 1825. © Narodnitschestvo, movimento de 1870. Numerosos estu- dantes, rapazes e raparigas das classes elevadas foram até as mas- sas populares para as instruir e propagarem entre elas as ideias socialistas. Foi esmagado por inumeras perseguig6es. Dele resultou © Narodovolischestvo, tendéncia que produziu a formagio do par- tido Narodnaia Volia (Vontade do Povo), tendo por objectivo a supressio do czar para transformar o regime e tornar possivel a propaganda. Adeptos desse partido conseguiram assassinar 0 czar Alexandre Il em 1881. HISTORIA DO MOVIMENTO MACKNOVISTA 33 uma mentira. & precisamente uma tal mentira que é para ele a lideotogia da «inteligenzia» socialista e da propria «inteligenzia». Tudo deriva deste facto nas relagées entre o povo e ela. O povo nao esquecera ¢ nao perdoaré nunca que, especulando sobre as suas condigdes miserdveis de trabalho e da sua falta de direitos, uma certa casta social se onie privilégios se esforce por os fazer passar para a sociedade nova. O povo é uma coisa, a democracia e a sua ideologia socialista é outra. Ela vem ao povo prudentemente, falsa- mente, astuciosamente. Nao se pode negar que naturezas herdicas isoladas, como Sofia Perovscaia, se colocam acima destas vis ques- tées de privilégios proprios do socialismo, Este fendémeno nao provém duma doutrina de classe ou de democratismo: é de ordem psicolégica ou ética. Estas naturezas sao as flo- res da vida, a beleza do género humano. Inflamam-se na paixio da verdade, dio-se e votam-se completamente ao servigo do ovo e, pelas suas belas resisténcias, fazem ressaltar ainda mais a falsidade da ideologia socialista. O povo nao as esquecera nunca e conservaré eternamente no seu coragdo um grande amor por elas. As vagas aspiragdes politicas da «inteligenzia» russa em 1825 erigiram-se, um século mais tarde, num sistema socialista estatista acabado e a propria «inteligenziay num agrupamento social ¢ econdémico preciso: a democracia socialista, As relacdes entre ela e 0 povo fixaram-se defini- tivamente: o povo caminhando para a autodirecciio civil e econdmica; a democracia procurando exercer o poder sobre © povo. A ligagaéo entre ambos nao pode manter-se senao por meio de estratagemas, de trapacas e de violéncias e em caso algum duma maneira natural pela forga duma comu- nidade de interesses. Estes dois elementos s&o hostis um ao outro. A prépria ideia estatista, a ideia duma direcgdo das massas pela coac¢io foi sempre a mais adequada a individuos em que o sentimento da igualdade nao existe e em que o instinto de egoismo domina, individuos para os quais a massa humana é uma matéria bruta privada de 34 HISTORIA DO MOVIMENTO MACKNOVISTA vontade, de iniciativa e de consciéncia, incapaz de se dirigir a si mesma. Esta ideia foi sempre a caracteristica dos agrupamen- tos privilegiados 4 parte do povo trabalhador: as geragdes patricias, a casta militar, nobreza, clero, burguesia indus- trial e comercial, etc. Nao foi por acaso que o socialismo moderno se mostrou servidor zeloso da mesma ideia. O socialismo é a ideologia duma nova casta de dominadores. Se observarmos atentamente os apéstolos do socialismo estatista, nés veremos que cada um deles esté cheio de aspiragdes centralistas, que cada um se considera antes de tudo como um centro dirigente e mandante, em volta do qual as massas gravitam. Este trago psicolégico do socia- lismo estatista e dos seus marechais é a continuagao directa da psicologia dos antigos agrupamentos dominadores, extin- tos ou prestes a desaparecerem. O segundo facto saliente da nossa revoluc&o € perma- necerem os operdrios e a classe média laboriosa na sua situagaio anterior de classes trabalhadoras — produtores diri- gidos pelo poder de cima. Toda a construc&o actual, que se diz socialista, praticada na Russia, todo o aparelho esta- tista da direcgiio do pais, a criagio das novas relagdes sociais ¢ politicas, tudo isto nao é mais do que a edificagéo dum novo dominio de classe sobre os produtores, o estabe- Jesimento dum novo poder socialista sobre ‘eles. O plano desta construgao, deste dominio foi elaborado e preparado durante dezenas de anos pelos lideres da democracia socia- lista e conhecido antes da Revolugio Russa sob 0 nome de colectivismo. Chama-se-lhe agora 0 sistema soviético. Realiza-se pela primeira vez sobre a base do movi- mento revolucionério dos operarios e camponeses russos. ¥ a primeira tentativa de democracia socialista para estabe- lecer num pais o seu dominio estatista pela forga de revo- lugdo, Como primeira tentativa e, além disso, feita s6 por uma parte da democracia—a parte mais activa, a mais revoluciondria e que tem mais iniciativa, a sua ala esquerda comunista—, esta tentativa pela sua expontaneidade foi wma surpresa para toda a democracia e pelas suas formas HISTORIA DO MOVIMENTO MACKNOVISTA 35 prutais seccionou-a, nos primeiros tempos, em varios agru- pamentos inimigos. Alguns desses agrupamentos (os men- cheviques, ‘0s socialistas-nevoluciondirics, etc...) considera- yam como prematuro e arriscado introduzir actualmente o comunismo na Russia. Conservavam a esperanga de con- seguir 0 dominio estatista no pais pela chamada via legis- Jativa e parlamentar, isto é, pela conquista da maioria das cadeiras no Parlamento com os votos dos camponeses ¢ dos operarios. Foi por causa deste desacordo e a respeito disso mesmo que entraram em discussio com os seus cama- radas da Esquerda, os comunistas. Este desacordo € ape- nas acidental, temporério e pouco sério, E provocado por um mal-entendido que provém de a parte maior e a mais timida da democracia nao compreender a significagio da transformacao politica executada pelos bolcheviques. Logo que esta Gltima veja que o sistema comunista nado sé ndo lhe traz nada de mau como, pelo contrario, lhe deixa entrever vantagens e empregos soberbos no novo Estado, todas as discussées, todos os desacordos entre as diversas facgdes adversdrias da democracia desapareceréo por si mesmas e esta caminhara sob a égide do Partido Comunista unificado. Nés podemos ja naturalmente notar uma mudanga da democracia neste sentido, Uma série de agrupamentos ¢ de partidos, entre nés ¢ no estrangeiro, se unem na «plata- forma soviéticay. Grandes partidos politicos de diferentes paises, que eram ainda nos Ultimos tempos os instigadores principais de II Internacional e que nela lutavam contra o bolchevismo, preparam-se agora para ir para a Internacional Comunista e aproximam-se da classe operdria sob a ban- deira comunista com a ditadura do proletariado nos labios. Mas, semelhante as grandes revolugdes precedentes, em que lutavam os operdrios e os camponeses, a nossa tevolucdo pés igualmente em relevo uma quantidade de aspiragdes independentes e naturais dos trabalhadores na sua luta pela liberdade e a igualdade. A nossa revolucao teve também correntes populares originais. 36 HISTORIA DO MOVIMENTO MACKNOVISTA Uma dessas correntes, a mais poderosa, a mais notdvel é a macknovstchina, Durante trés anos, ela tentou heroica- mente abrir na revolugdo um caminho pelo qual os traba- lhadores da Russia poderiam atingir a realizagao das suas aspiragdes seculares: Liberdade e Independéncia. Apesar das tentativas mais encarnicadas, mais selvagens do Poder comunista para abafar essa corrente, para a desnaturar, para a sujar e emporcalhar, para a aviltar, ela continuou a viver, a desenvolver-se e a aumentar, combatendo em varias frentes da guerra civil, vibrando por vezes golpes formiddveis aos seus inimigos, despertando, mantendo e ampliando nos operarios e camponeses da grande Russia, da Sibéria e do Caucaso, a esperanga na Revolugao. O éxito rapido ¢ constante da macknovstchina expli- ca-se pelo facto de uma parte dos operdrios e camponeses russos conhecerem um pouco a historia das revolugdes dos outros povos ¢ os movimentos revoluciondrios de seus avos ¢ poderem basear-se sobre a experiéncia desses aconteci- mentos. Além disso, brotaram das fileiras operdrias perso- nalidades que souberam descobrir e formular os problemas fundamentais e mais essenciais do movimento revolucio- nario das massas e atrair para eles a sua ateng&o; que souberam opor as suas aspiragdes aos objectivos politicos da democracia e defendé-los com dignidade, perseveranga e talento. Antes de passar directamente a historia do movimento macknovista, é necessdrio acentuar que chamando a Revo- lugao Russa a Revolucao de Outubro se confundem muitas vezes dois fendmenos diferentes: os principios sob que a massa fez a Revolucio e os resultados desta. As ideias fundamentais do movimento de Outubro de 1917 eram: «As oficinas aos operdrios! A terra aos cam- poneses!» Todo o programa social e revoluciondrio das massas se encontrava nessas palavras, breves, mas pro- fundas pela sua significag&o: aniquilamento do capitalismo, supressio do salariado, da escravidao estatista e organiza- cio duma vida nova baseada na autodireccéo dos produ- tores. HISTORIA DO MOVIMENTO MACKNOVISTA 37 De facto, a Revolugao de Outubro nao realizou esse programa: 0 capitalismo nao foi destruido, mas reformado, 9 salariado e a exploracdo dos produtores continuam a existir; e quanto ao novo aparelho estatista, ele nao oprime menos os tabalhadores do que o aparelho estatista do capitalismo privado e agrario. Nao se pode pois chamar a Revolucio Russa Revolugio de Outubro, seniio num sen- tido preciso e estreito: no da realizagdo dos objectivos e dos problemas do Partido Comunista. O levantamento de Outubro, da mesma forma que a agitagao de Fevereiro-Marco de 1917, é apenas uma fase da marcha geral da Revolucio Russa. O Partido Comu- nista aproveitou-se das forgas revoluciondrias do movi- mento de Outubro para os seus préprios objectivos, e este acto n&o representa toda a nossa Revolugao. O processo geral da Revolugio compreende varias outras correntes que se nao detém em Outubro, mas que vio mais longe, para a realizagio dos problemas histéricos dos operarios e cam- poneses: a comunidade operdria, igualitaria e n&o estatista. O Outubro actual, que se arrasta ja ha tempo e que ja enfraqueceu, deverd indubitavelmente ceder o lugar a uma fase ulterior popular da revolucio. No caso contrario, a Revolucio Russa, como todas as precedentes, nao tera sido senio uma mudanga de Poder. CAPITULO I1 A REVOLUGAO DE OUTUBRO NA GRANDE RUSSIA E NA UCRANIA Para apreender claramente a marcha da Revolucaio Russa, é necess4rio considerar a propaganda e o desenvol- vimento das ideias revoluciondrias entre os operarios e cam- poneses durante todo o periodo de 1900 a 1917 ¢ a influén- cia do levantamento de Outubro na Grande Russia e na Ucrania. A partir dos anos 1900-1905, a propaganda revolu- ciondria entre os operdrios e os camponeses foi feita pelos partidarios de duas doutrinas principais: o socialismo esta- tista e o anarquismo. O primeiro era propagado por varios partidos demo- craticos admiravelmente organizados: os bolcheviques, os mencheviques, os socialistas revoluciondrios e ainda outras Correntes politicas da mesma esséncia. © anarquismo sé dispunha de alguns agrupamentos numericamente fracos que, além deste inconveniente, tinham © de nao precisar duma maneira suficientemente clara a Sua atitude na revolugdo. O campo da propaganda e da edu- 40 HISTORIA DO MOVIMENTO MACKNOVISTA cagao politica estava quase completamente conquistado pela democracia. Ela educava as massas no sentido dos seus programas e ideias politicas. A instituigaéo da Rept- blica Democratica era a sua ordem do dia; a revolucdo politica o meio da sua realizagao. O anarquismo, pelo contrario, rejeitava a democracia como uma das formas do estatismo, rejeitava também a revolugao politica como meio de accao. Para o anarquismo a ordem do dia dos operdrios e camponeses devia ser a revolucao social e era para ela que chamava as massas. Era a unica doutrina que reclamava a destruig&o completa do capitalismo em nome duma sociedade livre nao estatista dos trabalhadores. Mas, dispondo apenas dum ntmero muito restrito de militantes e nao possuindo, além disso, um programa concreto para o dia seguinte duma revolucdo, © anarquismo nao péde espalhar-se amplamente e enrai- Zar-se nas massas como uma teoria social e politica deter- minada. Contudo, sendo certo que ele tocara os pontos vitais da existéncia das massas escravas, que nao represen- tava nunca nenhum papel hipdcrita junto deles, que as ensinava a lutar pela propria causa ¢ a saber morrer por ela, o anarquismo criou nas camadas mais profundas das massas trabalhadoras um certo nimero de lutadores e de mArtires da revolugao social. As ideias anarquistas resis- tiram a longa prova da reacgdo czarista e permaneceram na alma dos trabalhadores isolados das cidades e dos cam- pos como o seu ideal social e politico. O socialismo, sendo o filho natural da democracia, dispunha sempre de enormes forgas intelectuais: professo- res, estudantes, médicos, advogados, jornalistas, etc.... Eram ou marxistas declarados ou simpatizantes dessa doutrina. Gracas as suas forgas numerosas, lancadas na politica, o socialismo conseguiu sempre atrair uma parte considerdvel dos trabalhadores, embora os chamasse 4 Juta por ideais de democracia, ideais pouco compreensiveis e suspeitos. Apesar disto, no momento da Revolucdo de 1917, 0 interesse e 0 instinto de classe dominavam e arrastavam os HISTORIA DO MOVIMENTO MACKNOVISTA 4 operarios € Os camponeses para Os seus objectivos directos: a conquista da terra, das fabricas e das oficinas. Quando esta orientagdo apareceu nas massas — e tinha sido muito antes da Revolugaéo de 1917 —, uma parte dos marxistas, principalmente a sua ala esquerda, os bolche- viques, abandonaram rapidamente as suas posigGes aberta- mente democratico-burguesas, lancaram certos preceitos adaptando-se as aspiragdes dos trabalhadores e, no dia da revolucdo, marchavam com a massa em revolta, procurando tornar-se senhores do seu movimento. Gracas as conside- raveis forcas intelectuais que compunham as fileiras do bol- chevismo, e também ao programa socialista que seduzira as massas, conseguiram o que desejavam. Nés indicdmos j4 mais acima que o levantamento de Outubro se efectuou tendo dois objectivos, que eram ao mesmo tempo um elemento de uniao: «As oficinas aos operdnios! A terra aos camponeses!». Os trabalhadones davam a estas palavras um sentido simples, sem fazer nenhuma reserva. Segundo eles, a revolucio devia colocar toda a economia industrial do pais a disposic¢fo e sob a direcgao dos operdrios, a terra e a agricultura disposicao e sob a direcgdo dos camponeses. O espirito de justiga e a auto-acgao compreendidos nesse programa arrastou de tal maneira ‘as massas que a sua frente mals activa estava disposta, no dia seguinte ao da revolucio, a empreender a organizagao da vida sob a base destas formulas. Nas dife- rentes cidades, as unides profissionais e os conselhos de oficina tomaram a gest&o das empresas ¢ das mercadorias, Puseram de parte os proprietarios ¢ os patrées, estabelece- ram eles prdprios as tarifas, etc... Mas todas estas tenta- tivas esbarraram com uma resisténcia de ferro da parte do Partido Comunista tornado j4 o do Estado. Este partido, caminhando com a massa revoluciondria, identificando-se com as suas reclamacdes extremistas, por vezes anarquistas, mudou bruscamente a sua accio, logo que o governo da coligacao foi derrubado e que ele tomou conta do Poder. A revolucdo, como movimento das massas trabalhadoras sob as férmulas de Outubro, estava termi- 42 HISTORIA DO MOVIMENTO MACKNOVISTA nada para ele. O inimigo essencial dos trabalhadores — a burguesia industrial e agraria — esta, dizia ele, vencida; o periodo de destruigdo, de luta contra o regime capitalista acabou; comega agora o da criagdo comunista do edificio proletario. A revolugio deve, pois, efectuar-se agora pelos 6rgios do Estado. A continuagao do estado de coisas ante- rior, quando os operdrios eram senhores da rua, das fabri- cas e oficinas © os camponeses, néo vendo ja nenhum poder, procuravam organizar a sua vida com plena inde pendéncia, traria consequéncias perigosas, podendo per- turbar a grande obra estatista do partido. Era preciso pér- -lhe fim por todos os meios possiveis, até ao da violéncia estatista. Tal foi a reviravolta na acgdo do Partido Comunista desde que se estabeleceu no Poder. A partir desse momento, comegou a reagir tenazmente contra todos os empreendimentos socialistas das massas operdrias ¢ camponesas, Esta reviravolta na Revolugao, este plano burocratico do seu desenvolvimento ulterior foram duma torpe insoléncia da parte dum partido que s6 devia a sua situagio As massas trabalhadoras. Era pura impostura ¢ usurpacio. Mas a légica da posicao ocupada pelo Partido Comunista na Revolugdo era tal que lhe era impossivel comportar-se doutra maneira, Qualquer outro partido politico procurando na revolugéo a ditadura e o dominio no pais teria agido da mesma forma. Antes de Outubro, foi a ala direita da democracia — os mencheviques e os socialistas revoluciondrios— que procurou dirigir ¢ dominar a Revolucio. A sua diferenga dos bolcheviques consiste em nao terem tido tempo ou nao terem sabido organizar 0 seu poder e prender as massas nas suas malhas. * * * Vejamos agora como a ditadura do Partido Comu- nista e a proibigio do desenvolvimento ulterior da revo- lugdo a nao ser pelos érgéos do Estado foram recebidos pelos trabalhadores da Grande Russia e da Ucrania. HISTORIA DO MOVIMENTO MACKNOVISTA 43 A revolugdo para os trabalhadores da Grande Russia ¢ da Ucrania foi a mesma coisa, mas a sua estatizaciio bol- chevista foi recebida diferentemente: na Ucrania mais difi- cilmente do que na Grande Russia. Comecemos por esta ultima. Antes e durante a Revolugao, o Partido Comunista desenvolveu em toda essa regido uma grande actividade entre os operarios das cidades. Durante 0 periodo czarista procurou, sendo a ala esquerda da social-democracia, orga- niza-los para a luta em favor da Reptiblica Democratica, preparando assim uma arma segura e sdlida na luta pelos seus ideais. Depois da queda do czarismo em Fevereiro-Marco de 1917, um periodo agudo, que n&o permitia nenhuma demora, comegou para os operdrios e camponeses. No Governo Provisério viam um inimigo certo. Nao espera- ram, portanto, e trataram de efectivar os seus direitos por meios revoluciondrios: primeiro os seus direitos ao dia de trabalho de 8 horas, depois os seus direitos sobre os pré- prios érgaos de producao e de consumo, bem como a terra. O Partido Comunista foi para eles, em tudo isso, um exce- lente aliado, bem organizado. E verdade que, por esta uniao, ele procurava conquistar os seus fins; mas a massa igno- rava-o. A massa s6 via 0 proprio facto, e esse era que 0 Partido Comunista lutava com ela contra o regime capita- lista. Este partido langou toda a forca das suas organiza- es, toda a sua experiéncia politica e organizadora, os seus melhores militantes nos meios operdrios e no Exército. Empregou toda a sua energia e actividade para agrupar as massas em volta desse objectivo. Representava o papel de demagogo em relaco as inflamadas questées do trabalho oprimido. Apreendia ¢ aproveitava as palavras que uniam Os camponeses nos seus desejos de posse da terra e dos Operdrios em relacio ao trabalho livre. Impelia-os para uma coliga¢ao decisiva contra 0 Governo. Todos os dias o Partido Comunista se encontrava nas fileiras da classe ope- taria, fazendo com ela uma Iuta infatig4vel contra a bur- guesia, luta que prosseguiu até aos dias do Outubro. © pois 44 HISTORIA DO MOVIMENTO MACKNOVISTA natural que os operarios da Grande Riissia tenham tomado habito de o considerar como o seu enérgico companheiro de armas na luta revoluciondria. Esta circunstancia, junta A de que a classe operdria russa nao tinha por assim dizer organizagOes revolucionarias de classe e estava disseminada sob o ponto de vista de organizacdo, permitiu ao partido tomar facilmente a direcc4o dos acontecimentos. E quando © govemno da coligac&o foi derrubado pelas massas de Petrogrado e de Moscovo, o Poder passou naturalmente para os bolcheviques como os guias qualificados do golpe de Estado. Depois desse facto, o Partido Comunista empregou toda a sua energia em organizar um poder firme e em supri- mir os diversos movimentos das massas operdrias e cam- ponesas, que continuavam, em varios pontos do pais, a procurar atingir os objectivos principais da revolugéo por uma accdo directa. Gracas 4 influéncia enorme que tinha adquirido no periodo pré-outubrista, conseguiu isto sem grande dificuldade. E verdade que logo apés a conquista do Poder, o Partido Comunista teve por mais duma vez de combater as primeiras tentativas das organizag6es opera- tias para comegar a producio nas bases do trabalho igua- litério. E verdade também que numerosas aldeias foram saqueadas, milhares de camponeses assassinados pelo novo poder «comunista» pela sua desobediéncia e as suas ten- tativas de dispensarem o Poder. £ verdade que em Moscovo e em varias outras cidades — para liquidar as organizagdes libertarias em Abril de 1918 e mais tarde as dos socialistas tevolucionérios da Esquerda —o Partido Comunista teve de servir-se de metralhadoras e canhdes, provocando assim a guerra civil da Esquerda. Mas em geral, gracas a uma certa embora breve confianga dos operdrios da Grande Russia pelos bolcheviques depois de Outubro, estes con- seguiram submeter facil e rapidamente as massas ao seu dominio e suspender o desenvolvimento ulterior da revo- lugio operdria e camponesa, substituindo-o por medidas estatistas do partido. E nesse ponto se deteve a Revolucao na Grande Russia. HISTORIA DO MOVIMENTO MACKNOVISTA 45 Foi duma maneira muito diversa que se desenvolveu o mesmo periodo na Ucrania. O Partido Comunista nao possuia nessa tegido a décima parte das forgas organizadas de que dispunha na Grande Russia. A sua influéncia sobre os camponeses e os operdrios foi ai sempre insignificante. A Revolugio de Outubro deu-se muito mais tarde, na Ucrinia, s6 em Novembro e Dezembro e mesmo em Janeiro do ano seguinte. Era, nessa ocasiéo, a burguesia nacional local (os Petliurovtzi, partidarios do «democrata» Petliura) que detinha o Poder na Ucrania. Os bolcheviques comba- tiam-no mais na ordem militar que na revoluciondria. Por isso, enquanto na Grande Russia a passagem do Poder para os Sovietes significou simultancamente a conquista desse Poder pelo Partido Comunista, na Ucrania a impopulari- dade e a impoténcia do Partido Comunista fez com que 0 poder atribuido aos Sovietes tivesse outra significacio. Os Sovietes eram reunides de delegados operarios sem nenhu- ma possibilidade de subordinar as massas. Eram os operd- tios nas oficinas e os camponeses nas aldeias que se sen- tiam como possuindo a forga real. Infelizmente esta forca era desperdigada, inorganizada e, portanto, o perigo de cair sob a ditadura dum partido qualquer solidamente cons- tituido ameagava-a permanentemente. Durante toda a luta revolucion4éria na Ucrania, a classe operdria e os camponeses desta regido nao se tinham habituado a ter ao seu lado um tutor constante ¢ inflexivel, como foi o Partido Comunista na Grande Russia. Em vir- tude disso formou-se na Ucrania uma maior liberdade moral que deveria infalivelmente exercer a sua influéncia ao sur- girem os movimentos revoluciondrios das massas. Um ponto ainda mais importante na existéncia dos camponeses e operdrios (indigenas) da Ucrania era o das tradigdes da Volnitza (Vida Livre) que se perpetuavam na Ucrania desde tempos remotos (*). Apesar dos esforgos dos () Organizagées livres de camponeses, na Ucrania, durante Muito tempo em luta com os paises vizinhos, tendo acabado por Se submeter ao Estado russo. 46 HISTORIA DO MOVIMENTO MACKNOVISTA czares desde Catarina II para apagar do espirito do povo uoraniano todos os vestigios da Volnitza, esta heranga da época guerreira dos séculos XIV-XVI e dos campos zaporogos conservou-se € até aos nossos dias os camponeses da Ucrania tém tido sempre um grande amor pela indepen- déncia, que se manifestou por uma resisténcia tenaz contra todo o poder que os pretendesse sujeitar. O movimento revoluciondério na Ucrania foi acom- panhado de duas condigdes que nao havia na Grande Rassia e que tanto deviam influir no proprio caracter da revolugio ucraniana: a auséncia dum partido politico pode- roso ¢ organizado e o espirito da Volnitza tradicional e tao proprio dos trabalhadores da Ucrania. E, com efeito, enquanto na Grande Russia a revolugao se estatizava sem dificuldade e era introduzida nos quadros do Estado Comu- nista, esta mesma estatizacfio encontrava na Ucrania difi- culdades consideraveis; o aparelho sovietista instituia-se nessa regio sobretudo pela forga, militarmente. Ao mesmo tempo, um movimento auténomo das massas, sobretudo das massas camponesas, continuava a desenvolver-se para- Jelamente. Anunciava-se j4 sob a Reptblica Democratica de Petliura e progredia lentamente, procurando ainda o seu objectivo. Esse movimento tinha, além disso, as suas raizes no fundo essencial da Revolugao Russa. Fez-se ostensiva- mente notar desde os primeiros dias da agitagao de Feve- reiro, Era um movimento das camadas mais profundas dos trabalhadores, tratando de destruir 0 ‘sistema econdmico de escravidio e de criar um sistema novo, baseado na comu- nidade dos meios e dos instrumentos de trabalho ¢ no prin- cipio da exploracio da terra pelos préprios trabalhadores. Dissemos j4 que em nome destes principios os operd- rios expulsavam os proprictaérios das oficinas e atribuiam a gestio da produc&o aos seus érgdos de classe: unides profissionais. conselhos de oficina ou comissdes operdrias especialmente criadas para este efeito. Os camponeses, esses apoderavam-se das terras dos proprietdrios agrarios e dos ricagos (os kulaks, camponeses abastados), atribuindo estritametne aos proprios trabalhadores o respectivo usu- fruto, esbocando assim um tipo novo de economia agricola. HISTORIA DO MOVIMENTO MACKNOVISTA 47 Esta pratica de acgdo revolucionaria directa dos ope- ratios e dos camponeses desenvolveu-se na Ucrania quase sem obstdculos durante todo o primeiro ano de Revolucao, criando assim uma linha de conduta revoluciondria das massas — bem segura ¢ sa, De cada vez que um grupo politico, tendo-se apoderado do Poder, procurava destruir essa linha de conduta revolu- ciondria dos trabalhadores, estes tltimos comegavam uma oposigao revolucionéria e entravam em luta contra essas tentativas. Assim, 0 movimento revoluciondrio dos trabalhadores para a independéncia social, comecado nos primeiros dias da Revolu¢ado, nao enfraquecia qualquer que fosse o poder estabelecido na Ucrania. Nao se extinguiu também sob o bolchevismo que, depois do levantamento revoluciondrio de Outubro, comegou a introduzir na regiao o seu sistema estatista autocrata. O que havia de essencial nesse movimento era o seguinte: o desejo de atingir, na Revolucdo, os fins verda- deiros das classes laboriosas; a vontade de conquistar a independéncia completa do trabalho e finalmente a descon- fianga para com os grupos ndo laboriosos da sociedade. Apesar de todos os sofismas do Partido Comunista, procurando demonstrar que ele era o cérebro da classe operdria e que o seu poder era o dos trabalhadores, todo © Operdrio ou camponés, tendo conservado o espirito ou © instinto de classe, cada vez ia adquirindo mais a convic- go de que, de facto, o Partido desviava os trabalhadores das cidades e dos campos da obra revoluciondria que lhes era prépria; que o Poder os tomava sob a sua tutela; que © proprio facto da organizacio estatista era a usurpagao dos seus direitos & independéncia e a livre disposig&o de si Proprios. A aspiracdo a independéncia, 4 autonomia completa, torna-se a base do movimento germinado no mais pro- fundo das massas. Os seus pensamentos eram constante- mente dirigidos para esta ideia por uma numerosa quanti- dade de factos ¢ de vias. A acc%o estatista do Partido 48 HISTORIA DO MOVIMENTO MACKNOVISTA Comunista abafava implacavelmente estas aspitagdes. Mas foi precisamente esta acgéo dum partido presun¢oso, nao tolerando nenhuma objecc4o, que esclareceu melhor os tra- balhadores nesta ordem de ideias e os levou & resisténcia. No principio este movimento limitava-se a ignorar o novo Poder e a realizar actos espontaneos, pelos quais os camponeses se apoderavam das terras e dos bens dos agra- rios. Procurava as suas formas e os seus meios. A ocupa- Go inesperada da Ucrania pelos austro-alemaes colocou os trabalhadores num ambiente completamente novo e preci- pitou o desenvolvimento do seu movimento. CAPITULO III A INSURREICAO REVOLUCIONARIA NA UCRANIA — MACKNO O tratado de Brest-Litovsk concluido pelos bolche- vistas com o Governo imperial alemao, escancarou as por- tas da Ucrania aos austro-alemaes. Entraram nesse pais como senhores. Nao se limitaram a acg&o militar, mas imiscuiram-se na sua vida econdmica e politica. O seu fim eta apropriarem-se dos viveres. Para o conseguirem duma maneira facil e completa, restabeleceram o poder dos nobres e dos agrarios que o povo tinha vencido e instalaram o governo autocrata do «hetman», Skoropadsky. Quanto as tropas austro-alemas que ocupavam a Ucrania, eram elas sistematicamente enganadas pelos seus oficiais sobre a Revolugdo Russa. Representavam-lhes eles a situagio na Russia e¢ na Ucrania como uma orgia de forcas cegas ¢ selvagens destruindo a ordem e aterrorizando a honesta Populacao laboriosa. Por estes processos provocava-se nos soldados uma hostilidade contra os camponeses ¢ 0s ope- rarios revoltados, favorecendo assim a accdo—accio de Simples banditismo, absolutamente confrangedor — dos eXércitos austro-alemaes. 4 50 HISTORIA DO MOVIMENTO MACKNOVISTA A pilhagem econémica da Ucrania pelos austro-ale- } mies com o assentimento e 0 auxilio do governo de Sko- ropadsky foi enorme ¢ odiosa. Roubava-se e levava-se tudo: trigo, gado, aves, ovos, matérias-primas, etc., tudo | isto em tais proporcdes que os melos de transporte eram insuficientes para a sua deslocagéo. Como se tivessem caido sobre depésitos imensos votados a pilhagem, os aus- triacos e os alemaes apressavam-se a levar o mais que podiam, carregando um carro apds outro, e isto em cen- tenas de milhares de carros, levando tudo para Os seus acampamentos. Quando os camponeses resistiam a esta pilhagem e tentavam defender o fruto do seu trabalho, as represdlias, as perseguigdes, os fuzilamentos nio se faziam esperar. A ocupacio da Ucrania pelos austro-alemaes constitui uma das paginas mais tragicas da histéria da sua revolugao. Além da violéncia dos invasores, do cinico banditismo militar, havia a reaccio feroz dos agrarios. O regime do «hetman» foi o aniquilamento de todas as conquistas revo- luciondrias dos camponeses e dos operdrios, um regresso completo ao passado. E pois natural que este novo am- biente tenha poderosamente acelerado a marcha do movi- mento esbocado anteriormente sob Petliura e os bolche- viques. Por toda a parte, principalmente nas aldeias, come- garam os actos insurreccionais contra os agrarios e os aus- tro-alemaes. Foi entdo que se iniciou 0 novo Movimento Revolucionério dos Camponeses da Ucrania que se tornou conhecido mais tarde sob o nome de Insurreiga@o Revolu- ciondria. Explicou-se por varias vezes a origem desta insur- Tei¢io pelo facto da ocupacao austro-alema e o regime do «hetman» exclusivamente. Esta explicagdo é insuficiente e inexacta. A insurrei¢io teve a sua origem no ambiente e nos proprios fundamentos da Revolucdo Russa; foi uma ten- tativa dos trabalhadores para levarem a Revolucio até ao sou resultado integral: a verdadsira, a completa emancipa- ¢&o ¢ supremacia do Trabalho. A invasao austro-alema e a reaccdo agraria nao fizeram pois sendo apressar a sua eclosio, HISTORIA DO MOVIMENTO MACKNOVISTA 51 O Movimento tomou rapidamente vastas dimensdes. Os camponeses erguiam-se de todos os lados contra os agrarios, massacravam-nos ou expulsavam-nos, apoderan- do-se das suas terras e dos seus bens, sem poupar os inva- sores austro-alemaes. O «hetman» e as autoridades alemas responderam com represdlias implacdveis. Os camponeses das aldeias que se tinham levantado foram massacrados e fuzilados em massa, sendo-lhes queimados todos os haveres. Cente- nas de aldeias sofreram, num curto espago de tempo, um castigo diabélico da parte da casta militar e agraria. Isto passava-se em Junho, Julho e Agosto de 1918. Ent&o os camponeses, perseverando na sua revolta, organizaram-se em franco-atiradores e recorreram A guerra de emboscada. Como por inspiracao de organizacGes invi- siveis, surgiram quase simultaneamente, em diferentes luga- res, uma quantidade enorme de destacamentos de partida- rios agindo por surpresas militares contra os agrarios, os seus guardas e os representantes do Poder. Habitualmente esses destacamentos compostos de 20, 50 a 100 cavaleiros bem armados caiam bruscamente no sitio oposto aquele em que os supunham, sobre uma propriedade, sobre a Guarda Nacional, massacravam todos os inimigos dos cam- poneses e desapareciam tio rapidamente como tinham vindo. Todo 0 agrério que perseguisse os camponeses, todos os seus fiéis servidores eram marcados pelos franco- satiradores e ameagados a cada ‘instante de serem suprimi- dos. Todo o guarda, todo o oficial alemao era votado a uma morte certa. Estes feitos realizados quotidianamente em todos os pontos do pais atacavam fortemente a contra- “Tevolugao agrdria, pondo-a em risco e preparando infali- velmente a vitéria dos camponeses. , E de notar que da mesma forma que as vastas insur- Tei¢des camponesas expontaneas surgiam sem preparacao henhuma, as accdes guerreiras eram sempre conduzidas Pelos préprios camponeses, sem o auxilio nem a direccao de qualquer organizacio politica. O seu meio de accao colocou-os na necessidade de se ocuparem eles préprios 52 HISTORIA DO MOVIMENTO MACKNOVISTA das necessidades do movimento, dirigirem-no e conduzi- rem-no para a vitéria, Durante toda a Juta contra o «het | man» e os agrarios, nos momentos mais penosos, os cam~ poneses estiveram sos face a face com os seus inimigos encarnicados bem organizados ¢ bem armados. Isto teve (como o veremos mais adiante) uma grande influéncia sobre o caracter de toda a insurreic&o revoluciondria. O seu trago fundamental — por toda a parte onde se manteve até ao fim como obra de classe, sem cair sob a influéncia dos partidos ou dos elementos nacionalistas — foi o da sua proveniéncia do mais profundo das massas camponesas € 0 da cons- ciéncia geral que os camponeses tinham de que eram eles . proprios os guias ¢ os instigadores do seu movimento. Os destacamentos dos partiddrios sobretudo estavam impreg- nados dessa ideia. Tinham disso mesmo o orgulho e sen- tiam-se com forga para cumprir a sua missao. As represdlias selvagens da contra-revolugao nao deti- yeram o movimento: pelo contrario, alargaram-no e fize- ram-no irradiar para toda a parte. Os camponeses liga- vam-se cada vez mais, impelidos pela propria marcha do movimento para um plano geral e unido de acgao revolu- cionaria. Nao ha dtvida de que os camponeses de toda a Ucrinia se nao uniram nunca num s6 grupo agindo sob uma tnica direcgio. Nao se pode falar duma tal uniao sendo no sentido da do espirito revoluciondrio, Quanto ao ponto de vista pratico, o da organizagdo, Os camponeses uniam-se por cada regido, principalmente sob a forma de unido de destacamentos separados de partidarios. Logo que as insurreigdes se tornaram mais frequentes e as represalias mais ferozes ¢ organizadas, essas unides constituiram uma necessidade urgente. No Sul da Ucrania foi a regiao de Gulai-Polé quz tomou a iniciativa desta unificagao. Ai, essa unio ndo se fez somente com o fim da defasa mas também e sobretudo tendo em vista a destruigéo geral e completa da contra-revolugao agraria. Esta unificagdo tinha ainda um outro fim, principalmente o de fazer dos cam- poneses revoluciondrios uma forga real e organizada, capaz HISTORIA DO MOVIMENTO MACKNOVISTA 53 de combater toda a reaccdo e de defender vitoriosamente a liberdade e 0 territério do povo em revolugio. © papel mais importante nesta obra de unificagio e no desenvolvimento geral da insurreigo revoluciondria no Sul da Ucrania pertence ao destacamento de partidarios guiado pelo camponés indigena Nestor Mackno. Desde os primeiros dias do movimento até ao seu ponto culminante em que os camponeses venceram os agrarios, Mackno desempenhou um papel por tal forma pre- ponderante e capital que est&o ligados ao seu nome regides jnteiras insurgidas e os momentos mais herdicos da luta. Quando, depois, a insurreigao triunfou definitivamente da reaccio de Skhoropadsky, mas a regido foi ameagada por Denikine, Mackno tornou-se ‘0 centiro de ligagado de milhGes de camponeses sobre a drea de varios governos(’). Na historia da insurreigio na Ucrania, foi esse 0 momento em que se desenvolveu definitivamente o seu vendadsiro aspecto e se precisou a sua obra historica. Porque sé a insunnaigio é que conservou a sua esséncia revolucio- naria e a sua fidelidade aos interesses da classe trabalha- dora. Enqutnto no Sul da Ucrania os insurgidos ergueram a bandeira negra do anarquismo e optaram pela via anti- -autoritaria da organizacio livre dos trabalhadores, nas regides Oeste ¢ Noroeste do pais colocaram-se, pouco a pouco, depois de terem derrubado 0 «hetman» sob a influén- cia de elementos estranhos ¢ inimigos, principalmente demo- cratas e nacionalistas («petliurovtzi», partidérios de Pe- tliura). Durante mais de dois anos, uma parte dos insur- gidos do Oeste da Ucrania serviu de apoio a estes ltimos que defendiam, sob a bandeira nacional, os interesses da burguesia liberal. Assim, os camponeses insurreccionados dos governos de Kiev, de Volinia, da Podolia e duma parte do de Poltava, tendo origens comuns com o resto dos insur- Bidos, n&o souberam depois descobrir em si préprios as suas Missdes histéricas, as suas forcas organizadores e cairam —_ €) Divisdo territorial.

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