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LEITURAS AFINS Silvia T. Maurer Lane

Dialética da família
Coleç!O~i.~~ros Passos
~Iassjmo Canevacci (org.)

o que é adolescencia
Freud, pensador
Renato ;\1tzan
da cultura
J)Jniel Ikcker 11O oJ,,,,y..
"""
~~~
o que é famíli:l
A função do orgasmo D:ll1da í'r:ldo

o QUE
\X'ilhelm Rrich

o mínimo Eu o que é ideologia J3


,\1:lrilen:1 Ch:1l1i
Christ opher L:lsch

Psicologia social o que é psicanálise


PSICOLOGIA SOCIAL
Fábio Herrmann
U lJO/IIem em mOl'imellto
Sil"i:! T.· !v!. Llile
o que é psicanálise
\X". Codo (orgs)
l~'risÔo
OSClr Ces:t[ol! o
Repressão sexual
,\!:írcio P. S. Leite
Essa (rles)collbecida
I/IJSSfl
Marilcna Challi
o que é psicologi:l
;\!:lrÍ:l I.lIiza Sil\'eir:1 T elles
A Vingança da Esfinge
Ensaios de jJsiC(fJ/{ílise
Ren:lto Mrz:l/l o que é sociologia
Carlos B. ,\1:Irrins

o queé violcncia
i\'ilo Od:ilia

editora brasiliense
~./2:':\1 ';1.

Copyright © by Silvia T. Maurer Lane /


Nenhuma parte desta publicação pode ser gravada,
armazenada em sistemas eletrônicos, fotocopiada,
,:~
reproduzida por meios mecânicos Oll outros quaisquer ./
sem autorização prévia da editora.
t.'~··

Primeira edição, 198/


22' edição, 1994
4' reimpressão, 2002

Foto de capa: Cor/os Amara


Caricaturas: Emílio Damialli
Revisão: José E. Alldrade
Capa: 123 (antigo 27) Artistas Gráficos

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)


ÍNDICE
(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)
Lane, Silvia T. Maurer.
O que é psicologia social/Silvia T. Maurer Lane. - I' ed.-
[
São Paulo: Brasiliense, 1981. - (Coleção primeiros passos; 39)
Introdução: Psicologia e Psicologia Social .. 7 t
,,'
Como nos tornamos sociais 12
Os outros 12
I'I.
ISBN 85-11-01039-4
A identidade social 16 l!
J. Psicologia social I. Titulo. 11. Série. Consciência de si 22 t:

o Como apreendemos o mundo que nos cerca. 25


94-4]29 CDD-301.1
- A linguagem 25
A história via fam ília e escola 38
Índices para catálogo sistemático: - A família 38
1. Psico logia socia I 301.1
- A escola 46
Trabalho e classe social 55
O indivíduo na comunidade 67
editora brasiliense
Rua Airi, ]2 - Tall/apé- CEP 033/0-0/0 - São Paulo - SI> A Psicologia Social no Brasil 75
Fone/Fax: (0.<.<11)6198-/488
E-moi/: brasilienseedit@uol.com.br Indicações para leitura --- 85
Wl\·1V.edi/orabras iliense. com.br
livraria brasiliense :i
Rua Emilia Marengo. ] 16 - Totuapé ~j
CEP 03336-000 - São Pal/lo- SP - Fone/Fax (Ox.<I/) 6675-0/88

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INTRODUÇÃO: PSICOLOGIA
E PSICOLOGIA SOCIAL

Sem entrarmos na análise das diferentes teorias


psicológicas, podemos dizer que a Psicologia é a
ciência que estuda o comportamento, principal-
mente, do ser humano. As divergências teóricas se
refletem no que consideram "comportamento",
porém para nós bastaria dizer que é toda e qualquer
ação, seja a reflexa (no limiar entre a psicologia e
a fisiologia), sejam os comportamentos conside-
rados conscientes que envolvem experiências, co-
nhecimentos, pensamentos e ações intencionais, e,
num plano não observável diretamente, o incons-
ciente.
Assim parece óbvio que a Psicólogia Social
deve estudar o comportamento social, porém surge
uma qu.estão polêmica: quando o comportamerito
se torna social? Ou então, são possíveis compor-
,
;... )
9
8 Silvia T Maurer l.ane o que é Psicologia Social

-.....,

tamentos não sociais nos seres humanos? deram origem a uma família, a qual convive com
Cada organismo humano tem suas caracterís- certas pessoas, que sobrevivem trabal hando em
ticas peculiares; assim como não existem duas determinadas atividades, as quais já influenciam
árvores iguais, também não existem dois orga- na maneira de encarar e cuidar di'l gravidez e no
nismos iguais. Mesmo que geneticamente sejam que significa ter um filho.
idênticos, no caso de gêmeos, as primeiras inte- Esta influência histórica-social se faz sentir,
rações dos organismos com o ambiente já provocam primordialmente, pela aquisição da linguagem. As
diferenças entre eles, assim como: mais ou menos palavras, através dos significados atribuídos por
luz, som, enfim, diferentes estímulos que levam um grupo social,. por uma cultura, determinam
a difbrentes reações já propiciam uma diferen- uma visão de mundo, um sistema de valores e,
ciação nos dois organismos. conseqüentemente, ações, sentimentos e emoções
A Psicologia se preocupa fundamentalmente com decorrentes.
os comportamentos que individualizam o ser hu- As leis gerais da Psicologia dizem que se apreende
mano, porém, ao mesmo tempo, procura leis quando reforçado, mas é a história do grupo ao
gerais que, a partir das características da espécie, qual o indivíduo pertence que dirá o que é refor-
dentro de determinadas condições ambientais, çador ou o que é punitivo. O doce ou o dinheiro,
prevêem os comportamentos decorrentes. Como o sorriso ou a expressão de desagrado podem ou
exemplo, sabemos que a aprendizagem é conse- não contribuir para um processo de aprendizagem,
qüência de reforços e/ou punições, ou seja, sempre dependendo do que eles significam em uma dada
que um comportamento for reforçado (isto é, sociedade. Assim também aquilo que "deve ser
tenha como conseqüência algo bom para o indi- apreendido" é determinado socialmente.
víduo), em situações semelhantes é provável que Da mesma forma, as emoções que são respostas
ele ocorra novamente. Dizemos então que o indi- do organismo e, como tais, universais, se submetem I
.,

víduo aprendeu o comportamento adequado para às influências sociais ao se relacionarem com o que
aquela situação. nos alegra, nos entristece, nos amedronta. O se
O enfoque da Psicologia Social é estudar o sentir alegre com a vitória do time, triste com o
compoi'tamento de indivíduos no que ele é in- filme ou com uma música, o ter medo do trovão
;'j
fluenciado socialmente. E isto acontece desde o ou do avião, são exemplos que mostram o quanto ~, =i

momento em que nascemos, ou mesmo antes do nossas emoções decorrem desta visão de mundo ,. -:.'1

nascimento, enquanto condições históricas que que adquirimos através dos significados das pa-
./ ;'j
11
10 Silvia T. Maurer Lane o que é Psicologia Social

lavras. Num segundo momento, analisaremos como se


Assim podemos perceber que é muito difícil forma a nossa concepção de mundo e das coisas
encontrarmos comportamentos humanos que não que nos cercam, através da linguagem, e como ela
envolvam componentes sociais, e são, justamente, determina valores e explicações, de modo a manter
estes aspectos que se tornaram o enfoque da constantes as formas de relações entre os homens
Psicologia Social. Em outras palavras, a Psicologia (a ideologia e representações sociais); veremos
Social estuda a relação essencial entre o indivíduo ainda a relação entre falar e fazer, a mediação do
e a sociedade, esta entendida historicamente, desde pensamento e o desenvolvimento da consciência
como seus membros se organizam para garantir social.
sua sobrevivência até seus' costumes, val.ores e Em terceiro lugar, uma análise de instituições
instituições necessários para a continu idade da como família, escola, levando à reprodução das
sociedade. condições sociais, e em que circunstâncias elas
Porém a história não é estática nem imutável, podem propiciar o desenvolvimento da consciência
ao contrário, ela está sempre acontecendo, cada social.
época gerando () seu contrário, levando a socie- Uma ênfase especial será dada para o trabalho
dade a transformações fundamentalmente qualita- humano, na sua relação com as classes sociais, e
tivas. E a grande preocupação atual da Psicologia em que condições ele pode gerar consciência de
Social é conhecer como o homem se insere neste classe, fazendo dos indivíduos agentes da história
processo histórico, não apenas em como ele é de sua sociedade; em seguida, veremos como a
determinado, mas principalmente, como ele· se Psicologia Comunitária propõe uma ação educativa
torna agente da história, ou seja, como ele pode e conscientizadora pelo desenvolvimento de rela-
transformar a sociedade em que vive. çõescomunitárias.
~ o que procuraremos analisar nos próximos Por último, veremos como a Psicologia Social
capítulos. Inicialmente, veremos como somos de- tem se desenvolvido como ciência, em outras partes
terminados a agir de acordo com o que as pessoas do mundo e, principalmente, no Brasil de hoje.
que nos cercam julgam adequado, e para tanto
iremos examinar dois aspectos intimamente rela-
~
cionados: os outros, ou seja, o grupo ou grupos a \< ••

que pertencemos, e como nós, nesta convivência,


vamos definindo a nossa identidàçie ,social.
l~ ~_ @ •.
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o que é Psicologia Social 13

Assim, desde o primeiro momento de vida, o


indivíduo está inserido num contexto histórico,
pois as relações entre o adulto e a criança recém-
nascida seguem um modelo ou padrão que cada
sociedade veio desenvolvendo e que considera
correta. São práticas consideradas essenciais, e,
portanto, valorizadas; se não forem seguidas dão
direito aos "outros" de intervirem direta ou indire-
COMO NOS TORNAMOS SOCIAIS tamente. E, quando se fala em "dar o direito",
significa que a sociedade tem normas e/ou leis que
institucionalizam aqueles comportamentos que his-
toricamente vêm garantindo a manutenção desse
Os outros grupo social. ,
Em cada grupo social encontramos normas que I
regem as relações entre os indivrduos, algumas são
o ser humano ao nascer necessita de outras mais sutis, ou restritas a certos grupos, como as
pessoas para a sua sobrevivência, no mínimo de
consideradas de "bom-tom", outras são rrgidas,
mais uma pessoa, o que já faz dele membro de
consideradas imperdoáveis se desobedecidas, até
um grupo (no caso, de uma díade - grupo de aquelas que se cristalizam em leis e são pass(veis de
doisl). E toda a sua vida será caracterizada por punição por autoridades institucionalizadas. Estas
participações em grupos, necessários para a sua normas são o que, basicamente, caracteriza os
sobrevivência, além de outros, circunstanciais ou
papéis sociais, e que determina as relações sociais:
esporádicos, como os de fazer ou aqueles que se os papéis de pai e de mãe se caracterizam por
formam em função de um objetivo imediato. normas que dizem como um homem e uma mulher
se relacionam quando eles têm um filho, e como
(1) Existem relatos de crianças que foram criadas por animais, como
ambos se relacionam com o filho e este, no desem-
lobos, macacos, etc .• adquirindo comportamentos da espécie penho de seu papel, com os pais.
que as criou, necessários para a sua sobrevivência. Quando Do mesmo modo, o chefe de uma empresa só
traz idas para o convívio humano, as suas adaptações, quando o será, em termos de papel, se houver chefiados
ocorreram, foram extremamente difíceis e sofridas.
que, exercendo seus respectivos papéis, atribuam '. ~
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>:'~

~.:j
fJ4)
\'-_/ Silvia T. Maurer Lane o que é PsicoZogUI SOCUIZ 15

(
I
um sentido ~ação do chefe. Ou seja, um co~~ Parlamento, desempenha um papel totalmente defi-
menta o outro: para agir como chefe tem que ter nidQ; qualquer ação ou não ação que saia fora do
outros que ajam como chefiados. Esta análise po- protocolo gera confusão. Por outro lado, quando
deria ser feita em todas as relações sociais existentes Zé da Silva está em um país estranho, se aventu-
em qualquer sociedade - amigos, namorados, rando por conta própria (sem ser um "turista" -
estranhos na rua, que interagem circunstancial- o que já é um pape!), se passando por um cidadão
mente, balconista e freguês -em relação a todos comum, sem ter as determinações daquela socie-
!Éi~!~~_xp_~-º!atJ~a~_._~_~~rnP<:>rJ9 r:D_~_~!o~_f!!ª_is
__Q[7 dade e, sabendo que a qualquer momento ele po-
menos definidos e quanto mais a relação social derá se explicar como sendo estrangeiro, ele se dá
for fundamental para a manutenção do grupo e da o direito de fazer como sente, como gosta, "ele
sociedade, mais precisas e rígidas são as normas r pode ser ele mesmo" I ou seja; fazer coisas que
\; ql,lf:ade.Ui}~J:1:b._: --~ não faria se as pessoas o conhecessem, o identifi-
_. E a pergunta que sempre ocorre é: e a indivi- cassem como filho de "fulano", casado com
dualidade? Aque1as-caractt:1 í~tiCàS peettl-iare "sicrana", que trabalha na firma X ...
cada indivíduo? Afinál, se nós apenas desempe- Agora podemos pensar em toda a variedade de
nhamos papéis, e tudo que se faz tem sua deter- situações que nós vivemos cotidianamente e reco-
minação social, onde ficam as características que nhecermos situações em que somos mais deter-
individualizam cada um de nós?
minados e outras em que somos menos determi-
A resposta é, mais ou menos, como aquela nados, ou seja, "livres".
estória do pai dizendo à filha: "Você pode se casar Esta liberdade de manifestarmos a nossa persona-
com quem quiser, desde que seja com oJoão ... ", lidade2 também tem a sua determinação histó-
Em outras palavras, podemos fazer todas as va-
rica: naquelas atividades sociais que não são
riaçõesque quisermos, desde que as relações sejam
importantes para a manutenção da sociedade, ou,
mantidas, isto é, aquelas características do papel às vezes, até o contrário, a contravenção é necessá-
que são essenciaispara que a sociedade se mantenha ria para reforçar oconsíderado "correto", "normal"
tal e qual.
- os grupos considerados "marginais" reafirmam
Existem teorias que definem os papéis sociais
em termos de graus máximos e mínimos, de varia-
çõespossíveis"e_,exerT"lpl)ficam com fatos. como:
a rainha Elizabeth(lnglaterraJ, na abertura do
16 Silvia T. Maurer Lane 17
o que é Psicologia Social

os sérios e trabalhadores, desde que não ponham Procurem responder esta questão antes de con-
em risco a ordem da sociedade; então a ordem é: tinuar a leitura, e verifiquem como se define a
façam como quiserem, sabendo que o "querer" identidade social. de cada um na seqüência do
é limitado; porém, naquelas situações, as quais texto.
podem abalar todo o sistema de produção da sobre- Uma jovem adolescente respondeu:
vivência social, a liberdade se restringe a um "Quem sou eu
"estilo" (ser mais ou menos sorridente, mais ou Bem, é um pouco difícil dizer quem sou e como
menos sério, mais expansivo ou mais tímido, entre sou. Mas posso tentar:
outros). Assim como a rainha Elizabeth na aber- Fisicamente sou magra, estatura média, pele
tura do Parlamento, o trabalhador se relaciona muito clara, olhosesverdeados, cabelos castanhos
com suas ferramentas e máquinas, com seus chefes
I
e compridos, rosto fino, nariz arrebitado, com cara
e mesmo com seus colegas de trabalho segundo de moleca, mas corpo de mulher.
um protocolo muito bem definido, pois, afinal, Psicologicamente sou tagarela, brincalhona, ex-
~;
-;
~
~ se ele não o fizer, o outro se sairá melhor, ou ele pansiva, briguenta, triste, agressiva e estúpida
,'.J:
'"
perderá o emprego. (minha mãe que o diga).
O viver em grupos permite o confronto entre Estou fazendo pela 4~ vez o primeiro colegial,
as pessoas e cada um vai construindo o seu "eu" tenho 17 anos e completo 18, em outubro, dia 31,
neste processo de interação, através de constatações sou de 1963.
de diferenças e semelhanças entre nós e os outros. Meu signo é Escorpião, geniozinho difícil. Não
É neste processo que desenvolvemos a individua- sou fanática por estudos, mas estou tentando.
lidade, a nossa identidade social e a consciência- Faço e adoro ballet assim como artes em geral,
de-si-mesmo. leio bastante, vou ao cinema mas são poucos os
filmes intelectualmente bons, gosto muito de
Wood Alen mas ainda não vi seu último filme
A identidade social Memórias. Em literatura, gosto de romances antigos
,;1 e de autores brasileiros como Mario de Andrade,
:ji Cecília Meirelles, Graciliano Ramos e Fernando
i~,
~,
É o que nos caracteriza como pessoa, é o que Pessoa entre outros.
1'=.:
respondemos quando alguém nos pergunta "quem Gosto de estar sempre a par de tudo, como
e, voce"{"
k,
h
d' .. artes, pol ítica, atualidade, economia e tudo que
~

- ,.,.. ,.

. :..i•• :i
19
18 Silvia T. Maurer Lane o que é Psicologia Sodal

~I'
/--------------------------~
ocorre ao redor da gente. possivelmente seu grupo preferido de pares não
~:::; Sou bem complicada, não? está na escola.
"<,".:
Gosto também de música popular e tenho afei- O fazer ballet e as coisas de que gosta dizem
ção especial por Chico Buarque, Milton Nascimento sobre quais os grupos que são importantes para
e Rita Lee, gosto também de Mozart e Tchaikovsky ela e, sem dúvida, indicam toda uma estimulação
(isto por causa do ballet). intelectual que, não vindo da escola, deve estar
Tenho como ídolo n9 1 Mikhail Baryshnikov, presente no contexto familiar, e no grupo de baBet.
bailarino russo, atualmente residente nos EUA; é (Para constatar estas inferêncías precisaríamos
diretor do American Ballet Theatre de Nova lorque, também da sua história de vida.)
"1,
mas também dança com o New York City Ballet; É interessante' observar um certo tom de mis-
bem, eu estou falando de mim e não do MISHA tério, desde achar difícil dizer "quem é" até se
(seu apelido), chega de ballet. O que mais posso sentir "indecifrável, uma incógnita" - uma forma
dizer ... de não se comprometer definitivamente com uma
Ah! Não tenho namorado, nem sou apaixonada identidade - ela nos dá o seu potencial e guarda
"'I.'
por ninguém, mas gosto de ter amigos e estar para si os aspectos idealizados para o futuro. Este
sempre cercada de gente. aspecto d~ representação de si mesmo parece ser ,
Bem, eu sou assim, uma pessoa que faz o que uma característica de adolescente do qual não é
t1
gosta e luta pelo que quer, sonhadora, mas realista, exigida uma definição precoce e cujo ambiente
r:' social deve enfatizar a autodeterminação do jovem
.. ;,
acho que sou alguém indecifrável, sou uma incóg-
nita para mim mesma". sem impor modelos "bons" a serem seguidos .
Vejam este outro texto como ilustra bem esta .;
O relato acima nos permite caracterizar, em .~
.'

primeiro lugar: o sexo, a aparência física e .traços procura de preservação:


de personalidade que demonstram como ela se "Eu sou um cara simples
relaciona com os outros e dá "dicas"sobre como Eu .sou feio
deve ser o seu grupo de amigos: se estes não forem Eu .sousimpático
descontra ídos, difici Imente a aceitarão no grupo. Eu sou fácil de se encontrar
A menção da idade e do curso que faz a localizam Eusol,J diflcilde seentender~
numa faixa etária, com determinado nível educa-
cional, que se complica com a menção. do signo
(.) G rifos nossoS.
e de "não ser fanática por estudo" ,ou seja,
.,

o que é Psicologia Social 21


20 Silvia T. Maurer Lane

Eu sou meio cristão


Eu sou extrovertido (tímido em certas ocasiões)
Eu sou implicante
Eu sou um cara que não sabe o que é ... *
Eu sou um cara que gosta de gostar
Eu sou um cara que detesta politicagem
Eu sou um cara que adora mexer com o desco-
nhecido
Eu sou um cara que odeia racismo
Eu sou um cara que não gosta de escrever o
que é"
Eu sou um cara que gosta de fazer xixi na rua"
E notem a última frase que parece dizer: "não
~ me amolem, afinal não gosto de escrever a meu
r~
respeito", ou "me deixem ser criança".
Estes dois relatos enfatizam características pecu-
liares que dizem respeito à maneira de cada um
se relacionar com os outros, sendo características
que foram sendo apreendidas f)as relações grupais;
i~
~i sejam familiares e/ou de amigos, através do desem-
penho de papéis diversificados. E é nessa diversi-
dade que eles vão se descobrindo um indivíduo
diferente, distinto dos outros. Nossos amigos dei-
xaram de ser um, entre muitos da espécie humana
e passaram a ser pessoas com características
próprias no confronto com outras pessoas - eles
.~'
têm suas identidades sociais que os diferenciam
;;

Eu ruía gosto de escrever o que sou e gosto de fazer


L
~~ xixi na rua.
("I Grilos nossos .

i) ./
,

• •.•.•
·--...•.
T· .•••.·-_·· -
22 Sílvia T. Maurer Lane o que é Psicologia Social 23

dos outros. biogenética, ou temperamento, ou mesmo atrações


de personalidade, como aspectos herdados geneti-
camente, sem examinarmos as condições sociais
Consciência de si que, através da nossa história pessoal, foram deter-
minando a aquisição dessas características que nos
definem, só poderemos estar reproduzindo o espe-
Para finalizar este capítulo é importante uma rado pelos grupos que nos cercam e julgados
reflexão sobre o que, de fato, representa a iden- "bem ajustados".
tidade social, definida pelo conjunto de papéis Porém, se questionarmos o quanto a nossa his-
que desempenhamos. Como vimos, estes papéis tória de vida é determinada pelas condições histó-
atendem, basicamente, à manutenção das relações ricas do nosso grupo social, ou seja, como estes
sociais representadas, no nível psicológico, pelas papéis que aprendemos a desempenhar foram sendo
expectativas e normas que os outros envolvidos definidos pela nossa sociedade, poderemos cons-
esperam sejam cumpridas ("sou expansiva, brinca- tatar que, em maior ou menor grau, eles foram
lhona" ou, simplesmente, "simpático, extrover- sendo engendrados para garantir a manutenção das
tido"). relações sociais necessárias para que as relações
É neste sentido que questionamos quanto a de produção da vida se reproduzam sem grandes
"identidade social" e "papéis" exercem uma me- alterações na sociedade em que vivemos. Ou seja,
diação ideológica, ou seja, criam uma "ilusão" de constataremos que nossos papéis e a nossa identi-
que os papéis são "naturais e necessários", e que dade reproduzem, no nível ideológico (do que é
a identidade é conseqüência de "opções livres" "idealizado", valorizado) e no da ação, as relações
que fazemos no nosso conviver social, quando, de de dominação, como maneiras "naturais e uni-
fato, são ,as condições sociais decorrentes da pro- versais"de ser sodal, relações de dominação neces-
dução da vida material que determinam os papéis sárias para· a reprodução das condições materiais
e a nossa identidade social. de vida e a manutenção da sociedade de classes
~, diante desta questão que julgamos necessário onde uns poucos dominam e muitos são dominados
levantar o problema da consciência em si. atravésdaexploraç~o da força de trabalho.
Se assumirmos que somos essencialmente a nossa "Apenas quando formos capazes de, partindo de
identidade social; que ela é conseqüência de ·um ql1estionámentodeste tipo, encontrar as razões
opções que fazemos devido .a nossa constituição. históricas da nossa sociedade e do nosso grupo
l'
~ . Silvia T. Maurer Lane
24

.:;.

social que explicam por que agimos hoje da forma


como o fazemos é que estaremos desenvolvendo a
consciência de nós mesmos.
Deste modo entendemos que a consciência de
si poderá alterar a identidade social, na medida
em que, dentro dos grupos que nos .definem,
questionamos os papéis quanto à sua determinação
e funções históricas - e, na medida em que os
membros do grupo se identifiquem entre si quanto COMO APREENDEMOS
a esta determinação e constatem as relações de
dominação que reproduzem uns sobre os outros, O MUNDO QUE NOS CERCA
~Ji é que o grupo poderá se tornar agente de mudanças ;
sociais. "A consciência individual do homem só
~j
." pode existir nas condições em que existe a cons-
ciência social" (A. Leontiev, O Desenvolvimento A linguagem 1
r.~
1,.1'"
~
~ij do Psiquismo, p. 88).
;j
Porém este processo não é simples, pois os
~:j
~,I
;";1 grupos e os papéis que os definem são cristalizados
"A linguagem é aquilo através do que se gene-
f
ii
raliza a experiência da prática sócio-histórica da I
e mantidos por instituições que, pelo seu próprio
li~f! caráter, estão bem aparelhadas para anular ou
amenizar os questionamentos e ações de grupos,
humanidade" (Leontiev, op. cit., p. 172).
Pelo que tudo indica, a linguagem se desenvolveu
B
~
'I
historicamente quando os seres humanos tiveram
-~,I
~,'
,..
em nome da "preservação socia I".
Mas antes de analisar como as instituições deter- que cooperar para a sua sobrevivência. Da mesma
forma como criaram instrumentos necessários para
~l
~l
}~ minam nossas ações sociais, é preciso _entêllder
uma prática de sobrevivência, desenvolveram a
.~i
ainda alguns aspectos básicos do nosso comporta- ~i
'~

mento social: a linguagem, o pensamento, a repre- linguagem como forma de generalizar e transmitir .;,j
'f.
í.ki
sentação que fazemos do mundo e a própria esta prática. O trabalho cooperativo, planejado,
:~
consciência, como processos psicológicos funda- que submete a natureza ao homem, só foi possível ~t~i~
mentais para a nossa relação com os outros. através do desenvolvimento da linguagem pelos
grupos sociais humanos .

•••••••
"
26 Silvia T Maurer Lane
o que é Psicologia Social 27

f
Nos tempos primitivos, quando os grupos sociais se, de início, tinha que ser objetiva (coisa == signi-
trabalhavam para a sua sobrevivência com divisões
ficado), hoje adquiriu uma autonomia tal que per-
simples de trabalho, a relação palavra-objeto deter- mitiu mais uma divisão de trabalho: a manual
minava significados facilmente objetivados para versus a intelectual.
aquele "som" ou conjunto de fonemas. Na medida Vocês dirão que tanto o trabalhador manual
em que as relações entre os homens vão se tornando
como o intelectual usam palavras, gestos, ritos.
mais complexas, em decorrência de uma comple-
E, mais, o intelectual não é quem fala - é quem
xidade maior na divisão de trabalho, onde o
pensa!
produto pode ser acumulado (pois a sobrevivência
Então eu pergunto: vocês já tentaram pensar
está garantida), surgindo a propriedade privada, a
sem palavras? Não parece o dilema de "quem nas-
linguagem também se torna mais complexa; ela
ceu primeiro: o ovo ou a galinha? ",
deixa de atuar apenas num nível prático-sensorial
A origem social da linguagem nos dá pistas para
para ir se tornando também genérica, abstrata,
uma resposta: a linguagem surge para transmitir
atendendo às novas atividades engendradas social
ao outro o resultado, os detalhes de uma atividade
e historicamente: artes, religião, modas, tecnologias,
educação, formas de lazer, etc., e assim a lin- ou da relação entre uma ação e uma conseqüência.
Hoje, na sociedade, as crianças nascem em grupos
guagem, instrumento e produto social e histórico,
"falantes" e que só as vão considerar "gentes"
se articula com significados objetivos, abstratos, quando elas falarem. Mas se vocês observarem
metafóricos, além dos neologismos e g(rias de cada
nenês, antes deles aprenderem a falar (não apenas
época.
emitir sons ou vocalizaçães), poderão constatar
Até o momento nos referimos apenas à lin-
que eles relacionam as coisas: eles pensam sobre as
guagem, à ação de falar, porém não podemos
coisas que estão aqui e agora. Experimentem
esquecer que ela não é o único código de comu-
esconder o chocalho debaixo do lençol. Ele vai
nicação, a ponto de Skinner definir o comporta-
mento verbal como sendo "todo aquele comporta- direto buscar o seu brinquedo debaixo do lençol·
- isto já é pensar.
mento reforçado através da mediação de outras
Sabemos que a complexidade da nossa sociedade
pessoas", e assim incluindo, além do falar, o
escrever, os sinais, gestos, código· Morse, e até os
é histórica e que se iniciou com o homem trans-
formando a natureza e se transformando. De
rituais. Esta definição é muito importante para
ressalvar o caráter instrumental da linguagem, que alguma maneira, o nosso nenê vai ter que percorrer
a história rapidamente. Ele nasceu em uma socie-
28 Si/via T. Maurer Lane
o que é Psicologia Social 29

dade que separa o fazer do falar, logo ele tem que inferno está cheio".
ser capaz de usar o seu pensar de modo a ser Retomando, vimos como a linguagem é produ-
capaz de fazer o que os adultos fazem, e, para zida socialmente, pela atribuição de significados
tanto, ele tem que falar. às palavras. Assim, o grosso dicionário objetiva as
Hoje, os estudos sobre o desenvolvimento inte- palavras com as suas significações, porém elas nada
lectual mostram como a aquisição da linguagem mais têm a ver com os objetos materiais a que se
(ou comportamento verbal, conforme definido referem. Leontiev dá um exemplo perfeito: "0
acima) é condição essencial para o chamado desen- alimento é, sem dúvida, um objeto material; no
volvimento intelectual, isto é, ser capaz de gene- entanto, o significado da palavra alimento não
ralizações, abstrações, figuração, em outras palavras, ~ontém um grama de substancia alimentrcia".
'. superar o aqui e agora: planejando, prevendo, ~ nesta distinção entre palavra e objeto, a que se
•..'\
lembrando, simbolizando, idealizando ... refere, que podemos detectar como a linguagem
:';:I.
Mas acontece que nós não somos apenas pensa- muitas vezes se torna uma arma de dominação. j,
,.
dores-falantes; somos, antes de mais nada, fazedores A palavra se torna poderosa quando alguma
de coisas, de instrumentos que produzem fogo, "autoridade" social impõe um significado único e
comida, guerra, beleza e ... a nós mesmos - inquestionável, que determina uma ação automá- f'.

r
fazedores de coisas. Porém, o objeto pensado, tica. Terwilliger analisa este aspecto da linguagem t
idealizado, ainda não existe, é preciso que se desen- . em situações como a hipnose, a lavagem cerebral,
.{ volva uma série de ações físicas sobre as coisas o comando militar . ~.
Que nos cercam para concretizar o objeto pensado; No primeiro caso, o hipnotizador tem que obter
a sua existência é produto da nossa atividade e,
ao fazê-Ia, nossa atividade se objetiva no produto uma vai
você passividadel~1otal do uma
dormir";, ou seja, hipnotizado ("relaxe,à
total submissão
final, enquanto nós nos transformamos neste pro- sua voz, às suas palavras, para em seguida sugerir iJ-...

cesso de fazer. situações e as reações e/ou ações conseqüentes


De fato, é impossível separarmos agir - pensar (lIhoje está muito frio, está até caindo neve e você
- falar, e sempre que isto é feito, seja teorica- sem agasalho", e o hipnotizado reage tremendo
mente, seja em termos de valores, ocorre uma de frio, esfregando as mãos, se agasalhando com
~ . 1
alienação da realidade; agir sem pensar é ser um os braços ... ). Por outro lado, se o hipnotizador
autômato; falar sem pensar é ser como um papa- falar sobre situações totalmente desconhecidas ao
,,
~. { gaio; falar sem agir ... lide boas intenções o hipnotizado, seja através de descrições ou expe-
30 Silvia T. Maurer Lane o que é Psicologia Social 31

riências, provavelmente nada ocorrerá, seria como


alguém falando num idioma totalmente desconhe-
r
cido; mas a referência a situações conhecidas as
,
torna reais para o sujeito, mesmo que, para alguém
observando de fora, elas se apresentem como
imag iná rias.
Quanto ao comando militar, podemos observar
que toda a disciplina e hierarquia militar se baseiam
no princípio de que qualquer ordem é lei, e, se
/


desobedecida, acarreta necessariamente um dano
físico - desde a punição até a morte. A insubor-
dinação é negação da própria instituição: portanto
nenhuma ordem pode ser questionada e, neste
/
sentido, as palavras têm só um significado possível,
" para que a ação ocorra automaticamente ao som
{:
do comando, isto é, o soldado não pode, nem deve
H pensar, pois seus superiores pensam por ele. Todo
o seu treinamento foi feito visando assegurar a obe- •••••••
diência cega de todos para que os objetivos finais
propostos pela ordem inicia! a, gíôduôlmente, üpe-
,'!
ri racionalizada pela hierarquia de comando se con-
f
111
cretizem pela ação conjunta do "corpo" militar.
No caso da lavagem cerebral, o processo que
ocorre é o de eliminar significados existentes,
atribuindo-se às palavras novos significados, o que
é conseguido, impedindo que o prisioneiro se
comunique com pessoas que poderiam estar refor-
çando ou mantendo os seus significados originais.
Ele só pode se relacionar com pessoas que não A hipnose em idioma desconhecido: um fracasso.
admitam qualquer questionamento e que só emi-
33
32 Silvia T. Maurer Lane o que é Psicologia Social

(
tam os novos significados, como sendo os únicos
possíveis, mas é preciso que estas pessoas sejam
significativas para o prisioneiro e, para tanto,
criam-se condições físicas e psicológicas de total
abandono, através de isolamento, cansaço, fome,
etc., para que alguém se torne necessário e a
lavagem cerebral seja eficaz.
E é ainda Terwilliger que, jocosamente, comenta
que as autoridades militares não sabem como
treinar seus soldados para que eles não se submetam
tão facilmente a lavagens cerebrais, quando aprisio-
nados. A solução no entanto, seria bem simples: f.

é só ensinar o soldado a pensar, a questionar as I


ordens dadas ... Mas tudo indica que esta seria
uma solução jamais endossada pelos comandantes
I
ti

,:
[;,
militares. r-

Podemos, então, concluir que a contra-arma do i


;~
.

i
ti~ poder da palavra se encontra na própria natureza
!;t
t.: do significado: é ampliá-Io, é questioná-Io, é pensar
li.
" sobre ele e não, simplesmente, agir em resposta
a uma palavra. Entre a palavra e a ação deverá
sempre existir o pensamento para não sermos
dominados por aqueles que detêm o poder da
;",
palavra.
':·1
Cabe ainda uma análise de como a linguagem
exerce a mediação entre nós e o mundo, na medida (~

em que ela permite a elaboração de representações


sociais. Ou seja, é através delas que descrevemos, É só ensinar o soldado a pensar, a questionar as ordens
dadas ... Mas ...
explicamos e acreditamos na nossa realidade e o
fazemos de acordo com o nosso grupo social.
J
;':'·1
~ :~
..•.•.
,•
.:'

<:
34 Silvia T. Maurer Lane o que é Psicologia Social 35

São representações sociais afirmações como: "a São representações onde a experiência, a vivência
Terra tem a forma de uma laranja", "o dia e a são imposs íveis, ou são apenas fragmentos, fazendo
noite são decorrentes do movimento de rotação com que a mediação social de pessoas, consideradas
da Terra", ou ainda, "a nossa vida já vem escrita autoridades, desempenhem uma função essencial
pelo destino", ou, como dizia uma empregada na formação da representação e é aqui, como vimos
doméstica, "rico é aquela pessoa que soube em relação aos significados da palavra, que surge
poupar". o poder impondo representações consideradas
Vocês podem notar que as representações podem necessárias para a reprodução das reloções sociais.
estar baseadas em fatos científicos, não obser- ~ nesse momento que se dá a transmissão ou
váveis diretamente, como em crenças, em sugestões imposição da ideologia dominante. Na análise da
publicitárias, todas dependentes dos grupos sociais linguagem, mencionamos o fato observado na
com os quais a pessoa convive. nossa sociedade, da distinção entre aquele que
Como já vimos, a linguagem existe como pro- "fala" e aquele que "faz", entre o intelectual e o
duto social, e é através das relações com os outros braçal. O primeiro, próximo da classe dominante,
que elaboramos nossas representações do que é o e identificado com ela, é quem se apresenta aos
mundo. Quando uma criança, que está começando outros como autoridade para explicar, justificar,
a usar a linguagem, brinca com uma bola, esta só como "conhecedor do mundo", que se caracteriza,
se constituirá em uma representação quando outras basicamente, por falar bem, falar corretamente,
pessoas se referirem a ela como "bola", "bo!a você característica esta que se generaliza, tornando
joga, que chuta, que quebra a janela, que rola, "autoridades respeitáveis" aqueles que dominam a
que pula". Notem que a representaçao Implica na linguagem bem articulada, correta, etc. São estas
ação, na experiência com um objeto ou situação
. e nos significados atribuídos a ela pelas pessoas
I I pessoas, que na sua identificação com a classe
dominante elaboram explicações sobre a realidade
com que nos relacionamos, ou seja, a representação social que sejam coerentes, consistentes entre si,
é o sentido pessoal que atribu ímos aos significados I I
e que justificam a sociedade tal como ela é; e, na
elaborados socialmente. medida em que estas explicações encobrem as
Mas nem todas as nossas representações se I I relações de poder e as contradições decorrentes,
I :
formam tão simplesmente. Pensem, por exemplo, vaiorizando as relações existentes, elas exercem
em termos como Deus, eternidade, morte, infinito I I uma função ideológica falseadora, elas idealizam
e mesmo sociedade, história, classe social, etc. uma realidade, diferente do que ela realmente é.
i'.'-';:
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~r
37
i
36 Silvia T. Maurer Lalle o que é Psicologia Social

Obviamente esta produção da ideologia não se e de nossa classe como produtos históricos de
dá conscientemente, mas sim em decorrência de nossa sociedade, e também cabendo a nós -
uma visão da sociedade da posição de quem a do- agentes de nossa história pessoal e social - decidir
mina e que precisa justificar e valorizar sua domi- se mantemos ou transformamos a nossa sociedade.
nação. Concluindo, é importante ressaltar a diferença
Podemos compreender agora por que é tão fundamental que existe entre fazer e falar. Só o
difícil chegarmos a ter consciência de nós mesmos, primeiro produz objetos e a nossa própria vida; o
I, como vimos no capítulo anterior, e, mais ainda, falar é instrumento que pode não produzir nada,
como é difícil chegarmos a ter uma consciência dando a impressão de que algo está sendo produ-
de classe. Quando o nosso pensamento não con- zido. c]

~1
fronta as nossas ações e experiências com o nosso Tomemos, como exemplo, este livro que você '1

, está lendo; mesmo sendo um objeto, um produto, ~


f· falar, quando apenas reproduzimos as represen- ,;
-,
o"~
-J
~:i tações sociais que nos foram transmitidas, e toda e as palavras aqui contidas só terão um significado I,

~;
ti qualquer inconsistência ou incoerência é atribuída social se elas forem capazes de alterar comporta- f: 1~
;;1

mentos cotidianos de algumas pessoas. Se, através r{ .~-


li'
~j a "exceções", a "aspectos circunstanciais", quando i~
!~l·
i! não a particularidades individuais, estaremos apenas da compreensão de alguns processos, a qual só se 1.,
~~
~;I dará se vocês se voltarem para a sua própria reali- I"~. ,}~
reproduzindo as relações sociais necessárias para 11
õAA

-~)
..

~:'í ·:;\í~
~I a manutenção das relações de produção da vida dade e confrontarem (penSârem) aquilo que está I'·;
h'
;11 ~.i,
~,'t;;' ~. ilj material em nossa sociedade. escrito com o que vocês observam em volta; se, t.~.
fi Porém, apenas quando confrontamos as nossas em conseqüência, vocês passarem a agir, a se
--I

representações sociais com as nossas experiências relacionar com os outros de formas novas, dife-
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1:\
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1J
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e ações, e com as de outros do nosso grupo social, rentes, poderemos dizer que o falar se tornou "

ln
il ~ é que seremos capazes de perceber o que é ideo- fazer.
"
.,~
lógico em nossas representações e ações conse- '·'ft~
t<1

t qüentes. Ou seja, pensar a realidade e os signifi-


'1~
J
~;: cados atribuídos a ela, questionando-os de forma a .:;..
~j
,;1;ti

ti desenvolver ações diferenciadas, isto é, novas


n '. formas de agir, que por sua vez serão objeto de .),~
nosso. pensar, é que nos permitirá desenvolver a

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f~~ consciência de nós mesmos, de nosso grupo social '.:'.. ~

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39
o que é Psicologia Social

r ,

A HISTÓRIA
VIA FAMÍLIA E ESCOLA

Agora estamos aptos para analisar a inserção do


indivíduo na sociedade, através da sua vinculação
a grupos institucionalizados e que determinam,
necessariamente, a vida social das pessoas em nossa
sociedade, caracterizando o conjunto de relações
sociais que as definem. Inicialmente analisaremos
a família e em seguida a escola, ambas funda-
mentais no processo de socialização e determi-
nantes das especificidades próprias das classes
sociais, apesar destas instituições proporem normas
comuns para todos os membros da sociedade.

A família

t o grupo necessário para garantir a sobrevi-

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r Maurer Lane
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o que é Psicologia Social 41 i-,·, '{
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vência do indivíduo e por isto mesmo tende a ser pela fam í1ia extensa, levando à instituição da ;j,
vista como "natural" e "universal" na sua função monogamia e à valorização da virgindade da ~;
de reprodução dos homens. Porém, a ela cabe mulher, como condições essenciais para garantir a
também tanto a reprodução da força de trabalho legitimidade dos filhos, a ponto de, em algumas (~
..•."

sociedades, ser considerado herdeiro apenas o ~i


como a perpetuação da propriedade, tornando-a AI

assim fundamental para a sociedade e,conseqüen- filho mais velho - o único que o marido pode ter \i
í:i
temente, objeto de um controle social bastante certeza da sua paternidade, pela constatação da ,i1

rigoroso por aqueles que detêm o poder. virgindade da mulher. .'~


A instituição familiar é, em qualquer sociedade Este aspecto foi tão marcante no desenvolvi- :!.1
:~' mento do capitarismo brasileiro que até hoje
;~ moderna, regida por leis, normas e costumes que "

I
.,:1',

definem direitos e deveres dos seus membros e, encontramos algumas famílias tradicionais - os ~
~
<!i; portanto, os papéis de marido e mulher, de pai, chamados "quatrocentões" - nas quais, durante '~.'

~:J várias gerações, só eram admitidos casamentos


• ~!
mãe e filhos deverão reproduzir as relações de
:.lei
poder da sociedade em que vivem. entre membros da própria família (entre primos ~~
~·1
i!. Podemos observar na sociedade brasileira que, de vários graus e mesmo entre tios e sobrinhos),
f,'!
na fam ília nuclear, cabe ao marido e pai o máximo e assim garantiam a manutenção e controle dos ;t~·,
•• 1:
~:'I
!I"
:: de autoridade; nos casos em que ainda se mantém bens por um mesmo grupo familiar.
.~~c.{
.
"~ l: a família extensa (onde há convivência com tios, Com o fluxo imigratório e o desenvolvimento
'{J
:~'.'

~
')
avós, ete.), em geral, o máximo de autoridade se industrial, os donos de propriedades produtivas ':;.,',.

"~\' j'i
~í concentra nos avós. Da mulher sempre se espera (dos meios de produção), que eram essencialmente
:;: :ij submissão, cabendo a ela apenas um poder relativo agrícolas, se vêem obrigados a acordos e concessões
n"
B·l sobre os filhos em suas relações cotidianas, ficando diante do crescente capital industrial, a fim de
- ~,',',
',"

a responsabilidade das decisões fundamentais sobre manter a sua hegemonia de poder, passando então :::~
r a vida dos filhos, em geral, para o pai. a consol idar estes acordos através de casamentos
i\i}i
r
!' Também na relação entre os filhos podemos fora do círculo familiar. Porém. o poder ainda
; ":';
H
~ observar toda uma hierarquia de poder: o mais
velho pode mais que o segundo; o filho homem,
tem que ser mantido, e é através da estrutura
familiar que irá inculcar na criança a figura de
\~i
fj mais que a filha mulher. "autoridade", de "chefe" - não dizémos o "chefe
·~i
~i Esta estrutura familiar decorre da necessidade da família"? - como necessária para a manutenção
~1 histórica da preservação de propriedades e bens e reprodução das relações sociais.
~~
'\'
t
42 Silvia T Maurer Lane
o que é Psicologia Social 43

t dentro
consideradas
desta lógica que se atribuem também
características peculiares ao homem e à mulher,
necessárias para a reprodução da
Magali é tão "sem graça"? O cômico é sempre o
inusitado, o inesperado, e, no caso, a Mônica
sendo dominadora, briguenta, está fora dos padrões,
II

família e da sociedade. São atributos que vão desde


é "caso único". Ela é um bom exemplo do
os físicos até os de interesses, e que podemos
"errado" que enfatiza o "certo"; se não, experi-
constatar através de expressões que freqüentemente
escutamos em volta de nós, tais como: mentem chamar uma garotinha de oito anos de
"Menino não chora." idade de Mônica e vejam a sua reação ...
"Ela é tão sensível." Voltando ao nosso indivíduo, que afinal é o
"Homem tem que ser forte." enfoque da psicologia social, vamos analisar como
"Menino não brinca com boneca." Mas, para a o grupo familiar atua sobre ele durante o processo
menina, se comenta: "Veja só, o instinto ma- denominado, geralmente, de socialização primária.
ternal ... " Uma criança recém-nascida depende, para a sua
"Menino, vá brincar lá fora, o que você está sobrevivência, de outras pessoas e é através desta
11 fazendo aqui dentro?" Mas, "menina não brinca relação que ela vai apreendendo o mundo que a
;1_~
na rua". cerca; a relação de dependência que existe entre
,(o
"Menina, você não tem parada, parece um mo- ela e aqueles que a cuidam faz com que estes sejam
{f
leque." extremamente importantes para a criança durante
;p
i1-) O rapaz sai e volta de madrugada: "Se divertiu, o seu processo de desenvolvimento, pois, no mo-
::i
meu filho?". mento em que consegue se perceber distinta do
A mocinha sai e volta de madrugada: "0 que os seu meio e dos outros, estas pessoas se tornam
vizinhos vão dizer de você, voltando a esta hora?". os "outros significativos", ou seja, outros com os
E, em relação à autoridade: quais ela se identifica emocionalmente e através
"Respeite o seu pai, menino." dos quais vai criando uma representação do mundo
"Não discuta com os mais velhos!" em que vive, e que para ela é o mundo, sem alter-
"Quando você crescer, você vai entender ... " nativas possíveis. Pela identificação emocional com
"Seus pais só querem o seu bem." (Em geral os outros significativos, o mundo deles é o da
para justificar uma ordem incompreensível.) criança, existindo, portanto, apenas um mundo
poss ível.
Vocês já pensaram por que a Mônica (do
O processo aqui é semelhante ao da análise que
Maurício de Souza) é tão engraçada, enquanto a
fizemos da linguagem como arma de poder, acres-
..
n
..... -- :" .>;~--,.. ~ .•.•.
,..;:.."',-,',.;;
"~o

.r·
" 45 ,
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~'~ .•.
44 Silvia T. Maurer Lane o que é Psicologia Social
r
centando-se, nesta situação, um forte componente por que a família tende a ser sempre tão preser-
emocional-afetivo, além de um processo de gene- vadora, ou, melhor dizendo, tão conservadora; pois
ralização que ocorre em função da coerência as relações de poder que caracterizam os papéis
existente entre as visões de mundo e de valores familiares são sempre apresentadas como condições
das pessoas que constituem o grupo familiar. naturais e necessárias para a sobrevivência dos
Vejamos um exemplo. Desde cedo a mãe ensina filhos, como condições biológicas, não se distin·
. a criança a não mexer nos enfeites da sala; o guindo o que é determinado histórica e social-
"i.

"não mexa aíl" da mãe é repetido, em outras mente do que é fisicamente necessário para a
ocasiões, pelo pai, pelas tias, pela avó e, assim, a preservação da espécie. É este aspecto que, via de :f
i·! regra, impede, nos momentos críticos do grupo
P
criança vai generalizando que "todo mundo não \~

i~ a deixa mexer naqueles objetos", que "criança familiar, o tomar consciência dos papéis e das 0i
.,
~~ relações de poder historicamente determinadas, ~t
pão pode mexer neles", até concluir que "não se U~
~j deve mexer nos objetos que enfeitam uma sala", pois estas são vistas como naturais, "o poder é um ~n
~;
~~ t assim que se formam aqueles valores que sen- dever, é uma questão de sobrevivência" . t~
;~/
'~
\t
vi
Tanto é assim que as "crises" de um casal são .~
j~
,,"'
r~i ji
timos tão arraigados em nós, que até parece termos
nascido com eles. Esta visão única do mundo e justificadas por diferenças de temperamento e por 'I~
.~

:~
fi; ': de um sistema de valores só irá ser confrontada "incompatibilidade de gênios", quando não por
~~ ·'.ti•
lili "crueldade mental" de um dos parceiros, sem se r~
no processo de socialização secundária, isto é, tl

~,
a:;
fil
através daescolarização e profissionalização, prin- questionar como eles vêm desempenhando seus ''.1
~:] papéis, de como se dá a relação de poder entre f~
~l cipalmente na adolescência, época em que o jovem ~L.
:~f
:)
:~j questiona os "outros significativos", não por ser eles e o quanto estão vivendo e reproduzindo, no . ~~
1. ~J
~: uma fase natural, como muitos pretendem, mas âmbito das relações afetivas, as determinações
~. institucionais.
:.fJ

li
i;i
porque através de outros laços afetivos e através
do seu pensamento e experiências sociais e/ou A mesma anál ise pode ser feita para as "crises" : '1i.
.~~
entre pais e filhos: "a rebeldia do jovem e a quadra-
~! intelectuais o jovem se depara com outras alterna-
tura dos velhos", são expressões que retratam
:'.J:~
.. i~~
1I
~ tivas, com outras visões de mundo, que o levam a
questionar aquela que ele construiu como sendo bem a existência de uma luta pelo poder, que,
. ',:fl
".
~i
a única possível. apesar das analogias feitas com diferentes espécies :i;lj
'.;;
Retomando à análise que fizemos do processo de animais (ideologia da sobrevivência do melhor), .' :t·
JI ~ '.-:-.~~'('
,i,:;
grupal e da consciência de si, poderemos entender mantém uma diferença fundamental - os animais
~1
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46
Silvia T Maurer Lane
o que é Psicologia Social 47

lutam instintivamente para garantir a sobrevivência


que tem de ser valorizada, pois esta já foi garan-
da espécie, os homens, para a manutenção do poder tida através da família, mas sim o individualismo
de alguns, na sociedade em que vivem, o que é e a competição, mesmo quando se fala em edu-
interpretado por algumas teorias sociológicas como cação obrigatória para todos até a oitava série.
"preser/ação da sociedade"; eles assim agem não Começando pela estrutura de disciplinas progra-
instintivamente, mas inconscientemente3•
madas para cada série, notamos uma fragmentação
de conhecimentos que vai se tornando crescente
ao longo das séries. De in ício existem atividades
A escola que se intercalam, para, gradativamente, assumirem
a denominação de "matérias", até as disciplinas
Da mesma forma que a fam ília, a educação dos cursos profissionalizantes e suas respectivas
também é institucionalizada, ou seja, princípios, especializações. E tudo isto distribu ído ao longo
objetivos, conteúdos, direitos e deveres são defi- dos anos escolares, sendo que no fim de cada
nidos pelo governo a fim de garantir que, em todos série ocorre um veredicto: o aluno foi ou não
os seus níveis, ela reproduza conhecimentos e va- aprovado. Ainda dentro desta estrutura podemos
lores, necessários para a "transmissão harmoniosa observar que as disciplinas mais abstratas, mais
da cultura, produzida por gerações anteriores, para intelectualizantes, são mais valorizadas e mais
as novas, garantindo o desenvolvimento de novos decisivas para a aprovação do aluno, já se caracte-
conheci mentos, necessários para o progresso do rizando uma oposição entre trabalho intelectual e
pa ís". Estamos reproduzindo livremente textos trabalho manual.
oficiais que definem o nosso sistema educacional, . É esta estrutura que irá determinar como se
para entendermos como a escola, diferentemente darão as relações sociais na escola, entre profes-
da fam íIia, atua no processo de reprodução das sores e alunos e entre estes e seus colegas. O poder
relações sociais; pois agora não é tanto a autoridade de aprovar ou reprovar já coloca o professor numa
posição de dominação inquestionável - ele é a
ôutoridade absoluta, pelo menos na sala de aula
e, investido deste papel, ele extrapola a sua auto-
(3) No sentido de não ocorrer o pensar confrontando o significado ridade de "conhecedor do assunto" para todo e
atribu{do socialmente, e a própria realidade vivida, ou seja, o qualquer aspecto que entre em jogo na sua relação
significado é assumido e reproduzido nas ações.
com os alunos, desde o que é explicitamente ensi-
.- ..
. "
.
..•. ',j."(..''''''-'.'"' -~.\.,

48 49
Silvia T. Maurer Lane o que é Psicologia Social

nado até os insinuados valores estéticos, morais, bem sucedida. E é também esta tese do esforço
religiosos, reproduzindo assim a ideologia domi- individual que estimula a competição: quem pode
nante como descrição "correta" do mundo. mais, consegue o melhor.
Este padrão dominante tem como conseqüência Diante das exceções realçadas, nos esquecemos
direta o caráter seletivo da escola, pois desde o dos inúmeros e freqüentes casos de crianças que
uso da linguagem até os exemplos do próprio abandonam a escola e, simplesmente, são justifi-
cotidiano do professor serão melhor apreendidos cadas pelos pais em termos de "ele não tem jeito
por aqueles alunos que vivem em condições seme- para o estudo", consagrando a separação ideológica
lhantes, ou seja, têm uma mesma concepção de entre trabal ho manual e trabalho intelectual.
mundo, isto sem considerar os programas, propria- Se observarmos a relação que se estabelece
mente ditos, que enfatizam padrões valorizados entre colegas, vamos notar que o mesmo ocorre
pela instituição educacional. ~ desta forma que entre eles. Há uma pesquisa realizada4 numa escola
aquelas crianças cujo ambiente famil iar pouca de 19 grau (5~ série), onde professores haviam
"
;;1
coisa tem em comum com aquele que é trabalhado instituído como técnica de ensino trabalhos em
"
-I
h na escola, se sentem estranhas e marginalizadas grupo para que "os mais fortes" pudessem ajudar
;i fi
pois, sempre que alguns forem capazes de atender os "mais fracos" O que rse observou foi que os
~1 !.
às expectativas do professor, isto é o bastante "mais fortes" reproduziam todos os valores e com- \ :
!: :i
~I
11
para que se estabeleça um padrão de "bom" e portamentos autoritários do professor, a ponto de
"mau" aluno, que vai sendo reforçado ao longo afastarem "os mais fracos", atribuindo tarefas que !.f
~. 11
H
das séries e assim selecionando, não os mais aptos, não pudessem comprometer a qualidade do tra-
;';.
I, i: mas os que se aproximam mais da visão de mundo balho do grupo, como "passar a limpo" ou trans-
11
inerente aos padrões dominantes. ' crever trechos de livros - caso tfpico do "feitiço
- li virar contra o feiticeiro",
h Mas, vocês poderão questionar: como se ex-
L;
plicam os casos de filhos de lavadeiras, de pais Também fora da situação de sala de aula, se
analfabetos, que conseguem "estudar e subir na observa a tendência dos "melhores" alunos irem se
vida", cursando até a Universidade? Sem dúvida agrupando de um lado e os "piores" de outro,
" as exceções existem e até são necessárias para se consagrando assim uma diferenciação ti da como
q
li justificar a tese de que tudo reside apenas no
11
esforço -individual, sem considerar as características
;ti

li circunstanciais que tornaram essa "exceção" tão (4) Por Lea C. Cruz, tese de MeS1rado. l·\
~
11

11
rI'
...;.

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'-' ":';:;" '.., ••..••. - .'> ,~ .•••.•.•

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50
Silvia T. Maurer Lane
o que é Psicologia Social 51

natural, quando, de fato, ela tem sua origem na


própria organização institucional da escola. Brasil o governo preparava um anteprojeto de
Tem-se, então, a impressão de um "beco sem reforma universitária, sem qualquer consulta às
saída". Se até o sistema educacional reproduz as bases, o que desencadeou uma série de movimentos
relações de dominação social, parece ser impossível entre estudantes e professores contra este antepro-
qualquer transformação da sociedade. Por outro jeto. Em várias universidades foram criadas co-
lado, não podemos nos esquecer que as relações missões paritárias para efetuarem uma análise
de dominação implicam em contradições geradas crítica, não apenas do projeto mas das próprias
pela contradição fundamental do sistema capita- condições pedagógicas existentes: desde conteúdo,
métodos de ensino, sistema de avaliação e apro-
lista (a luta de classes), e portanto elas estão pre-
sentes também no processo educacional e podem vação, até as relações aluno-professor em sala de
aula.
ser detectadas na medida em que o ensino se dê
através de situações em que os conteúdos teóricos Deste questionamento surgiram várias propostas,
impliquem numa prática e numa reflexão sobre sendo algumas realizadas, em caráter experimental,
procurando-se transformar a situação de sala de
ambos, ou seja, os significados e/ou representações
(conceitos, teorias) são confrontados pela inte- aula numa nova relação onde professor e aluno
ração dos sujeitos reais - aprendizes _ com o trabalhavam lado a lado, sem imposições de poder,
mundo real que os cerca, permitindo assim a visando a criação de conhecimentos, através de
elaboração de novos significados e novas práticas. teoria e prática intimamente ligadas (não havia
"-, Em outras palavras, é a escola crítica, a escola mais aulas expositivas); o sistema de avaliação
onde nenhuma verdade seja absoluta, onde as proposto era conjunto e contínuo, ou seja, a
relações sociais possam ser questionadas e refor- avaliação conjunta se referia tanto ao aluno, ao
muladas, o que propiciará a formação de indivíduos professor, às atividades realizadas, como ao próprio
conscientes de suas determinações sociais e de programa desenvolvido, enquanto que a avaliação
sua inserção histórica na sociedade; conseqüente- contínua se referia às tarefas, passos ou práticas
mente, as suas práticas sociais poderão ser refor- desenvolvidas, permitindo ao aluno enfrentar ati-
muladas. vidades cada vez mais complexas, de tal forma que
Um bom exemplo desta escola foi parcialmente o próprio aluno podia se auto-avaliar, tirando do
vivido em 1968/9. Quando em vários pa íses do professor o poder absoluto da nota - quem ava-
mundo o ensino universitário era questionado, no liava o aluno era o próprio produto realizado
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IOIDllt - "~,
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il' .ir, 1-' '!!r t>\ por ele.

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Si/via T. Maurer Lane 53
l' o que é Psicologia Social •.....

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J.
J.
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Esta experiência durou um semestre. No ano :.~
que as transformações sociais só ocorrem historica- í:
11 seguinte o poder institucional exigiu um retorno
. mente: 1968 foi um momento em que emergiram
às normas vigentes, sob pena do não reconheci-
contradições, mas não a fundamental, decorrente
mento de diplomas e, portanto, o impedimento de
das relações de produção; porém, a conscientização
um futuro exercício profissional - foi o suficiente .~
para que todos se submetessem a elas. de alguns permitiu tocar a história para frente, à ~
procura de novas práticas conscientizadoras de
Porém, pudemos observar que aquelas pessoas muitos - função possível de ser exercida pela Fi
envolvidas no processo, as quais, efetivamente, escola.
aceitaram o desafio e procuraram novas formas de ,~1
/ É de Leontiev a afirmação de que a "relação
trabalho educacional, não regrediram jamais às 'entre o progresso histórico e o progresso da edu-
formas tradicion3is. No que dependia do professor ~1
~~
'~I
cação é tão estreita que se pode, sem risco de
- elemento constante - sempre se procurou con- .~
. erro, ju Igar o nível geral do desenvolvimento histó-
cretizar a nova relação aluno-professor, sem domi- 'rico de uma sociedade pelo nível de desenvolvi- ~
nação, sem imposição de conhecimentos, mas . mento do seu sistema educativo e vice-versa".
f

v<c,"" j':
.) desenvolvendo atividades conjuntas, avaliadas por Caberia ainda uma análise de outros grupos de '. '
'ir I
todos, diante de um produto decorrente destas
lili convivência que são menos institucionalizados, ···:I:·~·
atividades.
l: ; Não tem sido um processo linear, mas sim um
como os de lazer, mas que também reproduzem
,. i~~
{(
I.' ,.' as relações sociais na atribuição e cristalização de (
processo de acertos, erros, reavaliações, e, apesar
das determinações institucionais, cujo peso é sen-
papéis. Basta um exame de quanto qualquer grupo ·:{I .,.,fj
~i julga ser essencial a existência de alguém que lidere ':'~1
" i· tido cotidianamente, para estas pessoas a mudança :';'.::1'J

j!i os companheiros e o quanto "ter características


~1
,i.i, ; !: foi radical.
ffl ;
de liderança" é valorizado por todos, e, se apro-
~L Também foi interessante observar que, durante
fundarmos a questão, veremos que o que está em
o movimento, aqueles professores e alunos que
{
"
~; ,I

permaneceram apenas reivindicando "novas con- jogo é a emergência de uma autoridade que man-
tenha os vínculos de dominação, mesmo em grupos
.il~
.~i~~ .~ f!I
~.j
~j dições de ensino", sem desenvolverem uma prática
onde, aparentemente, todos se propõem como
conseqüente, voltaram, simplesmente, no ano se- ""'~'>~~,ª
:..:.:-:"-;;:-

j iguais; porém, fazendo concessões às diferenças ·~f".:i:l~


guinte, para as formas tradicionais de trabalho em
i.
individuais, chegam a afirmar que uns são, necessa-
I sala de aula ...
riamente, melhores que outros e não apenas dife-
,.!: O que demonstra que "falar não é fazer", e rentes, e assim consagram a relação de dominação.
,:
I
!
!
. J-.,"

54 Silvia T Maurer Lane

As diferenças individuais podem responder pela


divisão de trabalho, por diferentes atribu ições aos
membros do grupo, mas não pela ascendência de
uns sobre outros.
Devemos considerar também o reverso da moeda.
Falamos em dominação, autoridade, liderança
como se, conscientemente, uns quisessem dominar
outros; porém, o que de fato ocorre é que os
dominados têm como necessário ter alguém que TRABALHO E CLASSE SOCIAL
tome as decisões, que pense por eles, em outras
palavras, é mais fácil para eles acompanhar os que
pensam, os que tomam a iniciativa, do que assumir
a responsabilidade das decisões e da própria parti-
cipação. E necessário retomarmos aqui a origem histórica
É na "naturalidade" das relações que podemos da sociedade humana, sem a qual não podemos
j-;-: constatar a força da ideologia, que se concretiza entender como o trabalho que modifica a natureza,
, nos comportamentos e ações dos indivíduos, e, ao produzir a subexistência do Homem, também

i
r

~~
como já mencionamos anteriormente, a dominação
só se exerce se houver dominados que a entendam
produz o homem. Quando tratamos da linguagem,
mencionamos a sua origem relacionada à neces-
sidade de cooperação entre os homens para produ-
como necessária - o Iíder é sempre produto dos
,,. liderados. zirem seus meios de sobrevivência, isto é, o
('
trabalho. Sem dúvida, este princípio ainda é válido
para os dias de hoje, somente que, dada a comple-
xidade crescente e as formas como cada sociedade,
em cada época, enfrentou suas contradições, foram
criadas novas relações de produção da vida mate-
rial, ou seja, formas de sobrevivência que geram I
~I , relações sociais necessárias para manter estas \
ti

Portanto, a análise do que significa o traba-


"
~( .
cr ••
•• /61
relações de produção.
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I' S6 57
Silvia T. Maurer Lane o que é Psicologia Social
I' -~
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I
)
~
j
, lho para o indivlduo deverá se basear nas cond ições da sua posição social, criar explicações a partir ·~,:1
,01

atuais da nossa sociedade capitalistaS, o que signi- de uma visão fragmentada da sociedade. Nenhum :!

fica que a produção dos bens materiais, além de patrão concordaria em afirmar que ele explora
j
atender a subexistência social, visa o lucro e o o trabalhador, ao contrário, ele provavelmente "Ji
:"1

aumento do capital e para tanto deve, necessa- dirá que os homens são naturalmente diferentes, ~
riamente, explorar a força de trabalho de muitos. apesar das condições serem iguais para todos, e ~ J
-j

., E no processo de acumulação de bens que o que uns são mais aptos e capazes que outros j
"

para certas funções, e que em qualquer sociedade j


capital se apodera dos meios de produção, fazendo
com que a mercadoria não seja apenas o produto é necessário existir os que decidem e os que
ti
i
li
fabricado, mas também a força de trabalho, e as executam, etc., etc.
Resumindo, podemos ver como através do
~,~
.•~ii
próprias relações sociais decorrentes, no processo ~
----; em outras palavras, os homens se tornam trabalho produtivo da sociedade se constituem
I mercadorias. classes sociais antagônicas, que, por sua vez, deter-
:;?,
'~'I~
;:~
, !: Desta forma o capitalismo implica na existência minam as relações sociais entre os indivíduos.
·U d;: de duas classes sociais, uma que detém o capital Conforme o lugar onde o indivíduo se inserir, 'J
"t~
,;
'~
<l't,
~i
',; e os meios de produção e outra que vende sua dele será esperado o desempenho de determinadas
atividades que garantam a manutenção das relações /j
força de trabalho, ou seja, é explorada e dominada

~I
'I ' '''~
i pelos poucos proprietários de indústrias, fazendas, de produção e, conseqüentemente,
como tais.
as classes sociais "li!1

,~
,
lij 1,
.'"
bancos, etc., que necessitam do lucro gerado pelo
trabalho de muitos para a manutenção do seu ~ dentro deste contexto que iremos analisar,
,.li,~1 '. poder, através da acumulação crescente de bens . no nível psicossocial, o significado de trabalho,
:~
~1;
~~ como atividades realizadas por indivlduos; ativi-
llj E esta contradição fundamental da sociedade
~j . ~
~j . capitalista que a ideologia dominante procura dades estas produzidas pela sociedade à qual eles T~
~j
encobrir, não de forma consciente ou premeditada, pertencem.
fi
mas decorrente da própria divisão de trabalho em No nível individual a atividade decorre de uma
li
r intelectual e manual, cabendo à classe dominante necessidade sentida e objetivada em coisas. Sente-se
,I
f o pensar a própria sociedade, e assim, decorrente fome, sente-se a necessidade de comer algo. Se o 'd5í
:'_ ~S:.
H
,"
nosso sujeito estiver no mato, este algo será, ,;~i::<
" ";;>J/~

ii ~ provavelmente, uma fruta e sua atividade se

fi
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(5) Veja Indicações para Leitura. caracterizará por uma seqüência de ações ou

:~
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"·Ji~
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'C;~
59
58 Silvia T Maurer Lane o que é Psicologia Social

comportamentos de procura, de se dirigir para Da mesma forma que se diz, genericamente,


um local onde haja árvores frutíferas. Se o nosso que o homem ao transformar a natureza se trans-
"

indivíduo estiver em sua casa, suas ações o forma, podemos constatar que o indivíduo, ao
levarão até a geladeira, onde há uma fruta ou produzir um objeto, transforma uma matéria que
outro petisco imaginado. Se ele estiver no centro se torna coisa através da sua atividade, e pela
da cidade, irá até uma lanchonete onde comprará própria atividade desenvolvida ele, indivíduo, se
~. um sanduíche. transforma.
Este exemplo simples mostra como uma ativi- Esta análise da atividade nos permite apontar
dade é desencadeada por uma necessidade, o que para a importância vital do trabalho humano,
se constitui numa seqüência de comportamentos, pois é através dele que nos objetiva mos social-
que, dependendo das condições objetivas, visam mente, e é também 'através dele que nos modifi-
um fim específico. O que significa que qualquer camos continuamente, ou seja, nos produzimos,
,. nos realizamos.
atividade é objetivada, seja quando ela é desen-
;j cadeada pelo pensamento de "quero, ou preciso A principal característica do trabalho nas socie-
~ \

dades atuais é que ele se realiza utilizando instru- .i


1! de um objeto real", seja quando ela se traduz ;
lir'
numa seqüência de ações visando um fim, isto é, mentos, o que torna a atividade necessariamente
a obtenção do objeto real. social, pois o uso de instrumentos, como já
li : vimos, pressupõe cooperação e comunicação entre
Voltemos ao nosso indivíduo inserido numa
,l'
)~ '
~,
classe social de uma sociedade capitalista, onde os homens; assim, se o instrumento nos liga ao
ljli \ l' a produção, depois de atender às necessidades mundo das coisas, ele também nos liga a outros
~! de sobrevivência, cria novas necessidades de con· indivíduos, produzindo a linguagem e o pensa-
:1.1

sumo e, conseqüentemente, objetos que satisfaçam mento, o qual, por sua vez, produzirá atividades
estas necessidades; a sua atividade dependerá e ações que se concretizam nas relações sociais.
I: essencialmente das condições objetivas de vida, Vejamos uma situação corriqueira, em que
l} . e agindo sobre elas as transforma, produzindo alguém sente frio e pensa em um agasalha. Para
.{:
coisas que inicialmente foram pensadas ou ima- tanto ele precisará de lã, agulhas e saber tricotar
ginadas e que, quando concretizadas, trazem em _ observem o social na produção dos objetos e
si a atividade objetivada, ou seja, o objeto está na técnica do tricô; a sua atividade irá se desen-
impregnado da atividade do homem, assim como volver numa seqüência de comportamentos que
t resultará num agasalho real, que de início só
t' na ação de fazer o objeto o homem se modifica.
I,
\'

1.
,,' ;:~;-:. -
..~
61
60 Silvia T. Maurer Lane
o que é Psicologia Social
/'
ou a consciência social.
existia em seu pensamento. Porém, ele só poderia Tomemos como ponto de partida um ope-
ter sido pensado se, nas condições de vida de
rário, numa fábrica, na linha de montagem.
nosso sujeito, este já houvesse se deparado com Ele tem diante de si uma máquina, que deter-
lãs, agulhas e pessoas tricotando. Pronto o aga- mina uma seqüência de ações que devem ser
salho, nosso amigo o veste e, ao mesmo tempo realizadas por diferentes indivíduos: um co-
em que se sente protegido do frio, também se loca uma peça, outro aperta o parafuso, um
apresenta aos outros de uma forma diferente; terceiro ajusta outra peça, e assim por diante.
podemos imaginar o diálogo: Nesta atividade produtiva temos um conjunto
- Blusa nova? É bonita.
de ações dístribu Idas por várias pessoas: a que ";;.,

- Você gosta? Fui eu quem fiz.


pensou, que planejou o produto, não é quem l
- Não diga! Você me dá a receita?
E o nosso personagem se relaciona com outros,
o fabrica; as ações de cada um são determinadas it
pela máquina, desvinculando a ação do seu fim,
-~ sen'do alguém que fez o seu agasalho ...
:~ objetivado no produto.
...
..
Podemos constatar que a separação entre tra- ~.
I'
~: balho manual e trabalho intelectual se dá apenas
O que ocorre então com este operário? Ele
t'j?
t
I
i
I
no n1'vel ideológico, pois qualquer atividade impli-
ca no pensar sobre aspectos da realidade e em
pensa sobre o produto que está fabricando, ele
pensa a respeito da máquina que o controla, mas ,l
nas relações de trabalho este seu pensar é irrele·
.
:~

ações concretas na realidade objetiva, a qual, por ~


.1'"
vante - "há gente paga para pensar"; na atividade
sua vez, será pensada, agora, sob uma nova k
que resultará em produto, ele participa, através
perspectiva, resultante de transformações ocorridas de uma e sempre mesma ação, de uma cadeia , r-
J~
tanto no indivíduo como na própria realidade.
romplexa de ações. A cooperação entre muitos f"
O provérbio de que "ninguém se banha duas é mediada pela máquina e não mais pela comu-
vezes num mesmo rio" é válido tanto para as ~~.
nicação, e o produto final tem tão ínfima parcela
águas d o rio quanto para aquele que se banha: de sua atividade que ele não se reconhece no
nem o rio, nem o homem são os mesmos num
objeto fabricado.
segundo banho ... E. neste processo que o trabalhador se desper-
Se examinarmos as condições de trabalho exis-
sonaliza, se torna parte da máquina; suas ações
tentes na nossa sociedade e as atividades exigidas
são apenas força de trabalho que ele vende, são
para a sua realização, poderemos entender melhor mercadorias e como tal alienáveis-alienadas, na
como se processa, ao nível individual, a alienação
62 63
Silvia T. Maurer Lane o que é Psicologia Social

medida em que ele deixa de pensar suas próprias que o mesmo ocorre com seus companheiros.
ações em termos de cooperação existente entre Em maior ou menor escala, a nossa sociedade,
ele e seus colegas, pois esta é oculta pela máquina, capitalista, industrializada e complexa, promove
instrumento que participa na realização de uma esta d issociação do homem do produto de sua
atividade que gera um produto. atividade, gerando a moral de que o objeto, o
Quanto ao operário, sua atividade cotidiana instrumento, não é bom nem mau: tudo depende
se resume em ir para o trabalho, despender suas do que as pessoas farão com ele, como se estes
energias físicas, voltar para casa, tendo como fim não trouxessem em si a atividade e o subjetivo
de uma longa série de ações o salário mensal ou de' homens concretizados no produto. Hoje o
quinzenal, presente num dinheiro impessoal, mas homem continua transformando o mundo que
que garante a sua sobrevivência. o cerca, mas não cabe a ele decidir sobre esta
,,' Esta atividade produtiva implica também formas transformação ... I: a contradição fundamental
.,. ' de relacionamento social, pois, estando a coope- gerada pelo capitalismo, que, no nível individual,
{ se manifesta através da alienação.
1
ração necessária para a produção encoberta pela
:j; presença da máquina, o indiv{duo se sente só no A mesma fragmentação que observamos no
H~
~; . seu trabalho, que representa o salário e que ele trabalho do operário, também pode ser observada
~;~ conseguiu concorrendo a uma vaga, com outros no trabalho dito especializado, seja no nível
I: ,;
candidatos; o seu colega de trabalho é, antes de técnico, seja no nível intelectual. Quando acima
J:~
tudo, portanto, um rival, e um rival que se afirmamos que "não cabe a ele decidir ... " é
il'
U'I
multiplica por todos aqueles que, potencialmente, porque haverá "especialistas" que irão analisar,
s~,
~~ o podem substituir - ele está sozinho na luta cada um, certos aspectos da transformação, para
~ .
pela vida. dizer se ela é boa ou má. Como exemplo, pode-
Esta situação é reforçada pela ideologia domi- ríamos citar os especialistas sobre a poluição do
nante que, se de um lado afirma a igualdade dos meio ambiente, que a detectam como um fenô-
homens, de outro diz que é o esforço, a dedicação meno natural, e procuram corretivos, como se i'·"
~
e a tenacidade que fazem de uns mais bem suce- esta não fosse produzida socialmente.
.;'
didos que outros; e o nosso trabalhaáor continua O mesmo fato podemos constatar em relação
,
,~ 1
na sua luta isolada à procura de uma vida melhor, ao trabalho intelectual especializado. Se ao ope-
ce"rto de que, competindo, demonstrará que é rário é negado o pensar a sua atividade, ao inte-
um indivíduo melhor que outros, sem perceber lectual é negado o fazer. A ele cabe apenas

.'
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- ._ .... _~~~
I 64
1,
i.
Silvia T. Maurer Lane o que é Psicologia Social 6S
I'

i
í
produzir idéias, desenvolver estudos, para alguns No capítulo anterior mostramos como a insti-
poucos, em geral detentores do poder na sociedade, tuição cristaliza relações de poder, reproduzindo
"
<, e que entendem a linguagem abstrata, esotérica as relações sociais e as relações de produção. No
r
do intelectual, e que farão o uso desta produção caso do trabalho, a mesma linha de análise poderia
de acordo com perspectivas da classe socia I a diluir o seu aspecto fundamental na produção da
que pertencem. E, observe-se que quanto mais própria existência humana. Partimos da atividade
especializado for o estudo, mais ele se atém a como característica essencial da vida humana,
uma linguagem hermética, que poucos entendem. que, capaz de se pensar, é também capaz de ações
Se retomarmos à análise da atividade humana, transformadoras da. sociedade em que vive, as
;:
(~l. que pensada subjetivamente se objetiva em um quais só ocorrerão através da recuperação do
[!

,·i.~: produto, transformando o próprio homem e, na próprio trabalho, na participação


material da sobrevivência social.
da produção
:t ;,1:' medida em que esta atividade, numa sociedade
'.
4;. l' complexa, só pode ocorrer pela comunicação e Porém, se partíssemos da institucionalização
"', I.' cooperação entre muitos, implicando necessa- do trabalho, e da definição de papéis, veríamos
~" -~:\
, a atividade produtiva como uma entre outras
(i~'1 i riamente a transformação dos homens, e, em
decorrência, das suas relações sociais, fica clara possíveis, escondendo o seu caráter fundamental,
~q,
.."
a lógica da fragmentação necessária para a manu- tanto para a realização de cada ser humano, como
i
"

li~ "f t••


1" ,.
tenção das relações de produção, ou seja, os para a existência da sociedade. O trabalho social,
ID fi
I J ;-
detentores do capital explorando a força do assim como a atividade do indivíduo, é a própria
';.:l'11
'I \[ ,:
4:.' 1
trabalho de muitos e, assim, mantendo a hege- vida humana que se constrói continuamente. A
:J# f'
,
monia do poder. qualidade desta construção dependerá sempre da
~~~ i ,,; Enquanto o homem não recuperar para si a comunicação e cooperação entre os homens, e
-11 .
sua atividade que é, psicológica, social e histori- somente através destes é possível recuperar a
tI .
<1; camente, pensamento e ação, e que só ocorre história e detectar~ a contradição fundamental na
~.;-
através da sua relação com os outros homens, relação de dominação de uma classe social por
j concretizando o pensamento na comunicação e a outra classe.
;'l

f;
atividade em ações cooperativas, ele estará alie- A seqüência da nossa análise permite constatar
nado de sua própria realidade objetiva, com uma um fato crucial: a consciência de si, a consciência
l:
r falsa consciência social e, conseqüentemente, com social e a consciência de classe são apenas produtos
j: .
uma falsa consciência de si. de um único processo, decorrente da atividade
1: "

L
~ J
ji
+~
! ...} ~~
r~
"-~'

66 Silvia T Maurer Lane

.r---------------------~....,

humana, que é pensamento e ação, teoria e


prática, que se concretizam através da cooperação
entre os homens na produção de suas próprias
vidas.

o INDIVÍDUO NA COMUNIDADE

"
1,

i Se o capítulo anterior sobre o trabalho apre-


J sentou um quadro onde as saídas parecem ser
J poucas e' difíceis, neste analisaremos as propostas
~
da Psicologia Comunitária, que vêm sendo sistema-
:)',
lj, tizadas, dentro da Psicologia Social, como ativi-
! dades de intervenção que visam a educação e o
~!, desenvolvimento da consciência social de grupos
.~:! de convivência os mais diversos. ~ necessário
~i lembrar que, apesar de central para a vida de
,~''j
ii
um indivíduo, o trabalho remunerado não é a única
.
~L
atividade socialmente produtiva que ele desen-
. 1:
volve; há uma série de necessidades que não são
j
satisfeitas exclusivamente através do salário, e que
podem ser motivos para o agrupamento de pessoas
"

j":

'f : visando a sua satisfação.


~ em torno destas atividades que a Psicologia

••
cafi. Comunitária propõe uma sistemática de inter-
"i.::,-'

69
68 Silvia T Maurer Lane o que é Psicologia Social

venção, principalmente em sociedades capitalistas, Quando um grupo de pessoas se reúne para


onde a mediação da ideologia dominante se faz discutir seus problemas, mu itas vezes sentidos
sentir nas relações sociais desempenhadas na como exclusivos de cada um dos individuos,
familia, na escola e no trabalho, impedindo ou descobrem existirem aspectos comuns, decorrentes
dificultando a criação de novas formas de relacio, das próprias condições sociais de vida; o grupo
namento. poderá se organizar para uma ação conjunta
Desenvolver relações sociais que se efetivem visando a solução de seus problemas. E aquelas
através da comunicação e cooperação entre necessidades, que sozinhos eles não podiam satis-
pessoas, relações onde não haja dominação de uns fazer, passam a ser resolvidas pela cooperação
entre eles.
sobre outros, por meio de procedimentos edu·
cativos e, basicamente, preventivos, se -tornou o O nosso cotidiano tem apresentado inúmeros
f.
í objetivo central de atividades comunitárias, as exemplos deste processo: desde grupo de mães,
! organizando e mantendo creches para seus filhos,
-
'"
,~
,>.
i
j, ;
quais podem ocorrer em uma casa, com pessoas
criando novas relações "familiares", em escolas,
mutirões entre moradores de um ba irro para
T,

~ construção de locais para lazer, ou mesmo de


i- hospitais e mesmo entre um grupo de vizinhança
moradias, até organizações de grupos para reivin-
i! ou de bairro, desde que estes se identifiquem por
necessidades comuns a serem satisfeitas, através dicar água, luz, esgoto, etc.
H de atividades planejadas em conjunto e que ~ preciso salientar que a atividade comunitária,

l! ;
F,: impliquem em ações de vários indivíduos, enca- por si só, não supera a contradição fundamental
deadas para atingir o objetivo proposto. do capitalismo, pois esta decorre das relações
lI!
•. ~;,
-; O caráter educativo decorre da reflexão que é de produção, que definem as classes sociais; porém
'·i\t
~,
11; ;'

iI feita sobre o porquê das necessidades, de como as é através da participação comunitária que os
.~ i;
1,

.J:, atividades vêm sendo realizadas, ou seja, como indivíduos desenvolvem consciência de classe social
liJ. e do seu papel de produtores de riquezas, que não
j
,. as ações se encadeiam e que resultados são obtidos,
I tornando possível a todas as pessoas envolvidas usufruem, e, em conseqüência, podem, gradati-
}'

recuperarem, através do pensamento e ação, da vamente, irem se organizando em grupos maiores


comunicação e cooperação entre elas, as suas e mais estruturados visando uma ação transfor-
t histórias individuais e social, e conseqüentemente, madora da história de sua sociedade.
li
desenvolverem a consciência de si mesmas e de O desenvolvimento de uma comunidade se dá
de forma lenta, com avanços e recuos, pois o
suas relações historicamente determinadas . ./
j,., ;

"

"
",

70 Silvia T Maurer Lane 71


o que é Psicologia SocÍi11

sistema social mais amplo a todo momento exerce ideologia dominante é uma constante que não
pressões, diretas ou indiretas, para a manutenção se revela de um momento para o outro, mas que
vai sendo superada lentamente, em função de cada
de soluções
tição, individu/~istas,
valorizando d;}tus e promovendo
prestígio de aposse
compe-
da atividade realizada que, repensada, leva a novas
propriedade. Basta assistirmos algumas novelas e atividades. A força da ideologia se dá não apenas
propagandas na televisão para percebermos algumas na representação de mundo, mas nas ações decor-
pressões neste sentido, rentes destas representações.
Além destas influências sociais mais amplas, E o que explica por que tantas experiências
há todo um processo de aprendizagem das pessoas comunitárias falharam, principalmente aquelas
envolvidas numa experiência comunitária. O se onde as relações são mais intimas, como as
,
]'
defrontar com os outros, o se descobrir dife- implícitas em morar juntos para a manutenção
rente, único e, ao mesmo tempo, assumir a do cotidiano. Comer, limpar, arrumar a casa,
igua Idade de direitos e deveres, a responsabi Iidade cuidar de roupa, exigem uma divisão de trabalho
t,
, :-;: de pensar, de decidir e de agir, é um processo que e de despesas, de uma forma equitativa entre
> :'~:.'
'1"1";
/:""
se desenvolve através de práticas e reflexões todos, mas também exigem manter vínculos com
~:T sucessivas. Não há receitas, nem técnicas pré-defi- a sociedade onde este grupo de pessoas vivem,
~..{:~:
!: ,..: nidas, cada grupo desenvolve um processo próprio, tornando extremamente difícil para elas desem-

F~ em função das suas condições reais de vida e das


características peculiares dos indivíduos envolvidos.
penhar papéis esperados no seu trabalho, nas
atividades com outros grupos de pessoas e, entre
Transformar as relações sociais apreendidas na as quatro paredes da moradia, viverem novas
fam{lja, na escola, não é fácil, pois elas se apre- formas de relações sociais, como se o mundo não
fi' sentam como espontâneas no cotidiano, e, quando existisse lá fora.
)! menos se percebe, relações de dominação entre O trabalho remunerado e todas as suas impli-
'! as pessoas estão ocorrendo. Se não houver uma cações, como prestíg'io, ascensão, e, principal-
~,; reflexão conjunta, um pensamento crítico, e mente, o consumir - necessidades criadas pelo
]
atividades que permitam o "treino" destas novas capitalismo - constantemente estão minando e
~. relações, o grupo comunitário se separará, cada influindo nas relações sociais que. se propõem
â, ,
um cuidando de seus problemas individuais, espe- comunitárias. Aceitar diferenças individuais, man-
;,i
1; ;

rando que Deus cuide de todos. tendo relações de igualdade, ou melhor, de não
~~ Podemos ver que a presença e a força da dominação, em uma sociedade onde as diferenças
·t r' ~

t '"
, 1,_, ~' ••
72 Silvia T. Maurer Lane o que é Psicologia Social 73

são valorizadas em termos de competição, torna-se tratos - todos mu ito elaborados.


algo extremamente difícil. Continuando por avenidas, chega-se a prédios
A atividade comunitária numa sociedade de de construção mais recente; são as oficinas onde
classes antagônicas pode ser comparada com uma se fabricam sapatos, bolsas, cintos e uma infini-
situação em que estivéssemos com um pé em cada dade de objetos, todos produzidos pelos pacientes,
barco, descendo um rio - só chegaremos a um cada um escolhendo uma atividade e executando-a
lugar seguro se cada movimento for pensado no seu ritmo. Alguns nos mostravam, orgulhosos,
e revisto para se decidir sobre o próximo, e ainda O conjunto de seus trabalhos, respondendo a
assim haverá desvios, impasses, para, lentamente, nossas perguntas" entremeando risos e silêncios.
avançarmos até o ponto desejado. Em um outro prédio havia cabeleireiros, mani-
ISe o conviver de algumas pessoas, igualita- cures, pedicures, atendendo e sendo atendidos
~.
:rt,

.";'k.'
riamente, em uma casa, é tão difícil, pode-se
imaginar as dificuldades existentes para que insti-
por homens e mulheres - todos pacientes. Mais
adiante, na ala das mulheres, chamaram a atenção
tuições se tornem comunidades, tais como escolas, os dormitórios enfeitados com gravuras nas paredes i
ti-

hospitais e outras. e bonecas nas camas, tudo sempre limpo e arru-


Porém, convido-os para uma visita a um hospital mado; as salas de estar confortáveis, com as
psiquiátrico. portas-janelas abertas para terraços que dão para
Há alguns quilômetros de um centro urbano, gramados verdes e bem cuidados.
;:~
.r:-
chega-se a um grande portão, aberto para uma No final da visita assistimos a um show musical,
~~ avenida, cercado por gramados, que leva a edifícios apresentado pelos pacientes, que tocavam - em
antigos, com grades nas janelas, mas com as portas conjuntos, cantavam em corais ou solos - músicas
abertas. ~ a ala dos homens: ao entrarmos em latino-americanas.
um deles vemos, no terraço, alguns pacientes em Durante todo o tempo da visita sentia-se um
cadeiras de balanço, lado a lado. Eles nos olham, ambiente descontraído, de respeito mútuo e, se
sorriem, falam coisas que não entendemos bem. é possível ocorrer em um hospital psiquiátrico,
Entramos nos dormitórios onde há várias camas, uma atmosfera alegre. E tudo isto como decor-
arrumadas, limpas, mas vatias. No prédio vizinho rência de uma prática comunitária, onde médicos,
há uma exposição de pinturas, todas feitas por enfermeiras, psicólogos, pacientes se relacionam
pacientes; chamando a atenção os motivos fre- em base de igualdade; os pacientes, estimulados
qüentes sobre astronautas, castelos de fadas, abs- a participarem em trabalhos pelos quais são remu-
74 Sílvia T. Maurer Lane

nerados, mantêm vínculos com a realidade, sen-


tindo-se úteis e respeitados. Esta proposta estende-
se além do hospital, envolvendo as famílias dos
pacientes, preparando-os para as visitas ou para
as altas.
Uma instituição deste tipo, porém, só é possível
em uma sociedade que se propõe a ser toda ela
estruturada em relações comunitárias e onde o
cidadão respeitável é aquele que participa de
A PSICOLOGIA SOCIAL
grupos que decidem sobre o comum e que trabalha
produtivamente para o bem de todos. Onde o NO BRASIL (~)
anti-social é aquele cujas ações visam apenas bene·
I fícios próprios, considerando-se melhor que os
I outros. Esta sociedade é Cuba que, em apenas
jI'"
-, ,;·1
- vinte anos de História, conseguiu garantir para Augusto Comte, considerado por muitos o
1~~.";'~ fundador da Psicologia Social, escreveu longas
todos os seus membros saúde e educação.
~,' , obras sobre a natureza das ciências (1830-1834),
f,:

'(
~
nas quais o psíquico seria o objeto de estudo da
Biologia, da Sociologia e da Moral, todas ciências
abstratas, que forneceriam os subsídios para as
ciências concretas, e entre elas estaria a Psicologia
Social, como subproduto da Sociologia e da Moral;
para ele, seria a ciência que poderia responder a
uma questão fundamental: "Como pode o indi·
víduo ser, ao mesmo tempo, causa e conseqüência
da sociedade?".
A Psicologia Social só iria se desenvolver como
estudo científico, sistemático, após a Primeira
Guerra Mundial, juntamente com outras ciências
sociais, procurando compreender as crises e con-

•.»ela••
fi
1 77
1. 76 Silvia T. Maurer Lane o que é Psicologia Social
t:

vulsões que abalavam o mundo. Um desafio era iidade, atitudes, motivos, quando não por inS-
~.;: formulado aos cientistas sociais: "Como é possível tintos. (; uma Psicologia Social que isola o
preservar os valores de liberdade e os direitos indivíduo, criando uma dicotomia entre ele e a
humanos em condições de crescente tensão social sociedade - um poderia influenciar o outro, mas
}: se tratavam de dois fenômenos distintos.
e de arregimentação? Poderá a ciência dar uma
lt Durante a década de 1950, parecia que a
~: resposta?"6. E os psicólogos sociais se puseram a
campo para estudar fenômenos de liderança, Psicologia Social daria respostas a todos os pro-
i~ blemas sociais, e este clima de otimismo persistiu
t':
opinião pública, propaganda, preconceito, mudança
,. de atitudes, comunicação, relações raciais, conflitos
durante os prim'eiros anos após 1960, sem que
,~ .
de valores, relações grupais, etc.
se observasse grandes mudanças; o preconceito
'(; nos EstaeJos Unidos, com sua tradição prag- continuava gerando violências; nas fábricas, as
greves se sucediam; no campo, a miséria aumentava
fÇ:
.ft;.
mática, que a Psicologia Social atinge o seu auge,
':"/ e, nos centros urbanos, o homem se desumanizava .
""~ ., a partir da Segunda Guerra Mundial, através de
;~ O acúmulo de dados de pesquisas vai permitir 1
pesquisas e experimentos que procuravam procedi-
lí! mentos e técnicas de intervenção nas relações
uma análise crítica dos conhecimentos até então
obtidos, constatando-se que, se um estudo afirmava
~
~
i~
I sociais para garantir uma vida melhor para os
a relação positiva entre duas variáveis, um outro j
~
li homens. Os temas de estudo continuavam sendo I
estabelecia uma relação negativa entre elas, e ,I
·f~
os mesmos; partindo ou não de sistemas teóricos
t U!
ti um terceiro demonstrava não haver qualquer
1
"l~~

.~7'
j
~,
".
li
da psicologia, todos se voltavam para a procura
de fórmulas de ajustamento e adequação de relação entre as duas. :\
'I
A proposta inicial de se acumular dados de .1
~.~,
ír
comportamentos individuais ao contexto
A sociedade era um dado, um pano de fundo
social.
pesquisas para depois se chegar à formulação de
~
teorias globalizadoras, se mostrou inviável e a
~!
de um cenário, onde o indivíduo atuava, e desta
~' ~
.~
começam a surgir críticas e questionamentos que
~~l •
forma procurava-se explicar o seu comportamento irão caracterizar a "crise da Psicologia Social" -
lli: ,~
i por "causas" internas, tais como traços de persona-
título de vários artigos publicados nos Estados
~~
..

.'
J' ~
.,j - Unidos e em países da Europa. -1
~:' I: na Europa, principalmente ml França e na •. <;. ...•• ~' ••

~i
;ji (61 W. Allport, "The Historical Background of Modern Social Inglaterra, onde surgem, no final da década de
~ Psychology", ín Lindzey, G e Aronson, E, The Handbook of 60, as críticas mais incisivas à Psicologia Social
~ Social Psychology, Addison-Wesley Pub. ec" USA, 1968.
d
.[
, . 79
78 Silvia T. Maurer Lane o que é Psicologia Social

norte-americana, de nu nciando o seu caráter ideo- No Congresso seguinte, em 1979, ocorrido em


lógico e, portanto, mantenedor das relações Lima, Peru, a situação se apresentou outra - as
sociais. Obviamente, nada poderia ser alterado críticas eram mais precisas e novas propostas
nas condições sociais de vida de qualquer s9cie- surgiram, visando uma redefinição da Psicolo]ia
dade, se a base fossem os conhecimentos desen- Social. Para este encontro, organizamos um Sim-
t volvidos até aquele momento. pósio sobre a Pesquisa em Psicologia Social na
Nos países da América Latina, a Psicologia América Latina, e através de referências de colegas
,~ !

Social, em maior. ou menor grau, reproduzia os contactamos com cientistas do México, do Peru
conhecimentos desenvolvidos nos Estados Unidos, e do Brasil para que participassem, relatando os
;. :
aplicando-se os conceitos e adaptando-se técnicas problemas sentidos e as perspectivas existentes
'"1 . :
de estudo e de j ntervenção às condições próprias para o pesquisador, em cada um dos seus países.
de cada pa(s, enquanto as pesquisas ditas "puras" Cada um de nós preparou a sua apresentação,
continuavam à procura de "leis universais", que sem maiores informações ou contactos.
devem reger o comportamento social de indiv(duos. Em Lima, noS encontramos na apresentação
Há um livro publicado no México, intitulado do Simpósio, e desde as primeiras palavras formu-
Psicologia Social en Ameríca Latina, compilando ladas fomos percebendo uma estranha coinci-
pesquisas realizadas em vários países do conti- dência: eram três visões, mas através de uma só
nente; salvo raras exceções, a maioria dos relatos perspectiva, entre representantes de três países com
se referem ao uso de questionários, testes, outros pouco intercâmbio científico, mas com condições
" procedimentos utilizados em pesquisas realizadas de trabalho semelhantes, que geraram posturas
1':'
nos Estados Unidos e cujos resultados são anali- semelhantes.
sados em comparação com estes, sem acrescentar No final do Simpósío ressaltamos esta coinci-
i::
;,
nada de espec(fico de cada um dos países. dência, chamando a atenção do seu significado,
~,
A crise da Psicolog ia Social é denu nciada' no para o que deveria ser uma Psicologia Social
Congresso de Psicologia Interamericana, real izado voltada para as condições próprias de cada pa (s
em 1976 em Miami, com a participação de psicó- latino-americano, e descobrimos que muitos outros
logos sociais de vários pa (ses da América Latina, os psicólogos sociais se identificavam conosco.
~
t.;
'"
.
.". \
quais esboçam algumas críticas metodológicas e Ainda neste Congresso foi discutido na Assem-
teóricas, porém sem contribuírem com qualquer bléia da Associação Latino-Americana de Psicologia
proposta concreta para a superação dos impasses . .i Social - Alapso - a necessidade de maiores inter-

~..
\

80 81
Si/via T. Maurer Lane o que é Psicologia Social

i câmbios, em primeiro lugar, entre cientistas de mática, como forma de questionamento teórico
cada país para, em um segundo momento, forta- e, também, de um melhor conhecimento do que
lecer a entidade mais ampla. ocorria em nosso meio.
No Brasil, se reproduz o quadro descrito para Durante este período havia uma questão, fre-
a América Latina. A influência maior, na psico- qüentemente feita por alunos e por nós mesmos,
logia, foi sempre a norte-americana, através de que se colocava como um desafio: "Compreen-
seus centros de estudos, para onde iam se aper- demos como o indivíduo é influenciado pela
feiçoar cientistas e professores, ou de onde vinham sociedade, mas como ele poderá se tornar autor
professores universitários, convidados para cu rsos desta sociedade, como ele poderá ser responsável
:: I em nossas Faculdades, como foi o caso do pelo curso da história 7".
Professor Qtto Klineberg, que introduziu a Psico- Pelo jeito, estávamos na "estaca zero", igual
,:
\

a Comte no séc. XIX ...


~,

,.-
,'"
... i logia Social na Universidade de São Paulo, ainda
na década de 50. Após o Congresso de Psicologia Interamericana,
;';
~i; , ~i
,,1'-'jiil
l11:\
U
i E, por sinal, o primeiro livro de Psicologia
Social publicado no Brasil foi a tradução da obra
no Peru, um grupo de psicólogos sociais brasileiros,
vinculados à Alapso, resolveu promover um
de Klineberg, em 1959, contendo tópicos como Encontro de Psicologia Social, com seminários
lU Cultura e Personalidade, Diferenças Individuais e sobre problemas urbanos e grupos de traba lho
.J!

1J ~
(,

i~·
;

Grupais, Atitudes e Opiniões, Interação Social e sobre temas pesquisados. Neste encontro surgiu a

{'
--,:'

.,.r
r~
i
Dinâmica de Grupo, Patologia Social e Política
Interna e Internaciona I.
ESld Psicologia Social continuou sendo ensinada,
proposta de criação de uma Associação Brasileira
de Psicologia Social (Abrapso), visando um maior
intercâmbio entre cientistas de diferentes regiões,
~\ com pequenas reformulações devido a novas e baseada em preocupações comuns aos presentes,
~ que foram expressas em um documento, do qual
L
, '
pesquisas, nos cursos de Psicologia, criados a
transcrevemos:
1; .
partir de 1962, sem grandes alterações. A insatis-
fação existia, mas sem conteúdos alternativos. Q "As oportunidades de ação para o psicólogo
:r
"j
" que se procurava fazer era confrontar teorias, social brasileiro restringem-se geralmente a três
,
~l: •

$'
conceitos, resultados de pesquisa, com fatos do
nosso cotidiano, visando criticar, esses modelos
campos específicos: a universidade, onde poucos
cientistas de renome nesta área trabalham em
Ir i~"' naquilo em que não explicavam a nossa realidade. relativo isolamento, buscando no exterior eco
r
~ :1:'
/! ,'r
Por outro lado, se estimulava a pesquisa siste- para suas preocupações acadêmicas; a indústria,
:1\
", '

t·,u".~
·t""·"·

82 Silvia T. Maurer Lane 83


o que é Psicologia Social
-...,

onde o psicólogo dedica-se à seleção de pessoal vigora o culto aos debates que, nem sempre
e ao ajustamento dos empregados às condições relevantes, cumprem a função de autolegitimar o
que Ihes são oferecidas ou, por último, o mercado
grupo e permitir-lhe eleger, periodicamente, novos
de manipulação de opinião pública, onde seus líderes. Diante deste quadro alguns cientistas
conhecimentos e técnicas ficam a serviço dos sociais brasileiros manifestam intensa perplexidade
interesses econômicos e pol íticos dominantes. e desconforto.
"Ao psicólogo social que não se dispõe a "Entre os psicólogos sociais, esta perplexidade
defender tais interesses, resta o confinamento às soma-se a outra, de caráter mais amplo, decorrente
universidades ou instituições afins, diante da
do impasse em que se encontra atualmente a
ausência de oportunidades para uma ação concreta área de psicologia social. Na Europa e nos Estados
transformadora junto à comunidade. Unidos psicólogos sociais renomados questionam
tIOs próprios profissionais de psicologia, especia- hoje os objetos tradicionais de estudo desta
listas em outras áreas, ignoram o papel possível matéria, tentando definir seu campo de ação e
do psicólogo social, defínindo-o como um acadê- descobrir novos caminhos metodológicos para
mico, interessado em pesqu isa s soci'!Js. Não obs- pesquisas. f
a chamada 'crise da psicologia social',
i
-.1
f
tante, dadas as condições em que vive a maioria
da população brasileira, sem oportunidade
acesso ao atendimento psicológico oferecido à
de
que tem sido amplamente
acadêmicos.
debatida nos meios

"No Brasil esta 'crise' tem sentido enquanto


.t.
l (
r
. ~ I
pequena elite, cabe justamente ao psicólogo social busca de novas idéias teóricas que fundamenta
a implantação de uma assistência psicológica em a ação social concreta do psicólogo em nosso
:: -
larga escala, através da aplicação de seus conheci- meio. Infelizmente não produzimos até hoje
;," ~ .
mentos junto a grupos e organizações populares.
>":
';, . '

conhecimento científico radicalizado na reflexão


"Evidentemente, o confinamento do psicólogo sobre nossa própria realidade social e, em decor-
social, assim como do sociólogo e do antropólogo, rência, continuamos a importar teorias psicológicas
às instituições acadêmicas, tem um sentido polí- nem sempre aplicáveis. A dependência cultural
tico. Impedida de concretizar seus ideais, tendo tem se refletido até mesmo nos temas mais
a voz e a ação sistematicamente abafadas, a freqüentes da investigação da Psicologia Social,
maioria desses cientistas tem se dedicado a
geralmente escolhidos sem qualquer preocupação
inúteis jogos de palavras que ressoam em um com aspectos de relevância ou aplicabilidade ao
espaço mu ito restrito. Neste pequeno círculo contexto brasileiro. Assim, contrariamente ao
'.•••. ~:.::. ~ ·'i: _

84
Silvia T. Maurer Lane

que ocorre em países desenvolvidos, não temos


utilizado esta ciência para responder às questões
sociais específicas do momento histórico que vive-
mos.

"Em certa medida, a tendência do psicólogo


a importar modelos explicativos de contextos
sociais alien ígenas decorre de sua própria formação,
~,
carente de visão mais ampla da realidade sócio-
~I cultural brasileira. Por esta razão, torna-se impres-
I cindível seu contacto com outros cientistas sociais, INDICAÇÕES PARA LEITURA ~
.,
j, tradicionalmente comprometidos com o estudo
! dessa realidade?"
~:::~ ,í
.~ ~i ,
Para aprofundar a questão das teorias psicoló-
,/l••
~
t
j;
gicas é uma leitura interessante A Definição de
:
]
l.i

Psicologia, de Fred Keller (Ed. Pedagógica e r


• Universitária Ltda., São Paulo, 1975), onde o ."~.
~ 'ij
I?
autor expõe as principais correntes teóricas da I
~.
l Psicologia e suas concepções a respeito do objeto
de estudo, fazendo um confronto entre os aspectos
:~!
~!
.1

~
«' i
~
l
comuns e as especificidades de cada abordagem.
t uma leitura agradável, numa linguagem simples,
';.i
;.!
;.j
".,
.:1
-I
1 mas consistente.
l '1
Uma complementação necessária para a questão ·~i
iI:
da ideologia é a leitura de O que é Ideologia, de
,

l' Marilena de Souza Chau( (Ed. Brasiliense, São


i,
Paulo, 1980), principalmente o capítulo referente
t t' a liA Concepção Marxista de Ideologia", onde
~
a autora expõe, partindo de Hegel, o pensamento
~
)' 17l Transcrito de Anais do I Encontro Nacional de Psicologia Social.
!' Apreséntação de Marllia de Andrade.
de Gramsci ao tema.
i
j €ia
fi JI) Er.'
Lde Marx e Engels, chegando até a contribuição
jo',:'
)"1

86 Silvia T. Maurer Lane o que é Psicologia Social 87

Para se compreender o capitalismo, mais especi- linguagem e atividade. São textos mais pesados,
ficamente, o brasileiro, a obra de Afrânio Mendes mais técnicos, porém depois que se enfrentam
Catani, O que é Capitalismo (Ed. Brasiliense, as primeiras páginas e que se familiariza com a
São Paulo, 1980) é uma leitura importante para linguagem do autor, eles se tornam leitura fasci·
se situar historicamente na realidade brasileira, nante. f interessante notar que são obras de
principalmente a Parte 2: "O Capitalismo no psicologia onde a questão de se toda a psicologia
Brasil". é ou não social nem sequer é cogitada - o homem
4
~; , Para aprofundar a questão da linguagem, o é um ser biológico, social e histórico.
livro de Robert F. Terwilliger, Psicologia da Para uma leitura sobre a Psicologia Social tra-
. Linguagem (Ed. Cultrix/Edusp, São Paulo, 1974), dicional existem vários textos organizados por
apresenta a questão a partir de um enfoque social Peter Herriot, da City University de Londres, que
:~ ,
~i ~
e analisa as principais teorias sobre a linguagem, apresentam os principais conceitos e pesquisas
\
~. seja do ponto de vista da aprendizagem, (Cap(· desenvolvidas, com uma visão crítica do que vem
tulo 3), seja quanto ao significado (Cap(tulo 4), sendo produzido pela Psicologia Social. t o caso
seja quanto a contribuições de outras áreas. de Comportamento Social, de Kevin Wheldall
Quem quiser apenas se ater à problemática social (Zahar Eds., Rio de Janeiro, 1976), de Valores,
da linguagem basta a leitura dos Cap ítulos I e X, Atitudes e Comportamento, de Ben Reich (Zahar
respectivamente, "O Estudo Psicológico da Eds., R io de Ja neiro, 1976), e de Psicologiae Estru-
Linguagem" e "A Linguagem Como Arma". tura Social, de Barrie Stacey (Zahar Eds., Rio de
Também o livro de Judith Greene, Pensamento Janeiro, 1975).
e Linguagem (Zahar Eds., Rio, 1976), analisa as
contribuições de diferentes perspectivas teóricas
sobre a relação entre pensamento e linguagem,
concluindo sobre a inseparabilidade de ambos.
As obras de Alexis N. Leontiev: O Desenvol-
~.
:" i
,. vimento do Psiquismo (Livros Horizonte, Lisboa, ,~
t
\' 1978), e Actividad, Conciencia y Personalidad , ,~~

h
li
(Ed. Ciencias dei Hombre, Buenos Aires, 1978)
foram fundamentais para a nossa análise da
t
.~

t
consciência, da sua relação com pensamento,
••
••••

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