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CAPÍTULO UM

Cambridge, Massachusetts
Final de abril
1991

–P arece que nós estamos ligeiramente atrasados — anun-


ciou Manning Chilton com um olho brilhante fixado no relo-
ginho de bolso, preso ao seu colete por uma corrente. Ele passou os olhos
pelos outros quatro rostos em torno da mesa de reunião. — Mas nós ainda
não terminamos, srta. Goodwin.
Sempre que Chilton se sentia particularmente contente consigo mes-
mo sua voz se tornava irônica, zombadora: uma afetação inapropriada que
irritava seus alunos pós-graduandos. Connie logo percebeu a mudança na
voz e então soube que finalmente seu exame de qualificação estava termi-
nando. Um sinalzinho azedo de náusea borbulhou no fundo da sua gargan-
ta, e ela engoliu. Os outros professores da banca sorriram para Chilton.
Em meio à sua ansiedade, Connie Goodwin sentiu uma vibração de
contentamento no peito e se permitiu aproveitar por um momento aquela
sensação. Se tivesse de dar sua opinião, ela teria dito que o exame estava
caminhando adequadamente. Mas apenas isso. Um sorriso nervoso tentava
chegar ao seu rosto, mas ela tratou de abafá-lo sob a expressão tranquila e
neutra de competência distante, que ela sabia ser mais apropriada a uma
jovem mulher na sua posição. Essa expressão não lhe vinha naturalmente,
e o esforço exigido para mantê-la lhe dava, de um jeito um tanto cômico, a
aparência de alguém que acabou de morder um caqui verde.
Ainda haveria mais uma pergunta. Mais uma possibilidade de ser
arruinada. Connie aprumou-se na cadeira. Nos meses que antecederam o
exame de qualificação seu peso diminuiu, devagar no início e depois acele-
radamente. Agora seus ossos não estavam acolchoados contra a cadeira, e o
suéter de tricô trabalhado em jacquard sobrava-lhe nos ombros. Suas faces,
normalmente coradas, afundavam-se nos ossos malares salientes; isso fazia
parecerem maiores os olhos azul-claros emoldurados por cílios curtos e cas-
tanhos. As sobrancelhas, castanho-escuras e muito arqueadas, franziam-se
pela concentração. A superfície plana das suas faces e do alto da testa era
alvíssima, pontilhada pela vaga insinuação de sardas, e se projetava num
queixo bem marcado e num belo nariz, embora um tanto proeminente.
Seus lábios, finos e pálidos, ficavam ainda mais claros por ela os pressionar
um contra o outro. Uma das mãos se ergueu para alisar a ponta de uma
comprida trança castanha que lhe descia até o ombro, mas ela se conteve e
a recolheu ao colo.
— Não sei como você consegue ficar tão calma — exclamara durante
o almoço, naquela tarde, seu aluno de graduação, cujo artigo ela estava
orientando. — Como é que você consegue comer? Se eu estivesse prestes a
fazer um exame, provavelmente estaria enjoado.
— Thomas, você fica enjoado só de a gente marcar uma reunião —
lembrou Connie, gentilmente, embora fosse verdade que o apetite dela ti-
vesse quase desaparecido. Se a pressionassem, ela teria admitido que gostava
de intimidar um pouco Thomas. Connie justificava essa pequena crueldade
alegando que a probabilidade de um aluno cumprir o prazo estabelecido
para a apresentação do artigo e se aplicar mais ao trabalho é maior quando
ele se sente intimidado. Mas se fosse honesta, ela reconheceria um motivo
menos louvável. Os olhos dele se fixavam nela com um brilho de apreensão,
e esse respeito a revigorava.
— Além do mais, isso não é assim tão difícil quanto as pessoas fazem
parecer. Você só tem que estar preparado pra responder qualquer pergunta
sobre os quatrocentos livros lidos durante a pós-graduação. E se você errar,
já era — disse ela.
Ele a encarou com um olhar de espanto mal contido enquanto Connie
revirava a salada no prato com os dentes do garfo. Ela sorriu para ele. Uma

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das coisas que se deve aprender para ser professor é o comportamento pro-
fessoral. Ela não poderia permitir que Thomas percebesse o medo que ela
estava sentindo.
O exame oral de qualificação normalmente é um momento decisivo
em que o professorado acolhe alguém como colega e não como principiante.
Visto de um modo mais desfavorável, pode ser também o lugar onde acon-
tece uma espetacular carnificina intelectual, quando o aluno despreparado
— consciente, mas impotente — testemunha a sua própria vivissecção profis-
sional. De qualquer maneira ela será forçada a encarar as suas inadequações.
Connie era uma mulher cautelosa e precisa, avessa a deixar qualquer coisa ao
acaso. Ao empurrar na mesa, longe do olhar endeusador de Thomas, a salada
que deixara pela metade no prato, ela disse a si mesma que estava tão prepa-
rada quanto era possível. Na sua mente dispunham-se prateleiras apinhadas
de livros, anotados e repletos de marcadores de página. Enquanto punha
de lado o guardanapo, ela percorreu mentalmente as prateleiras do seu co-
nhecimento adquirido, perguntando-se. Onde estão os livros de economia?
Aqui. E os que falam sobre costumes e cultura material? Na prateleira de
cima, à esquerda.
A sombra de uma dúvida passou-lhe pelo rosto. E se ela não estivesse
suficientemente preparada? A primeira onda de náusea lhe contorceu o estô-
mago e seu rosto ficou mais pálido. Todo ano aquilo acontecia com alguém.
Por anos ela havia ouvido os sussurros sobre alunos que tinham sucumbido,
saindo aos soluços da sala de exame, com a carreira acadêmica encerrada
antes de ter começado. Na verdade o exame só podia ocorrer de dois modos.
Seu desempenho poderia, teoricamente, elevá-la na consideração do depar-
tamento. Se tudo corresse bem hoje, ela estaria um passo mais perto de se
tornar professora.
Ou então ela poderia olhar para as prateleiras de sua mente e encontrá-
-las vazias. Todos os livros de história desaparecidos, substituídos por um
único volume com letras de músicas de rock e os resumos dos programas de
televisão do final da década de 1970. Ela abriria a boca e não sairia sequer
uma palavra. E então ela faria as malas e voltaria para casa.
Agora, quatro horas depois do almoço com Thomas, estava sentada
num dos lados de uma grande mesa de mogno encerado que ficava num
canto escuro e íntimo do setor de História da Universidade de Harvard, de-
pois de ter resistido a três horas ininterruptas de inquirição por uma banca
de quatro professores. Estava cansada, porém mais alerta que o normal,
graças à adrenalina. Connie se lembrava de ter sentido a mesma estranha

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mistura de exaustão e intensidade intelectual quando passou uma noite
em claro burilando o último capítulo do seu trabalho de conclusão da
faculdade. Todas as suas sensações pareciam ricochetear a toda velocidade,
impertinentes e dispersivas — o ruído da fita-crepe com que havia proviso-
riamente feito a barra da sua saia de lã, o gosto de café açucarado na boca.
Sua atenção se concentrava em todos esses detalhes, e depois os punha de
lado. Permanecia só o medo, que não se deixava afastar. Ela dirigiu o olhar
a Chilton, esperando.
A sala discreta em que ela estava sentada basicamente se resumia à es-
buracada mesa de reunião com suas cadeiras e ao quadro-negro diante delas,
que carregava a mancha cinza-claro dos fantasmas de décadas de rabiscos de
giz. Atrás dela estava pendurado o retrato esquecido de um velho de barbas
brancas, já escurecido pelo tempo e o descuido. Na extremidade da sala uma
janela encardida se fechava contra a luz do meio da tarde. Grãos de poeira se
suspendiam quase imóveis no único raio de sol que entrava na sala, e ilumi-
nava do nariz até o queixo o rosto dos integrantes da comissão. Lá fora ela ou-
via vozes jovens de universitários, cumprimentando e desaparecendo, rindo.
— Srta. Goodwin — disse Chilton —, temos um último pedido a lhe
fazer esta tarde. — Seu orientador debruçou-se no centro vazio da mesa,
a luz do sol deslocando–se para o seu cabelo prateado, agitando a poeira
numa coroa brilhante em torno da sua cabeça. Na mesa diante dele seus
dedos estavam enredados com o mesmo cuidado com que fora dado o nó
na sua gravata listrada. — Você poderia expor para a comissão uma história
sucinta e ponderada da bruxaria na América do Norte?

O historiador especializado na vida colonial americana, como


Connie, deve ser capaz de ilustrar nos menores detalhes sistemas sociais,
religiosos e econômicos extintos há muito tempo. Como preparação para
esse exame ela havia decorado, entre outras coisas, os métodos para produzir
carne de porco salgada, os usos do excremento dos morcegos para fertili-
zação e a relação comercial entre o melado e o rum. Sua companheira de
quarto, Liz Dowers, estudiosa do latim medieval, uma loira esguia sempre
de óculos, certa noite a havia encontrado estudando os versos da Bíblia que
costumavam aparecer nos bordados feitos pelas meninas no século XVIII.
“Finalmente o nosso nível de especialização superou a nossa capacidade de
compreender uma à outra”, comentou a moça, balançando a cabeça.

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Para uma última questão, Connie sabia que Chilton realmente havia
lhe dado um presente. Algumas das questões anteriores foram consideravel-
mente misteriosas, mais do que ela tinha sido levada a esperar. Descrever a
produção dos vários grandes exportadores das colônias inglesas na década
de 1840, do Caribe até a Irlanda. Ela considerava a história mais uma saga
de grandes homens agindo em circunstâncias extraordinárias ou de gran-
des populações de pessoas confinadas por sistemas econômicos? Que papel
o bacalhau desempenhou no crescimento do comércio e da sociedade da
Nova Inglaterra? Ela percorreu com o olhar todos os professores que esta-
vam em torno da mesa de reunião e viu refletida naqueles olhos atentos a
área de especialização em que cada um havia se consagrado.
O orientador de Connie, o professor Manning Chilton, olhava para
ela do outro lado da mesa, um sorrisinho brincando no canto da boca. Seu
rosto, guarnecido com uma cabeleira branca de cachos brilhantes, era vinca-
do na testa, cheio de rugas desde o canto do nariz até a mandíbula, e estava
mergulhado numa sombra profunda motivada pela luz baixa do sol. Ele se
comportava com a tranquila segurança de acadêmicos pertencentes a uma
espécie já em extinção: passou toda a carreira sob a proteção de Harvard e
teve sua especialização em história da ciência no período colonial influen-
ciada por uma infância inteira sendo expulso da sala de visitas de uma im-
ponente casa do bairro de Back Bay. Trazia o cheiro distinto de couro velho
e fumo de cachimbo, masculino mas ainda não senil.
Chilton tinha ao seu lado na mesa de reunião três outros respeitados
historiadores americanos. À esquerda estava o professor Larry Smith, um
economista lacônico que lecionava havia pouco tempo na faculdade. Ele es-
tava sempre com paletós de tweed, e fazia perguntas intrincadas destinadas
a mostrar sua autoridade e conhecimento aos professores mais experientes.
Connie fuzilou-o com os olhos; por duas vezes durante o exame ele havia
lhe feito, propositalmente, perguntas sobre assuntos que ela não dominava.
Ela imaginou que isso fazia parte do trabalho dele, mas Larry Smith era o
único integrante da banca que podia se lembrar do seu próprio exame de
qualificação. Talvez ela tivesse sido ingênua ao esperar dele um pouco de
solidariedade; frequentemente os professores da sua categoria eram os mais
rigorosos com os alunos do curso de graduação, como se para compensar
as indignidades que eles próprios tinham sofrido. Ele encontrou o olhar de
Connie e lhe deu um sorriso falso.
À direita de Chilton, com o queixo apoiado na mão cheia de joias,
sentava-se a professora Janine Silva, gorducha e corada, uma especialista em

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estudos de gênero que fora recentemente contratada e gostava de temas rela-
cionados à teoria feminista. Hoje seu cabelo estava mais indisciplinado e on-
dulado que o normal, com um brilho obviamente falso. Connie gostava do
modo voluntarioso com que Janine rejeitava a estética de Harvard; longas
echarpes florais eram a sua marca registrada. Um dos seus discursos predile-
tos era sobre a relativa hostilidade de Harvard para com as acadêmicas; seu
interesse pela carreira de Connie às vezes chegava a ser maternal, e por isso
Connie precisava conscientemente controlar a transferência pseudomaterna
que muitos alunos desenvolvem em relação aos orientadores.
Embora fosse Chilton quem exercia maior influência sobre o curso de
sua carreira, a pessoa que Connie mais temia desapontar era Janine. Como
se percebesse essa momentânea ansiedade, Janine mandou para Connie
um sinal de positivo com o polegar, parcialmente oculto atrás de um dos
seus braços.
Por fim, do lado direito de Janine, estava o professor Harold Beaumont.
Ele era historiador da Guerra Civil e um feroz conservador, conhecido pelas
incursões ríspidas na página dos articulistas do New York Times. Connie nun-
ca trabalhara em proximidade com ele e o havia posto na sua banca somente
por imaginar que ele teria pouco interesse pessoal no seu desempenho. Com
Janine e Chilton já tinha expectativas suficientes pesando sobre seus om-
bros. Enquanto esses pensamentos vagavam pela sua mente, sentiu os olhos
escuros de Beaumont se fixarem num buraquinho redondo que havia no
ombro do suéter dela.
Connie olhou para a superfície da mesa e acompanhou com o dedo as
iniciais que tinham sido entalhadas ali, escurecidas por décadas de aplica-
ções de cera. Percorreu as gavetas de arquivos do seu cérebro, procurando a
resposta que eles queriam. Onde estaria? Connie sabia que ela estava lá, em
algum lugar. Seria na letra B de “Bruxaria”? Não. Ou ela estaria relacionada
dentro da letra G, de “Gênero, questões de”? Ela abriu todas as gavetas men-
tais, uma por vez, tirando inúmeras fichas, passando os olhos por cada uma
e depois descartando-as. A bolha de náusea surgiu novamente na sua gargan-
ta. A ficha tinha sumido. Ela não conseguia encontrá-la. Aquelas histórias
sussurradas sobre fiascos de alunos iam tê-la como protagonista. Recebera a
pergunta mais simples possível e não podia apresentar uma resposta.
Ela ia fracassar.
Sua visão começou a se turvar com o pânico e Connie lutou para
manter normal a respiração. Os fatos estavam lá, ela precisava apenas se
concentrar o suficiente para vê-los. Os fatos nunca a abandonariam. Repe-

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tiu para si mesma a palavra “fatos”. Mas espere, ela não havia procurado em
“Religião popular, época colonial”, na letra R. Então abriu a gaveta mental e
ali estava! A névoa se desfez. Connie endireitou-se na cadeira dura e sorriu.
— Claro — começou ela afastando a ansiedade. — A tentação é co-
meçar uma discussão sobre a bruxaria na Nova Inglaterra pelo pânico de
Salem em 1692, quando 19 citadinos foram enforcados. Mas o historiador
cuidadoso vai reconhecer esse pânico como uma anomalia e, em vez disso,
vai pensar na posição relativamente predominante da bruxaria na sociedade
colonial no início do século XVII. — Connie olhou para as quatro cabeças
que assentiam em torno da mesa, planejando a estrutura de sua resposta de
acordo com a reação delas.
— A maioria dos casos de bruxaria ocorreu esporadicamente — pros-
seguiu ela. — A bruxa típica era uma mulher de meia-idade que estava isola-
da na comunidade, por razões econômicas ou simplesmente por não ter uma
família, e por isso não tinha força social nem política. O que é interessante
é o fato de que a pesquisa sobre os tipos de maleficium — sua língua se atra-
palhou com a palavra latina, que ganhou uma ou duas sílabas extras, e ela
xingou mentalmente por ter cedido à pretensão — de que as bruxas normal-
mente eram acusadas revela que o mundo colonial era, na verdade, muito
estreito para as pessoas comuns. Enquanto hoje em dia é normal pensar
que alguém capaz de controlar a natureza, parar o tempo ou prever o fu-
turo naturalmente usaria esses poderes para realizar mudanças radicais em
larga escala, as bruxas da época colonial eram normalmente culpadas por
catástrofes mais prosaicas, como fazer vacas adoecerem ou azedar o leite, ou
perda de propriedade pessoal. Essa esfera de influência microcósmica tem
mais sentido no contexto da religião colonial antiga, na qual se supunha
que os indivíduos eram completamente impotentes diante da onipotência
de Deus. — Connie fez uma pausa para respirar. Ela ansiava por se estirar
mas se conteve. Por enquanto ainda não.
— Além disso — continuou ela — os puritanos diziam que nada
podia indicar com segurança se a alma de uma pessoa estava salva ou
não; boas ações não garantiam a salvação. Assim, as ocorrências negati-
vas, como uma doença grave ou a derrocada econômica, eram frequente-
mente interpretadas como sinal da desaprovação divina. Para a maioria
das pessoas, culpar a bruxaria — uma explicação que estava fora do seu
controle e personificada numa mulher isolada da sociedade — era pre-
ferível a encarar a possibilidade de estar correndo risco espiritual. Na
prática, a bruxaria desempenhou um papel importante nas colônias da

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Nova Inglaterra — tanto como uma explicação para as coisas ainda não
elucidadas pela ciência quanto como um bode expiatório.
— E o pânico de Salem? — incentivou a professora Janine Silva.
— Os julgamentos das bruxas de Salem foram explicados de várias
maneiras — disse Connie. — Alguns historiadores sustentaram que eles
foram causados pela tensão entre populações religiosas rivais de Salem, de
um lado a da cidade portuária mais urbana e do outro a da região agrícola.
Alguns chamam a atenção para a persistente inveja entre grupos familiares,
concentrando-se particularmente nas exigências de dinheiro feitas por um
pastor impopular, o reverendo Samuel Parris. E alguns historiadores che-
garam até a afirmar que as moças possuídas tinham alucinações depois de
comer pão bolorento, o que pode causar efeitos semelhantes aos do LSD.
Mas para mim, tudo isso foi o último suspiro da religiosidade calvinista.
No início do século XVIII, Salem havia deixado de ser uma comunidade
predominantemente religiosa para se tornar mais diversificada, mais de-
pendente da pesca, do comércio e da construção de navios. Os fanáticos
protestantes que tinham originalmente povoado a região estavam sendo
suplantados por recentes imigrantes da Inglaterra, mais interessados nas
oportunidades de negócios nas novas colônias do que na religião. Eu acho
que os julgamentos foram um sintoma dessa mudança de dinâmica. Foram
também a última explosão de histeria contra a bruxaria em toda a América
do Norte. O pânico de Salem marcou efetivamente o final de uma era que
tinha suas raízes na Idade Média.
— Uma análise muito perspicaz — comentou o professor Chilton,
ainda no seu tom abstraído e zombador. — Mas você não deixou de fora
outra interpretação importante?
Connie sorriu para ele, a expressão nervosa do animal que apara o
golpe de um atacante.
— Não tenho certeza disso, professor Chilton — respondeu ela.
Agora ele estava brincando com ela. Connie implorou silenciosamente
para que o tempo fizesse passar logo as provocações de Chilton, para que
ela pudesse ir logo ao Abner’s Pub, onde Liz e Thomas estariam à sua es-
pera e onde ela poderia finalmente parar de falar. Quando cansada, as pa-
lavras de Connie às vezes saíam umas junto com as outras, atropelando-se
um tanto desordenadamente. Enquanto observava o sorriso matreiro de
Chilton, ela temia estar se aproximando desse nível de cansaço. Aquela
idiotice de usar a palavra “maleficium” era um indício desse quadro. Se
Chilton apenas a deixasse passar...

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Ele inclinou-se para a frente.
— Você já pensou na possibilidade de que as acusadas eram simples-
mente culpadas das acusações de bruxaria? — perguntou ele olhando-a com
as sobrancelhas arqueadas e as pontas dos dedos indicadores unidas forman-
do um pequeno templo sobre a mesa.
Ela olhou-o por um momento. Uma onda de irritação, até raiva,
a tomou por completo. Que pergunta ridícula! Obviamente as pessoas
que participaram dos julgamentos na época da colônia acreditavam que
as bruxas eram reais. Mas nenhum especialista contemporâneo havia ja-
mais cogitado essa possibilidade. Connie não entendia por que Chilton
a provocava daquele jeito. Seria esse o seu modo de deixar bem clara a
posição rasa que ela ocupava na hierarquia da academia? Por mais gro-
tesco que fosse isso, ela precisava responder, porque era Chilton que lhe
fazia a pergunta. Era evidente que ele estava longe demais da sua própria
experiência como aluno da pós-graduação para poder se lembrar de como
aquele exame era terrível. Se pudesse se lembrar, ele não brincaria com ela
hoje. Ou brincaria?
Ela limpou a garganta reprimindo a indignação. Connie ainda não
estava suficientemente bem situada no universo dos eruditos para lhe per-
mitirem exprimir sua exasperação. Ela não somente viu solidariedade e
comiseração nos olhos apertados de Janine como também registrou o seu
sinal quase imperceptível para que ela prosseguisse. Salte o obstáculo, dizia
o seu gesto de cabeça. Você e eu sabemos que é disso que se trata, mas de qual-
quer forma você precisa fazê-lo.
— Bom, professor Chilton — começou ela —, nada do que eu vi nos
relatos históricos da literatura recente considerava que essa fosse uma pos-
sibilidade real. A única exceção que me ocorre é Cotton Mather. Em 1705,
ele escreveu uma famosa defesa dos julgamentos e execuções em Salem,
acreditando firmemente que os tribunais tinham tomado a decisão certa ao
livrar a cidade de bruxas verdadeiras e atuantes. Isso aconteceu mais ou me-
nos na época em que um dos juízes, Samuel Sewall, fez um pedido público
de desculpas por sua participação nos julgamentos. Sabe-se que Cotton
Mather, um teólogo renomado, havia conduzido os julgamentos. Mas devo
acrescentar que ele fez isso contra os desejos do pai, um teólogo igualmente
famoso, Increase Mather, que condenou publicamente os julgamentos de
Salem, dizendo que eles haviam se baseado em evidências não confiáveis.
Assim, Cotton Mather pode ter afirmado que a bruxaria em Salem era
real e que a matança de vinte pessoas foi plenamente justificada, mas ele

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tinha muita coisa em jogo e precisava a todo custo defender o acerto dessa
opinião. Senhor.
Ao concluir seu tratado, Connie observou Chilton rir maliciosamente
para ela do outro lado da mesa. Nesse momento ela soube que o exame
tinha terminado. Ela havia saltado o obstáculo, que agora ficara para trás.
A próxima coisa a fazer seria ir lá fora para esperar o veredicto oficial. Mas
pelo menos ela havia apresentado uma resposta. E já não havia mais nada a
fazer. Ela se sentia impotente, exaurida. A pouca cor que lhe restava no rosto
refluiu, seus lábios ficaram brancos.
Os quatro professores trocaram rápidos olhares em torno da mesa an-
tes de voltar a atenção para Connie.
— Muito bem — disse o professor Chilton. — Por favor aguarde um
pouco lá fora, srta. Goodwin, nós vamos discutir o seu desempenho. Não
vá para muito longe.
Retirando-se da sala do exame, Connie andou sob as sombras do
prédio da História, suas passadas ecoando no piso de mármore. Sentou-se
num sofá cor de alfazema na área de recepção central, fruindo o aben-
çoado som do silêncio. Deixou-se afundar na almofada e pôs a ponta da
trança acima da sua boca, como um bigode.
Dentro da sala de reuniões, várias portas adiante, ela ouvia comentá-
rios feitos em voz baixa, abafados demais para ser possível distinguir quem
dizia o quê. Batendo um polegar no outro, ficou ali, à espera.
O sol do início da tardinha incidia obliquamente sobre o pavimento,
aquecendo seu colo. Do outro lado da sala ela percebeu um rápido movimen-
to, quando um ratinho desapareceu na escuridão atrás do vaso de uma planta
sonolenta. Isso a fez sorrir languidamente, pensando nas gerações invisíveis de
seres que viviam em algum lugar nas paredes do departamento de História, sem
se preocupar com nada mais importante do que pés descuidados e sobras de
biscoito de água e sal. Ela quase podia invejar uma vida tão simples. O silêncio
desceu sobre a área de espera e Connie ouvia apenas sua respiração irregular.
Por fim ela ouviu a porta se abrir.
— Connie? Pode vir.
Era a professora Janine Silva. Connie se levantou. Por um segundo
ela teve certeza de que o exame havia sido horrível, de que ela fracassara, de
que seria preciso deixar a escola. Mas então ela viu que no rosto bondoso
de Janine, emoldurado pelo seu cabelo vermelho emaranhado, abriu-se um
sorriso de alegria. Janine enlaçou a sua cintura e sussurrou:
— Quando acabar, nós vamos comemorar no Abner’s!

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Connie retomou seu lugar na sala de exames. O raio de sol estava mais
baixo, mal chegando a contemplar os quatro pares de mãos entrelaçadas em
torno da mesa.
Ela compôs sua expressão na figura mais próxima possível da frieza
e indiferença professorais. Ninguém gosta de uma mulher acadêmica que
é emocional, lembrou-se ela.
— Depois de muito debate e discussão — começou o professor Chilton
com uma expressão séria — gostaríamos de cumprimentá-la pelo melhor
exame de qualificação para o doutorado que vimos nos últimos tempos. Suas
respostas foram completas, detalhadas e bem expostas, e nós achamos que
você está, sem sombra de dúvida, qualificada para prosseguir como candida-
ta ao PhD. Você está mais do que pronta para escrever a sua dissertação.
Ele parou por um momento enquanto Connie processava o que aca-
bara de ouvir, o veredicto abrindo caminho por todas as suas camadas
de preocupação.
Subitamente ela sentiu sua respiração sair num assobio nervoso, e en-
tão fechou os dedos em volta do assento da cadeira num esforço para cana-
lizar sua alegria palpável para algo seguro, algo que não a denunciasse.
— Verdade? — exclamou ela em voz alta olhando em torno da mesa.
— Claro! — garantiu com voz fina a professora Janine, interrompen-
do o professor Smith que começara a dizer:
— Um trabalho realmente excelente, Connie.
— Muito competente — acrescentou o professor Beaumont, e Connie
sorriu para si. Thomas não acreditaria que ele havia dito aquilo. A cabeça de
Connie já estava se desviando para a noite, quando seu aluno iria interrogá-la
sobre as perguntas que cada um dos professores lhe havia feito.
Enquanto a banca prosseguia nos louvores ao seu desempenho, Con-
nie sentiu nos braços e nas pernas uma doce mistura de alívio e cansaço. As
vozes dos seus examinadores tornaram-se abafadas e se afastaram, como se
uma neblina de sono ocupasse a sua mente. Ela estava prestes a desmoronar.
Via-se lutando para se levantar, para fugir para a segurança dos amigos.
— Bom — disse ela pondo-se de pé —, eu não tenho palavras para agra-
decer a vocês. De verdade. É um modo maravilhoso de encerrar o semestre.
Os professores se levantaram também, cada um deles apertou-lhe a
mão e depois pegou suas coisas para sair. Ela agradecia mecanicamente e
começou a tatear à procura do casaco. Os professores Smith e Beaumont
saíram rapidamente da sala.
A professora Janine passou sobre a cabeça a alça da sua bolsa.

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— Vamos, menina — chamou dando um tapinha no ombro de Connie.
— Você precisa de uma bebida.
Connie riu, duvidando que fosse capaz de resistir a mais de um dos
famosos drinques do Abner’s.
— Eu preciso ligar para o Thomas e a Liz. Eles exigiram notícias ime-
diatas — disse ela. — Eu encontro você lá?
A professora Janine — apenas Janine agora, pois ela insistia que os
pós-graduandos abolissem o “professora” quando aprovados no exame de
qualificação — balançou compreensivamente a cabeça. — Imaginei que
fossem exigir mesmo — disse ela. — Manning, conversamos na semana que
vem. — Então ela se foi com um aceno de mão e a pesada porta fechou-se
atrás dela.
Connie começou a enrolar a echarpe no pescoço.
— Connie, espere um momento — disse Chilton. Era mais uma
ordem que um pedido, notou Connie um tanto surpresa. Ela parou, sen-
tando-se novamente.
Chilton se sentou na cadeira diante de Connie, olhando-a radiante.
Não disse nada. Connie, sem saber o que ele ia fazer, arriscou um olhar até
o cotovelo dele que, coberto pelo couro brilhante da cotoveleira do paletó,
repousava no último resto de luz solar na mesa.
— Preciso dizer que sua performance foi incrível, até para o seu pa-
drão — começou Chilton.
Como sempre, Connie se distraiu momentaneamente com o sotaque
Brahmin de Chilton, em que o r aparece e desaparece aleatoriamente, e é
pronunciado com mais intensidade. Pehfohmance. Era um sotaque que já
praticamente não se ouvia mais, sem quase nada a ver com o típico sota-
que de Boston caricaturado na televisão. O próprio Chilton frequentemente
dava a Connie a impressão de ser uma espécie de relíquia, um escaravelho
preservado em âmbar que não tem consciência de estar imobilizado e de ter
sido deixado para trás pelo tempo.
— Obrigada, professor Chilton — disse ela.
— Eu sabia, quando a aceitei nesse programa, que você se destacaria.
Seu trabalho de graduação em Mount Holyoke foi exemplar. Seu desempe-
nho na pós-graduação e as suas aulas foram julgados quase perfeitos.
“Pehfeitos”, pensou Connie, e imediatamente se censurou: Presta aten-
ção! Isso é importante!
Ele ficou em silêncio, olhando para ela com os dedos indicadores pres-
sionados contra os lábios.

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— Eu me pergunto se você já começou a pensar no tema da sua dis-
sertação — disse ele.
Ela hesitou, pega de surpresa. Claro que ela imaginara lhe apresen-
tar uma proposta logo depois do exame, na hipótese de ser aprovada, mas
achava que teria semanas diante de si para pensar no assunto. Contudo a
atenção de Chilton mostrava que o seu exame de qualificação garantira a ela
novo status dentro do departamento. Os ouvidos de Connie entraram em
ebulição, como antenas que tivessem captado uma informação vital escrita
num código que foi transcrito apenas pela metade.
Em muitos aspectos a universidade constitui o último baluarte do apren-
dizado medieval. Ela já havia discutido essa ideia com a amiga Liz. O mestre
acolhe o aluno, educa-o no seu ofício, compartilha com ele os segredos eso-
téricos do seu campo. O aprendiz é uma espécie de iniciado, gradualmente
admitido a níveis mais altos de misticismo. Não que a maioria dos temas aca-
dêmicos fosse muito místico, obviamente. Mas, por extensão, a habilidade do
aprendiz reflete a capacidade do mestre. Connie percebeu que Chilton agora a
considerava um recurso valioso para ele, e que esse novo nível de respeito impli-
cava mais responsabilidade sobre seus ombros. Chilton tinha planos para ela.
— Tenho algumas ideias na cabeça, claro — começou ela —, mas
nada definitivo. Você tem alguma coisa em mente?
Ele a olhou por um momento e ela viu algo indistinto, quase ardiloso,
brilhando atrás do seu olhar cuidadoso, velado. Então, com a mesma rapi-
dez com que surgira, o brilho desapareceu, substituído pela simples indife-
rença que ele costumava ostentar a título de expressão facial. Ele recostou-se
na cadeira, apoiando na ponta da mesa seu joelho ossudo, e fez com a mão
enrugada um gesto de negação.
— Não. Eu só peço que você corra atrás de novas fontes. Nós precisa-
mos pensar estrategicamente sobre a sua carreira, minha filha, e não pode-
mos fazer isso se você ficar apenas remoendo os mesmos arquivos antigos.
Uma fonte primária grandiosa, recém-descoberta, pode consagrá-la nesse
campo, Connie — disse ele olhando-a atentamente. — Nova. “Uma fonte
nova” vai ser o seu passaporte para o sucesso.
Passapohte, pensou Connie. Se eu não sair daqui neste minuto vou aca-
bar falando besteira. Mas também... Ela não conseguia entender exatamente
por que ele insistia em dizer para ela procurar novas fontes. Talvez mais
tarde ele lhe dissesse o que tinha em mente.
— Eu entendo, professor Chilton. Vou pensar seriamente nisso. Obrigada.
Connie levantou-se, aconchegando os braços na japona, cobrindo o

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nariz com o cachecol e enfiando a trança dentro de um gorro de tricô enfei-
tado com um pompom. Chilton concordou com um menear de cabeça.
— Então você está indo comemorar — disse ele.
Connie olhou-o com um sorriso desanimado.
— No Abner’s — confirmou ela, implorando em silêncio para que ele
não fosse.
— Você merece. Divirta-se — disse ele. — Na semana que vem nós
continuamos mais profundamente essa discussão. — Ele não se pôs de pé
para segui-la. Em vez disso, observou-a rumar para o mundo vivaz e pri-
maveril lá fora. Quando a porta se fechou atrás dela, a última réstia de luz
desapareceu da janela e a sala de reuniões ficou na escuridão.

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