Professional Documents
Culture Documents
EP
ENCCONTRO INTTERNACION
NAL
Centro de Inve
estigação em
m
A UN
NICIDADE DO
D CONHEC CIMENTO
Edu
ucação e Pssicologia
A CRIIATIIVID
DADE
E EN
NQUA
ANT
TO
DIINAM
MISMMO DE
D
DES
SENVVOLVVIM
MENTTO E DE
E ANSÃ
EXPA ÃO DA
D CONS
C SCIÊ ÊNCIA
A
Mo oisés Ferreeira
Adelinda A. Candeias1
INTRODU
N UÇÃO: CRIATIVI
C IDADE E DESEN
NVOLVIM
MENTO
1 Profe
essora Auxiliarr do Departam
mento de Psicollogia da Univerrsidade de Évo
ora.
adelin
ndacandeias@
@gmail.com
FERREIRA, M. & Candeias, A. (2007) A criatividade enquanto dinamismo de
desenvolvimento e de expansão da consciência. In, V. Trindade, N. Trindade & A.A.
Candeias (Orgs.). A Unicidade do Conhecimento. Évora: Universidade de Évora.
O novo paradigma científico, mais holístico e menos mecanicista, teve, em
Psicologia, claros reflexos nas correntes Humanista e Transpessoal, sobretudo pela
permeabilidade destas ao diálogo com outras áreas do saber e pela flexibilidade e
abrangência das suas visões antropológicas. É assim que nestas duas áreas vamos
encontrar os trabalhos que, não fugindo do rigor conceptual e metodológico a que
obriga o procedimento científico, mais proximamente vão situar‐se daquele
«estudo da alma» em torno do qual, como vimos, se organizava a Psicologia
filosófica.
Querendo nós reaproximar‐nos desse «estudo da alma», observando de que
modo melhor se reflecte na Psicologia científica dos nossos dias, consideramos
imprescindível a focalização nos conceitos de criatividade e desenvolvimento,
também eles alvo preferencial dos estudos humanistas e transpessoais, por ambos
terem subjacente uma concepção maximamente aberta do ser humano.
Assim, o presente trabalho tem como objectivo ensaiar uma compreensão global
do fenómeno da criatividade à luz de algum do pensamento de várias figuras
marcantes da Psicologia Humanista e/ou da Psicologia Transpessoal. Defender‐se‐
á, através de um entrecruzamento de ideias de Carl Rogers, Abraham Maslow, Carl
Jung, Ken Wilber, Viktor Frankl e Mihaly Csikszentmihalyi, que a criatividade é um
dinamismo indissociável do processo de desenvolvimento humano integral, sendo
que a conceptualização dos mecanismos subjacentes a esse processo e a descrição
das etapas de que se compõe – aspectos estes a que dedicaremos a nossa atenção –
se revestem do mais vivo interesse, dado que através do seu conhecimento e do
reconhecimento da sua preponderância (que pretendemos demonstrar) se chega
ao esclarecimento de como pode ser concretizado o potencial de desenvolvimento
da pessoa. Desse modo, ainda, se acaba igualmente por circunscrever os alicerces
de uma visão mais rica e fecunda dos próprios conceitos de criatividade e
desenvolvimento.
Carl Rogers, no seu livro Tornarse Pessoa (1977), oferece‐nos uma visão
bastante interessante acerca da criatividade. Para Rogers, a criatividade consiste
fundamentalmente no surgimento, no contexto da acção de uma pessoa, de uma
construção nova resultante da interacção entre a própria pessoa, enquanto ser
único que tem uma forma particular de ser e de exprimir‐se, e todo o meio que a
envolve e serve de enquadramento para a sua experiência, contexto que se compõe
de «materiais, acontecimentos, pessoas ou circunstâncias de vida» (1977, p. 301).
O carácter de novidade sempre ligado aos produtos chamados criativos deriva,
simplesmente, da presença de uma subjectividade a agir num momento particular,
dirigida para a transformação de materiais específicos. Quer isto dizer que para
Rogers a novidade está muito mais dependente de uma circunstancialidade
______________________________________________________________________
2
FERREIRA, M. & Candeias, A. (2007) A criatividade enquanto dinamismo de
desenvolvimento e de expansão da consciência. In, V. Trindade, N. Trindade & A.A.
Candeias (Orgs.). A Unicidade do Conhecimento. Évora: Universidade de Évora.
relacional do que de um reconhecimento social de um eventual produto. Podemos
então considerar que a novidade, a diferença, é introduzida sobretudo quando a
pessoa se exprime, i. e. no processo de expressão, muito mais do que quando essa
expressão inevitavelmente se concretiza num produto acabado. Assim, o produto
surge como rasto, indício de um acontecimento, e interessa sobretudo enquanto
pista conducente à reactualização desse acontecimento, desse processo que o
engendrou e pode vir a estar na origem de novos produtos. A novidade surge
então, para Rogers, sempre que a pessoa imprime uma marca distintiva sua num
determinado produto, que é, evidentemente, o resultado da interacção entre a
pessoa e os materiais que lhe serviram de base para fazer emergir esse produto.
Outra importante ideia que deve ser acentuada é a de que sem a manifestação
da singularidade do ser a criatividade não surge. Para que algo novo surja, no
sentido que Rogers atribui ao conceito de «novidade», tem de haver uma
singularidade a manifestar‐se enquanto tal, a ser enquanto tal, a reconhecer‐se
enquanto tal. Caso se perca a sintonia com esse elemento de singularidade, então
não haverá criatividade, mas rotina, e a pessoa, afastada da sintonia com a sua
singularidade, não será capaz de produzir coisas novas.
Rogers pode elucidar‐nos também quanto ao que aqui entendemos por
«singularidade» quando reflecte acerca da motivação que subjaz à criatividade.
Para ele, o mecanismo que reside na origem da criatividade – e também do próprio
processo curativo ao nível da psicoterapia – é «a tendência do homem para se
realizar a si próprio, para se tornar no que em si é potencial» (Rogers, 1977, p.
302). Ora, a singularidade de um ser humano, como a entendemos, consiste
precisamente na ligação da pessoa a esse movimento de realização do que em si é
potencial, e manifesta‐se quer através do processo de a pessoa se tornar nela
mesma, quer através da consciência que se desenvolve acerca desse processo.
Quando não há, por parte da pessoa, sintonia com essa dimensão de inscrição num
processo de desenvolvimento pessoal, então, com o esbatimento da singularidade,
dá‐se o afastamento da criatividade.
Vemos que a criatividade surge como expressão desta tendência do ser humano
para ser mais ele mesmo. Quando produz coisas novas e passa a relacionar‐se de
novas formas com o meio envolvente, o ser não está a fazer mais do que a
mergulhar no processo de tornar‐se ele mesmo, de pôr em acto aquilo que em si é
______________________________________________________________________
3
FERREIRA, M. & Candeias, A. (2007) A criatividade enquanto dinamismo de
desenvolvimento e de expansão da consciência. In, V. Trindade, N. Trindade & A.A.
Candeias (Orgs.). A Unicidade do Conhecimento. Évora: Universidade de Évora.
potencial. Este processo de desenvolvimento passa por uma expansão, um
alargamento das capacidades do ser, e a expressão pessoal através de produtos é
apenas a consequência natural desse processo que consiste em ser aquilo que, de
algum modo, já se é. Essa expressão, à medida que o processo decorre e evolui, vai‐
se complexificando cada vez mais, mas o que nos parece fundamental é observá‐la
– à expressão, ao produto criativo – enquanto testemunho de um processo em
curso no qual o ser se encontra em aproximação de si mesmo.
Tendo em conta o que até agora foi dito, consideramos justo afirmar que ser
criativo é lançar o ser no fazer. Uma definição tão simples como esta contém em si
um larguíssimo espectro de implicações. Por exemplo, a de que se pode ser criativo
em qualquer área da vida, em qualquer momento, em qualquer lugar, desde que se
aja inscrito, ou em sintonia, com essa tendência para se realizar a si mesmo. Ou
ainda a de que quando ser e fazer coincidem, ou quando entre ambos se estabelece
uma harmonia, então deixa de fazer sentido a distinção entre sujeito e objecto, uma
vez que um e outro passam a estar totalmente envolvidos num mesmo dinamismo
de desenvolvimento dentro do qual ambos se derramam um no outro, quase como
se de uma relação amorosa se tratasse.
A segunda das condições para uma criatividade construtiva é a existência de um
centro interior de apreciação, i. e., o facto de a pessoa se sentir aquela que
activamente, mais do que ninguém, valoriza aquilo que faz, na medida em que
aquilo que faz é expressão de uma actualização das suas potencialidades. A
satisfação com a criação vem do interior, e não do exterior (Rogers, 1977, pp. 305‐
306).
______________________________________________________________________
4
FERREIRA, M. & Candeias, A. (2007) A criatividade enquanto dinamismo de
desenvolvimento e de expansão da consciência. In, V. Trindade, N. Trindade & A.A.
Candeias (Orgs.). A Unicidade do Conhecimento. Évora: Universidade de Évora.
Entendido o dinamismo da criatividade como inscrição do ser na tendência para
se realizar a si mesmo, para se tornar naquilo que em si é potencial, e conhecidas
as principais condições que, de acordo com Rogers, estão associadas à criatividade
socialmente construtiva, iremos agora deter‐nos nalguns aspectos importantes
deste processo de desenvolvimento.
Abraham Maslow, que estudou a fenomenologia das chamadas experiências de
pico, ou experiências de topo, propôs, na sequência desse estudo, uma revisão do
conceito de auto‐actualização, no sentido de que se passasse a considerar a auto‐
actualização não como um patamar rígido, a que apenas alguns têm acesso, mas
sim como um episódio, que pode surgir na vida de qualquer pessoa, a qualquer
momento, em que os potenciais dessa pessoa se realizam de uma forma
particularmente eficiente e intensamente gratificante, e em que a pessoa se
encontra mais integrada e menos dividida, mais aberta à experiência, mais
expressiva, espontânea e idiossincrática, mais criativa e mais distante das suas
necessidades ligadas ao preenchimento de um défice. Segundo Maslow, nestes
episódios de auto‐actualização pode dizer‐se que as pessoas são mais elas mesmas,
encontrando‐se mais perto de realizar as suas potencialidades, e mais perto do
núcleo do seu ser (Maslow, 1998, p. 106).
O que, para o autor, constitui o factor de distinção entre as pessoas auto‐
actualizadoras e as restantes é o facto de na vida das pessoas auto‐actualizadoras
os episódios de auto‐actuali‐zação surgirem com muito mais frequência e serem
bastante mais intensos e completos do que em pessoas que não são consideradas
auto‐actualizadoras (Maslow, 1998, p. 106).
Através desta ideia, que corrobora de certo modo a ideia de Rogers da
universalidade da motivação para a auto‐realização do potencial humano,
percebemos que o processo de auto‐actualização, encontrando‐se aberto a todas as
pessoas, nem em todas elas encontra plena concretização. Para que isso aconteça,
para que esse processo se plenamente desenvolva, é necessário que comece a
enraizar‐se na vida um padrão de experiências de auto‐actualização.
Interrogamo‐nos agora acerca da natureza deste processo. Portanto, ao invés de
nos centrarmos nalgumas das principais características das experiências de topo
______________________________________________________________________
5
FERREIRA, M. & Candeias, A. (2007) A criatividade enquanto dinamismo de
desenvolvimento e de expansão da consciência. In, V. Trindade, N. Trindade & A.A.
Candeias (Orgs.). A Unicidade do Conhecimento. Évora: Universidade de Évora.
às quais Maslow extensamente se refere (e. g., Maslow, 1998, pp. 83‐111; pp. 115‐
125), vamos antes deter‐nos no movimento de individuação descrito por Carl Jung,
crendo que alguns dos conceitos propostos por este autor podem elucidar‐nos
acerca do modo como se engendra esse padrão de experiências de auto‐
actualização.
Para Jung, o processo de individuação é um «processo psicológico que conduz,
tendencialmente, cada ser humano à realização consciente e plenamente cumprida
de si mesmo como um ser único» (Proença, 2003, p. 27). Este processo tem como
ponto culminante a abertura a um centro psíquico diferente daquele do ego. Este
novo centro psíquico, que transcende o ego, é por Jung designado Si‐Mesmo.
Enquanto o ego pode ser considerado como o «centro da personalidade consciente,
a sede da identidade subjectiva» (Proença, 2003, p. 27), o Si‐Mesmo é, por sua vez,
«o centro ordenador e unificador da psique total, consciente e inconsciente, a sede
da identidade objectiva, a divindade empírica interna, equivalente à imago Dei. É a
fonte central (não nascente...) de energia de vida. É a vivência psíquica que o
homem pode ter da divindade» (Proença, 2003, p. 28).
Ora, o modo como este eixo ego / Si‐Mesmo pode consolidar‐se passa pelo
desenvolvimento de uma leitura simbólica da realidade e dos conteúdos oníricos,
tendo em consideração que a pressão do Si‐Mesmo para se manifestar e entrar na
vida consciente se exerce em todas as áreas da vida. Deste ponto de vista, os
acontecimentos da existência passarão a ser lidos como símbolos que remetem
para aspectos diversos da busca de um novo centro para a personalidade, mais
vasto e abrangente que o ego. Note‐se que o Si‐Mesmo não vem excluir nem
diminuir o ego, mas antes dar‐lhe a vitalidade necessária para que possa
desempenhar eficazmente o seu papel de mediador dessa estrutura mais vasta que
é o Si‐Mesmo.
Segundo cremos, esta visão simbólica da realidade, tal como aqui a
descrevemos, à luz da perspectiva jungiana, pode ser considerada como o
mecanismo facilitador da ocorrência de experiências de auto‐actualização.
Propomos que o Si‐Mesmo jungiano seja aproximado da noção de motivação básica
para a realização do potencial por parte do ser humano, passando a coincidir com a
máxima realização desse potencial. Assim, as experiências de auto‐actualização, ou
de auto‐realização, entendidas como experiências de construção e fortalecimento
do eixo ego / Si‐Mesmo, e que teriam nas experiências de pico descritas por
______________________________________________________________________
6
FERREIRA, M. & Candeias, A. (2007) A criatividade enquanto dinamismo de
desenvolvimento e de expansão da consciência. In, V. Trindade, N. Trindade & A.A.
Candeias (Orgs.). A Unicidade do Conhecimento. Évora: Universidade de Évora.
Maslow umas das suas mais intensas expressões, seriam facilitadas através do
exercício desta leitura simbólica da realidade, sob a pressão desenvolvimental do
Si‐Mesmo, em pleno processo de individuação. Assim, consideramos o processo de
auto‐actualização, ou auto‐realização, e o processo de individuação, como
conceitos intermutáveis.
Coloca‐se agora, justamente, uma pergunta: qual é o lugar da criatividade neste
cenário? Ora, a criatividade, tal como Rogers a entende, queremos nós aproximá‐la
desta visão simbólica da realidade a que fazemos menção. Sendo um dinamismo de
transformação da realidade, com a criação de produtos novos, e tendo como
principal motivação a realização de todo o potencial da pessoa, se considerarmos o
fortalecimento do eixo ego / Si‐Mesmo como o mais significativo processo da vida
psíquica, em que o potencial humano é maximamente actualizado, então a
criatividade confundir‐se‐á com o exercício dessa visão simbólica, tendendo para a
constante escuta dos apelos que o Si‐Mesmo lança ao ego no sentido da
consolidação dos seus alicerces. Deste modo, a criatividade aprofundar‐se‐ia como
expressão de uma busca, a busca desse novo centro psíquico, o Si‐Mesmo, sendo ao
mesmo tempo o veículo de realização dessa busca. Cada produto criativo seria o
indício da vitalidade da visão simbólica à procura da amplificação do espaço de
abertura do ego ao Si‐Mesmo, enquanto que o processo criativo funcionaria como
via de integração mais eficaz e profunda nessa estrutura mais vasta.
CRIATIVIDADE E AUTOTRANSCENDÊNCIA
Na sequência do conceptualização que fazemos da criatividade, olhando‐a como
força tendencialmente posta ao serviço da manifestação do Si‐Mesmo, e
percebendo‐a assente sobre uma visão simbólica do mundo através da qual a
atenção à realidade interna e externa se torna capaz de discriminar estímulos que,
sendo lidos à luz desse dinamismo axial do psiquismo que é a realização do
máximo potencial da pessoa, i. e., a abertura ao contacto com o Si‐Mesmo, se
revelam fecundos e construtivos, com o poder de operar mudanças muito
significativas na vida da pessoa, cabe‐nos interrogar todo este dinamismo na
tentativa de nele identificarmos processos essenciais que nos levem a melhor
compreendê‐lo.
Viktor Frankl desenvolve na sua obra dois conceitos que nos parecem ser
fundamentais para esta compreensão que pretendemos aprofundar: a
autotranscendência e a vontade de sentido. A autotranscendência é, de acordo com
Frankl (1990), essa faceta do ser humano que corresponde à sua vontade de ir
além de si mesmo. Para Frankl, a auto‐realização da pessoa, ou auto‐actualização, é
algo só possível pela autotranscendência, pela transcendência de si (1990, p. 30).
Só se cumpre a pessoa que apontar para além de si própria. E também a identidade
é, segundo o autor, algo que só se consolida graças à autotranscendência.
A autotranscendência mais não é do que uma decorrência de uma original
vontade de sentido que aparece no ser humano como algo de estrutural e
______________________________________________________________________
7
FERREIRA, M. & Candeias, A. (2007) A criatividade enquanto dinamismo de
desenvolvimento e de expansão da consciência. In, V. Trindade, N. Trindade & A.A.
Candeias (Orgs.). A Unicidade do Conhecimento. Évora: Universidade de Évora.
elementar (Frankl, 1982, p. 99). É através da autotranscendência que essa basilar
vontade de sentido se exerce e cumpre. E este apontar para além de si próprio, esta
autotranscendência, acaba por ter a sua concretização global no serviço de uma
causa ou no amor de uma pessoa, repousando sobre a capacidade de perceber os
sentidos subjacentes às diversas etapas e situações de vida. Para Frankl, o sentido
é algo objectivo, algo que emerge da existência e a confronta. Por isso, não pode ser
dado, mas apenas encontrado. Uma vez encontrado o sentido de algo, a realização
desse sentido passará pela autotranscendência, em que o ser humano de algum
modo se perde para ir encontrar‐se à medida que se põe em marcha rumo a esse
sentido que o ultrapassa (Frankl, 1982, p. 100).
Sublinhada então a ideia de que, para Frankl, a autotranscendência é o processo
que garante a auto‐realização do ser humano e a consolidação da estrutura
identitária, propomos que se alargue a nossa compreensão da criatividade tendo
também em conta o contributo teórico dado por este autor.
A criatividade entendemo‐la então como um processo em que está envolvida a
autotranscendência. O ser humano criativo deixa de estar dobrado sobre si
próprio, mas transcende‐se, criando. Através da sua criação, reinaugura
constantemente uma visão tendencialmente simbólica da realidade, que o coloca
na esteira do encontro com o Si‐Mesmo. Enquanto cria, realiza ao mesmo tempo
esse sentido supremo que é colocar‐se na presença de uma estrutura identitária
mais vasta, e a sua criação confunde‐se com a entrega a algo que o ultrapassa.
Deste modo, auto‐realiza‐se.
______________________________________________________________________
8
FERREIRA, M. & Candeias, A. (2007) A criatividade enquanto dinamismo de
desenvolvimento e de expansão da consciência. In, V. Trindade, N. Trindade & A.A.
Candeias (Orgs.). A Unicidade do Conhecimento. Évora: Universidade de Évora.
Ken Wilber chama a atenção para a existência de vários estádios no
desenvolvimento da consciência do Si‐Mesmo (Proença, 2003), no sentido da sua
expansão. De acordo com Wilber, a percepção do Si‐Mesmo progride através de
estados de consciência cada vez mais diferenciados, à medida que se processa a
evolução para uma consciência mais ampla da totalidade em que consiste essa
estrutura identitária.
Proença (2003), reflectindo acerca do desenvolvimento da identidade, nota que,
na infância, o ego tende a emergir, através de um processo de diferenciação, de um
Si‐Mesmo primordial, oceânico. O culminar de todo este processo são as
experiências de pico transpessoais em que o Si‐Mesmo transcende os limites de
um ego organizado. Entre um e outro extremo do continuum há uma série de
experiências de identificação pelas quais a pessoa vai passando, mais ou menos
egocentradas (Proença, 2003, p. 29).
Por último, deparamo‐nos com um estado de consciência unitiva, em que se
passa do domínio da psique para o domínio da vivência mística, da pura
consciência. Trata‐se aqui, segundo Proença, de um estado absoluto de ser, em que
só a pura Consciência de Ser se manifesta, acedendo‐se a uma identidade radical
total (Proença, 2003, p. 29).
______________________________________________________________________
9
FERREIRA, M. & Candeias, A. (2007) A criatividade enquanto dinamismo de
desenvolvimento e de expansão da consciência. In, V. Trindade, N. Trindade & A.A.
Candeias (Orgs.). A Unicidade do Conhecimento. Évora: Universidade de Évora.
que são designados com o nome de várias cores e se encontram divididos em dois
grupos. O que estes estádios basicamente descrevem são diferentes modos,
progressivamente mais sofisticados, à medida que se avança na espiral, de
estruturação do pensamento e da consciência – em síntese, referem‐se a
mundividências e a características das estruturas identitárias das pessoas. Os
primeiros seis níveis (bege, púrpura, vermelho, azul, laranja e verde) são
chamados níveis de subsistência, e configuram um pensamento dito de primeira
camada. Os restantes níveis (amarelo, turquesa e, na proposta de Wilber, coral) são
os níveis de ser, dos quais emerge um pensamento de segunda camada. Não
querendo nós deter‐nos na explicitação exaustiva das características de todas as
ondas de existência, importa sublinhar a diferença entre os níveis de primeira e de
segunda camada. De acordo com Wilber, enquanto que os memes de primeira
camada não podem reconhecer plenamente a existência dos outros memes (e. g., se
um determinado grupo de pessoas se encontra num meme de primeira camada,
não terá a capacidade de perceber que um outro grupo de pessoas possa situar‐se
noutro, indo fazer tudo para adaptar a realidade à medida das características do
seu próprio pensamento). Estes memes caracterizam‐se, com efeito, por bastante
rigidez e dificuldade na aceitação da diferença. Já nos memes de segunda camada o
que sucede é a emergência da capacidade para olhar para a espiral de
desenvolvimento na sua totalidade, sem a fixação rígida num qualquer nível. O
aspecto fundamental do pensamento de segunda camada reside no seu holismo
(ou integralismo, como prefere chamar‐lhe Wilber), já que agora a existência de
cada meme é aceite e vista como necessária para a completação de todo um
percurso desenvolvimental (Wilber, 2005, p. 35).
Os memes de segunda camada coincidiriam, como sugere o próprio Wilber, com
a consideração de uma dimensão transpessoal da existência (2005, p. 37), e,
acrescentamos nós, com a irrupção de espaço no psiquismo para a manifestação da
estrutura identitária do Si‐Mesmo, ela própria passível de uma separação em
diferentes graus, o mais elevado dos quais associado, como vimos, à
transpessoalidade.
Esta breve referência ao pensamento de Wilber fazemo‐la apenas para destacar
a importância da consideração dos níveis para que tende a auto‐realização do ser
humano. A criatividade, como dinamismo intimamente ligado a esse processo de
auto‐realização, vai ser também um mecanismo posto ao serviço deste caminho de
integração em níveis cada vez mais expandidos de consciência na aproximação ao
Si‐Mesmo, culminando na experiência do Si‐Mesmo transpessoal e,
tendencialmente, na vivência de estados místicos.
______________________________________________________________________
10
FERREIRA, M. & Candeias, A. (2007) A criatividade enquanto dinamismo de
desenvolvimento e de expansão da consciência. In, V. Trindade, N. Trindade & A.A.
Candeias (Orgs.). A Unicidade do Conhecimento. Évora: Universidade de Évora.
______________________________________________________________________
11
FERREIRA, M. & Candeias, A. (2007) A criatividade enquanto dinamismo de
desenvolvimento e de expansão da consciência. In, V. Trindade, N. Trindade & A.A.
Candeias (Orgs.). A Unicidade do Conhecimento. Évora: Universidade de Évora.
Csikszentmihalyi, no seu estudo do desenvolvimento da personalidade e da
estrutura egóica, acaba, com efeito, por acolher, embora sem o explicitar, o legado
do pensamento de Viktor Frankl. De facto, o autor de que agora nos ocupamos, ao
definir um perfil de pessoa T, ou transcendente, que corresponde ao nível mais
elevado do desenvolvimento da personalidade, associado à capacidade de ir além
de si mesmo, de transcender, acolhendo em si a alteridade, os outros e o mundo, e
encontrando fluxo em actividades construtivas, capazes de aumentar o grau de
harmonia e ordem do mundo interno de cada um e da própria sociedade (1998, pp.
200‐238), não está a fazer mais do que assumir o carácter primacial da vontade de
sentido e da autotranscendência, do pôr‐se todo ao serviço dos outros e / ou duma
causa.
As pessoas T seriam, portanto, pessoas maximamente capazes de exprimir a sua
criatividade, pessoas em sintonia com a Dinâmica da Espiral, já situadas num
pensamento de segunda camada; pessoas, enfim, abertas à emergência duma
estrutura identitária expandida, o Si‐Mesmo, e tendencialmente aptas a uma
imersão em estados amplificados de consciência.
CONCLUSÃO
Através do itinerário efectuado ao longo do presente trabalho pretendeu‐se
desenhar as fronteiras de um território que faz a Psicologia contemporânea
aproximar‐se, sem prejuízo das exigências do rigor científico, daquelas que eram
as motivações fundamentais da Psicologia filosófica, nomeadamente o estudo da
alma.
A particular articulação de conceitos de diversos autores que foi sendo proposta
e esboçada fez‐se no sentido de enfatizar o movimento de valorização da pessoa e
do seu potencial de desenvolvimento, particularmente visível nas correntes
Humanista e Transpessoal da Psicologia.
______________________________________________________________________
12
FERREIRA, M. & Candeias, A. (2007) A criatividade enquanto dinamismo de
desenvolvimento e de expansão da consciência. In, V. Trindade, N. Trindade & A.A.
Candeias (Orgs.). A Unicidade do Conhecimento. Évora: Universidade de Évora.
criatividade e do desenvolvimento, ao mesmo tempo que identificadas as bases
dessa complementaridade, o que ressalta deste trabalho é sobretudo o contributo
para uma proposta de profunda revalorização da imagem da pessoa em todas as
formas de Psicologia aplicada. Esta revalorização passará pelo privilégio dado à
importância do exercício da criatividade, uma vez percebida a sua centralidade no
próprio desenvolvimento da pessoa, i. e., no cumprimento de si mesma.
Relativamente à forma exacta das práticas psicológicas capazes de concretizar o
exercício da criatividade olhada do ponto de vista em que nos situamos, conclui‐se
que elas deverão, para além do seu desenho específico que não nos cabe aqui
definir, ir no sentido de auxiliar a pessoa, caso a isso esteja receptiva e caso isso se
revele necessário, a redefinir o próprio modo como a si mesma se olha. Esta
redefinição da auto‐percepção, que deverá incluir por parte da pessoa a
consideração da sua capacidade para a autotranscendência e o avistamento das
possibilidades evolutivas da consciência humana, será o primeiro passo, sobretudo
de carácter preparatório, na senda do desenvolvimento e expansão da consciência
sobre os quais nos debruçámos. Assim, este estudo poderá modestamente
concorrer para a construção de uma prática psicológica mais holística e
totalizadora, em benefício, afinal, da própria pessoa.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
CSIKSZENTMIHALYI, MIHALY (1998). [Novas Atitudes Mentais] (Mário Dias Correia,
Trad.). Lisboa: Círculo de Leitores. (Original publicado em língua inglesa,
1993);
FRANKL, VIKTOR (1982). [Man's Search For Meaning: An Introduction to Logotherapy]
(Ilse Lasch, Trad.). London: Beacon Press. (Original publicado em língua
alemã, 1946);
FRANKL, VIKTOR (1990). [A Questão do Sentido em Psicoterapia] (Jorge Mitre, Trad.).
Campinas, SP: Papirus Editora. (Original publicado em língua alemã, 1981);
ROGERS, CARL (1977). [Tornarse Pessoa] (4.ª ed.) (Manuel José do Carmo Ferreira,
Trad.). Lisboa: Moraes Editores. (Original publicado em língua inglesa, 1961);
______________________________________________________________________
13