You are on page 1of 54

Projeto

PERGUNTE
E
RESPONDEREMOS
ON-LINE

Apostolado Veritatis Spiendor


com autorizagáo de
Dom Estéváo Tavares Bettencourt, osb
(in memoriam)
APRESErsTTAQÁO
DA EDigÁO ON-LINE
Diz Sao Pedro que devemos
estar preparados para dar a razáo da
nossa esperanga a todo aquele que no-la
pedir (1 Pedro 3,15).

Esta necessidade de darmos


conta da nossa esperanga e da nossa fé
hoje é mais premente do que outrora,
'.'■" visto que somos bombardeados por
numerosas correntes filosóficas e
religiosas contrarias á fé católica. Somos
assim incitados a procurar consolidar
nossa crenga católica mediante um
aprofundamento do nosso estudo.

Eis o que neste site Pergunte e


Responderemos propóe aos seus leitores:
aborda questóes da atualidade
controvertidas, elucidando-as do ponto de
vista cristáo a fim de que as dúvidas se
dissipem e a vivencia católica se fortalega
no Brasil e no mundo. Queira Deus
abengoar este trabalho assim como a
equipe de Veritatis Splendor que se
encarrega do respectivo site.

Rio de Janeiro, 30 de julho de 2003.

Pe. Esteváo Bettencourt, OSB

NOTA DO APOSTOLADO VERITATIS SPLENDOR

Celebramos convenio com d. Esteváo Bettencourt e


passamos a disponibilizar nesta área, o excelente e sempre atual
conteúdo da revista teológico - filosófica "Pergunte e
Responderemos", que conta com mais de 40 anos de publicagáo.
A d. Esteváo Bettencourt agradecemos a confiaga
depositada em nosso trabalho, bem como pela generosidade e
zelo pastoral assim demonstrados.
ÍNDICE
PÚE-

L FILOSOFÍA E RELIGIAO

1) "Que quer dizer a Liberdade Religiosa afirmada pelo


Concilio do Vaticano II ?
Nao é fator de indiferentismo e relativismo religiosos ?" ... 1

IL SAGRADA ESCRITURA

2) "Existem realmente arijos í Hoje em dia dizse que sao


figuras de poesía ou mito, que a desmitizacáo do Novo Testamento
já elimñtou," 1S

S) "Que dizer da desmitizagáo da S. Escritura proposta por


Rndolf Bultmann ?

Nao será preciso eliminar as imagens da Biblia ?" 18

III. DOGMÁTICA

i) "Poderia um ateu salvarse, ou seja, conseguir a uniáo


com Deus na etemidade após urna vida sem, fé aqui na térra ?" .. 28

IV. EDUCACAO

5) "O livro de Alexandre Neül 'Liberdade sem médo' é nm


succsso.

Em Summerkül renovase a edticacSo, removendose tabus" .. SU

V. PSICOLOGÍA E MORAL

6) "O transplante de coracáo de urna pessoa para outra nao


implica em transfusáo de pensamentos e afetos 1

O homem que viva com coracáo de mulher, continuará a amar


como homem ?" i6

COM APROVACAO ECLESIÁSTICA


PERGUNTE E RESPONDEREMOS»

Ano IX — N? 97 — Janeiro de 1968

I. CIENCIA E RELIGIÁO

1) «Que quer dizer a Liberdade Religiosa afirmada pelo


Concilio do Vaticano II?
Nao é fator de indiferentismo e relativismo religiosos ?»

«Liberdade Religiosa» é realmente um tema delicado, que


se presta a equívocos; foi juntamente com a colegialidade dos
Bispos o ponto mais debatido ñas sessóes do Concilio do Vati
cano II.

O documento conciliar referente a éste assumo passou par seis


redactes e acalorados debates. Todavía em sua fase final foi aprovado
por 2.308 votos contra 70. O texto comeca pelas palavras «Dignitatis
humanae»; por isto será citado abaixo pela sigla DH, seguida do nú
mero do respectivo parágrafo.

Era necessário que o Concilio abordasse o assunto, pois


na presente fase da historia cerca de metade do género hu
mano, vivendo sob regime governamental ateu, nao goza de
liberdade no setor religioso. — Além disto, certos fatos de
sáculos passados pareciam exigir que a Igreja se manifestasse
a propósito neste sáculo XX, quando os homens procuram
reconsiderar a historia com objetividade, mais e mais cons
cientes da dignidade humana. Tenha-se em vista, por exemplo,
o adagio vigente no séc. XVI «Cuius regio, eiüs religio», segun
do o qual a Religiáo de um soberano civil passava a ser a
do respectivo territorio.

A Declaracáo do Vaticano II sobre Liberdade Religiosa dirige-se


a todos os homens; por isto em sua primeira parte recorre a argu
mentos estritamente filosóficos ou racionáis. Abaixo examinaremos
o significado de tais argumentos.

— 1 —
2 «PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 97/1968, qu. 1

Para que se entenda devidamente o assunto, faz-se mister, an


tes do mais, interrogar:

1. Que nao significa Liberdade Religiosa ?

A expressáo pode sugerir (e tem sugerido) que o


Concilio haja declarado legítimo o indiferentismo em assuntos
religiosos: doravante a Igreja nao incutiria mais a necessidade
de chamar todos os homens ao Catolicismo, nem mesmo faria
questáo de apregoar a Religiáo.

Ora, justamente a fim de evitar tal interpretacáo, os Pa


dres conciliares quiseram acrescentar ao título do documento
o seguinte subtítulo :

«O direito da pessoa e das comunidades á liberdade social


e civil em materia religiosa».

A expressáo «social e civil» define claramente o pensamen-


to da Igreja.

a) O adjetivo social mostra que se trata de liberdade


frente as sociedades humanas-, nao frente á Religiáo como
tal ou a Deus. Nem os individuos nem as sociedades tém o
direito de interferir violentamente na consciéncia dos homens,
impelindo-os a tal ou tal atitude religiosa ou irreligiosa.

Por conseguinte, o Concilio nao quis sancionar o indiferen


tismo religioso segundo o qual o homem frente a Deus e a
Religiáo nao tem obrigac.óes, e obrigacóes bem precisas. Ao
contrario, assevera DH, todo ser humano em consciéncia está
obrigado a procurar a verdade em materia de Religiáo e a
orientar toda a sua vida segundo as normas da verdade religiosa.

Eis as palavras de DH 2 :

«Em virtude da sua própria dignidade, os homens todos — por


serem pessoas, isto é, seres dotados de razáo e de livre arbitrio e
por isto mesmo enaltecidos com responsabiltdade pessoal — sao im
pelidos por sua natureza mesma e obligados por um dever moral a
procurar a verdade, principalmente a que concerne a Religiáo. Es-
tSo obrigados também a aderir á verdade conhecida e a ordenar
toda a sua vida segundo as exigencias da verdade».

Bem se compreendem estas aíirmacSes: a verdade religiosa e a


uniáo com Deus sao elementos vitáis para que o homem se realize;
a lrreligiáo é, objetivamente íalando, contraria & própria natureza
humana. A Religiáo pode ser comparada com a alimentará o q a res-
piracáo do corpo, funcdes sem as quais nenhum homem sobrevive.
— Donde se vé que seria absurdo declarar que o homem possui liber-

2
LIBERDADE RELIGIOSA

dade para nao ter Religiáo ou para ser agnóstico, materialista, ateu...
Isto equivaleria a afirmar que o cidadao possui liberdade para nao res
pirar ou nao comer a seu belprazer (um Congresso de médicos ou
filósofos nunca faria tal pronunciamento). A liberdade nao íoi dada
ao homem para que se suicide, mas para que se aperfeicoe e consu
me tanto na vida corporal como na espiritual.

Por conseguinte, o Vaticano II de modo nenhum quis dizer


que o indiferentismo religioso é atitude lícita; a própria natu-
reza humana, em nome do que ela tem de mais digno, o repele.
Dito isto, surge a questáo : «Digamos que a Religiáo é
necessária... Nao quis, porém, o Concilio declarar que qual-
quer forma de Religiáo é boa e que, por conseguinte, nao se
deve fazer distincáo entre os diversos credos ?»

— Para responder a esta dúvida, retomemos a compa-


rasáo com o alimento.

É necessário que o homem se alimente para viver... Mas


nem por isto todos os alimentos sao bans, nem todos sao
equivalentes: há o que se chama urna alimentagáo sadia e,
ao lado desta, urna longa escala de alimentos nao sadios (dete
riorados, putrefeitos, tóxicos, venenosos, proibidos...); por
conseguinte, quando se diz que o homem tem o dever de se
nutrir, quer-se dizer que deve tomar alimentagáo sadia, ade-
quada, excluindo-se naturalmente o alimento que seja tóxico
ou deteriorado (pseudo-alimentos).

Ora algo de análogo se dá no setor religioso: existe a


Religiáo e, ao lado déla, urna serie de sistemas religiosos, que
apresentam um núcleo maior ou menor de verdade, núcleo,
porém, envolvido em desvíos e crendices. Só existe urna Reli
giáo verídica, a saber: aquela que, brotando da natureza huma
na, foi confirmada pela própria Revelagáo divina feita a Abraáo,
aos Patriarcas, aos Profetas e, finalmente, ao género humano
inteiro por Jesús Cristo; cf. «P. R.» 11/1958, qu. 1.
Donde se depreende mais urna conclusáo ponderosa: assim
como ninguém proclama que ao homem foi dada a liberdade
para comer de toda e qualquer coisa que tenha aparéncia de
alimento, assim também o Concilio Ecuménico de modo ne
nhum quis dizer que o homem possui a liberdade para abragar
indiferentemente qualquer forma de religiáo. Todo homem tem
a obrigagáo natural de professar a Religiáo que, de fato, o
leva ao único Deus; e esta é a Religiáo ensinada pela Revelagáo
judaico-cristá e transmitida sem interrupgáo nem reforma até
nossos dias pelos Apostólos e seu sucessores diretos.

— 3 —
4 «PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 97/1968. qu. 1

O que acaba de ser exposto é explícitamente incutido pela De


clara gao conciliar no texto seguinte:
«Proíessa em primeiro lugar o Sacro Sínodo que o próprio Deus
manifestou ao género humano o caminho pelo qual os homens, ser-
vindo a Ele, pudessem salvar-se e tornar-se lelizes em Cristo Oremos
que essa única verdadeira Religiao se encontra na Igréja católica e
apostólica, a quem o Senhor Jesús coníiou a tarefa de difundi-la aos
homens todos... Por sua vez, estáo os homens todos obrigados a pro
curar a verdade, sobretudo aquela que diz respeito a Deus e a Sua
Igreja e, depois de reconhecé-la, a abragá-la e praticá-la...
Continua íntegra a tradicáo doutrinária católica sobre o dever mo
ral dos homens e das sociedades em relagáo á religiao e á única Igre
ja de Cristo» iDHl).

b) O adjetivo civil quer dizer que o Concilio só quis


tratar da liberdade no plano da sodedade civil, nao no das
sociedades religiosas. Em outros termos: a Liberdade Religiosa
nao significa que dentro das comunidades religiosas cada mem-
bro tenha liberdade para pensar ou fazer o que queira ; em
toda sociedade religiosa, e de maneira especial na Igreja Ca
tólica, deve haver obediencia alimentada pela fé.

Em tom do reprovacáo, o Concilio alude ao fato de que «nao


poucos homens se mostram propensos a recusar toda submissáo, sob
pretexto de liberdade, e a ,ter em pouca conta a obediencia devida»
(DH 8).

Pergunta-se agora:

2. Que significa a Liberdade Religiosa ?

Eis como o Concilio a apresenta :

«A liberdade religiosa consiste no seguinte: todos os homens de-


vem ser imunes de coac&o por parte tanto de pessoas particulares
como de grupos sociais e de qualquer poder humano, de modo que,
em assuntos religiosos, ninguém seja, dentro de justos limites, obri-
gado a agir contra.a sua consciéncia ou impedido de agir de ac&r-
do com ela, em particular ou em público, só ou associado a outros»
(DH 2).

Com outras palavras: Liberdade Religiosa significa o direi-


to que toda pessoa humana possui de julgar a questáo religiosa
e optar diante déla sem o mínimo constrangimento incutido
por outros individuos ou por grupos. Conseqüentemente, todo
individuo tem também o direito de professar e viver a sua
opcáo religiosa, isolada ou comunitariamente, sem a interfe
rencia de outros seres ou poderes humanos.

— 4 —
LIBERDADE RELIGIOSA

Pergunta-se naturalmente: em que se baseia o Concilio


para fazer tal afirmacáo ?

3. Os fundamentos da Liberdade Religiosa

O Concilio assinala como fundamentos do direito á Liber


dade Religiosa :

1) A dignidade da pessoa humana

1. Todo ser humano possui inteligencia e livre vontade,


que o levam naturalmente a agir com responsabilidade em
todos os setores, portante também no setor religioso. Conse-
qüentemente, deve-se reconhecer a todo homem o direito de
procurar por si a verdade em materia de Heligiáo, estudando
o assunto de acordó com a sua capacidade e comunicando-se
com outros homens, a fim de chegar á clareza. Urna vez reco-
nhecida a verdade religiosa (ou o que o sujeito julga sincera
mente ser a verdade religiosa), compete ao ser humano o
direito de aderir-lhe firmemente, pautando toda a sua conduta
de vida de acordó com a sua posigáo religiosa, tanto no setor
privado da familia, como nos setores públicos da educacjio,
da cultura, da vida social, da profissio civil, etc.

Já S. Agostinho dizia: «Aquéle que te fez sem ti, nao te salva


sem ti. Criou alguém que nao o sabia; ele salva a quem o quer»
(serm. 189, 11, 13).

Tal é, por certo, o sinal da mais elevada dignidade que


toca ao homem: ser, por natureza, o primeiro responsável
do seu destino «temo.

2. O direito á Liberdade Religiosa compete nao sómente


aos individuos, mas também aos grupos sociais. Com efeito, os
homens tém p direito natural de se associar em torno de um
ideal religioso (ou filosófico) e de realizar atds coletivos que
manifestem ésse ideal: atos externos de culto ou de pregacáo,
de caridade, de educacáo, etc.

3. Perguntar-se-á, porém: tal direito convém também


'ás pessoas e as sociedades que professam o erro em materia
religiosa? Será lícito aos adeptos de toda e qualquer crenca
efetuar suas cerimónias de culto e propagar falsas concepcóes
religiosas ?

— 5 —
6 «PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 97/1968, qu. 1

O Concilio, usando de sadia lógica, responde: o direito a


Liberdade Religiosa nao está baseado sobre tal ou tal estado
de consciéncia, mas sobre a consciéncia mesma. Ainda que esta
se ache mal informada e profira um juízo erróneo em materia
de religiáo, ela nao perde o direito de nao sofrer coacáo nem
obstáculo em sua profissáo religiosa. O direito á Liberdade
Religiosa nao está baseado ñas disposigóes subjetivas do indi
viduo, mas na própria natureza humana, que é comum a todos
os homens.

Em outras palavras: o erro nao tem direitos, deve ser profligado;


mas a pessoa que adota o erro, tem direitos (dentro dos limites que
adiante seráo considerados), direitos entre os quais está o da Li
berdade Religiosa. Ainda em outros termos: o direito á liberdade nao
é atribuido ao conteúdo das diversas crencas religiosas (nao depen
de de serem crencas verídicas ou nao), mas aos seres humanos que
professam determinadas atitudes religiosas.

Ésse «proíessar diversas atitudes religiosas» inclui também


o ateísmo. Éste pode ser a resposta que alguém, em consciéncia, jul-
gue dever dar a questáo religiosa. Com efeito, nao se pode, de an-
temáo, recusar que existam ateus sinceros ou ateus cuja consciéncia
leal tenha sido mal informada a respeito de Deus (e nao se possa In
formar melhor), de modo a denegar tranquilamente a existencia do
Criador. ,

Vé se, pois, que nao s3o as .religiOes como tais, nem a irreligiáo,
que tem o direito de se afirmar e propagar (a propagac&o de erros
religiosos ou do ateísmo é um mal, e um mal sem direitos, um mal
a ser profligado). Mas deve-se reconhecer que nao se pode empre-
gar violencia ou coacáo contra as pessoas que professam e querem
difundir o erro religioso, porque tais pessoas tém o direito de se
guir a sua consciéncia e de ser consideradas responsáveis em mate
ria religiosa.

É lícito, portante, (ou melhor, é obligatorio) combater


o erro em materia religiosa, mas nao por meios violentos,
e, sim, por recursos que correspondam á dignidade humana,
ou seja, pela pregagáo lúcida da verdade, pela apresentagáo
dos frutos da genuina religiáo, por eficiente organizacáo da
catequese, por sabio planejamento do apostolado, etc.

4. Deve-se aquí observar que a Igreja, declarando a


Liberdade Religiosa no sentido exposto, fez um pronunciameríto
«ousado e arriscado». Sim; Ela quis supor em todo homem
déste sáculo XX a lealdade e a sinceridade necessárias para
procurar a verdade sem subterfugios, sem covardia nem receio.
A Declaragáo de Liberdade Religiosa do Vaticano II é um
voto de confianga no homem de hoje; ela parte do principio
de que os homens contemporáneos querem realmente ser adul
tos no seu modo de pensar e agir ou, mais precisamente, que-

— 6 —
LIBERDADE RELIGIOSA

rem tomar atitudes conscientes em materia de religiáo; desejam


nao seguir tal ou tal forma de Religiáo por rotina, tradicüo
familiar, simpatia sentimental, nem ser ateus por motivos pre
concebidos ou por comodismo, por falhas .moráis, má vonta-
de... A S. Igreja, através do Vaticano II, supóe que todo
homem faga o esfórgo que lhe está ao alcance para poder justi
ficar conscientemente a sua posigáo religiosa ou o seu ateísmo.
A alegacáo «Nao sou religioso, porque a Religiáo nao me faz fal
ta» nao é um argumento racional; nao é resposta digna de um ser
inteligente, mas é a expressáo de comodismo que se recusa a exa
minar se Deus existe e deve ser cultuado ou nao.
Poder-seia dizer que realmente a humanidade contemporánea
corresponde a ésse voto de confianga do Vaticano II? Será que, de
maneira geral, os homens de hoje procuram ser responsáveis por
suas posigSes religiosas ou irreligiosas?
Parece que a resposta negativa se imp8e. Por conseguinte,. im-
póe-se também a educagao para a liberdade religiosa, de que abaixo
se fará mencao.

Embora nem todos os homens tenham multo tempo para es-


tudar a questao de Deus, pode-se crer que todos tém a ocasiáo de
procurar outros homens que lhes possam fornecer informacCes a
rcspeito. O problema de Deus aínda é mais importante do que os
problemas políticos, sociais. financeiros... que nenhum cidadao tem
o direito de ignorar.
Eis um segundo motivo para se apregoar a Liberdade Religio
sa:

2) O ato de fé deve ser livre

«É um dos pontos mais importantes da doutrina católica, con-


tido na Palavra de Deus e constantemente ensinado pelos Padres,
que a resposta de fé dada pelo homem a Deus deve ser volunta
ria- em conseqüéncia, ninguém deve ser coagido a abracar a fe
contra a sua vontade. Com eíeito, por sua natureza mesma, o ato de
fé é voluntario... Está, pois, em plena consonancia com a índole
da fé que em materia religiosa se exclua qualquer género de coacao
da parte dos homens» (DH 10).

Em outras palavras: o ato de fé é um obsequio livre e


racional prestado a Deus. Ora, se Deus mesmo quer que os
homens Lhe prestem livremente a sua adesáo, compreende-se
que com muito mais razóes os homens devem respeitar a
liberdade de cada consciéncia humana em materia religiosa.
Deve-se aínda mencionar

3) O testemunho das Escrituras Sagradas

A Declaracao DH dedicou os seus números 914 á fundamenta-


cao biblica da Liberdade Religiosa.
g «PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 97/1968, qu. 1

Eis como se resume a respectiva doutrina (contida em


cerne no n9 9) :

a) A revelagáo bíblica nao afirma expressamente o direito


a imunidade de coagáo em materia religiosa;
b) todavía póe em relevo a dignidade da pessoa humana
em toda a sua amplidáo;
c) mostra o respeito de Cristo para com a liberdade do
homem, chamado a aderir á Palavra de Deus pela fé ;
d) ela ensina assim qual deva ser o espirito dos discípulos
de tal Mestre.

Embora Cristo fósse Mestre e Senhor (cí. Jo 13, 13), nao quis
forcar as consciéncias dos que Ele convidava para o Reino. Renun-
ciou a um messianismo político (cí. Mt 4, 8-10; Jo 6,15) e aos meios
violentos (cf. Mt 26, 51-53; Jo 18, 36), fazendo^se manso e. humilde
(cí Mt 11 29). Sem dúvida, repreendeu severamente os incrédulos,
mas deixoú o castigo para o dia do juizo (cí Mt 11, 20. .24; Rom
12, 19s; 2 Tes 1, 8).
O procedimento de Cristo tornou-se modelo para os discípulos
do Senhor, que sempre procuraram p*ór em prática a norma do
Mestre: «Dai a Deus o que é de Deus, e a César o que é de César»
(Mt 22, 21).
Após propor os fundamentos do direito á Liberdade Religiosa,
examinemos

4. Os limites da Liberdade Religiosa e o papel do Estado

1. Compreende-se que os direitos de cada individuo na


sociedáde nao sejam ilimitados. Ao Estado compete intervir
no uso désses direitos, em vista dos interesses comuns da
populagáo.
Em se tratando de Religiáo, os Padres Conciliares levaram
em conta a tarefa regulamentadora do Estado. Todavia, como
criterio para intervengáo dos governos civis, nao quiseram indi
car a salvaguarda do bem comum, pois esta expressáo lhes
pareceu um tanto vaga. Preferiram, sim, recorrer ao criterio
da «justa ordem pública» (cf. n» 2, 3, 4 e 7).
E quais seriam os elementos constitutivos da justa ordem
pública ?

— O Concilio enuncia tres :


1) a salvaguarda dos direitos de cada cidadao. A urna
pessoa ou urna comunidade religiosa nao é lícito professar ou

— 8 —
LIBERDADE RELIGIOSA

praticar a sua religiáo de modo a impedir butras pessoas de


professar ou praticar a religiáo que em consciéncia abracaram;

2) a conservacáo da paz pública. Devem ser evitados os


litigios entre grupos religiosos;

3) a tutela da moralidad» pública. Se determinada crenca


religiosa impele a cerimónias obcenas ou a gestos desuníanos
(sacrificios de enancas...), o Estado tem o direito de a coibir.
2. Observe-se, parém, que, segundo o Vaticano n, aos gover-
nos elvis em materia religiosa nao compete apenas limitar os di
rectas dos cidadaos segundo as cláusulas ácima indicadas. A Decía-
ragao DH prop5e como Estado-modelo nao o Estado laicista e neu
tralista, mas o Estado que reconhece ter a obrigacáo de favore
cer a Religiáo (favorécela, porém, de modo correspondente á sua
natureza de Estado) ; duas, pois, sao as incumbencias do Estado
ideal segundo o Vaticano II:
a) proteger eficazmente o direito dos cidadaos á liberdade em
materia religiosa;
b) criar condlcfes propicias para que a populacho do país cum-
pra seus deveres religiosos com facilidade.
Em conseqüéncia, aqueles que aderem a verdadeira Religiao
terao larga possibilidade de a professar e difundir. Quanto aos que
estao no erro religioso, terao ampia ocasiao de descobrir a verdade.
«A sociedade poderá assim gozar dos beneficios da justica e da paz
que provém da fidelidatte dos homens a Deus e á sua santa von-
tade» (DH 6).

3. O documento conciliar admite outróssim que o Estado


possa favorecer de maneira especial a Religiáo que os cidadaos
do país, em sua quase totalidade, professem. É o que se dá
em Concordatas da Igreja Católica com certos governos civis.
Tais Concordatas bem se justificam. Com efeito, se ao Estado
cabe propiciar a Religiáo no país, a agáo do Estado deve estar
relacionada com o tipo de Religiáo que de fato é professáda
no país e com as manifestacóes dessa Religiáo na vida nacio
nal; conseqüentemente o Estado pode honestamente atender
de maneira especial aos costumes religiosos do grupo majori-
tário da populacáo. — Dado, porém, que algum govérno civil
reconheca com mais solicitude urna determinada crenga reli
giosa, incumbe-lhe o dever de zelar para que os adeptos de
outras confissóes religiosas possam livremente professar a sua
fé. Nao seria licito aos governantes fazer discriminacáo entre
os cidadaos no plano civil e jurídico por motivos religiosos
(DH 6).
Está assim explanado em grandes linhas o conceito de
Liberdade Religiosa apregoada pelo Vaticano II. Todavía ainda
merecem atengáo dois pontos particulares do documento DH.

— 9 —
10 «PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 97/1968, qu. 1

5. Questócs complementares

1) Educacao para a liberdade religiosa.

A proclamacáo do direito á Liberdade Religiosa supóe um


nivel de desenvolvimanto da consciéncia humana assaz elevado:
admite, sim, que todos os homens conheani a necessidade de
ser plenamente responsáveis, e fac.am todo o seu possivel para
exercer essa responsabilidade. Ora, para que alguém chegue
a tal nivel, requer-se certo preparo. É por isto que DH incute
a necessidade de educagáo para a Liberdade Religiosa.

1. Esta deve, antes do mais, inculcar a jovens e adultos


urna profunda estima pela lealdade e pela sinceridade do homem
consigo mesmo e com os demais homens. Urna das qualidades
básicas que todo educador há de despertar nos seus discípulos
é a coragem de enfrentar os problemas, o desejo de chegar á
luz e á verdade tanto quanto poss.vel, principalmente em as-
suntos de moral e religiáo (pois estes incluem as questdes da
importancia capital: «De onde vimos», «Para onde vamos?»).

Hoje em dia as ondas da opiniao pública, os «slogans», as «mo


das» no pensar e no falar tendem a íazer do ser humano um jogué-
te de correntes, sugerindo lhe um conformismo cómodo ou inspirando-
-lhe solucoes feitas; o homem assim fácilmente se acostuma a nao
reíletir muito; ora tal atitude equivale á abdicacáo do homem á
sua faculdade mais nobre ou á sua nrópria dignidade. Torna-o, in
conscientemente talvez, menos responsável, principalmente em mate
ria religiosa.

2. É preciso também despertar nos jovens e nos. adultos


a consciéncia de que Religiáo é, por si mesma, um assunto
muito serio, um assunto ao qual ninguém tem o direito de
fechar os olhos. Com efeito, a Religiáo suscita questóes que
n¡áo podem deixar de iriteressar a todo homem.

Pódese admitir que alguém nao aceite a solugáo que a Religiüo


propSe para tais questóes; mas, ao menos, deve se desejar que tal
pessoa saiba o porqué da sua recusa, justificando-a perante a sua
consciéncia, e se esforcé por procurar alhures a resposta que ela
nSo aceita da Religiüo.

3. Mesmo dentro das sociedades religiosas (em parti


cular, dentro da Igreja Católica), é necessário despertar cada
vez mais nos homens religiosos o desejo imperioso de se ins-
truirem devidamente a respeito dos fundamentos da sua fé;
procurem, por exemplo, os católicos saber exatamente por que
sao católicos, e nao protestantes ou espiritas.

— 10 —
LIBERDADE RELIGIOSA 11

4. A educacáo crista deve mostrar que Liberdade Reli


giosa nao quer dizer subjetivismo ou indiferentismo religioso,
ou nao derroga á verdadeira Religiáo, que subsiste na Igreja
Católica (cf. DH 1).

5. A familia, compete formar jovens que tenham o senso da


Liberdade Religiosa. Desde os mais tenros anos, a crianca deverá
aprender a estimar as atitudes religiosas e a considerar o clima
religioso de casa como o mais precioso tesouro do patrimonio da
familia. Será preciso ensinar-lhe, porém, o respeito para com as cri-
ancas e os adultos que nao praticam a mesma íé.
Incuta-se ao pequenino um ardente senso missionário, isto é,
o vivo desejo de ver todos os homens responder a Deus Pai que
nos fala por Jesús Cristo na S. Igreja Católica; dígase á crianca
que os meios para obter esta meta ideal sao a oracáo, o testemunho
da palavra e o da vida, ficando, porém, excluido neste setor todo
tipo de constrangimento e violencia.
A escola prolongará esta funcáo da familia, sendo que a cada
casal compete escolher o educandário que deseje para seus filhos
(DH 5).

2) Apostolado e missao

Há quem tenha julgado que a proclamacáo de liberdade reli


giosa dispensa o zélo apostólico e missionário dos fiéis católicos: já
nao haveria obrigacao de apregoar a fé católica aos incrédulos e
pagaos.

O n» 14 da Declaragáo DH dissipa o equívoco, lembrando


que Cristo confiou á Igreja a missáo de ensinar a todos os
povos (cf. Mt 28,19) e de labutar denodadamente para que a
palavra de Deus seja amplamente reconhecida (cf. 2 Tes 3,1).
Nao há época histórica nem tipo de civilizagáo que possam
sufocar o mandamento missionário que Jesús assim entregou
á sua Igreja.
De resto, a dignidade humana exige nao sómente que o
homem viva em boa fé ou sinceridado (disposicáo subjetiva),
mas também na verdadeira fé, isto é, seja sincero para com
a verdad© (a qual é um valor objetivo).

O homem foi feito para ser sincero,... e sincero em relacao


á verdade. Os que sao sinceros em relacao ao erro (que éles, sem
culpa própria, julgam ser a verdade), sao louváveis, pois, enquanto
déles depende, se comportam como dignos seres humanos. Coritu-
do, sao muito mais louváveis (e em mais nobre condicao se acham)
aqueles que se mostram sinceros em relacáo á verdade. A promocSo
humana, que a sociedade de nosso século tanto almeja, inclui ne».
cessáriamente a difusáo da verdade, e da verdade religiosa. A éste
imperativo o Concilio Ecuménico do Vaticano II quis certamente
atender,

— 11 —
12 «PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 97/1968, qu. 2

Ademáis a agáo apostólica da Igreja é outrossim exigida


pelo impreterível mandamento do Senhor Jesús, que. concluiu
sua missáo terrestre, enviando seus discípulos ao mundo inteiro:
«Ide, e ensinai a todas as nagóes, batizando-as em nome do'Pai
e do Filho e do Espirito Santo, e ensinando-as a observar todos
os mandamentos que vos dei» (Mt 28, 19s). Nao há época nem
tipo de civilizado que possa sufocar esta voz de Cristo Cada
um dos discípulos do Senhor, por conseguinte, há de repetir
com Sao Paulo: «Ai de mim, se nao pregar o Evangelho!»
(1 Cor 9,16). Apregoe pela palavra e pelo exemplo !•

■ A Declaragáo DH apenas pede que os arautos da fé, em


sua obra apostólica, se abstenham de qualquer recurso cons-
trangedor ou de qualquer pressáo sobre a consciéncia dos náo-
-crentes. Excluidos tais meios, todo fiel deverá ser ardoroso
comunicador de Cristo a todos os homens mediante o teste-
munho de sua palavra, o exemplo de sua vida e, se necessário,
o derramamento do seu sangue:

«Os cristáos, comportándose com sabedoria, facam o possível por


difundir junto aos de lora 'no Espirito Santo, na caridade sincera,
na palavxa da verdade' (2 Cor 6, 6s) a luz da vida, com toda a confi-
anca e caragcm apostólica, até a cíusüo do sangue» (DH 14).

Eis, em síntese, as grandes nogóes que o Concilio do Vati


cano II quis proclamar em sua famosa Declaragáo sobre a
Láberdade Religiosa.

II. SAGRADA ESCRITURA

2) «Existem realmente anjos ? Hoje em día diz-se que


sao figuras de poesía ou mito, que a desmitizacao do Novo
Testamento já eliminou».

A respeito dos anjos c da sua existencia, já se encontram arti-


gos em «P. R.» 6/1958, qu. 5; 37/1961, qu. 4; 88/1967, qu. 2. Nao
obstante, visto que a questáo constantemente volta a baila, dedicar-
•lheemos estas páginas, ñas quais procuraremos complementar o
que até aqui foi dito em «P. R.»
EXISTEM ANJOS? 13

Em primeiro lugar, examinaremos o problema que hoje


em dia se póe. A seguir, analisaremos os argumentos que proje-
tam luz sobré a questáo.

1. Os motivos da dúvida

A crenca na existencia dos anjos, táo aintiga entre os cristáos


quanto o próprio Cristianismo, tem sido posta em causa nos últi
mos anos por motivos de mentalidade moderna:

1) Nao se pode provar ¡nem pela razáo nem pela experi


encia que existam anjos, isto é, espíritos sem corpo, dos quais
uns se tenham conservado fiéis a Deus e outros hajam pecado.
— Ora o homem de hoje é avésso ao que nao possa ser demons
trado pelo raciocinio.

2) A crendice popular em alguns lugares por vézes exa


gera o significado e o papel dos anjos, caindo em supersticóes,
magia, «pactos ou trabalhos com os exércitos angélicos maus»,
etc. — Ora a ciencia moderna comprovou que os fenómenos
realizados no espiritismo (alto e baixo) se reduzem geralmente
a fungóes do psiquismo humano mesmo; resultam de estados
parapsicológicos e psicopatológicos. Dai talvez se origine certo
ceticismo em relagáo <a crenga nos anjos, de que fala a fé
católica.
Por sua vez, a sá razáo demonstra que nao pode haver
semi-deuses ou seres que compartilhem a soberanía de Deus
em relagáo ao homem.

3) A teoría de Bultmann, que excluí o sobrenatural e


o maravilhoso na S. Escritura, atributado 'a Biblia numerosos
mitos, tem contribuido para Jangar o descrédito sobre os anjos
das páginas bíblicas. A mengáo de anjos no Livro Sagrado
nao seria senáo um modo de falar poético, que designa figura
damente a Providencia paterna de Deus em relagáo aos homens.

2. Que dizer ?

As dificuldades movidas contra a real existencia dos anjos, po-


dem-se propor válidas comsideragñes, como se verá abaixo.

1) Em nome da razao

Os anjos sao apresentados pela teología como espiritos


destituidos de corpo e dotados de inteligencia mais perspicaz

— 13 —
14 «PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 97/1968, qu. 2

do que a do homem (porque independente da materia e dos


sentidos). Ora tal nocáo nada tem de absurdo; ao contrario,
é bem plausível que Deus, além de criar os reinos mineral,
vegetal, animal irracional e o homem inteligente, tenha resol-
vido criar seres superiores ao homem. Assim como há criaturas
puramente materiais, haveria outras puramente espirituais;
o homem ficaria em posicáo intermediaria na escala dos seres,
sendo material como as criaturas inferiores, e espiritual (por
sua alma espiritual) como os anjos. Todavía a razáo humana
de modo nenhum pode provar que Deus realmente haja criado
os anjos, por mais harmonioso que isto possa parecer.

2) Em nome da S. Escritura

Desde os seus primeiros livros, a Biblia fala de «mensa-


geiros do Senhor» (maleachim Jahve, em hebraico; angeloi,
em grego). Recomendó a formas sensíveis, anunciam aos ho-
mens os designios de Deus. Tenham-se em" vista

Gen 16, 7-12; 21, 17: o anjo que apareceu a Agar e a reconíor
tou,
Gen 38, 2: os tres visitantes em casa de Abraáo,
Gen 24, 7: o anjo aguardado pelo servo de Abraüo,
Gen 28, 12: os anjos do sonho de Jaco,
Éx 14, 19: o anjo que guiava os israelitas no éxodo do Egito...
Após o exilio na Babilonia (586538), desenvolveu-se entre os
judeus a crenga nos anjos. Considerem-se os livros de Jó e Daniel.
Éste último íala de anjos tutores das nacóes (cf. Dan 10, 12s.
20s; 12, 1). Os judeus ¡mediatamente anteriores a Cristo dedica-
vam grandes estima aos anjos tidos como protetores e intercessores
dos homens.
Nos escritos do Ndvo Testamento, os anjos aparecem como
arautos ou pagens do Reino de Deus. A sua presenca e acao é como
que o sinal da viuda do Messias; por isto maniíestam-se na natividade
do Senhor (cf. Le 2, 9-14), em sua tentacao no deserto (cf. Me
1, 13), em sua agonia no horto das Oliveiras (cf. Le 22, 43), em sua
Ressurreicáo (cf. Mt 28, 2-7), em sua Ascensáo (cf. At 1, lOs). Te-
rao funcáo saliente no juizo final, como atesta o Senhor:
«Todo aquéle que me confessar diante dos homens, também o
Filho do homem o confessará diante dos amjos de Deus. Mas aqué
le que me negar diante dos homens, será negado diante dos anjos de
Deus» (Le 12, 8s).
«Quando o Senhor Jesús se revelar no alto dos céus, com os
anjos do seu poder...> (2 Tes 1,7).

Os anjos sao superiores aos homens em poder:

<...os anjos, superiores em fórca e em poder». (2 Pdr 2,11)

— 14 —
EXISTEM ANJOS? 15

... e em sabedoria :

«A respeito daquele dia e daquela hora, minguém sabe quando será


nem os anjos do céu, mas únicamente o Pai» (Mt 24, 36).

Os textos bíblicos revelam também que se deu urna queda


ou culpa grave entre os anjos:

«Deus nao poupou aos anjos que tinham pecado, mas precipitou-
-os no inferno e os entregou aos abismos das trevas, onde ficaráo
guardados para o julgamento» (2 Pdr 2, 4).

«Quanto aos anjos que nao conservaram sua alta dignidade,


mas abandonaran! a própria morada, Ele os guardou para o julga
mento do grande dia, presos por grilhdes eternos no fundo das tre
vas» (Jud 6).

No Evangelho, o Senhor Jesús se refere aos anjos decaídos,


predizendo um aspecto do juizo final:

«Afastaivos de mim, malditos, ide para o fogo eterno que foi


preparado para o demonio e os seus anjos» (Mt 25, 41).

Aos anjos maus Deus concede a faculdade de intervir neste


mundo, procurando aliciar os homens ao pecado, de sorte que
toda a historia sagrada nao é senáo a luta do reino do mal,
dirigido por Satanás contra o Reino de Deus, do qual Cristo
é o antessignano:

«Porei inimizade entre ti e a mulher, entre a tua descendencia


e a déla. Esta te ferirá a cabe?a, e tu Ihe ferirás o calcanhar»,
disfe Deus ao demonio após o primeiro pecado (cf. Gen 3, 15).
Em conseqüéncia, podia Sao Paulo dizer: «A nossa luta nao é
contra o sangue e a carne, mas contra os principados e as potesta
des, contra os dominadores déste mundo de trevas, contra os espíri-
tos malignos espalhados nos ares». É o que escrevia Sao Paulo aos
Efésios (6, 12), adaptándose, alias, ao modo de falar dos judeus,
que supunham habitassem os demonios nos ares.

Nessa luta que percorre toda a historia, a Vitoria final


cabera ao Reino de Deus:

«Depois vira o fim, quando Ele (Cristo) entregar o Reino" a


Deus e Pai, após ter destruido todo principado, toda dominacáo e
todo poder. Porque é necessárlo que file reine, até que ponha todos
os inimigos debaixo de seus pes» (1 Cor 15, 24s).

Nestes dizeres o Apostólo tem em mente Jesús Cristo como


Homem, Pontífice da humanidade junto a Deus Pai, e nao Jesús
Cristo como Deas.

— 15 —
16 «PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 97/1968, qu. 2

A respeito da provagáo e da queda dos anjos veíase de modo


especial «P. R.» 6/1958, qu. 5; 88/197, qu. 2.

A Escritura repetidamente incute que os anjos maus estáo


subordinados a Cristo, intencionando assim dissipar a crenga
dos gnósticos (séc. I/H), que atribuiam aos arijos paridade
com Cristo, ou reduziam o Senhor Jesús á categoría dos pode
res angélicos:

«Néle (em Cristo) foram criadas tddas as coisas, no céu e na


térra, as coisas visiveis e invisíveis, os Tronos, as Dominacoes, os
Principados e as Potestades, tudo íoi criado por Ele e para Ele»
(Col 1, 16).
«Que ninguém vos faca perder a palma 'da Vitoria, atetando hu-
mildade e culto dos anjos, apegándose a visoes e inchandose de
váo orgulho por pensamentos carnals, sem aderir á Cabeca (Cristo),
da qual todo o corpo .recebe fdrca e coesáo» (Col 2, 18s).
Ésta última passagem refere-se ao culto supersticioso prestado na
Asia Menor aos anjos, com detrimento da gloria de Cristo.
«Cristo assim se tornou táo superior aos anjos quanto o nome
que herdou é mais excelente do que o déles» (Hebr 1, 4).

Quanto aos anjos que se comprovaram no bem, as páginas


bíblicas dáo a saber que contemplam a face de Deus:

«Nao desprezeis nenhum déstes pequeninos, porque eu vos digo


que no céu os seus anjos véem continuamente a face de meu Pai que
está no céu» (Mt 18, 10).
Constitucm como que a corte celeste do Senhor Deus:
«Vos vos aproximantes da montanha de Siáo, da cidade do Deus
vivo, que é a Jerusalém celeste, do coro festivo de miriades de anjos»
(Hetar 12, 22; cf. Apc 5,11; 7,11).

Os textos dos profetas (Is 6; Ez 1; Dan 7) apresentam os anjos


como criaturas que louvam e glorificam a Deus; donde se com-
preende que, quando o Filho de Deus se fez homem, os anjos se
tenham manifestado com notável freqUéncia.
Segundo urna tradicáo antiga, corroborada pela S. Liturgia, a
Providencia Divina quis entregar cada cristáo á tutela de um anjo
bom. Costuma-se dizer mesmo que todos os homens tém o seu anjo
da guarda; veja-se a respeito o texto de Mt 18, 10 ácima citado,
além de SI 90, lis.
Como se vé, a Escritura apresenta os anjos dentro do quadro
geral da historia da salvacáo dos homens; é estrltamente em vista
déstes e de Cristo que ela os menciona.

jOs textos citados (aos quais outros se poderiam acres-


centar) sugerem a conclusáo de que a existencia dos anjos é
um pressuposto assaz firme da revelacáo bíblica; Cristo e os

— 16 —
EXISTEM ANJOS?

autores sagrados atribuem aos anjos intima participa?áo na


historia da Redencáo dos homens. Tenha-se em vista parti
cularmente o papel dos anjos maus e do «Principe déste mun
do», que o Senhor Jesús veio debelar (explanagáo minuciosa
em «P. R.» 88/1967, qu. 2).

3) Em nome do Magisterio da Igreja

Retomando a doutrina bíblica, o Magisterio da Igreja no


Concilio do Latráo IV (1215) afirmou:

«Firmemente eremos e simplesmente professamos um só Deus...


que é o único principio de tfidas as coisas, Criador de todos os seres,
visiveis e invisiveis, espirituais e corporais.. Por sua onipoténcia, no
inicio dos tempos, criou igualmente do nada tanto as criaturas es
pirituais como as corporais, ou seja, os anjos e o mundo (material);
a seguir, criou o homem, constituido de espirito e carpo. O diabo e
os outros demonios foram por Deus criados bons em sua nature-
za: todavia tomaram-se por si maus. Quanto ao homem, pecou por
sugestáo do diabo» (Denzinger-Schonmetzér 800 [428]).
O Concilio do Vaticano I, em 1870, corroborou éste texto, trans-
crevendoo parcialmente na sua Constituicáo «Dei Filius».

No documento ácima, as criaturas invisiveis e espirituais


sao os anjos; a maneira de os designar deve-se a Col 1,16
(«visiveis e invisiveis»). Segundo a interpretagáo obvia, o Ma
gisterio da Igreja nesse trecho terá solenemente ensinado a
existencia dos anjos, afirmando que Deus os criou; terá também
incutido a queda voluntaria dos anjos maus.
Todavia certos teólogos modernos (entre os quais os cola
boradores do Novo Catecismo holandés; cf. «P. R.» 96/1967,
qu 1) julgam que o Concilio do Latráo IV tinha apenas em
vista combater o maniqueísmo dualista da época: este admitía
a existencia de dois principios de todas as coisas existentes —
o do Bem e o do mal. Em conseqüéncia, os Padres conciliares
haveriam táo sómente declarado que Deus é o umeo Autor
de todas as criaturas, sejam materiais e visiveis, sejam ímate-
riais e invisiveis; nao teriam, porém, intencionado afirmar a
existencia real de criaturas invisiveis (a alusáo a estas dever-
-se-ia apenas ao desejo de responder as pretensóes dos ma-
niqueus).
A explicagáo dada por tais autores é forgada; representa
um abuso do recurso á historia ou do histoncismo, que rela-
tiviza todas as afirmagóes e solapa a verdade. Bons teólogos
contemporáneos (entre os quais Karl Rahner, na Enciclopedia
«Sacramentum Mundi» I 151 e 1039, editada em 1967) reco-

— 17 —
18 «PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 97/1968, qu. 3

nhecem que os Concilios do Latráo IV e do Vaticano I inten-


cionaram declarar realmente a existencia dos anjos; note-se
que os padres conciliares admitiam verdaderamente a exis
tencia de criaturas espirituais e invisíveis; em sua declaracáo
inspiravam-se nao somente do combate ao maniqueísmo, mas
também do texto de Sao Paulo aos Colossenses (1,16).
Eis por que eminentes teólogos católicos a bom direito
julgam que a existencia dos anjos constituí urna proposicáo
de fé: além de Rahner (ob. cit.), veja-se F. Diekamp, «Theolo-
giae Dogmaticae Manuale» n. Paris 1933, pág. 57; B. Bartmann,
«Teología Dogmática» I. Sao Paulo, 1962, pág. 399.

. As razdes até aqui apresen tadas em favor da existencia dos anjos


podem ser ilustradas pela seguinte consideragáo: o homem moderno,
conhecendo mais e mais a imensidade do cosmos, é propenso a admi
tir outros seres vivos e inteligentes além do homem. Donde se vé
que a existencia dos anjos (que em absoluto nao devem ser confun
didos com hipotéticos habitantes de ouiros planetas) nao é algo de
tao absurdo quanto pode parecer. Deus, rico em poder criador, ten-
.do produzido tao ingente quantidade de materia no universo, nao terá
•produzido também grande número de seres espirituais, além da
alma humana? Por certo, nao é temerario, mas assaz plausivel (aos
olhos da mera razáo), responder positivamente a esta questáo.
Sem dúvida, é principalmente pelos documentos da fé que so
mos informados a respeito dos anjos.

Contado dirá alguém: os textos bíblicos referentes aos


anjos nao sao passagens um tanto poéticas ? Nao supóem o
mundo de imagens dos antigos, que hoje em dia é preciso
eliminar ou desmitizar para correspondermos ao pensamento
moderno ?

A resposta a estas perguntas será dada ñas páginas que


imediatamente se seguem. Verificar-se-á que quem nos nossos
días nega a existencia dos anjos procede por influencia de um
racionalismo preconcebido e dogmático, e nao por fidelidade
á Escritura Sagrada. Nao é a exegese bíblica como tal que
leva a recusar os anjos, mas é a filosofía dos que léem a Biblia.

3) «Que dizer da desmitizacáo da S. Escritura proposta


por Rudolf Bultmann ?
Nao será preciso eliminar as imagens da Biblia ?»

A respeito de Bultmann e sua explicacao da ressurreicáo de Cris


to ]á se encontra um artigo em «P.R.» 93/1967, qu. 2.

— 18 —
PESMrnZACAO- DA BIBLIA 19

Aqui, de maneira mais direta, consideraremos as idéias


apregoadas por Bultmann, a fim de formular um juízo sereno
e seguro sobre o assunto.

1. A teoría de Bultmann

Rudolf Bultmann nasceu aos 20 de agosto de 1884 em Wiefelste-


de (Oldenburg) na Alemanha. Em 1912 iniciou o magisterio na Uni-
versidade de Magdeburgo, dedicándose até nossos dias aos estudos do
Novo Testamento: de modo especial tentou aplicar o método da his
toria das íormas (cf. «P. R.> 9171967, qu. 2) ao S. Evangelho. Par--
tindo das premissas de urna filosofía liberal e crítica, assim como do
existencialismo de Martín Heidegger, propds a sua tese, que pode ser
assim resumida:

1. No século passado e no inicio do presente, os exegetas li


beráis negaram a historicidade do Evangelho e, por conseguinte, a ra-
záo de ser da própria pregacáo evangélica: a mensagem do Cristia
nismo se reduziria a verdades gerais que todos os homens podem
reconhecer com facilidade; assim a Boa-Nova própria do Evangelho
era destruida. — Ao ver o descrédito em que caia a palavra de Deus,
Bultmann quis tentar ao menos salvar o valor da pregacáo do Evan
gelho, embora também ele negasse a historicidade do mesmo. Em
conseqüéncia, propós que se traduzisse o Evangelho para a lingua-
gem do século XX. explicando ao público o que querem dizer as ima-
gens ou as «estórias» (que Bultmann chama «mitos») do Evange
lho; éste, assim depurado, conservaría o seu valor!...

2. Mais precisamente diz Bultmann: na Escritura Sa


grada, encontram-se numerosas figuras de expressáo que o
homem do século XX já nao pode aceitar. Assim logo a primeira
página da Biblia apresenta todo o mundo de imagens dos antí-
gos: como fundo de cena, um universo em tres andares (ares,
aguas e térra); ácima da térra, há um firmamento ou urna
abobada cristalina, que detém os reservatórios de agua donde
procedem a chuva, a nevé e o granizo...; a térra, qual mesa
plana, está suspensa sobre aguas inferiores, que se manifestam
ñas fontes, nos lagos e nos rios. As doengas sao provocadas pelas
fórgas do mal ou do além-túmulo; a morte do homem é consi
derada como um castigo de Deus. Doutro lado, a felicidade
e o sucesso sao atribuidos a intervengáo das fórgas do bem
ou de mensageiros de Deus. Assim o mundo é concebido como
o cenário de poderes sobrenaturais— Deus e seus anjos, Sa-
tanaz e seus satélites. Sao estes poderes que regem a historia
da térra, e nao os homens com o seu trabalho. Os bons e os
maus pensamentos nao provém siniplesmente do coragáo do
homem; Deus e o demonio os sugerem...; o homem, portante,
nao vive mais na sua esfera natural.
20 «PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 97/1968, qu. 3

A salvacáo é apresentada como a descida do Filho de Deus,


preexistente, a éste mundo; o Filho de Deus, por sua morte, expiou
os pecados; a seguir, ressuscitou e subiu aos céus, onde está sentado
á direita de Deus. Toda esta obra de salvagáo é tornada presente
aos homens mediante os sacramentos.

A historia do mundo aparece sob o signo do demonio, do pe


cado e da morte; ela se aproxima de urna catástrofe cósmica; nSo
acabará por esíriamento do planeta Térra nem por agáo de agen
tes fisico-quimicos, mas pela eficiencia de elementos angélicos e do
próprio Deus. Éste vira finalmente como juiz dos vivos e dos mor-
tos, despertando uns para a vida e outros para a perdigáo. Em todas
estas afirmacóes, cuja lista poderia ser prolongada, depreendemse,
conforme Bultmarm, as mesmas concepgóes ou a mesma imagem
do mundo: «o que nao é déste mundo, o divino, tornase próprio do
mundo e humano; o além é representado e entendido como algo de
aquém» («Kerygma und Mythos> I pág. 22, n. 2).

3. Ora Bultmarm julga que tais concepcóes sao mitos ou


produtos da imaginacáo de povos antigos. O homem moderno,
ao contrario, é necesariamente levado a pensar segundo as
categorías das ciencias exatas; estas sao alheias a poderes
transcendentais; contam apenas com foreas imanentes & natu-
reza; o universo Ihes aparece como um sistema fechado, no
qual é impossivél admitir a interferencia de entidades do Além.
A descoberta da energía atómica e a perspectiva de viagens
interplaneterias desvendam aos homem horizontes inconciliá-
veis com os de épocas antigás*
Destas considera;6es, segue-se que a S. Escritura lida como
tal (e Bultmann se interessa principalmente pelo Novo Tes
tamento) nao está em condicóes de falar -ao homem do séc. XX.
Era necessário que os Apostólos no séc. I recorressem as cate
gorías de linguagem de seu tempo. Passou-se, porém, tal época.
Em conseqüéncia, os arautos do Evangelho no séc. XX tém
a obrigagáo de depurar a ménsagem evangélica dos respectivos
mitos («desmitizar») a fim de apresentar o essencial da fé
crista.

4. Mas — perguntar-se-ia a Bultmann — nao se poderia talvez


fazer urna selecáo entre os trechos do Evangelho que parecem mí
ticos, aceitando uns e cancelando outros?
Por exemplo, segundo Mt 17, 23-26, Jesús mandou que Pedro
procurasse na boca de um peixe a moeda para pagar o imposto de-
vldo as autoridades. Diga-fe que tal "episodio é mito ou lenda, pote
parece aíim & narrativa grega do anel de Policrates. — Mas a cura
do cegó de nascenga, de que íala Jo 9, nao poderia ser reconhecida
como fato histórico?
Bultmann responderla negativamente. A diferenca do que admi-
tiam críticos anteriores, julga que a desmitizagao há de ser radical,
atingindo todo o Evangelho de principio a fim. Nao basta escolher

— 20 —
DESMITIZACAO DA BIBLIA 21

textos ou cancelar passagens de Livro Sagrado; todas as afirmacoes


do Novo Testamento sao dependentes das mesmas eoncepcdes mi-
ticas; por isto é ilógico aceitar urnas e recusar outras.

5. Prosseguiria Bultmann: a desmitizagáo nao é sómente


urna exigencia do pensamento moderno. É imposta também
pelo conceito de Palavra de Deus (que é a Biblia). A Palavra
de Deus é ve:culo de salvagáo; ela nao pretende; ensinar historia
ou proposigóes de ciencia; estes sao assuntos de escola ou
academia. A Palavra de Deus tem por objetivo obter urna res-
posta concreta ou vivencial da parte do homem. Por conse-
guinte, o Novo Testamento nao pretende comunicar aos leitores
urna visáo do mundo (muito menos... urna visáo do mundo
própria dos tempos antigos), mas, sim, um apelo provocador
de atitudes concretas. — A resposta que o leitor dá á Palavra
de Deus, se chama «fé»; esta nao é adesáo a determinadas
verdades, mas é simplesmente' a prontidáo do homem para
aceitar a salvagáo que a Palavra de Deus lhe comunica através
de urna historia figurativa ou mítica. Segundo Bultmann, a.
preocupacáo com a historicidade dos Evangelhos ou o desejo
de saber exatamente quem foi Jesús, o que disse e o que fez
Ele, distrai o crente do verdadeiro objeto da fé; éste objeto
é apenas urna mensagem interior e espiritual ou um convite
dirigido por Deus ao íntimo de cada homem.

É oportuno lembrar que Bultmann é protestante. Por isto ad


mite urna íé fiducial apenas, isto é. urna «féconfianca em Deus».
Esta fé subsiste no protestante, ainda que ele destrua o histórico
da vida de Jesús descrito pelos Evangelhos; nao lhe importa saber
quem íoi Jesús, mas apenas confiar na palavra que, em nome d'Ele,
é transmitida pelo Evangelho.

6. Urna vez admitidos tais principios, que resta da Boa-


-Nova ? Ou a que se reduz o Evangelho «desmitizado» ?
Jesús, anunciando a vinda do Reino de Deus, quis apenas
dizer que chegara o momento oportuno (o solene «agora»)
da salvacáo; Deus estava oferecendo ao homem o seu grande
dom; que o homem, pois, se colocasse na atitude de quem está
no momento decisivo e escolhesse entre Deus e éste mundo
que passa. Jesús morreu na cruz semtér efetuado milagre;
. nao se apresentou como Salvador escatológico (portador do
fim dos tempos) nem se considerou como o Messias. Mas, após
a sua morte, os discípulos fizeram do mensageiro a mensagem,
isto é: em vez de apregoar simplesmente que Deus oferece a
salvacáo, puseram-se a anunciar que o profeta havia ressus-
citado dentre os mortos e voltaria em breve. Assim os Após-

— 21 —
22 «PERGUNTE E RESPONDEREMOS* 97/1968, qu. 3

tolos manifestaran! a sua fé na palavra de Deus, envolvendo-a


em um mito: o mito do «Filho do homem moiio e ressusdtado».
Apregoando ésse mito, nao queriam dizer senáo que a Palavra
de Deus superou os obstáculos e a própria morte, de modo
que ela continua viva a se propagar pelo mundo. — Quando
o Cristianismo saiu dos confins da Palestina, difundinclo-se em
territorios helenísticos, assimilou novo mito (de índole gnóstica,
isto é, sincretista): o mito da Redencáo.
Eis tudo o que Bultmann depreende dos escritos do Novo
Testamento; eis, segundo ele, a «Boa-Nova» ou o Evangelho
do Cristianismo.

7. Considerando diretamente os Evangelistas, Bultmann verifica


que no Evangelho de Sao Joáo nao há descricao do juizo final ou
da segunda vinda de Cristo; o juizo de Deus sobre o homem se pro-
cessa desde que éste seja atingido pela Palavra de Deus na vida pre
sente (cf. Jo 5, 22-27; 9, 39; 11, 24-26).
Os Sinóticos (Mt, Me e Le) fizeram da morte e da ressurreicáo de
Jesús o cerne da sua mensagem. Todavia nao querem senao dizer que
a morte de Jesús nao pode ser considerada como a dos outros homens;
ela é o «juizo libertador» que Deus profere sobre a humanidade
outrora entregue á corrupeáo.
Estas consideracües ilustram suficientemente o pensamento de
Bultmann. Procuremos agora julgar tais teorias.

2. Reflexáo sobre a desmitizasáo

Urna critica serena das teses de Bultmann pode comecar com a


apresentacáo do valor positivo que, em meio a muitos devaneios, elas
encerram.

1) Palavra de Vida

Bultmann pos em realce o fato de que a Palavra de Deus


consignada na Biblia tem valor vital ou existencial; ela é ver-
dade e vida (cf. Jo 6,64). O Senhor a comunicou aos homens
realmente a fim de os abalar e chamar á conversáo; a genuína
ciencia bíblica nao pode esquecer éste objetivo. Conseqüente-
mente. a pregacáo da Palavra de Deus há de ser efetuada em
termos claros e compreensíveis, de modo a penetrar no com-
portamento de quantos a ouvem. Bultmann interessou-se por
realcar éste aspecto da Escritura Sagrada. Ele representa des-
tarte urna reacáo contra o racionalismo do século passado,
que esquartejava as páginas bíblicas em tom académico ou
«cientificista», tirando-lhes todo significado religioso.

— 22 —
DESMITIZACAO DA BIBLIA 23

Todavia ioi precaria a tentativa de Bultmann no sentido de res


tituir valor ás Escrituras Sagradas, pois o exegeta alemáo nao conse-
guiu desvencilhar-se das categorías do racionalismo, como abaixo se
verá.

2) O preconceito racionalista

Bultmann abordou o texto bíblico através das categorías


do racionalismo. Com efeito, segundo o professor de Magde-
burgo, é absolutamente impossível qualquer intervengáo sobre
natural no mundo; todo «milagre» há de ser necessáriamente
produto de imaginagáo simplória. Éste principio, no pensamento
de Bultmann, tem foros de dogma; nao é provado, mas admitido
anteriormente a qualquer raciocinio.

«(Tal principio) é afirmado de íorma táo seca e dogmática como


qualquer proposicáo no 'Enquiridio do Símbolos e Definieres' de
Denzinger» (J. Bourke, «O Jesús da Historia e o Cristo do Keryg-
ma», em «Concilium» 1, Janeiro de 1966, pag. 32).

Vé-se, pois, que Bultmann, recusando os dogmas do Cris


tianismo, instaura um dogmatismo racionalista nao menos rí
gido. E com que base ? — Nenhuma. Com efeito, para quem
admite a existencia de Deus (e Bultmaim a admite), há de
ser claro que Deus pode intervir neste mundo; o Criador pode
derrogar ás leis da natureza, efetuando milagres. — Como
se compreende, nao se devem admitir milagres sem claros indi
cios correspondentes; faz-se mister provar que se tenham dado.
É absurdo, porém, que um crente em Deus negué por princi
pio a possibilidade de milagres.

3) Existencialismo e historia

1. Bultmann abordou o texto bíblico, imbuido de exis


tencialismo ...

Isto. de um lado, o levou oportunamente a querer dar sentido


vivencial á pregagáo, mas, de outro lado, dificultou-lhe urna visáo
serena da mensagem bíblica. Com efeito, segundo o existencialismo,
principalmente o de Heiddeger, o Jiomem nao se deve interessar pela
historia como se interessa pelas ciencias naturais (Física, Química,
Astronomía...). Estas sao objetos de estudos objetivos, em que o
sabio sonda a natureza, mas de modo nenhum é interpelado por ela.
Ao contrario, a historia, isto é, os fatos passados interpelam o homem,
solicitando déle urna atitude correspondente. Por isto, julga Bultmann,
quando algucm lé a «historia sagrada», nao a deve considerar como
um .relato frió de fatos outrora ocorridos, mas como urna Palavra —
a Palavra de Deus — que pede ao homem um «Sim» ou um «Nao».
Pode a critica destruir por completo a historicidade das narrativas;
nao obstante, elas conservam seu valor existencial.

— 23 —
24 «PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 97/1968, gu. 3

. 2. Verifica-se, porém, que a Biblia faz questáo de se


apresentar como mensagem histórica, diferenciando-se assim
de todo mito ou lenda. Em outros termos: á diferen;a de todas
as demais Religióes, o Cristianismo (que é inseparável da sua
preparado: o Judaismo) se apresenta como urna Religiáo «en
carnada», cujo Credo está intimamente associado a aconteci-
mentos; sim, as verdades da fé se depreendem de fatos da
historia passada (desde Abraáo até Cristo) e tendem a influir
na historia futura. Por isto, segundo a mentalidade dos autores
bblicos, e impossivel negligenciar a historia sagrada, equipa
rando-a a mitos, e, nao obstante, crer na Palavra de Deus.
Ao contrario, a mensagem do Senhor na Biblia só se apreende
pelo estudo dos relatos biblicos dentro do contexto da historia
universal, em que realmente éles se enquadram.

3. Eis algumas passagens da Biblia em que se manifesta


fortemente o caráter antimítico déste Livro:

em 1 Tim 1, 3s escreve SSo Paulo a seu discípulo Timoteo :


«Ao partir para a Maceddnia, pedi-te que permanecesses em
Éfeso. a íim de admoestares certas pessoas a nao enslnarem doutrbia
diferente, nem se apegarem a fábulas (mythols) e genealogías Ínter
inináveis».

Sao Paulo tinha em vista lendas inventadas no séc. I d. C. para


esclarecer fatos do Antigo Testamento; visava também pesquisas que
correspondiam ao gdsto dos doutores judaicos e dos homens ecléticos
da época.
Mals adiante, volta o Apostólo a exortar:
«Rejeita as fábulas (mythous) profanas, verdadeiros contos de
velhas. Exercita-te na piedade» (1 Tim 4,7).
Na segunda carta a Timoteo lé-se outrossim:
«Os homens afastaráo os ouvidos da verdade e os aplicaráo ás
fábulas (mythous)» (2 Tim 4, 4).
Estes textos evidenciam como Sao Paulo e, com ele, os demais
pregadores cristáos tinham cuidado em nao aceitar narrativas que,
embora inspirados pela piedade, dessem ao imaginario foros de rea-
Udade.

4. Os escritores do Antigo Testamento parecem ter sido


os primeiros a realizar urna genuina desmitizacáo das concep-
cóes antigás:

Assim, segundo Gen 1, o mundo fol criado pela palavra (= von-


tade) de Deus todo-poderoso. Ao afirmar isto, o autor sagrado, por
certo, intencionava rejeitar os mitos de seus contemporáneos, segundo
os quais o mundo era urna emanagáo da substancia divina ou estava
chelo de deuses (todo mito associa teología e cosmogonía: os deuses
se orlginam ou nascem á medida que o mundo se vai .formando).

— 24 -,
DESMITIZACAO DA BÍBLIA 25

— A Biblia opós a tais fábulas a nocáo de que o mundo é obra de Deus,


porfanto radicalmente diverso de Deus e, nao obstante, Intimamente
relacionado com Deus.
A antropología bíblica dá a ver que o homem nao é o joguéte
de fórcas cósmicas ou do destino; ao contrario, é personalidade livre
e responsável, a qual se vai afirmando por suas opcoes a través da
historia. Éste capítulo da merisagem bíblica representa também urna
forte desmitizacáo em relagáo ao que pensavam os antigos nao cristáos
(preocupados com destino, semideuses, «e3es»...).
Quanto ao casamento, nótese que os deuses da mitología tinham
cada qual seu sexo e suas aventuras eróticas. O matrimonio entre
os Homens vinha a ser o reflexo das unióes entre os deuses. A fecun-
didade matrimonial era dom de divindades encarregadas de prover á
vida e a morte. Daí os ritos mágicos com que os cónjuges procuravam
obter a graga da fecundidade. — Na Biblia verifica-se completa
desmitizagao : em Gen 1-2, o Senhor aparece como único Deus, isento
de qualquer paixao humana. Instituí o matrimonio e o abengoa, libe-
randoo de qualquer .ritual mágico; o homem e a mülher se unem para
formar urna só carne (cf. Gen 2, 24), vlvendo em monogamia e
indissolubilidade conjugal.
A salvado apregoada pela Biblia se Inicia e desenvolve dentro
déste mundo e da sua historia; os sáculos se tomam cada vez mais
prenhes de vida eterna. Ao contrario, os mitos ensinam o constante
retorno dos mesmos acontecimentos, a repetlcSo de ciclos monótonos,
dos quais o homem tem que se libertar para conseguir a salvacao.
É éste, portante, mais um ponto de doutrina em que os autores
bíblicos «desmitizaram» o pensamento antígo.

5. Quem observa atentamente os escritos do Novo Tes


tamento, verifica que os autores sagrados muito se empenham
por salientar a realidade dos acontecimentos que éles referem.
Mais aínda: sublinham que tais fatos ocorreram de modo a
dar um sentido novo e definitivo a historia. É muito marcante
ñas epístolas dos Apostólos o adverbio grego eph'hapax, urna
vez por todas: sempre designa um fato real, único e decisivo
para os homens. Vejam-se os seguintes textos:

a morte de Cristo, urna vez por todas, vltoriosa do pecado: Rom


6,10; Hebr 7,27; 9,28; 1 Pdr 3,18;
a santificado dos fiéis obtida, tima vez por tódas, pela oblagáo
do Corpo de Jesús Cristo: Hebr 10,10;
a entrada decisiva da santíssima humanidade de Cristo no santua
rio celeste após a sua Paixao e Ressurreigáo: Hebr 9,12;
a segunda vinda de Cristo no fim dos tempos para julgair os
homens: Hebr 9,26;
o objeto da fé foi, urna vez por tódas, entregue aos fiéis, de modo-
que sao vas as inovacCes dos falsos pregadores : Jud 3.

Ora tais dizeres exprimem um modo de pensar radical


mente diverso da menta,lidade dos mitos, a qual se acha minu-

— 25 —
26 «PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 97/1968, qu. 3

ciosamente exposta em «P. R.» 84/1964, qu. 7. A historia e


b tempo tem valor essencial para o Cristianismo, ao contrario
do que se da nos mitos.

6. Nao há dúvida, no Antigo Testamento encontram-se vocábulos


utilizadas pelas mitologías pagas. Assim o Teom bíblico (Gen 1, 2)
seria o Tiamat, mar personificado dos babilonios; Bahab (cf. SI 88,11),,
o caos marítimo primitivo; Leviata (cf. SI 73,14), o monstro que
também designava as aguas; Tannin (cf. Is 27,1), dragao marítimo;
Nahas (cf. Jó 26,13), serpente tortuosa...
Tais nomes ocorrem todos em séceles poéticas da Biblia. Os
autores sagrados os utilizaram em contextos marcadamente mono
teístas, dandolhes um sentido mdvo, depurado de mitos; o que quer
dizer: «desmitizaram» tais vocábulos.

As consideracóes até aqui propostas dáo a ver que querer


desmitizar a Biblia significa desconhecer o espirito ou a mente
dos autores bíblicos. A louvável intencáo de dar sentido exis
tencia! ou vital aos textos bíblicos nao impede que se conserve
o valor histórico dos mesmos.

4) Exagerado contraste entre antigos e modernos

Bultmann admite radical diferenca entre ó modo como os autores


bíblicos consideravam o mundo e a nossa mancira de encarar a
mesma realidade. So se pode estabelecer táo forte contraste, caso
se facam simplificacees e generalizaeñes erróneas.

Nao se pode dizer que haja urna ruptura no desenvolvi-


mento do modo de pensar dos homens através dos sáculos: os
pescadores do lago de Genesaré e os banqueiros do Templo de
que fala o Evangelho (cf. Le 5, 1-11 e Jo 2,13-16), nao pensa-
vam apenas em mitos, nem viviam de fábulas, mas já tinham
suas categorías científicas.
De outro lado, o homem moderno nao considera sempre
o mundo através das categorías da ciencia e da técnica. Ele
também, e necessáriamente, recorre a imagens para se expri
mir na vida de cada dia; espontáneamente supóe espago e
dimensóes onde nao existem.

Com efeito, nao é comum falar-se aínda em nossos días de «eleva-


g5o da mente, do pensamento, da vida» ?... ou do «rebalxamento
do homem» ?... ou de «días slnistros» ?... ou de «nascer» e «pdr
do sob> ? Seja licito lembrar também os numerosos mitos que a
poesía e a arte moderna utilizam. A psicología das profundidades,
por sua vez, deu-nos a saber que os «mitos» sao naturais e impres-
cindíveis ao pensamento humano; desempenham urna funcáo de que
nao nos podemos dispensar.

— 26 —
DESMITIZACAO DA BBLIA 27

Vé-se, pois, que, mesmo quando exprime a. verdade, o


homem tem que recorrer a imagens; é impossível desmitizar
no sentido radical de Bultmann. Por isto diz-se que Bultmann,
com sua teoría da desmitizacáo, cedeu a um racionalismo já
de há muito superado.

Teoría semelhante á de Bultmann íoi proposta por Lévy-Bruhl


e sua escola. Ésse estudioso admitía um contraste exagerado entre
o homem primitivo, que ele chamava «pré-lógico», e o homem civi
lizado, dito «lógico»; aquéle nao teria inteligencia, prerrogativa carac
terística dáste. Todavía os etnólogos posteriores verificaram que Lévy-
-Bruhl cederá a um preconceito filosófico, e nao á evidencia dos fatos,
pois na verdade também o homem primitivo tem sua inteligencia
e sua capacidade de raciocinar.

Eis as principáis observagQes que se devem fazer á teoría


de Bultmann. Esta, em última análise, nao é mais do que urna
tese de filosofía imposta ferrenhamente á Biblia Sagrada, em
vez de ser o resultado do estudo objetivo e sereno da Palavra
de Deus.

3. Observagoes complementares

Pode-se dizer que Bultmann «caricaturou» a visáo do mun


do dos autores bíblicos. Na Biblia existem, sem dúvida, expres-
sóes figuradas, como, alias, as há em toda linguagem humana.
Tais figuras, porém, nao implicam em que a Biblia ou os
Evangelhos sejam um grande mito.
Vai abaixo proposto o sentido de algumas das imagens
biblicas que Bultmann nao aceita:

1) Quando os textos dizem que Cristo «subiu aos céus» (cf. Le


2451; At 1,9), querem significar que seu corpo se elevou na presenca
dos discípulos e dcsapareceu. — Abstenhamo-nos de íazer a topogra
fía do Além. O céu nao é um lugar «lá em cima»; ademáis um corpo
glorificado pode estar isento das leis do espaco, de modo que nao é
necessário assinalar o local onde esteja o corpo físico de Cristo.
2) A Encarnacáo do Filho de Deus nao significa «descida de
Deus á térra», mas indica que a segunda Pessoa da SS. Trindade
tomou nova forma de presenca neste mundo, entre os homens, unindo-
•se á natureza humana.
3) A palavra «Redencao> nos escritos paulinos nao tem o sentido
de «compra», mas, sim, o de «libertacSU»: libertacáo do pecado ou
remissao da culpa do primei.ro homem.

4) A S. Escritura descreve o fim dos tempos, mencionando «abalo


geral da natureza»; esta expressáo indica a participacáo de todas
as criaturas na restauracao da ordem que foi violada pelo primeiro
pecado e que será plenamente restabelecida pelo Senhor Jesús na

— 27 —
28 «PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 97/1968, qu. 4

consumadlo da historia. — No Evamgelho de Sao Joáo, á diíerenca


de Mt, Me e Le, nao há descricóes do juizo final, porque Sao Joáo
(sem negar a ressurreicao dos corpós e o juizo final; cf. Jo 5, 28s;
11, 25) quis realcar o fato de que a vida eterna, para o cristáo, já
corneja neste mundo mediante a graca santificante: «A graca é a
sementé da gloria».

5) Outrora atribuianvse á «acSo do demonio» numerosas doencas,


hoje explicáveis pela medicina. Esta mudanza de perspectiva nao
implica era que Jesús nao tenha curado maravilhosamente os afli-
tos que se lne apresentavam. Os milagres sao, filosófica e teológi
camente, possiveis; éles se deram de fato na vida de Cristo (cf. «P.R.»
59/1962, qu. 3).

6) A Escritura Sagrada nao pretende ensinar ciencias naturais.


As alusñes que faz a natureza, dependem, sim, de concepcoes cien
tíficas ultrapassadas, mas nao devem ser consideradas em si; sao
mero veiculo para que o leitor considere os seres déste mundo e
aprenda o sentido que éles tém aos olhos de Deus.

7) Os homens se relacionam diretamente com Deus. Anjos e de


monios nao podem a seu bel-prazer interceptar tais relacoes; por
permissáo de Deus, podem sugerir extrínsecamente aos homens o
bem e o mal.

III. DOGMÁTICA

4) «Poderla um ateu salvar-se, ou seja, conseguir a uniáo


com Deus na eternidade após urna vida sem fé aqui na térra ?»

A questáo ácima parece absurda. Como imaginar que


alguém, cuja vida na térra decorra alheia a Deus, vá desfrutar
de Deus por todo o sempre na visáo beatifica ?
Nao obstante, alguns teólogos tém procurado refletir sobre
o assunto, movidos principalmente por textos do Concilio do
Vaticano II.

Vamos, pois, abaixo examinar os termos exatos do proble


ma, para poder considerar a sua solugáo e as conseqüéncias
daí decorrentes.
PODE UM ATEU SALVAR-SE? 29 :

1. O problema

O Concilio do Vaticano II admite que possam chegar á


salvacáo eterna pessoas que nao conhecam nem professem a
fé em Deus, ou seja, pessoas que nao tenham Religiáo:

«O Salvador quer que todos os homens se salyem (cf. 1 Tim


2,4). Aqueles, portanto, que sem culpa ignoram o Evángelho de Cris
to e siia Igreja, mas buscam de coracáo sincero a Deus e tentam,
sob o Infliixo da graca, cumplir "por obras a sua vantade conhecida
através do ditame da consciéncia, podem conseguir a salvacáo eterna.
A Divina Providencia nao nega os auxilios necessários á salva
cáo aqueles que sem culpa ainda nao chegaram ao conhecimento ex- ,
presso de Deus e se asforcam, nao sem a divina gTaca, por levar
urna vida reta» (Const. «Lumen Gentium» 16). %

Na Constituicao «Gaudium et Spes» n' 22, lé-se o seguinte:

«A perspectiva da ressurreicáo vale nao sómente para os cris-


táos, mas também para todos os homens de boa vontade em cujos co-
ragóes a graca opera de modo invisível. Com efeito, tendo Cristo mor-
rido por todos e sendo urna só a vocacao ultima do homem, isto é,
divina, devenios admitir que o Espirito Santo oferece a todos a
possibilidade de se associarem, de modo conhecido por Deus, a éste
misterio pascal».

No Decreto sobre a atividade missionária da Igreja é dito outros-


sim:

«Deus tem seus caminhos para levar á fé os homens que sem


culpa própria ignoram o Evangelho» («Ad Gentes» 7).

É claro que os ateus e indiferentes, principalmente quando vivem


honestamente, podem receber a graca da conversao ñas proximidades
da morte e assim alcanzar a vida eterna. Os textos do Vaticano II,
porém, parecem abrir ainda outra perspectiva: falam de pessoas que
(como sugerem os dizeres do Concilio) sem culpa própria ignoram
a Deus e morrem nessa condigao; tais podem ser pagaos nao evan
gelizados...; podem ser* também ateus que venham a morrer sem
ter chegado á fé explícita em Deus.

Pergunta-se entáo: pode alguém ser ateu sem culpa pró


pria, de tal modo que, vivendo no ateísmo, nao esteja ofen-
dendo a Deus e consiga a salvacáo eterna ? Da incredulidade
nesta vida pode alguém passar para a visáo de Deus face a
face na outra vida ?

Ñas páginas que se seguem, proporemos a resposta que a tal


questáo dá o teólogo P. Karl Rahner S. J., procurando elucidar o
pensamento do Concilio do Vaticano II. Cf. revista «Concilium» 23,
pág. 13-28: «La doctrine de Vatican n sur l'athéisme. Essai d'interpré-
tation par Karl Rahner».

— 29 —
30 «PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 97/1968, qu. 4

2. Encaminhando a solucao

Distingam-se duas maneiras pelas quais a mente humana


conhece algum objeto: a explícita e a implícita.
No conhecimento explícito, consideramos diretamente o
objeto em si, definimo-lo e colocamo-lo em categorías do nosso
pensamento.

No conhecimento implícito, nao nos voltamos diretamente


para o objeto como tal; mas apreendemo-lo dentro do conhe
cimento de outros objetos ou no exercício de determinadas
atividades nossas.

Sirva de exemplo o conhecimento da lógica humana. As categorías


da arte lógica estáo impregnadas na mente humana, marcando Ihe a
estrutura, de tal modo que é impossível alguém proferir urna írase
sensata sem recorrer á lógica; os principios da lógica sao como que
parte integrante de todo sujeito humano. Nao obstante, grande nú
mero de homens nao tém conhecimento explícito das regras da ló
gica; muitos sao mesmo incapazes de formular de maneira abstrata as
leis do silogismo, embora se submetam a elas e se submetam aos prin
cipios da arte lógica.

Ora diga-se algo de análogo no tocante ao conhecimento


de Deus. Todo homem tem em si a faculdade de conhecer e
amar o ente como ente, ilimitado, infinito; em qualquer de
seus atos, o ser humano póe necessáriamente em exercício a
sua capacidade de Infinito.

Ora o ente como tal, ilimitado, e o bem absoluto, nao


relativo, sao, em última análise, o próprio Deus.
Deve-se portante dizer que o espirito humano tem urna
orientacáo congénita para Deus; a presenca de Deus está im
plicada na estrutura fundamental da mente humana.

Em outros termos: «conhecer» e «amar» sao duas funcdes que


por si revelam ao homem urna vaga nogáo de Deus; essa vaga nocáo
pode nao chegar a ser formulada claramente. Podemos nao ter um
conhecimento de Deus explícito ou definido por conceitos e categorías
do pensamento; nao obstante, possuimos sempre urna relagáo trans
cendental a Deus em virtude da estrutura mesma da nossa inteligen
cia e da nossa vontade.

Na base destas consideracóes, Rahner distingue duas for


mas de teísmo ou de reccnhecimento de Deus:
o teísmo transcendental: é o relacionamento congénito, na
tural, 'da nossa mente com o Absoluto (Deus) nao conhecido
como Deus;

— 30 —
PODE UM ATEU SALVAR-SE? 31

o teísmo categorial ou conceituaJ: é o conhecimento de


Deus explicitado em conceitos filosóficos, teológicos ou em
categorías de pensamento1.

Estas pdnderacSes sao muito fecundas, pois projetam luz opor


tuna sdbre a questao das relacSes do homem com Deus.
Levándose em-cosita tais dados, podem-se enumerar

3. Quatro atitudcs do homem diante de Deus

1. Admita-se que alguém tenha o senso do Absoluto,


e reconhe;a que ésse Absoluto coincide com o próprio Deus.
Tal pessoa possui conceitos claros a respeito do único Deus,
que se revelou aos homens por Jesús Cristo. Ela tem fé; pro-
fessa o Credo e — mais ainda — procura dar o testemunho de
sua fé na sua conduta prática. — Tal é a atitude do cristáo,
que procure viver em estado de grasa.

Tém-se entáo
a) teísmo transcendental (o reconhecimento do Absoluto), e
b) teísmo conceitual, categorial (o conceito do verdadeiro Abso
luto, que é Deus, proposto pelas categorías da Religiáo).

2. Pode-se também conceber que alguém tenha a cons-


ciéncia do Absoluto e, ao mesmo tempo, retos conceitos a*
respeito de Deus, mas, na vida cotidiana, renegué a Deus...
Renegué a Deus, servindo ao pecado ou entregando-se á indi-
ferenga. É práticamente um ateu; embora conheca a Deus,
tal pessoa dá um contra-testemunho de Deus, nao se diferen»-
ciando em nada daqueles que nao créem em Deus.

Tém-se entáo
a) teísmo transcendental,
b) teísmo categorial, conceitual,
c) mas negacáo prática, consciente (e, por isto, posslvelmentc cul-
pável) de Deus.

3. Pode-se também conceber o caso de alguém que reco-


nhega o valor do Absoluto e procure respeitá-lo fielmente.
Tal pessoa, porém, recebeu formacáo religiosa deficiente ou

i Talvez a nomenclatura «teísmo transcendental» e <tt. catego-


riab pareja estraniia ao leitor. Poderá prescindir déla; continué a ler
estas páginas sem levar em canta as passagens em que ocorrem
tais termos.

— 31 —
32 «PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 97/1968. gu. 4

talvez mesmo nula; foi quigá educada em ambiente indiferente


ou antirreligioso e ateu... Em conseqüáncia, essa pessoa nao
adere a Deus e professa o indiferentismo ou mesmo o ateísmo.

Tal pessoa é atéia em seus conceitos e em suas palavras,


mas em seu modo de viver é teísta, pois no íntimo de seu
coragáo aceita o Absoluto; segué os ditames de sua consciéncia
sem vacilar; no cumprimento de seus deveres, vai táo longe
quanto a «voz interior» lhe manda. Em suma, esta pessoa nao
tem o conceito de Deus, mas é leal e sincera : só nao professa
a fé em Deus, porque déste só possui nocóes erróneas ou
falseadas.

Tém se entáo

a) ateísmo conceitual, categorial (os conceitos e categorías de


pensamento de tal pessoa sao indiferentes a Deus ou mesmo ateus),

b) teísmo prático, vivido (essa pessoa reconhece o Absoluto dos


ditames de sua consciéncia).

Por último,

4. Imagine-se o caso de alguém que nao sómente nao


possua no-oes autenticas sobre Deus, mas também se oponha
diretamente a sua consciéncia. Nao admite ditame absoluto;
nem julga que se deva dobrar a norma alguma. N¡áo aceita
valor indiscutlvel, mas adota o relativismo; a existencia, para
ele, é algo de absurdo ou urna realidade vá. Tal pessoa con-
tradiz ao mais íntimo de seu ser; é infiel á consciéncia; recusa
assim, em última análise, o próprio Deus, que sé manifesta a
todo homem, se nao por conceitos, ao menos pela voz íntima
da consciéncia e pelo senso do transcendental.

Em tal caso, tém-se

a) ateísmo conceitual, categoría! (conceitos e categorías de pen


samento ateus), e

b) ateísmo transcendental (relutáncia contra o Absoluto, que


íala pela consciéncia e que excita todo homem a ter um ideal de
vida).
Em outros termos, tem-se o ateísmo simplesmente dito, atefsmo
que por si é culpado e injustificado, porque contraria nao sómente
a conceitos verdadeiros, mas a própria natureza, ao próprio Eu do su-
jeito.

Está claro que estes quatro tipos de atitudes do homem


perante Deus podem existir mesclados entre si ou diversamente
matizados. Pode haver um cristáo que esporádicamente rene-

— 32 —
PODE UM ATEU SALVARSE? 33

gue a Deus pelo pecado, procedendo como se nao conhecesse


a lei do Senhor. Pode também haver homens ateus habitual-
mente retos que, vez por outra, contradigan! a sua consciéncia.
Pode também haver homens debochados diante de todos os
valores que, por Vézes (á guisa de excejáo), sigam generosa
mente o ditame de sua consciéncia.
Como quer que seja, o enunciado da terceira atitude lem-
bra-nos que pode haver um ateísmo de profíssáo, ao qual
correspanda um verdadeiro teísmo de consciéncia ou de cora-
cáo. A pessoa que aceita os imperativos de sua consciéncia até
as últimas conseqüéncias, em última análise, está aceitando
a Deus, embora com os labios professe nao crer em Deus.

É claro que sómente o Senhor pode ler o Intimo dos homens e


reconhecer a sinceridade interior de cada um daqueles que proíessam
o ateísmo; só Deus sabe se tal ou tal ateu é fiel á sua consciéncia.

De tais reflexóes concluí o P. Rahner que pode haver urna


«fé salutar» na própria incredulidade ou que um ateu pode,
sem saber, ter a fé que o salvará.

É realmente o que o Concilio do Vaticano II insinúa. Os docu


mentos conciliares, porém, íazem notar que a fé salvifica ou a sal-
vacilo no ateísmo só se pode dar, caso o ateu nao tenlin culpa de nao
crer em Deus (supaese aJguém que nao procure iurtar-se a luz da
verdade). Os textos conciliares sublinham também que o ateu só pode
ser fiel á sua consciéncia com o concurso da graca de Deus; é, por-
tanto, o Deus que ele nao conhece, quem o salva.

Releiamse a propósito os textos citados á pág. 29 déste fascículo,


e observe a énfase com que ocorrem as expressdes «vida reta...
segundo os ditames da consciéncia... de boa vontade... com cora-
gao sincero... sem culpa... sob o influxo da graca... nao sem a di
vina graca... em cujos coracSes a graca opera de modo invisível...»

4. Observagoes complementares

O que acaba de ser dito sugere ulteriores ponderagóes:


1. O ateísmo continua a ser, nos dizeres do Concilio do
Vaticano n, um dos mais graves problemas de nossos tempos;
é, e será sempre, um estado anormal da mente humana:

«Muitos dos nossos contemporáneos nao percebem de modo al-


gum a uniáo íntima e vital do homem com Deus ou explícitamente
a rejeitam; em conseqüencia, o ateísmo conta entre os mais graves
problemas de mosso tempo» (Const. «Gaudium et Spes» 19 § 1).
Em nSo poucos casos (que só Deus pode julgar), o ateísmo tam
bém é culposo:

— 33 —
34 «PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 97/1968, qu. 4

«Na verdade os que deliberadamente tentam afastar Deus de seu


coracáo e evitar os problemas religiosos, nao seguindo o d'.tame de
sua conscréncia, nao sao insentos de culpa» (Canst. «Gaudium et
Spes» 19 § 3).

O Concilio do Vaticano II, portante, nao pretendeu equi


parar teísmo e ateísmo no tocante á salvacáo eterna. Incumbe,
pois, a todo cristáo o dever de zelar para que todos os homens
cheguem á fé no Deus único e verdadeiro; os decretos conci
liares sobre o apostolado dos leigos e sobre as missóes o incutem
sobejamente.

2. O que o Vaticano II intencionou, foi chamar a atengáo para


fatóres psicológicos e situacoes subjetivas que podem explicar e de
certo modo justificar atitudes que, objetivamente consideradas, sao
aberrantes. Assim «nao ter fé em Deus» é fenómeno antinatural;
será preciso, porém, reconhecer que alguém pode viver em tal sitúa-
Cao sem culpa própria (principalmente nos países da Cortina de
Ferro); conseqüentemente, poderá chegar á salvacáo eterna, caso
atenda a Deus seguindo lealmente os ditamcs da consciéncia.

3. Muitas vézes, é inútil tentar falar de Deus a pessoas


atéias; nao dáo importancia ao assunto ou mesmo nao o tole-
ram. Em tais casos, o cristáo nao deverá insistir em temas
religiosos, mas procurará despertar no seu interlocutor a Leal-
dade ou a coeréncia com os ditames de sua consciéncia. Esti
mule o ateu para que seja «homem», cada vez mais «homem»,
isto é, cultive as qualidades naturais que caracterizan! o homem
digno (honradez, coeréncia, plena adesáo a um ideal); seja
definido, nunca vago ou amorfo, em suas atitudes; tenha disci
plina de vida, dominio sobre si mesmo, método ao dispor de si
e de seu trabalho.

É de crer que, seguindo estritamente tal via, o ateu chegue


finalmente ao conhecimento explícito de Deus; alcancará a
plenitude dos bens que ele possui em germen.

Pode-se mesmo dizer que urna de duas fórcas antagónicas im


prime o rumo decisivo á vida de cada homem:

a) fórca centrípeta (que leva para Deus): a sinceridade ou a


franqueza, a coeréncia irrestrita do homem com os ditamos de sua
consciéncia. O cristáo fiel á consciéncia se torna mais cristáo ou mais
próximo de Deus; o ateu, ñas mesmas condicoes, se coloca a cami-
nho de Deus e provávelmente chegará a bom termo.

b) fdKca centrifuga (que afasta de Deus): a covardla, o recelo


voluntario de se deparar com a luz; o «contentar-se com a mediocrl-
dade», porque esta é «mais cómoda». Quem assim menospreza a sua
dignidade humana, nao sómente se afasta de si mesmo (degradando-
-se), mas coloca-se num caminho em que lhe será cada vez mais difí-

— 34 —
<LIBERDADE SEM MÉDO» 35

di encontrar a Deus. Quem nao eré no Senhor e se satisfaz com um


ideal de vida vago ou indefinido, p5e se em péssimas condiedes de re-
cuperaejio. Daí a imperiosa necessidade de se combater a covardia em
todos os homens.
Todas as virtudes (moráis e teologais) prendemse a esta virtu-
de básica, que é a sinceridade, ao pafso que todos os vicios se asso-
ciam, em última análise, a tal aberraeao que é a covandia ou a ln-
sinceridade (do homem em relagáo a si mesmo).

As idéias propostas neste artigo nao sao novas. Parece,


porém, oportuno dar-lhes énfase em nossos días, quando o
ateísmo requer especial atengáo da parte dos homens de fé.

IV. EDUCACÁO

5) «O Iívto de Alexandre Neill 'Liberdade sem médo*


é um siiccsso.
Em Summerhill renova-se a educagao, removendo-se ta
bas».
Come~aremos por expor a tese do livro de Neill. A seguir,
deter-nos-emos sobre qúatro dos principáis temas que aborda:
educacáo, disciplina, sexo e Religiáo.

1. A Escola de Summerhill

1. Alexandre Sutherland Neill nasceu aos 17 de outubro de 1883,


na Escocia. A diíerenga de seus sete irmaos, nao pode ser enviado á
urna escola secundaria, dada a sua incapacidade de aprender.
Comecou a trabalhar aos quinze anos; foi ajudante em urna fábrica
de tecidos, mas mostrou-se sempre mediocre no em prego; seus pais,
preocupados, consultaran! se mutuamente a respeito do filho. Disse
um belo dia a genitora: «Por que nao fazer déle um professor?>
Ao que respondeu o pai: «Por que nao? Parece que só para isso
ele dará!»
Alexandre cursou entáo a Escola Normal. Seis anos depois ga-
nhava o salario de £ 60 por ano, o que o deixou alarmado em re-
lacáo ao seu futuro. Estudou, a seguir, latim e grego, no intuito de
se fazer ministro protestante. Comprendeu, porém, que tal nao era a
sua vocagáo. Pós-se a estudar inglés e diplomou-se em Literatura
Inglesa na Universidade de Edimburgo em 1912.

— 35 —
36 «PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 97/1968, qu. 5

Tentou entrar no jormalismo, mas sem éxito. Finalmente em


1921, resolveu fundar a Escola de Summerhill na aldeia de Leiston,
em Suflolk (Inglaterra), mais ou menos a cem milhas de Londres.
Tal escola se tornou até nossos dias alvo de contradigáo.

2. No seu livro «Liberdade sem médo», o autor expóe


o género de vida e as táticas de sua escola.

Recebe alunos dos 5 aos 16 anos de idade, provenientes de


países diversos, de modo a alojar urna media de vinte e cinco
rapazes e vinte meninas.

Os alunos sao distribuidos em tres grupos segundo a respectiva


idade, tendo urna «máedecasa» para cada grupo. «Os intermediarios
dormem num edificio de pedra, os mais velhos dormem em cabanas.
Apenas um ou dois alunos mais velhos tém quartos particulares.
Os rapazes ficam aos dois, tres ou quatro num dormitarlo, e o mes-
mo acontece as meninas. Nao sofrem inspegáo dos quartos e nin-
guém vai apanhar o que éles deixarem fora do lugar. Ficam em
liberdade. Ninguém lhes diz o que devem vestir. Usam a roupa que
querem, a qualquer momento» (ob. cit., pág. 3).

Continua Neill:

«Quando minha primeira esposa e eu comecamos a escola, tinha-


mos urna idéia principal: fazer com que a escola se adaptasse ás
criancas, em lugar de fazer com que as criancas se adaptasscm á
escola» (ob. cit., pág. 4).

O programa da escola, segundo Neill, é deixar as crianzas a li


berdade de serem elas próprias. Em vista disto, o diretar «renunciou
por completo á disciplina, a direcao, a sugestáo, ao treinamento mo
ral e á üistrugáo religiosa» (ob. cit., pág. 4).
A escola apresenta um programa de estudo, deixando aos alu
nos a escolha das materias que quiserem cursar; é-lhes facultado
comparecer ás aulas ou nao, «e isso durante anos, se assim o de-
sejarem. Há um horario, mas so para os professóres» (ob. cit.,
Pág. 5).

Afirma NeUl:

«Nao temos novos métodos de ensino, porque nao achamos que


o ensino em si mesmo tenha grande Importancia. Que urna escola
tenha ou nao algum método especial para ensinar a dividir, é coisa
de somenos, pois a divlsao nao é importante senao para aqueles que
a querem aprender. E a crianga que quer aprender a dividir aprende
rá, seja qual fdr o ensino que receba» (ob. cit., pág. 5).
Oficiáis e alunos da escola tém todos os mesmos direitos; ñas
deliberacSes comuns, criancas de seis anos tém voto decisivo tanto
quanto os mais velhos. Ninguém manda sob pena de sarigáo em
Summerhill.
3. É éste um dos aspectos da liberdade que Neill quer proporcio
nar aos seus discípulos. Há outra faceta ainda mais surpreenden-
te: no plano sexual, nada é proibido aos educandos. Ap-regoa-se

— 36 —
«LIBERDADE SEM MÉDO» 37

absoluta liberdade, de modo que, quando um jovem em SummerhUl


manifesta gdsto par leituras ou prazeres sexuais, o diretar da es
cola chega a lhe íornecer livros obcenos ou pornográficos. Nao íaz
restricto alguma ás tendencias sexuais ou ao nudismo; julga mes-
mo que o ser humano é joguéte de seus instintos sexuais, de acor-
do com a teoria de Freud; o comportamento das criancas é sempre
analisado por Neill em funcáo do sexo.
Assim julga Neill que pode fazer de seus discípulos verdadeiros
amigos da vida, íelizes e alegres. Preceitos e proibicñes só serviriam
para incutir médo ñas criancas; nelas provocariam odio e horror á
vida («antivida»).

Neill relata, com pormenores extremamente crus, casos assom-


brosos, em que o uso do sexo é estimulado ñas criancas; as suas pá
ginas se equiparam a mais balxa pornografía, tornándose asquerosas
para quem tenha o senso da honestidade. N&o sonriente um realismo
nojento perpassa as éxplanagOes do escritor, mas também um certo
sarcasmo para com pais e educadores que até hoje sempre mantive-
ram a distincjlo entre o bem e o mal, o honesto e o desonesto. Estas
sSo categorías que desapareceram' em Summerhill.
«Compreendem, entretanto, que nao estamos ácima ou além das
íraquezas humanas. Passei semanas plantando batatas, certa prima
vera, e, quando encontrei oito plantas arrancadas em junho, íiz um
barulháo. Ainda assim havia urna diíerenga entre o barulho que fiz
e o que faria um autoritario. Meu rebuligo releria-se a batatas, mas
o do autoritario arrastaria o caso para o campo moral — do direito
e do errado. Eu mSo disse que era errado roubar minhas batatas, nao
íiz disso urna questáo de bem ou de mal. Fiz barulho porque se tra-
tava das minhas batatas. Eram minhas e nao deviam ter sido toca
das. Espero estar íazendo bem clara a distincáo entre as duas ati-
tudes» (ob. cit., pág. 7s).

4. De maneira especial, o autor do livro contradiz á Religiáo,


como se fósse um sistema que, mandando ou proibindo, dissemina
o médo ou o terror. O pecado seria doenca mental ou complexo psi
cológico; a cura de tais pecados estaría simplesmente em permitir
que sejam cometidos á vontade.
Todos os vicios eníim sao explicados por Neill como produtos de
recalques acarretados pelas leis moráis. Caso íóssem supressas
todas as leis, julga o autor que os seres humanos seriam harmonio-
sos em seu comportamento moral.

5. Como complemento ao livro «Liberdade sem médo», Neill edi-


tou outro volume com o titulo de «Liberdade sem excesso». Neste es
crito sao publicadas as respostas que o mesmo autor escreveu a
centenas de pessoas que o consultaran), aflitas, a réspelto da educa-
cao de seus íilhos: dá conselhos profundamente despudorados; estimu
la, de seu modo, a luta que existe entre Íilhos e pais, jogando aque
les contra estes. Neill pretende distinguir entre liberdade e licenca:
liberdade seria a íaculdade de fazer tudo que se queira, contanto que
nSo se prejudique o bem comum; a licenga ou lieemciosidade seria
o desrespeito á liberdade dos outros.
A exposicao de tais idéias e fatos sugere a questáo: que dizer
da escola de Summerhill?

— 37 —
38 «PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 97/1968, qu. 5,

2. O concertó de educagáo

1. Na base das táticas de Neill está o pressuposto de que


a natureza humana é irrestritamente boa; espontáneamente
adquire hábitos honestos e dignos, desde que esteja entregue
a si mesma; preceitos e proibicóes a colocariam em condigóes
artificiáis, deformando-a, em vez de a beneficiar.
Conseqüentemente, a verdadeira educacáo consistiría em
garantir aos jovens o mais ampio uso de sua liberdade.

Tal conceito de educacáo tem suas raizes na tese de humanis-


tas do séc. XVI, para quem o homem nasce cheJo de boas tendencias;
toda crianca é simplesmente um honesto cidadáo em embriáo. Nos
séc. XVII e XVIII, estas idéias tomaram vulto nos sistemas de Mon
taigne, John Locke, Jean-Jacques Rousseau, Bacon, os quais se toma
ram expoentes da íilosofia naturalista. Esta é materialista; reduz o
ser humano a um conjunto de fungóes biológicas; os ideáis de cada
homem sao produtps da sua lisiologia; o que há de mais elevado na
mente, encontra suá explicacáo ñas funcñes subalternas do individuo.
O filósofo P. Marique reconstitui muito bem a filosofía do natu
ralismo nos seguintes termos:
«Todos os 'naturalistas* estáo de acordó quanto ao primado e á
auto-suficiencia da natureza, do que dccorre um certo número de con-
seqüéncias importantes para o homem, para a cultura e para a edu-
cacao... O homem... é natureza e produto déla, como foi demons
trado amplamente pela evolucáo. Nao há diferenca'em substancia, mas
apenas em grau, entre o homem e o irracional. O homem nada mais
é que um animal superior. O que a tradicáo chama de vida espiri
tual nada mais é do que um aspecto da fisica mecánica e da quí
mica. O pensamento é funcáo do cerebro; é urna Uusáo o livre arbi
trio. .. O homem é naturalmente bom, dotado pela natureza de tudo
quanto é essencial para realizar seu destino. A razáo humana é a
única fonte de conhecimento, o único criterio da verdade» («I"he
Philosophy of Christian Education». New York 1939, pág. 47).
Conseqüentemente, a filosofía naturalista ensina que a natureza
é a grande educadora; país e professóres nao devem interferir no tra-
balho da mesma. Devemse dar todas as oportunidades á crianga para
que ela se descubra a si mesma e se manifesté espontáneamente; ela
deve crescer e desenvolver-se em plena liberdade.

2. Ora é preciso dizer que tais proposigóes sao erróneas.


Todo ser humano vem ao mundo trazendo um potencial de
qualidades positivas, nao plenamente desabrochadas e — mais
ainda — mescladas de deficiencias ou más tendencias. Ésse
potencial ainda nao maduro tem que amadurecer; precisa tam-
bém de ser burilado e podado. Para tanto, necessita da agáo de
pessoas aptas a levar ao pleno desabrochamento as boas quali
dades da crianga, ao mesmo tempp que a ajudem a se desven-
cilhar das suas inclinagóes deficientes. O egoísmo congénito

— 38 —
«LIBERDADE SEM MEDO> 39

será sempre o grande entrave que dificultará ao ser humano


a sua própria realizagáo ou o encontró consigo mesmo; o
ego'smo faz do individuo o padráo de sua conduta, ao passo
que é fora de si, no seu Autor ou Criador, que o homem tem
a verdadeira medida de seu ser.

O papel do genuino educador consiste em tomar consciéncia dés-


te estado de coisas e em auxiliar eficazmente a crianca, a íim de
que nao se retorca sobre si mesma, mas se desabroche para valares
maiores e para o próprio Infinito.

O educandário deve dar padrees á crianca, e nao vice-


-versa: á crianga nao se permitirá que imponha suas veleidades
ao educador.
3. Mais precisamente, pode-se afirmar que á educacáo
competem tres grandes tarefas:

1) Transformar as capacidades em habilidades

Quem compara urna crianca recém-nascida com um filhote de


animal irracional, verifica que éste nasce muito mais habilitado para
a vida do que aquela: o pinto, por exemplo, ao sair do ovo, na in
cubadora, 6 capaz de se desenvolver por si desde que tenha alimen
to e temperatura adequados. O mesmo nao se dá com a crianca: o
que ela pode fazer por si, é agarrar, chupar e engolir, geralmen-
te no intuito de conservar e preservar a vida. Tudo mais, ela pre
cisa de aprendé-lo. E éste processo de aprendizagem exige longo pe
riodo de dependencia.

Entre os animáis, o instinto substituí o longo período de


aprendizagem. O instinto, porém, significa hábito fixo que nao
muda. Por isto nao há progresso na vida dos animáis; o pássaro,
por exemplo, constrói o seu ninho sempre do mesmo modo.
O ser humano, embora comece em condigóes inferiores as
do animal, ultrapassa por meio da aprendizagem os resultados
a que chegam os animáis inferiores. O período de dependencia
da crianga significa que ela nao possui instintos ou hábitos
fixos, estereotípicos, mas, ao contrario, possui urna natureza
rica de virtualidades ou capacidades. Essas capacidades se
transforman! em habilidades mediante o processo de apren
dizagem ou educagao.

Como exemplo sirva a capacidade de emitir sons: a crianca a


possui como o animal .irracional. Todavía a da crianca chega a re
sultados muito mais belos do que os do ser bruto, caso seja devida-
mente educada; a capacidade da crianca, mediante a colaboracáo dos
educadores, se transforma em habilidade de falar, cantar e escrever.

— 39 —
40 «PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 97/1968, qu. 5

Em conclusáo : verifica-se que a natureza coloca a enanca


recém-nascida num estado de dependencia frente as pessoas
mais velhas. Essa dependencia justamente significa que a cri
anza nao possui instintos cegos, mas potencialidades mais am
pias e dignas do que as dos animáis irracionais. Sao essas
potencialidades, portante, que constítuem ao mesmo tempo a
dignidade da crianga e a sua necessidade de ser orientada por
educadores idóneos.

2) Transformar a ignorancia em conhecimento

Já quando se diz que a crianga, pela educagáo, adquire


habilidades ou habilitagóes, diz-se implícitamente que ela ad
quire conhecimentos. Note-se também que ninguém pode viver
plenamente como ser humano sem pensar; ora, para pensar
bem, é preciso que a criatura adquira conhecimentos.
Os conhecimentos nos sao comunicados pela experiencia.
Ninguém, porém, pode pretender fazer todas as experiencias
de que necessita para viver dignamente; todos precisam de
se beneficiar da ciencia dos antepassados. Por isto é que a
segunda grande tarefa da educacáo é fornecer conhecimentos.
Tais conhecimentos háo de ser ministrados de maneira siste
mática e disciplinada, de acordó com a sabedoria dos mais
velhos; nao podem ficar na dependencia do capricho da própria
crianga inexperiente.

A propósito váo aqui citadas duas frases célebres, que pSem em


relevo o papel do professor ou dos mais velhos na comunicagao da
verdade aos jovens; estes nao podem dispensar a presenta de um
mestre assiduo, que é mais importante do que os livros:
«Nao é o que se estuda, mas com quem se estuda, que importa»
(Emerson, numa carta a sua filha)
«Pode-se obter conhecimento por meio dos livros, mas o amor ao
conhecimento só se transmite pelo contato pessoab
(Henry van Dyke)

3) Transformar os impulsos em ideáis

Além das transformacóes até aqui enunciadas, faz-se mis-


ter notar um terceiro grupo de transformacóes necessárias
na crianga.
Durante a meninice, o ego da crianca se expande, tendendo
a tornar-se um pequeño tirano em relagáo aos companheiros.
Nesse período, logo que a crianga descobre a diferenga entre
o meu e o teu, experimenta o desejo imperioso de atrair a si

— 40 —.
«LIBERDAPE SEM M£DO» 41

tudo que de qualquer modo possa contribuir para seu conforto


ou para a exaltagáo do seu ego.
Na adolescencia, é o impulso sexual que se vai despertando
e afirmando.
Tais tendencias precisam absolutamente de ser submetidas
á razáo. N

Imagínese urna crianga que desde tenra infancia nao tenha


sido acostumada a reprimir os seus impulsos instintivos. Qüando
ela atinge o uso da razáo, a sua inteligencia e a sua vontade seráo
postas incondicionalmente a servigo de tais impulsos, com detrimen
to da sua personalidade. Com outras palavras: a crianca. que desde
cedo dé livre expansáo aos instintos, mais tarde servir-se-á da inte
ligencia e da vontade preponderantemente para satisfazer a tais ins
tintos.
Alguém que se tenha tomado extremamente rico em ciencias e
habilidades, mas nao haja dominado suas tendencias naturais, po-
derá ser um ótimo proíissional (médico ou advogado, por exemplo),
mas um ser desumano; utilizará talvez seus conhecimentos de medi
cina ou direito para prejudicar ou matar o próximo.

É ao controle dos impulsos que se chama «o ideal de


vida»; sem éste nao há felicidade nem para o individuo nem
para a sociedade.
Ora, como nos casos anteriores, o educador deve ajudar
a crianga a atingir o seu ideal. O educador só o pode fazer,
caso dé autoritativamente á crianca algo que ela nao tem, isto
é, a sabedoria que só o estudo, a reflexáo e a experiencia da
vida comunicam no decorrer dé: longos anos.
4. Em complemento, váo aqui citadas algumas definigóes
de educacáo, que bem ilustram os conceitos ácima propostos :

Addison (t 1719): «O que é a escultura para o mármore, é a


educacáo para a alma humana».
Butler Nathnnicl: «Diz-se que o homem educado tem na máo um
machado afiado, e o náo-educado, um machado rombudo. Eu diría
que a finalidade da educacáo colegial é afiar machados».
Plat&o (t 349 a. O: «Educar consiste em dar ao corpo e á alma
toda a perfeicáo de que sao capazes».
Painter: «A funcáo da educacáo é assistir e dirigir os processos do
crescimento físico e mental durante os períodos de formaeao da in
fancia e da juventudes.

3. Disciplina

1. De quanto foi dito até aqui, depreende-se que nao há


educagáo sem recurso á disciplina; é preciso que sejam ora

— 41 —
42 «PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 97/1968, qu. 5

coibidos, ora cinzelados e aprimorados os instintos naturais


das criangas.
Diga-se mais: a disciplina incluí naturalmente o uso de
sangóes ou castigos.
Todavia é preciso que o educador saiba impor disciplina
e punigóes de maneira cautelosa: trate de que nao sufoquem
a personalidade da crianga, nao lhe incutam médo deprimente,
mas, ao contrario, a ajudem a se libertar de suas más tendencias
e a desenvolver suas qualidades positivas. A educagáo nao podo
pretender impor um padráo concebido de antemáo pelo edu
cador; a crianga nao deve vir a ser «o tipo de ser humano ideal*
que seus pais e mestres acariciam, mas aquilo que ela pode e
deve vir a ser segundo as suas potencialidades pessoais. Por
isto a disciplina imposta há de ser graduada de acordó com
as capacidades psicológicas e as reagóes da personalidade em
brionaria da crianga. A disciplina incutida deve gerar no peque-
nino o hábito da disciplina voluntaria e espontánea ou da auto-
-disciplina. Esta é a meta; aquela, mero meio, mas meio indis-
pensável.

«O objeto da verdadeira educacáo nao é apenas obter que o povo


faga as coisas certas, mas que usufrua as coisas certas; que nao
seja apenas operoso, mas que ame o trabalho; que nao se limite a
aprender, mas que ame o conhecimento; que nao se limite a ser puro,
mas que ame a pureza; que nao seja apenas justo, mas que tenha
íome e sede de justica» (Ruskin).
Em suma, é preciso que. ao ser submetido á disciplina (exor-
tacóes e repreensSes), o jovem perceba que lutar contra a disciplina
é lutar contra si mesmo, é prejudicar a si e ao bem comum.
Ou ainda: é necessário que a orientacáo dada pelo educador ao
educado desenvolva neste o senso da responsabilidade, habilitandoo
a tomar consciente e livremente as suas opcaes nos anos de sua ma-
turidade.

2. Neill afirma que as criangas de sua escola passam


por si mesmas da indisciplina para a disciplina, sem necessi-
tarem de quaíquer imposigáo.
Pode-se-lhe responder o seguinte :
Cómpreende-se que a prática livre e desenfreada de certas
agóes antinaturais venha a causar saturagáo e fastio em quem
as comete (todo prazer criado é limitado, é incapaz de satisfazer
indefinidamente). Conseqüentemente, depois de haver atendido
a gósto aos seus caprichos, a crianga já nao encontrará atrativo
em tais atos e desistirá de os praticar. Desistirá, porém,...
guardando em si mesma os maus instintos, ou a desordem e

— 42 —
«LIBERDADE SEM MÉDO 43

indisciplina; em dada oportunidade, esta desordena latente en


contrará outra válvula de escape e se manifestará em novo
tipo de cometimentos desregrados; o jovem carregará durante
toda a sua vida a anarquía em seu íntimo, será sempre «Sim>
e «Nao» e, por isto, infeliz, a menos que encontré quem o auxi
lie a superar-se a si mesmo.

Recorrendo a uma comparacáo, dir-se-ia: quem tem o hábito de


tomar tóxicos, acaba por enojar-se, e renuncia a ingeri-los. Mas re
nuncia doente, envenenado. Precisará de válido auxilio de outrem para
se recuperar.

É necessário, pois, que desde cedo cada ser humano combata


a desordem de sua natureza e a reduza á disciplina.
Na verdade, nao há grandeza sem disciplina — disciplina que o
homem comega por .receber dos mais velhos e que depois ele apli
ca espontáneamente a si. Nao se realiza ou nao se encontra a si
mesmo aquéle que nao salba dizer «Nao» a si próprio. A historia
de todos os grandes vultos através dos sáculos o atesta.
A falta de coragem para dominar a natureza é sinal de decre-
pitude e decadencia da mente humana. Justamente as conquistas ci
entíficas é técnicas do séc. XX exigem de maneira especial que a
educagáo leve o homem a controlar seus instintos; em caso contra
rio, ele é assujeitado pela materia, em vez de as sujeitar a si.
No prefacio do lívro «Liberdade sem médo» (pág. XVIIIs)
Erich Fromm (de resto, conhecido por sua filosofía sexualista e ma
terialista, embora se distancie de Freud) tende a identificar a edu-
cacao autoritaria com a propaganda comercial: diz ele que, ñas
sociedades capitalistas, o operario é dirigido e manipulado pelas em
presas industriáis e comerciáis. O cidadáo consumidor também nao
é livre, mas é dirigido e manipulado pela propaganda das firmas co
merciáis, que tende a transformá-lo «no eterno pimpolho... cujo úni
co desejo é consumir, cada vez mais, melhores coteas» (pág. XIX).
A propaganda comercial cria homens que se adaptam aos interésses
dos capitalistas, homens que desejam comprar e gastar cada vez
mais. — Assim também na educacáo autoritaria, diz Fromm, há
coacáo abcrta ou oculta, que rebaixa e desfigura a dignidade da
crianga. v.
O confronto estabelecido por Fromm baseia-se em vá dialética.
Além disto, é erróneo porque leva o problema da educacáo para o se-
tor da questáo social e da estrutura (capitalista ou nao) da socieda-
de contemporánea. Na verdade, trata-se de dois setores inteiramente
independentes um do outro: a propaganda comercial nao deixa de
ser útil na medida em que informa o público a respeito daquilo que
o mercado lhe pode oferecer de interessante; ela pode, porém, tornar-
-se abusiva e'falsa pelo seu afá de promover interésses comerciáis;
compete entáo aos cidadaos desvencilhar-se déla e acautelar-se contra
os «slogans» da propaganda. Esta «defesa» é necessária é legitima. O
cidadáo do séc. XX deve estar advertido contra os excessos da pro
paganda.
A educagáo está longe déste género de influencia. O auténtico
educador incluí entre os seus principios básicos o desprendlmnnto de

— 43 —
44 «PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 97/1968. qu. 5

si mesmo; ele se esforeará justamente por fazer que a crianga de-


senvolva as suas potencialidades, a íim de poder fazer livremente as
suas opgóes na vida; diríamos precisamente:... a íim de se poder
defender contra as sugestdes massif¡cantes que as campanhas co-
mercais e políticas exercem sobre os cidadáos do séc. XX. Quanto
mais propaganda engañadora existe, tanto mais deve haver educa-
cáo sincera e benévola, que seja o contrapeso de tal propaganda.
A respeito de disciplina e exercicio de autoridade, vejam-se ul
teriores consideracoes em «P.R.» 71/1963, qu. 3.

4. Educagao sexual

Summerhill incute absoluta liberdade no uso do sexo, re


cusando qualquer tipo de educacáo sexual.
Nao será necessário desenvolver muitos argumentos para
demonstrar que esta tese é nociva.
O instinto sexual é dos mais poderosos que o ser humano
possui; pode fácilmente sobrepujar as facuidades superiores
do homem. É preciso, pois, que o seu despertar gradativo seja
acompanhado de criteriosa formagáo da crianga, a fim de que
ela nao seja arrastada pelos seus cegos impulsos.
É desde os primeiros anos que se deve preparar o dominio
do adolescente sobre a sua sexualidade. A titulo de ilustrapáo,
seguem-se algumas normas oportunas, em tal terreno, sugeridas
por C. Campos na obra «Educacáo sexual», pág. 38s :

a) a crianca terá hora determinada para se levantar de marina;


fora os casos de íórca maior, a boa mae se emperchará em que tal
horario seja observado. «A máe que permite ao filho repetir indefi
nidamente 'Já vou", continuando despertó ou semi-acordado na
cama, está-lhe ensinando a arte sinistra de entregar-se ao vicio se
creto».
b) Evite-se que a crianca se alimente em excesso ou coma «a
toda hora». «Quem de pequeño nao se habituou a privarse de vez
em quando de urna gulodice, nao resistirá mais tarde aos incitamen
tos da sensualidades.
c) Sejam as bebidas alcoólicas rigorosamente vedadas ás crian-
cas.

d) Incuta-se na alma infantil o sentimento do dever,


dando-se-lhe o exemplo,
mostrandose-lhe com historias e casos reais os premios do de-
ver cumprido e os castigos da atitude contraria,
impondose-lhc punicáo adequada desde que admoestacOes nao
logrem resultado,
premiándose, ao menos com um elogio prudente, o exato
cumprimento do dever.

_ 44 —
«LIBERDADE SEM MÉDO» 45

Estas e outras medidas educativas criaráo no pequenino


o hábito do controle sobre si mesmo; para que a pessoa domine
o que se refere ao sexo, é preciso que possua dominio sobre o
seu modo de se comportar em geral. É mirito válida a obser-
vagáo: quem desde cedo nao executa fielmente as pequeñas
tarefas cotidianas, como na adolescencia cumprirá o dever,
por vézes considerávelmente pesado, de ser puro ? Quem disci
plina os seus prazeres, nao é necessáriamente contra o prazer,
como dá a entender Neill.

Sobre educacáo sexual, veja-se «P.R.» 2/1958, qu. 6.

5. Crítica á Religiáo

Quem vé na Religiáo um sistema de preceitos e proibigóes, feito


para incutir o tnédo e sufocar os predicados da personalidade hu
mana, nao entendeu em absoluto o que é Religiáo. A propósito veja
re «P.R.» 19/1959, qu. 1; 73/1964, qu. 2; 83/1964, qu. 1.

Religiáo, em última análise, é o desabrochar da faculdade


mais nobre que o homem possui: a faculdade de amar. É
a aplicagáo do amor humano ao Supremo Bem ou ao Primeiro
Amor — Deus. É amando a Deus que a criatura pode amar com
retidáo as demais criaturas, sem perigo de se retorcer ou
desfigurar; quem ama a Deus, espontáneamente é levado a
corrigir o egoísmo e a querer o verdadeiro bem ao próximo.

Por isto, dizia muito sabiamente S. Agostinho :

«Ama, e faze o que quiseres».

Eis como se consegue a verdadeira liberdade a que tanto


aspira a escola de Summerhill: amando a Deus e amando em
Deus a todas as criaturas, pode o homem fazer tudo que
queira... Naturalmente S. Agostinho tinha em vista o amor a
Deus, que se revelou por Nosso Senhor Jesús Cristo e que
continua a falar pela sua S. Igreja.

Dáo exemplo de tal liberdade os santos da historia, os quais


foram e sao os homens mais livres que os sáculos conheceram;
por graca de Deus, tornaram-se senhores de si e sénhores das
criaturas que os cercavam; é o que, entre outras, atesta a
figura de Sao Francisco de Assis.

Em conclusao: quem pondera o ideal apregoado pela escola


de Summerhill e os métodos táo pouco cristáos (ou mesmo táo

45
46 «PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 97/1968, qu. 6

pouco humanos) aplicados por Neill, talvez seja levado a se


lembrar\das palavras do profeta Jeremías :

«Meu povo... abandonou-me a mim, íonte de agua viva,


Para cavar cisternas, cisternas íendidas,
Que nao retém a agua».

(Jer 2,13)

Fora de Deus ou caricaturando a Deus, procuram os ho-


mens a liberdade sem médo ! Na verdade, é sómente em Deus
e por Deus que conseguiráo encontrá-la.

V. PSICOLOGÍA E MORAL

6) «O transplante de coracáo de urna pessoa para outra


nao implica em transfusao de pensamentos e afetos ?
O hotnem que viva com coracáo de mulher, continuará
a amar como homem ?»

A ocasiáo destas dúvidas sao recentes operagóes realiza


das nos Estados Unidos da América e na África do Sul.
Tornou-se famoso principalmente o caso do paciente Luís
Washkansky, lituano, que, com mais de cinqüenta anos de
idade, recebeu por vía cirúrgica, aos 3/Xn/67, o coracáo de
urna jovem de vinte e cinco anos, Denise Darvall, que morrera
pouco antes, de desastre automobilístico.
Poucos días depois de operado, dizia Washkansky: «Sin-
to-me um Frankenstein. Tenho o coracáo de outra pessoa».
Por ocasiáo déstes fatos, surgiu na mente do público a
questáo: «Transplante de coragáo nao redundará em mu-
danga de psiquismo e de personalidade ?»
A dúvida pode-se elucidar com facilidade através das se-
guintes etapas:
1) Antes do mais, convém notar que o transplante de
órgáos de um organismo para outro é moralmente lícito, con
tanto que se faga dentro de certas condicóes, a saber:
a) a operagáo deve ser necessária e urgente para sal
var a vida do paciente ;

— 46 —
TRANSPLANTE DE CORACAO 47

b) a pessoa que dá o órgáo (caso seja viva), deve estar


de acordó com o transplante;
c) a operagáo nao deve comprometer a vida do doador.
Nao seria admissivel matar urna pessoa para salvar a vida
de outra.
Estas condigóes foram observadas nos recentes transplan
tes de coragáo, de modo que, do ponto de vista moral, nada
há que objetar contra tais operagóes.
2) Do ponto de vista psicológico, deve-se dizer que o
enxérto de coragáo alheio em determinado paciente nao acar-
reta transfusáo de pensamentos e afetos ou mudanga de per-
sonalidade.
Com efeito, o principal responsável pelos pensamentos e
afetos (psiquismo) de urna pessoa nao é o coragáo ou o corpo,
mas a alma. É esta também que comunica a personalidade,
com suas características.
E que é a alma ?
É urna entidade espiritual, nao material, que vivifica os
nossos órgáos corpóreos e déles se serve para conhecer e ,
amar. O corpo por si só é insensível; basta considerar um
cadáver, mero aglomerado de substancias químicas, totalmente
incapaz de reagóes porque a respectiva alma déle se separou.
O corpo humano só conhece e só tem afetos quando a alma
néle está presente.
Por conseguinte, o homem nao ama com o coragáo, mas
com a alma espiritual (esta é dotada de vontade ou da facul-
dade de querer e amar).
3) Porque entáo se diz, quando alguém nao ama, que
essa pessoa «nao tem coragáo» ou «tem coragáo de pedra» ?
Éste modo de falar é pré-filosófico ou popular. Explica-se
pelo fato de que os afetos da alma (amor, odio, temor, ale
gría...) repercutem no corpo, visto que alma e corpo estáo
intimamente associados entre si (quem tem médo, empalidece;
quem se encoleriza, cheio de odio, aparece com as faces ver-
melhas, o sangue lhe sobe á cabega...). Ora o coragáo é o
centro de toda a nossa vida corpórea; por conseguinte, en-
tende-se que ele seja (por suas pulsagóes ora mais, ora menos'
aceleradas) como que o índice dos afetos da alma. É por tal
motivo que na linguagem cotidiana, náo-científica, se associam
coragáo e amor. Alias a Biblia Sagrada adota éste modo de
falar, já que os judeus antigos o adotavam (cf. SI 7, 10; 18,
15; 72, 1. 26...).

— 47 -,
48 «PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 97/1968,, qu. 6

4) Mas nao se pode crer que, quando se transpóe o cora


gáo de urna pessoa para outra, também se transpóe a alma
desta outra pessoa (ou ao menos urna parte dessa alma), com
seus pensamentos e afetos ?
Nao. A alma é espiritual e indivisível; ela nao se parte
nem reparte. Ela também nao está presa a determinado órgáo
(nem ao coragáo, nem ao cerebro ou massa cinzenta), mas
está toda presente no corpo inteiro, sem se co-estender com as
partes do corpo ou sem se distribuir pelos órgáos do corpo.
Por conseguinte, o coracáo de urna pessoa transplantado
para outra deixa de viver da alma do doador, e passa a viver
por agáo da alma da pessoa receptora. «Passa a viver»...
desde que ésse coracáo esteja bem conservado, «fresco» e tenha
capacidade de ser assimilado pelo organismo receptor ; entáo
o potencial dinámico do coragáo do doador é logo utilizado
pela alma do receptor.
Vé-se, pois, que nao há motivo para se recear que o trans
plante de coragáo implique em mudanga de personalidade ou
psiquismo para o respectivo paciente.
A explanagáo ácima supóe quanto foi dito a respeito da
alma e da vida psíquica em «P.R.» 87/1967, qu. 1.

No intuito de melhor servir, propomos ao prezado leitor


tres perguntas:

1) Acha que «P.R.» está preenchendo a sua finalidade


de esclarecer as mentes e difundir válidas solucóes para os
problemas abordados ?

.2) Que se poderia fazer para tornar «P.R.» mais inte-


ressante e útil aos leitores ?

3) Que mais tem a dizer-nos sobre a revista ? Quais os


seus desejos ?

Agradecendo anticipadamente as respostas,

D. Kstéváo Bettencourt O.S.B.


Caixa postal, 2.666-GB

— 48 —
A RADIO TUPI DA GUANABARA

aprésente os programas

«PEKGUNTE E RESPONDEREMOS»

todos os domingos, das 6h 30min as 7 h, na palavra de

D. Estéváo Bettencourt O. S. B.

«CONVERSA DE TRES MINUTOS»

de segunda a sexta-feira, as 6h 50min, por

monges de Sao Bento da GB


NO PRÓXIMO NÚMERO :

Controle da natalidade e pílula

Porque fé em crise ?

O essencial na fé crista

Religiosos ? ! Nao sobrou lugar...

Igre¡a dos pobres

Padre casado com profissao civil ?

«PERGUNTE E RESPONDEREMOS»

€ porte comum NCr$ 10,00


Asslnatura anual I
I porte aéreo NCr$ 15,00

Número avulso de qualquer mes e ano NCr$ 1,00


Colesáo encadernada de 1957 a 1964 NCr$ 80,00

Índice Geral de 1957 a 1964 NCr$ 7'00

Encíclica «Populorum Progressio NCr$ 0,50


A colegao encadernada de «P. R.» 1967 estarft h venda a partir
de íevereiro de 1968.
Bogamos a todos efetuem sens pagamentos com a possível
brevidade.

EEDAgAO ADMINISTEACIAO

Calxa Postal 2666 Av. Eio Branco, 9, 8/111-A-ZO05


ZC-00 TeL: 26-1822
Eio de Janeiro (GB) Blo de Janeiro (GB).

You might also like