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PROJETO (3)

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Com os olhos bem abertos, Gabriel encarou a coluna. Procurou, mais


uma vez, algo nela que denunciasse o mal. Mais uma vez encontrou
apenas concreto cinzento e frio, silencioso.
- Tô ficando é biruta – pensou. – Essa terra de homens cozinha os
miolos da gente.
Deu as costas para a coluna e voltou a caminhar sem destino. Sentia
ainda a presença do objeto, mas fez questão imaginá-lo como névoa se
dispersando. Melhor assim, uma preocupação a menos. Logo mais à
frente viu surgir diante dos seus olhos uma pequena igreja. Uma igreja?
Desde a sua chegada à terra não a vira, embora já tivesse passado por
aquele mesmo lugar incontáveis vezes. E ignorar uma igreja, para ele,
um anjo, seria difícil. Reconhecia desde sempre os símbolos do Sagrado,
e dificilmente deixaria de notar uma igreja.
Convencido enfim de que o mundo onde o Supremo o confinara era
um pátio de sentidos delirantes afastou suas dúvidas e caminhou em
direção às portas da igreja, que era modesta, econômica em termos de
arquitetura religiosa. Apenas a grande cruz de pedra no alto do telhado
informava que se tratava de uma casa de Deus.
O anjo atravessou então as portas e se deparou com uma igreja
vazia e silenciosa, a luz vinda exclusivamente de uma infinidade de velas
acesas por todos os lugares, ao pé das estátuas tristonhas e desbotadas,
em cantos remotos, de um grande candelabro de bronze plantado à
esquerda do púlpito. No mais a escuridão gotejava escondendo móveis,
quadros de santos, tornando o ambiente mais misterioso do que sagrado.
Sentando-se à frente do altar principal, Gabriel procurou por Deus.
Chamou-o em oração, depois em voz baixa. Em troca recebeu apenas o
silêncio das paredes.
- Então é verdade mesmo – falou enfim em voz alta. – O Supremo me
abandonou.
O silêncio ganhou uma dimensão insuportável.
- Responda, Senhor – disse. – Me ajude a não duvidar ainda mais da
minha fé!
- A dúvida também é um exercício de fé, meu filho.
Gabriel se voltou na direção da voz e encontrou um homem velho,
baixo, os poucos cabelos deixando bem clara a sua intenção de lhe
abandonarem definitivamente a cabeça.
- A fé não se sustenta na dúvida – falou Gabriel com autoridade. – E
aliás, quem é o senhor?
O homem sorriu e se sentou ao lado do anjo.
- Meu nome é Gerôncio, padre Gerôncio. Sou o responsável pela
igreja.
Gabriel relaxou: enfim alguém que poderia compreender as suas
aflições.
- E eu sou Gabriel, padre. Sou um... Bem, eu sou alguém que de
repente viu a sua igreja e resolveu entrar.
- Uma decisão correta, Gabriel. E a igreja é mesmo um lugar de
anjos. Ou era, pelo menos.
Gabriel se levantou, os olhos arregalados.
- O senhor sabe o que eu sou? – perguntou.
O padre gargalhou um sorriso de dentes falhos, a barriga saliente
subindo e descendo.
- Pensei que os anjos não se surpreendiam tão facilmente – falou o
padre. – Já vi você antes, na minha juventude, e vi outros anjos
também. Os meus colegas de batina dizem que isso é um dom; eu, de
minha parte, considero uma maldição. Mas esse tipo de coisa não foi
escolha minha. Eu não escolho, Deus é quem escolhe.
Gabriel olhou bem para a cara do padre. Talvez fosse maluco.
- Não, não, meu filho. Não sou maluco. Apenas sou capaz de ver o
que eu não quero, e acabo me metendo em assuntos que não são
absolutamente da minha conta. A sua missão, por exemplo...
- O que sabe da minha missão?
- Pouco, mas o suficiente para saber que vai dar encrenca. Fosse eu
mais jovem e ingênuo, como já fui, ficaria exultante: poder testemunhar
com estes olhos aqui a volta do Filho de Deus, as maravilhas do amor,
essa conversa fiada toda. Mas já estou velho e conheço o Supremo há
tempo suficiente para saber que isso é tédio, uma necessidade quase
humana de preencher a solidão. Você tem idéia do que deve ser a
solidão de Deus? Creio que ele já tá de saco cheio da própria divindade e
agora resolveu inventar somente com a intenção de se divertir.
- Percebi isso também – falou Gabriel. – E tenho me sentido muito
mal. De uma hora pra outra passei a questionar as coisas, Deus, seus
objetivos. Meu papel não é, nunca foi, questionar. Dentro da hierarquia
eu obedeço ordens, e só. Mas acho que algo aqui nesta terra, o ar, sei lá,
isso faz com que a gente mude o comportamento, mude as idéias. Tenho
discordado abertamente do Supremo, em pensamento, mas ainda assim.
E sei que ele sabe.
- Ele sabe.
- Ando agora meio perdido por aqui, sem saber a direção, o rumo. A
menina com quem o Supremo cismou também entrou em parafuso,
desapareceu sem deixar rastros. E coisas estranhas me acontecem aqui
por dentro, passei a pensar nela de maneira como nunca antes pensara
em alguém, muito menos uma mulher. Eu sou um anjo, porra, essas
coisas não são pra mim, onde é que já se viu!
O padre riu.
- Gabriel, o negócio é o seguinte: misteriosos...
- São os caminhos do Senhor. Tá, eu sei. E daí?
- Aí dentro dessa sua missão pode ter outra coisa, um extra, algo
que até mesmo o Supremo ignora. Mas tenha certeza de uma coisa: tudo
o que você está sentindo, experimentando, tem um sentido. Talvez seja
cedo ainda para entender, mas é óbvio que é isso. Eu acredito que Deus
às vezes faz coisas sem nem mesmo se dar conta. A gente foi criada para
achar que Ele é perfeito, que não erra. Não concordo com isso – a
própria humanidade, no meu entender, é a prova mais evidente do erro
de Deus, da sua imperfeição.
Gabriel levantou as sobrancelhas.
- Para um padre, você tem opiniões bem diferentes.
- Você também é um anjo diferente, Gabriel. Ou vai querer me
convencer de que não pensa exatamente igual a mim? Mas de qualquer
maneira, meu filho, somos irmãos em Deus, apesar de Deus.
Irmãos em Deus, apesar de Deus. A frase ficou fazendo eco nos
pensamentos de Gabriel. Fechou os olhos por alguns instantes e as
imagens dos últimos acontecimentos desfilaram por sua mente como se
fizessem parte de um filme antigo e desbotado.
- E a coluna, padre?
- Que coluna?
- A coluna alta de concreto que fica logo ali na praça. Basta colocar
os olhos nela que eu sinto calafrios.
O rosto do padre, pela primeira vez, ganhou contornos severos.
- Nunca houve praça nesta rua, Gabriel. Nem coluna.

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