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HANS KNEIFEL

TERRA EM PERIGO
Tradução de RICHARD PAUL NETO

Título do original: “DIE ERDE IN GEFAHR"

By ERICH PABEL VERLAG — Rastatt, West Germany


Da tradução — EDITORA TECNOPRINT S.A., 1977

Todos os personagens deste livro são fictícios. Qualquer semelhança com


pessoas ou acontecimentos da vida real é mera coincidência.

HISTORIA ou ESTÓRIA?
As Edições de Ouro e o Coquetel grafam a palavra história e não
estória por julgar a primeira forma mais correta, conforme
dicionários mais categorizados, que julgam a segunda forma
imitação do inglês story, sem correspondente com raízes em nossa
língua.
1

ENCONTRAVAM-SE a uma distância de apenas um quarto de


unidade astronômica. O círculo incompleto do grande satélite foi
emergindo da escuridão do espaço. A lua de Geerson, situada no cubo
espacial Dois/Norte 098, surgiu na tela principal. Os olhos cinzentos
fitavam atentamente o quadro; parecia que procuravam algum perigo
oculto. Sabia que numa situação como esta os sentimentos às vezes
acertam. Sessenta dias já se haviam passado desde a invasão dos
extraterranos.
— Observação espacial? — perguntou Lydia em voz baixa.
Além dela, só havia dois homens na carlinga de comando da nave:
o telegrafista e o astronavegador. O homem magro de cabelo curto
cortado à escovinha tinha uma voz cuja profundeza sempre
surpreendia Lydia. Não havia nenhuma voz de baixo mais grave em
toda a frota.
— Apareceu alguma coisa nas telas que possa representar um
perigo para nós?
— Não, nada. A tela apenas registra o raio vetor da base. Mais
nada. Não acusa outra nave, nem emissão energética, nada.
A lembrança da invasão frustrada de ! dois meses atrás deixou
Lydia apavorada. Só por um acaso Terra e a esfera espacial de
novecentos parsec de diâmetro deixaram de ser escravizadas por
completo.
— Quer dizer que podemos pousar — disse, recostando-se na
poltrona estofada anatômica.
— Não há nada que contra-indique esse procedimento — disse o
telegrafista. — Meus alto-falantes estão mudos como se estivessem
embaixo da água.
A lua de Geerson era uma esfera de rocha e silicatos. Girava em
torno de um sol muito antigo. Num passado remoto, o planeta foi
destruído e sua única lua foi atraída pelo sol, que a obrigou a seguir
uma órbita estável. Os terranos descobriram-na e verificaram que se
prestaria muito bem à instalação de uma base de abastecimentos e
depósito. E foi justamente em virtude dessas propriedades que Lydia
van Dyke se dirigia à lua.
— Queiram preparar as manobras de aterrissagem — disse o
telegrafista numa calma impessoal.
— Comandante para livro de bordo — disse Lydia para dentro do
microfone. — A Hydra II pousará junto à base de suprimento da lua
de Geerson, a fim de receber três blocos energéticos destinados aos
mecanismos propulsores. Os elementos que utilizamos já estão
esgotados. Tempo: oito horas e trinta minutos. Fim.
À frente de Lydia, bem em cima da tela de visão, iluminou-se uma
tela retangular. Mostrava um dispositivo de mira, dentro do qual se
movia um ponto bem saliente. O pouso seria simples. Enquanto o
ponto permanecesse no centro, a Hydra estaria na rota correta.
— Comandante para a sala de máquinas: preparem a manobra de
aterrissagem.
Lydia modificou a direção das lentes externas e colocou a nave
numa posição que correspondia à horizontal, medida em relação
ao.centro da lua. A Hydra aproximava-se do campo de pouso com os
raios antigravitacionais em ação. Uma ordem transmitida pelo rádio
fez girar a chave numa das cúpulas, e a seguir um círculo de lâmpadas
pequenas, que emitiam uma luz amarela ofuscante, iluminava o
perímetro do campo.
— Trezentos metros acima do solo — disse o oficial incumbido do
serviço de observação espacial.
A nave descia silenciosamente. Três potentes faróis de
aterrissagem iluminavam a área lisa, feita de pedra derretida. A luz do
sol distante, de um vermelho poeirento e mortiço, era totalmente
absorvida pela superfície negra da lua. O grau de reflexão desse corpo
era muito baixo.
— Cem metros.
— Se não estou enganada — disse Lydia, tirando o cinto e virando
o rosto — os blocos energéticos não emitem radiações. Podemos
buscá-los e colocá-los na nave por meio do elevador principal. Sairei
com os senhores.
Lydia moveu uma chave. O mecanismo controlado pela
calculadora digital de bordo mantinha a nave invariavelmente na
mesma posição. A mulher e os dois astronautas foram ao elevador que
os levou à parte inferior da nave. Ali ajudaram-se uns aos outros a
vestir os trajes espaciais, que eram bem leves.
— Retirar o elevador.
Quando o chão do elevador tocou as rochas da lua, um contato foi
acionado e o dispositivo hidráulico firmou o mecanismo.
— Gravitação artificial na área de pouso ligada.
— Excelente — disse Lydia em voz baixa. — Ao que parece as
máquinas servo estão funcionando.
A escotilha da comporta abriu-se e os três terranos saíram para a
escuridão vaga da lua. O astro de pedra não tinha qualquer atmosfera.
Sua gravitação, que correspondia a um quarto da gravitação terrana,
havia sido artificialmente reforçada num círculo de setenta metros de
diâmetro. Os terranos aproximaram-se lentamente do cubo preto que
se via na periferia do campo de pouso. Era ali que ficava a entrada dos
depósitos.
Lydia parou um pouco. As estrelas que se via aqui, no setor
Dois/Norte 098, eram quase idênticas às de Terra. À direita, oculto
atrás da curvatura leve da lua, o sol enviava sua luz vermelho-escura.
O quadro era encimado pelos pontos luminosos formados por
inúmeras estrelas. Só pequeno número delas encontrava-se no setor
controlado pelo planeta Terra. Em algum lugar do hiperespaço
estavam os extraterranos, que os humanos haviam posto em fuga. E
pensou na última mensagem enviada pelos extraterranos: "Não
queremos nenhum contato; odiamos vocês". Depois, Lydia ouviu a
respiração dos dois homens. Apressou o passo e juntou-se ao grupo.
Dali a alguns segundos encontravam-se diante do pesado portão que
dava para a comporta de materiais do depósito sublunar.
— Está com a chave-rádio, general? — perguntou o
astronavegador em voz baixa.
— Naturalmente.
Lydia pôs a mão num dos bolsos rígidos do cinto e tirou a chave
universal da frota. O aparelho emitia uma mensagem modulada de
rádio, que abria as fechaduras altamente complicadas e controladas
por rádio. A luz do cinto de Van Dyke acendeu-se e arrancou da
escuridão uma área em torno da fechadura. Lydia ligou o aparelho
redondo, comprimiu-o contra a chapa de metal e apertou o botão. O
processo de abertura foi totalmente silencioso. A pesada porta isolada
foi rolando para a esquerda, entrou no caixilho vedado e parou.
O astronavegador tocou uma placa quadrada e girou-a. Dois
retângulos no teto da comporta iluminaram-se, enquanto as lâmpadas
do cinto se apagaram.
— Vamos pegar as caixas — disse Lydia.
Entraram na comporta. A placa voltou a fechar-se atrás deles. No
depósito também havia alimentos, pois nos recintos sublunares havia
um certo calor.
— A porta interna da comporta não está trancada — disse Lydia,
pegando a alavanca e abrindo-a. Viram diante de si um recinto em
forma de cubo, no qual reinava uma semi-escuridão. Viram-se caixas
em embalagem à prova de espaço, fardos e recipientes de lata com
inscrições em código.
— A luz? É aqui — disse o telegrafista. Os quadrados do teto se
iluminaram.
Puderam perceber o tamanho do recinto, com a luz. O
comprimento das arestas do cubo era superior a quarenta metros. As
paredes estavam revestidas de plástico branco e elástico.
— Como são os blocos energéticos? Qual é a embalagem? —
perguntou Lydia, dirigindo-se a uma pilha de caixas.
— Têm um isolamento espesso de cor amarelo-alaranjada. Em
cima dele está a inscrição e a advertência — respondeu o telegrafista e
caminhou em outra direção. — São caixas de cerca de setenta
centímetros.
O astronavegador foi para junto da parede do lado direito e
examinou a longa lista do inventário. Qualquer nave espacial que
pousasse aqui e retirasse qualquer objeto teria de fazer a respectiva
anotação. Após isso uma nave de abastecimento voltaria a completar o
depósito.
— Aqui estão registrados quatro blocos energéticos — disse o
astronavegador. — Devem encontrar-se na área sete.
O chão estava reticulado com linhas negras e em cada quadrado
estava inscrito um número. Depois de procurar durante alguns
segundos, Lydia viu o número sete diante de seus sapatos.
— Dê mais uma olhada — pediu com sua voz fria e áspera. — A
área sete está vazia.
— General — respondeu o homem com uma ligeira irritação na
voz. — Aqui estão registrados três blocos energéticos. Ninguém tocou
neles. Devem encontrar-se na área número sete.
— Já desconfiei antes do pouso — disse Lydia. — A arca número
sete está vazia.
O telegrafista que se encontrava a seu lado fitou o número.
— Está totalmente vazia. E ninguém pode ter entrado aqui, a não
ser a tripulação de alguma nave. E esta não teria deixado de fazer o
registro correspondente. Sabe perfeitamente quanta coisa pode
depender disso.
— Há outra possibilidade — disse o astronavegador em voz alta e
em tom furioso. — É possível que algum idiota da nave de
abastecimento não saiba ler números. É de estranhar que hoje em dia
já tenham de recorrer aos analfabetos. No meu tempo...
— Temos de procurar — disse Lydia. — Vamos embora. Não
podemos ficar aqui para sempre.
Procuraram em silêncio. Sabiam qual era o tamanho do volume e o
que estava escrito na embalagem. Encontraram tudo que se podia
imaginar, desde ácido fórmico pulverizado até tubulações de
suprimento de água para cabines. Apenas não encontraram blocos
energéticos destinados à máquina de uma nave.
Procuraram durante uma hora; depois desistiram.
— Existem várias possibilidades — disse Lydia contemplando o
visor do capacete do astronavegador. — Talvez o erro tenha sua
origem na incompetência de um elemento da frota de abastecimento...
O astronavegador fez um gesto afirmativo.
— Seria o primeiro caso na minha carreira, que afinal já tem
quinze anos de duração.
— Ou então alguém retirou os blocos sem fazer qualquer anotação.
A Orion VII esteve aqui e levou conservas para suas câmaras
frigoríficas; foi a última nave que pousou aqui.
Um ligeiro sorriso passou pelo rosto de Lydia.
— A Orion VII não existe mais. Quando emergiu do hiperespaço
foi esfacelada por um planeta em chamas. As conservas passaram a
integrar algum gás estelar. Portanto, não voltem a marretar McLane.
Os dois homens soltaram uma risadinha.
— Ainda existe uma terceira possibilidade.
O telegrafista apontou para o lugar vazio no chão.
— É justamente essa possibilidade que começa a me infundir
pavor — murmurou Lydia. Sua voz era ainda mais fria do que de
costume.
— É possível que alguém tenha roubado os blocos energéticos.
Olharam-se através das grossas lâminas dos visores de seus
capacetes espaciais. Calaram-se, muito confusos. Seria roubo?
— Isso é uma tolice! — disse o telegrafista em voz alta. —
Ninguém saberia o que fazer com esses blocos energéticos.
Lydia apontou para a comporta.
— Estes elementos não são utilizáveis apenas nas naves espaciais,
mas em qualquer maquinaria de grandes proporções. Se forem
acoplados a um distribuidor, poderão ser empregados em complexos
menores. Qualquer pessoa que precisar de energia pode fazer muita
coisa com estes objetos.
— Está bem. Reconheço que é verdade — respondeu o
astronavegador.
Dirigiram-se à escotilha interna da comporta. Acima deles a Hydra
II os aguardava. Esta nave-disco não poderia realizar a viagem de
volta a Terra com o suprimento de energia que tinha a bordo. Mas, por
enquanto, não havia nenhum risco imediato.
— E agora?
— Vamos expedir uma mensagem pelo rádio e aguardamos a
nave-socorro. No momento é a única coisa que podemos fazer —
disse o general.
A escotilha interna da comporta abriu-se e voltou a fechar-se. Os
três terranos dirigiram-se ao elevador hidráulico, trancaram a
comporta e foram à nave. O campo de gravitação artificial foi
desativado.
— Dirija uma mensagem para a F.R.E.T., telegrafista — disse
Lydia.
— Perfeitamente. Qual é o texto? Lydia van Dyke era uma mulher
de trinta e cinco anos que parecia cinco anos mais jovem. Possuía
lindos cabelos castanho-escuros e um par de olhos cinzentos e frios. A
voz áspera e controlada combinava com o rosto. Só quem fosse muito
chegado a Lydia perceberia que ela não era apenas aquela frieza, mas,
também, uma estupenda mulher.
— Transmita o seguinte — disse. — Nave espacial Hydra II,
comandada pelo general Van Dyke. Em trânsito para Terra. Endereço:
Formação de Reconhecimento Espacial de Terra. Marechal Wamsler.
Nave está presa na lua Geerson, em Dois/Norte 098. Blocos
energéticos esgotados. Não conseguimos recolher outros para a
substituição. Aparentemente o depósito da lua de Geerson foi
parcialmente saqueado. Solicitamos envio imediato nave
abastecimento com três blocos energéticos. Urgente. Utilizar
ordenador alfa. Assinado: Van Dyke. Fim.
O texto foi irradiado através de um sistema de satélites
retransmissores hipervelozes até EA IV, de onde chegou diretamente
ao labirinto submarino da Base 104. Dentro de um minuto e meio, a
confirmação foi recebida a bordo da Hydra.
F.R.E.T. para Van Dyke, a bordo da Hydra II. Nave de
abastecimento acaba de decolar. Pedimos relatar acidente
imediatamente após o pouso em Terra. Wamsler.
Lydia passou os olhos pela carlinga e disse em tom hesitante:
— Vamos aproveitar a energia que temos a bordo para fazer uma
comida bem gostosa. Depois esperaremos a chegada da nave de
abastecimento. O rádio permanecerá ligado em recepção. É a única
coisa que podemos fazer.
— Há outra — disse o telegrafista a meia voz. Sua fala parecia
trair um temor indefinido. — Podemos refletir para ver se
descobrimos quem poderia ter saqueado o depósito.
Lydia levantou-se.
— O senhor está exprimindo meus pensamentos — disse.
Todas as luzes e telas foram apagadas.
Apenas os aparelhos indispensáveis continuaram a funcionar. Os
quatro tripulantes reuniram-se no camarote de Lydia. O engenheiro da
sala de máquinas também desligou os aparelhos. A nave aguardava
junto à lua de Geerson, em Dois/Norte 098.
***
Dificilmente duas pessoas poderiam ser mais diferentes que os
dois homens sentados frente a frente junto à grande mesa reluzente. O
marechal Woodrow Winston Wamsler era um homem de cinqüenta e
seis anos, no qual tudo era maciço e preto: o uniforme, as
sobrancelhas hirsutas, os olhos e o cabelo, e até mesmo o pesado anel.
Os dedos roliços tamborilavam um compasso rápido sobre a tampa de
vidro. Diante desses dedos, viam-se pilhas de documentos e um largo
quadro de comando linear com numerosas teclas. À sua direita a tela
de um complicado videofone ocupava uma posição oblíqua.
Sessenta dias depois de ter sido rechaçada a invasão...
À frente de Wamsler estava sentado o coronel Henryk Villa. Tinha
sessenta e um anos, era pequeno e apresentava uma agilidade física
que correspondia à agilidade mental. Villa retornara à sua função. Os
psiquiatras e os médicos haviam realizado verdadeiros milagres para
voltar a transformá-lo num ser humano. Durante as ações por ele
sabotadas tornou-se um marionete dos extraterranos.
— É possível que seja sabotagem, Wamsler — disse Villa em tom
tranqüilo.
— É possível; mas também é possível que não seja — respondeu
Wamsler.
— Justamente, mas eu tenho um forte motivo para desconfiar. E
quando fico sabendo que bem perto de Terra uma lua totalmente
inabitada, à qual só nossa frota tem acesso, foi roubada nos objetos
mais importantes ali depositados, minha desconfiança só pode crescer.
Até mesmo o senhor no seu positivismo implacável há de reconhecer
isso, marechal.
Wamsler soltou uma risada.
— É verdade. Sugiro que aguardemos o pouso de Lydia van Dyke.
Deverá chegar dentro de dois dias.
Villa sacudiu a cabeça.
— Sugiro exatamente o contrário.
— E o que vem a ser esse contrário?
— Devemos agir antes que um outro, ou outra coisa, nos tire a
possibilidade de agir.
Wamsler contemplou com uma expressão pensativa a projeção
tremeluzente da esfera espacial, que surgia à sua esquerda numa
imagem tridimensional que chegava até o teto do gabinete. No lugar
em que ficava a lua, via-se uma pequena lâmpada vermelha. O
vermelho era a cor do perigo.
— Como poderíamos agir? — perguntou depois de algum tempo.
— Tenho uma sugestão.
Wamsler sentiu-se ainda menos à vontade.
— Já aprendi a ter medo de suas sugestões — disse. — Pode falar.
— Após a expulsão dos invasores, a tripulação da Orion VIII, da
qual uma parte foi promovida enquanto outra recebeu altas honrarias,
obteve férias de três meses por conta do governo. Não serei eu quem
direi que McLane e seus homens não merecem as férias. Acontece que
dois meses já se passaram. Pretende-se designar McLane novamente
para as esquadrilhas ligeiras. É verdade?
Wamsler fez um gesto afirmativo.
— É verdade. Por todos os satélites, onde pretende chegar, Villa?
Wamsler e Villa eram velhos conhecidos. Estimavam-se bastante.
Quando Wamsler soube que Villa poderia voltar a ocupar a chefia do
Serviço Secreto, ficou satisfeitíssimo. Ambos trabalhavam em prol do
mesmo objetivo, embora seus métodos fossem diferentes. E esse
objetivo era a paz e a ordem no setor do espaço cósmico controlado
por Terra.
— A meu ver, a decisão de colocar McLane no comando das
esquadrilhas rápidas não é acertada. Deveríamos dar-lhe uma
esquadrilha própria. Seria uma espécie de patrulha espacial numa base
mais ampla. McLane provou muitas vezes que é um elemento muito
competente. Afinal, foi promovido a coronel.
— Sua idéia não é de todo má. McLane caçando como um lobo
solitário... É uma idéia sedutora. Apenas tenho um receio. É possível
que resolva agir com um desprezo soberano por todas as normas. Ele e
seu bando, que com tanto orgulho costuma chamar de equipe.
— Para livrá-lo da preocupação, basta... Wamsler levantou as
mãos num gesto de súplica.
— Não, não diga! — exclamou em tom de desalento. — Não
venha me dizer que quer colocar a camarada Tamara ao lado do pobre
do Cliff. Não se esqueça de que, depois das aventuras que passaram
juntos, os dois se apaixonaram um pelo outro. Acho que Tamara e
Cliff bem merecem essa ligação positiva sob o ponto de vista humano.
Acontece que, se os dois continuarem a brigar sobre questões de
competência, a ligação será destruída. Tenha pena deles, Villa.
Villa balançou a cabeça. Finalmente disse em tom pensativo:
— Devíamos encontrar um caminho que garantisse ambas as
coisas: a vigilância e a independência. Recorrerei à camarada
Jagellovsk, assim que surja o perigo de McLane cometer algum
excesso. Vamos decidir isso mais tarde.
Ouviu-se um zumbido. Wamsler apertou um botão. No videofone,
surgiu o rosto de uma ordenança. Era bela, e tinha cabelos negros.
— Marechal Wamsler, tenho uma informação para o coronel Villa.
Wamsler confirmou com um gesto e girou o pesado aparelho nos
rolamentos.
— Coronel Villa, seu visitante chegou, mas não está de bom
humor.
Villa exibiu um sorriso, que por exceção foi franco e alegre.
— Daqui a pouco o humor do visitante melhorará ou piorará
consideravelmente — disse. — Dê-lhe um livro e peça-lhe que espere
uns cinco minutos. Sou eu quem mando pedir.
— Naturalmente, Sir.
Muito curioso, Wamsler girou o videofone, mas a única coisa vista
foi a lâmina que ia escurecendo.
— Adiar a decisão? — perguntou, esticando as palavras. — O
adiamento é a pior forma de recusa.
— Neste caso não. O que pergunto é o seguinte: o senhor está de
acordo em que o coronel Cliff Allistair McLane e sua equipe continue
a viajar em missões secretas, sendo vigiado ocasionalmente pela
camarada Jagellovsk? Obteria poderes suficientes, o que aumentaria
sua responsabilidade e frearia sua tendência para os excessos. Está de
acordo?
Wamsler refletiu alguns segundos.
— Em princípio sim. O que achará Van Dyke?
— Poderemos colocá-la diante de um fato consumado assim que
regresse a Terra. Pela última mensagem que captamos, ambas as naves
decolaram da lua de Geerson e estão a caminho de Terra.
Os dois homens olharam-se.
— O senhor acha que seria uma decisão acertada, coronel Villa?
— perguntou Wamsler em tom indeciso.
— Acredito que sim. Do contrário não teria externado estas idéias.
Tenho certeza absoluta de que McLane corresponderá às nossas
expectativas.
Depois de uma pausa martirizante, Wamsler disse:
— Concordo. McLane receberá a Orion VIII, que é sua nave velha
e consagrada. Só lhe confiaremos missões especiais. Era isso que o
senhor estava pensando? Assumirei a responsabilidade pelos
problemas administrativos ligados a este procedimento. Há outro
detalhe. A Divisão SSG, dirigida pelo senhor, coronel Villa, trabalha
em colaboração estreita com meu gabinete. Acho que isso não deve
mudar.
Um sorriso ressabiado surgiu no rosto de Villa.
— De acordo — disse.
Levantou-se e apontou para o videofone.
— Poderia fazer o favor de ligar para a ante-sala?
Wamsler viu a tela iluminar-se e reconheceu sua ordenança. O
corpo da moça encobria alguém que estava sentado atrás dela.
Wamsler deu um ligeiro empurrão no aparelho, que o fez efetuar um
giro de cem graus. A tela ficou em frente a Villa. Este aproximou-se
da mesa e disse:
— Faça o favor de convidar o visitante a entrar, moça.
— Naturalmente, coronel Villa. A tela apagou-se.
Os dois homens fitaram a área ampla coberta pela barreira de
fluxos luminosos. Os elétrons brancos e saltitantes protegiam as salas
mais importantes com uma torrente de energia pura, que destruiria
qualquer pessoa que tentasse atravessá-la.
Quem veio pela entrada livre foi Cliff Allistair McLane, um
coronel que no momento se encontrava em gozo de férias. Wamsler
ficou perplexo e recostou-se na poltrona.
— Ora veja! É McLane!
— Naturalmente, marechal Wamsler — disse Villa com seu
sorriso temível. — Esperava outra pessoa?
Wamsler não respondeu.
— Na ante-sala sente-se mais fortemente a corrente da autoridade
— disse McLane. — Interrompi minhas férias conforme era meu
dever, coronel Villa...
— Colega Villa! — gritou Wamsler e bateu com a mão sobre a
mesa. Villa encolheu-se; parecia indignado.
— Interrompi minhas férias, sim senhor. Deixemos disso. O
senhor conhece a camarada Jagellovsk. Será que chegou mais uma vez
a hora de eu salvar Terra às pressas, Sir? Isso já começa a me enjoar.
A barreira de fluxos luminosos voltou a acender-se, e Villa
apontou uma poltrona.
— Sente, coronel — disse em tom indiferente.
— Colega McLane! — gritou Wamsler, que quase morre de tanto
rir.
McLane tinha um aspecto excelente. Ao que parecia, passara
metade de suas férias dedicando-se a Tamara, enquanto durante a
outra metade se dedicou a certo cavalheiro, já falecido, conhecido pelo
nome de Sêneca. Estava moreno como nunca. Sentou, tomou cuidado
para não estragar o vinco da calça e fez seus olhos passearem de Villa
para Wamsler e vice-versa.
— O que houve? — perguntou em voz baixa.
— Temos novidades — disse Villa. — São novidades que o
deixarão encantado.
McLane engoliu em seco.
Villa começou a falar em tom mais objetivo. Relatou os
acontecimentos da lua de Geerson e falou nos receios de que os
mesmos poderiam ser interpretados como uma hipótese patente de
sabotagem; disse que o general Lydia van Dyke pousaria em breve e
que haviam decidido confiar a McLane um novo tipo de comando, e
que ele fora incumbido de, juntamente com uma tripulação já
ambientada e vez por outra com a colaboração de Tamara, investigar o
caso. Este caso e outros semelhantes.
— Está de acordo, McLane? — perguntou Wamsler.
— Ainda não estou inteiramente de acordo — respondeu Cliff. —
O que acontecerá com o resto das minhas férias?
— Na qualidade de chefe da Formação de Reconhecimento
Espacial de Terra, peço-lhe que receba em dinheiro os trinta dias que
ainda faltam. Afinal, em sessenta dias uma pessoa pode recuperar-se.
Olhe para mim. Quais foram as férias que gozei?
Cliff deu de ombros.
— Quais foram? — perguntou.
— Desde o momento em que terminou a invasão descansei
exatamente um dia. E justamente nesse dia apareceram os
trabalhadores que reformaram minha sala. Por que o senhor vai
precisar de noventa dias?
Cliff levantou-se.
— Será que o senhor pretende criticar as medidas tomadas pelo
general Van Dyke, marechal? — perguntou um tanto perplexo.
— De forma alguma. Terra o chama; ou melhor, grita pelo senhor.
Está de acordo?
Cliff caminhou de um lado para outro. Finalmente decidiu.
— Está bem — disse. — Concordo. Mas seus subordinados terão
de incumbir-se de reunir minha tripulação. Mario de Monti está em
Chroma, o planeta das amazonas. Só conseguirão tirá-lo de lá de arma
em punho.
— Meu pessoal conseguirá — disse Villa. — Deixe por nossa
conta. Poderá estar aqui dentro de três dias?
— Comparecerei assim que todos estiverem reunidos. Não posso
tomar uma decisão como esta sem falar com minha equipe — disse
McLane. — Sabe perfeitamente que nunca decido nada sem consultar
a tripulação.
— Sei, sim — respondeu Villa. — É claro que faremos o possível.
Onde poderemos encontrá-lo, McLane?
— Em Groote Eylandt. No meu bangalô.
Wamsler estendeu-lhe a mão carnuda.
— Muito bem, muito bem. Retire-se e procure decorar certas
normas.
Cliff apertou a mão de Wamsler e disse: — Deixarei isso por conta
de minha encantadora companheira Tamara.
O aperto de mão de Villa transmitiu um pouco da confiança que
servira de base à decisão do coronel de confiar essa missão delicada a
Cliff.
***
O turbocarro que trouxe Cliff ao seu bangalô freou suavemente.
McLane enfiou algumas moedas na fenda do robô de direção e abriu a
porta da casa. Parou diante da gigantesca prateleira de livros, procurou
um pouco e retirou o Manual II. Abriu algumas páginas e, com o livro
na mão, dirigiu-se à poltrona. Dois/Norte 098...
2

— OUVIMOS tudo que o general Van Dyke pôde informar. Agora


decidiremos se queremos tratar esse caso como uma bagatela, ou se
vamos declarar uma situação de perigo.
Wamsler passou os olhos pelo recinto. A partir dos incidentes mais
recentes, essas pessoas já não eram simples representantes de suas
repartições, mas colaboradores dedicados à solução de um problema
comum: a segurança da paz.
— Qual seria exatamente o perigo? — perguntou Sir Arthur. —
Esta pergunta é dirigida ao coronel Villa.
— Em resumo, o incidente pode significar o seguinte — disse
Villa, erguendo-se na poltrona. — Alguém precisa de quantidades
consideráveis de energia. Como não tem outra possibilidade de obtê-
las, rouba.
Villa fez uma pausa dramatizante.
— Tem de roubar porque precisa da energia para algum fim ilegal.
No planeta Terra, qualquer projeto positivo recebe todo apoio.
Portanto, o projeto de que se trata só pode ser ilegal, talvez mesmo
perigoso. O projeto deve dirigir-se contra Terra, de forma direta ou
indireta. É aí que está o mal.
— Muito bem — disse Sir Arthur. — Compreendo. Acontece que
por enquanto só se constatou que um único depósito, o da lua de
Geerson, não está completo. Não foi mais nem menos que isso.
Villa deu as costas a Sir Arthur e apontou para Cliff McLane, que
se encontrava sentado em meio aos demais, juntamente com sua
tripulação.
— Essa foi a palavra-chave, Sir Arthur. Agora é a vez do coronel
McLane. Ele e os homens de sua tripulação nos prestarão auxílio. Mas
antes, o marechal Wamsler dará uma explicação.
Wamsler olhou para Cliff como se antecipadamente quisesse pedir
desculpas e disse:
— Decidimos, evidentemente com o consentimento do general
Van Dyke e a concordância de McLane e sua equipe, oferecer outro
posto ao coronel que comanda a Orion VIII. McLane viajará por sua
própria conta e risco, munido de poderes bastante extensos, realizando
uma espécie de super-patrulhamento espacial. Cuidará de todos os
problemas que exijam solução rápida. Muitas vezes os movimentos
das autoridades espaciais são lentos. McLane será mais rápido. Com
as liberdades que lhe concedemos, suas responsabilidades serão muito
maiores.
— De acordo — interveio Kublai-Krim, chefe da frota tática. Era
um homem louro de olhos verdes, cujos pensamentos eram fortemente
influenciados pelas concepções ligadas às vitórias clássicas. Uma
poderosa frota espacial era seu maior encanto.
— Posso formular uma pergunta dirigida ao estado-maior? —
perguntou Lydia van Dyke. — Qual será a tarefa da tripulação da
Orion VIII?
Villa apontou para a projeção da esfera espacial.
— McLane controlará todas as bases e depósitos dessa área e dos
cubos espaciais adjacentes. O desaparecimento das células de energia
pode ser obra do acaso ou da inobservância de certas regras. Mas se
vários depósitos tiverem sido saqueados, o significado disso só pode
ser um: perigo para Terra. E exatamente isso que Cliff Allistair
McLane deverá descobrir.
Villa contemplou Hasso Sigbjörnson, Helga Legrelle, Cliff, Atan
Shubashi e Mario de Monti. Este último não parecia muito
descansado; vinha de Chroma. Kublai-Krim levantou, cumprimentou-
os e notou que os circunstantes estavam-lhe prestando atenção. Disse:
— Parece que o senhor tem uma objeção, McLane.
— Coronel McLane — corrigiu Villa em tom suave. Um olhar
furioso de Kublai-Krim atingiu-o, o que o fez sorrir satisfeito.
— Não se trata de uma objeção — disse Cliff. — Apenas de uma
suposição.
— Ouçamos — disse Wamsler. — Trata-se de uma suposição
relativa à lua de Geerson?
Cliff levantou e caminhou rapidamente à projeção, subdividida em
dez escalas de distância, que tinham Terra no centro, sob a forma de
linhas concêntricas. Além disso, a projeção estava recortada em quatro
direções. O que chamava a atenção era a luz vermelha no setor
Dois/Norte 098.
— Aqui fica o planeta Sahagoon — disse Cliff, apontando para
outro sol. — Esse planeta lhes diz alguma coisa?
Wamsler sacudiu a cabeça. O nome não dizia nada para os
assistentes. Subitamente Helga Legrelle levantou a mão.
— Está se referindo a Charles C. Sahagoon, Cliff?
— Exatamente — disse Cliff. Ninguém sabia o que dizer a
respeito desse nome.
— Charles C. Sahagoon foi um fundador de religiões, ou ao menos
acreditava que era — disse Cliff. — Pregara um complexo confuso de
idéias, que culminavam no preceito de que ninguém que acredite na
doutrina pode levantar a mão contra outra pessoa. Nos anos anteriores
à segunda guerra interestelar, Charles C. Sahagoon contava com uns
290 mil adeptos.
— Agora me lembro — disse Wamsler. — Terra colocou esses
adeptos diante da alternativa de se alistarem na frota ou serem
deportados.
Cliff confirmou com um gesto contrariado.
— Por qual das duas alternativas, Sahagoon optou? — perguntou,
embora aparentemente já soubesse a resposta.
— Pela deportação — disse Villa.
— Para onde?
Houve um silêncio geral. Ninguém soube responder à pergunta de
Cliff.
— Evidentemente para um planeta que gravita em torno deste sol
— disse. — De acordo com o Manual II, a posição desse sol é
Dois/Norte 401. Nos cubos seguintes encontram-se outras estações
espaciais, mundos em demolição, depósitos e satélites habitados
situados na mesma área: o planeta de aço Springhill, em Dois/Norte
374; a base Nova Scotia, um mundo-estaleiro, fica em Dois/Norte
299, bem próximo ao primeiro. O planeta Cumberland Mine, que
também é um depósito de emergência, grande e ao que parece bem
sortido, fica em Dois/Norte 198. Sugiro que a Orion se dirija a todos
estes lugares e a alguns outros que ficam nas proximidades. Não
afirmo, mas suspeito que haja certas relações entre os blocos
energéticos e Sahagoon. Talvez consigamos desvendar esse mistério.
Kublai-Krim confirmou com um gesto. Parecia bastante
impressionado com a exposição de Cliff.
— Vá logo, homem — disse. — Conte com nosso apoio integral.
Descubra que foi apenas um alarma falso. Tomara!
Cliff ficou de pé atrás de sua poltrona.
— Antes de decolar, peço outra... graça, cavalheiros.
Wamsler ergueu-se e indagou:
— Quer que a nave seja revestida de ouro?
O sorriso de Cliff tornou-se cortante.
— Nada disso, marechal — disse com a voz controlada. — Não é
isso. Apenas desejo que minhas novas atribuições sejam devidamente
divulgadas no âmbito da frota. Não quero que qualquer general ou
coronel venha dar-me ordens. Quem me dará ordens no futuro? Será o
senhor, colega Villa? Ou o senhor, marechal? Ou o general Van
Dyke?
Ficou de pé até ouvir a resposta.
— O senhor ficará submetido às minhas ordens — disse Wamsler.
— Mas trabalhará em estreita cooperação com o coronel Villa e seu
estado-maior. Entendido?
Cliff baixou a cabeça. Um sorriso sarcástico surgiu em seu rosto.
— Geralmente um coronel compreende muito depressa, marechal
— respondeu. — Decolarei exatamente dentro de cinco horas da Base
104. Compreendido? Até a vista, senhoras e senhores — acrescentou.
— Vamos, tripulação.
Caminhando juntos e visivelmente aliviados por terem escapado
ao aperto da sala de reuniões, McLane e seus tripulantes retiraram-se.
Todos eles, com exceção do comandante, haviam chegado há poucas
horas a Groote Eylandt. Por isso precisavam familiarizar-se com o
ambiente: com a estranha atmosfera da galeria que ficava sob o Golfo
de Carpentaria, com as longas salas abandonadas e com a nave que
passara por uma reforma geral, isto é, com a Orion VIII.
Dali a quatro horas: um carro robotizado que deslizava sobre um
campo antigravitacional, cinco centímetros acima do solo, estava
carregado com a bagagem de cinco membros da tripulação.
Cliff, que sentado à sua mesa controlava todos os sistemas,
contatos e chaves com base numa extensa lista de verificações, fez um
sinal para Atan.
— Tenente Shubashi — disse com um sorriso — será que o senhor
poderia ter a gentileza extrema de colocar nossa bagagem na comporta
inferior e fazê-la subir à nave?
Atan executou uma continência superenfatizada.
— Terei o máximo prazer, coronel McLane — disse e levantou-se
para dirigir-se ao elevador.
— Mario, seu cérebro metálico está em ordem?
Cliff girou a poltrona do comandante e fitou Mario de Monti, o
primeiro-oficial. Embora tivesse sido arrastado de Chroma, parecia
sentir-se satisfeito por voar de novo.
— Está em perfeita ordem. Nossos saltos de transição serão
absolutamente seguros. Será que alguma coisa está mudada?
Cliff franziu a testa.
— O que quer dizer com isso, Mario? — perguntou em tom de
espanto.
— Será que daqui em diante devemos dar-lhe o tratamento de
general ou de marechal? Não sei se você faz questão disso.
Cliff apoiou as mãos nos quadris e sacudiu energicamente a
cabeça.
— Você acha que é o maior galã da frota terrana, mas na verdade
tem o cérebro do tamanho de uma formiga. Sou e continuo sendo o
mesmo Cliff de sempre. Ao que parece, as férias que você passou em
Chroma fizeram-lhe mal. Aliás, estamos ansiosos para receber
informações a este respeito. Como foi?
O rosto de Mario iluminou-se.
— Depois contarei — disse um tanto constrangido. — Quando
Helga não estiver ouvindo.
— Que tolice! — disse a telegrafista. — Lembro-me perfeitamente
do que você me contou quando, um tanto embriagado, procurou
refúgio em meus braços.
Atan apareceu de repente. Sorriu.
— A bagagem está a bordo. Hora da decolagem menos cinqüenta
minutos.
— Quais são as coordenadas, Cliff? — perguntou o primeiro-
oficial.
— Procure. Planeta Cumberland Mine, Dois/Norte 198. Devemos
estar lá em vinte e quatro horas. Será o primeiro depósito que
examinaremos.
— OK! — respondeu Mario e começou a brincar com as teclas.
— Como é mesmo sua teoria relativa a Charles C. Sahagoon? —
perguntou Helga, que ligou o controle de decolagem.
— Deixe isso para depois, moça — disse Cliff, olhando para o
relógio.
A nave estava pronta para decolar. Desta vez não funcionaria
como patrulha espacial com tarefas de cadetes, mas executaria um
comando secreto, sob a direção e com o consentimento do estado-
maior. Isso aumenta o prazer, mas também as responsabilidades.
— Acredite ou não — principiou Atan Shubashi, ligando as telas
— mas sinto falta da prezada camarada de nosso chefe ainda mais
prezado.
Falava de Tamara, que costumava ficar encostada naquele suporte,
contemplando Cliff, com seus olhos de falcão e brindando-o com
comentários mordazes.
Cliff não respondeu; não sabia se devia lamentar a ausência de
Tamara, ou se devia regozijar-se. Resolveu acreditar na última
alternativa. Levantou o braço.
— Decolagem menos um minuto — disse.
Ninguém desconfiava de que essa decolagem seria um fato
decisivo. Era a primeira missão iniciada em condições totalmente
diversas.
"O que nos espera em Cumberland Mine?", pensou Helga.
De repente, Cliff foi acordado, subiu à cabine de comando e
preparou o segundo hipersalto espacial. Dali a vinte e três horas as
campainhas de alarma começaram a soar. Diante da nave surgiu o sol
do planeta Cumberland Mine. Era um sol frio, que emitia uma luz
branca, fria e impiedosa. O planeta, que ficava a uma unidade
astronômica e meia do sol, foi ingressando lentamente na tela, quando
o controle automático iniciou a frenagem. Os tripulantes entraram na
cabina.
— Ali está o planeta — disse Cliff, tocando na lâmina da tela de
visão central.
— Caso alguém ainda não conheça os dados — principiou Atan
Shubashi — fiz uma verificação antes de dormir pela última vez. O
planeta só é habitável mediante a utilização de abóbadas
pressurizadas. As formações que predominam nele são os silicatos.
Emergem do solo sob a forma de cristais e enlaçam as rochas. Dizem
que é um mundo colorido e reluzente, inundado pelo brilho do sol e
coberto por uma atmosfera venenosa. Não se esqueçam de colocar os
trajes protetores. Basta determinarmos a linha equatorial hipotética.
Perto dela, junto a uma costa rochosa, fica o depósito que procuramos.
Cliff estava manipulando os botões e as chaves. Obrigou o disco
prateado a ingressar nas camadas superiores e rarefeitas do gás
mortífero.
— Junto à costa? Existe um mar por ali, Atan?
— Não — disse o astronavegador. — O que existe é uma extensão
imensa coberta por figuras azuis de silicatos. Os cartógrafos batizaram
esse trecho de costa.
A Orion VIII aproximou-se do planeta, descrevendo uma parábola.
Parecia tangenciar a curvatura da superfície. Os campos protetores
mantinham afastado o gás. A manobra de pouso seria totalmente
silenciosa.
— Observação espacial — disse Cliff. — Como estão as coisas?
As telas de Atan, que registrariam até mesmo um bloco de pedra,
estavam totalmente vazias.
— Está vazio que nem minha conta bancária — disse Atan em tom
concentrado.
— Helga, como está o tráfego de rádio?
— Há exatamente dez minutos liguei todas as freqüências. Não
constatei nada, além das interferências perturbadoras resultantes das
protuberâncias. Não há nenhuma vida no planeta; ao menos, nenhuma
forma de vida que use as ondas de rádio para comunicar-se.
— Coronel McLane — disse Mario com um sorriso insolente. —
Infelizmente vejo-me obrigado a lembrar que segundo o parágrafo tal
e tal do Regulamento de Aproximação... está lembrado? Apenas estou
citando as palavras de Jagellovsk.
— Eu me lembrarei, não tenha a menor dúvida — disse Cliff,
desviando-se do assunto.
— Olhem a tela! Vejam só o que está mostrando!
Mario e Helga pararam à direita e à esquerda de Cliff. Já fazia
algum tempo que Hasso olhava por cima de seu ombro. O quadro era
irreal, mas de uma beleza arrebatadora.
— Formas e cores — murmurou Sigbjörnson bem baixinho. — E
tudo isso é feito de silicatos sem vida. Sem vida, face à nossa
definição da vida.
Viam tudo. A Orion VIII deslocava-se cinqüenta metros acima da
superfície. Atan calculara a linha, e Cliff dirigia o disco pela rota
prefixada. Era uma extensão infinita, interrompida vez por outra por
elevações de pequena altura. A vegetação de silicatos parecia
estender-se em círculos. Um círculo começava quase onde o outro
terminava. Entre eles, os espaços estavam cheios de areia escura. Os
círculos eram formados por vegetação rasteira que reluzia em todas as
cores. Eram praticamente imóveis. Mas o deslocamento do ar na
frente e atrás da nave a fez estremecer, executar um certo movimento
de molejo. Os caules e as folhas, que tinham uma semelhança
perturbadora com plantas vivas, entrelaçavam-se e sobrepunham-se,
formando uma selva impenetrável. Acima desse quadro reluzia o sol
branco e radiante.
— Até parece um tapete surrealista — disse Helga.
A sombra da nave seguiu-os, e as ilhas redondas mergulharam
numa penumbra indefinida. Quando atingidas pela sombra, as plantas
de silicato baixavam os caules e as folhas. As cores empalideciam.
Assim que a luz do sol voltava a atingi-las em cheio, voltavam a
levantar-se e recuperavam o brilho.
— Ali adiante fica o pseudo-mar — disse Cliff laconicamente,
apontando para a área superior da tela.
A estreita faixa de terra desembocava numa baía de pedra, que
avançava que nem um dedo para dentro da superfície aparentemente
imóvel. A encosta era inteiramente nua e praticamente branca.
Formava um marco acentuado do terreno.
— Qual é a gravidade, Atan?
— Dez por cento superior à de Terra — disse o astronavegador
sem refletir. Os tripulantes se haviam preparado muito bem para o
objetivo que tinham em vista. Cliff sabia que sua tripulação era uma
das melhores de que dispunha o planeta Terra.
— Então não precisamos tomar precauções especiais — disse
Cliff, freando a nave.
— Cem quilômetros por hora — anunciou Atan.
Cliff fez um gesto afirmativo e segurou com mais firmeza a
alavanca de frenagem.
— Ali fica a área de pouso — disse. — Pararemos exatamente
sobre a mesma. Houve alguma alteração?
— Nenhuma, chefe — disse Helga Legrelle, retirando o fone do
ouvido.
Cliff apertou um botão muito largo e prosseguiu:
— Comandante para registro de bordo. Encontramo-nos sobre o
depósito de Cumberland Mine. Procuraremos verificar com a
necessária cautela se o estoque está completo e intacto. Fim.
Passou a maioria dos controles para Hasso e levantou-se ao ver
que a nave se mantinha imóvel dez metros acima da superfície. O
disco de 55 metros de diâmetro projetava uma grande sombra sobre a
superfície branca.
— Helga, fique aqui e vasculhe os arredores, ora com seu
equipamento de rádio ora com o radar de Atan. À menor suspeita, dê o
alarme. Nossos rádios de capacete ficarão sintonizados com a nave.
— Entendido, Cliff — disse a telegrafista e recostou-se em sua
poltrona especial.
Mario apontou para Cliff, Atan e sobre si mesmo.
— Seremos nós? — perguntou com um sorriso largo.
— Naturalmente. Como já salientei, procederemos com cuidado.
Estas palavras dizem respeito até mesmo a qualquer pista que haja
embaixo da nave. Entendido? Mario confirmou.
— Usaremos armas, Cliff? — perguntou Atan em tom sério.
— Usaremos, por uma questão de cautela — disse McLane. —
Vamos colocar os trajes.
— Não se esqueça da chave de rádio — disse Atan. Cliff sacudiu a
cabeça e fechou um dos zíperes duplos, que iam da extremidade
superior da bota até a altura dos quadris.
— Está aqui — disse, colocando a mão sobre o bolso do cinto.
Tirou a arma do suporte, viu a lâmpada energética acesa e
guardou-a no bolso lateral do traje protetor. Fechou o capacete e
chamou Helga. Ficou satisfeito ao notar que a comunicação era
perfeita.
A pressão atmosférica era aproximadamente igual à de Terra,
motivo por que não houve problemas sob este ângulo. Diante dos
olhos dos três homens, estendia-se a areia branca, compactada pelas
tormentas de vários milênios.
— Procurem ver se há qualquer rastro! — insistiu Cliff.
— Não somos surdos! — disse Atan em tom ressentido.
Deram alguns passos. Mal se percebia que esta gravitação excedia
em 10 por cento à de Terra. Apenas os passos tornaram-se um pouco
mais curtos e o esforço necessário para levantar o pé era maior.
— Olhe ali! — disse Mario, apontando para a frente.
— E lá! — ouviu-se a voz de Atan. Cliff caminhava cauteloso em
direção ao aprofundamento do solo, examinando atentamente o chão
em que pisava. Não achou nenhum rastro. Olhou para trás e viu que
Mario e Atan encontravam-se a seu lado.
— São discos de aterrissagem, chefe — disse Atan sem outros
comentários. — Foi uma nave muito pesada.
Nesse lugar, as superfícies de apoio em que terminavam os
suportes de uma nave antiquada haviam penetrado cerca de cinco
centímetros no solo arenoso. Cliff ajoelhou-se e apalpou a camada
branca de aspecto cristalino. Verificou que quase chegava a ser como
pedra.
— É uma nave antiga e pesada; não há dúvida — disse, e
caminhou em direção ao segundo par de depressões, sempre olhando à
procura de eventuais rastros. As depressões eram idênticas às que já
observara.
— Tirei duas fotografias — disse Mario em voz baixa. — Servirão
de prova. Aqui pousou uma nave que deve ter sido construída há
vários decênios. Uma Lancet não produz depressões como esta, e as
naves do tipo da nossa flutuam sobre almofadas antigravitacionais.
De repente, tiveram a impressão de que uma sombra ameaçadora
pairava sobre a paisagem reluzente e silenciosa. Em algum lugar, bem
atrás da encosta que decaía da baía de pedra, a vegetação de silicatos
coloridos parecia mover-se. Ou seria uma ilusão provocada pela
luminosidade?
— Quer dizer que não estamos sós — constatou Cliff. — Alguém
gosta dos nossos blocos energéticos. Não me admirarei se
descobrirmos que a fechadura controlada pelo rádio foi cortada.
Caminhou em direção à abóbada de aço com a arma engatilhada.
Sua altura não era superior a cinco metros. Em sua superfície
apareceram as linhas da escotilha da comporta. Ao lado dela, havia a
saliência quadrada da complicada fechadura controlada pelo rádio.
— Ao que parece a fechadura está intacta.
Atan efetuou um giro de trezentos e sessenta graus em torno de seu
próprio eixo, mantendo a arma na altura dos quadris. Obteve uma
visão global, mas a cautela foi desnecessária. Nada se aproximava,
ninguém atirou; não havia nada voando pela atmosfera venenosa.
Viram-se diante da fechadura. Estava intacta. Nenhum arranhão,
nenhum vestígio de maçarico atômico, nenhum sinal de ação violenta.
— Vamos tentar a sorte — disse Cliff em tom tranqüilo. Guardou
a arma de radiações e tirou a chave de rádio do bolso. Encostou-a à
fechadura, ativou a célula energética e comprimiu a chave do aciona-
dor. Logo a chapa de aço conexa começou a mover-se. Levantou-se
ligeiramente e deslizou para a esquerda Num movimento rápido Cliff
retirou a mão que segurava a chave. A luz do sol atingiu o chão de
concreto. Não havia nenhuma poeira, nenhuma marca de pé.
— As coisas estão ficando cada vez mais misteriosas. Quem
possui chave de rádio além dos tripulantes da frota?
Cliff sorriu atrás do visor do capacete.
— Deve ser alguém que trabalha na fábrica das chaves.
— As chaves são numeradas e contadas. Uma chave de reserva só
pode ser obtida pelas vias administrativas e, por estas, é mais fácil que
se perca uma criatura humana que um documento.
— Mas não possuem dados sobre o refugo e o consumo de
materiais no setor de experiências da firma. Sempre seria uma
possibilidade — disse Cliff. — Bem, vejamos. Vamos entrar na
despensa.
Entraram na comporta e abriram outra escotilha, depois de Mario
ter acendido a luz e fechado a escotilha externa. Viram uma rampa
inclinada, que penetrava uns trinta metros pela rocha. Os três homens
desceram-na.
— Aqui fala Helga Legrelle — disse uma voz débil. — Tudo em
ordem por aí?
— Naturalmente. Até agora está tudo em ordem! — exclamou
Mario.
Um pavilhão cilíndrico havia sido recortado na rocha. Media
sessenta metros e tinha quatro metros de altura. As lâmpadas redondas
de vidro sintético colocadas na parede curva espalhavam luz amarela
pelo recinto. Numa coluna transparente viram os aparelhos de
sobrevivência, que efetuavam a renovação do ar e mantinham a
temperatura. Ao lado da coluna havia aparelhos de rádio lacrados.
Mario parou à frente do registro de materiais.
— Aqui. Posição noventa: quatro blocos energéticos entregues e
testados. Não foram usados; não há nenhum registro nesse sentido. A
nave Júlio César esteve aqui há poucos dias e levou dezoito cilindros
de oxigênio. Não há outro aviso.
— Onde estão os blocos energéticos, Mario? — indagou Cliff,
olhando em tomo. Em todas as partes via as pilhas bem arrumadas.
— Na área nove.
Cliff procurou a área nove e veio encontrá-la junto à parede, bem à
sua esquerda. Estacou.
— Estamos encontrando a mesma coisa que Lydia — murmurou
em tom sombrio. — O lugar está vazio, os blocos desapareceram e
não existe a menor pista. Ao menos conseguimos alguma coisa. Seja
como for, antes de mais nada vamos procurar esses blocos. Cada um
de nós cuidará de uma faixa.
Em trinta minutos, examinaram caixa por caixa, mas não
encontraram os blocos energéticos. Estava tudo bem empilhado e
catalogado. Só faltavam os blocos. Era outra prova, que foi reforçada
por fotos e impressões.
Os três homens voltaram à nave e tiraram os trajes espaciais. Dali
a cinco minutos a Orion deslocou-se em velocidade crescente pelo
envoltório atmosférico, disparando espaço afora e passando junto ao
sol martirizante.
— Qual é o destino que devo programar antes de revelar as
fotografias? — perguntou Mario. — Os dados continuam os mesmos?
— Continuam — disse Cliff. — Nova Scotia, Dois/Norte 299.
O martelar das teclas e o zumbido da calculadora digital de bordo
engoliram a resposta do primeiro-oficial. Algumas horas passaram-se.
Cliff estava de plantão. Deitado relaxadamente na poltrona, colocara
os pés enfiados em botas leves junto aos instrumentos e estava
refletindo. Ao seu lado, Mario de Monti folheava um livro.
— Cliff, está acordado?
Cliff resmungou algumas palavras incompreensíveis.
— O que vem a ser Charles C. Sahagoon? Que tipo de gente ê
essa?
Cliff endireitou o corpo, pegou a xícara e sorveu um gole de café.
Voltou a fechar os olhos e começou a responder em voz muito baixa,
enquanto Mario levantava-se e encostava o corpo ao painel de
instrumentos.
— Antes da guerra, Sahagoon anunciava que a tecnologia criaria o
poder. Em princípio não há nada de errado nisso. Porém, conseguiu
reunir 290 mil adeptos e retornou à fase da jardinagem. Começaram a
plantar feijão e batatas nos parques públicos. O aspargo crescia nos
quintais dos fundos. "O poder, criado pela tecnologia, corrompe",
afirmava Sahagoon. "Logo, deve-se destruir a tecnologia para destruir
o poder. A tecnologia só pode ser destruída por outra tecnologia ainda
mais poderosa, que se autodestrua ao fim do combate, pois do
contrário essa nova tecnologia assumiria o poder." Por isso, os adeptos
de Sahagoon procuraram alcançar a autarquia energética a fim de
poderem construir a tecnologia da destruição.
— Será que oportunamente você me poderia dar isso por escrito?
Só entendi pequena parte do que acaba de dizer.
Mario riu. Cliff abriu o olho direito, fitou o primeiro-oficial e
prosseguiu:
— Li tudo isso num velho livro. Naquela época, o governo viu-se
diante do mesmo problema com que você se defronta: digerir os
ilogismos de Sahagoon e extrair deles uma lição. As negociações
malograram. Mais de seiscentas naves gigantes levaram os adeptos
desse homem a um planeta que apresenta condições semelhantes às de
Terra.
— Deve ser o planeta Sahagoon.
— Exato. Pelas notícias mais recentes, o mesmo apresenta um
aspecto de jardim de dimensões planetárias. Os sahagoons extraem
determinados minérios, trocam os mesmos por escovas de dentes e
espelhos, são vegetarianos, veneram Charles e, segundo uma
convenção celebrada com seu chefe há vários séculos, não podem
possuir qualquer arma energética. São pessoas pacatas e satisfeitas.
Mario sacudiu a cabeça e disse:
— Se neste meio tempo não tiverem morrido de intoxicação de
clorofila, continuam a reproduzir-se.
— Deve ser mais ou menos isso — concluiu Cliff. — Tenho uma
ligeira desconfiança de que existe alguma ligação entre Sahagoon e os
blocos energéticos roubados.
— Devem correr pelo espaço numa abóbora — disse Mario em
tom sarcástico.
— Deve ser mais ou menos assim. Escute, Cliff. Quem escreve
romances é Ibsen, não você!
— Deixe para lá — disse Cliff em tom preguiçoso e voltou a
fechar o olho. — Também tenho algum talento.
Mario olhou para o relógio. Usava um modelo caro, no qual havia
dedicatórias de várias moças de Chroma.
— Faltam três horas. Estou curioso para ver o que encontraremos
em Nova Scotia.
Cliff bocejou.
— Só pode ser um depósito intacto do qual alguém levou os
blocos energéticos. Você tem alguma dúvida?
Subitamente a voz de Mario tornou-se dura.
— Para dizer a verdade, não tenho.
— É por isso que me sinto tão tranqüilo
— disse Cliff. — Não me surpreenderei nem um pouco se
encontrar outros depósitos sem os respectivos blocos energéticos.
E teria razão.
Em Nova Scotia, onde há anos fora suspensa a extração de
minério, existia um depósito. Estava intacto. Em meio às pedras que
cercavam o campo de pouso, os homens viram o rastro de uma nave
antiquada e pesada. A chave controlada por rádio fora aberta por
alguém que não deixara o menor vestígio. Os blocos energéticos não
estavam lá. No dia seguinte, constatou-se que mais dois depósitos
haviam sido saqueados.
— São ao todo vinte e três blocos energéticos perdidos, roubados
ou emprestados — constatou Cliff. — Isto é um bom motivo para
voltarmos à Base 104, a fim de submeter um relatório detalhado ao
coronel Villa.
Foi o que fizeram. O Serviço de Segurança Galático ficou em
polvorosa, sem saber o que fazer. Cliff tranqüilizou os homens e
prometeu ao coronel Villa que dentro de quarenta e oito horas
decolaria de novo. Villa deu-lhe a mão.
— Aliás — disse com um sorriso que McLane já conhecia e temia.
— Aliás, sua amiga encantadora e minha melhor agente voltou das
férias. Pede para lhe dizer que quer encontrar-se com o senhor no bar
do cassino. Amanhã, na hora do almoço.
— De qualquer maneira, marquei um encontro no mesmo lugar
com Mario. Obrigado pelo aviso.
Villa acompanhou-o à barreira de fluxos luminosos e disse:
— Foi um prazer.
Não se poderia dizer se estava falando sério ou não.
3

— CONTE logo, chefe — disse Mario, enquanto apontava com o


garfo para as pernas da ordenança que passava por perto e ria. —
Quais serão os próximos lances do xadrez cósmico?
— Gostaria de saber como alguém que não pertence à frota pode
ter em mãos o emissor de impulsos para as fechaduras. Ainda gostaria
de saber se existe alguma relação entre os furtos e o planeta Sahagoon
— disse Cliff, dando de ombros.
Mario começou a impacientar-se.
— Ficamos fora durante oito dias — resumiu. — Revistamos
todos os depósitos da área. O que encontramos? Todos os depósitos de
emergência foram furtados. Se tivessem sido totalmente esvaziados,
poderíamos supor que se tratasse de ato de pirataria. Mas, como as
coisas estão, não podemos ter dúvida de que existe algum sistema
inimigo atrás disso.
Cliff olhou para a direita e bebeu lentamente.
— Você está com a razão. Alguma conspiração está em
andamento. Villa e seu estado-maior também estão preocupados. Já
trago as novas instruções no bolso.
O rosto de Mario revelou a expectativa quando perguntou:
— Iremos a Sahagoon?
— Isso mesmo. Daremos uma olhada para verificar o que há por
lá. Temos instruções para intervir imediatamente se houver motivo
para isso.
— Sahagoon fica em Dois/Norte 401, não é?
— Você decorou as coordenadas — respondeu Cliff. —
Decolaremos exatamente dentro de vinte e sete horas. Encontramo-nos
em meu bangalô e iremos juntos à Base 104.
— Combinado — Mario olhou para o relógio.
— Tenho uma tese que pode parecer arrojada — disse Cliff. Mario
inclinou-se para a frente, para ouvir melhor. — Ainda não disponho
de qualquer prova, mas tenho lá minhas desconfianças. A doutrina de
Charles C. Sahagoon pode ter sofrido algumas modificações nestes
últimos dois mil anos. É bem possível que a chave do problema se
encontre nesse planeta.
Mario apontou para um lugar atrás de Cliff.
— De qualquer maneira, a chave desta noite está entrando no
cassino. Tamara vem fazer sua apresentação.
Cliff virou-se e sorriu. Excepcionalmente, Tamara não usava
uniforme. Estava trajada em estilo bastante moderno. Cumprimentou
para todos os lados, descobriu Cliff e Mario, que se surpreenderam
acenando entusiasticamente, e aproximou-se da pequena mesa. Com
um suspiro, caiu na poltrona.
— Bem-vinda, camarada — disse Mario. — Gostamos muito da
senhora, enquanto não voa conosco.
Lembrou-se de um gesto antiqüíssimo e beijou sua mão. Por pouco
não quebrou um dente no anel de sinete. O sorriso de Cliff era
impagável.
— Querida — murmurou Cliff. — Você parece cansada. Será que
já voltou ao trabalho?
Tamara confirmou com um gesto triste.
— Já. Tive o mesmo destino que você e sua tripulação. Villa
chamou-me poucas horas depois de lhe ter telefonado e disse o que
estava acontecendo. Agora estamos analisando os acontecimentos.
Você vai decolar em breve?
— Vou — disse Cliff. — É o diabo! O que é que você toma?
— Um café estupidamente forte.
— Deixe de brincadeiras, governanta — obtemperou Cliff e dali a
um minuto voltou com o café.
Em compensação, foi brindado com um sorriso sincero e cheio de
sentimento.
— Surgiu algum ângulo novo? — perguntou Cliff.
— Não — apressou-se Tamara em responder. — Estamos
aguardando os dados que a Orion VIII deverá trazer de Sahagoon.
Quando poderemos contar com eles?
— Isso demorará pouco mais de cento e trinta horas — disse
Mario. — Cada vôo consumirá quarenta e oito horas. E não
deveremos demorar no planeta mais que um dia terrano.
— Está bem — disse Tamara, descansando a xícara. — Informarei
Villa. Tenho de voltar. Telefonarei hoje de noite. Está bem?
Cliff levantou-se para acompanhá-la à entrada.
— Será um favor, tenente Jagellovsk — disse em tom educado. —
Ficarei muito triste se não telefonar.
Tamara despediu-se com um beijo no rosto de Cliff, que voltou à
mesa, caminhando devagar. No corredor largo e deserto esbarrou em
duas pessoas. Distraído, pediu desculpas e prosseguiu.
— Será que estou enxergando bem? — exclamou alguém atrás
dele. — É McLane. O coronel McLane, a não ser que esteja enganado
na interpretação dos pontos de identificação.
Cliff ficou estarrecido e virou-se lentamente. Olhou com uma
expressão curiosa para o homem de cerca de cinqüenta anos, que
usava o uniforme de comandante de uma nave de abastecimentos. A
seguir, passou a olhar a moça. Era jovem, usava trajes grosseiros e
parecia bastante retraída.
— David McKirkcudbride! — exclamou Cliff. — O senhor por
aqui?
David fez um gesto afirmativo e sacudiu a mão de McLane,
demonstrando um entusiasmo tão intenso que não poderia ser fingido.
— Estou aqui. E tenho como companheira uma moça encantadora
do planeta de Sahagoon.
Cliff pegou a mão da moça e ficou espantado. Seu aperto de mão
era o de uma pessoa que lida com arado. A palma era áspera e cheia
de calos.
— Meu nome é Marion Stadyonnex — disse. — Sou de Sahag
City, em Sahagoon.
Uma sereia de alarma soou no cérebro de Cliff. Durante os anos de
sua carreira conhecera os habitantes de tudo quanto era planeta, mas
os de Chroma e de Sahagoon não conhecia nem por fotografias.
— Sejam bem-vindos ao Cassino Starlight — disse. — Querem
dar-nos o prazer de sentar à nossa mesa?
— O prazer será nosso — disse McKirkcudbride.
Caminharam juntos em direção da mesa de Cliff. Mario levantou-
se surpreso e escorregou para o lado.
— Esta moça — disse Cliff, levantando o dedo — é de uma beleza
sedutora; além disso é habitante de Sahagoon. E, ao que suponho, este
cavalheiro comanda uma nave de abastecimento que costuma pousar
lá. Deve fazer a rota Terra—Sahagoon.
— Como sempre, McLane tem razão — disse o comandante. — O
que quer tomar, Marion?
— Um suco de laranja — respondeu a moça prontamente.
— Com gin? Temos um produto excelente — interveio
McKirkcudbride.
— Obrigado; prefiro sem gin — disse Marion apressadamente e,
segundo acharam Cliff e Mario, em tom um tanto áspero.
O garção apareceu e anotou os vários pedidos de bebidas.
— Marion Stadyonnex. O fato de nos encontrarmos é uma
coincidência inacreditável — disse Cliff, falando lentamente. —
Dentro de poucas horas decolaremos em direção ao seu planeta.
Vamos examinar o terreno. Procuraremos averiguar se há condições
de intensificar nossas relações comerciais.
Mentia desavergonhadamente e sem o menor constrangimento,
enquanto dava um pontapé na canela de Mario. Com aceno do polegar
fez o velho sinal de entendido.
— McLane... a Orion VIII. Será que é o célebre comandante? —
disse Marion.
— Não é tão célebre quanto mal-afamado — disse o primeiro-
oficial. — Conseguiu realizar alguma coisa graças à excelente
tripulação de que dispõe.
A moça e McKirkcudbride soltaram uma gargalhada.
— Conte alguma coisa de sua terra — pediu Cliff. — Dessa forma
estaremos preparados e, mais do que isso, disporemos de informações
de primeira mão. Estaremos melhor equipados.
Marion era uma moça alta e esbelta, mas de corpo robusto. Tinha o
aspecto de quem tinha passado a infância numa estufa de plantas, a
juventude no campo e as noites numa fábrica de conservas. O cabelo
castanho-escuro era curto e apresentava um corte prático, os olhos
castanhos brilhavam numa expressão dura e a boca parecia amarga. O
que mais chamava a atenção eram as mãos. Haviam sido moldadas
pelo trabalho pesado. Marion brincou nervosamente com uma fita de
aço, larga e vermelha, que balançava em torno de seu pulso direito.
— Há dois mil anos fomos deportados de Terra, porque Charles C,
nosso modelo inexcedível, não concordou em correr para as armas
juntamente com seus adeptos. Por isso, 290 mil pessoas foram levadas
para Sahagoon, planeta que se encontrava no fim de uma era glacial.
"Passamos a dedicar-nos à caça e à coleta de frutos do mato.
Domesticamos os animais, fizemos arborizações, selecionamos
plantas nutritivas e vendemos nossos produtos a Terra. Trabalhamos
muito e duro. Nossas escolas exigem bastante de nós. Neste meio
tempo, as condições políticas se modificaram. Existe um grupo
conservador e outro progressista. Este último é numericamente
superior ao outro mas, por enquanto, não dispõe de muita influência.
"Não temos armas nem naves espaciais. Em compensação temos
uma justiça autônoma. Nosso planeta é rico, e Terra extrai dele, por
meio de um processo inteiramente robotizado, os minérios que são
transportados pelas naves. Somos um planeta de fazendas e
plantações. Os progressistas abandonaram a concepção vegetariana,
mas os conservadores continuam a alimentar-se exclusivamente com
produtos vegetais. Continuamos submetidos ao controle discreto, mas
intenso, de Terra. Praticamente ainda somos os descendentes dos
caçadores da era glacial."
McLane sentiu uma comoção estranha. A distância fria que soava
nas palavras dessa moça estava mesclada com um ódio longínquo a
Terra.
Refletiu:
"Será que estava enganado?", contemplou os dedos irrequietos da
moça, que continuavam a brincar com a pulseira que, segundo tudo
indicava, era de aço e cuja face externa consistia numa área reticulada
em baixo relevo. O metal emitia um brilho vermelho e quente.
— A senhora passa muito tempo ao ar livre, não passa? —
perguntou Mario com um sorriso gentil.
— Quase todo o tempo. Sou chefe de uma brigada de máquinas
colhedeiras — disse com um sorriso embaraçado.
A sensação estranha — aquela suspeita aparentemente sem
fundamento contra Sahagoon — crescia na mente de Cliff. Examinou
detidamente a moça. Estava nervosa e procurava disfarçar; mas Cliff
sentiu-se comovido por sua personalidade. O rosto moreno, duro e
sincero, estava entrecortado de linhas amargas. O fanatismo de suas
palavras e relatos. Tudo isso dava a entender que o ambiente selvagem
de Sahagoon parecia ter criado um feitio agressivo nos habitantes do
planeta.
— Qual é a população de Sahagoon? — perguntou Mario. Sua
tentativa de iniciar um flerte parecia esfacelar-se num escudo
invisível.
— Três milhões e duzentos mil habitantes.
— E não têm naves espaciais?
Cliff foi atingido por um par de olhos grandes, escuros mas frios.
— Não. Segundo o tratado celebrado entre Terra e Sahagoon,
todas as possibilidades de que este último planeta ainda queira ou
possa vingar-se pela deportação, devem ser eliminadas. Apenas temos
turbocarros importados de Terra.
Cliff fez um gesto.
— Em nossa opinião é impossível que qualquer planeta leve um
ataque a Terra. Justamente agora, que os extraterranos estão em cima
de nós. O que está fazendo aqui, Marion?
— Estou visitando Terra. Recebi ordens para dar uma olhada.
"Dar uma olhada para descobrir o meio de atacar Terra", pensou
Cliff, e logo depois perguntou.
— Dar uma olhada? Em quê?
— Não é nas naves espaciais, McLane — disse Marion. — Quero
ver o que Terra nos poderá fornecer e o que poderemos dar em troca.
Além disso, a unidade monetária usada no intercâmbio dos dois
planetas parece exercer uma função exploradora contra nós.
Pretendemos substituir os tratados existentes por outros mais
favoráveis.
— Miss Stadyonnex está residindo no Carpentaria Hilton, como
hóspede do Ministério da Economia. O luxo deixou-a perturbada e,
para dizer a verdade, um pouco aborrecida — disse David
McKirkcudbride.
— Quer voltar conosco? — perguntou Mario.
— Não. Isto é... minha presença aqui será mais demorada. Ainda
há muitos detalhes a serem discutidos.
Cliff olhou para o relógio.
— Seria um encanto se pudesse encontrar-me mais uma vez, ou
mais algumas vezes, com a senhora — disse Mario baixinho, pondo
na voz todo charme de que era capaz. Percebeu que a moça começava
a ficar nervosa e fez menção de sair.
— Moro no Hilton — disse.
— Telefonarei para lá. Tem algum recado para alguém em
Sahagoon?
Marion levantou-se e sacudiu a cabeça. O comandante da nave de
abastecimentos apontou para os copos vazios, e Cliff fez um gesto
familiar.
— Obrigado, McLane — disse McKirkcudbride.
— Não há de quê. Ainda nos encontraremos muitas vezes.
Os homens deram-se as mãos. O comandante do cargueiro pegou o
braço de Marion e, atravessando o cassino, levou-a ao elevador que
subia para Groote Eylandt ou para a margem oposta do golfo.
— Hum — disse Mario. — Meu charme fez o mesmo efeito de
uma folha de papel vazia.
— Você realmente está sem sorte. Acontece que minhas suspeitas
estão mais fortes — disse Cliff com um gesto amargo.
Subitamente estacou. Estendeu o braço e segurou a pulseira entre
os dedos.
— Dentro de três dias pousaremos em Sahagoon. O que é isto?
A pulseira tinha seis centímetros de largura. Do lado de dentro, era
lisa. Por fora, estava enfeitada com um desenho quadriculado. Cliff
bateu-lhe com um talher. O som foi oco. Esperava um som agudo,
pois o objeto possuía pouco peso. O brilho vermelho era uma
peculiaridade do metal.
— É estranho. Que metal será este? Cliff balançou a pulseira
diante dos
olhos de Mario.
— É algum metal leve.
— Pois você está enganado — disse Cliff. — É um tipo de aço.
Mandarei analisar o material.
— Está certo. Vou embora. Encontramo-nos em sua casa.
Combinado?
Cliff permaneceu sentado e examinou a pulseira com um olhar
pensativo. Estava convencido de encontrar-se na pista de um segredo.
Mas não sabia que segredo seria este.
— Procurarei Villa — disse depois de algum tempo. Pagou a conta
e levantou-se. Enquanto caminhava lentamente em direção aos
elevadores, ouviu uma música. Era a peça de Thomas Peter, The
Mysterious Planet.
"Será outro sinal?", pensou, interrogando-se.
Villa apenas o fez esperar quatro minutos. Cliff viu-se no pequeno
gabinete do chefe do serviço secreto. Sentou, tirou a pulseira do bolso
e deixou-a rolar pela tampa polida da mesa. Villa sorriu e segurou-a.
— O que é isso? O senhor está trabalhando com jóias?
— Não — respondeu Cliff em tom contrariado. — Às vezes
encontro uma jóia. Agora que meu destino é movimentar-me
constantemente em meio a coisas excitantes, tenho de desconfiar.
Quando tivermos a análise, vou lhe dizer onde encontrei isto. O
senhor dispõe de laboratórios para isso?
— Disponho — disse Villa em tom indeciso. — Nossos
laboratórios são os melhores do mundo. Se não descobrirem,
enviaremos o material a Springhill. Está Satisfeito?
— Perfeitamente.
— Qual é sua idéia? — prosseguiu Villa.
— Não tenho comentários. Relato tudo que acontece, mas não
quero impressionar mais que o necessário. Encontrei o objeto e liguei-
o a coisas bastante desagradáveis. Será que gozo de sua confiança?
Villa confirmou com um gesto e deu uma risada sarcástica.
— Por enquanto sim — disse.
— Permite uma pergunta, coronel Villa? — disse Cliff em tom
áspero. — Será que no sistema solar existe ao menos uma pessoa na
qual o senhor tenha confiança?
Por alguns segundos, houve um silêncio bastante constrangedor.
Finalmente Villa levantou-se e começou a caminhar de um lado para
outro atrás da escrivaninha. Apontou para a projeção da esfera
espacial e disse em voz baixa:
— Não. Não confio em ninguém. Nem mesmo em mim mesmo. E
os fatos parecem demonstrar que tenho razão. Estou certo de que um
complexo poderoso e gigantesco como Terra e a esfera espacial de
novecentos parsec correm sempre perigo. Ninguém está seguro. O
perigo pode surgir de certas coisas às quais no momento não
atribuímos a menor importância. Um simples vírus, uma pecinha de
metal — levantou a pulseira vermelho-brilhante, que tremeluzia de
forma estranha devido à pouca luz reinante — uma única nave não
vigiada, tudo isso pode transformar-se num perigo muito sério.
Bilhões de seres humanos, os bens materiais incalculáveis e uma série
de planetas representam um desafio ao nosso senso de
responsabilidade.
"Portanto, não posso dar-me ao luxo de confiar em quem quer que
seja. Não há nada de pessoal nisto. O que acabo de dizer apenas
representa minha preocupação e meu receio de que alguma coisa
possa acontecer a Terra e a todos nós. É só. Está satisfeito, coronel
McLane?"
— Compreendi, mas não aceito integralmente.
Villa estendeu a mão a McLane.
— Felizmente este problema não é seu. Vá a Sahagoon com sua
tripulação tão competente, sem levar Tamara. Fique com os olhos e os
ouvidos abertos. Quando regressar, a análise estará pronta.
— Obrigado, coronel Villa.
— Está bem.
Quando Cliff se encontrava a um metro da barreira de fluxos
luminosos, Villa o chamou de volta. Dirigiu-se à escrivaninha e
segurou a folha de plástico que Villa lhe ofereceu sem qualquer
comentário. Cliff leu, e seu espanto crescia a cada palavra.
Perigo para Terra (202011 A alfa). ...constatou-se que num
depósito de Springhill foi furtada uma instalação completa de
hipercomunicação, ou melhor, a mesma desapareceu do local. Ao
mesmo tempo, informamos o resultado final do exame do depósito de
Cumberland Mine. Além dos blocos energéticos desapareceram
inexplicavelmente uma caixa com detonadores de baixa potência,
acionáveis por meio de rádio e cinqüenta aparelhos emissores-
receptores do tipo...
— O que acha disso, comandante? — perguntou Villa numa
tranqüilidade que tinha algo de perigosa.
— É apavorante. Ao que parece, alguém está precisando não
apenas de energia, mas também de transmissores. Já conhece outros
detalhes?
— Ainda não. Quando voltar, já teremos outros elementos. Boa
viagem.
Cliff levantou a mão.
— E um pouso difícil.
Saiu do gabinete do coronel Henryk Villa e caminhou lentamente
em direção ao elevador. Após trinta minutos, encontrava-se em seu
bangalô. Deitado no gigantesco sofá forrado de vermelho, refletia
febrilmente. Mas as peças do mosaico ainda descreviam movimentos
confusos sem formar um quadro definido.
Mais tarde: Cliff Allistair McLane sentou-se tranqüilamente em
sua poltrona de comandante. À sua frente, encontravam-se as áreas
encurvadas com inúmeros relógios, ponteiros e chaves. Cliff estava
atado à poltrona por meio de cintos largos e semi-elásticos. McLane
parecia dormir. Na realidade estava apenas refletindo, com os olhos
fechados. Atan Shubashi observava as telas. Mario calculava a rota e,
vez por outra, contemplava as luzes de controle do dispositivo de
introdução de dados da calculadora. Helga Legrelle colocara os fones
sobre o cabelo cuidadosamente arranjado e ouvia o diálogo travado
entre uma estação e uma nave de abastecimentos. A Orion VIII
encontrava-se no hiperespaço e corria vertiginosamente em direção ao
planeta Sahagoon.
— Em que estará pensando o chefe? — perguntou Atan em voz
baixa.
— Deixem-me em paz — resmungou Cliff.
Adicionava observações. Setenta e nove depósitos roubados, um
aparelho de hipercomunicação furtado, cujo alcance era superior a
duzentos e cinqüenta parsec, detonadores e receptores. O planeta dos
lavradores e criadores, Marion, a moça... Seu comportamento e o
estranho metal... Havia uma ligação entre tudo isso; Cliff tinha certeza
absoluta. Também sabia que o jogo em que estava envolvido era
muito perigoso.
Poderia errar como qualquer outro homem. Estava pessoalmente
convencido que Sahagoon tramava um ataque a Terra, para vingar-se
de dois mil anos de deportação. Apenas, não dispunha de provas.
Mas precisava de provas. Como consegui-las?
— Ouçam, amigos — disse subitamente, endireitando o corpo. —
Sabemos que teremos de enfrentar algumas horas bem difíceis.
Devemos fazer o possível para encontrar uma pista em Sahagoon.
— Parece que você está muito convencido da sua idéia — disse
Hasso, falando da tela que se encontrava diante de Cliff.
— Sei disso. O perigo está justamente nisso. Sahagoon é o único
planeta habitado que fica em meio a esses depósitos situados nas luas
e nos satélites. Será que tudo isso pode ser simples coincidência?
— Precisamos de provas, meu caro. Provas! — advertiu Hasso.
— Não fique nervoso — disse Cliff. — Já descobri isso. Aliás,
Mario, qual é o texto de suas anotações da noite passada?
Mario sorriu; parecia abatido.
— Está aludindo ao tema "Espero por Marion"?
— Exatamente. O que houve?
Mario girou a poltrona e lançou um olhar de escusas para Helga.
Depois disse:
— Fui ao Hilton, parei junto ao robô da recepção e disse que
desejava falar com Miss Stadyonnex. O robô respondeu que ela estava
esperando, ao que parece em seu quarto. Mas... a pessoa que Marion
esperava não era eu.
Helga deu uma risada irônica e perguntou:
— O que disse a jovem, seu assaltante de corações?
— Disse que eu fosse para o inferno — respondeu Mario. — E
proferiu estas palavras alto e em bom tom, sem o menor sotaque. Ao
que parece, essa mulher tem alguma coisa contra as belezas
masculinas do planeta Terra, Cliff.
Cliff soltou os cintos e levantou-se.
— Tomara que tenha essa qualidade em comum com todas as
habitantes de seu planeta — disse. — Nesse caso também teremos um
forte motivo para tentar...
Atan Shubashi fez um gesto exaltado. Levantou a mão e gritou:
— Daqui a pouco teremos oportunidade de experimentar
pessoalmente, pois dentro em breve sairemos do hiperespaço.
4

— AQUI fala a nave espacial Orion VIII. Chamamos a


administração do porto de Sahagoon. Pedimos permissão para pousar.
Helga descansou o microfone e observou os movimentos dos
ponteiros. A bola que surgia na tela central estava transformada num
enorme círculo. A nave encontrava-se cem quilômetros acima do
planeta. Uma voz respondeu.
— Em que qualidade? Qual é o porto de matrícula?
Cliff fez um gesto apaziguador. Helga prosseguiu:
— O porto de matrícula é a Base 104 em Terra. A nave vem por
ordem dos dirigentes do planeta Terra. A tripulação procurará ampliar
o comércio exterior. A visita tem caráter estritamente informativo.
Onde poderemos pousar?
Ao que parecia, o locutor estava conversando com alguém.
— Façam o favor de pousar cautelosamente no lugar que lhes será
indicado pelo raio direcional.
— Obrigada — disse Helga. — Qual é a freqüência do raio
direcional?
Helga obteve a informação solicitada, voltou a agradecer e
transmitiu o raio direcional que acabara de captar ao painel do
comandante. Cliff foi descendo a nave. À medida que perdiam
altitude, as imagens na tela tornavam-se mais nítidas. Surgiu uma
cidade cercada de enormes campos. A cidade se agrupava em tomo do
espaçoporto.
A nave sobrevoou uma gigantesca área coberta por plantas verde-
azuladas nas quais pendiam frutos brancos. As culturas estavam muito
bem cuidadas. Logo avistaram as primeiras casas, e a nave baixou
silenciosamente sobre a área livre localizada no centro da cidade.
— Cliff — disse Hasso a meia voz — tenho uma pergunta que
provavelmente lhe parecerá idiota. Dentro de poucos minutos
pousaremos em Sahagoon. Uma vez lá, devemos verificar se sua tese é
correta. Onde vamos procurar?
Os edifícios que rodeavam o campo de pouso eram construções
típicas do planeta agrário. Funcionais, não apresentavam o menor luxo
e tinham o caráter impessoal das casas pré-fabricadas. Cliff examinava
atentamente as telas, enquanto conduzia a Orion VIII até a periferia do
campo de pouso.
— Hasso, ao que tudo indica aquilo tem alguma coisa a ver com
blocos energéticos, equipamento de rádio ou um ataque a Terra.
Infelizmente eu mesmo não sei dizer.
— Estamos pousando.
Os campos de absorção da Orion neutralizaram o restante do
impulso da nave. A Orion ficou em repouso, permanecendo dez
metros acima do campo de pouso. O complexo gravitacional,
controlado por Hasso, mantinha a nave na mesma posição.
— Helga, entre em contato com a estação do espaçoporto.
Enquanto Cliff controlava os relógios, Helga estabeleceu contato.
Depois de trinta segundos, uma grande tela retangular iluminou-se
diante de Cliff. Surgiu a cabeça e a parte do tronco de um homem.
— Contato estabelecido — disse Helga Legrelle.
— Estação de superfície — falou o homem. — O senhor acaba de
pousar. Peço-lhe que venha falar comigo no escritório do porto. Se
possível, venha logo; não temos muito tempo. De acordo?
De pé diante de seu painel, meio virado de costas, Cliff olhou o
homem com uma expressão de perplexidade.
— De acordo — respondeu. — Qual é o edifício?
— No primeiro pavimento do edifício maior, comandante — disse
Boolen. Era um homem de ombros largos que trajava uma roupa de
couro cru e usava barba cortada de forma quadricular, que se estendia
das orelhas até o queixo. Além das sobrancelhas, não havia o menor
fio de cabelo no crânio queimado pelo sol.
— Já vamos — respondeu Cliff. O contato foi interrompido.
— Cliff! — disse a voz potente de Hasso vinda da sala de
máquinas. — Vamos sair todos ou fica alguém para vigiar a nave?
— Nosso vôo foi devidamente anunciado. Além disso podemos
fechar a comporta por telecomando e recolher o elevador da mesma
forma. Nada poderá acontecer. Iremos juntos. Fiquem com os olhos
bem abertos.
— Ficaremos.
Dali a alguns minutos pisaram no solo do planeta. Tudo correu
tranqüilamente. Ninguém lhes veio ao encontro, e nem lhes disse que
eram hóspedes indesejáveis. O tom da voz de Boolen era reservado,
mas não chegava a ser de uma frieza chocante. Era dia e o ar, que
rescendia a numerosas plantas, soprava por cima do porto espacial.
Em algum lugar ouviu-se o funcionamento de máquinas pesadas.
— Ao que parece não há muita riqueza por aqui — disse Hasso,
olhando em torno. — Pelo menos não mostram.
— Pelo que soube, a doutrina de Charles C. Sahagoon não permite
que alguém acumule riquezas individuais além de um certo limite —
disse Cliff. — Tudo é investido. O planeta é rico, mas os indivíduos
não, e nem sentem necessidade de sê-lo, conforme ouvi dizer.
Viram-se diante do edifício. Em cima de uma porta larga liam-se
as palavras Administração do Porto de Sahag City. Era uma placa
simples com as letras cuidadosamente traçadas. Cliff abriu a porta e
parou diante de um guichê. Perguntou ao homem sentado atrás dele,
que também era calvo e barbudo:
— Queremos falar com Boolen. Onde podemos encontrá-lo?
O polegar do homem apontou para o teto.
— Primeiro andar. O nome está escrito na porta. O que desejam de
Boolen?
Cliff respondeu em tom seco:
— Explicaremos isto a Mister Boolen. Os terranos eram tratados
como um mal necessário. Notava-se uma aversão fria, ainda
dissimulada numa certa cortesia.
"Naja", pensou Cliff e esperou que Helga passasse por ele. Parou
diante de uma porta em que estava escrito o nome Boolen. Bateu.
— Entre!
Entraram. Viram-se num escritório simples e funcional, cuja janela
dava para o campo de pouso. Viam-se perfeitamente a nave e os
edifícios que ficavam atrás dela. Bem nos fundos havia uma cadeia de
montanhas baixas. Cliff parou à frente da escrivaninha.
— O senhor disse que queria falar comigo, Mister Boolen — disse.
— Estou aqui.
Boolen apontou com o queixo para fora da janela.
— Não diga Mister Boolen, mas Boolen. Simplesmente Boolen. O
que veio fazer por aqui, comandante?
— Meu nome é McLane. Cliff McLane. Viemos dar uma olhada.
Terra acredita que o acordo comercial entre os dois planetas pode ser
ampliado. Fomos incumbidos de descobrir as necessidades deste
planeta e compará-las com as do nosso. Os prospectos dizem muita
coisa, mas um contato pessoal sempre é melhor. Permite que
passemos algumas horas aqui para colher uma impressão?
Gostaríamos que alguém nos conduzisse.
— Receio que não haja ninguém que tenha tempo para isso.
Boolen não se mostrava furioso, mas a frieza era mais que
evidente. Cliff conseguiu controlar-se e disse:
— Ao que parece, o senhor não está muito interessado em que
Sahagoon tenha mais lucro. Será que é uma atitude correta?
Boolen manteve-se impassível.
— Peço-lhes que deixem isso a nosso critério.
— É uma pena — disse Cliff. — Pensava que encontraria pessoas
sensatas para conversar.
Boolen colocou-se bem à frente de Cliff. Tinha uns dez
centímetros menos que este.
— Ouça, McLane — disse com uma aspereza inconfundível — há
dois mil anos Terra exigiu que os adeptos de Charles C. ingressassem
no serviço da frota. Sahagoon, que sua doutrina prevaleça para
sempre, recusou com certa razão. Terra mostrou-se intolerante e
deportou-nos...
Cliff confirmou com um gesto e interrompeu seu interlocutor:
— ...para um planeta escolhido pelos senhores.
— Correto. Mas tivemos de recomeçar. Terra concluiu um tratado
que mal nos deixava o ar para respirar. Dali em diante nunca mais
possuímos armas de radiações, nem uma única nave espacial, nem
sequer uma antiga e muito lenta, e temos de trocar nossos produtos em
condições extremamente desfavoráveis. Nestas condições, o senhor
esperaria ser recebido com música, tapete vermelho e uma bebida de
boas-vindas?
— Acontece que nem o senhor nem eu somos responsáveis pela
deportação ou pelos tratados. Por isso, se não posso esperar um tapete,
ao menos esperava alguma cortesia. Peço-lhe que venha conosco e nos
mostre o planeta numa nave auxiliar.
O rosto de Boolen assumiu uma expressão gelada.
— Não tenho tempo. Há serviços muito importantes.
Apontou para a escrivaninha, que não oferecia um aspecto muito
convincente, com algumas folhas de papel espalhadas pela mesma.
— O senhor quis assim — disse Cliff McLane. — O parágrafo sete
do tratado sobre administração, celebrado entre os representantes do
governo de Terra e Charles C. Sahagoon, diz que os órgãos
governamentais de Terra têm livre acesso a todas as instalações de
Sahagoon.
"Sairemos daqui, decolaremos numa Lancet e com ela
sobrevoaremos o planeta pelo tempo que julgarmos conveniente. Se
formos picados por uma simples abelha, o planeta será devastado
pelas naves do Serviço de Segurança Galático. Entendido?"
Recuou um passo. Enquanto Boolen lutava para controlar-se,
Helga perguntou a meia voz e em tom conciliador:
— Boolen, não seria preferível vir conosco?
Boolen limitou-se a sacudir a cabeça. Cliff fez uma mesura irônica.
— Agradecemos pelo auxílio. Fazemos votos de que Charles C.
lhe dispense sua benevolência.
Saíram do escritório, silenciosos.
Dali a alguns minutos encontravam-se diante da nave e viram o
elevador telescópico pousar.
— São pessoas encantadoras — comentou Mario.
— Minha desconfiança de que estejam tramando alguma coisa
tomou-se ainda mais forte — resmungou Cliff, quando entrou na
comporta à frente dos outros. — Veremos.
Hasso e Helga permaneceram a bordo, enquanto Cliff, Mario e
Atan se encontravam na Lancet. A pequena nave de cúpulas
transparentes sobrevoou o espaçoporto, saltou silenciosamente sobre
os telhados e passou por cima da cidade. Atan estava na direção,
enquanto Mario e Cliff se mantinham junto às cúpulas. Diante deles,
funcionavam telas alimentadas por conjuntos de lentes.
— Qual é a direção, Cliff? — perguntou Atan.
— Bem à frente.
Dispunham de cerca de dez horas para vasculhar esse hemisfério
de Sahagoon, um planeta semelhante a Terra.
— Chefe, acho que já está na hora de nos livrarmos da idéia de que
os blocos energéticos e o equipamento de rádio furtado estão
espalhados por aí.
Mario virou-se e apontou para fora da cúpula. Em baixo deles, os
campos deslizavam. Eram de um verde que cambiava constantemente.
Em toda parte trabalhavam as máquinas semi-robotizadas.
— Não pensei nisso um instante sequer — disse Cliff. — Apenas
espero encontrar certas indicações. A reação de Marion é uma delas, e
a recepção extremamente fria que acaba de nos ser dispensada é outra.
Talvez encontremos mais alguma coisa. Quando vir alguma fábrica,
vá em sua direção.
— Perfeitamente, chefe — disse Atan. O vôo prosseguiu.
Em torno da cidade estendia-se um tapete que se parecia com um
gigantesco tabuleiro verde de xadrez. Os trabalhadores deste planeta,
que se contavam aos milhões, deviam ser capazes de produzir
quantidades enormes de diferentes tipos de planta. Cliff refletiu:
alguma coisa o perturbava. Não era o quadro que estava
contemplando, mas uma idéia. Desligou o amplificador da tela e
dirigiu-se a Mario.
— Geralmente você tem memória excelente, meu caro. O que foi
que Boolen disse? Quero as palavras exatas.
— Lamentou o tratado comercial e queixou-se de que não podiam
usar armas de radiações e que não possuíam uma única nave espacial,
nem sequer... Cliff!
Cliff McLane sorriu.
— Ah, então você também notou. Disse textualmente: "Nem uma
única nave espacial, nem sequer uma nave lenta e antiga." Como
poderia saber que uma nave antiga sempre é lenta?
Atan sacudiu a cabeça.
— Uma nave antiga e lenta, isso não me perturba. O que me
perturba é o fato de ter mencionado nave antiga. Os rastros que
encontramos eram de uma nave antiga.
— É verdade — interveio Mario de Monti. — Acontece que isso
também são simples suposições. Ainda não temos nenhuma prova.
— Sem dúvida. Mas as peças do mosaico vão se encaixando.
— Marion Stadyonnex falou em minas que produzem certos
minérios. Segundo diz, esse minério é retirado pelas naves terranas.
Ao que parece há uma dessas minas ali à frente, à nossa direita.
O primeiro-oficial apontou para o local. Cliff voltou a ligar a tela
com o amplifica-dor. Junto à cordilheira central erguiam-se edifícios
escuros.
A nave auxiliar ganhou velocidade, desviou-se da rota anterior e
tomou a direção das torres e galerias.
— Marion não está bem informada, ou então quis blefar. Acontece
que o minério é trabalhado aqui mesmo e o metal é transportado para
Springhill. Já não se transporta a pedra que contém o metal.
— O transporte é realizado em naves dirigidas por robôs? —
perguntou Cliff.
— Naturalmente — respondeu Mario.
Viram os mastros elevados, os gigantescos pavilhões e as torres da
mina. Uma nuvem de vapor elevou-se, escurecendo o céu. A mina e as
instalações de processamento de minério eram semi-robotizadas.
Bastava supervisionar seu funcionamento. Trabalhava-se febrilmente,
mas não se via nenhum ser humano.
— Quanto tempo demoraremos por aqui? — perguntou Mario.
— Não ficaremos mais que uma hora — disse Cliff, olhando para
o relógio. Franziu a testa e examinou o mostrador. Encostou o pesado
relógio ao ouvido.
— O que houve? — indagou Atan.
— Meu relógio parou — disse Cliff.
— Isso é impossível — explicou o astronavegador. — Um relógio
de quartzo só pára depois de alguns anos, se é que pára. Pelo preço
que custam, deviam funcionar para toda a eternidade.
— Deviam funcionar — disse Cliff, sacudindo seu relógio. —
Acontece que não funcionam.
O relógio parará no interior do edifício da administração do porto,
pois ainda marcava a hora registrada no diário de bordo eletrônico.
— Pedirei que alguém me dê outro relógio — disse Cliff. —
Vamos pousar, Atan.
— Pedirá a Tamara, não é? Será que seu soldo será suficiente para
isso?
Cliff sorriu.
— O problema não é seu, meu caro.
A recepção naturalmente seria tão fria como a que lhes fora
dispensada pelo inspetor do porto. Por isso resolveram pousar no
interior da usina, junto a uma construção que parecia abrigar a central
de comando do complexo.
Trancaram a escotilha da comporta com o fecho especial e saíram
da nave. Caminharam por uma rua pavimentada coberta por uma
poeira fina e cinzenta, em direção à porta quadrada metálica, que se
encontrava fechada. Bem abaixo da cordilheira o minério era retirado
das entranhas do planeta; aqui em cima procedia-se à separação do
ferro e da pedra. As naves robotizadas levavam os lingotes de ferro-
gusa para Springhill. Era lá que ficavam os estaleiros terranos. Cliff
mexeu na alavanca da porta de metal e procurou abrir a chapa. Esta
não se moveu.
— Deixe-me tentar — disse Mario, forçando os músculos ao
máximo e apoiando o corpo ao caixilho. A porta estava trancada por
dentro.
— Eu já disse — observou Atan em tom seco. — Somos muito
estimados por aqui.
Cliff olhou em torno e viu um vulto atrás da janela. Afastou-se da
porta metálica, parou junto à vidraça e bateu. O homem virou-se,
olhou para Cliff e deu de ombros. Também era calvo e barbudo.
— Abra! — gritou Cliff.
Com uma lentidão irritante, o homem que vestia jaleco de
laboratorista afastou-se da janela e desapareceu em meio a um arranjo
complicado de mesas e aparelhos de ensaio. A parede dos fundos da
sala era coberta por um gigantesco painel de chaves. Cliff voltou
lentamente.
— Vamos seguir o caminho macio ou o caminho duro, chefe? —
perguntou o primeiro-oficial, tirando a arma do bolso.
— Por enquanto seguiremos o caminho macio. Venham, vamos
dar uma olhada.
Andaram por entre fitas transportadoras cercadas de construções,
entre tubulações e vias de radar das instalações transportadoras,
dirigindo-se ao pavilhão principal. Quando chegaram mais perto,
viram junto a um muro elevado as instalações do elevador e as cabines
de controle que pareciam ninhos de andorinha. Cliff os apontou e
disse laconicamente:
— Vamos ver se por ali descobrimos mais alguma coisa.
Conseguiram abrir a porta e subiram num elevador espartano.
Depois saltaram e chegaram a um painel de controle abandonado.
Mario abaixou-se rapidamente e colocou a mão no assento.
— Ainda está quente. Foi abandonado quase neste instante.
Atan sacudiu a cabeça e olhou pelas vidraças inclinadas. Parecia
nervoso. Mais embaixo, viram as instalações semi-automáticas onde o
metal e a pedra eram separados num processo contínuo. O plano de
ligações da instalação estava registrado num painel.
— Mario, você é perito no assunto. De onde provém a energia
consumida por estas instalações? — perguntou Cliff, apontando para
os relógios.
— Se estou bem informado, por aqui existem alguns reatores
atômicos que garantem o suprimento de energia. Sei que foram
comprados em Terra por um preço muito elevado.
— Será que esses reatores podem produzir mais energia que aquela
consumida aqui?
— Sem dúvida é possível — disse Mario. — Mas só se essa gente
fosse inexperiente ou tola.
— Por quê? — Atan virou-se e encostou-se relaxadamente contra
o quadro de chaves.
Quase cem metros abaixo do lugar em que se encontravam,
pesados carros robotizados levavam o minério liquefeito através do
pavilhão.
— Porque uma equipe de técnicos terranos poderia controlar o
fluxo de energia. Um reator atômico não é nenhum bloco energético,
que a qualquer momento fornece a energia. O reator precisa de um
extenso equipamento de segurança, de refrigeração e outros mais. Por
aqui não encontraremos nada.
— Compreendo — disse Cliff. Olhando para os companheiros,
balançou os ombros. — Vamos adiante.
O elevador estava com defeito. Desceram mais de oitenta metros e
sentiram-se tontos quando saíram do poço.
— Mais um elemento suspeito — resmungou Cliff. — Vamos
voltar à Lancet.
Procuraram orientar-se. Passaram entre os grandes radiadores.
Vozes confusas atingiram seus ouvidos. Pararam. Cerca de trinta
homens, todos calvos e barbudos, cercavam um homem de jaleco
branco, que parecia fazer um discurso.
— Talvez esteja explicando a eles que somos trapaceiros e
indivíduos de mau caráter — observou Atan Shubashi em tom
pensativo.
— Vamos até lá para ouvir o que está dizendo — disse Cliff.
Aproximaram-se do grupo. O barbudo lançou-lhes um olhar, mas
não interrompeu seu discurso. Subitamente o perigo parecia pairar
sobre o ar poluído.
— Segundo os ensinamentos deixados por Sahagoon, a tecnologia
é uma coisa má — disse o homem, cujos ouvintes pareciam
fascinados. — Quando ultrapassa certo nível, assume feições
determinantes e reduz o homem livre à servidão. A tecnologia deve
ser então exterminada. Mas nunca conseguiremos fazer isto se a
combatermos apenas com as mãos.
— Até que ele tem razão — disse Atan.
— Deve haver uma possibilidade de combater a tecnologia —
continuou o orador.
Mesmo estas palavras não podiam ser aceitas como prova, mas
contribuíam para a impressão geral. Cliff ouviu-o muito concentrado e
pensou no relógio parado.
— E essa possibilidade existe — prosseguiu o orador. — No plano
teórico pode ser concebida da seguinte forma: recorre-se à tecnologia
para produzir alguma coisa que se dirige contra o criador. Trata-se de
uma bomba que não afeta os homens ou os animais, apenas destrói a
tecnologia. É esta a sabedoria que podemos extrair da doutrina.
Cliff sorriu, respirou profundamente e perguntou em voz alta:
— Como irão arar seus campos, quando a tecnologia tiver
destruído as máquinas?
— Com a mão e com animais de tração
— disse o orador.
— Isso não ajudará suas exportações — observou Cliff em tom
seco.
— Quando isso acontecer, a questão das exportações já não será
muito importante — disse o homem e virou-se. — Além disso, não
tenho tempo para dialogar com o senhor. Vamos ao trabalho. Faço
votos de que os terranos não demorem em deixar-nos.
— Isso é muita gentileza de sua parte — gritou Atan, vendo o
grupo dispersar-se.
— Que Charles C. proteja sua debandada — disse Mario em tom
zangado.
Cliff sacudiu a cabeça e retirou-se. Quando chegou à nave auxiliar,
viu que junto à comporta estava pintada alguma coisa com tinta
branca. Eram letras, palavras. Mario e Atan colocaram-se a seu lado.
— Aqui — disse e acionou o transmissor de impulsos. A escotilha
da comporta abriu-se. — Aquela gente realmente nos ama.
Sobre o metal estava escrito: Terranos! Saiam de Sahagoon! Cliff
recolheu a escada e, uma vez no interior da Lancet, deixou-se cair
pesadamente numa poltrona. Atan entrou, e atrás dele Mario.
Fecharam a nave pelo lado de dentro.
— Vamos decolar, chefe? — perguntou Atan.
Cliff limitou-se a fazer um gesto afirmativo.
— Você não notou — perguntou depois de algum tempo, quando a
Lancet sobrevoava uma zona de vales e desfiladeiros — que todo
mundo age como se quisesse livrar-se de nós o quanto antes?
Mario soltou uma gargalhada rouca.
— Dificilmente alguém deixaria de notar — confirmou. — Isso
me faz lembrar certas aves que fazem de conta que não sabem voar a
fim de afastar a fera para longe do ninho. Quando se acham a uma boa
distância do ninho, saem voando.
— Era exatamente isso que eu queria ouvir de você — disse Cliff
em tom decidido. — Essa gente esconde alguma coisa e, com seus
modos encantadores, querem conseguir que levantemos vôo quanto
antes, deixando-os à vontade.
— Acontece que não temos provas — concluiu Atan — Aonde
vamos?
— Vamos voar por aí — disse Cliff. — Talvez o acaso nos ajude.
Uma hora passou-se. A Lancet deslocava-se silenciosamente ao
longo das montanhas. Parte do planeta ainda era inexplorada. A
expansão realizava-se a partir de três cidades. Três círculos
gigantescos iam avançando seus limites. Suas zonas centrais,
formadas pelas cidades redondas, transformaram-se em pontos de
comércio e de cultura, muito embora os habitantes do estranho planeta
quisessem fazer crer que dispensavam voluntariamente a riqueza, o
luxo e outras amenidades da vida. Cliff sabia por experiência própria
que, também aqui, devia haver elementos rebeldes, mas estes seriam
impedidos de entrar em contato com os terranos.
Viram manadas gigantescas correndo sobre pastagens que
pareciam estender-se ao infinito. Havia algumas cabanas, que
provavelmente serviam de abrigo aos pastores errantes, mas nenhuma
estrada, nenhuma barragem, nada. Um pouco mais interessante foi a
descoberta de Mario de Monti.
Sem tirar os olhos da tela, pôs a mão para trás e pegou o braço de
Cliff. Puxou o coronel para junto de si e apontou para a imagem
nítida, real e colorida que brilhava à sua frente.
— O que é isso? — perguntou.
— Não tenho a menor idéia — disse Cliff. — Vamos continuar a
aplicar o parágrafo sete, Atan. Pouse nas proximidades do lugar. Se
possível, sem que ninguém perceba.
Inclinou-se para a frente e ligou todos os aparelhos de rádio de que
dispunha a pequena nave. O disfarce foi excelente: um grupo de
árvores disposto de forma oval, entremeado de uma densa vegetação
rasteira. Ficava numa encosta inclinada, sobre a qual estavam
espalhados blocos de rocha verde. No meio da relva, erguia-se uma
antena longa e esguia. O brilho do sol estragara o disfarce. Os detalhes
foram aparecendo, como se tivessem diante de si um slide.
— É interessante — cochichou Mario. Numa reação instintiva, pôs
a mão na arma. — É muito interessante.
O quadro tornou-se mais nítido, pois a Lancet aproximava-se do
local. Cliff pegou o microfone, ligou-o e disse a meia voz, mas com
bastante ênfase:
— Aqui fala McLane. Encontro-me a bordo da Lancet. Chamo o
tenente Legrelle. Helga, responda. Lancet acaba de descobrir uma
instalação camuflada. Emitiremos um impulso goniométrico. Se não
chamarmos dentro de trinta minutos, decolará nesta direção e nos
procurará. Entendido?
Helga respondeu em tom nervoso:
— Entendido. O que houve, Cliff? Cliff engoliu em seco e
respondeu:
— Não faço a menor idéia. Parece uma estação de rádio muito
bem escondida. Vamos dar uma olhada.
— Está bem. Boa sorte.
Com um chiado, as colunas de apoio saíram da parte inferior da
nave no momento em que Atan imobilizou-a pouco acima do solo. Por
entre as copas transparentes, os troncos erguiam-se. O ruído dos
arbustos que se esfacelavam e quebravam sob o peso da nave
penetraram pela chapa relativamente fina que revestia o veículo. A
comporta abriu-se lentamente.
— Atan, fique aqui e preste atenção ao que se passa ao seu redor.
Pode realizar medições energéticas, caso isto realmente seja uma
estação de rádio.
Cliff e Mario já se encontravam com um pé sobre a escada que
dava para a parte inferior da nave. Dentro de alguns segundos estariam
do lado de fora. Em algum lugar um pássaro chilreava bem acima de
suas cabeças. Depois ouviram ruídos indefinidos.
— Vamos aproximar-nos cautelosamente — cochichou Cliff.
Moviam-se rapidamente e com a cabeça abaixada em meio aos
troncos, procurando rastos ou algum caminho. Não encontraram nada.
Rastejaram em ziguezague em direção ao centro do bosque. Diante
deles, surgiram construções semi-esféricas pintadas de verde. Cliff
reconheceu nelas as construções pré-fabricadas utilizadas durante as
expedições, com as quais trabalhara no tempo de cadete.
— Made in Terra — disse em voz baixa.
Encontravam-se em meio a uma vegetação espessa, entre duas das
construções em forma de iglu. As cúpulas destas atingiam mais de três
metros de altura. McLane contou quatro, muito bem escondidas sob as
árvores. Entre elas havia uma área livre, formada por pedras batidas.
Não se via nenhuma pista. No centro da praça retangular, erguia-se a
antena. Alguns cabos de aço davam-lhe apoio. A área parecia
abandonada.
— Você me dará cobertura — cochichou Cliff. Destravou sua
HM-4 e, passando entre os iglus, saltou em meio à área livre. Girou
uma vez em torno de seu próprio eixo. O cano do projetor, mantido na
altura dos quadris, apontava para o bosque, para os intervalos entre os
iglus e as próprias construções. Nada se movia.
Cliff aproximou-se cautelosamente de um dos iglus, girou a
tramela e abriu a porta convexa. Foi um movimento lento; até parecia
que com ele poderia ser desencadeada uma explosão. Cliff
desapareceu no interior da cúpula. Mario de Monti aguardou-o
bastante preocupado. Ouviu os ruídos naturais da mata: galhos
estalaram, uma ave passou ruidosamente entre os ramos das árvores,
um graveto estalou. O vento assobiava. Vários segundos passaram-se.
Mario ergueu a arma. Com um único tiro poderia incendiar o
bosque. Prestou atenção às folhas que se moviam, pois não podia
imaginar que não houvesse ninguém na estação. Provavelmente
haviam constatado a aproximação da Lancet e fugiram. Não viu nada
que pudesse ser interpretado como indício de um ataque iminente.
Avançou cautelosamente, até olhar para dentro do iglu. Viu luz no seu
interior.
— Cliff! — disse baixinho.
McLane apareceu. Havia um sorriso contrariado em seu rosto.
Olhou para Mario e fez-lhe um sinal.
— Olhe só o que encontrei.
Mario atravessou o restante da área livre e entrou no iglu. Viu à
sua frente um estúdio pequeno mas bem montado. Parecia
abandonado, mas não encontraram nenhuma poeira. Os mostradores e
instrumentos estavam sem energia.
— Um transmissor!
— Isso mesmo — respondeu McLane. — É parte de um
transmissor. É claro que pode ser uma estação destinada a este planeta,
se bem que a antena parece ser muito pequena. Vamos examinar o
resto.
Fez um sinal para Mario. Contornaram a face interna do iglu.
Havia poltronas, uma biblioteca formada por cassetes e por volumes
manuscritos, vários painéis e fitas paralisadas. Foi só.
— Não é um hipertransmissor — disse , Mario, saindo do iglu. —
Vamos ver outra construção.
O iglu seguinte parecia abrigar uma espécie de redação. Estava
tudo muito bem arrumado, e até o gigantesco relógio em cima da
escrivaninha estava parado. Na parte dianteira deste móvel havia três
videofones. Cliff ligou-os um atrás do outro. Não havia energia. O
terceiro iglu era um estúdio. Uma poltrona, uma mesa, a lâmina de um
videofone e algumas cortinas que absorviam o som.
— Gostaria de saber para que serve um estúdio de rádio completo
aqui nas montanhas — disse Cliff, enquanto fechava a porta e corria
em direção ao quarto iglu.
Também aqui a porta convexa foi aberta sem a menor dificuldade.
No iglu havia um reator atômico, também desligado.
— Vamos voltar — disse o coronel. — Voltaremos à Lancet. Isso
ultrapassa minhas atribuições. Quem vai decidir é Villa.
Fecharam a porta e Cliff virou-se.
— Atenção, Mario! — gritou. Virou-se abruptamente e bateu com
a mão aberta entre as omoplatas de Mario, atirando-o ao chão. Mario
agiu imediatamente, enquanto Cliff dava um salto enorme na direção
oposta. O raio branco de uma arma de radiações atravessou o ar. Cliff
rolou para o lado, rastejou para dentro da vegetação e sentiu a pele ser
penetrada pelos espinhos. Parou e atirou no espaço situado entre duas
das cúpulas verdes. À sua frente, Mario estava encostado a uma das
árvores resinosas, fazendo pontaria. Um raio de fogo saiu do cano da
HM-4 e incendiou um arbusto. Cliff também disparou. Ouviu um
ruído vindo da esquerda. Alguém fugia pelo mato em desabalada
carreira.
Cliff ergueu-se, correu bem para a frente e viu-se na beira do mato.
Cautelosamente, mas rápido e em silêncio que nem um felino, moveu-
se junto à beira do mato, para a esquerda. A arma pronta para disparar
descansava em sua mão. Mais uma vez, ouviram-se os ruídos,
seguidos do chiado de uma potente arma energética. Abriu uma brecha
entre os galhos bem à frente do comandante, mas passou sem produzir
maiores danos.
A seguir, Cliff ouviu os passos: alguém corria. Disparou pelo
terreno descoberto. À sua esquerda, aquele alguém corria encosta
abaixo em desabalada carreira. Era um colono Cliff viu a cabeça
calva. Quando moveu a cabeça, Mario saiu da vegetação como se
fosse um urso e levantou a arma. Porém logo recuou. Cliff apontou
para o homem que fugia. Ajoelhou. Apoiou o cano da arma na curva
do cotovelo, fez pontaria e disparou. O raio da grossura de um lápis
atingiu um dos blocos de pedra, situados dois metros acima da cabeça
do fugitivo. A rocha derreteu e os fragmentos zumbiram pelo ar.
— Pare, homem! — berrou Mario.
O fugitivo não lhe deu atenção. Continuou a correr encosta abaixo,
como se o diabo em pessoa estivesse atrás dele. Subitamente parecia
que alguém o segurava em meio à corrida. Parou, atirou os braços para
o alto e girou. Cliff e Mario viram que um raio de fogo vindo da frente
e da esquerda o matara. O desconhecido caiu lentamente.
— Vamos até lá; com cuidado — disse Cliff.
Corriam, mas com a maior atenção. Nada se movia. Quando
haviam percorrido mais ou menos metade da distância que os separava
do morto, ouviram o uivo da máquina. Parecia ser um veículo pesado
e capaz de deslocar-se em terreno irregular. Deslocava-se em alta
velocidade. Os ruídos foram refletidos pela rocha. Por fim, um bosque
os engoliu. O silêncio voltou a reinar.
— Devagar — disse Cliff. — Este homem não fugirá.
— Dificilmente — observou Mario em tom seco. —
Evidentemente Charles C. era contra ele.
— Parece que sim.
Quando se encontrava a vinte metros do morto, Cliff colocou o
transmissor de pulso junto à boca.
— Atan! Faça o favor de pousar a Lancet junto à encosta. Você
nos verá. O resto fica para depois. Fim.
Chegaram ao morto. Não havia a menor dúvida: era habitante de
Sahagoon. Fora atingido por um disparo de radiações, que devia tê-lo
matado imediatamente. Em seu rosto desenhava-se a expressão de um
enorme espanto. O primeiro-oficial abaixou-se e pegou a arma, que se
encontrava a alguns metros do cadáver.
— É uma HM-4 novinha em folha — disse, contemplando a arma
com uma expressão que quase chegava a ser de veneração. — E em
Sahagoon as armas energéticas são proibidas!
— O resto da história é da alçada do coronel Villa — disse Cliff
com a voz débil.
A Lancet pousou silenciosamente. Atan correu para junto dos
companheiros e pediu que estes lhe contassem o que havia acontecido.
— Entregaremos o morto a Boolen e decolaremos imediatamente
em direção a Terra — disse Cliff. — Logo após expediremos uma
mensagem pelo rádio. Villa poderá fazer o que achar mais
conveniente. Os sahagoons cometeram um erro pequenino, mas
decisivo.
Carregaram o cadáver para dentro da Lancet, colocaram-no junto à
comporta e decolaram. Cliff entrou em contato com a Orion e relatou
os acontecimentos. A nave levou cerca de uma hora e meia até que
Atan a pousasse habilmente junto ao edifício da administração do
porto. Coronel McLane e Mario carregaram o cadáver para baixo.
Subitamente a porta abriu-se. Boolen surgiu e fitou-os.
— O que significa isso? — perguntou em tom penetrante.
Cliff não respondeu. Fez um sinal para Mario. Carregaram o
cadáver para o escritório, colocando-o junto à entrada. Depositaram-
no sobre uma mesa, em meio a montes de papéis e caixas. Um
sahagoon recuou em silêncio até a parede; estava pálido como cera.
— Pergunto — disse Boolen. Sua voz tremia de raiva e ódio. — O
que significa isso?
Cliff cruzou os braços e exibiu um sorriso perigoso.
— Encontramos uma estação muito estranha nas montanhas —
disse. — Enquanto a revistávamos, alguém atirou contra nós e saiu
correndo. Outro sahagoon liquidou-o com uma arma de radiações.
Depois afastou-se num carro, demonstrando uma pressa
plenamente compreensível. Dali se conclui o seguinte:
"Em Sahagoon existem armas de radiações. Isso constitui infração
ao artigo terceiro das normas de segurança. Ainda, houve uma
tentativa de assassínio contra dois terranos. Além disso, foi praticada
uma tentativa de assassínio contra dois astronautas. Também foi
assassinado um terrano colonial. O senhor há de compreender que
dentro de poucos dias a frota do Serviço de Segurança Galático vai
aparecer por aqui e vasculhar o planeta — Cliff fez uma pausa e fitou
os olhos de Boolen. — O senhor cometeu dois erros, Boolen — disse
em tom de ameaça. Boolen ergueu as sobrancelhas.
"O senhor exagerou. E não impediu o ataque. Não sei o que está
sendo tramado por aqui, mas posso garantir-lhe que descobrirei. Que
Charles C. o proteja. Terão uma necessidade tremenda de seu auxílio."
Virou-se, dando as costas a Boolen. Foi à nave juntamente com
Mario. Atan já colocara a Lancet no tubo de aterrissagem e fechara o
envoltório da nave. Sem dizer uma palavra entraram no elevador
central. Cliff deu partida à Orion. O disco atravessou velozmente as
nuvens, mergulhou na sombra de Sahagoon e ganhou velocidade. A
tripulação estava reunida na cabine de comando .
— Helga, expeça uma mensagem ao SSG: "Coronel McLane, da
Orion VIII ao Serviço de Segurança Galático. Solicitamos envio de
unidades de investigação para Sahagoon. Motivo: atitude hostil da
população, instalações suspeitas, assassínio de um habitante do
planeta, tentativa de assassinato praticada contra McLane e De Monti
e posse de armas energéticas proibidas. Encarecemos urgência.
Pedimos confirmação. Fim."
A fita correu, e a antena da nave irradiou a mensagem pelo
hiperespaço. Dali a um minuto, Helga disse:
— A confirmação chegou, Cliff.
Mario já se encontrava junto ao elemento de introdução de dados e
mantinha os dedos sobre as teclas.
— Rumo a Terra, coronel?
Cliff limitou-se a confirmar com um gesto.
A Orion mergulhou no hiperespaço e correu vertiginosamente em
direção a Terra. Cliff sabia que sua suspeita se confirmara. Mas havia
uma coisa que não sabia: que os funcionários do Serviço de Segurança
Galático já o aguardavam.
Não para agradecer-lhe...
5

A ORION VIII pousou. Uma vez recolhidos os enormes campos


energéticos, a tripulação desceu. Cliff e seus quatro amigos pararam
na primeira comporta pressurizada, entregaram os registros do vôo e
aguardaram que a segunda chapa de aço se levantasse. Iam prosseguir,
mas... seis homens do Serviço de Segurança Galáctico os aguardavam.
— Vamos com calma — disse Cliff com um sorriso. — Antes de
mais nada, tenho de lavar as mãos. Depois apresentarei meu relato a
Villa.
O mais graduado dos agentes sacudiu a cabeça e disse em tom
apressado:
— Isso é impossível. Villa deu ordem para que o senhor e sua
tripulação fossem levados imediatamente à sua presença.
— Um dia destes Villa vai morrer sufocado de tanta desconfiança,
e então teremos um bom chefe de segurança a menos — resmungou
Cliff. — Companheiros, vamos submeter-nos à violência.
Foram levados a um corredor quase deserto, onde um carro
robotizado vazio já os aguardava. Os agentes do serviço de segurança
não lhes deram outra alternativa; todos os cinco tripulantes da Orion
sentaram no veículo e este disparou. Sua máquina arrastou-o com um
zumbido através do corredor que parecia não ter fim. Acabou por
descrever uma curva fechada e parou diante de um conjunto de portas,
plataformas, escadas e rampas.
— Por aqui.
Cliff fitou o mais graduado e disse:
— O quê?
— Por aqui, faça o favor.
A barreira de fluxos luminosos tremeluzia sem ruído. Um dos
agentes do SSG dirigiu-se a um videofone, apertou um botão e parou
diante das lentes.
— Pois não — disse a voz de Villa; a tela continuou apagada.
— Coronel Villa, a tripulação da Orion está esperando.
— Queira fazer entrar McLane e seus subordinados.
A voz de Villa era fria e indiferente como sempre. Cliff parou;
parecia surpreso. Villa, Wamsler, o general Van Dyke, Kublai-Krim,
Von Wennerstein e Sir Arthur estavam reunidos em torno da mesa.
Outras poltronas estavam ocupadas por oficiais do SSG. Cinco lugares
contíguos ainda estavam vazios.
— Bom dia, cavalheiros — disse McLane. — Ao que parece
encontro-me no plenário de uma assembléia dos serviços de defesa.
Ou será que não estou?
O sorriso de Villa foi ligeiro e sarcástico.
— Sua suposição é correta, McLane. E o motivo da assembléia é o
senhor. Mas faça o favor de sentar.
Cliff e os demais tripulantes da Orion sentaram sem dizer uma
palavra.
— De que se trata, coronel Villa? — perguntou McLane.
— Trata-se de certo metal, coronel — disse Villa.
— Um metal secreto e extremamente perigoso, McLane — disse
Sir Arthur.
— Já compreendi. É a pulseira? — perguntou Cliff.
— Isso mesmo — respondeu Villa. — Onde arranjou aquilo?
— Prometi dizer-lhe assim que veja o resultado da análise —
retorquiu Cliff prontamente.
— A análise está aqui, coronel. Tem certeza de que quer ouvir
tudo?
McLane respondeu com um gesto afirmativo.
— Tenho certeza absoluta, coronel Villa.
Villa fez um sinal quase imperceptível a um dos homens que o
rodeavam.
— Trata-se do metal designado como kapa 19 plus. No momento é
a coisa mais secreta que existe no planeta Terra. É praticamente
impossível e inconcebível que o processo de fabricação desse metal
tenha sido revelado a alguém. Os cientistas que trabalham com o
mesmo resolveram submeter-se a uma clausura voluntária. Além
disso, nem mesmo uma usina muito bem instalada poderia fabricar
este metal pelos métodos conhecidos.
— Ah! — disse Cliff em voz alta. Wamsler girou pesadamente o
corpo e fitou McLane com uma expressão sombria.
— Até agora nenhum objeto foi fabricado com este metal —
prosseguiu o oficial do serviço de segurança. — Conhecemos
perfeitamente a teoria do processo de fabricação, mas não
conseguimos impedir que durante o processo de consolidação surjam
cristais que inutilizam o metal. Há anos trabalha-se intensamente na
produção dessa liga especial. Trata-se de um material utilizado na
fabricação dos novos propulsores. Deve ser muito leve e, ao mesmo
tempo, muito resistente, pois tem de suportar temperaturas e pressões
inacreditáveis. Até agora nenhum laboratório terrano conseguiu
fabricar qualquer objeto do kapa 19 plus.
O oficial voltou a sentar e fechou a pasta.
— Onde arranjou a pulseira? — perguntou Villa.
— Bem — disse McLane. Fez uma pausa e levantou a mão. — Por
favor, não se assustem. Eu a encontrei no cassino. Estava jogada em
cima de uma mesa.
— Quando? — perguntou Villa em tom áspero.
— Duas horas antes de eu lhe ter entregado.
— Não sabe de quem era?
— Não — disse McLane, percebendo que Mario estremecera de
susto. — Não sei. Se soubesse, não perderia tempo; agiria
imediatamente.
— Ora essa! — disse Villa em tom enfático. — O senhor é a única
pessoa que sabe da existência deste metal.
Cliff sorriu e sacudiu a cabeça.
— Dificilmente. A pessoa que perdeu o objeto também deve saber
do que se trata. Portanto, são pelo menos duas pessoas, coronel Villa.
— Sua lógica é irrefutável, McLane, mas isso não lhe serve de
desculpa — disse Von Wennerstein em tom indignado. — Tem mais
alguma coisa a dizer?
— Muita coisa — disse McLane. — E diz respeito a uma
conspiração que está sendo tramada no planeta de Sahagoon.
— O que está acontecendo em Sahagoon? — berrou Wamsler.
— Deixe que lhes conte. Tenho quatro testemunhas e o diário de
bordo. Aliás, a frota do SSG foi enviada para lá, coronel Villa?
Villa fez um gesto afirmativo.
— Está revistando Sahagoon e também, sob a direção de Tamara,
a base de Springhill.
Cliff sentiu-se tranqüilizado.
— Vou contar o que vimos em Sahagoon — disse. — Depois,
gostaria de expor minhas teses, mas provavelmente os senhores
mesmos tirarão suas conclusões.
A atmosfera no amplo gabinete estava muito tensa. Na projeção da
esfera espacial, várias luzes tremeluziam no setor Dois/Norte. Cliff
relatou.
Solicitou ligeiros pronunciamentos dos colegas e terminou seu
relato com a mensagem por ele expedida.
— Todos sabemos que Sahagoon está tramando alguma coisa —
disse em tom enfático. — A atmosfera que prevalece por lá não é nada
sadia, e os habitantes odeiam o planeta Terra. Dispomos de uma série
de observações, mas as mesmas ainda não formam um quadro
coerente. Temos a impressão de que aquilo que tem de ser feito deve
ser providenciado com a maior urgência.
Por um instante houve um silêncio geral. Os membros do comitê
de defesa procuraram analisar os elementos de risco e reunir as peças
do mosaico num quadro.
— Coronel Villa, o senhor sabe em que lugar estão sendo
realizados os trabalhos com o metal kapa 19 plus? — perguntou
McLane depois de algum tempo.
Villa lançou um olhar hesitante para Wamsler e Kublai-Krim.
— Posso dizer?
— Isso não pode fazer mal a ninguém; afinal, McLane já conhece
os outros dados — disse Kublai-Krim. — Fale.
— Os cientistas são mantidos em clausura em Springhill —
comentou Villa baixinho.
— Springhill... — murmurou McLane em tom sombrio. — Esse
planeta fica em Dois/Norte 374, e Sahagoon fica em Dois/Norte 401.
Não perceberam nada? As barras do minério extraído e processado em
Sahagoon são levadas para Springhill em naves robotizadas. Com tudo
isso, é perfeitamente possível que de Sahag City enviem sabotadores
ao planeta do aço.
O pavor espalhou-se pela sala.
— O senhor acha, McLane? — disse Sir Arthur num tom que
quase chegava a ser de medo.
Cliff sacudiu a cabeça.
— Não acho, mas no meu entender trata-se de raciocínio
perfeitamente válido. De qualquer maneira, não conseguiremos
arrancar uma única palavra dos sahagoons. O planeta é habitado por
fanáticos implacáveis, que vão buscar apoio numa doutrina ética
absurda que é pregada por lá. Infelizmente aquilo que acabo de dizer
constitui uma simples possibilidade, não uma certeza.
— Está bem — disse Villa. — Chamá-lo-ei pessoalmente assim
que surja qualquer modificação, McLane. Desculpe a recepção um
tanto espalhafatosa. O caso é que nos sentimos chocados com a idéia
de que, além das poucas pessoas familiarizadas com o assunto, alguém
pudesse saber qualquer coisa sobre o kapa 19 plus.
Com um sorriso sarcástico Cliff respondeu:
— Nos meus longos anos de serviço, desacostumei-me de
demonstrar mais que uma surpresa comedida. Podemos retirar-nos?
— Naturalmente.
McLane levantou-se e fez uma mesura. Seus tripulantes também se
levantaram e caminharam em direção à porta. De repente sentiram-se
detidos por um forte zumbido. Villa ligou o videofone e disse
laconicamente:
— Está certo; transfira a ligação para o círculo de projeção.
— Aqui fala a EA IV — disse uma voz impessoal. — Transfiro a
mensagem audiovisual para o sistema de retransmissão. Veja a
fotografia.
Tamara surgiu na tela. Cliff piscou; parecia surpreso.
— Encontro-me a bordo de uma das naves que pousaram em
Springhill — disse Tamara. Quando viu McLane, deu uma
ligeiríssima piscadela.
"Constatamos o seguinte: nos estaleiros de Springhill trabalham
cem habitantes de Sahagoon. São muito apreciados como
trabalhadores que exercem suas funções nos lugares mais quentes e
perigosos e ganham mais que os outros. Apresentam uma
extraordinária capacidade de resistência e dedicam-se ao trabalho com
tamanha fúria que por várias vezes entraram em conflito com os
sindicatos locais. Ao que parece, não mantêm qualquer contato com
seu mundo; mas, por meio de perguntas capciosas descobrimos que
estão muito bem informados sobre aquilo que acontece lá.
No momento, defrontamo-nos com um problema todo especial. Ao
que tudo indica, durante a fabricação rotineira de metais destinados à
construção de naves ocorreu uma pane. O produto elaborado
desapareceu em circunstancias misteriosas. Evidentemente estamos
revistando o respectivo complexo com um cuidado todo especial.
Ficaria muito satisfeita se pudessem enviar-nos alguns reforços. De
qualquer maneira, a esta hora todos os agentes do SSG já devem estar
convencidos de que alguma coisa está acontecendo em Sahagoon.
Voltarei a chamar assim que haja outras informações. Aconteceu algo
de novo em Terra?"
Tamara sorriu. Cliff sabia que o sorriso destinava-se
exclusivamente a ele.
— Existem algumas novidades sobre as quais a senhora precisa ser
informada — principiou Villa.
Cliff fez um sinal para que sua tripulação o acompanhasse. A essa
altura sua presença era perfeitamente dispensável. A barreira de fluxos
luminosos apagou-se à sua frente. Cliff pediu para sua equipe que
todos fossem almoçar em seu bangalô.
Ele, que não era amigo das atitudes contemplativas ou dos
pensamentos sombrios, utilizou o sistema usual de elevadores e fitas
rolantes, e por fim um pesado táxi movido a turbopropulsão, a fim de
chegar ao seu bangalô, onde os robôs e as instalações eletrônicas
automáticas levavam sua vida mecânica autônoma. De tão cansado
que se sentia, ficou refletindo sobre se devia dormir. As idéias de Cliff
Allistair McLane mantinham-no preso como se fossem amarras de
aço. A intuição infalível do astronauta experimentado dizia-lhe que
em qualquer lugar se formava uma constelação de circunstâncias
capaz de transformar-se num perigo seríssimo para Terra. Dispunha de
miríades de pecinhas do mosaico: Springhill, kapa 19 plus, as teorias
extraídas das vivências e...
Teve de fazer um esforço para lembrar-se. Levantou, arrastou-se
até a cozinha robotizada, pegou uma garrafa em estilo antigo e encheu
um enorme copo de vinho tinto, e finalmente voltou à sala. Conseguiu
comprimir algumas teclas que fizeram correr um fita. Era a peça de
Thomas Peter: "A Nave Espacial que não Mais Voltou." Pegou um
jogo de ferramentas, tirou do pulso o relógio de piloto, muito pesado e
quase precioso. Por alguns segundos, fitou o mostrador. Lembrou-se
do que pretendia fazer. Enfiou uma lâmina entre as duas metades da
caixa e abriu-a. O mecanismo do relógio era formado por um conjunto
de rodas, um cristal de quartzo e minúsculas peças móveis. Cliff
arregalou os olhos quando viu o conteúdo confuso da caixinha
metálica.
— Isso não pode ser verdade! — murmurou perplexo. Dirigiu a
luz de uma lâmpada muito forte sobre o relógio e colocou-o sobre a
mesa. Retirou da caixa de ferramentas uma lâmpada potente e pôs-se a
examinar o mecanismo. O relógio estava totalmente destruído. A
devastação ficara restrita às peças metálicas mais finas. As rodinhas,
os fios muito finos e as molas, cuja espessura não era maior que a de
uma folha de papel, se haviam transformado em pó. Apenas as partes
mais grossas não haviam sido afetadas.
— Até parece que estou ficando louco! — fungou Cliff.
Moveu nervosamente a lupa e examinou a ruína tecnológica. A
impressão de que estivera com esse relógio numa zona de destruição
invisível e incontrolável impôs-se ao seu espírito com toda força.
Onde teria sido?
O relógio parou... Onde foi mesmo? O relógio parou no gabinete
de Boolen.
Era Sahagoon! No gabinete de Boolen havia alguma coisa que
atacava o metal, transformando-o num pó molecular. Se tivesse
permanecido mais tempo no lugar, a caixa do relógio, os eixos e os
rolamentos mais volumosos também teriam sido atacados. Havia por
ali alguma coisa que destruía o metal. Outra associação surgia em sua
mente. O metal!
Alguma coisa, que fosse capaz de destruir o metal de uma rodinha
minúscula de relógio, também poderia decompor peças do mesmo
material, talvez mais fortes em seus componentes moleculares, e
fragmentá-lo em minúsculos cristais. Qualquer metal. Até mesmo os
suportes das rampas de decolagem, as barras de ferro embutidas no
concreto, o envoltório das naves espaciais. Poderia realizar qualquer
tipo de destruição que espalhasse a morte entre os homens. E o perigo
poderia ser encontrado principalmente em Sahagoon.
No cérebro de Cliff Allistair McLane começaram a desenhar-se as
conseqüências mais tresloucadas. A força desconhecida seria capaz de
destruir Terra e tudo quanto representasse sua civilização. Poderia, por
exemplo... As idéias de Cliff, atrapalhadas pelo cansaço, pelo vinho e
pela música infernal de Thomas Peter, desmoronaram. Cliff
adormeceu em meio ao ritmo alucinante. Quando despertou percebeu
que tudo aquilo não passava de um pesadelo. O zumbido do videofone
o despertara. Levantou-se devagar, ainda tonto de sono.
6

CLIFF levantou o pulso para olhar o relógio, porém percebeu que


não o portava. Pela janela, viu que o dia estava raiando. Havia
dormido bastante. O zumbido do videofone continuava a cortar o
silêncio da sala.
— Nada de pressa — murmurou Cliff e dirigiu-se ao aparelho.
Comprimiu a tecla de resposta. No mesmo instante a tela
iluminou-se e o alto-falante começou a funcionar.
— Aqui fala McLane — resmungou Cliff, ainda sonolento.
— Aqui fala o gabinete de Villa. Farei a ligação.
Notando a aparência de Villa, Cliff não poderia afirmar se ele
havia dormido naquela noite ou não.
— Dentro de quanto tempo poderá decolar?
— Aproximadamente dentro de duas horas, coronel — disse,
falando devagar. — Mas terei de reunir os tripulantes, que se
encontrarão comigo apenas na hora do almoço, aqui no bangalô.
— Faça o possível para decolar o quanto antes. Os acontecimentos
estão se precipitando. Acabo de receber notícias de sua amiga. Pousou
em Sahagoon e estabeleceu contato com um grupo de resistência. Pede
que o senhor lhe dê apoio. Faça o possível de pousar sem que ninguém
o perceba. O pouso será realizado bem ao norte de Sahag City. É o
lugar em que pousou a Beagle, com Tamara Jagellovsk a bordo. Por lá
existem alguns depósitos abandonados, que servem de ponto de
encontro. Procure encontrar-se com os elementos da resistência
juntamente com Tamara, a fim de descobrir o que está acontecendo
em Sahagoon. Se houver combates, intervenha. Antes de mais nada,
preciso de informações. A telegrafista competente que o senhor tem
entre seus tripulantes terá de ficar ininterruptamente junto ao rádio. Se
houver necessidade de uma decisão mais importante, chame ou corra
para cá. Entendido?
— Entendido — disse Cliff.
A comunicação foi interrompida. Cliff respirou profundamente.
— Eles rogarão uma praga contra mim, mas ordens são ordens —
murmurou e passou a discar os números dos tripulantes. Acordou
Ingrid, a esposa de Hasso, explicou-lhe a necessidade de entrarem em
ação e fez com que ela lhe prometesse que encaminharia o marido até
a comporta da Base 104. Depois chamou Helga Legrelle.
Com Atan as coisas foram mais difíceis. Insultou o comandante, o
SSG e maldisse o dia em que resolvera ingressar na frota.
Só faltava De Monti.
— Aos poucos estamos nos transformando numa linha regular de
transportes espaciais — comentou De Monti. — Não tenha receio.
Serei pontual.
— Muito bem. Decolaremos dentro de cento e vinte minutos,
aproximadamente.
Cliff foi para o banheiro e procurou espantar o cansaço por meio
de uma série de duchas quentes e frias. Voltou, foi à cozinha e
escolheu um café bem reforçado; sentou à mesa. Com um ar
pensativo, contemplou os sinais de destruição existentes nas duas
metades da caixa do relógio. Sabia que esquecera alguma coisa. Havia
um significado secreto naquela poeira, isto é, nas peças do mecanismo
destroçado. Deixou a mesa por conta dos robôs, abriu uma gaveta e
tirou um velho relógio de pulso e finalmente mudou de roupa. Dali a
trinta minutos estava pronto para decolar. O táxi veio para levá-lo a
um dos elevadores.
Cliff apertou as mãos dos tripulantes.
— Agradeçam a Villa. Poderemos recuperar o sono quando
estivermos a bordo. Os planos de decolagem estão prontos, Mario?
Na qualidade de primeiro-oficial, Mario de Monti estava
autorizado em assinar por McLane.
— Tudo pronto. Podemos subir. A Orion está em posição de
decolagem.
As comportas abriram-se e os cinco tripulantes foram ao elevador
central, que já havia descido.
— A programação já foi realizada, Mario?
Mario fizera a programação para Dois/Norte 401, que colocaria a
nave no curso a ser seguido para chegar a Sahagoon.
— Programação em ordem, Cliff.
Num vôo vertiginoso, o disco desapareceu das telas das estações
de controle e aproximou-se da velocidade da luz. Cliff retificou a
regulagem do piloto automático, ligou todos os sistemas de alarma e
mandou que todos os tripulantes, com exceção de Hasso, fossem para
os camarotes. Até o momento, não havia nada a fazer.
Dali a algumas horas: Cliff e Hasso estavam sentados na cabine de
comando. Em torno deles só existia a vida mecânica dos instrumentos.
As telas estavam apagadas e mudas. Na tela central, formada por uma
placa redonda que se estendia diante da mesa de Cliff, só se viam as
faixas do hiperespaço. Eram multicores, inidentificáveis e confusas.
— Você é engenheiro — disse Cliff sem qualquer intróito. —
Existe algum meio de destruir metal?
— Um martelo, por exemplo — disse Hasso com um gesto
contrariado.
— Não é isso, mas... — Cliff informou a seu interlocutor sobre a
experiência que fizera com seu relógio. Hasso ouviu-o com a maior
atenção e disse:
— É perfeitamente possível existir alguma forma de energia que
possa ser dirigida contra a estrutura dos metais. Essa energia teria de
dissolver as energias intra-atômicas do metal. Provavelmente este
seria pulverizado num montão de minúsculos cristais.
Cliff lançou um olhar pensativo para seu relógio. Era um modelo
antigo, mas ainda podia ser usado sem o menor receio.
— Como poderia ser essa energia? — perguntou. — Acredito que
meu relógio tenha sido destruído no interior ou nas imediações do
gabinete de Boolen.
— Podem ser vibrações ultra-rápidas, ou então um raio, ou ainda
uma poeira que se gruda e dissolve a estrutura intra-atômica do metal.
Não sei, Cliff.
— Mais uma pergunta. Será que esse algo misterioso seria capaz
de destruir ou dissolver um objeto maior que um relógio?
— Naturalmente, Cliff.
Cliff deu uma pancada furiosa no braço de sua poltrona.
— Tudo isso são meras suposições. Acontece que por enquanto
não disponho de uma única prova da exatidão de minha teoria. Aliás,
Mario lhe contou onde arranjei a pulseira?
— Não — Hasso sacudiu a cabeça; parecia espantado. Cliff
contou-lhe a breve história de como uma moça de Sahagoon, chamada
Marion Stadyonnex, fizera o papel principal. Cliff tinha certeza de que
esse truque colocava mais um trunfo em sua mão, que poderia ser
usado quando a situação se tornasse dramática.
— Mais alguma pergunta, Cliff? — perguntou Hasso. — Desejo
retirar-me. Se precisar de mim, basta acordar-me.
— Que Charles C. Sahagoon esteja com você — murmurou Cliff.
Naquele momento, nem desconfiava de que dali a algumas horas
essas palavras irônicas adquiririam um sentido terrível.
A Orion VIII pousou em Sahagoon exatamente quarenta e cinco
horas depois da decolagem, sob a proteção da madrugada. Seguiu o
raio vetor da Beagle e pairou no ar ao lado da nave do SSG,
permanecendo dez metros acima de uma superfície arenosa revolta e
entrecortada, em meio a um vale escondido nas montanhas.
A escotilha da comporta abriu-se. Próximo do tubo do elevador,
alguém estava de pé junto à outra nave. A figura desprendeu-se das
sombras e dirigiu-se à nave que acabara de pousar. Cliff percebeu que
era Tamara. Dali a poucos segundos apertou-a nos braços.
— O que está acontecendo por aqui, minha filha? — perguntou
Cliff depois de alguns minutos.
— Muita coisa — cochichou Tamara. — Há trinta minutos
estabelecemos contato pelo rádio com um velho que usa o nome
Kaalon. Prometeu encontrar-se conosco.
Cliff ligou o rádio e perguntou:
— Quando e onde?
Tamara apoiou-se em seu braço.
— Daqui a trinta minutos, naqueles depósitos abandonados. Pede
que esperemos por ele.
— Está bem — disse Cliff um tanto nervoso. — Levarei Mario.
Levantou a mão.
— Mario? — indagou, surpresa.
Era praticamente impossível medir a energia reduzida do rádio de
pulso. Além disso a cidade de Sahag City ficava a dois mil
quilômetros dali.
— Traga dois holofotes potentes, um transmissor de pulso e uma
arma. E não se esqueça de trazer uma boa dose de espírito aventureiro.
— O que houve?
Cliff aguardou um segundo e procurou reconhecer os arredores em
meio à escuridão.
— Vamos encontrar-nos com um elemento da resistência.
— Irei imediatamente.
Cliff colocou o braço em torno dos ombros de Tamara e
perguntou:
— Vá contando devagarzinho. O que aconteceu por aqui? Por que
interromperam nosso sono tão merecido para mandar-nos
precipitadamente para cá? O que conseguiu descobrir?
— Um homem chamado Kaalon entrou em contato conosco. Disse
que nem face à sua consciência, nem face à interpretação correta da
doutrina sahagoonita, poderia conformar-se com a idéia de que, com
base num espírito missionário bastante equívoco, o planeta se
dispusesse a violar as leis que regem a vida e a morte. Propôs-se a
conduzir-nos a um lugar em que estaria a chave do problema. Pediu
que viéssemos buscá-lo aqui. Segundo disse, estava sendo observado.
— O que vem a ser esse aqui? — perguntou Mario, parado atrás
dos dois.
— Ali há um pavilhão. Foi construído há vários séculos e em seu
interior funcionou uma das primeiras fábricas do planeta. A fábrica foi
desmontada e o pavilhão já não é utilizado para nada. Kaalon disse
que dentro de vinte e cinco minutos poderíamos encontrá-lo por lá.
Cliff deu uma pancadinha no ombro de Mario.
— Vamos indo. Suponho que todos os instrumentos estejam
guarnecidos no interior da Beagle.
Tamara fez um gesto sombrio.
— Não tenham a menor dúvida — respondeu. — A distância até o
primeiro pavilhão é apenas de um quilômetro.
Deslocaram-se em direção ao sul pela vereda larga e arenosa.
Conforme explicou Tamara, este foi um dos pontos a partir do qual foi
realizada a exploração do planeta, há menos de dois milênios.
— Agora vamos ficar em silêncio — disse depois de algum tempo.
Viram à sua frente uma superfície arenosa retangular. Havia dois
grandes pavilhões sem telhado. As ervas e a vegetação rasteira
cresciam por entre as junções das placas de concreto que já haviam
sido brancas. Outro pavilhão, um pouco mais baixo, rodeado de muros
e cercas já caídas, encontrava-se bem perto dos três terranos.
— É ali? — cochichou o primeiro-oficial. Tamara limitou-se a
fazer um gesto afirmativo.
A única iluminação era a luz das estrelas. A antiga fábrica oferecia
um quadro fantasmagórico. A distância que os separava da porta do
primeiro pavilhão era de uns cem metros. Entre os escombros e os
terranos havia uma faixa de moitas, pequenas árvores e tufos de capim
alto. Cliff olhou para o relógio. Faltavam quinze minutos. Andaram
devagar e quase sem o menor ruído pela vegetação, até que apenas
uma faixa de concreto coberta de vegetação, de cerca de quarenta
metros de largura, os separava do pavilhão. Pararam.
Tamara cutucou Mario. De Monti voltou-lhe o rosto e, num gesto
indagador, levantou a pesada lâmpada que trazia na mão esquerda.
Tamara sacudiu a cabeça e apontou para o ouvido. Ouviram ruídos.
Eram passos. Parecia que alguém caminhava em meio às ruínas. O
barulho vinha da entrada do pavilhão. Cliff sentiu-se tentado a
iluminar o lugar com sua lanterna. Mas sabia que com isso poderia
colocar em risco toda a ação. Tamara pôs a mão em concha e
cochichou no ouvido dele:
— Kaalon conhece nossa freqüência. Talvez estabeleça contato
pelo rádio.
Cliff ligou o transmissor de pulso para a potência mínima e
encostou-o ao ouvido esquerdo. Realmente, escutou um estalido e
uma voz quase incompreensível.
— Aqui fala Kaalon. Estou chamando a Beagle.
Cliff cochichou:
— Estamos esperando o senhor bem defronte à entrada do
pavilhão. Estamos armados. O senhor virá?
— Estarei seguro com os senhores? Estou sendo seguido.
— O senhor estará seguro, mas ande depressa — disse Cliff.
As últimas palavras do velho foram abafadas por uma interferência
muito forte. Tratava-se de uma transmissão em potência extremamente
elevada, que durou cerca de dois segundos. Alguém emitira um sinal
na mesma freqüência, com força bastante elevada. Cliff deixou cair o
braço e procurou enxergar o interior do pavilhão. Viu um raio de luz
que parecia procurar alguma coisa e logo se apagou.
— Caramba! O que é isso? — fungou Mario.
Do lado do pavilhão, ouviu-se um forte rangido. Parecia que as
paredes estavam prestes a desmoronar. Um grito prolongado de pavor
soou em meio à escuridão; os passos tornaram-se mais rápidos e mais
fortes. Mario precipitou-se para a frente e ligou o holofote. Um feixe
de luz branca atravessou a área coberta de vegetação e perdeu-se no
interior do pavilhão. O rangido tornou-se mais forte e perigoso. As
pedras tombavam ruidosamente. O feixe de luz caiu sobre a figura de
um homem que, naquele momento, se encontrava aproximadamente
no centro do pavilhão. E, ao que parecia, estava correndo para salvar a
pele.
— Olhe, Cliff! — disse Tamara em tom exaltado.
Cliff segurou a arma numa das mãos, enquanto a outra segurava a
pesada lanterna. Dois feixes de luz cruzaram-se e iluminaram um
velho de estatura baixa e barba branca. O rangido transformou-se num
chiado, interrompido constantemente por estalos assustadores. A
parede dos fundos também tombou, caindo para dentro. Ouviu-se um
rugido. O homem, envolto por uma nuvem de pó, continuava a correr.
Finalmente a fachada do velho pavilhão inclinou-se e soterrou-o sob
os escombros. A luz dos holofotes foi absorvida pela poeira.
— É o fim — disse Mario tossindo.
— Alguém fez explodir o pavilhão — disse Tamara. — Kaalon
realmente foi observado e perseguido.
— Não ouvi nenhuma detonação — disse o primeiro-oficial e
virou-se. Parecia perplexo.
— Acontece que eu ouvi — disse Cliff, apagando o holofote. —
As últimas palavras desse homem, que pagou com a vida a intenção de
transmitir-nos certas informações foram abafadas por uma
interferência. As pessoas que se encontram atrás dos instrumentos da
Beagle poderão confirmar o fato.
Ficaram parados por mais algum tempo; mas por aqui não havia
nada que pudessem fazer.
— Não venha me dizer que mandaram o pavilhão pelos ares com
um simples impulso transmitido pelo rádio — disse Mario em tom
indignado. — Isso viria contra a qualquer tipo de explicação razoável.
Cliff lembrou-se do relógio e da palestra que tivera com Hasso.
— Espero que dentro em breve possa provar-lhe que é exatamente
isso.
Ligou o rádio e aproximou-o do queixo. A esta hora, qualquer
forma de disfarce seria um contra-senso.
— Hasso. Faça o favor de decolar. Aproxime-se devagar do lugar
em que nos encontramos e ative os raios de ancoragem. Procure
remover os destroços do pavilhão. Daqui poderei orientá-lo. Rápido,
por favor.
Tamara parou diante de Cliff.
— Pretende remover as ruínas do pavilhão?
Cliff confirmou com um gesto cansado. Iluminou os pés com a luz
do holofote e disse:
— É nossa única chance de encontrarmos uma prova. Ao que
suponho, acabamos de assistir ao funcionamento conjunto de um
radio-transmissor roubado e de um detonador acionado pelo rádio,
também roubado. Ambos provêm de Cumberland Mine.
— Talvez você tenha razão — disse Mario. — É bem possível que
encontremos aquilo que estamos procurando.
A Orion aproximou-se sem o menor ruído. Permaneceu acima da
nuvem de pó, ligou o aparelho que costumava ancorá-la aos satélites
artificiais ou às superfícies das luas e subiu alguns metros. No campo
energético surgiram barras de aço corroídas e as ruínas. O disco
deslocou-se cem metros para a direita e desfez a ancoragem. Com um
forte ruído, os destroços caíram ao solo; outra nuvem de pó subiu para
o ar.
— Quanto tempo demorará isso?
— Algumas horas — disse Cliff, olhando para Tamara, que
continuava de pé à sua frente. — Vou conversar com os especialistas
de sua equipe.
— Aqui fala Conroy, operador de rádio da Beagle — disse uma
pessoa da nave, respondendo ao seu chamado.
— Há poucos minutos o senhor constatou uma interferência na
faixa de ondas pela qual estávamos falando?
— Perfeitamente, coronel — disse o operador de rádio.
— Quanto tempo durou?
— Exatamente dois segundos. O que significa isso?
— Conseguiu estabelecer a localização do transmissor? —
perguntou Cliff em tom enérgico.
— Não. A interferência foi muito ligeira. Mas tenho certeza de que
a fonte das emissões fica neste planeta.
— Obrigado — disse Cliff e viu que a Orion estava removendo a
última camada de destroços. O vento, que se levantava ao amanhecer,
soprando através do vale, levou a nuvem de pó. — Era exatamente o
que eu queria ouvir; não esperava outra coisa.
Alguns homens saíram da nave do SSG e juntaram-se aos três
terranos.
— Daremos uma busca rigorosa no terreno onde se encontrava
esse pavilhão. Juntaremos tudo que conseguirmos encontrar.
Tamara apontou para o retângulo bem visível, em cujo centro se
encontrava o cadáver, esmagado e irreconhecível. Assim que a luz do
sol foi suficiente, puseram-se à procura. Foram dez pessoas ao todo.
Os nove homens e Tamara procuraram sistematicamente e com a
perícia de verdadeiros especialistas. Caminhavam entre o capim
amassado e rastejavam entre nuvens de pó, mas apenas encontraram
destroços e pedacinhos de aço que mais se pareciam com pedaços de
papelão poroso. Dali a uma hora, Cliff, que caminhava no centro da
fileira, levantou os olhos e viu o morto.
— Por enquanto não encontramos nada, chefe — disse Mario, que
se encontrava na extremidade da fileira.
— Vamos continuar — disse Cliff em voz alta. Olhou para o
relógio. — Que diabo! — gritou.
— O que houve? — com um salto, Tamara colocou-se a seu lado.
— Meu relógio — disse Cliff. — Parou de novo. É o segundo. O
outro mais caro está no meu bangalô, totalmente desmanchado, e
agora este também parou.
Deu alguns passos em direção ao cadáver. As vigas e pedras
haviam esmagado o homem, transformando-o numa massa
praticamente irreconhecível. Um dos braços estava estendido, e junto
ao braço havia alguma coisa que parecia não ter sido atingida pela
destruição. Parecia uma cassete aberta. Cliff ajoelhou-se e pegou-a.
Era de metal e estava muito suja mas, por mais estranho que
parecesse, não apresentava o menor arranhão ou amassadura. Cliff
logo se lembrou do metal que Marion Stadyonnex deixara sobre .a
mesa.
— Kapa 19 plus — disse perplexo.
— O quê? — Mario fitou a caixinha.
— Acho que já temos uma prova, Mario — disse Cliff com um
ligeiro sorriso.
— Essa caixinha idiota?
Um círculo formou-se em tomo do coronel McLane. Mario
percebeu o brilho orgulhoso nos olhos de Tamara que, segundo
parecia, ainda se impressionava com o desempenho mental de
McLane.
— Esta caixinha pode ser idiota, mas as pessoas que a fabricaram
podem ser tudo, menos isso. Tal qual a pulseira, esta cassete também é
feita de kapa 19 plus, o metal dos astronautas. Tem uma ligação com o
desmoronamento deste edifício.
McLane lançou um olhar triste para o relógio, enfiou a cassete
embaixo do braço e caminhou em direção à Orion VIII, que se
mantinha imóvel no ar, a uns cem metros de distancia.
— O que pretende fazer? — perguntou um dos tripulantes.
— Antes de mais nada, pretendo tomar banho. Depois enviarei
uma longa mensagem ao coronel Villa. Os acontecimentos estão
tomando um curso dramático e bastante dinâmico.
***
Mario, Helga, Tamara e Hasso, com Atan e Cliff ao centro,
estavam reunidos no camarote deste último. Era uma situação
semelhante àquela em que se encontravam da última vez que
trabalharam no patrulhamento espacial.
— Na qualidade de representante do SSG neste planeta, vejo-me
obrigada a insistir em que a verdade me seja revelada — disse
Tamara. — Do contrário eu o denunciarei junto a Villa.
Os risos colhidos por Tamara foram insignificantes. O perigo que
McLane desvendara era muito grave.
— Acredito que a esta hora todos já conheçam as propriedades de
kapa 19 plus. Conhecemos os objetos feitos de um metal que coloca
problemas de soluções indecifráveis diante de nossos cientistas.
— A pulseira e a cassete — disse Mario.
— Isso mesmo. Parece que os habitantes de Sahagoon fizeram
aquilo que o planeta Terra ainda não conseguiu: formar objetos com
este metal. Aqui está a prova.
Cliff levantou a cassete.
— Que saliência é essa? Parece um contato acionável pelo rádio
— disse Hasso, apontando para uma elevação redonda sobre a tampa
da cassete.
— É um dos detonadores controláveis pelo rádio que foram
furtados. Abre a tampa e por meio de uma explosão espalha o
conteúdo da cassete. Não sei como e de que é feito, mas tenho a
impressão de que se trata de uma substância em forma de pó ou areia.
Foi exatamente o que aconteceu aqui.
Helga Legrelle levantou a mão.
— Quer dizer que esse homem chamado Kaalon pretendia
entregar-nos esta caixinha como prova?!
— Isso mesmo. E alguém aguardou até que Kaalon se encontrasse
num ambiente destrutível para acionar a cápsula comandada pelo
rádio.
As pessoas que se achavam reunidas no camarote ficaram com os
rostos rígidos. Compreenderam o perigo que ameaçava todos. Cada
caixinha desse tipo poderia causar uma destruição incomensurável.
— Depois disso todas as vigas do velho pavilhão se esfacelaram, a
coesão dos elementos tornou-se cada vez mais fraca e tudo desabou
sobre a cabeça de Kaalon — concluiu Hasso.
— Foi isto mesmo — disse Cliff. — Ainda temos outra prova. O
relógio que atualmente trago no braço também parou. Se tivéssemos
permanecido lá por mais tempo, até mesmo nossos fechos magnéticos
se abririam. Poderíamos ficar numa situação bem desagradável.
— E agora? — perguntou Tamara.
— É simples. Você sobe e transmite uma mensagem destinada a
Villa. Evidentemente será uma mensagem codificada. Depois de
relatar tudo, pergunte o que devemos fazer. Não me sinto seguro.
Tenho a impressão de que por aqui poderemos buscar até cansar, e não
encontraremos coisa alguma.
— Está bem — disse Tamara. — Já vou. Hasso levantou-se depois
de Tamara ter saído e encostou-se à porta. Com uma expressão muito
séria passou os olhos pelas pessoas que se encontravam reunidas e
falou como se relutasse em dizer aquilo:
— Vocês podem imaginar o que acontecerá se os homens de
Sahagoon tiverem depositado mais quarenta e nove dessas cassetes
providas com fechos controláveis pelo rádio nos pontos nevrálgicos
do poderio terrano? — fez uma pausa. — Um estaleiro de naves
espaciais pode ser reduzido a escombros num espaço de poucos
segundos. Poderemos ter milhares de vítimas.
Cliff levantou-se e passou por Hasso. Precisava fazer alguma
coisa. Tinha de agir, senão enlouqueceria.
— Na 104 e nas demais bases terranas todas as ligas metálicas
serão destruídas. Já imaginaram o que acontecerá se as comportas
deixarem de funcionar? O mar penetrará na base e todos aqueles que
estiverem vivendo e trabalhando nas galerias subterrâneas morrerão
afogados. Groote Eylandt se transformaria numa ilha da morte.
Atan levantou-se e exclamou:
— Esses malucos acabarão conseguindo aquilo que milhares de
naves dos extraterranos não conseguiram!
Mario mordeu o dedo. Seus pensamentos recuaram a um ponto
situado num passado bem próximo. Fixaram-se no Cassino Starlight,
mais precisamente na moça reservada que usava o nome Marion.
— Esperarei por Marion — resmungou. — Mas esperarei de uma
forma que ela nem desconfia.
Saiu para transmitir suas suspeitas a Cliff. Encontrou-o na cabine
de comando, juntamente com Tamara. Naquele instante, Tamara,
virando a cabeça, retirou o fone de ouvido e voltou a guardá-lo na
concavidade do painel de instrumentos.
— O que diz Villa? — perguntou McLane.
— Diz que o Serviço de Segurança Galático não sabe o que fazer.
Pedem que decolemos imediatamente e retornemos a Terra. Neste
meio tempo, em todas as bases será iniciada a busca dessas cassetes
misteriosas.
— Está bem; vamos decolar — disse Cliff. — E os especialistas de
vocês?
Tamara deu de ombros.
— É como de costume. Receberam ordem para prender todo e
qualquer suspeito. Neste planeta, os suspeitos contam-se aos milhões.
— Mario — gritou Cliff. — Vamos tomar o rumo de Terra. Temos
de apressar-nos. Que Charles C. nos proteja. Mario, precisarei de você
para uma missão especial.
O primeiro-oficial programou a rota, enquanto a tripulação se
espalhava por seus lugares. Tamara voltou a recostar-se no suporte
inclinado que ligava os painéis ao teto; encontrava-se entre Cliff e
Helga.
— Dez... nove... oito... — enquanto Tamara falava com os
tripulantes da Beagle, o elevador desapareceu na parte inferior da
nave.
— Quatro... três... dois...
A Orion VIII decolou. Cliff estava sentado junto aos controles,
segurando a alavanca de pilotagem manual. Seus pensamentos
achavam-se confusos. Sabia que só o acaso poderia ajudá-los a evitar
a catástrofe final. Charles C. Sahagoon: a idéia de destruir a tecnologia
para eliminar o poder que a civilização exerce sobre o homem pode
ser fascinante, mas por outro lado conduz ao assassínio em massa. A
tecnologia envolve e protege seus criadores. Se a poeira mortífera
destruísse o aço, muitos homens teriam de morrer. A Orion VIII corria
vertiginosamente em direção a Terra.
7

ORION pousara há um minuto. Enquanto seis pessoas corriam


pelo pavimento da gigantesca base, em direção à comporta, os faróis
coloridos das paredes foram levantados. Cliff seguia ao lado de Mario
sobre o concreto especial.
— Sabe o que tem a fazer? — perguntou em voz baixa, para que
Tamara não o pudesse ouvir.
— Acho que sei mais ou menos, chefe. Se necessário, terei de usar
a arma.
— Faça o possível para não chamar a atenção.
Um sorriso vago passou pelo rosto de Mario.
— Você sabe perfeitamente que suas infrações às regras da
disciplina me divertem. Farei o possível.
— Está certo. Exatamente dentro de cinco horas estaremos aqui de
novo.
— É às dez da noite, não é?
Mario desapareceu. Sua tarefa estava perfeitamente definida, mas a
tripulação de Cliff mais uma vez se veria numa situação embaraçosa.
Cliff seguiu Mario com os olhos e respirou profundamente.
— Hasso; Helga e Atan — disse. — Vocês têm tempo de sobra
enquanto Tamara e eu procuramos pôr um pouco de ordem no Serviço
de Segurança Galático. Sabem o que pretendemos fazer?
— Sabemos exatamente.
Cliff despediu-se com um sinal e dobrou para a direita.
— Quando quiserem, poderão entrar em contato conosco no
gabinete de Villa — disse e colocou o braço em torno dos ombros de
Tamara.
Chegaram à ante-sala sem que ninguém os molestasse, mas em
toda parte viam os sinais da busca às cassetes.
— Precisamos falar com o coronel Villa — disse Cliff, dirigindo-
se ao funcionário do serviço de segurança.
— Vou ver se tem tempo. A situação está extremamente tensa.
Terão de esperar um pouco.
Cliff e Tamara sentaram.
— O que pretende fazer, Cliff? — perguntou a moça.
— Contarei quando eu mesmo enxergar mais claro. Existe uma
pequena possibilidade de eu deter o desastre.
— Bem que eu gostaria de conseguir sua autoconfiança ao menos
por cinco minutos — disse Tamara num tom que quase chegava a ser
de admiração.
O busto de Villa surgiu na tela do videofone que ligava o gabinete
à ante-sala. O chefe do SSG parecia exausto e inseguro.
— Peça a McLane e Miss Jagellovsk que entrem — disse
laconicamente.
— Obrigada — disse Tamara ao colega. Caminharam até junto à
escrivaninha de Villa.
— As novidades que o senhor me traz devem ser muito
interessantes — observou Villa. — Pode falar, coronel.
Cliff esperou até que Tamara tomasse lugar e disse:
— Vou expor minha teoria, coronel. Preste atenção; disponho de
provas para tudo que vou dizer.
"Durante dois milênios a doutrina de Charles C Sahagoon não
sofreu qualquer modificação. Desde o dia da deportação, os sahagoons
só pensam em livrar Terra da ditadura da tecnologia e transformar-nos
em seres felizes. Para isso teremos de regredir à Idade da Pedra. E
agora os sahagoons, que se sentem apoiados no seu desígnio por uma
série de tratados comerciais bastante desfavoráveis celebrados com
Terra, encontraram a possibilidade de transformar em realidade as
palavras de seu antigo chefe. Usaram o metal kapa 19 plus para
construir certa quantidade de recipientes em forma de cassete,
providos com fechaduras controladas pelo rádio que foram furtadas a
Terra."
Quando Cliff tirou da mala de bordo o objeto que havia encontrado
e o colocou sobre a escrivaninha, Villa saltou da poltrona. Aquele
objeto de tampa aberta, fabricado por um aço brilhante e vermelho,
mesmo agora ainda apresentava um aspecto ameaçador.
— Este é o tal do aço? — perguntou Villa em tom deprimido.
— Encontramo-lo nas circunstâncias que já foram relatadas por
Tamara. Preste atenção. Nesta cassete há alguma coisa que é capaz de
destruir metal. Ainda não sei se destrói todo e qualquer metal ou
apenas determinadas espécies. Posso dizer que o conteúdo da cassete
tem o poder extraordinário de destruir relógios ou as vigas de
depósitos, dissolvendo sua estrutura atômica. Sabe lá o mal que
podem causar cinqüenta cassetes colocadas em pontos nevrálgicos e
acionadas por meio do hiper-rádio?
Villa permaneceu em silêncio; parecia consternado.
— Sei — disse depois de algum tempo com a voz desanimada. —
Posso imaginar. Meus comandos estão revistando cada centímetro
cúbico desta base.
— Já encontraram alguma coisa? — perguntou Tamara.
— Não. É uma coisa terrível. Não sabemos como poderemos
suster Sahagoon, estamos com as mãos amarradas!
Cliff recostou-se fortemente na poltrona, para disfarçar o
nervosismo.
— Alguém deve ter escondido uma ou mais cassetes no planeta
Terra. E também em outros planetas, que provavelmente são
importantes para a manutenção de nossa área de influência. Podem ser
abertas a qualquer instante. De uma hora para outra o conteúdo dessas
cassetes derrubará enormes construções. Eis a situação.
Villa contemplou as luzes que tremeluziam no interior da projeção
da esfera espacial. Era lá, na calota norte do segundo setor, que se
situava o perigo para Terra.
— Eis a situação — repetiu o coronel Villa. — E é uma situação
infernal, ainda mais que não podemos localizar o objetivo. Não
sabemos o que fazer. Acha que o impulso será transmitido de
Sahagoon?
Cliff refletiu.
— Os sahagoons tiveram dois mil anos para preparar-se. E
possível que o transmissor de hiper-rádio tenha sido instalado em
qualquer ponto situado entre o planeta deles e Terra. Quanto a mim,
porém, sinto-me inclinado a supor que o transmissor se encontra em
Sahagoon.
Villa comprimiu um botão largo do videofone.
— Aqui fala a Divisão Técnica — disse uma voz.
— O senhor dispõe de uma nave, ou pode arranjar uma num tempo
curtíssimo?
— Naturalmente, coronel Villa.
— Pois pegue os instrumentos de que precisa e uma boa tripulação
e dirija-se a Sahagoon. Coloque-se em órbita e providencie para que
qualquer impulso de hiper-rádio transmitido desse planeta seja
distorcido a ponto de tornar-se irreconhecível. Acha que conseguirá?
O dono da voz, que era irreconhecível para Cliff e Tamara, ficou
calado por alguns segundos; provavelmente estaria refletindo.
— Não posso prometer que dará certo, coronel — disse depois de
algum tempo. — Mas garanto que dentro de vinte e quatro horas
estaremos acima de Sahagoon.
— Está certo. Parta já.
"Foi só o que pudemos fazer — explicou Villa como quem pede
desculpas. — Há mais alguma coisa que eu deva saber?"
— Há — disse Cliff. — É o seguinte.
Deixarei Tamara por aqui e dentro de seis horas decolarei em
direção a Sahagoon. Já tivemos sorte uma vez. Talvez a lei estatística
das séries seja correta, fazendo com que por coincidência consigamos
outra informação importante.
Villa levantou-se e apertou a mão de Cliff.
— Muito obrigado pelo presente interessante — disse, apontando
para a cassete que brilhava perigosamente sobre o material preto da
tampa da escrivaninha.
— Não há por quê — respondeu Cliff. — Sou especialista nestas
coisas.
Deu um beijo no rosto de Tamara e saiu do escritório. Estava com
pressa. Marcara encontro com De Monti em seu bangalô. Aquilo que
tinham de fazer por lá era mais importante que qualquer outra coisa.
Era tão importante que não falara a esse respeito com Villa.
Mario de Monti, primeiro-oficial da nave Orion VIII e, com
exceção de Hasso Sigbjörnson, o amigo mais decidido de Cliff
McLane, sabia que tinha diante de si uma tarefa difícil e cheia de
responsabilidades. Dependeria dos acontecimentos dos próximos
minutos se partes importantes de Terra seriam destruídas ou não.
Sabia que isso o tornava inseguro. Por outro lado, reconheceu que essa
idéia justificava a atuação mais implacável. Sua ação teria de ser
rápida e fulminante. Ligou o rádio de pulso para a potência máxima,
tanto a minúscula comunicação audiovisual como o versátil radio-
transmissor. Conforme fora combinado, o aparelho de Cliff também
entraria em funcionamento dentro de poucos minutos. Destravou a
HM-4 e voltou a enfiá-la no bolso, deixando de fora a coronha em
forma de anel.
— Chegamos — disse o motorista. Mario fez que sim. Um dos
homens, que conhecera ligeiramente em virtude dos contatos mantidos
na frota de transporte, trouxera-o para cá e o levaria.
— Mike Protopas — disse Mario em tom insistente — há quanto
tempo você me conhece?
O condutor do pesado turbocarro virou-se e fitou os olhos verdes
de Mario.
— Há cinco anos. Por que faz esta pergunta?
— Nestes cinco anos, além de algumas bebedeiras e certas
histórias com mulheres, fiz alguma coisa que pudesse lançar dúvida
sobre minha lealdade aos superiores?
— Não. Por enquanto você não assaltou a caixa de pensões do
Sindicato dos Astronautas. — Protopas estava sorrindo.
— OK — a seriedade de Mario surpreendeu seu interlocutor. —
Quer dizer que você não se admirará se daqui a pouco acontecerem
coisas bastante estranhas. Será para o bem da Galáxia.
— Estou curioso — respondeu Mike. — Pode descer.
Mario fez-lhe um sinal e abriu a porta do carro. Caminhou
diretamente para a majestosa entrada e atravessou o hall. Entre os
tubos transparentes dos elevadores havia um balcão, através do qual se
via uma enorme instalação inteiramente robotizada.
"Ainda bem que entendo alguma coisa de calculadoras", pensou
Mario.
— Pergunta — disse, falando para dentro do microfone. — Qual é
o número do quarto do vizinho do lado direito de Miss Stadyonnex?
Algumas lampadazinhas acenderam-se e o robô-porteiro
respondeu:
— Três barra 167.
Perguntando não por Marion, mas por sua vizinha, enganou o
dispositivo automático. Mesmo assim, havia o perigo de que, em
virtude de uma programação bem elaborada, a moça fosse prevenida.
Porém acreditava que avaliara corretamente a capacidade da máquina.
O elevador desceu e parou. Duas lâminas de vidro abriram-se para os
lados.
— Três — disse Mario.
Vinte minutos mais em cima, desceu. Parou diante de um
microfone e de uma tela e perguntou:
— Cento e sessenta e sete?
Uma seta iluminou-se e apontou para a direita. Mario caminhou
depressa pelo corredor revestido por grosso tapete, examinou os
números dos quartos e fez votos de que o de Marion fosse o de
número 166.
"Não se precipite! Conserve o sangue-frio, De Monti!", pensou e
apertou o botão da porta. Um alto-falante oculto emitiu um clique. A
voz de Marion perguntou:
— Quem é?
— Um visitante de Sahag City — disse Mario em tom seco. —
Quero falar com você, irmã.
A porta abriu-se. Mario colocou a mão sobre a arma e caminhou
para dentro do quarto. Marion estava de pé diante de uma escrivaninha
coberta de papéis, livros e fotografias. A cadeira fora empurrada para
trás e encontrava-se no meio do quarto.
— De Sahag City? Não. O senhor é o tal do astronauta —
principiou a moça.
Mario permaneceu calado e continuou a caminhar quarto adentro,
colocando-se bem à frente de Marion.
— Irmã — disse em voz baixa. — O terno de calças compridas
que você está usando é lindo, embora não seja moderno. É a roupa
indicada para sair comigo.
— Não sairei coisa alguma, seu atrevido... — disse Marion em tom
indignado.
Mario fitou-a atentamente e viu o primeiro sinal de medo em seus
olhos. Foi tirando a arma e apontou a agulha do projetor de radiações
sobre a moça.
— Tenho certeza de que irá comigo, irmã — disse. — A senhora
sabe tão bem quanto eu que Terra se encontra em perigo. Essa
situação justifica sua morte, caso esta venha a tornar-se necessária. Os
astronautas são homens muito duros; a senhora já deve saber disso.
Marion caminhou lentamente em direção à escrivaninha. Mario
virou-se instantaneamente e colocou-se entre a moça e a peça de
móvel. Tinha certeza de que começava a ter medo. Refletira
detidamente sobre cada fase do empreendimento e disse:
— O assassínio em massa ê um crime muito feio, Marion.
Obrigando-a a vir comigo, apenas me adianto ao Serviço de
Segurança Galático. Seus agentes chegarão dentro de poucos minutos,
e então já não estaremos aqui. Um interrogatório realizado nas salas
de trabalho do coronel Henryk Villa constitui um dos fenômenos mais
marcantes na vida de uma pessoa. Nós apenas lhe fazemos um pedido.
Apenas formulamos uma exigência: venha comigo neste instante. A
trama de Sahagoon foi descoberta. Boolen contou tudo.
Um brilho furioso surgiu nos olhos de Marion.
— Boolen e eu somos apenas rodas pequeninas na engrenagem —
disse. Enquanto falava, deu-se conta de que acabara de cair na
armadilha. Ficou pálida que nem cera.
— Vamos embora — falou Mario. — Se tentar fugir, eu a matarei.
Agirei implacavelmente, seguindo os padrões de Charles C.
— Aonde vamos?
Um sorriso frio surgiu no rosto de Mario.
— Iremos a um bangalô lindíssimo que fica nesta ilha. Vamos
logo!
Passou os olhos pela escrivaninha, pegou uma bolsa recheada e
entregou-a à moça, depois de certificar-se de que na mesma não havia
nenhuma arma.
— Preste atenção — frisou em tom enérgico. — Vamos atravessar
o hall e caminharemos em direção ao carro preto que está esperando à
porta do hotel. O resto será simples. Qualquer movimento suspeito,
atiro. Geralmente costumo acertar.
Mario teve sorte. Não se encontraram com ninguém, e Marion não
tentou fugir ou comunicar-se com alguém. Mario abriu a porta,
empurrou a moça para dentro do carro e disse a Protopas:
— Você já sabe aonde iremos.
— Naturalmente.
O pesado carro chiou enquanto se deslocava para a ilha, tomando a
direção do litoral. Mario levantou o rádio e fitou cuidadosamente as
mãos da moça:
— Tudo em ordem, chefe.
Dali a alguns minutos o carro deu a volta e afastou-se. Atrás de
Mario de Monti e da moça de Sahagoon se abriu a porta do bangalô de
Cliff.
Cliff e Mario achavam-se de pé diante da moça, que agora estava
encolhida numa pesada poltrona. Neste momento, uma hora depois da
chegada, após uma conversação exaltada regada com vários copos de
bebidas de elevado teor alcoólico, Marion sentia medo. Não temia os
dois homens, mas as conseqüências de sua própria atuação.
— A senhora tem duas alternativas, Marion — disse Cliff. — Pode
contar tudo, ou então nós a levaremos à presença de Villa. Este
extrairá da senhora qualquer grãozinho de saber que haja em sua
mente; acontece que os métodos do SSG não são nada gentis. O que
está em jogo não é dinheiro, mas a própria existência de Terra. A
senhora escondeu as cassetes por aqui?
Marion baixou a cabeça.
— Escondi.
Cliff respirava pesadamente.
— Escondeu? Explique-se melhor. Foi uma, mais de uma, muitas?
— Foram duas cassetes — Marion falava quase num cochicho.
Mario interveio no interrogatório. Continuava a brincar com o
cano estreito da arma de radiações.
— Quando serão detonadas?
A moça sacudiu os ombros e disse entre soluços:
— Não conheço a data exata... será em breve.
— Onde estão escondidas as duas cassetes?
— Só disponho das fotografias dos lugares.
— Mostre! — disse Mario e pegou a bolsa.
Dali a poucos segundos, a série de fotos extremamente nítidas
encontrava-se sobre a mesa da sala. Enquanto se dirigia ao seu
bangalô, Cliff comprara um relógio barato que agora trazia ao pulso.
Faltavam apenas duas horas e meia para a decolagem.
— Este é o corredor B, que é o principal — disse Cliff apontando
para uma área na planta. — Aqui fica a rampa; acima dela há uma
escotilha, e mais em cima as aberturas de ventilação. Ao lado há um
grupo de telas, onde são transmitidas as informações destinadas aos
funcionários da central de cálculo...
— Atrás da tela mais alta está uma das cassetes — disse Marion
em voz baixa. — É uma tela giratória. Eu a abri e voltei a fechá-la.
Mario confirmou com um gesto e disse em tom sarcástico:
— Os comandos de Villa procurariam em vão. Bem, temos uma
das cassetes. Onde está a outra?
A calculadora central. As gigantescas máquinas cibernéticas e o
indispensável sistema de comunicações, cujo alcance praticamente
chegava até os confins da esfera espacial — tudo isso viraria pó. As
gigantescas placas de concreto teriam enterrado as máquinas
destruídas sob seus destroços. Cliff estava examinando a segunda série
de fotografias.
— Vejo o acesso de máquinas e veículos especiais de transporte.
Trata-se da Divisão Energética, Mario?
De Monti examinou a fotografia.
— Isso mesmo. Atrás destes portões ficam os reatores e os
conjuntos de emergência, que fornecem a energia para todo o
complexo da base submarina.
As fotos mostravam primeiro os arredores mais longínquos, depois
os mais próximos, assinalando o objetivo. O ataque a Terra fora
calculado e preparado com elevada dose de previsão e minúcia.
— Aqui está a segunda cassete. Marion apontou uma fotografia
que mostrava em todas as cores e em traços nítidos as caixas de
fusíveis com o sistema extremamente complicado de chaves de
transferência. Este também era comandado por robô.
— A segunda cassete está pendurada num fio desativado.
— OK — disse Mario. — Levaremos Marion até a nave. Depois
iremos buscar as "caixas de bombons" e as enviaremos a Villa. Tenho
uma pergunta muito importante: Já esteve alguma vez em Terra?
O rosto de Marion estava pálido e seus lábios tremiam. Sabia até
que ponto havia sido comandada pelos homens de Sahagoon:
desempenhara o papel de cúmplice numa tentativa de assassinato
dirigida contra seus irmãos e irmãs.
— Não. Fui enviada para cá a fim de realizar negociações e
esconder as cassetes.
Cliff hesitou um pouco antes de perguntar em tom áspero:
— Além da senhora foram enviados a Terra outros agentes de
Sahagoon?
A moça deu de ombros.
— Não sei. Realmente não sei.
— O problema agora é nosso — resmungou Mario de Monti. —
Vamos andando. Daqui a cinco minutos Protopas virá buscar-nos.
O conhecido de Mario levou as pessoas aos elevadores. Não
demonstrou conhecer o coronel McLane. Cliff, Mario e Miss
Stadyonnex foram ao pavimento inferior do conjunto de galerias.
Mario levou-os para junto dos outros tripulantes, que se encontravam
na sala de prontidão, aguardando a hora da decolagem. Depois De
Monti saiu correndo. Passando pelas escadas e pelas fitas
transportadoras dos corredores, dirigiu-se à usina energética. Parou no
caminho, comprou uma bolsa de viagem e enervou-se porque o
vendedor demorou em trocar uma nota de valor elevado. Prosseguiu
na sua corrida.
À medida que penetrava na galeria, esta se tornava cada vez mais
deserta. Finalmente, dali a dez minutos, viu-se diante das instalações
da usina. Quantidades enormes de concreto haviam sido gastas por lá.
Juntamente com a rocha natural formavam um conjunto harmonioso
de paredes de apoio e tetos inclinados, perfazendo um prisma imenso
de superfícies cinzentas reticuladas. Uma rampa larga atravessava o
conjunto. Em todos os lugares viam-se os cabos coloridos que corriam
ao longo das paredes e desapareciam nas tendas das mesmas. Vez por
outra, eram interrompidos por quadros de chaves. Esses cabos
chegavam aos lugares mais recônditos das instalações gigantescas que
se estendiam ao redor da Base 104.
— É lá na frente — disse Mario e correu rampa acima. Parou
diante da escotilha de segurança. Era de plástico transparente e abriu-
se prontamente. — Tomara que ninguém me descubra, pois nesse caso
serei preso como sabotador.
Atingiu as instalações robotizadas, que se pareciam com uma
coluna avançando fora do conjunto. O pilar era dividido em retângulos
de tamanho variável. Destravou a chapa de cima, girou-a para o lado e
retirou a lâmpada que se encontrava numa concavidade junto à
abertura. Um raio de luz penetrou no interior da caixa. A cassete
estava pendurada num cabo amarelo, da grossura de um braço
humano. Era fria e mortífera, emitindo um brilho vermelho. Dois
adesivos mantinham-na presa ao cabo. Mario colocou-se na ponta dos
pés, puxou as extremidades da fita para trás. Os adesivos grudaram em
suas mãos, mas conseguiu agarrar a cassete. Atirou-a para dentro da
pasta, fechou a chapa com o complicadíssimo quadro parcial de
ligações preso à parte inferior e saiu correndo. A barreira de segurança
abriu-se e Mario colocou-se na fita transportadora que seguia em
sentido oposto. Praguejou porque as fitas lhe arrancavam os pêlos das
mãos, mas experimentava uma maravilhosa sensação de alívio.
— Até que enfim! — exclamou, parando diante do serviço de
encomendas expressas.
— O que posso fazer pelo senhor? — perguntou a moça.
Mario exibiu o sorriso que mantinha de reserva para ocasiões
como esta e disse:
— A senhora poderia dar-me um envelope e levar esta pasta ao
coronel Villa. Leve-a imediatamente e entregue-a ao coronel em
pessoa.
— Pois não!
Mario escreveu algumas linhas num bilhete, dobrou-o e viu as
extremidades do papel se fundirem. Colocou duas moedas sobre a
mesa e disse:
— Isto aqui tem de estar no quartel-general do serviço de
segurança exatamente dentro de uma hora, beleza.
— Terei o maior prazer em atender, tenente De Monti — disse a
moça.
Mario sabia que o presente de despedida que estava enviando ao
coronel Villa preencheria sua finalidade.
***
Cliff McLane também encontrou "sua" cassete e entregou-a a um
jovem cadete, depois de envolvê-la num saco de plástico. O saco
provinha de um supermercado. As linhas que Cliff dirigiu a Villa
diziam a mesma coisa que aquelas escritas por Mario. Depois disso
correu para a sala de prontidão. Mario já o esperava.
— Fizemos o que tínhamos de fazer — murmurou Cliff e
cumprimentou a tripulação. Tamara, a única ausente, estava no
gabinete de Villa.
— Preparei tudo — disse Mario. — A nave decolará dentro de
quatro minutos. Temos de ir para bordo.
Houve um atraso por causa de uma nave espacial que se
aproximava. McLane recorreu à sua arte de persuasão. Relatou em
cores vivas a importância da tarefa que tinha de cumprir. Conseguiu
que a nave fosse desviada para outra rota. Os campos de pressão que
encimavam o cilindro de aço da Base 104 abriram-se para a Orion
VIII. O disco saiu para o espaço e tomou o rumo de Sahagoon.
Sentada ao lado de Helga, Marion Stadyonnex refletia sobre os
acontecimentos dos últimos dias. Percebeu os lances da imensa ação
destrutiva e reconheceu que o motivo desta não consistia numa
inimizade insuperável, mas numa loucura pseudo-tecnológica.
"Ficarei admirado", pensou McLane, que acelerava a Orion ao
máximo, "se as coisas saírem tão bem como Mario e eu
imaginávamos".
Helga Legrelle interrompeu suas reflexões.
— Uma mensagem de rádio — disse. — Devo responder?
— De onde vem? — perguntou surpreso.
Helga parecia muito séria quando respondeu:
— Vem da Hydra II, comandada pelo general Van Dyke.
Teve a impressão de que isso não podia significar nada de bom. E
não estava enganado.
8

O CORONEL Villa tinha três cassetes brilhantes diante de si. Uma


delas estava vazia e as outras duas fechadas. A qualquer instante um
impulso de hiper-rádio poderia abrir as fechaduras, acionar o
detonador e espalhar o conteúdo destrutivo. À frente do chefe do SSG
estavam sentadas Tamara Jagellovsk e o general Lydia van Dyke,
chefe das esquadrilhas de unidades ligeiras da frota espacial. Olhavam
ora para Villa, ora para as cassetes. A tensão reinante no gabinete era
insuportável.
— Prestem atenção — disse Villa em voz baixa. — Vou ler o que
os rapazes escreveram.
Colocou a folha de papel diante do rosto e leu:
Quando o senhor tiver esta folha de papel nas mãos, estaremos a
caminho de Sahagoon. Sugerimos que as duas cassetes sejam levadas
para o espaço e atiradas em direção ao sol por meio de um torpedo.
Pedimos-lhe que continue a confiar em nós. Decolamos para
conseguir uma solução rápida. Pela tripulação da Orion VIII. De
Monti.
Tamara riu.
— É uma atitude típica da equipe de Cliff— disse.
— É uma atitude típica dentro do quadro das violações à disciplina
cometidas por McLane — respondeu Villa em tom áspero. — Essa
gente sempre encontra uma maneira de desafiar-nos. General, a Hydra
está pronta para decolar?
— Sempre está, coronel — disse Lydia em tom tranqüilo.
— Pois peço-lhe que decole o quanto antes e atire as duas cassetes
para o sol. Por lá dificilmente poderão fazer qualquer estrago. Após
isso, a senhora com Tamara Jagellovsk perseguirão McLane e tentarão
evitar que aconteça o pior. A atuação dele poderá desencadear uma
crise na área de nossas relações exteriores. Certo? Lydia levantou-se.
— Quanto à primeira parte não tenho nenhuma dúvida, coronel
Villa — disse. — Mas não compreendo por que devemos deter
McLane.
Villa não estava disposto a começar uma discussão.
— Ordem alfa! — disse em tom enfático. — Detenha-o e ordene-
lhe que se abstenha de qualquer tipo de intervenção. Convocarei o
comitê de defesa. Enquanto não proferir uma decisão, os atos de
McLane serão considerados puramente arbitrários. É só.
— Farei o que o senhor me ordena — prometeu Lydia van Dyke.
— Venha, tenente Jagellovsk.
Dali a quarenta minutos a Hydra corria vertiginosamente em
direção ao centro do sistema solar terrano, disparou o torpedo esguio e
iniciou a perseguição da Orion VIII. Lydia transmitiu uma mensagem
pelo rádio, a fim de prevenir McLane.
***
— Bem, agora que já sabemos que nosso procedimento é ilegal, o
resto será muito rápido. Graças ao auxílio da senhora, minha cara —
ironizou Cliff, dirigindo-se à moca de Sahagoon.
— O que quer dizer com isso?
— Sou conhecido como o homem mais indisciplinado da frota —
explicou McLane. — Evidentemente não tenho a intenção de cumprir
a proibição de prosseguir no vôo, expedida por Van Dyke. Onde fica a
estação que transmite os hiperimpulsos?
Marion deu de ombros. Parecia abatida. A moça estava exausta e
desesperada.
— Não sei. Apenas posso esclarecer que fica nas montanhas, ao
norte da cidade — disse.
— Ao norte de Sahag City? — indagou Atan Shubashi.
— Isso mesmo.
— Talvez seja a estação sem energia descoberta por nós —
murmurou Cliff.
Mario fez um gesto de dúvida.
— Qual é o papel que Boolen desempenha na operação de
destruição de Terra? — perguntou Cliff em tom penetrante.
— Boolen é apenas um membro. Ao menos é o que sei.
A Orion corria com toda a força das máquinas em direção ao
planeta Sahagoon.
— Em Sahagoon existem naves espaciais?
Atan estava de pé diante da moça, bastante nervoso e com os
punhos encostados aos quadris.
— Sim. Uma nave antiga. Há vários séculos pousou em Sahagoon,
onde foi capturada e equipada.
Mario pôs-se a rir.
— Então já sabemos quem roubou nossos depósitos. Foi essa velha
nave, que Boolen imprudentemente resolveu mencionar.
As peças do mosaico se juntavam cada vez mais. O quadro da
imensa conspiração surgia, e suas cores e contornos tornavam-se cada
vez mais nítidos.
— Como foi que surgiu o kapa 19 plus? — perguntou Helga.
— Por coincidência, há vários anos um dos nossos trabalhadores
descobriu o processo de fabricação em Springhill. Guardou o segredo
para si, pois sabia que na lua de um planeta que é nosso vizinho existe
uma substância que pelo simples toque decompõe qualquer tipo de
ferro em sua estrutura intra-atômica. Foi ainda por sorte que
descobrimos que esse pó cinzento pode ser transportado em
recipientes de kapa 19 plus. O metal dos astronautas, que apesar de
todos os esforços Terra ainda não conseguiu produzir, é imune aos
efeitos do pó mortífero. O resto os senhores já sabem. Os furtos, o
hipertransmissor, todo o resto... Não sei mais nada. E sou uma
traidora.
Cliff disse num tom surpreendentemente suave:
— Não. Se não fosse a senhora, que por acaso perdeu a pulseira,
ninguém de nós teria percebido nada. E agora a senhora seria uma das
culpadas pela morte de inúmeros seres humanos.
Marion levantou-se de um salto, pôs a mão no pulso e gaguejou:
— Minha pulseira! Só hoje de manhã dei pela falta dela. Pensei
que a tivesse deixado no hotel.
— É engano seu — disse Cliff. — A senhora a deixou no cassino e
eu a encontrei. Onde arranjou esse enfeite?
Marion voltou a sentar e mergulhou a cabeça entre as mãos.
— Foi Armin Boolen quem me deu por causa da tarefa que tinha
de cumprir em Terra. Segundo disse, muita coisa dependeria desta.
— Foi o que disse. E realmente muita coisa depende disso.
O comentário de Cliff quase chegava a ser cínico.
Olhou para o relógio.
— Ficarei aqui — disse. — Vocês irão para os camarotes. Nossa
missão em Sahagoon exige que a mente esteja bem descansada.
Andem logo. Marion, a senhora pode ocupar o camarote de reserva.
Dali a alguns minutos, estava sentado na postura habitual diante
dos controles. Uma idéia terrível ocorreu-lhe. Pensou, indagando-se:
"Será que um segundo agente escondeu outras cassetes em Terra?"
***
Sahagoon: achavam-se a cem mil quilômetros do planeta. A Orion
VIII estava com a tripulação completa, e os tripulantes encontravam-
se nos seus assentos, com os cintos atados. Todos os instrumentos
haviam sido ligados e um campo energético quase transparente, que
tremeluzia numa tonalidade verde, envolvia o disco prateado. As
agulhas de arremesso que saíam do corpo da nave apresentavam um
aspecto ameaçador.
— Aproximamo-nos do planeta de Sahagoon. A nave se encontra
na face oposta ao sol. Há poucos minutos captamos sinais que, sem a
menor dúvida, se destinavam a uma nave espacial. Uma vez que
segundo o artigo sete, letra C do Tratado de Controle, Sahagoon não
pode possuir nenhuma nave, este fato constitui motivo bastante para
realizar uma averiguação.
— Mensagem recebida — disse Helga.
— Estou curioso para ver este calhambeque nas telas —
resmungou o pequeno astronavegador.
— Você realmente acredita que se atreverão a esboçar qualquer
gesto de defesa contra uma das naves mais modernas da frota? —
perguntou Mario, que se encontrava diante do dispositivo de
alimentação do computador de bordo.
— Eles são loucos, tentam até detonar cinqüenta cassetes! Você
acredita que no presente caso saberão raciocinar por linhas normais?
— retrucou Cliff em tom agressivo.
— É claro que mais uma vez você está com a razão — admitiu
Mario.
A nave reduziu a velocidade. As mãos de Cliff descansavam sobre
as alavancas de pilotagem manual. Deslocando-se pela sombra
projetada pelo planeta, aproximava-se de sua superfície. Pretendia
chegar o quanto antes àquela estação de rádio secreta onde alguém
havia atirado contra ele e Mario.
— Há um eco de radar — disse Atan em tom aflito.
Numa pequena tela que se encontrava a seu lado surgiu uma
imagem. Diante da superfície escura do planeta gigantesco e
encurvado movia-se um ponto minúsculo. Atrás dele, viam-se as
chamas expelidas pelos bocais de propulsão.
— São propulsores químicos! — exclamou Cliff. — Essa gente
capturou uma nave que já deveria estar no museu. Essa coisa é uma
preciosidade maior que o kapa 19 plus.
Com um enorme salto a Orion aproximou-se da nave
desconhecida.
— Ligue a ampliação, Atan — pediu Cliff.
Uma nova imagem sobrepôs-se à primeira.
— Gente!
O comentário feito por Atan dizia mais que vários livros.
A nave realmente era muito velha. Tratava-se de uma nave-
transporte, que para acelerar até um oitavo da velocidade da luz ainda
dependia de propulsores químicos adicionais. Três gigantescas esferas
estavam presas entre uma confusão de suportes. Os elementos de
propulsão haviam sido colocados na face externa. O cano do pesado
lança-foguetes ajustava-se para a posição da Orion. Mario olhou por
cima do ombro de Cliff.
— Já sei como é um suicida — comentou em tom de desprezo. —
Talvez devesse admirar a coragem dessa gente, que se dispôs a entrar
num "artefato" desses.
— Você deve ficar calado, pois preciso de um contato pelo rádio
— disse Cliff em tom enfático.
A moça, que contemplava a nave como se estivesse fascinada pela
mesma, encontrava-se ao lado de Mario.
— O contato pelo rádio foi estabelecido. Receberão nossa
mensagem pela freqüência da frota — disse Helga.
Cliff soltou uma das alavancas de pilotagem e dobrou o microfone
até colocá-lo junto a sua boca. Depois falou em voz alta:
— Aqui fala a nave espacial Orion VIII, comandada por McLane.
Peço-lhes encarecidamente que mudem de rumo e não tentem
qualquer ataque. O que pretendem fazer equivale a um suicídio.
A resposta da outra nave demorou um pouco.
— Lutaremos até o último foguete — disse. — Odiamos os
terranos e seus modos arrogantes.
Cliff riu. Sacudiu a cabeça e disse:
— Se não fizer meia-volta dentro de alguns segundos, nós os
reduziremos à imobilidade e deixaremos que morram de fome em
órbita. Último aviso.
As duas naves ainda se encontravam a mil quilômetros de
distância. E a Orion aproximava-se vertiginosamente da outra nave...
— Não se aproxime do planeta, senão atiraremos — disse o
desconhecido.
— Muito bem — respondeu Cliff. — Se é isso que querem.
Fez um sinal para Mario.
— Vá à cabine de arremesso. Faça boa pontaria. Chegarei bem
perto e farei uma curva em ângulo reto. Destrua os propulsores de
popa. Entendido?
Mario desapareceu na parte inferior da nave.
— Por favor, comandante, não faça mal a essa gente — pediu a
moça. Cliff virou-se e fitou Marion Stadyonnex com uma expressão
de espanto.
— A senhora até que tem senso de humor — disse com certa
admiração na voz. — Sahagoon deveria ter pensado nisso mais cedo.
Aguardou que Mario o avisasse de que tinha o alvo na mira.
Depois fez um sinal para Hasso, que observava cuidadosamente os
movimentos de Mario na tela.
— Vamos. Primeira aproximação. Será que você consegue,
gorducho? — perguntou.
Mario apenas respondeu com um resmungo de desprezo. Os
procedimentos que se seguiram não exigiram uma única palavra. Os
tripulantes estavam perfeitamente sintonizados.
— Mario — disse Cliff em voz baixa. — Mais um segundo. Fogo!
Mario comprimiu as teclas. De uma das agulhas de arremesso saiu
uma torrente de energia pura, destruidora, que atingiu a popa da outra
nave. As torres dos projetores, os tanques e os bocais, juntamente com
os tubos de alimentação, foram esfacelados. Os destroços giravam
lentos afastando-se da nave em queda livre. No mesmo instante, a
Orion VIII descreveu uma curva fechada para a direita. Os campos de
absorção de gravidade uivaram ligeiramente.
— Pronto — disse Cliff. — Vamos pousar. Já conhece os dados,
Atan?
— Naturalmente, Cliff.
McLane aproximou o microfone da boca:
— Tripulantes de Sahagoon. Acho que isso representa o fim
provisório da batalha espacial. Quando tivermos tempo, nós os
rebocaremos para baixo.
Não houve resposta.
— Pousaremos junto à floresta e logo realizaremos nossa
intervenção ou nosso ataque, conforme as circunstâncias — disse
Cliff.
A vantagem da Orion era de apenas cento e dez minutos. E Cliff
não poderia saber se naquele mesmo instante alguém estaria movendo
uma chave para expedir o impulso de hipercomunicação. A atmosfera
uivou em tomo do campo defensivo. Com a segurança fascinante de
astronavegador muito competente, Atan Shubashi encontrou a rota
correta. A nave prateada sobrevoou a cidade. Seria inútil procurar
disfarçar sua chegada ou o pouso. Algum instrumento de observação
havia constatado a presença da Orion. E foi este o motivo da
decolagem daquela velha nave.
A Orion subiu; a cordilheira surgiu na região norte do planeta. As
encostas, os grupos de colinas dos contrafortes. As máquinas uivaram.
À altura de um quilômetro, Cliff conseguiu imobilizar a nave.
Na tela central de visão surgiu a encosta com seus monólitos, a
floresta e a antena. Estavam no fim da tarde. Mais uma vez, o arranjo
de barras de aço com os espessos elementos de ligação brilhava ao sol.
— Quer que derrube a antena? — perguntou Mario em tom
agressivo.
— Ainda não. Vamos agir metodicamente. Hasso! Faça o favor de
manter a nave parada e cuide de Marion. Helga, procure entrar em
contato com as duas naves do SSG. Precisaremos de auxílio. Se
houver algum imprevisto, você intervirá daqui mesmo, Hasso.
O engenheiro de cabelos brancos confirmou com um gesto.
— Dentro de alguns segundos estarei aí em cima, junto de você.
— Mario, Atan e eu sairemos. Levem os rádios de pulso e as
armas com munição sobressalente.
Enquanto o elevador que trazia Hasso da sala de máquinas ainda
subia, os homens comunicaram-se por meio de olhares. Depois disso,
saíram da cabine de comando, caminharam pelo corredor encurvado e
entraram no elevador central. A tromba metálica baixou e tocou o
solo. A escotilha da comporta abriu-se com um chiado. Os homens
foram saindo um a um, aos saltos.
— Não andem juntos! — gritou Cliff.
Correram em direção ao bosque, mantendo certa distância entre si.
Chegaram às primeiras árvores sem que ninguém procurasse detê-los e
esconderam-se atrás dos troncos grossos e lisos. Da clareira veio um
zumbido estranho.
— A usina energética está funcionando! — cochichou Atan.
— Vamos tomá-la de assalto. Cuidado! Correram em ziguezague,
guardando distância superior a dez metros, e passando entre as árvores
e os arbustos. Aproximaram-se dos iglus verdes. Quando se
encontravam a dez metros das habitações as armas energéticas
começaram a cuspir fogo. Atan levantou o transmissor, disse
baixinho:
— Estou blefando — soltou um grito lancinante.
Deixou-se cair e rastejou para a esquerda, com a rapidez de uma
doninha. Acima de McLane, um raio de fogo esfacelou a madeira de
um tronco.
— Parem! — gritou alguém. — São terranos. Chamem Boolen.
Ninguém saberia dizer quantos eram os defensores, mas Cliff
percebeu que as armas energéticas eram pouco numerosas e
provavelmente não havia muita munição de reserva. Avançou
impetuosamente entre a vegetação densa e fez alguns disparos ao
acaso.
"Boolen! É ao menos um dos atores principais do drama", pensou
Cliff, saltando entre dois troncos.
Um homem calvo e barbudo, que fazia pontaria contra Mario,
virou-se rapidamente. Era tarde. Cliff tomou impulso e derrubou-o
com um golpe da quina da mão. Pegou a arma do homem, travou-a e
guardou-a em seu coldre. Por entre os troncos, viu que Atan avançava
que nem um felino e, com uma pancada, derrubava um sahagoon
armado. A seguir tirou-lhe a arma e continuou a avançar.
Dali a pouco os três encontraram-se em meio aos iglus, sobre a
placa de concreto livre de vegetação.
— Aonde vamos, Cliff?
— Vamos esconder-nos. Estão ouvindo?
Cliff apontou para cima. Ouviu-se nitidamente o motor de um
helicóptero. Vinha do sul, do lado em que ficava a cidade.
Provavelmente Boolen decolara juntamente com a nave espacial a fim
de salvar o que ainda poderia ser salvo, ou para destruir tudo.
— Vamos esconder-nos. Cada qual num iglu diferente. Desliguem
imediatamente toda a energia.
Espalharam-se. Cliff saltou para trás de um quadro de comando,
orientou-se apressadamente sobre o tipo da instalação e girou o
regulador de força para trás. O zumbido emitido pela instalação
tornou-se mais fraco e acabou cessando por completo. Naquele
momento, os rotores do helicóptero estavam parando.
A essa hora, Cliff já estava convencido de que esse transmissor, de
aparência tão inofensiva, era o centro de onde seria irradiado o
hiperimpulso. Provavelmente a data para a destruição da tecnologia já
havia sido escolhida. Isso certamente em virtude da pressão dos
acontecimentos desencadeados pelo próprio Cliff. Um homem
aproximou-se rapidamente, sem fazer muito ruído.
— Deixem que se aproxime; não atirem — cochichou para dentro
do rádio de pulso e abaixou-se.
A porta do iglu abriu-se violentamente. Uma sombra inclinou-se
sobre o quadro de comando e tornou a regular a pequena usina
energética para a potência máxima. O zumbido voltou a ser ouvido, e
ao lado de Cliff a fonte de emissão foi sacudida por fortes vibrações.
Cliff estava agachado, com a arma destravada apontada para cima.
Ouviu passos que se afastavam. Pensou:
"Será Boolen? Seja quem for, a pessoa está com muita pressa."
— Hasso para Cliff — foi o cochicho que ouviu. — Um
helicóptero pousou junto ao bosque. Em seu interior havia um único
homem. É calvo e barbudo que nem os sahagoons.
— Obrigado, já sei — respondeu Cliff, fitando a porta fechada do
lado de dentro.
Tomou uma decisão. Antes de mais nada voltou a colocar a chave
da usina na posição zero. A seguir, com um raio disparado por sua
arma cortou os cabos de alimentação. Depois estendeu a mão, pegou a
alavanca e abriu a porta de um golpe. No mesmo instante, saltou para
trás. Não aconteceu nada. Saiu cautelosamente para a placa de
concreto.
— Mario, Atan!
— Sim!
— Saiam.
Todos os iglus estavam fechados. De dois deles saíram os
membros da tripulação, avançando cautelosamente, com as armas à
sua frente. Pararam ao lado de Cliff.
Verificaram que, depois de ligar o suprimento de energia, Boolen
desaparecera no terceiro iglu. Conforme Cliff estava lembrado, era lá
que ficava o pequeno estúdio. Os três homens correram para aquela
direção. Cliff segurou a pesada maçaneta. A porta estava trancada.
— Isso não nos causará maiores problemas — disse McLane e
recuou três passos. Levantou a HM-4 e cortou um círculo no material
de que era feita a porta do iglu.
Com um pontapé arremessou para o interior do iglu a massa
fumegante em que se transformara o fecho.
— Vamos! — disse Cliff.
Enfiou a arma pelo buraco e disparou para o chão. Com um forte
puxão, Mario abriu a porta para o lado de fora. Cliff parou junto à
abertura e lançou um olhar cauteloso para o interior do recinto. Ao
que parecia, estava vazio.
— Que diabo! Será que esse sujeito se dissolveu no ar? —
perguntou Atan em tom furioso.
Entraram no estúdio. Não viram nada. Até parecia que Boolen
realmente se tinha dissolvido. Evidentemente havia uma explicação
menos misteriosa para o fenômeno. Antes de mais nada, por meio de
disparos de sua arma, Cliff cortou todos os cabos encontrados. Depois
pôs-se a refletir.
— As paredes são firmes. Não pode ter saído pelos fundos —
resmungou Mario sacudindo a mesa. — Deve haver uma abertura no
soalho... uma porta-alçapão.
Procuraram arrastar as instalações. Finalmente um quadro de
comando moveu-se.
— Venha, é aqui.
Mario tocou numa das chaves. O quadro girou levemente em torno
de seu próprio eixo, deixando livre um poço quadrado. Em seu
interior, via-se uma luz.
— Cuidado! — gritou Atan e saltou para o lado. Um raio subiu,
emitindo um forte rugido. Furou o teto e derreteu o material verde-
escuro, abrindo um buraco. Atan girou a arma e atirou para baixo. O
calor subiu pelo poço. Cliff agachou-se junto do fosso e olhou
cuidadosamente para baixo. Uma série de degraus em U levava para
seu interior. À frente deles estavam presas pequenas luminárias. O
fundo do poço estava vazio; apenas havia sido devastado pelo impacto
dos raios disparados pelas armas.
— Há alguém que seja muito corajoso? — perguntou Cliff e, sem
esperar pela resposta, desceu rapidamente. Depois de uns dez metros
de descida chegou ao fundo, são e salvo. Mario e Atan seguiram-no.
Também desceram rapidamente e com o maior cuidado. Cliff voltou-
se.
Um corredor de pouco menos de dois metros de altura e bem
iluminado avançava diretamente e depois de certo trecho dobrava num
ângulo de noventa graus. Cliff avançou em silêncio, pé ante pé. Seus
companheiros seguiram-no. O corredor avançava quinze metros em
linha reta.
— Talvez já seja tarde — cochichou Mario bastante abatido. Seu
rosto estava pálido e coberto de suor.
— Talvez seja, talvez não. Precisamos ter certeza.
Chegaram ao lugar em que o corredor se desviava num ângulo de
noventa graus. Sentiram um cheiro de terra e materiais de construção.
O corredor dobrou para a direita. Uma porta fechava o caminho. Os
três homens pararam um atrás do outro, pois o corredor não tinha mais
de setenta centímetros de largura.
— Temos de tentar — disse Cliff. Pegou a alavanca e empurrou a
pesada placa de metal. Esta rangeu ao abrir-se. Atrás dela viram uma
sala com cerca de trinta metros de diâmetro. Quando Cliff
compreendeu o significado daquilo que estava vendo, sua coragem
desceu ao nível zero. Ao menos vinte blocos energéticos estavam
reunidos ali, em pilhas de dois, três ou quatro. Na parede oposta do
recinto, mergulhado na luz amarela emitida por uma série de
luminárias redondas, havia um quadro de comando de fabricação
artesanal. Ao lado deste, encontrava-se o hipertransmissor roubado.
De vários dos cubos energéticos saíam cabos diretos que iam até uma
caixa distribuidora.
— Boolen! — gritou McLane, apontando para o quadro de
comando.
De trás de uma das pilhas de caixas, soou uma voz rouca de raiva.
— Jogue fora a arma, coronel, e não procure impedir-me no que
estou fazendo.
— O senhor está muito enganado — disse McLane em tom
tranqüilo. — Estou fazendo pontaria para o hipertransmissor. Basta
mover o dedo, e tudo estará no fim.
Fez um sinal para Mario, que se encontrava a suas costas. O
primeiro-oficial esgueirou-se como um felino para trás da pilha de
blocos energéticos que se encontrava mais próxima.
— Comigo acontece a mesma coisa — disse Boolen, soltando uma
risada ligeira e um pouco estridente. — Minha arma está apontada
para um dos blocos energéticos que seu planeta possui em tamanha
abundância. O senhor já imaginou o que acontecerá se uma dessas
celas liberar instantaneamente sua carga energética?
A detonação destruiria tudo. A Orion, que se encontrava vinte
metros acima deles, seria atirada numa altura de mil metros. As
montanhas tremeriam, pois os outros blocos energéticos explodiriam
juntamente com o primeiro. Cliff deixou cair a arma. Ouviu-se um
ruído metálico, e a cabeça de Boolen saiu de trás da caixa.
Encontrava-se a três metros do quadro de comando.
— O que pretende fazer, Boolen? — perguntou McLane em tom
tranqüilo e mostrou-lhe as mãos vazias. Boolen fungava.
— Quero que seu astronavegador também largue a arma —
ordenou. Shubashi deixou cair a HM-4.
Cliff empurrou ambas as armas com o pé, fazendo-as chegar mais
perto de Boolen. Nos olhos deste havia um brilho fanático.
— O senhor sabe muito bem o que pretendo fazer. Quero restaurar
a vida pura e natural nos planetas escravizados pela tecnologia de
Terra.
McLane riu na cara de Boolen.
— E ao mesmo tempo o senhor e seus concidadãos assassinariam
bilhões de seres inocentes, não é?
Boolen apontou a arma quase nova para McLane e Shubashi. Atan
cerrou o punho e disse em tom exaltado:
— E com isso o senhor coloca em perigo a vida de seus
concidadãos. A moça à qual o senhor deu aquele bracelete foi fuzilada
por ordem de Villa, segundo todas as normas de direito, antes que
tivesse tempo de esconder as cassetes. O senhor não poderá fazer mais
nada a Terra.
— O quê? Marion está morta? — perguntou Boolen boquiaberto.
— Está. Foi tudo muito rápido. Antes de morrer, soltou uma
maldição contra o senhor. Por isso sei tudo.
— O senhor ainda não sabe tudo, comandante — disse Boolen. —
Mais três cassetes foram contrabandeadas para Terra. Usamos
comandantes de naves cargueiras como o infeliz do McKirkcudbride.
Três cassetes!
Cliff esforçou-se para não olhar para seu interlocutor, a fim de não
se trair. Ouviu a respiração pesada do pequeno astronavegador e pôs a
mão na testa.
— Foi tudo em vão! — disse com a voz abafada. — Terra está
perdida. Já emitiu o...?
Deixou cair o braço, pôs a mão sobre o coração e fez o corpo
tombar para a frente. Boolen recuou para não ser derrubado e ficou ao
alcance de Mario. Este segurou Boolen com uma das mãos enquanto
com a outra empurrou a arma de radiações para cima. Um disparo
trovejou em direção ao teto e rompeu os cabos. Metade das lâmpadas
apagou-se. No mesmo instante, Atan saltou para a frente e golpeou.
Atingiu o queixo de Boolen. O corpo amoleceu nos braços de Mario.
Cliff rolou pelo chão, levantou-se imediatamente e correu em direção
ao quadro de comando. De início, arrancou o cabo com um puxão
violento. Depois soltou todos os outros contatos. Boolen foi
cuidadosamente amarrado por Atan e Mario.
— Olhem! — disse Cliff, apontando para a chave central. — Com
um movimento desta chave Boolen teria colocado a fita em
movimento. O texto gravado aqui, devidamente modulado e
condensado num trecho de dois segundos, faria voar pelos ares nada
menos de cinqüenta cassetes. Apenas alguns milímetros separaram
Terra e seus domínios da grande destruição.
Desligou todos os medidores e certificou-se de que todas as
ligações energéticas haviam sido cortadas. Depois aproximou-se do
homem amarrado.
— O senhor se encontrará com pessoas encantadoras — disse. —
Serão pessoas que terão uma boa dose de compreensão pelas suas
idéias. Encontrará amigos de verdade, e em grande quantidade.
Boolen abriu os olhos e fitou-o com uma expressão furiosa.
— Esses amigos estarão à sua espera na colônia penal de Mura.
Foi lá que passei a sexta aventura de minha vida.
Virou-se e saiu.
***
Encontravam-se, agora, reunidos na cabine de comando da Hydra
II, que pairava no ar ao lado da Orion VIII. Os homens das naves do
SSG se haviam espalhado pelo terreno a fim de recolher as pessoas
inconscientes, proteger as pistas e desmontar as máquinas e
instalações. Sahagoon já tivera sua chance de destruir Terra. E nunca
mais esse planeta teria outra chance.
— Foi pura sorte, caro McLane -- disse Lydia van Dyke, cheirando
o álcool que se encontrava em seu copo. — O senhor tem uma sorte
inacreditável. Mas desta vez quero chamar-me de McLane se o senhor
escapar sem castigo.
Cliff contemplou Lydia e Tamara.
— Só a sorte do homem capaz dura para sempre — disse em tom
tranqüilo. — Confesso que agi precipitadamente. Mas ninguém, nem
mesmo Villa, conseguirá provar que agi além das minhas atribuições.
Se não tivéssemos invadido a estação de rádio, três cassetes teriam
explodido na Base 104.
— Ainda tenho uma sensação esquisita só de pensar — disse
Tamara pausadamente.
Num gesto generoso, Mario de Monti colocou o braço em torno
dos ombros de Miss Stadyonnex que, segundo tudo indicava, sentia-se
satisfeita porque as coisas terminaram bem.
— Devemos muita coisa a esta moça que, cativada por nosso
charme, mostrou-se disposta a falar sem demora. Procurarei intervir a
seu favor. Quem sabe se Villa a mandará fuzilar com chocolate em
vez de armas de radiações!?
Tamara parou diante do quadro de comando.
— Que horas são, coronel? — perguntou sem a menor comoção.
Cliff olhou para o relógio. Tamara estava de pé. No rosto de Cliff
surgiu uma expressão de incredulidade, que se transformou em
perplexidade. Sentia-se consternado e deu de ombros.
— Dezenove e trinta — disse o general Van Dyke, depois de dar
uma olhada no cronômetro de bordo.
— Estou perguntando apenas por uma questão de precisão do meu
relatório — disse Tamara. — Coronel McLane, o senhor ficará detido
por insubordinação até que cheguemos a Terra. Villa decidirá sobre o
que será feito com o senhor.
Mario pôs o dedo na testa e derramou o resto do uísque goela
abaixo.
— Está completamente louca — disse. — Não se deve prender um
herói, mesmo que a gente esteja "apaixonada" por ele.
Mario e Cliff sacudiram a cabeça; pareciam perplexos.
— O fato é que voamos atrás de vocês para impedir uma ação
precipitada em Sahagoon — disse Tamara. — Não conseguimos. Por
isso só nos resta apreender a Orion, deter sua tripulação e deixar a
decisão por conta do SSG. O resultado positivo de sua intervenção não
altera a situação.
Cliff deu-se por vencido. Encontraria um meio de livrar-se da
situação. Mas no momento, isso não lhe interessava. Mario soltou uma
risadinha histérica.
— Venha comigo, Miss Stadyonnex — disse. — Vamos depositar
nossa confiança na doutrina de Charles C. Devemos fugir e continuar
neste planeta. Da minha parte, prefiro plantar aspargos e criar coelhos
a ser preso por causa deste tipo de atuação.
No momento em que Mario se levantou, Tamara colocou-se à
frente do elevador. Pôs a mão na arma.
— O senhor está muito enganado. O fato é que já estão presos.
Todos. Com exceção do general Van Dyke, naturalmente.
Lydia recostou-se, cruzou as pernas e pôs-se a estudar os rostos de
McLane e seus tripulantes. Chegou à conclusão de que o espetáculo
era digno de ser visto. Cliff era o único que parecia totalmente
indiferente.
Sentado, contemplava o terceiro relógio barato que havia
comprado, e que estava parado em seu pulso. Não tiquetaqueava, não
zumbia, os ponteiros não se moviam e quando tentou dar-lhe corda só
ouviu um ruído esquisito vindo do interior do mecanismo.
— Pelo amor de Febo! — cochichou com a voz rouca. — Quem
me dera que ainda fosse apenas um cadete!
Ninguém lhe deu atenção.
Embora com seu ato heróico os tripulantes da Orion tenham
eliminado o perigo que pairava sobre Terra, acabam presos. Porém,
essa detenção é contornada pelo coronel Cliff, que em O Planeta das
Ilusões vive outra estonteante aventura, quando o terror mental toma
conta de um planeta!...
**

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