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GUARULHOS
2008
FACULDADES INTEGRADAS DE CIÊNCIAS HUMANAS SAÚDE E
EDUCAÇÃO DE GUARULHOS
GUARULHOS
2008
ANDREWS CORREIA DE AMORIM
Aprovada em ___/___/___
BANCA EXAMINADORA
_________________________
(1° Examinador)
_________________________
(2° Examinador)
“(...) não acredito no refrão da decadência, da ausência de escritores,
da esterilidade do pensamento, do horizonte negro e tétrico. (...) Não
posso deixar de pensar em uma crítica que não procure criticar, mas
fazer existir uma obra, uma frase, uma idéia; ascenderia fogos,
olharia a grama crescer, escutaria o vento e imediatamente tomaria a
espuma do mar para a dispensar. Reproduziria, ao invés de juízos,
sinais de vida; invocá-los-ia, arrancá-los-ia do seu sono. Quem sabe
os inventaria? Tanto melhor, tanto melhor. A crítica sentenciosa faz-
me adormentar; gostaria de uma crítica feita com centelhas de
imaginação. Não seria soberana, nem vestida de vermelho. Traria
consigo os raios de possíveis tempestades” (Michel Foucault)
RESUMO
O presente trabalho analisa a emergência das chamadas “demandas por lei e ordem”
na sociedade brasileira a partir das problemáticas do crime, da violência e das políticas de
segurança após a consolidação democrática. Tal investigação procura compreender as
variadas formas que os direitos humanos foram violados, desrespeitados e suspendidos da
ordem jurídica na atual democracia. Nesse sentido, busca problematizar as práticas de
punição, os abusos de poder e autoridade por parte das instituições policiais e judiciárias e o
modo como a violência se relaciona com a razão de Estado e as micropolíticas do cotidiano.
Assim, a pesquisa pretende estudar as concepções sobre o corpo e a pena de morte no debate
público. Na segunda parte, faço um estudo em torno das políticas antidrogas no Brasil e o
estado de exceção permanente como uma técnica de governo aplicada pelo Estado brasileiro
em conjunto com as políticas e legislações internacionais para se promover as operações de
“guerra às drogas” através da manutenção das medidas emergenciais normalizadas como uma
questão de segurança interna e da ordem pública.
INTRODUÇÃO ..................................................................................................................................... 7
CAPÍTULO I
BRASILEIRA
BRASIL................................................................................................................................................ 11
RISCO .................................................................................................................................................. 39
CAPÍTULO II
DROGAS .............................................................................................................................................. 66
A presente pesquisa tem por objetivo problematizar as “demandas por lei e ordem” na
sociedade brasileira contemporânea diante da prática discursiva sobre o crescimento da
“violência urbana” durante as décadas de 1970 e 1980. Pode-se constatar que as emergências
dessas demandas ganham relevo em dois processos na contemporaneidade. Primeiramente, no
processo de transição e consolidação democráticas. Em segundo lugar, nas políticas de
combate ao “narcotráfico” a partir das disposições constitucionais para se estabelecer medidas
provisórias à metáfora bélica das operações de “guerra às drogas”, em particular na cidade do
Rio de Janeiro.
Na democracia brasileira, tais violações de direitos humanos podem ser analisadas nos
aspectos disjuntivos da cidadania no Brasil (CALDEIRA & HOLSTON, 1998). Partindo
dessa consideração, pretendo analisar a violência associada ao desrespeito dos direitos civis
que vieram à tona depois do início do regime democrático na década de 80: a obtusidade e a
ampla oposição aos defensores dos direitos humanos e também a campanha que foi feita para
tentar introduzir a pena de morte na Constituição Federal brasileira. O que estava em
discussão nesse momento eram os limites que poderiam ser impostos ao corpo do criminoso o
qual deveria ser castigado e punido sem ser protegido por nenhum aparato legal, opondo-se
aos direitos humanos atacados e considerados como uma proteção legítima que assegura
“privilégios de bandidos”.
1
Sobre a formação do caráter nacional brasileiro consultar os estudos de Dante Moreira Leite (1976).
2
De acordo com a análise de Bobbio, Estado de Direito é o “Estado no qual todo o poder é exercido no âmbito
de regras jurídicas que delimitam sua competência e orientam (ainda que freqüentemente com certa margem de
discricionaridade) suas decisões. Ele corresponde àquele processo de transformação do poder tradicional,
sucessão de golpes na estabilidade político-institucional quanto no âmbito cotidiano de
freqüentes agressões, por exemplo, contra mulheres, idosos e crianças nos silenciosos espaços
domésticos; os modos de vida no entre e intramuros dos estabelecimentos de isolamento e de
suposta “reabilitação social” como ensejam os manicômios judiciários, prisões, instituições de
tutela para crianças e adolescentes e os silenciamentos que envolvem as práticas de tortura,
inclusive nas delegacias de polícia.
Procurarei argumentar e buscar reflexões no que concerne às permanências da
violência na sociedade brasileira e levantar hipóteses acerca desse campo ambivalente da
intensificação de uma subjetividade autoritária após o processo de reconstrução democrática
no início dos anos 80 até os dias atuais.
Conforme Sérgio Adorno (1996), as questões da impunidade contemporânea (no
sentido de associação ao uso excessivo da força) na sociedade brasileira não resultam da
falência de lei e autoridade, mas de uma história e um painel inconcluso de uma democracia
não-consolidada3. A tradição de abusos por parte das instituições de ordem é cometida de
forma impunemente e na maioria das vezes com o apoio popular, contribuindo para o
aumento das violências policiais e os descréditos do sistema judiciário. O que faz com que as
pessoas recorram cada vez mais a meios privados de segurança, atendendo a uma lógica de
mercado que pode ser vendida e comprada para garantir a proteção contra o crime violento,
pelo menos essa é a justificativa utilizada para produzir o medo e o sentimento de insegurança
como táticas de poder em razão de suas inscrições nas subjetividades e mentalidades coletivas
para autorizar a violência do Estado brasileiro.
A paradigmática declaração do Coordenador dos Estabelecimentos Penitenciários do
Estado (COESPE) e ex-delegado de polícia em 1986 após a ocorrência de 16 mortes entre
funcionários e presos como conseqüência da rebelião na Penitenciária Presidente Wenceslau
localizada no interior do estado de São Paulo4, demonstra a indiferença dos “cidadãos” e do
poder público diante das mortes nos presídios. A enfática expressão “Não temos mortos a
lamentar” declarada pelo ex-delegado, não provocou nenhuma manifestação injuriosa nas
fundado em relações pessoais e patrimoniais, num poder legal e racional, essencialmente impessoal” (BOBBIO,
1992, p. 148).
3
Para um estudo mais aprofundado nessas questões sobre violência, crime, criminalidade urbana e justiça penal
na sociedade brasileira contemporânea, pesquise os estudos de Sérgio Adorno sobre “a gestão urbana do medo e
da insegurança” (1996).
4
Essa informação foi extraída como fonte secundária que teve como referência o relatório de pesquisa do
programa de pós-graduação do sociólogo Sérgio Adorno junto ao Centre de Recherches Sociologiques sur le
Droit et les Institutions Pénales/CESDIP e ao Group Européen de Recherches sur les Normativités/GERN. O
resultado desse relatório de pesquisa está intitulado como “Criminalidade Violenta, Estado de Direito e Controle
Social, 1994-1995. São Paulo, 1995, mimeo. 72p. (CNPQ).
pessoas e nem sequer a Secretaria de Justiça do Estado de São Paulo censurou, “puniu” ou
repreendeu tal afirmação. Os efeitos paradoxais da impunidade nas relações intersubjetivas
passam a organizar uma estreita ligação entre o sentimento coletivo de ódio e vingança
daqueles que se atribuem como “cidadãos iguais” em relação ao “outro” como inimigo ou
diferenciado por juízos de valores morais que sustentam a dicotomização de grupos sociais
heterogêneos e as autoridades públicas que se convertem aos olhos dos mais incautos como
“vingadoras” ao manifestarem abusos de poder e autoridade, de modo a isentar-se do papel de
asseguração de direitos para estabelecer um desejo cada vez maior de punir em acomodação
com os apelos da população, ou seja, a punição exemplar em rigor por certas “demandas por
lei e ordem”. Podemos considerar também a maneira como as pessoas apreciam conviver
cotidianamente com uma imagem construída da violência, disseminada seja na forma de
produto massificado pela indústria cultural, seja pela exploração econômica e fotogênica do
corpo numa sociedade de consumo, transformando a própria violência e as representações
simbólicas da força em mercadorias na lógica de uma economia política neoliberal.
Essas características deixam entrever o quanto se tornou costumeiro e banal nas
práticas discursivas sobre o medo do crime, da insegurança e nas medidas de prevenção as
ações violentas na sociedade brasileira na alçada da “modernidade”, a tradição da violência
passou a ser ou sempre foi correlativa a um “autoritarismo socialmente implantado”
(O’DONNELL, 1986; PINHEIRO, 1991a) em ressonância com os arbítrios de punição e
controle disseminados nas micro-relações de forças e poder que não se limitam aos domínios
do Estado.
No Brasil, após a alternância de regimes autoritários e regimes democráticos,
decorrentes imprecisamente durante cem anos de governo republicano, o país caminhou rumo
às experiências mais amplas de reconstrução democrática. Vivenciamos formalmente uma
democracia em via para uma transição política, sócio-econômica e cultural. Porém, depois das
mudanças nas formas democráticas de convivências sociais e políticas e o avanço de direitos
individuais, assim como foram escritas sobre as “Cartas de Direitos” da Constituição de 1988,
ainda convivemos com profundos problemas de disparidades sociais e as dificuldades e
obstáculos de determinados segmentos sociais de terem acesso ao sistema de justiça,
promovendo no interior das relações de poder e dos procedimentos formais da democracia a
continuidade das violações de direitos humanos que sobreviveram enquanto práticas de
autoritarismos mesmo após o regime militar como um dos principais paradoxos da
consolidação democrática5.
5
A discussão a respeito dos dilemas e perspectivas da democracia no Brasil e na América Latina pode ser
consultada a partir de estudos feitos por Guillermo O’Donnell & Fábio Wanderley Reis (1988), e também os
Para analisarmos os legados autoritários da violência e das violações dos direitos
humanos no horizonte das transições políticas na sociedade brasileira, partirei brevemente de
uma análise do processo de democratização dando a devida ênfase aos aspectos marcados
tanto pelos avanços como os constrangimentos antepostos aos dilemas e perspectivas da atual
conjuntura.
Na dinâmica das transições políticas não houve uma total ruptura com as decisões
políticas que caracterizaram as conjunturas precedentes. As distensões políticas provocadas
pela abertura à transição democrática desencadearam-se através de negociações entre as elites
e as iniciativas de mudanças que partiram dos próprios setores militares. Trata-se de dizer
que, ainda pesa sobre o funcionamento dos governos democráticos uma continuidade
histórica, política, econômica e institucional dos regimes ditatoriais. Os conjuntos maquínicos
de suas experiências perduraram e foram reativados nos contornos formais da democracia por
vias não democráticas em convívio com os aspectos moleculares tipicamente autoritários que
se transmutaram no interior dessa nova máquina administrativa6.
A reconstrução democrática não se desencadeou em direção a um rompimento com o
governo militar. A restauração de um governo civil implicou numa acomodação de práticas
no entrelaçamento com as novas estruturas e em combinação com as opções do sistema
político da antiga ordem. As experiências autoritárias assentaram-se sob os fatores de longo
prazo na democratização, influenciando as operações do governo militar referentes às
instituições políticas e as conseqüências do modelo de desenvolvimento econômico.
Após o golpe civil-militar que depôs João Goulart em 1964, as Forças Armadas
enquanto instituição passaram a dirigir o país. Os militares começaram a disputar o poder
político, o que proporcionou nos 21 anos de governo militar intensos conflitos entre oficiais
moderados e radicais, tendo como conseqüência, expressivas alterações na coesão interna da
organização, pungindo então assíduas instabilidades políticas. Situava-se em funcionamento
entre esse processo, os mecanismos e procedimentos de uma democracia representativa.
Segundo Maria D’Alva G. Kinzo (2001):
estudos de Paulo Sérgio Pinheiro acerca da democracia, violência, injustiça e o não-estado de direito na América
Latina (2000). Como principal referência de estudos produzidos sobre essas temáticas, indico um grupo de
pesquisadores do Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP.
6
Cf. Guattari. Micropolítica do fascismo, In: Revolução molecular: pulsações políticas do desejo, São Paulo,
Brasiliense, 1981. LENHARO, Alcir, Apresentação, In: Sacralização da Política, São Paulo, Ed. Papirus, 1986.
membros serem expurgados; manteve-se a alternância na presidência
da República; permaneceram as eleições periódicas, embora mantidas
sob controles de várias naturezas; e os partidos políticos continuaram
em funcionamento, apesar de a atividade partidária ser drasticamente
limitada (KINZO, 2001, p. 4).
A “terceira fase” da transição à democracia no Brasil entre 1985 a 1990, com a posse
do vice José Sarney após a repentina morte de Tancredo Neves, percorreu em um contexto
que ficou conhecido na esfera política como o caminho para a intensificação da
democratização. A despeito das frágeis circunstâncias da Nova República, que teria de
enfrentar uma agravante crise econômica e social, seus problemas de governabilidade no que
tange na situação vulnerável do Estado em governar sob os efeitos das pressões internas
estimuladas pelas forças políticas heterogêneas e os impulsos dos partidos da oposição e dos
setores organizados que lutavam contra os obstáculos à participação e representação políticas,
se tornavam cada vez mais visíveis no cenário político as instituições pela qual buscavam
pressionar os órgãos governamentais com o objetivo de reformas administrativas para maior
eficiência dos serviços públicos e estabelecer as condições livres de participação e
contestação.
7
Para um estudo mais denso entorno da experiência militar-autoritária no Brasil, ver Cardoso (1972), Stepan
(1973, 1975 e 1988) e Skidmore (1988). E sobre a transição brasileira, consulte as pesquisas de Martins (1986),
Stepan (1989), Lamounier (1988 e 1989), Velasco e Cruz e Martins (1983) e Diniz (1985).
Com a revogação dos limites impostos sobre o direito de voto e organização política,
os movimentos sociais aos poucos foram ganhando mais espaços nos variáveis conflitos da
transição democrática, uma vez que suas ações não são suficientes para explicar as complexas
relações que envolvem esse processo. Deve-se considerar que as pressões externas da
democratização no país vinham de diferentes dimensões após a década de 70 quando se
articulavam em ligação com a conjuntura econômica internacional, entre elas se encontram “a
política dos direitos humanos do governo Carter, os organismos internacionais de luta contra
torturas e maus tratos impostos aos presos políticos, os governos que se recusavam a apoiar
projetos de desenvolvimento onde vigiam regimes autoritários” (ADORNO, 1996, p. 64).
Nesse contexto de transição política em conjunto com o modelo de desenvolvimento
da economia internacional, as elites políticas e econômicas, para garantir a importação de
recursos necessários para o Brasil, começaram a exigir novas alianças políticas que não mais
se apoiavam nos estritos acordos com a ordem dos militares, pelo devido fato de que, a
imagem externa do país estaria comprometida internacionalmente se os atos do regime
autoritário e a forma como atuavam contra as dissidências políticas viessem a ser divulgados
pela imprensa a outros países. Segundo Stepan (1988), esse processo conduziu a uma abertura
na estrutura fechada da hegemonia de poder restringido e que foi ampliado pelos arranjos
sociais, econômicos e políticos ao serem estabelecidos para um aprofundamento da
democratização.
Ao mencionar as ambigüidades entre o estabelecimento desse arranjo político híbrido
da “transição pactuada” (O’DONNELL, 1988a e 1988b) e o conservadorismo que marca esse
processo, no caso brasileiro, o qual se mistura componentes da continuidade autoritária
associados com as perspectivas democráticas, sobretudo como produto das negociações entre
as elites, reporto-me a considerar que “não houve transição imposta pela oposição ou por
ruptura, não ocorreu colapso completo do regime autoritário” (CARDIA, 1999, p. 23). Essa
colocação põe em evidência as permanências da crise econômica e os obstáculos para a
consolidação da democracia como as principais características que também dificultaram a
transição em todos os países latino-americanos e nas regiões do Leste Europeu, apesar de suas
especificidades (RIAL, 1991 e O’DONNELL, 1993). Contudo, esses obstáculos para a
consolidação na América Latina consistiram na presença e proteção aos membros do antigo
regime (FRANCO, 1990), pouca participação da maioria no processo de tomada de decisão
(GARRETÓN, 1991; RONIGER, 1989; CARDIA, 1999) e na manutenção de resistências à
redemocratização tanto por parte das elites consolidadas que não queriam ver nos assuntos
políticos as exigências de grupos mais pobres e partidos organizados para uma política social
quanto aos descréditos e desconfianças da população diante dos princípios democráticos.
Esses fatores desdobraram na sociedade brasileira mudanças razoavelmente
consolidadas, pois as permanências do período autoritário se exercem em diferentes práticas
de poder e de negociação na institucionalização da democracia, mas essas crises sociais e
político-institucionais fizeram insurgir os ânimos para normalizar os procedimentos
constitucionais do governo civil na nova experiência democrática:
Depois do governo militar, o país aos poucos foi reajustando seus procedimentos
legais à nova situação democrática. Apesar de seus impasses, a reconstrução da democracia
no Brasil em curso desde o início da década de 1980 avançou em termos razoáveis ou apenas
em termos formais para a:
8
Adorno, 1991: 35; vd. Tb. Velasco Cruz & Martins, 1984; Dreifuss & Dulci, 1984; Figueiredo & Cheibub,
1986-87; Instituto Interamericano de Direitos Humanos, 1988; Lebrun, 1987; Pinheiro, 1984, O’Donnell & Reis,
1988.
Com a nova Constituição, foi reconhecido o direito ao voto aos analfabetos e com o
pluripartidarismo. Foram declaradas garantias aos direitos fundamentais e proteções
constitucionais à integridade física e a ampliação do direito à defesa. O racismo e a tortura
foram considerados crimes inafiançáveis e imprescritíveis. Tal Constituição pretende
assegurar os direitos de privacidade, igualdade e liberdade (física, de locomoção, de
circulação, de pensamento e de convicções políticas e religiosas, de reunião e de associação
coletiva), alegando inovações concernentes aos direitos sociais e ampliação de proteção aos
direitos de trabalho e ao trabalhador, à infância, à maternidade, ao consumidor e ao meio
ambiente. Em termos políticos, se dispõe a conceder maior autonomia ao Ministério Público e
consagrar o acesso à justiça com a criação das Defensorias Públicas para aqueles que se
encontravam desprovidos de recursos e assistências judiciárias.
Porém, o aperfeiçoamento constitucional da consolidação democrática no Brasil não
foi suficiente para conter as persistências da violência nas relações intersubjetivas e as
conseqüentes violações de direitos humanos profundamente projetadas nos costumes, na
política e no campo das relações sociais, assim como eram praticadas pelos regimes
autoritários anteriores. Pelo contrário, houve, no entanto, um recrudescimento dessas práticas
de arbitrariedade que também se multiplicaram para fora dos funcionamentos e repartições
macropolíticas das instituições do Estado. Essa “estatização contínua” (DELEUZE, 1988) de
práticas violentas produzidas numa rede de poder se configurou localmente nos espaços
sociais e foram suscitadas entre as manifestações diárias de racismos, violências cometidas
contra mulheres, idosos, crianças e jovens, assassinatos, homicídios, intolerâncias religiosas,
linchamentos, execuções sumárias, justiçamentos cotidianos e privatizados e práticas
constantes de extermínio intensificadas, por um lado, pelas instituições encarregadas de
garantir “a lei e a ordem”, por outro, pela própria “sociedade civil”. A tortura, que era uma
prática coordenada pela ditadura militar, no atual Estado Democrático e de direito passou a
ser exercida de maneira sistemática, principalmente nas delegacias de polícia e nas prisões em
todo o país. Como discute Alcir Lenharo:
9
Responsabilidade, dever de uma instituição de prestar contas diante da sociedade.
prisão arbitrária e ilegal, espancamentos, assassinatos extrajudiciais, envolvimento policial
com as organizações criminosas dentro e fora dos sistemas penitenciários, a facilitação de
fugas de presos, a permissão para entrada, nas prisões, de drogas, de armas de fogo, de
telefones celulares, demonstram a banalidade de práticas de corrupção e crimes oficiais dos
agentes do Estado e a proporção de um eminente sentimento de descrédito com as instituições
de segurança, com a eficácia da polícia e da legitimidade do sistema judiciário e da justiça
criminal que provocam reações de revoltas populares, cujos efeitos se radicalizam nas ações
violentas coletivas de punição sumária e “justiça popular” praticadas por atos de linchamentos
incorporados como respostas da população ao crescente sentimento de medo e insegurança
frente ao abandono do aparato institucional10.
Para se entender como isso foi possível, vale discutir a seguinte questão: Como os
direitos humanos teoricamente garantidos pelo princípio de valor universal, mas interpretados,
modificados em contextos socioculturais e políticos específicos, foram ao decorrer desse
processo desrespeitados no Brasil não somente pelos restritos abusos policiais e que se
capilarizaram num campo social mais amplo? E na medida em que a proliferação da
violência, as conseqüências da deslegitimação da justiça e dos direitos civis vistos como
ineficientes em seu funcionamento, o uso da vingança privada e imediata associada à idéia de
que a lei e o sistema judiciário são benefícios de poucos, produziram estratégias discursivas e
concepções diversas no espaço público sobre quais limites de punição e dor devem ser
executados na intervenção de corpos, sobretudo do “criminoso” em defesa da pena capital
adotada sob a justificativa de medidas severas consideradas como “exemplos pedagógicos”
para não se cometer crimes, como os direitos humanos passaram a ser contestados, atacados e
foram identificados após o regime democrático como uma proteção e direitos legítimos em
“privilégios de bandidos”? E que o argumento da impunidade, nesse âmbito generalizado de
desencantos e desalentos, serve para sustentar o debate acerca da implementação da pena de
morte e prisão perpétua na Constituição Federal Brasileira, comumente articulado nas
propostas políticas, nas instâncias micropolíticas, na posição popular e nas conversas e
impressões do cotidiano.
A naturalização da “fala do crime” e do medo (CALDEIRA, 2000), da insegurança
social e do aumento da criminalidade associada ao viés mecanicista com os estereótipos da
pobreza e marginalidade urbana sobre o qual as pessoas decidem em tirar ou não a vida do
“outro”, reduz a qualificação da cidadania à condição de Vida Nua, como definiu Agamben
(2002), isto é, à crua materialidade biológica e incluída no ordenamento jurídico-político
10
Sobre as questões de práticas de linchamentos no Brasil como respostas populares à violência urbana,
consultar os estudos de Maria Victória Benevides e Rosa Maria Fischer Ferreira (1983).
moderno sob a forma de suspensão de direitos e exclusão como regra de sua absoluta
matabilidade nas relações interpessoais.
A análise aqui apresentada teve o esforço de não recorrer às significações ideais, tipos
gerais ou essências daquilo que veio a se moldar e significar como “democracia”. Esse “tipo
ideal” (característica dos pressupostos metodológicos Weberianos) freqüentemente é utilizado
pela maioria de historiadores e cientistas sociais como um artifício retrospectivo para se
explicar o objeto estudado e uma variedade de considerações históricas a partir da convicção
axiológica e do esclarecimento de essencialismos (DREYFUS & RABINOW, 1995). Não
tenho a menor pretensão de levantar os elementos paradoxais da realidade concreta dos fatos e
opor práticas históricas específicas de poder meramente para destacar a relativização de um
modelo idealizado de governo. Minha tarefa analítica terá por prerrogativa a Problematização
do Acontecimento pela qual a democracia veio a se tornar um dispositivo da sociedade de
controle, em que sustentar a base da soberania nas democracias modernas Ocidentais, seria
viver permanentemente numa estrutura de exceção que se transformou no paradigma
biopolítico dos governos atuais amplamente utilizado como medida de segurança pelos
Estados democráticos cada vez mais punitivos (FOUCAULT, 1975-76; DELEUZE, 1995;
WACQUANT, 2001; AGAMBEN, 2004).
Assim, Dahrendorf irá identificar esses fatores de declínio das sanções em alguns
espaços da convivência social que ele denominará como as áreas de exclusão. Para ele, essas
áreas elucidam o caráter cotidiano da impunidade e da isenção de penas por crimes praticados.
Nessas “áreas de exclusão”, assim como aponta Dahrendorf, verifica-se que em
diferentes sociedades são escassos os registros feitos sobre os furtos e grande parte desses
casos nem sequer são investigados. A baixa probabilidade da investigação e o crescente caso
de furtos não registrados se assemelham aos casos de evasão fiscal. Ao fazer menção às novas
modalidades de crimes, sobretudo aquelas relacionadas ao narcotráfico, o autor adverte sobre
os indícios da desistência sistemática de punição contra a instituição dessa economia paralela.
Nesse processo, se considera os efeitos sobre o qual as pessoas incorporaram o ato de
executar a justiça e fazer valer a lei com suas próprias mãos.
No que se refere como a segunda área, Dahrendorf dirige-se aos problemas da
juventude e sobre as causas do aumento da delinqüência juvenil. Segundo suas observações,
as sanções aplicadas aos jovens tendem para uma gradativa debilitação, redução e isenção de
penalidades, justamente para aqueles que respondem pela maioria de crimes violentos
cometidos em diversas sociedades modernas.
Na terceira, o sociólogo remonta as questões a respeito do processo de anomia parcial.
Para ele, a privatização dos sistemas de segurança está associada, por um lado, ao
consentimento pela qual os cidadãos tomaram pra si em evitar determinados espaços urbanos
projetados como lugares perigosos ou que se tornaram isentos à normalidade garantida pela
manutenção da lei e ordem, por outro, aos desafios que esses serviços securitários privados
estabelecem para o monopólio do uso legítimo da força pelo Estado e suas instituições.
Não obstante, a quarta área de exclusão é voltada para a própria perplexidade e
dificuldades das sanções diante do extenso dimensionamento e vastidão de normas violadas,
cuja repercussão se manifesta sobre as diferentes formas de distúrbios civis, por exemplo, nos
motins de ruas, tumultos, rebeliões, revoltas, insurreições, demonstrações violentas, invasões
de edifícios, piquetes agressivos de greve e entre outros. Segundo as constatações de
Dahrendorf, as aplicações das sanções penais perdem a direção e ficam desnorteadas frente às
vastas violações das normas.
Para compor suas propostas e argumentação acerca do enfraquecimento das sanções
penais e das “ligaduras” sociais existentes na sociedade contemporânea, partimos então para o
segundo ensaio de Dahrendorf sob o título de “Buscando Rousseau, Encontrando Hobbes”.
Nesse ensaio, ele destaca em fatos os problemas do declínio das sanções e do rompimento dos
liames sociais. Retomando o caso da reforma do direito penal na Alemanha logo no início dos
anos 60, critica as reformas favoráveis às condições de vida nas prisões que propuseram novas
“alternativas” para a política criminal em não aceitar penalizações que reconduziriam o
homem à natureza de sua “dessocialização”, suavizando as penas a partir do princípio de
cuidado dos criminosos e não a aplicação mais dura de punições. Para o autor, essas
concepções e práticas empregadas nos mecanismos do direito penal conduziram para uma
decomposição das sanções efetivas de tal modo ao ponto de levá-las aos limites da
impunidade.
Dahrendorf utiliza as concepções de Habermas sobre as estruturas normativas da
sociedade e se opõe às representações de homem implicadas no pensamento de Kant para
concluir que os devidos impasses e perigos da sociedade contemporânea ganham respaldo
pela “impossibilidade de sustentar a sociabilidade insociável do homem”, cuja solução
consiste em reconstruir as instituições para assegurar os vínculos sociais reconstituídos pelo
modelo contratual de organização societária.
A contextualização dessa proposta de Dahrendorf será apresentada no seu terceiro
ensaio intitulado “A Luta pelo Contrato Social”. Procurando destacar em três direções o
processo histórico e os efeitos que possibilitaram o surgimento dos novos antagonismos da
sociedade industrial após a institucionalização ou “democratização” dos conflitos sociais, o
sociólogo descreve as conseqüências do fracasso do Welfare State (Estado Social) que
instaurou a universalização dos programas sociais para prover os benefícios na distribuição de
recursos e assegurar a todos os cidadãos a qualidade dos serviços sociais; indica o surgimento
de uma nova pobreza constitutiva em sete categorias sociais, entre elas, se encontram
desprovidos dos mecanismos de transferência de renda os desempregados, idosos, famílias
monoparentais, doentes e incapazes, os de baixa renda, mulheres solteiras com dependentes
mais velhos e pobres internados em instituições. Sem a proteção do Estado Social, esses
grupos se situam numa posição de vulnerabilidade diante das reduções de benefícios das
políticas providenciais. Em seguida, Dahrendorf nos chama a atenção para uma nova explosão
de litigiosidades, não mais sobre os estreitos conflitos entre o operariado e o empresariado,
mas a partir dos litígios que gravitam sobre os direitos de cidadania e entre aqueles que
possuem empregos e por isso gozam de uma posição privilegiada, e os que se vêem excluídos
e não dispuseram de cidadania, como é o caso de imigrantes, de idosos que não possuem em
sua totalidade e os jovens que ainda não usufruíram por conta dos difíceis acessos aos direitos
do cidadão.
Tais conflitos sociais contemporâneos nos levam em direção ao fenômeno indicado
pelo autor como uma crise de legitimidades e a falência de lealdade que se traduz na falta de
confiança sobre a eficácia de seus valores fundamentais. Por isso, Dahrendorf insiste na
ordem social estabelecida a partir da reconstituição do contrato. Suas propostas giram em
torno das saídas viabilizadas por um liberalismo radical, cuja empreitada consiste em
enfrentar as questões ligadas à inserção dos jovens, o futuro do trabalho e o problema da lei e
da ordem.
A resolução dos problemas voltados sobre a lei e a ordem, segundo as assertivas do
autor, não devem se limitar aos tradicionais meios rousseuniano ou se deter em substituições
que elevam políticas econômicas encarregadas de promover uma justiça distributiva. Segundo
Dahrendorf, o liberalismo radical terá que caminhar no sentido de defesa às instituições com
uma atitude ao mesmo tempo rígida e moderada. Embora seja reconhecido que o aumento do
crime está associado com os problemas de fundo social, sobretudo aqueles em conjunto com a
falência do Estado de bem-estar, isso não significa que deva ser favorecida a isenção das
sanções para criminosos provenientes das camadas mais pobres da população. Em seu último
ensaio intitulado “A Sociedade e a Liberdade”, o autor arquiteta suas proposições e
argumentos baseados nesse liberalismo radical em via para defender as instituições que
asseguram “a sociabilidade insociável do homem”, garantem os direitos humanos e efetivam o
controle sistemático do poder. É nesse sentido que o sociólogo sustenta a idéia de liberdade.
Dahrendorf chega a propor direcionamentos para as políticas públicas que deveriam
intervir nas “áreas de exclusão” com o escopo de prescrever punições aos crimes atualmente
não punidos; Ampliar as condições de oportunidades para os jovens sem abrir mão das
exigências sobrepostas ao respeito às autoridades; conceder apoio às instituições de lei e
ordem partindo da estreita ligação entre polícia e comunidades locais. A partir daí, o
liberalismo radical de Dahrendorf atribui para si a função de regulamentação da norma que
impeça tanto a anomia quanto a hipernomia para não comprometer o exercício da liberdade.
Desse modo, o contrato social deve garantir o mínimo de respostas normativas e institucionais
proporcionando, assim, a “justiça com eqüidade”.
Após destacar e descrever algumas questões, interpretações e principais propostas de
Dahrendorf a respeito dos conflitos contemporâneos, do contrato social, da anomia e
hipernomia, erosão da lei e da ordem, áreas de exclusão e liberalismo radical, me proponho a
analisar, fazer considerações, problematizar e estabelecer críticas em relação a alguns dos
pressupostos concluídos pelo sociólogo no decorrer de seu sofisticado texto.
Em primeiro lugar, ao analisar os novos antagonismos sociais na contemporaneidade
os quais giravam entorno das lutas pelo contrato e dos problemas que implicaram no modo
como a lei e a ordem estavam sendo efetivadas, Dahrendorf busca compreender o presente em
comparação com o passado opondo-os para se explicar fatos contemporâneos.
Freqüentemente ele recorre às lutas sociais do século XVIII e XIX comparando-as com os
conflitos do século atual. Compara também o aumento da criminalidade e das sanções penais
nos últimos trinta anos. Percebe-se daí que o presente é visto a partir da recorrência
comparativa ao passado. Dessa forma, os problemas contemporâneos são tratados sob uma
ótica tipicamente anacrônica, pois o presente nesses termos sempre é contemplado em relação
contraditória com o passado numa permanente crise em variáveis aspectos, como por
exemplo, crise de legitimidade e das normas, crise de autoridade e intervenção do poder, cujo
sentido nos encaminharia para uma inexorável decadência, tendo como conseqüências, as
inconvenientes ameaças e riscos difundidos pelo campo social em que o autor expôs enquanto
crimes em excessos e criação de situações de intolerância, enfraquecimento das sanções não-
aplicadas e geração de “áreas de exclusão”.
Esse anacronismo histórico, tácito nas leituras intertemporais e migratórias de
Dahrendorf, recai não por acaso no paradoxo de restabelecer uma linguagem característica do
século XIX para a reconstrução de fatos contemporâneos. Quando o autor evoca a fala que
versa sobre os problemas de anomia, crise de autoridade, erosão da lei, manutenção da ordem
social e recuperação das instituições, ele acaba por resgatar as formulações clássicas mais
remotas encontradas no âmbito sociológico Durkheimiano relativas ao período em que foram
elaboradas para diagnosticar os elementos anômicos da sociedade moderna e igualmente aos
fenômenos da divisão social do trabalho. A sociologia de Durkheim, assim como a de
Dahrendorf, também se deteve em temas e pesquisas empíricas particularmente ligadas ao
crime, os sistemas de sanções e os mecanismos gerais da sociedade empregados para lidar
com as desobediências das normas sociais e manter a ordem.
Nessa articulação entre as linguagens de fins do século XIX e final do século XX,
assim como observaram Lagrange e Roché (1993), os temas criminais ganham uma notável
atenção como problema público, adquirem relevância nos debates e preocupações coletivas,
se constituem como objeto privilegiado nas reflexões de diferentes analistas e soa trivialmente
na agenda da moralidade pública voltada para os princípios da organização social, cuja
associação de linguagens díspares não considera as especificidades dos contextos sociais e
políticos que em certos momentos são incomparáveis. Os sinais ininterruptos de um presente
visto numa constante crise e comparado a fatos passados deram vazão para os jornalistas,
literatos, historiadores, sociólogos, artistas e entre outros observadores do final do século
XIX, sobretudo da sociedade francesa, em apontar o advento de uma era de degradação da
ordem e da segurança em liame com os fatores do século passado. Conseqüentemente, a partir
do século XIX, foram construídos inúmeros saberes, abordagens científicas, deterministas,
médicas e jurídicas e suas interfaces, práticas normalizadoras e penais que irão se estabelecer
em campos discursivos sob o tratamento, por exemplo, na assim chamada “degenerescências
raciais”, “vícios morais” e a degradação dos valores desembocada pelos esquadrinhamentos
das “perturbações mentais” e seus estigmas.
Lagrange e Roché (1993) apontam algumas interpretações sobre o aumento da
criminalidade contidas nas investigações de analistas como Tarde e Joly, para ambos esse
fenômeno está relacionado com o forte crescimento da delinqüência juvenil como um efeito
referente aos descuidos no cumprimento dos deveres e dos costumes. Conforme indica Joly, o
crime na cidade se comporta sobre a perda de referenciais territoriais e morais por parte
daqueles que emigram do campo para se estabelecer em outros espaços, percurso que leva o
emigrante em direção a pequenos intervalos de tempo ao estágio da vagabundagem para a
delinqüência. Diante dessa lógica, o crime na cidade se transforma em atividade racional que
permite calcular custos e benefícios.
Lagrange e Roché também destacam a existência de setores sociais nos diferenciados
espaços urbanos que eram desconhecidos e motivo de interesses pela maioria de criminólogos
e sociólogos do início do século XX, a título de exemplificação, Weber, Tönnies, Durkheim e
Simmel, todos eles preocupados em estudar os temas indissociáveis com as questões da
alteridade. Deste modo, o tema da multidão exemplifica os conjuntos das transformações da
cidade com a emergência de novos sujeitos e práticas na nova dimensão do espaço urbano
associada aos problemas da metrópole moderna. De acordo com Ianni (1989), o interesse em
compreender as multidões nas grandes metrópoles do período surge com as preocupações de
controlá-las diante da urgência de conflitos, percepções, protestos e revoluções populares e
constantes transformações na sociedade urbano-industrial moderna que estimulará novas
questões para o pensamento social, para o Estado e as elites políticas.
Assim, no panorama das duas metrópoles do período, Rio de Janeiro e São Paulo, os
conflitos sociais em face numa sociedade cada vez mais diversificada são vistos pelas elites
republicanas, no caso das cidades que concentram um maior volume demográfico, como uma
população insubordinada em excesso ou “multifacetada e disforme” (ADORNO, 1990, p. 9).
Para as instituições republicanas essa mesma população seria um entrave para os ideais de
organização social fundados pelo modelo jurídico-político contratual de sociedade. Aos olhos
das elites, o processo acelerado da urbanização, também constatado nas experiências de
outros países, aumenta a gravidade dos “perigos” impostos ao futuro da nação que são
inerentes às particularidades locais tais como já haviam atrapalhado a marcha do progresso
nacional. Ou seja, o medo das elites diante dessa nova dimensão social se coloca sobre a
presença da pobreza urbana após o fim da escravidão, cujo passado escravista vem à tona em
conjunto com as “diversidades raciais”, incivilidades, a falta de formação moral dos pobres
que demarcaram a contraposição e os atavismos aos projetos políticos, sociais e científicos do
novo regime.
Seguindo os estudos de Maria Stella Bresciani (1987), nas grandes metrópoles
européias, sobretudo Londres e Paris do século XIX, o crime no meio urbano passou a ser
visto como um dos inúmeros problemas procedentes da desagregação social e associado à
pobreza e às condições de vida do proletariado industrial. O amedrontamento das elites frente
aos perigos disseminados pelas novas condições de vida que são estabelecidas no âmbito
urbano é acompanhado com uma crescente preocupação em relação ao crime e a
criminalidade. No Brasil, especificamente nas grandes metrópoles no final do século XIX, as
transformações sociais e urbanas em São Paulo e no Rio de Janeiro são tematizadas por
diversos juristas preocupados em questionar as mudanças da criminalidade local. Os juristas
locais estavam preocupados em formular respostas e questionamentos ligados à progressiva
onda de crimes e o crescimento da criminalidade relacionado com os temas do progresso da
sociedade. O medo da escalada do crime e da criminalidade nas cidades brasileiras reside no
acelerado processo de urbanização e o envolvimento de segmentos sociais específicos com as
práticas criminais, assim, o saber jurídico se deterá em questões como o aumento do crime e
da criminalidade, progresso e civilização e o problema da convivência entre as diferentes
“raças”. Por exemplo, o jurista Viveiros de Castro defende a tese que a imigração tem um
efeito decisivo no entrecruzamento das “raças”, diversificando a composição racial das
sociedades. No prefácio de seu livro publicado em 1894, ele descreve essa situação no caso do
Rio de Janeiro:
Contudo, para os juristas, elites políticas, intelectuais do período e quase todos aqueles
que estavam preocupados em reformar as instituições jurídico-penais, consolidar o novo
regime e combater a criminalidade, o problema da convivência entre as diferentes “raças” se
torna uma problemática a mais para as pesquisas criminais, pois ao se vincular tanto aos
quadros gerais do desenvolvimento econômico e social das metrópoles locais e de outros
países, quanto às particularidades de um contexto local, a diversidade racial soma e dificulta
as necessidades de combate ao crime e contenção do crescimento da criminalidade para a
consolidação da ordem política e social da Primeira República. Percebesse que a manutenção
da ordem pelas elites republicanas não visava a expansão dos direitos civis, políticos e sociais
para a maioria da população, mas é sustentada por meio de uma deliberada violência contra os
movimentos populares, vigilância, repressão direta e controle social cotidiano contra os
inimigos da ordem política e desviantes da ordem social. Na mesma direção, a criminologia se
constitui como um saber normalizador voltado para o conhecimento positivo não mais do
crime, mas incide sobre o homem criminoso e será estabelecida como uma política
“científica” para se combater a criminalidade como um instrumento ou mecanismo de
controle social para conter a criminalidade local (ALVAREZ, 2003).
Houve criminólogos que criticaram as falhas da instituição familiar como responsável
à expansão dos crimes. As crises familiares traduzidas na diminuição de números de seus
membros, dissolução dos laços do casamento, os casos de abortos e do divórcio, para a
maioria das observações criminológicas tinham a mesma carga de atos suicidas e criminosos.
Noutro momento, acentuaram os conflitos políticos como causador da elevação dos crimes,
em particular, os governos democráticos e suas dissensões ou a instabilidade político-
institucional gerada pela falta de uma elite moderada no poder, cuja alusão é feita com base na
Revolução Francesa. Segundo Tarde e Joly, o egoísmo, os levantes revolucionários e a
presença das multidões no cenário político fazem elevar os números estatísticos de crimes e
conduzem para a decomposição da sociedade, da escola e dos sindicatos (LAGRANGE &
ROCHÉ, 1993, p. 83-98).
Portanto, podemos até considerarmos pertinentes as reflexões de Durkheim e de outros
autores do século XIX, como Tarde e Joly, quando privilegiavam os problemas relativos à
manutenção da ordem social a partir de um diagnóstico da sociedade moderna. No entanto, de
igual modo, não teria como deixarmos de reconhecer e de ressaltar as indispensáveis
diferenças entre a sociedade que esses autores investigaram e as sociedades contemporâneas.
De acordo com o argumento de Adorno, “os fatos contemporâneos precisam ser vistos senão
com os olhares da contemporaneidade” (ADORNO, Op. cit., p. 18).
Em referência à abordagem de Michel Foucault (1977) sobre a escrita da “história do
presente”, pretendo indicar o modo nada convencional como ele emprega e tenta realizar uma
análise histórica. Em Vigiar e Punir, ao estudar as transformações das práticas penais da
época clássica ao século XIX, a revolta das prisões na atualidade e seus mecanismos
disciplinares sobre o corpo e a alma, Foucault afirma:
Mesmo após os avanços globais acerca das conquistas e respeito aos direitos humanos,
as forças repressivas em enfrentamento ao crime tenderam a ser mais agressivas e violentas
nas últimas três décadas. Isso se constata em sociedades que passaram por uma tradição
autoritária ou que se encontravam num processo de transição democrática (O’DONNEL,
1988; PINHEIRO, 1991a). Outra consideração a se fazer sobre as análises de Dahrendorf é
que, ao destacar as questões da erosão da lei e da ordem como principal problema na
contemporaneidade, ele não se questiona sobre qual o significado da lei e dos direitos em
relação aos diferentes grupos sociais. No Brasil, com base em alguns estudos e pesquisas,
demonstram que diferentes segmentos sociais não se sujeitam à obediência dos estatutos
legais, seja qual forem os princípios morais ou éticos o qual se fundam através da convivência
política pacífica.
Dahrendorf em sua proposta sobre o que ele denominou de liberalismo radical encerra
as soluções dos problemas contemporâneos nos limites de uma reforma institucional. Essa
tendência reformista das instituições da “lei e da ordem” reside em apresentar propostas que
poderiam conferir maior racionalização aos serviços públicos de segurança ou estreitamento
de laços entre polícia e cidadãos. A maioria de suas propostas se restringem na maior eficácia
operacional das agências de controle da ordem pública. Em divergência com o autor, levanto
a hipótese de que não há sequer nenhuma garantia dessas reformas institucionais a respeito
das possibilidades de baixar as taxas de criminalidade e oferecer aos “cidadãos” proteção de
seus bens materiais e simbólicos, por mais que desejem que isso aconteça. Todas essas
propostas estão vigentes nas chamadas “demandas por lei e ordem social”, seja no discurso do
autor aqui analisado, seja no mass media, nas falas do senso comum, seja na produção
acadêmica e na agenda das instituições públicas de segurança.
Nos estudos sobre a criminalidade, o controle social tem que ser pensado como algo
mais amplo do que o controle da ordem pública. Nas sociedades contemporâneas, as suas
funções não mais se esgotam em modelos tradicionais, e nem na maior ou menor eficácia
operacional das agências de controle da ordem pública. Ao se esgotar os modelos
convencionais de controle social abrem-se possibilidades de repensá-lo a partir de sua
trajetória conceitual no pensamento social, desde as discussões mais remotas da teoria
sociológica clássica até as suas implicações em diferentes sociedades. Com efeito, pensar na
complexa problemática do controle social na contemporaneidade seria considerá-lo muito
mais do que simplesmente como algo encerrado no domínio exclusivo dos mecanismos
repressivos de Estado. Portanto, a análise crítica e problemática das chamadas “demandas
contemporâneas por ordem social” precisa deslocar sua investigação sobre os mecanismos de
controle social do eixo referencial do poder político para o poder social, ou seja, do Estado
para a sociedade.
Isso não quer dizer que devemos ignorar o papel do Estado no controle social, muito
pelo contrário, ao se repensar o estatuto do controle social contemporâneo não mais em suas
funções tradicionais e no deslocamento de seu âmbito de referência e reflexão, convém pensar
o papel do Estado no controle dos comportamentos sociais e no controle da ordem pública não
mais em termos dicotômicos de eficácia/fracasso. Em seus ensaios, Dahrendorf afirma que o
controle da ordem pública na sociedade moderna foi inspirado em Locke e Rousseau, o
principal problema reside na forma de sua implementação, colocando essa mesma sociedade
face a face ao Estado leviatã de Hobbes. Parece que o autor está se referindo aos
antagonismos das forças de controle da criminalidade, tanto a anarquia social quanto o
autoritarismo. O primeiro se traduz nas propostas irrealistas e concepções messiânicas de
justiça social. Enquanto o segundo se propõe a suspender ou até mesmo violar os direitos
fundamentais.
1.4 A Rejeição aos Direitos Humanos como “Privilégios de Bandidos”: Pena de Morte,
Corpo, Violência e Desrespeito aos Direitos de Cidadania após a Consolidação
Democrática Brasileira
O debate que se colocava nesse momento, era o tema central sobre os limites ou a falta
de limites para a intervenção que poderia ser imposta ao corpo do criminoso através de seu
tratamento punitivo. Ao se estudar a relação que se estabelece entre violência, direitos e
corpo, procuro ressaltar a associação da violência com as experiências de violação e
desrespeito aos direitos civis como um processo contraditório que marca um dos principais
dimensionamentos da cidadania disjuntiva em diversas democracias do mundo atual. Assim,
qual o papel que a violência desempenha em conjunto com a cidadania democrática
brasileira?
11
Sobre os novos padrões de segregação urbana que cria enclaves fortificados a partir do processo de
privatização da segurança e a justificação da fala do crime e do medo na cidade de São Paulo, ver Caldeira
(2000, p. 211).
A abordagem de temas ligados à cidadania e a violência serão analisados do ponto de
vista das experiências vividas em São Paulo, sem deixar de considerar os problemas gerais
que envolvem as noções de cidadania e democracia. Nesse sentido, problematizarei a maneira
pela qual os paulistanos se relacionam com as noções disponibilizadas no que diz respeito aos
direitos, justiça, punição e dor e o modo como constroem um certo modelo de corpo político
na medida em que se pretende intervir fisicamente à uma certa concepção de corpo
amplamente tolerada para a manipulação incircunscrita da violência e pela falta de limites às
intervenções punitivas, de dor e castigos físicos que vem a ser aplicados ao corpo indigno de
ser protegido ou vivido.
O secretário da justiça José Carlos Dias, que foi escolhido por Montoro para defender
os presos políticos e os direitos humanos, desenvolveu uma política de “humanização de
presídios” o qual foi intensamente criticada pela oposição, principalmente manifestada pelos
meios de comunicação de massa, em particular os programas de rádio na época dedicados a
narrar diariamente os crimes (entre eles o mais conhecido programa de Afanasio Jazadji) e o
jornal O Estado de S. Paulo. Dias procurou defender os direitos de presos a partir da:
Desse modo, a questão dos direitos humanos para presos comuns acabou se tornando
uma política de Estado e debate público.
12
Para uma análise das práticas discursivas sobre o “anormal” enquanto a figura do monstro humano, o
indivíduo a ser corrigido e a criança masturbadora a partir das relações de poder que envolve as práticas
de família e a falta de ligação com as outras pessoas. Reconfigura-se então a sanção penal e
normalizadora e a classificação psiquiátrica e jurídico-biológica do criminoso indiciado como
o “anti-social” ou o “sociopata”.
A percepção vigente nas crenças das pessoas era de que a polícia e o sistema judiciário
privilegiavam apenas os ricos e que raramente favoreciam ou eram justos com as classes
trabalhadoras. Sendo assim, os adversários dos direitos humanos aproveitavam essas
argumentações para formular a seguinte pergunta: se a maioria das pessoas, até mesmo as
classes trabalhadoras não tem os seus direitos respeitados, por que os criminosos deveriam ter
esse privilégio? Freqüentemente, comentários desse tipo são emitidos à opinião pública
através de apresentadores de programas sensacionalistas que se pautam da narração repetitiva
de crimes por meio do espetáculo midiático e alinha-se a posição de políticos conservadores
que opõem os direitos humanos de presos a direitos sociais da maioria da população,
argumentando que a garantia de condições decente aos reclusos seria um gasto muito alto do
O aumento de crimes fez com que a população começasse a exigir punições mais
pesadas e uma polícia mais violenta, desconsiderando totalmente os direitos humanos. O
massacre na Casa de Detenção do Carandiru em 1992 foi um dos exemplos das tendências da
população em conceder apoios às execuções sumárias praticadas pela polícia. Depois da
administração de Montoro, a idéia de respeito aos direitos humanos foi abandonada pelos
governos que veio a apoiar e investir numa política rígida em torno da segurança pública. A
partir daí, os abusos policiais aumentaram significativamente, demorando quase uma década
depois de os direitos humanos tornarem a estar presente nos discursos e práticas políticas.
Porém, ainda persistem o apoio aos abusos policiais, as práticas privadas de violência e,
sobretudo a pena de morte que se configura de variadas formas e se metamorfoseando
segundo relações de poder, interesses e estratégias particulares de setores específicos e certos
grupos coletivos e não homogêneo da sociedade brasileira.
A pena de morte foi reintroduzida pelo regime militar em 1969 a partir do Ato
Institucional 14 com fins exclusivos para crimes políticos. Tal regime criou uma legislação
para casos excepcionais entendidos como a guerra contra o terrorismo e a denominada
“guerrilha urbana”. Todavia, nesses dois períodos não aconteceu efetivamente as execuções
legais para presos políticos. Como analisou Caldeira:
O debate público nos jornais e nos programas de televisão evoca, de maneira repetitiva
e na maioria das vezes acompanhado por imagens simplistas sobre o universo do crime, o
discurso em defesa da pena capital por meio de estereótipos e preconceitos que se propagam
na opinião pública. Comumente a discussão em torno das questões políticas, econômicas e
sociais nos veículos de comunicação são fechadas no debate entre as elites, embora recorrem
com freqüência à categoria homogênea de “o povo” que acabam por incorporar um sentido
paternalista para justificar os seus apanágios argumentativos.
A projeção de um certo “sentimento popular” compõe os argumentos mais recorrentes
que favorecem a pena capital na sociedade brasileira. No jornal Folha de S. Paulo publicado
em 12 de janeiro de 1993, o proprietário e presidente da Rede Globo Roberto Marinho
responde que é a favor da pena de morte (divulgada ao público pelo seu jornal e estação de
TV) porque ela “refletia a indignação popular”.
Os políticos de direita na época alegavam que a pena de morte seria uma medida
extrema só que solucionaria de forma imediata os problemas da violência e da falência do
sistema judiciário. Em seus discursos, a questão da diminuição da criminalidade reside em
termos de vingança pessoal e não em termos de legalidade. Para eles, executar o criminoso
irredimível consiste no impedimento de futuros crimes que possivelmente ele viria a cometer.
Nesse sentido, a pena de morte se inscreve numa retórica de autoritarismo que tenta prever a
“salvação da vida de inocentes”.
Segundo Caldeira: “Os defensores da pena de morte e oponentes aos direitos humanos
manipulam com destreza o imaginário que compõe o repertório da fala do crime. Falam
sempre em termos empíricos, apoiando-se em exemplos e casos individuais” (ibidem, p. 352).
Quando são questionados pelos defensores dos direitos humanos pela possibilidade de haver
um erro judicial incorrigível depois de executada a pena de morte e por isso desrespeitando o
direito humano mais fundamental que é o direito à vida, eles respondem que o caso de um
possível erro da pena capital seria garantido em quatro instâncias de apelação vindo a ser
esporádico qualquer equívoco judicial. Determinam que não estão preocupados em defender
direitos de bandidos, mas das pessoas inocentes e das vítimas, repetindo os argumentos de que
a atual Constituição estaria concedendo proteção aos criminosos. O juiz estadual de São Paulo
Alberto Marino Júnior escreveu um artigo para a Folha de S. Paulo em 16 de janeiro de 1993
sobre o caso de um crime cometido a uma menina de 5 anos que foi raptada e assassinada
pelo simples fato de chorar demais:
Os defensores dos direitos humanos afirmam que a pena de morte viola o direito mais
fundamental do homem: o direito à vida. Para eles, a pena capital é ilegítima, mesmo quando
se situa no código da lei, de modo que argumentam sobre as causas sociais e estruturais do
crime e da violência. Assim, o tratamento da pena de morte é inviabilizado para se resolver
problemas que é da ordem da estrutura social. As reformas institucionais do sistema judiciário
e prisional fazem parte de suas propostas de transformação da sociedade, do Estado e da
resolução de problemas sociais como a pobreza e as injustiças do país.
13
Para um estudo mais detalhado sobre o crime e a violência, o argumento convencional que associa a
criminalidade urbana com a pobreza e marginalidade social, o uso das estatísticas oficiais e as distorções que são
feitas na contabilidade criminal pelos membros de organização policial, consulte o texto de Antônio Luiz Paixão,
“Crimes e Criminosos em Belo Horizonte, 1932-1978”. In: Crime, Violência e Poder, Ed. Brasiliense, 1983.
categoria das chamadas “classes perigosas”, ou seja, uma estratégia classificatória da
periculosidade social, cuja objetivação procura estabelecer uma suposta afinidade dos setores
específicos de moradores de favelas e cortiços, desempregados e trabalhadores não-
especializados com as atividades criminosas.
Um outro ponto a se destacar é o argumento sobre a impunidade que foi usado tanto
pelos defensores quanto pelos adversários da pena de morte. O primeiro, invoca o enunciado
da impunidade para exigência de leis mais rígidas e para atacar a Constituição de 1988. Já o
segundo, pretende reformar o sistema judiciário e o sistema prisional para garantir a “certeza”
de métodos sofisticados de punição como um meio de intimidar a atividade criminal. O
secretário da Justiça José Carlos Dias afirma essa medida punitiva de impedimento ao crime
como necessária para “mexer no sistema judiciário e no sistema carcerário, porque hoje você
só tem a certeza da impunidade” (Folha de S. Paulo, 18 de janeiro de 1993).
O poder punitivo ainda é presente mesmo entre aqueles que se opõe à pena de morte,
ele se exerce enquanto propostas liberais que pretendem recuperar as instituições da ordem a
partir de uma sofisticação das penas sem abandonar a sua retórica de humanismo moderno e
contemporâneo. Compreende-se o quanto adquiriu uma certa “naturalidade” da prática
prisional como a pena por excelência nas sociedades modernas. A forma-prisão se torna a
peça-chave das práticas penais que colonizou as instituições sociais e judiciárias ao
secundarizar outros sentidos da punição.
A prisão enquanto um sistema punitivo moderno que tem a função de investir uma
tecnologia política do corpo nos indivíduos a serem adestrados num conjunto de técnicas
disciplinares, o qual ordena em uma rede difusa de dispositivos e mecanismos que regulam,
normatizam e normalizam os costumes, os hábitos, as intervenções sociais e práticas
produtivas não dissociadas da moral, consegue espalhar suas práticas disciplinares para além
do espaço prisional propriamente dito, difundindo-se por toda a sociedade em instituições
como as fábricas, hospitais, escolas, universidades e etc., na medida em que transforma a
criminalidade numa engrenagem essencial da maquinaria do poder disciplinar que permeia
por uma rede de instituições e práticas de poder-saber que não tem simplesmente a função
primária de sancionar, mas também de produzir efeitos de subjetividades. Os mecanismos de
punição neste sentido, ganham uma “função social complexa” como táticas políticas que
investem sobre o corpo efeitos positivos da tecnologia de poder e não necessariamente se
opera através da violência ou efeitos “repressivos”. A positividade das técnicas punitivas nas
relações de poder produzem a realidade e a verdade “na alma do indivíduo” antes de reprimir
e ideologizar, portanto, ela seria também uma tecnologia moral, vindo a produzir
comportamentos em indivíduos e grupos sociais e não somente restringindo ou controlando
suas ações.
Existem aqueles que criticam o sistema penal brasileiro opondo a legalização da pena
de morte aos valores de uma “nação moderna”, a qual deveria se valer de métodos punitivos
com dispositivos mais sofisticados e efeitos positivos de humanização da penalidade, ao invés
de “regredir” com a adoção da pena capital que comprometeria o “processo civilizador” da
modernidade (ELIAS, 1993) ao retroceder à violência e ao ciclo de ações violentas. Uma
sociedade dita “civilizada” rejeita em teoria qualquer punição que inflija dor e o uso
indiscriminado da violência que supostamente não são mais toleradas no cotidiano da esfera
pública. Se caso vierem apoiar a pena de morte, “toleram” apenas por meio da injeção letal
em vez de cadeira elétrica, um método bastante sugerido pela maioria da população.
Por outro lado, há também os sujeitos que incorporam os símbolos diários das ações
violentas por meio de fetiches e modas massificadas pelo consumo hedonista, se satisfazendo
com uma estetização da violência, por exemplo, através de adesivos de carros que simulam
furos à tiros de armas, adestramento de pitbulls, imagens marciais estilizadas, cultivo
narcisista à músculos, ascéticas marcações dos corpos por tatuagens e piercings, músicas pop
erotizadas e ostentativas (seja qual for o seu gênero musical), filmes, jogos eletrônicos,
desenhos animados e etc. A violência tornou-se líquida ou um significante flutuante do
“sonho moderno” de publicidade e infoentretenimento. A partir das práticas positivas de
poder não são apenas produzidos os prazeres, saberes, discursos e subjetividades, como
também os emblemas e símbolos que revelam os sinais ou os indícios de imaginários e
mentalidades (GINZBURG, 1989).
Assim como Foucault, que analisou a passagem dos rituais públicos de punição física
para as punições privadas e disciplinares que deixam de ser expostos como espetáculo público
quando a pena do suplício passa da marcação de corpos para o disciplinamento da alma e do
corpo dos indivíduos, David Garland (1995) estuda o refinamento das técnicas punitivas, que
a partir de um processo civilizador das sensibilidades e mentalidades retiram da esfera pública
a percepção do sofrimento dos condenados, permanecendo de maneira mais sutil, devagar e
duradouro sem que a própria sociedade tome conhecimento:
No Brasil, apesar das estratégias de reforma e flexibilidade das penas serem correlatas
aos arranjos democráticos de participação cidadã que vieram a ampliar os mecanismos de
punição e controle do Estado ao produzir um consenso de tomada de decisão dos direitos e
exceção à penalidade no comportamento de indivíduos e grupos, com isso, em negociação
com as normas e práticas de poder das instituições sociais e, sobretudo do próprio sistema
penal, elas coexistem com as diversas percepções que se tem no âmbito de sociabilidade em
relação à aplicação da pena capital como uma abordagem truculenta da punição e inflição da
dor sobre o corpo, tida como medida necessária para se punir democraticamente os
criminosos e resolver o problema do crime e da violência na vida social brasileira.
14
Artigo de Edson Passetti intitulado de “Punição e Sociedade de Controle”.
com os crimes espetacularizados nos meios de comunicação de massa. Essa posição é
defendida pelo advogado e secretário da Segurança Pública Miguel Reale Júnior publicada
pela Folha de S. Paulo em 20 de abril de 1991 durante o governo Montoro:
Percebe-se no discurso dos defensores dos direitos humanos e oponentes à pena capital
que a violência e a punição não devem destituir-se da racionalidade política de Estado. Para se
fundamentar um sistema de penalidade o uso da violência estatal não foi devidamente
desconsiderado, sustentando assim, as implicações entre uma suposta força legítima e o
projeto genocida de Estado que percorreu ao longo de nossa trajetória histórica a partir de um
sistema penal colonial-mercantilista, imperial-escravista, republicano-positivista e o
contemporâneo-neoliberal15. É interessante destacar a maneira como o secretário da Justiça se
refere aos indivíduos envolvidos com o debate público sobre a pena de morte em plebiscito.
Eles são representados como incapazes de tomarem decisões racionais por si próprios junto
com suas escolhas, pois estariam sob influência da “dramatização da violência” nos
programas de televisão pela qual poderiam ser movidos por um “embate emocional”. De
qualquer forma, essa visão reproduz estereótipos sobre os sujeitos ao tratá-lo como um ser
bestializado, irracional e expectador passivo diante dos veículos de informação e do debate
político.
Há uma tensão no debate brasileiro sobre a defesa dos direitos humanos e o apoio da
pena de morte em relação aos métodos de punição e seus procedimentos. Para uns, eles são
15
Em torno das questões a respeito da existência de sistemas penais de caráter genocida na realidade histórica
brasileira e que articula variáveis racistas para aplicação de políticas criminais, ver os estudos de Ana Luiza
Pinheiro Flauzina que analisa historicamente os sistemas penais no Brasil, especificamente no livro “Corpo
Negro Caído no Chão: O Sistema Penal e o Projeto genocida do Estado Brasileiro”, ed. Contraponto, 2008.
visto sob o ponto de vista da lei, da justiça e do sistema judiciário. Para outros, associados à
idéia de execução sumária e imediata, vingança individual e coletiva e inflição de dor sobre o
corpo desprotegido de direitos. Defensores de direitos humanos criticam o sistema judiciário e
penitenciário com vistas a reformá-lo sempre na perspectiva de sua legitimidade, bastante
comprometida por grande parte dos segmentos sociais. Enquanto os que são a favor da pena
capital criticam os disfuncionamentos do sistema judiciário e das prisões para organizar
políticas que poderiam ignorar totalmente qualquer ordem legal. Em seus aspectos culturais, a
punição tornou-se aceita como práticas disciplinares, a mesma lógica que se usa para bater em
crianças para impor limites é justificada em argumentos pedagógicos da pena de morte como
uma metodologia de dar exemplo e impor limites ao crime. O disciplinamento e o uso da dor
como práticas punitivas que infligem castigo e sofrimento ao corpo exposto às intervenções
físicas ilimitadas, parece terem sido transformadas em algo corriqueiro e tolerados
normalmente não só contra os criminosos, mas também contra crianças, idosos, mulheres,
negros, pobres e “loucos”, bem como a naturalidade e a facilidade que as pessoas têm de falar
que vai tirar a vida dos outros, quando não se elegem ao primado de executor direto, mandam
a morte ou aprovam em nome da ordem social, moral, religiosa, nacional e securitária.
CAPÍTULO II
O ESTADO DE EXCEÇÃO COMO PARADIGMA DE GOVERNO: A DECISÃO DO
PODER SOBERANO NO CONTEXTO BIOPOLÍTICO DE “GUERRA ÀS DROGAS”
NO BRASIL
Começarei com o seguinte questionamento: Por que no Brasil, após uma transição
conservadora para um suposto Estado Democrático e de direito, o estado de exceção foi
mantido como um dispositivo metajurídico na Constituição de 88 como uma disposição
constitucional do Estado para se operar uma política antidrogas na produção legislativa
nacional e infraconstitucional e que hoje se constitui em conjunto com o ordenamento de
controle social como um paradigma bélico de governo em intervenção à determinados
espaços estratégicos nas cidades? E que a regra da exceção se torna vigente na violência
institucional, sobretudo nas atividades letais das forças policiais no combate às drogas e no
controle às práticas consideradas ilícitas, vem se configurando e sendo aplicada como uma
técnica mortífera – seria uma tanatopolítica (AGAMBEN, 1985), ou seja, uma política
voltada para a morte ou a vida exposta a ela, assim, consiste em um sistema político-
institucional que opera a prática de matar para se manter a ordem social através da força de
lei/sem lei – do poder soberano no contexto biopolítico das sociedades contemporâneas?
Podemos constatar essa metáfora bélica do estado de exceção manifestada sob a forma
de “guerra às drogas” na cidade do Rio de Janeiro16. Os dispositivos de controle social nas
sociedades contemporâneas produzem discursos para determinados fármacos nomeados como
“drogas”17. Como mercadorias em um regime jurídico diferenciado, o mercado das “drogas”
teriam a capacidade de promover um sistema de poder que operaciona constantes situações de
emergência e também os operadores ilícitos que poderiam proporcionar e construir um “poder
paralelo” ao Estado.
Segundo o SENAD (Secretaria Nacional Antidrogas), o tráfico de drogas internacional
em suas modalidades atuais agrega práticas e atividades externas para sua rede de ilícitos, se
configurando num sistema extremamente complexo de redes criminosas, que foi categorizado
pelos organismos de segurança como “crimes conexos” o qual são apreciados como
externalidades da atividade de tráfico de drogas. Tal categoria reduz, assim, outras redes de
ilícitos – como por exemplo o de roubo de celulares e automóveis, ou de seqüestros
relâmpagos – a atividades subsidiárias do “tráfico de drogas”. Dessa forma, para os
dispositivos institucionais de controle e organização do espaço urbano, a “boa ordem na
Pólis” se encontra ameaçada pelos efeitos de violência caótica, desestabilização das
instituições da sociedade civil e do Estado de direito e suas crises de autoregulação e as
fragilidades da segurança pública em que o tráfico de “drogas” veio a promover nas cidades.
Segundo relatório da UNODC (sigla que significa em português: Escritório das
Nações Unidas para Drogas e Crimes):
16
Sobre poder soberano, controle biopolítico, “guerra às drogas” e o estado de Exceção como dispositivo de
controle social a partir da política antidrogas no Brasil, ver a dissertação de mestrado de André Saldanha Costa
(2007) intitulada como “A Regra da Exceção: Poder Soberano e Biopolítica na “Guerra às Drogas”.
17
Segundo a concepção da criminóloga Rosa Del Olmo este conceito ou palavra não tem uma definição, sendo
impreciso por excessivas generalizações, “por que em sua caracterização não se consegue diferenciar os fatos
das opiniões nem dos sentimentos. Criam-se diversos discursos contraditórios que contribuem para distorcer e
ocultar a realidade social da ‘droga’, mas que se apresentam como modelos explicativos universais. (...) a palavra
‘droga’ não pode ser definida corretamente porque é utilizada de maneira genérica para incluir toda uma série de
substâncias muito distintas entre si, inclusive ‘em sua capacidade de alterar as condições psíquicas e/ou físicas’
que tem em comum exclusivamente a o fato de haverem sido proibidas” (DEL OLMO, 1990, p. 22).
18
Essa informação pode ser extraída no site www.unodc.org
Apesar dos dados levantados pelos órgãos internacionais para o combate e controle de
drogas afirmarem que o Brasil tem uma demanda considerada moderada em relação a outros
países ocidentais e sulamericanos, os efeitos produzidos pelas técnicas de redução da oferta e da
demanda, anunciadas nos estatutos jurídicos em regência nacional e internacional, estabeleceu o
que poderíamos chamar de “guerra civil não declarada”. É a partir daí que a violência institucional
em controle de certas atividades consideradas ilícitas parece não se constituir como uma exceção,
mas se torna no decorrer da história uma regra das instituições no Brasil mobilizadas para o
combate às drogas, e nunca é demais mencionar a realidade dos altos índices de letalidade da
atividade policial em meio a esse processo.
Utilizando o conceito de Willian da Silva Lima (1991), as atividades ilícitas são
praticadas no Brasil como “técnica de sobrevivência na adversidade” ou “metodologias de
subsistência” diante de uma situação de exclusão sumária do processo produtivo legal e na
periferia do capitalismo. Entre essas técnicas cotidianas de subsistência se encontram as
práticas sociais que se expressam sob a forma do “tráfico” de drogas, a prostituição e o
aliciamento, a cafetinagem, o “jogo do bicho” considerado exploração de jogos ilegais, o
comércio ambulante dos camelôs, guardadores de automóveis, exploração de menores e o
trabalho infantil. Essas práticas na maioria das vezes são apropriadas pelas camadas sociais
que se encontram na lógica ambivalente da inclusão-excludente do capitalismo, sobretudo nos
aglomerados urbanos denominados como favelas e que são comumente estigmatizados como
“classes perigosas” e lugares “anômicos” no interior de uma hipotética “cidade ordenada e
legal”. As visões criminalizantes ou vitimizadoras tendem a enxergar esses espaços como
segregados na cidade e não ligadas ao devir urbano da sociedade em seu todo.
Os grupos sociais que compõem e habitam os espaços favelizados são constantemente
pressionadas pelas medidas de lei e ordem reforçadas estrategicamente em áreas sobre a qual
a “vulnerabilidade” se tornou um espaço de intervenção da “inteligência” de contenção dos
“riscos” em que projetam o imaginário social da exclusão e do locus da “desordem” e do
crime, por isso sendo o alvo de um rigoroso controle social exercido sobre estas populações.
Conforme analisa Cerqueira Filho (2002), os dispositivos de controle social postos
sobre essas “populações e suas atividades ilícitas”, adotaram um sistema institucional que
opera sob a forma de uma “máquina mortífera”. Este caráter mortífero do Estado,
principalmente desenvolvido na política antidrogas na cidade do Rio de Janeiro nos últimos
vinte anos, demonstra a insuficiência das tentativas empreendidas por diversos autores de
fornecer limites ao poder soberano, prevenindo-o do genocídio e regular a sociedade civil a
partir da institucionalização do “monopólio da violência legítima do Estado” (tal qual se
preocupou Max Weber).
Assim, os direitos constitucionais que seriam marcos jurídicos que procuram
estabelecer um conjunto mínimo de regras para ordenar, garantir, proibir e mediar os conflitos
entre o Estado e a sociedade civil, no atual estado de exceção esses ordenamentos se
processam permanentemente no sentido de permitir sem restrições os agentes estatais de
operarem uma “guerra civil não declarada” contra segmentos sociais específicos da cidade
nos interstícios da transição conservadora em via para um suposto Estado Democrático e de
direito durante a abertura política, lenta e gradual à Nova República. Nesta transição, o estado
de exceção atuante no contexto do regime militar foi conservado como um dispositivo
metajurídico da política antidrogas para se operacionar um combate irrestrito ao
“narcotráfico”. Contudo, em referência às análises do jusfilósofo italiano Giorgio Agamben
(2002; 2004), o estado de exceção permaneceu como um dispositivo político-jurídico e social
nas democracias ocidentais. Trata-se de dizer que, o estado de exceção perdurou após a
redemocratização brasileira não como uma medida provisória ou emergencial, e sim como
uma estrutura político-jurídica estável que se manteve na legislação e na ação da política
antidrogas se configurando numa técnica de governo e um dispositivo de controle social que
procura estabelecer formas de assujeitamento irrestrito ao poder soberano e construir uma
organização biopolítica da sociedade através de uma política voltada para a morte inscrita na
metáfora bélica de “guerra às drogas” na contemporaneidade.
Autores como Cerqueira Filho e Neder (1980), ao analisarem o processo de abertura
política, atentam para o modo em que se configuravam as formas de regulação da sociedade a
partir do processo de transição política. Segundo eles, a percepção da violência urbana e o
tratamento convencional das agências do Estado no controle da criminalidade nos anos 80,
fizeram reportar à sociedade civil sua própria condição de vulnerabilidade diante do uso
excessivo da força nas novas modalidades de violência institucional em procedimento para se
reprimir a criminalidade urbana.
Devido o entusiasmo vivido no processo de transição política, Cerqueira Filho e Neder
nos chamam a atenção para os aspectos tipicamente autoritários e conservadores que se
camuflavam no interior da sociedade brasileira, desmascarando os estratagemas da
redemocratização no que se refere ao fenômeno crescente da violência no meio urbano. Em
meio às excitações da época, foram negligenciados ou postos em silêncio as práticas de
autoritarismo no interior do regime pretensamente democrático na qual a percepção do
crescimento da violência urbana indicava a transferência para a atual conjuntura de transição
ao “retorno da democracia”, de um certo modus operandi de um sistema político-institucional
e estrutural característicos dos anos da ditadura. Portanto, a análise das práticas discursivas da
política antidrogas no período da redemocratização brasileira consiste em investigar as
permanências do estado de exceção como regra e dispositivo político-jurídico que permite a
existência de práticas autoritárias simultâneas e coabitadas no interior dos regimes
democráticos, principalmente entre as práticas institucionais policiais o qual (re)direcionaram
suas estruturas normativas e autoritárias a partir do aumento dimensional desenvolvido pelo
mercado capitalista das drogas que serviram de canal para a configuração de um sistema de
poder na atualidade.
O mercado internacional de drogas articula um processo produtivo industrial e
também artesanal e semi-artesanal no conjunto diversificado de suas atividades e operações,
cuja circulação, distribuição e consumo em intercâmbio com uma mercadoria proibida na
maioria das sociedades, estabelecem a mobilização da chamada “economia subterrânea”. Esse
tipo de economia se caracteriza, por exemplo, a partir de distintos mecanismos de
acumulação, combinação de formas de assalariamento, semi-assalariamento e pagamentos de
toda a ordem; na geração de uma renda que remunera diferentes suportes e atividades
subsidiárias à rede do tráfico de drogas. Ou seja, essas atividades se dimensionam sob a forma
de abastecimento de armas, manutenção de milícias locais particulares, treinamento e
formação de atiradores profissionais, tudo para se manter e ampliar a rede de colaboradores
que são incumbidos de facilitar o fluxo ou a transportação da droga no uso variado de meios
para fazer circular a mercadoria nas fronteiras entre os países. Cabe analisar que, para o
mercado de drogas garantir seus postos privilegiados de circulação, foi necessário consumir
um enorme volume de capitais para se produzir campos particulares de pouso, o que
poderíamos destacar uma precisa funcionalidade corrupta por parte dos aeroportos, portos e
zonas aduaneiras e alfandegárias em relação com a rede complexa da “economia subterrânea”
(LABROUSSE, 1994; SALAMA, 1994; KOZEL & LAMBERT, 1992; ARRIETA e outros,
1991; SCHIRAY, 1989,1992 e 1994; FONSECA, 1992; ADORNO, 1996).
As estratégias de corrupção desempenhada por essas sedes que exercem papéis no
circuito produção/circulação/consumo em conexão com a economia subterrânea e a oficial são
raramente colocadas sob suspeição, ainda mais a respeito do papel fundamental da circulação
monetária nessa economia subterrânea, uma vez que a “lavagem” de dinheiro opera redes
financeiras complexas em função vitalícia ao tráfico de drogas. Daí porque seria pertinente
indagar sobre qual o papel desempenhado pelas instituições bancárias em cumplicidade com o
narcotráfico, até hoje muito pouco questionado (ARLACCHI, 1992; LEWIS, 1994;
ADORNO, 1996).
Outro aspecto a acentuar seria a modalidade da economia subterrânea e sua dimensão
verticalizada e verticalizadora, cujo dimensionamento coloniza diferentes modalidades
delituosas, entre elas estão articuladas as práticas de roubo, seqüestro e o contrabando de
armas que alimenta o arsenal bélico para os operadores do tráfico e também proporcionar uma
fonte de renda adicional. Assim, nunca é demais ressaltar as conexões que se estabelecem
entre o narcotráfico, o mercado, o Estado e as micro-relações e os emergentes desarranjos no
campo social. O que era antes reconhecido distintamente como uma ordem legal e os
ilegalismos, trabalho e delinqüência, hoje o tráfico de drogas promoveu uma
indiscernibilidade a essas tradicionais distinções. Essa zona de indistinção que o tráfico
organiza, pode ser percebida em suas estratégias de aliciamento, no modo como ele recruta
massivamente os jovens como trabalhadores assalariados sob as perspectivas e promessas de
ascensão social na escala da desigualdade e um meio rápido e eficaz para se alcançar um
enriquecimento de “ganho fácil”, assim, muito mais eficiente e pragmático do que o ganho
salarial do operário industrial, de construção civil, professor, empregado estatal ou gerente
multinacional. Com a difusão de armas e o desenvolvimento de uma economia estruturada na
comercialização das drogas articulada ao tráfico de nível internacional, a juventude dos
bairros populares se viram pressionadas pela torrente de desemprego e de subemprego
crônicos no capitalismo moderno, passaram a enxergar o tráfico como alternativa, meio de
sobrevivência, culto aos valores do código de honra masculino e linha de escapatória à
miséria do cotidiano. A repressão policial se associa ao crime organizado produzindo efeitos
que pouco influenciam nos mecanismos dessa engrenagem econômica, resultando nos
vínculos estabelecidos entre o bandido pobre e a corrupção policial como componentes dessa
rede maquínica:
O tráfico se converte num atrativo de concentração de lucros para todos aqueles que
estão envolvidos em suas atividades, seria um ramo de negócios sem as limitações de leis
trabalhistas ou impostos. Na microfísica deste empreendimento capilarizado em escala
internacional e que amplia suas redes em espaços favelizados e bairros pobres na cidade,
forja-se no universo simbólico dos envolvidos com o tráfico a disputa pelo poder
independente dos postos que vem a se ocupar a partir da competitividade e o individualismo
como meio instrumental para o sucesso oferecido, segundo as disposições que se tem para
assaltar como medida necessária para a manutenção do comércio ou matar em garantia à
condição básica daquele que se situa na posição do “bem-sucedido” às custas do poder (de
fogo).
Conforme Alba Zaluar (1994), ao relatar a cultura violenta e guerreira, o estilo de
poder e o individualismo moderno nas favelas e bairros pobres no Rio de Janeiro, analisa que:
Homo sacer é, portanto, aquele que o povo julgou por um delito; e não
é lícito sacrificá-lo, mas quem o mata não será condenado por
homicídio; na verdade, na primeira lei tribunícia se adverte que ‘se
alguém matar aquele que por plebiscito é sacro, não será considerado
homicida’. Disso advém que um homem malvado ou impuro costuma
ser chamado sacro (AGAMBEN, Op. cit., p. 79 [tradução: p. 196]).
Isso nos faz lembrar uma seguinte exortação difundida em um lema de autoritarismo
que ficou conhecido a partir das palavras de um político local na cidade do Rio de Janeiro que
foi proferido como “bandido bom é bandido morto”. Portanto, pretenderei discutir o modo
como o sistema de drogas e o processo histórico da legislação antidrogas estabeleceram um
estado de exceção permanente em vigor no ordenamento jurídico que propõe a “redução da
oferta e da demanda por drogas” como dispositivo de controle social desenvolvido nos
projetos políticos do poder soberano na medida em “que seres humanos fossem tão
integralmente privados de seus direitos e de suas prerrogativas, até o ponto em que cometer
contra eles qualquer ato não mais se apresentasse como delito (a esta altura, de fato, tudo
tinha-se tornado efetivamente possível)” (ibidem, p. 178).
O estado de exceção foi criado pela Assembléia Constituinte Francesa em 1791 como
um mecanismo jurídico nomeado de “estado de sítio” – quando surge a idéia de inimigo
19
“A sociedade de controle, em contraste com aquela (que se desenvolve nos limites da modernidade e se abre
para a pós-modernidade) na qual os mecanismos de comando se tornam cada vez mais ‘democráticos’, cada vez
mais imanentes ao campo social, distribuídos por corpos e cérebros dos cidadãos. Os comportamentos de
integração social e exclusão próprios do mando são assim cada vez mais interiorizados pelos próprios súditos. O
poder agora é exercido mediante máquinas que organizam diretamente o cérebro (em sistemas de comunicação,
redes de informação etc.) e os corpos (em sistemas de bem-estar, atividades monitoradas, etc.) no objetivo de um
estado de alienação independente do sentido da vida e do desejo de criatividade. A sociedade de controle pode,
dessa forma, ser caracterizada por uma intensificação e de uma síntese dos aparelhos de normatização e
disciplinaridade que animam inteiramente nossas práticas diárias e comuns, mas em contraste com a disciplina,
esse controle estende bem para fora os locais estruturados de instituições sociais mediante redes flexíveis e
flutuantes” (HARDT & NEGRI 2005, p. 42-43).
criminalizado em nome da “humanidade” – visando a suspensão da ordem jurídica para
estabelecer uma medida excepcional em casos extremos, sendo aplicado na Alemanha como
política de governo um pouco antes da eclosão da primeira guerra mundial.
No decorrer dos séculos XIX e XX, o uso do estado de sítio como operação jurídica
foi se desenvolvendo em diversas “democracias Ocidentais” e seus governos constitucionais,
por exemplo, na Alemanha, Itália, Reino Unido e no EUA. Para esses governos o estado de
sítio era utilizado como um dispositivo na lei para a contenção das várias situações de caos,
desordem ou emergência política e econômica.
Agamben analisa as permanências do dispositivo do estado de exceção nos regimes
democráticos o qual veio a se transformar em uma técnica de governo na perda de seu caráter
provisório em apelo à segurança, em defesa da paz e da sociedade, e no combate à violência,
que leva o poder soberano a agir fora dos mecanismos jurídicos e suspender o direito, a norma
e a lei. Segundo ele, o estado de exceção em seu funcionamento deixa de ser um dispositivo
de excepcionalidade para se tornar um paradigma de governo, funcionando como regra geral
sob a justificativa de instauração da ordem soberana. Contudo, o que era pra ser uma medida
emergencial funciona como “uma técnica de governo [que] ameaça transformar radicalmente
– e, de fato, já transformou de modo muito perceptível – a estrutura e o sentido da distinção
tradicional entre os diversos tipos de Constituição” (AGAMBEN, 2004a, p. 13).
O trabalho de Agamben procurou elaborar um percurso histórico-filosófico para
entender a problemática do estado de exceção a partir da confluência entre os estudos de
Thomas Hobbes, Carl Schmitt, Walter Benjamin, Hannah Arendt, Michel Foucault, Slavoj
Zizek, Carlo Ginzburg e entre outros. Convém destacar o pensamento de alguns autores que
foram as principais referências de Agamben, entre elas se encontram as obras de Foucault,
Arendt e Benjamin. Agamben se propôs a continuar o legado deixado por Foucault e Arendt
para possibilitar sua analítica sobre as questões da assunção da vida pelo poder que a expôs
numa categoria de “vida nua”. Portanto, falar da obra dele é falar indiretamente sobre os
trabalhos desses dois filósofos, fazendo de sua obra o canal de conversação entre eles.
Durante os cursos no Collège de France em 1977-78, Foucault apresenta a idéia de
Biopoder para propor um estudo sobre o surgimento de uma nova tecnologia de poder no
século XVII que relacionava os problemas entre “segurança, território, População” (2008), ou
seja, seria uma racionalidade governamental que desloca os mecanismos e técnicas utilizadas
pelo poder soberano para o princípio de autolimitação da governamentalidade20 liberal e
20
A respeito das questões da governamentalidade, surgimento de uma nova racionalidade governamental,
governo dos homens, organização do pastorado e as principais características da razão de Estado em meados dos
séculos XVII e XVIII, procure estudar o curso proferido no Collège de France nos anos de 1977-1978 por
Michel Foucault, “Segurança, Território, População” recentemente traduzido para o português.
neoliberal contemporânea, uma razão governamental para se “governar o menos possível para
se governar melhor”. No ano seguinte, Foucault se dedicou a dar continuidade ao curso
denominado como “nascimento da biopolítica” (2008), procurando entender como a vida e a
população se tornaram problemas específicos para essa racionalidade política, assim,
propondo “estudar o liberalismo como moldura geral da biopolítica”.
No curso de 1977, Foucault analisou a gênese de um saber político a partir da noção
de “governo”, procurando estudar os procedimentos e meios utilizados que asseguraram numa
determinada sociedade o “governo dos homens”. Em seguida, o filósofo francês nos mostra
como a noção de população foi se colocando como uma questão central aos mecanismos de
regulação da “razão de Estado”21. Não se tratava da substituição de um “Estado-territorial”
para um “Estado-população”, mas sim uma nova “arte de governar” cuja racionalidade produz
novas técnicas ao exercício do poder soberano. Foucault envereda suas análises sobre os
procedimentos de governo a partir das sociedades gregas, perpassando o tema do poder
pastoral no Oriente, sobretudo na sociedade hebraica, a introdução desse tipo de poder no
Ocidente pelo cristianismo, até chegar à crise geral do pastorado com a emergência de novas
maneiras de “governar”. A partir disso, se dedica totalmente ao estudo sobre a biopolítica para
constituir apenas sua introdução, procurando compreender o tema da população no quadro da
racionalidade política do “liberalismo”.
Com o conceito de biopolítica, Foucault se refere a uma tecnologia política das forças
estatais que desde o século XVIII tratou de gerir a população como uma estratégia geral de
poder e racionalizar os problemas próprios aos fenômenos populacionais como um conjunto
de seres vivos em coexistência; de se ocupar das características biológicas dentro de uma
estratégia política e uma questão econômica e constituir a população como “espécie-humana”:
por isso foi preciso nas sociedades ocidentais modernas o biopoder produzir um conjunto de
mecanismos que se ocupava da gestão de políticas de saúde, diminuição da mortalidade
infantil, seguro-velhice, contenção da morte jovem, prevenção de epidemias, diminuição de
taxas de endemias, intervenção nas condições de vida para normalizar a alimentação, o
habitat, a organização das cidades, asseguração de equipamentos médicos suficientes,
problemas de higiene, natalidade e das “raças”. Foucault encontra no termo alemão de
21
“A ‘razão de Estado’ não é o imperativo em nome do qual pode-se ou deve-se infringir todas as outras regras;
é a nova matriz de racionalidade segundo a qual o Príncipe deve exercer sua soberania governando os homens.
Está-se longe da virtude do soberano de justiça, longe também dessa virtude que é a do herói de Maquiavel. (...)
Assim a razão de Estado, fora das teorias que a formularam e justificaram, toma forma em dois grandes
conjuntos de saber e de tecnologia políticas: uma tecnologia diplomático-militar que consiste em assegurar e
desenvolver as forças de um Estado por um sistema de alianças e pela organização de um aparelho armado; (...)
A outra é constituída pela ‘polícia”, no sentido que então se dava a esse termo: o conjunto dos meios necessários
para fazer crescer, no interior, as forças do Estado” (FOUCAULT, 1997, p. 83).
Polizeiwissenschaft para se referir ao fenômeno que estava interessado, este termo designa
uma teoria e a análise de:
A biopolítica seria assim, o poder que “se situa e exerce ao nível da vida, da espécie,
da raça e dos fenômenos maciços de população” (FOUCAULT, 1988, p. 129) e não mais uma
questão simplesmente jurídica da soberania, mas uma questão biológica se refletindo no
político, de corpo como máquina de adestramento, de disciplina e de anátomo-política para os
controles reguladores no corpo-espécie, de nascimento, de mortalidade, do nível de saúde
individual e coletiva, das campanhas e planejamentos de práticas sanitaristas, da longevidade,
da habitação, migração, medição estatística e demográfica e de investimento ao ser vivo no
conjunto biológico populacional: administração dos corpos pela gestão calculista da vida,
mais do que da ameaça da morte. Para Foucault, é a partir desta nova governamentalidade22,
que emerge no decorrer do século XVIII, que a estratégia biopolítica se desloca para além da
soberania, dando passagem ao capitalismo de investir sobre o corpo enquanto força de
produção e força de trabalho e sobre a vida da própria sociedade, ajustando os fenômenos da
população aos processos econômicos:
22
Governamentalidade para Foucault seria “a maneira como a conduta de um conjunto de indivíduos esteve
implicada, de modo cada vez mais marcado, no exercício do poder soberano”. Estudá-la seria uma questão de
abordar o problema do Estado e da população; sair da problemática “institucional-centrismo” para substituí-la a
uma visão global da tecnologia de poder; passar para o ponto de vista externo das estratégias e táticas, e não
apenas o ponto de vista interno das funções; passagem para o exterior da relação ao objeto dado no sentido de
recusá-lo como algo natural e pronto na história. Essa palavra para Foucault é entendida como “o conjunto
constituído pelas instituições, os procedimentos, análises e reflexões, os cálculos e as táticas que permitem
exercer essa forma bem específica, embora muito complexa, de poder que tem por alvo principal a população,
por principal forma de saber a economia política e por instrumento técnico essencial os dispositivos de
segurança” (FOUCAULT, 1997, p. 82; 2008, p. 143).
A modernidade foi o momento pela qual a perspectiva biopolítica toma como objeto
de poder a vida humana no centro de suas estratégias, de suas técnicas de controle, de
esquadrinhamentos, de docilização dos corpos pelo disciplinamento se capilarizando para o
controle normalizador dos múltiplos corpos e não apenas individualizados. Neste contexto
biopolítico, vale ressaltar que a medicina social nasce como um investimento complementar
do próprio capitalismo sobre a vida dos indivíduos e sobre os cálculos estratégicos de
regulamentação populacional gerenciados pelo poder estatal. Nas palavras de Foucault, “a
medicina moderna é uma medicina social que tem por Background uma certa tecnologia do
corpo social”, seja ela consolidada como medicina do estado, na Alemanha, ou como
medicina urbana, na França, e a medicina da força de trabalho na Inglaterra.
Assim, na biopolítica a vida passa a ser administrada, gerida e distribuída sob a regra
do Estado que em nome do “futuro da espécie”, do “bem comum”, da “saúde das populações”
e da “vitalidade do corpo social”, investe sua regulamentação em “cuidado” à saúde e higiene
das pessoas. Foucault demonstra o modo como as estratégias de poder da disciplinarização do
corpo individual, que surgiu nos fins do século XVII, se deslocam para o “cuidado” de um
novo corpo, não individualizado e com uma escala de normalização geral: será a noção de
população na qual a biopolítica irá trabalhar. Em suas palavras, Foucault denomina a noção de
população como um corpo “múltiplo, com inúmeras cabeças”. Na mesma direção, a
biopolítica não apenas disciplina corpos individuais, como também controla a população
segundo padrões de normalização investidos sobre a vida para forjar comportamentos
convenientes e fabricar corpos ajustados à processos desejados.
As práticas de poder de normalização e suas técnicas de esquadrinhamento estipulam a
seleção daqueles que em prol da vida de uns, outros terão que morrer; são os padrões
normalizadores do biopoder que em nome dos que devem viver determina-se quem deve
morrer: “a morte do outro, a morte da raça ruim, da raça inferior (ou do degenerado, ou do
anormal), é o que vai deixar a vida em geral mais sadia; mais sadia e mais pura”
(FOUCAULT, 2002, p. 305).
Nesta perspectiva, a reflexão foucaultiana sobre a analítica do poder nos indica um
deslocamento das práticas repressivas e negativas de poder para suas estratégias produtivas. O
aspecto positivo de poder é entendido como prática social que produz saberes, estimula e
multiplica discursos e práticas, orienta instituições, instiga pensamentos e prazeres, produz
subjetividades. Foi a partir dessa concepção produtiva de poder que Foucault cunhou o
conceito de biopoder, cujo exercício abrange a gestão da vida em si (o bios) como objeto de
poder. A sociedade disciplinar23 exerce o poder através da vigilância, da prevenção e do
tratamento de comportamentos desviantes, pervertidos ou potencialmente perigosos ao nível
das relações individuais, sobre o corpo do indivíduo. Enquanto que o biopoder numa relação
global produz em conjunto com as tecnologias disciplinares, a complementaridade das
tecnologias de regulação da população e maximização da vida do corpo social.
Para Michael Hardt e Antonio Negri (2005), o “nascimento da biopolítica” marca o
momento histórico onde:
23
“Sociedade disciplinar é aquela na qual o controle social é construído mediante uma rede difusa de
dispositivos ou aparelhos que produzem e regulam os costumes, os hábitos e as práticas produtivas. Consegue-se
pôr para funcionar essa sociedade, e assegurar obediência a suas regras e mecanismos de inclusão e/ ou exclusão,
por meio de instituições disciplinares (a prisão, a fábrica, o asilo, o hospital, a universidade, a escola e assim por
diante) que estruturam o terreno social e fornecem explicações lógicas adequadas para a ‘razão’ da disciplina. O
poder disciplinar manifesta-se, com efeito, na estruturação de parâmetros e limites do pensamento e da prática,
sancionando e prescrevendo comportamentos normais e/ ou desviados” (HARDT & NEGRI, 2005, p. 42-43).
proteger o corpo social, muito mais do que uma questão política, mas uma questão biológica e
de cuidado da saúde da população:
Portanto, não cabe mais ao poder funcionar apenas como um “mecanismo de retirada,
de subtração, de extorsão, seja de riqueza, de tempo, de corpos, de vida”, assim como era
exercido no regime de soberania. O biopoder irá tratar de “gerir a vida, mais do que exigir a
morte. E quando exige a morte, é em nome da defesa da vida que ele se encarregou de
administrar” (PELBÁRT, 2003, p. 56). O poder de vida e morte da soberania sofre uma
inversão: o que era um direito político de fazer morrer e deixar viver, com a assunção da vida
no centro das decisões política, o poder passa a ser biopolítica, surge a estratégia inversa do
poder soberano de fazer viver e deixar morrer. Assim, o fazer viver e deixar morrer na
estratégia do biopoder consiste em permitir matar em nome da vida:
Em sua genealogia do poder, Foucault analisa como a guerra havia sido retomada na
forma de racismo de Estado e que somente foi possível a partir do biopoder como a
manutenção da morte possível e desejada no interior de uma política da vida, pela tomada de
poder sobre o homem enquanto ser vivo em conjunto com a “espécie”. Neste sentido,
Foucault nos mostra que no século XIX, com o “nascimento da biopolítica”, o racismo não
poderia ser considerado apenas como um fruto do ódio entre as “raças”, mas como uma
doutrina estatal, um mecanismo seletivo e genocida dos Estados modernos o qual justificavam
sua atuação violenta através do direito de eliminação da vida no “limiar da modernidade
biológica” e do ingresso da “espécie-humana” no jogo das estratégias políticas.
No decorrer do século XIX, podemos perceber a construção dos vínculos entre
biopoder, racismo biológico, evolucionismo darwinista e direito de aniquilação do outro.
Tratava-se de um racismo que foi utilizado como técnica de governo, permitindo os Estados
modernos exercerem – tanto em sua política externa quanto interna – o poder genocida da
colonização, a destruição não só do adversário político como também da “raça” adversa,
forjando os discursos de regeneração e purificação da própria “raça”. Na mesma direção,
Foucault questiona:
De acordo com Foucault, o biopoder irá exercer a função assassínia e o poder de morte
através do racismo inserido nos mecanismos fundamentais de poder do Estado. Foi a partir do
biopoder que o racismo se insere no funcionamento moderno do Estado. A primeira função do
racismo no exercício do biopoder procura estabelecer um corte entre o que deve viver e o que
deve morrer no contínuo biológico da “espécie humana”. Trata-se de distinguir, qualificar,
hierarquizar por “raças” os superiores/inferiores no interior da população enquanto campo
biológico que permite fragmentá-la para melhor subdividir em “espécie” e fazer cesuras nos
grupos em relação aos outros. A segunda função do racismo irá atuar como uma relação de
tipo biológica semelhante a uma relação guerreira e militar de enfrentamento. Nessa relação o
racismo se torna um dispositivo da sociedade de normalização, onde tirar a vida de alguém se
mostra aceitável no sistema de biopoder. A admissão do imperativo de morte, o poder de tirar
a vida dos outros e a eliminação do inimigo, não incidem apenas na vitória ou em mandar
matar os adversários políticos, mas sim eliminar a “raça” que implica num perigo biológico
externo e interno para a população em direção ao próprio fortalecimento. É pelo racismo que
o biopoder de Estado funciona sem dispensar a sua função assassínia. O poder de
normalização nesses termos passa a ser a condição do poder soberano de exercer o direito de
matar, ou melhor, de tirar a vida em meio à tecnologia normativa e asseguradora do racismo:
(...) por tirar a vida não entendo simplesmente o assassínio direto, mas
também tudo o que pode ser assassínio indireto: o fato de expor à
morte, de multiplicar para alguns o risco de morte ou, pura e
simplesmente, a morte política, a expulsão, a rejeição, etc. (ibidem, p.
306).
O exemplo por excelência desse Estado assassino e ao mesmo tempo racista, sem
dúvida, foi desenvolvido pela sociedade nazista que, segundo Foucault, foi a sociedade mais
disciplinar e mais previdenciária, porque o poder de vida e morte e o controle regulamentador
dos processos biológicos nessa sociedade, tinha se estendido para além dos limites de Estado,
sendo exercidos por uma série de indivíduos em seu todo no corpo social.
Assim como Foucault, Hannah Arendt (2004) alguns anos antes também acentuou a
apropriação da vida biológica pelo poder político nos regimes totalitários. Para ela, a
“glorificação da violência em si” no mundo moderno é procedente dessa assunção da vida no
centro dos interesses políticos, ou seja, da vida biológica sendo gerenciada politicamente pelo
poder de subordinação. Nas palavras de Arendt, no campo da política “a vida é o critério
supremo ao qual tudo o mais se subordina” (ARENDT, 2004, p. 324).
Segundo a filósofa alemã, com o surgimento dos Estados nazi-fascistas, os direitos
humanos deixaram de existir na prática, perdendo totalmente a legitimidade e o seu valor
universal. Desse modo, Arendt questionava se haveria algum sentido para a política enquanto
exercício da liberdade no espaço público no contexto dos Estados totalitários. Para analisar a
liberdade na esfera do político, ela destaca três atividades básicas que compõe a condição
humana: o labor, o trabalho e a ação. O labor seria a atividade ligada aos processos biológicos
e da preservação física do indivíduo e da espécie. O trabalho é a capacidade de produzir um
mundo artificial, está ligado ao próprio “fazer” da atividade do artesão e do artista. A ação
estava ligada à condição de pluralidade, ela era exercida a partir da liberdade na esfera do
domínio público como atividade política.
O labor e o trabalho eram executados na comunidade privada e familiar, espaço de
resolução das necessidades do tirano e da pólis. A oikia permitia as organizações despóticas
sobre as quais escravos e familiares conviviam no controle do patriarcado. Já a pólis era o
espaço de diálogo entre os iguais e livres, considerado como a esfera da ação política e do
“propriamente humano” na qual se reuniam os tiranos.
Arendt analisa as implicações da política dos iguais, cujo exercício da liberdade
consiste em privar a liberdade do outro. Portanto, era no domínio público que se exercia a
liberdade, como também era na esfera privada que se privava a liberdade. Para ela, o
problema maior da política moderna surge com o advento dos Estados totalitários, apontando
a crise da esfera pública nesse período e a decadência do espaço político quando se
despontavam espaços de privação total da liberdade. Nesse contexto, é o homo laborans que
entra na arena política, uma vida biológica e natural em primazia da ação política e sem
qualquer mediação e que, portanto, desprovida de qualquer direito e submetida a uma tirania
ilimitada:
Toda lei cria, antes de mais nada, um espaço no qual ela vale, e esse
espaço é o mundo em que podemos mover-nos em liberdade. O que
está fora desse espaço, está sem lei, e, falando com exatidão, sem
mundo; no sentido do convívio humano é um deserto. Está na essência
das ameaças tanto da política interna como da externa, com as quais
estamos confrontando desde o advento das formas de dominação total,
que elas fazem desaparecer a verdadeira coisa política tanto da política
interna como da externa. Se as guerras deviam tornar-se de novo
guerras de extermínio, então desde os romanos a coisa política
específica da política externa desapareceu e as relações entre os povos
caíram de novo naquele espaço sem lei e sem política, que destrói o
mundo e produz o deserto (ibidem, p. 123).
Assim, Arendt propõe para a política moderna uma forma de realizar operações
partindo da ampliação do espaço público, da ação política e da participação de todos na esfera
da liberdade. Essa seria a condição de pluralidade da ação humana que se realiza no âmbito da
vida ativa e participativa como uma garantia de exclusão da violência (ARENDT, 1993).
Dado o fato de que a pesquisa de Arendt não teve um seguimento, e Foucault ter
analisado as questões da biopolítica sem ao menos fazer alguma referência aos estudos da
filósofa alemã que o precedeu nas investigações sobre a tomada da vida pelo poder político no
centro de suas estratégias, Agamben aponta as dificuldades e resistências que teve esses
pensamentos de não conseguirem superar os problemas teóricos. Em sua obra intitulada de
The human condition, Arendt não faz referência aos seus estudos anteriores sobre o regime
político estabelecido pelo totalitarismo, sem atentar para as questões que envolvem a
perspectiva da ordem biopolítica da sociedade. E Foucault, curiosamente não desloca sua
investigação para as áreas por excelência da biopolítica moderna, manifestada nos campos de
concentração e na estrutura dos estados totalitários do Novecentos. No entanto, deve-se
considerar que a morte impediu Foucault de dar continuidade aos seus trabalhos dedicados a
estudar o controle biopolítico nas sociedades modernas, sendo recentemente retomado por
Agamben em seus estudos sobre o estado de exceção como paradigma de governo na
contemporaneidade. Para ele, os fenômenos político-jurídicos contemporâneos (por exemplo,
a ascensão do nazismo) estão estritamente ligados à relação entre poder soberano, estado de
exceção, vida nua e ordenamento biopolitico da sociedade24.
Em 1921 foi publicado pela primeira vez uma análise sobre a teoria do estado de
exceção elaborada por Carl Schmitt, sendo retomada com vigor após as ruínas das
democracias européias entre os anos de 1934 e 1948. Agamben faz referência às obras de
Schmitt, em particular os livros Dier Diktatur, de 1921 e o Politiche Theologie, de 1922, onde
“o estado de exceção é apresentado na figura da ditadura” (AGAMBEN, 2004, p. 53). De
acordo com Schmitt, as ditaduras e o estado de sítio podiam estabelecer a suspensão da
vigência do direito.
Segundo Schmitt (1992), o soberano era aquele que podia decidir sobre o estado de
exceção, tendo o monopólio de tomar a decisão de suspender a ordem legal se fosse
necessário25. A partir da suspensão do ordenamento jurídico, a soberania poderia decretar a
24
“Poder-se-ia dizer que o obstáculo que tradicionalmente é oposto à soberania pela necessidade de
consentimento, submissão e obediência, torna-se um adversário ativo e inelutável. Uma abordagem inicial da
questão pode ser colocada em termos daquilo que chamamos de biopoder, ou seja, a tendência da soberania para
tornar-se poder sobre a própria vida. Um novo aspecto da atual ordem global é que, bem de acordo com os
processos da globalização, ela tende a confundir as fronteiras entre as formas políticas, econômicas, sociais e
culturais do poder e a produção. Por um lado, o poder político já não se orienta simplesmente para a legislação
de normas e a preservação da ordem nas questões públicas, devendo promover a produção de relações sociais em
todos os aspectos da vida. (...) a guerra deixou de ser um instrumento da política usada como último recurso,
para tornar-se o próprio alicerce da política, a base da disciplina e do controle. (...) O poder soberano não deve
apenas dominar a morte, mas também produzir vida social” (HARDT & NEGRI, 2005, p. 418).
25
“Carl Schmitt é o filosofo moderno que mais claramente colocou o caráter central da soberania para a política,
renovando as primeiras teorias européias modernas da soberania absoluta, articuladas por autores como Hobbes e
Jean Bodin. É particularmente interessante, com efeito, a maneira como Schmitt consegue associar as diferentes
teorias medievais e feudais de soberania do antigo regime às modernas teorias da ditadura: das velhas noções do
carisma divino do monarca às teorias jacobinas da autonomia do político, das teorias das ditaduras burocráticas
às das tiranias populistas e fundamentalistas. Schmitt insiste em que, em todos os casos, a soberania mantém-se
acima da sociedade, transcende, e portanto a política baseia-se sempre na teologia: o poder é sagrado. Em outras
guerra contra seus inimigos, fundado pelo princípio do Juss Belli. Todavia, o nascimento da
ordem soberana não foi possível a partir de um contrato, mas sim da própria exceção, do
poder de decretar a suspensão da ordem jurídica sempre que quiser ou quando a paz,
entendida como homogeneidade nacional, estiver sendo ameaçada. Após a Revolução
Francesa, esse poder de decisão deixou de existir com o ocaso da soberania. No lugar da
decisão soberana surge o conceito de “guerra humanitária”, cujas justificativas de guerra não
residiam na inimizade entre os Estado, passaram a ser declaradas em prol do “bem da
humanidade”. Conforme a concepção Schmittiana, esse processo resultou na criminalização
do inimigo, ou seja, que não é mais um “inimigo do Estado”, mas da própria humanidade.
Ainda segundo o autor, esse conceito de humanidade não pode fazer a guerra pois ela não tem
um inimigo, mas essa mesma humanidade pode tirar do inimigo seu status de homem e,
assim, engendrar a guerra em extremos. Para inimigos da humanidade o ordenamento jurídico
comporta a exceção, a anomia.
De acordo com Agamben, a concepção de Schmitt sobre o estado de exceção estava
encerrada na conjuntura de “emergência” vivida na República de Weimar e comprometida
com as ideologias que serviram de justificativas para a ascensão do nazismo, no entanto,
insuficientes para suas propostas analíticas sobre a centralidade da vida biológica e natural
nos cálculos do poder soberano, da vida nua incluída no ordenamento constituinte sob a forma
de sua absoluta suspensão e abandono pelo direito, a vida no interior do campo jurídico, o
controle biopolítico26 das sociedades através do estado de exceção:
palavras, o soberano é definido positivamente como aquele acima do qual não existe poder e que portanto é livre
para decidir, e, negativamente, como é potencialmente eximido de todas as normas e regras sociais. O conceito
teológico-político de “Estado total” enunciado por Schmitt, que coloca a soberania acima de toda a forma de
poder, como única possível fonte de legitimação, desenvolve a concepção moderna de soberania em direção a
uma forma coerente com a ideologia fascista.” (HARDT & NEGRI 2005: 414)
26
“Pode-se dizer, aliás, que a produção de um corpo biopolítico seja a contribuição original do poder soberano.
A biopolítica é, nesse sentido, pelo menos tão antiga quanto a exceção soberana. Colocando a vida biológica no
centro de seus cálculos, o Estado moderno não faz mais, portanto, do que reconduzir à luz o vínculo secreto que
une o poder à vida nua...” (AGAMBEN, 2004, p. 14).
Em 1942, Walter Benjamin (1992) retoma e contrapõe algumas idéias de Schmitt,
afirmando que o estado de exceção, ao invés de constituir como uma medida excepcional,
tinha se tornado a regra, ou melhor, uma técnica de governo constitutiva da própria ordem
jurídica. Encontramos essa afirmação de Benjamin em suas “teses sobre a história”, mais
precisamente no texto da tese VIII, apresentada na epígrafe deste capítulo. Sob a ameaça de
ser preso pelos fascistas, Benjamin se suicidou em 1942:
Segundo Hardt & Negri (2005), “quando o estado de exceção torna-se a regra o tempo
de guerra é interminável, a tradicional distinção entre guerra e política fica cada vez mais
obscura” (HARDT & NEGRI, 2005, p. 33). Assim, o fato e a norma se tornam indistinguíveis
e indiscerníveis.
As ações do governo norte-americano no cenário pós-11 de setembro assinalam a
vigência do estado de exceção na política contemporânea, que em nome da democracia, as
medidas excepcionais são propugnadas como “soluções imediatas”, seja ela nas áreas
internacionais, constitucionais, penais e sociais. Os permanentes mecanismos de suspensão da
ordem jurídica estabelecido pelo estado de exceção funcionam no interior de um Estado
Democrático e de direito, aproximando-o cada vez mais às características dos estados
autoritários. As questões da segurança não se restringe ao Brasil, que o imperativo do medo se
impôs nas marcas da reclusão como a palavra de ordem da prevenção ao crime, a violência e a
insegurança social; dos carros blindados aos enclaves fortificados construídos numa cidade
que se protege no levantamento de muros, produzindo no espaço urbano e nas relações
públicas um padrão de segregação e desigualdade social reforçadas pelas escolhas de
segurança e justiça privada, compreendidas a partir dos descrédito aos aparelhos institucionais
da “ordem” judiciária e policial e o surgimento de matadores de aluguel denominados como
“justiceiros”. O paradigma da segurança se coloca como tópico principal na agenda política
dos Estados, que pretendem aumentar o “direito à segurança” (obsessão de partidos políticos
tanto de direita quanto de esquerda) relegada à dimensão criminal, diminuindo investimentos
no campo econômico e social. Tal discurso ou ideologia de mercado são convertidos a uma
gestão do medo, da insegurança e da indeterminação pela qual será necessário impor novas
medidas de segurança, mesmo que para isso seja preciso contrariar os direitos fundamentais
dos cidadãos.
No governo norte-americano, a política de ataques preventivos foi transformada em
doutrina de Estado, a guerra passa a ser estabelecida em nome da democracia e dos direitos
humanos. No processo de globalização, a política de “tolerância zero” instituída pelo prefeito
Giuliani, de Nova York, aumentou vertiginosamente a população carcerária na qual se
expandiu em escala internacional. Esses fatores implicaram no surgimento de um Estado
penal (WACQUANT, 2001), cuja relação com o desenvolvimento do neoliberalismo e a
doutrina do “laissez-faire” produz a diminuição e o enfraquecimento dos gastos e proteção
social, a manutenção das desigualdades, precariedade e pobreza massiva para operar e
enrijecer mecanismos punitivos como o principal meio de lidar com os problemas sociais, no
qual as categorias populares são os alvos privilegiados do “tratamento penalizado”. O medo
nesse processo passa a ser administrado para se manter a ordem estabelecida e estigmatizar os
grupos sociais concentrados em espaços desatendidos, reiterando o estereótipo das “classes
perigosas”. Poderíamos até afirmar que, o medo é constantemente forjado como o “fantasma
do caos” pela razão de Estado para justificar a repressão policial e militar, a criminalização da
pobreza e o controle social da população urbana.
Agamben utiliza o conceito de estado de exceção para definir um regime político
(democrático) marcado por uma zona de indistinção entre vida política e direito, fato e norma,
ordenamento jurídico e vida abandonada pelo poder soberano, portanto, indigna de ser vivida,
sem valor político algum. A guerra contra o Afeganistão ou a chamada “guerra contra o
terror” defendida como prioridade pelo Secretário de Defesa dos EUA, Ronald Rumsfeld, que
pretendia garantir os direitos humanos das vidas americanas e não de terroristas, é um
exemplo desse Estado em que prepondera uma ordem biopolítica calcada na noção de vida
nua e matável sem que se cometa um crime.
Contudo, a coexistência entre o Estado Democrático e de direito e o estado de exceção
do direito, produz um estado político de indeterminação, onde não se sabe quando funciona a
violência e quando funciona o direito, a zona de indistinção entre transgressão da lei ou a sua
execução por meio da morte. A vida como objeto do poder soberano e seu critério de decidir
se ela é útil ou não, se faz notar, por exemplo, na exortação de um jornalista brasileiro numa
entrevista à revista “época”, Paulo Francis, quando ele alega que as mortes na candelária em
1993 não foi uma chacina, mas uma “limpeza”. Os valores constitutivos da modernidade, a
universalidade dos direitos humanos e da liberdade e o direito mais fundamental entre eles
que seria o “direito à vida”, estão sendo eminentemente abandonados pelos “valores
insacrificáveis” da própria democracia, pelo ordenamento jurídico e pelo Estado. É só
verificarmos a ocorrência da morte de um brasileiro pela polícia britânica por achar que ele
era um “terrorista”, justificando seu ato através da legitimidade de segurança nacional. O
dispositivo de exceção inclui os procedimentos para a desnacionalização do cidadão que
produz um indivíduo juridicamente inominável e inclassificável por meio da destruição total
de seu estatuto jurídico. Esse dispositivo de lei foi criado pelos EUA após o 11 de setembro
pelo ato do Patriot Act I e ao Patriot Act II.
De acordo com Agamben, o homem livre não compõe a base da democracia moderna,
não é ele “com suas prerrogativas e os seus estatutos, e nem ao menos simplesmente o homo,
mas o corpus é o novo sujeito da política” (AGAMBEN, Op. cit., pp. 129-130). O que
constitui o novo corpo político e social moderno é a ascensão, a reivindicação e a exposição
da vida nua enquanto “corpos matáveis” na formação do corpo político do Ocidente. A partir
daí poderemos entender como, no século XX:
A expressão “vida nua” é encontrada nos escritos de Benjamin, que estuda a vida nua
como portadora do nexo entre violência e direito. Na interpretação de Agamben, a vida nua é
o vivente que foi abandonado totalmente pelo direito ao mesmo tempo em que é incluído no
ordenamento jurídica como a vida que pode ser banida. Ele compõe a lógica ambivalente da
inclusão-exclusão, na relação entre o político e o jurídico e entre o direito e o vivente. A vida
nua é a vida que pode ser exterminada sem que se cometa um crime, homicídio ou sacrifício.
Em termos biopolíticos, seria a vida que se pode deixar morrer, na forma de “vida matável”,
“sobra humana” e insacrificável.
Em sua análise sobre a vida nua, Agamben recorre à figura jurídica existente no antigo
direito romano, para então investigar a sua forma contemporânea: o homo sacer enquanto
vida que se tornou indigna de ser vivida tanto em relação aos vivos quanto na esfera divina,
portanto, posto para fora da jurisdição humana e privado dos direitos mais básicos de
humanidade, podendo ser assassinado e excluído sem que os rituais sagrados ou a violência
possa retirá-lo dessa condição, ao ponto de quem o matar não será condenado por homicídio.
O homo sacer é destituído da proteção jurídica, “a-bandonado” pelo soberano, despojado de
todo direito e isento de humanidade e sacralidade na medida em que o seu direito humano é
inexistente ou violável legitimamente pelo vazio jurídico.
Ao retomar a idéia de soberania, Agamben afirma que a vida no “bando soberano” se
torna uma vida nua ou vida sacra. No “bando soberano” a vida é sujeitada e exposta a um
poder de morte. A sacralidade da vida se torna matável e “insacrificável”:
O que temos hoje diante dos olhos, é, de fato, uma vida exposta como
tal a uma violência sem precedentes, mas precisamente nas formas
mais profanas e banais (...) se é verdadeiro que a figura que o nosso
tempo nos propõe é aquela de uma vida insacrificável, que, todavia,
tornou-se matável em uma proporção inaudita, então a vida nua do
homo sacer nos diz respeito de modo particular. A sacralidade é uma
linha de fuga ainda presente na política contemporânea, que, como tal
desloca-se em direção a zonas cada vez mais vastas e obscuras, até
coincidir com a própria vida dos cidadãos. Se hoje não existe mais
figura predeterminável do homem sacro, é, talvez, porque somos
todos, virtualmente, homines sacri (AGAMBEN, 2002, p. 121).
27
“A justiça é o princípio de toda a instituição divina de fins, o poder (march) é o princípio de toda a
institucionalização mítica do direito” (BENJAMIN, 1983, p. 166).
ideia das "populações descartáveis" para referir os cidadãos do
Terceiro Mundo inaptos para serem explorados como operários e
consumidores até ao conceito de "danos colaterais" para designar a
morte de milhares de civis inocentes em consequência da guerra. (...)
Tenho caracterizado esta situação como uma combinação de
democracia política com fascismo social. Uma manifestação actual
desta combinação reside no facto de a fortíssima opinião pública
mundial contra a guerra se revelar incapaz de parar a máquina de
guerra posta em marcha por governantes supostamente democráticos.
Em todos estes momentos domina uma pulsão de morte, um heroísmo
de catástrofe, a ideia da iminência de um suicídio colectivo só
prevenível pela destruição maciça do outro. Paradoxalmente, quanto
mais ampla é a definição do outro e eficaz é a sua destruição, tanto
mais provável é o suicídio colectivo. (...) O genocídio sacrificial
decorre de uma ilusão totalitária que se manifesta na crença de que
não há alternativas à realidade presente e de que os problemas e as
dificuldades que esta enfrenta decorrem de a sua lógica de
desenvolvimento não ter sido levada até às últimas consequências. (...)
Cabe sobretudo perguntar se a nova ilusão não anunciará a
radicalização e perversão última da ilusão ocidental: destruir toda a
humanidade com a ilusão de a salvar (SOUZA SANTOS, 2003, p. 13-
14).
Fica evidente o quanto a vida humana nessa situação é exposta ao estatuto de vida nua
ou vidas descartáveis (BAUMAN, 2005) na qual se desvela o estado de exceção vivido
cotidianamente por inúmeros brasileiros, cuja regra se pauta explicitamente em fazer viver
para deixar morrer. Tal política de morte e as operações militares-policiais de “guerra ao
tráfico” são aplicadas com mais freqüência nas disposições espaciais da exceção que
conceituo como campo favelizado. As favelas se tornam o território colocado para fora do
ordenamento jurídico como o próprio espaço da exceção. Esse território, de modo algum está
inserido numa relação de exterioridade, mas se inscreve em um espaço ordenado pela norma,
capturado dentro dela por meio da exclusão inclusiva da exceção. Somente a norma pode
conceder um lugar para a exceção atuar, para que a suspensão temporal da ordem se constitua
ela mesma como uma norma, incluindo o que a partir dela é excluído pelo ordenamento
jurídico-político da exceção.
Assim, os espaços urbanos marginalizados não estão somente à margem do
ordenamento político-jurídico como se costumam acreditar, eles se transformam
estrategicamente em campo, ou seja, uma estrutura concentrada na qual o estado de exceção
pode ser executado normalmente. Quero dizer que, no campo a norma e a exceção se tornam
indiscerníveis, determinados espaços se estabelecem numa lógica de inclusão-excludente e a
lei encontra e delimita o seu locus daquilo que pode ser excluído fora do domínio do
permitido como uma condição de sua auto-suspensão, onde a vida será capturada pela norma
suspensa e a exceção poderá cometer atos de atrocidades que não é assunto e nem dependem
mais do direito. O campo favelizado compõe o paradigma oculto do espaço político
contemporâneo, o lugar da indistinção jurídica-política enquanto a própria materialização do
estado de exceção. O campo da exceção normalizada se converte em uma forma de
expediente para os agentes do poder soberano atuarem e operarem o tal “monopólio da
violência legítima de Estado” sem que haja limites jurídicos para suas ações e para as práticas
de extermínio das instituições policiais.
É possível discutir o conceito contemporâneo de cidadania a partir desse campo que
seleciona a vida de uns como desprovida de valor e a inclui na política e no estatuto jurídico
através de sua exclusão e na condição de vida matável? De acordo com Vera Malaguti:
Nesse capítulo, minha proposta foi estudar, a partir das análises de Foucault e
Agamben, como o estado de exceção vem sendo aplicado através das legislações e nas
práticas executivas como um paradigma de governo dominante na política contemporânea.
Busquei ressaltar a estreita relação existente entre o poder soberano e as medidas de
emergência, analisando o quanto se tornou freqüente a utilização das medidas de exceção,
principalmente após o processo de “consolidação democrática” nas diferentes sociedades
contemporâneas, sobretudo no Brasil a partir da declaração legislativa da política antidrogas e
das disposições constitucionais à chamada investida de “guerra às drogas”, em particular na
cidade do Rio de Janeiro.
Sob as diversas alegações de “risco” eminente que supõe as constantes ameaças às
instituições do Estado, à sociedade e ao próprio regime democrático, o estado de exceção se
deslocou de sua técnica provisória e excepcional para se constituir numa estrutura normativa
utilizada pelos gabinetes governamentais para promover a manutenção e o controle da ordem
social, seja em caso de guerra internacional, seja em casos permanentes de distúrbios internos.
A tecnologia da exceção produz um campo – lugar onde a norma poderá atuar pela força de
lei a partir da suspensão do próprio direito – de indistinção entre os diversos tipos de
Constituição promulgadas em regimes antecedentes e as medidas emergenciais funcionando
na atividade dos Estados como uma norma quase que exclusiva de segurança. Dessa forma, a
normalização das medidas de exceção apresenta-se por meio da gestão que ela estabelece no
patamar da indeterminação entre democracia, autoritarismo, fascismo social e tirania política,
ao ponto de suspender indefinidamente os valores democráticos tendo como base a política e
a violência como a continuação da guerra por outros meios.
A suspensão da democracia pela continuidade histórico-política das técnicas
permanentes da exceção é a conseqüência das tarefas de um Estado que adotou como
princípio fundamental e único a segurança para reconfigurar o ordenamento social e legitimar
a sua atuação política. O que está patente no governo democrático não é apenas a justificativa
de um estado de guerra e de sítio solicitado sob a forma de defesa às agressões externas ou
prorrogado temporariamente ao nível das ameaças que repercutiram como uma questão de
segurança nacional, assim como foi decretado na Constituição de 88, no título V, capítulo I,
seção I e II dedicadas ao estado de defesa e o estado de sítio executado em tempo de guerra
armada estrangeira, mas é o argumento impreciso da “segurança pública” que toma corpo e se
torna a prática discursiva do Estado democrático contemporâneo:
28
“É dever de toda pessoa física ou jurídica colaborar na prevenção e repressão ao tráfico ilícito e uso indevido
de substância entorpecente ou que determine dependência física ou psíquica”. In: Lei 6.368/76, Cap. I, Art. I,
1976.
29
Hoje, se faz imprescindível indagarmos sobre uma questão em aberto acerca dos conflitos de contra-
insurgências que produzem novas subjetividades em diferentes sociedades e em meio aos problemas
contemporâneos da democracia na escala da globalização: em que medida, a partir de uma análise histórica e
crítica dos limites que são impostos a nós mesmos, atualmente o primado das resistências não estariam sendo
capturadas pelos dispositivos que impedem as “multidões” de estabelecer suas linhas de fugas através de uma
tendência governamental da democracia que as organiza no jogo ambivalente da inclusão-excludente e na
relação de forças e poder?
seletivo do biopoder que exerce seu papel de deixar morrer nos sistemas carcerários os
detentos em locais que antes tinham a função de disciplinamento, hoje complementam as
estratégias políticas e socioeconômicas de neutralização e esquecimento dos chamados
“párias sociais” expostos às mais precárias condições de salubridade em espaços amontoados.
O funcionamento do sistema penal brasileiro promove a violência real, simbólica e
imaginária através de um processo incessante de inclusão-exclusão na sociedade
contemporânea. Do mesmo modo que, na permanência do estado de exceção como uma
tendência de longa duração na formação social brasileira, o poder soberano pode decidir sobre
o valor da vida e da morte dos indivíduos na própria vigência do dispositivo da exceção.
Atualmente, o poder estatal tem utilizado as medidas excepcionais para se aplicar uma técnica
governamental duradoura contra os conflitos internos e confeccionar as legislações nacionais
enquanto um expediente permanente para se implantar de forma autoritária a manutenção
constante de um “estado de emergência” segundo as definições próprias da política de
segurança pública, conformando as linhas discursivas da política dominante nos debates e
práticas institucionais, sobretudo no que diz respeito ao “problema das drogas” no território
nacional e internacional que emerge no contexto da década de 80 como um problema de
Estado e assim permanece até os dias de hoje.
Numa sociedade que se postula como “liberal, democrática e de direito”, a venda e o
consumo de certas mercadorias e fármacos foram sujeitas à uma legislação diferenciada e que
passa a ser um meio para se constituir o próprio paradigma da ordem jurídica a partir de uma
máquina de exceção política que apresenta à tanatopolítica a sua forma legal daquilo que não
pode ter forma legal (AGAMBEN, 2004). Nilo Batista descreve a política criminal de drogas
no Brasil como “política criminal com derramamento de sangue”30. Nesse sentido, quais são
os procedimentos que correlacionam os fenômenos político-jurídicos da legislação antidrogas
com o estado de exceção? Quando o “problema local” das drogas se desloca para um
“problema global” de Estado como um dos principais itens na agenda política doméstica e
internacional?
No Brasil a prática de produção, distribuição e consumo de psicofármacos foi
considerada como crime de tráfico de drogas a partir do reconhecimento da lei 6.368/76 no
capítulo III, art. 12:
30
BATISTA, Nilo. Política criminal com derramamento de sangue. In: Revista Brasileira de Ciências
Criminais, nº 20, São Paulo, Ed. Revista dos Tribunais, 1997.
ter em depósito, transportar, trazer consigo, guardar, prescrever,
ministrar ou entregar, de qualquer forma, a consumo substância
entorpecente ou que determine dependência física ou psíquica, sem
autorização ou em desacordo com determinação legal ou
regulamentar.
Nos termos da lei 8.072/ 90, a prática de produção e distribuição de drogas passou a
ser considerada como crime hediondo. A partir daí, o mercado das drogas se efetiva como um
problema de Estado que o qualifica como uma ameaça à segurança nacional, à democracia, às
próprias instituições da sociedade civil e da ordem estatal. Não pretendo discutir se as drogas
constituem ou não em um “problema”. Considero que as “drogas” são mercadorias orientadas
por uma racionalidade capitalista, dependendo dos interesses objetivos e subjetivos de seus
operadores numa escala ou rede socioeconômica e cultural que pode se diferenciar pelo seu
valor de uso ou pelo seu valor de troca. O uso político das drogas como mercadorias31 nas
sociedades capitalistas contemporâneas não implica num “poder paralelo” ao Estado, mas se
complementa como a sua própria extensão nas relações de poder. Na década de 80, o “tráfico
de drogas” se colocava como o segundo maior mercado mundial em volume de capital32.
Nesse momento, o discurso médico-jurídico e moral-religioso característicos da
política de drogas antes do golpe militar de 64 que tinha uma concepção sanitária e higienista
do tráfico e do consumo de psicofármacos, sem precisamente ter uma significação econômica,
se coloca numa complementaridade com o problema do “tráfico” visto sob a perspectiva
econômica e estratégica, segundo um argumento que irá fundamentar um problema
econômico-militar.
O argumento econômico sobre o “problema das drogas” se torna um imperativo que
anunciará o alicerce ideológico da lei de tóxicos pela qual se exorta o mote reificador da
máxima de que “quem compra drogas financia a violência”. Com a devida atenção e
31
Segundo as análises de Michel Misse, as mercadorias políticas são: “o conjunto de diferentes bens ou serviços
compostos por recursos ‘políticos’ (não necessariamente bens ou serviços políticos públicos ou de base estatal)
que podem ser constituídos como objeto privado de apropriação para troca (livre ou compulsória, legal ou ilegal,
criminal ou não) por outras mercadorias, utilidades ou dinheiro. O que tradicionalmente se chama de ‘corrupção’
é um dos tipos principais de ‘mercadoria política’ ilícita ou criminal. O ‘clientelismo’ é, por sua vez, uma forma
de poder baseada na troca de diferentes mercadorias (políticas e econômicas), geralmente legal ou tolerada, mas
moralmente condenada por seu caráter hierárquico e sua estrutura assimétrica. As fronteiras entre “clientelismo”
e “corrupção” por serem moralmente tênues, no Brasil, tendem a reforçar e ampliar o mercado informal político
ilegal e criminal.” (MISSE, 2006, p. 180).
32
“Em 1988 a OUN estimava que o volume anual do comércio de drogas chegava a 300 bilhões de dólares o que
representava 10% de todo o comércio mundial. Alguns especialistas estimam em 200 bilhões, todavia a ONU
manteve seu cálculo original e acresceu mais, atingindo 500 bilhões de dólares. Para se ter uma idéia do valor, o
PIB da África está em torno de 250 bilhões, correspondente a 600 milhões de africanos” (ROIO apud
FERNANDES 1997: 120). Conforme a afirmação de Arbex Junior, o mercado de drogas só fica atrás do
mercado de armas (ARBEX JR, 1993, p. 6).
importância econômica dada ao mercado de drogas nos desdobramentos dos anos 80, esta
exortação se torna um dos principais veículos publicitários para a divulgação de uma
campanha internacional contra o “tráfico de drogas” e para a legitimação dos procedimentos
violentos dos sistemas de controle militar e policial sobre a sociedade calcados no argumento
da necessária manutenção de uma constante “guerra às drogas”.
A doutrina bélica do War on Drugs foi cunhada pelo presidente norte americano
Ronald Reagan em sua campanha de intolerância contra as drogas o qual passou a ensejar os
interesses geopolíticos da política interna e da atuação diplomática do EUA com outros
países. Segundo Malaguti Batista, no decorrer da década de 80, a diplomacia internacional
norte-americana difundiu os termos de “narcoguerrilha”, “narcoterrorismo” e “inimigos
externos” para compor o eixo central da política americana no continente e o eixo das
políticas de segurança nacional:
A lei 6.368/76 inscrita no Código Penal Brasileiro em vigor como a “lei de tóxicos”
foi confeccionada na forma de uma peça jurídica subordinada ao duplo processo de pressão
política na qual equacionou a situação doméstica do uso das drogas com a conjuntura
internacional. Desse modo, considero a legislação antidrogas promulgada em 1976 como um
instrumento de controle social por excelência, uma vez que sua confecção deu-se justamente
no período em que o estado de exceção marca a sua vigência entre os anos de 1964 e 1986,
perdurando até os dias atuais a partir de seu estabelecimento paradoxal nos interstícios das
leis constitucionais com as leis infraconstitucionais em conjunto com as resoluções
internacionais. Tal produção legislativa nacional antidrogas em correlação com a construção
histórica de sistemas político-jurídicos de controle social com vista a cumprir os desígnios do
poder judiciário e executivo, contradiz diretamente os princípios fundamentais formalizados
na Constituição de 198833, pois estabelece o estado de exceção no próprio ordenamento
jurídico dando legalidade para aquilo que não pode ter forma legal.
Tendo em vista que a lei antidrogas no Brasil veio a ser executada pelo Estado em
contradição e incompatibilidade com os princípios fundamentais garantidos pela Constituição,
é notório que o poder soberano investe contra esses mesmos direitos que eram da sua alçada
zelar por todos eles, aplicando seu poder onde não deveria ser aplicado. Contudo, a
normalidade da exceção executada pela força de lei soberana desaplica outras normas que em
tese deveriam representar sua máxima conduta. A permanência de um estado de exceção
coexistente a um Estado democrático de direito, aplica a norma desaplicando-a no processo da
inclusão-excludente, agindo politicamente sobre a vida em relação à ordem ou à suspensão do
jurídico na zona incerta entre violência e direito na política ocidental. Em linhas gerais, a
legislação antidrogas na sociedade brasileira se torna uma das serventias para que a exceção
33
“Em 30 de abril de 1987, a Egrégia Terceira Câmara Criminal e o Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul já
se pronunciava neste sentido, em acórdão proferido na Apelação nº 686.062.340, sendo o relator o
desembargador Milton Santos Martins. Afirmando que o uso de drogas diz respeito à liberdade individual,
decidiu aquela Egrégia Câmara suscitar a inconstitucionalidade do art. 16 da Lei nº 6.368/76 constando da
ementa o seguinte: se não se quer reconhecer no consumidor da droga entorpecente uma vítima e um doente,
como viciado, dando lhe tratamento adequado, pelo menos há de se reconhecer então sua liberdade garantida
pela Constituição” (KARAM, 1993, p. 131).
funcione como regra no atual governo democrático. O “tráfico de drogas” aparece como uma
disposição constitucional no Título V, Capítulo III, art. 144, inciso II, nos seguintes termos:
Ao analisar este arranjo, vale ressaltar que o combate ao “tráfico de drogas” passa a
ser uma prerrogativa constitucional para se defender as instituições democráticas do Estado
contra as práticas ilícitas exercidas na sociedade. Nota-se como estas disposições estão muito
próximas uma das outras, basta vermos o título proposto a tratar da “Defesa do Estado e das
Instituições Democráticas” na qual a “questão das drogas” se localiza. Esse procedimento
deflagra o conteúdo intolerante e autoritário que se encontra taciturno no discurso antidrogas.
Por conseguinte, assinala-se também que, neste mesmo título se encontram os termos
normalizados para se proceder ao decreto do Estado de Defesa (art. 136) e do Estado de Sítio
(art. 137; 138 e 139). Não obstante, essa organização jurídica nos mostra os indícios que
permite aproximar o estado de exceção com a “questão das drogas”.
Ainda segundo as procedências legislativas, no Rio de Janeiro a função preventiva e
repressiva ao “tráfico de drogas” é desempenhada pelos policiais militares e civis por meio de
um policiamento ostensivo e de grupos de operação especial, sendo que a legislação atribui
essa competência para a polícia federal como sua tarefa exclusiva.
Retomando as análises de Cerqueira Filho e Gizlene Neder (1982; 1992), a formação
social brasileira foi incisivamente marcada pela hibridação entre conservadorismo e
autoritarismo. Após considerar essa argumentação, penso que o art. 144 da Constituição de 88
reconfigura as permanências desse processo de longa duração. O título constitucional mascara
o conteúdo discursivo de outrora ao mesmo tempo em que o conserva numa “roupagem
democrática” de antigas instituições paternalistas e autoritárias.
A aproximação da “questão das drogas” como um problema de Estado pode ser
analisado a partir da organização institucional em escala federativa que centraliza a regulação
estatal do mercado ilícito de drogas, cuja instituição-chave vai ser estruturada como a
Secretaria Nacional Antidrogas (SENAD). A SENAD34 é uma instituição encarregada de
promover a Política Nacional Antidrogas (PNAD). A atual Secretaria Nacional de Políticas
sobre Drogas foi criada pela Medida Provisória n° 1669 e pelo Decreto n° 2632 em 19 de
34
Atualmente o nome foi alterado pela lei 11.754 em 23 de julho de 2008 publicado no Diário Oficial da União
(DOU) que também alterou o nome do Conselho Nacional Antidrogas para Conselho Nacional de Políticas sobre
Drogas (CONAD).
junho de 1998. O presidente da República Fernando Henrique Cardoso discursa sobre a sua
criação no Palácio da Alvorada na Cerimônia de Assinatura da Medida Provisória de Criação
do Conselho Nacional Antidrogas e da Secretaria Nacional Antidrogas e Assinatura do
Decreto de Regulamentação:
35
“A polícia aparece como uma administração que encabeça o Estado, juntamente com o judiciário, o executivo
e o erário. Certo. Mas na realidade, abrange tudo. Diz Turquet: Ela se ramifica por todas as circunstâncias da
vida do povo, por tudo que o povo faz ou empreende. Seu campo de ação inclui o judiciário, as finanças e o
exército. A polícia inclui tudo” (FOUCAULT apud Hardt & Negri 2005, p. 41).
morros e favelas na cidade, sendo uma característica não só dos regimes ditatoriais ou
totalitários, mas também dos regimes democráticos que intensificaram as demandas e as
medidas de “lei e ordem” a partir da continuidade da suspensão e da violação de direitos e leis
positivas que acabaram por resultar em práticas violentas e rotineiras do poder estatal e suas
instituições incumbidos de aplicar a norma da segurança (pública) por meio da letalidade
policial e da força de lei36 promovidos pelos termos de paradigma bélico e estratégico de
“guerra às drogas”.
36
Sobre as relações entre direito, justiça, poder, autoridade e violência, ver os estudos produzidos por Jacques
Derrida que foi apresentado primeiramente num colóquio organizado por Drucilla Cornell na Cardozo Law
School em outubro de 1989, sob o título “Desconstruction and the Possibility of Justice. No ano seguinte, no dia
26 de abril de 1990, a segunda parte da conferência foi apresentada em outro colóquio organizado por Saul
Friedlander na Universidade da Califórnia em Los Angeles sob o título “Nazism and the ‘Final Solution’:
Probing the Limits of Representation”. No Brasil foi publicado como livro pela editora Martins Fontes intitulado
como “Força de Lei” (2007).
À GUISA DE CONSIDERAÇÕES GERAIS (LIMIAR)
A questão que poderia ser colocada atualmente seria que, a aplicação do estado de
exceção como regra não teria como objetivo levar o Estado ao seu máximo de força, mas
limitar os objetivos da razão de Estado para não governar demais. Ela se preocupará com a
regra da exceção a partir das necessidades intrínsecas às operações de governo, ou seja, a
razão de Estado não irá interrogar suas práticas em termos de direito ou daquilo que pode ou
não fazer dentro de um certo limite contrabalanceado por princípios externos que autoriza a
soberania agir conforme sua legitimidade, mas sua sanção penal vai girar em torno da exceção
efetivada como objeto de transações indefinidas, e sobre as próprias práticas governamentais
que irão interrogar os seus efeitos não para saber se são legítimas ou não, mas irá questionar
sobre o fracasso ou sucesso da naturalidade própria de sua prática de governo; ela irá se
limitar em função da natureza do que ela faz e daquilo sobre o que ela age.
Vemos daí em diante que, o estado de exceção passa a ser não apenas uma técnica
utilizada a partir dos regimes de veridição, como também se coloca num regime de verdade
que se preocupa em saber quais vão ser, nos objetos que a prática governamental trata e
manipula, as conseqüência naturais do que é empreendido, de dizer na verdade a um governo
quais são os mecanismos naturais do que ele manipula. O dispositivo da exceção calcula uma
razão governamental de Estado preocupado em governar dentro de um certo limite para
melhor governar e se projetar sem correr o “risco” de governar demais.
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