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aan B Fe ewer ee S)OmHUey eA IUULAODUUU Cg MUNI. Revista Lafinoamericana de Esfudios del Trabajo Revista Latino-americana de Estudos do Trabatho Revita Latinoamericana ae Bsa ele Feabago Publicagio semesust da Alust = Associagio. Latino smedicans de Sociol aha DIRETORIA Presidente: Alice de Abreu Sectetiria: Meigela Neves Tesoureitu: Leck Gitshy EDIVORAS| Marcit de Pubs Leite ‘Nadya Arunjo Castro COMITE DE REDACAO. Fara Castro Fla Rubini Liedke José Ricarslo Ramalls Maria Célia Puolt Maria Cristina Tiruschin’ Maria Tenet Fleury Ricardo Antunes, CONSELNO EDITORIAL. Ahiana Marshal (Argentina) sigue dele Garza MEXICO) ary Rae Helena 8 # John Hamphrey CInglatern0) Juan José Castillo Espana) Juarez B. Lopes (1oaseb Michelle le Me Rost (Ici Rainer Dowsbois (alemanhad) Richard Hyman Cinglaterr) aia (PANG) SECRETARIA, Nua Morgado ke Mateus, 615 AOIS-£02 S80 Paulo, SP Brasil Fone: #5511574 0399) Pax: +5511-574.5928 Baul das ednorss snadyatouoteon: br sempleitemucleom b> Assinstura aml (Cows nd mers) Brawl: RSD ERS Steorreiod —NS25 Duteos psese cia América Aatina: VSSQ + U5 5(comeio) = USSZS ‘ase fora da América Latin {SSH + US IOGoMLIO) -USSH) Prego por exemplar: Bast: RSID RS5 Concio! Ouies pases Asti, USS12#RES (conic) » uS17 Patuesfora d8 América Lina: TS 254510 fear) = R535 hu Atérles Ano 4, N87, 1998 Género, Tecnologia e Trabalho Nota das editoras 3 Reestruturavio produtiva, trabalho e relagées de géncro Helene Hirata 5 Fazendo género na cozinha: tecnologias © priticas zabeth Bortolate Silva 29 Inovagio industrial em cletrodomésticos: concepgio de uso € concepgiio de producio Danielle Chabauel-Rychier 55 Génew y trabajo en fas decisiones empr Lais Abramo y Rosalba Todaro 77 Pobreza, hogares y condicién femenina Vania Salles y Roclolfo Tuirén 97 La experiencia «le vida y trabajo de las mujeres en Fspana: el caso de las cigarreras en las primeras décadas del Siglo XX Paloma Candela Soto 119 ~ Debrites - A macrossociologia do tr Ruth Milkiman, riales: balho doméstico remunerado len Reese ¢ Benite Roth 143 - Avangos de pesquisa - A manutengio de microcomputadores no feminino Clevi Elena Rapkiewicz e Natacha Djani 169 - Balangos Género ¢ wabalho: bibliografias internacionais 189 Resenbas - Bl papel det trabajo materno en la salud infantil: contribuciones al debate desde las ciencias sociales, de C. Stern, por %, Garcia Guzman * Communicating gender in context, de Kotthoff ¢ R. Wodak, por M. Choque Aldana * La division sexual del trabajo: permanencia y cambio, de H, Hirata e D. Kergoat, por R. Aguirre ¢ E Massera ¢ Sexes ef socielés: répertotre de la recherche en France, de D, Senotier ¢ N, Cattanéo, por Editoria da Estudios del Trabajo 215 A publicacdo deste numero contou com o apoio de: Q CNPqg = UNIcAMP cesrar SM FAPESP Programa de Apoio a Publicacdes Cientificas Finep/MCT/CNPq Faculdade de Educagdo da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) Centro Brasileiro de Andlise e Planejamento (Cebrap) Programa de Pés-Graduagao da Faculdade de Educagiio da Unicamp Programa de Doutorado em Ciéncias Sociais do Instituto de Filosofia e Ciéneig Humanas da Unicamp (4rea de Trabalho ¢ Sindicalismo) Fundacio de Amparo a Pesquisa do Estado de $a0 Paulo Revista Latinoamericana de Estudios del Trabejo Ano 4, numero 7, 1993 Certificado de licitud 9332 ISSN 1 405-1311 Capa: Germana Monte-Mor, a partir da seqli@ncia fotografica “Spectro”, 1972, de lole de Freitas Editoragao: Fernando Mismeti e Milton Paulo Revisio do portugués: Alice Miyashiro Secretaria: Claudinéia Rodrigues Impressio: Oficinas Grificas da Unicamp Este mimero foi impresso em setembro de 1998 Tiragem: 1.000 exemplares As opinides ¢ informagdes constantes dos textos publicados neste ntimero 10 de inteira e exclusiva responsabilidade de seus autores. Fica permitida a reproducdo total ou parcial dos textos contidos neste numero desde que citada a fonte As editoras agradecem especialmente 0 apoio recebido de: Alexandre Morales, Anderson Kazuo, Angela Carneiro, Angela da Rocha, Cibele Rizek, Ciro Biderman, Helena Hirata, John Monteiro, Lais Abramo, Mart Novick, Omar Ribeiro Thomaz, ‘Tom Dwyer, Vera Pereira e aos editores da Cahiers du Mage e da Recherches Feministes. Nota das editoras O ntimero 7 vema piiblico langando uma tematica que, conquanto cada vez mais presente no campo dos estudos do trabalho, ainda nao ‘jnavia sido abordada pela Revista. Com efeito, buscando elucidar as com- plexas inter-relacdes que se cstabelecem entre género, tecnologia ¢ tra- balho, Estucios del Trabajo dedica este némero a um tema importante, atual ¢ polémico, provendo a comunidade latino-americana de analises construicas seja a partir da realidade de outros paises, seja a partir de nossa propria experiéncia A grande preocupa¢ao tedrica que aproxima os textos aqui apre- sentados refere-se 2s relagdes de género no mundo do trabalho € no universo doméstico. O papel da mulher no trabalho, na vida doméstica, bem como a atengdo que a academia vem dando & questao das relagoes sociais de género constituem, assim, 0 eixo principal dos textos que ora apresentamos. Miltiplos enfoques tematicos e variados pontos de vista disciplinares asseguram a riqueza ¢ a pluralidade interpretativas que sa0 4 marca de Estudios del Trabajo. Assim, os artigos sobre género € tecno- logias domésticas trazem uma discussao ao mesmo tempo atual e inova- dora. Os textos sobre 0 Chile e México analisam o “lugar” da mulher no trabalho € na familia, trazendo & luz determinantes que vem tanto das estratégias gerenciais, quanto da dindmica das condigoes de reprodugio nos grupos domésticos. A experiéncia de vida ¢ trabalho das operirias da industria do tabaco espanhola no inicio do século é revisitada e pro- lematizada. O desenvolvimento tedrico dos estudos sobre relagdes de género no contexto da globalizacio € tematizado. Continuando 0 esforco editorial no sentido da consolidagao do formato da Revista, este ntimero apresenta novas contribuicoes as ues segdes inauguradas em 1997. Em “Debates”, discute-se a instigante ques- 180 do trabalho doméstico remunerado, questionando-se o porqué de sua expansiio no mundo atual, em tudo contraria as expectativas dos estudiosos. Na secio “Avancos de pesquisa”, problematiza-se a tematica da participacao da mulher no dominio cientifico e tecnol6gico. Final- mente, em “Balangos”, presenteamos o leitér com um conjunto de Jevan- tamentos bibliogrificos sobre titulos basicos em género ¢ trabalho, espe- clalmente preparado para o Cabiers dit Mage por estudiosos de compe- téncia inicrnacionalmente reconbecida, cobrindo um leque significativo de paises. Estudios del Trabajo espera continuar contando com o apoio da comunidade cientifica no provimento de colaboragdes de qualidade Para os seus préximos ntimeros, que serao dedicados prioritariamente aos seguintes temas: relagdes industriais no contexto da globalizacao; trabalho, desigualdades e relagées de raga € etnia; mobilidade e trabalho. Revista Latincamericana de Estudios del Trabajo. ano 4. n* 7, 1998, pp.3 Estudos do Trabalho ‘Ano 3, Nuimero 6, 1997 Associagio Latino-americana de Sociologia do Trabalho Uma nova trarna produtiva? Competitividade, novos atores e relagdes interfirmas Para além do principio do mercado Francisco de Oliveira Redes sociais ¢ flexibilidade no trabatho: uma andlise comparativa Scott Martin Relagdes interfirmas, eficiéncia coletiva e emprego em dois clusters da indistria brasileira Leda Gitahy, Roberto Ruas, Flavio Rabelo ¢ Elaine Antunes Competitividad en la industria de televisores en México Jorge Carrillo e Michael Mortimore Competitividade e redes na cadeia produtiva do vestudrio na América do Norte Gary Gereffi La “trama productiva” del sector automotriz argentino: cambios en las firmas y demanda de nuevas competencias laborales Marta Novick ¢ Mariana Buceta Debates Sindicalismo e conflitos de status nos Estados Unidos: por uma estratégia de pesquisa integrada Daniel Cornfield Avangos de pesquisa Calidad total, contral y trabajo Maria Eugenia Trejos Resenhas Reestruturacdo produtiva, trabalho e relagdes de género Helena Hirata Resume Este artigo nota a ausén na sociologia «lo trabalho, que sempre fundou st masculino do trabalhador, Ble mostra o impacto d. trabalho sobre homens ¢ mulheres. Novas oportunidades de empregos qualificados emergem ¢, simultaneamente, a precarizacao da forca de trabalho feminina € reforcada. Trés aspectos sio considerados: o lugar do conceito de género no debate das ciéncias saciais sobre os “novos conceitos de producio™; as tendéncias atuais do emprego feminine num contesto marcado por uma transformagao paradoxal do trabalho (estabilidadle requeridts pelos “novos, modelos produtivos’; instabilidade de emprego): o interesse em ampliar 0 conceito de trabalho do ponto de vista de género para contribuir ao debate sobre o “fim do wabalbo Palavras-chave: divisdo sexual ¢ internacional do trabatho; novos modelos produtivos: precarizacéo do trabatho e flextbstidade. de uma dimensio de género nas ciéncias sociais © em particular IS construcSes teéricas sobre 0 modelo formas recentes de organizagio do Abstract This article diseusses the relative absence of a gender dimension in the social sciences and in particular in labor sociology, which always has based its theoretical constructions on & male mode! of worker. We will show that the impact of recent forms of work organization are not the same for women and men. While new opportunities of more skilled jobs appear, at the same time the precarious character of the female kibour force is reinforced, Three aspects are empha- sized here: the place of the concept of gender in the social science debate over “new production concepts’; second, the current spends of female employment in a context deeply marked by a dual though paradoxiea) transformation of work (stability required by the ‘new production models”; instability of employment); third, the need to broaden the concept of work from a gendered point of view in order to contribute to the debate about the “end of work Keywords: sexual and international division of labour, new productive models; precarious employment and flexibiity As implicacdes das reestruturacdes produtivas sobre a divisao sexual do trabalho e do emprego e as relagdes sociais de sexo/género serio analisadas, neste texto, a partir de trés pontos diferentes, sobre 0s quais se situa, hoje, nas ciéncias sociais do trabalho, o debate académico. © primeiro ponto refere-se ao lugar da categoria de género no debate sobre a emergéncia de “novo(s) modelo(s) produtivo(s) (Kern e Schumann, 1989; Durand, 1993), da “especializagao flexivel (ore e Seibel, 1984) ou de “novos conceitos de produ¢ao” (Beggren, 1989). © segundo, a dupla transformagao — paradoxal - do trabalho no contexto das reestruturagées produtivas, as tendéncias atuais da orga- nizacao do trabalho e do emprego e suas conseqiiéncias diferenciais para a mio-de-obra masculina e feminina, Salienta-se aqui nao apenas a emergéncia internacional de uma "nova figura salarial feminina” Revista Lotinoamericana de Estuctes det Trabaje, ano 4, n° 7, 1998, pp. 5-27 6 Revista Latinoamericana de Estudios del Trabajo (Kergoat, 1991), mas uma nova figura salarial feminina de crise. O terceiro refere-se a incidéncia desse contexto sobre o lugar do trabalho na sociedade, ponto altamente polémico, como atesta o debate atual sobre o “fim do trabalho” ou sua “centralidade”. Sublinha-se aqui o interesse, para o aprofundamento desse debate, em ampliar 0 conceito de trabalho, levando em conta as relagoes de género. Novos modelos produtivos e relagdes de género A quase totalidade das pesquisas sobre 0 pés-fordismo, a espe- cializacao flexivel e os novos modelos produtivos dos anos 80, ou, mais recentemente, a partir do final daquela década, as teses macroeco- némicas sobre globalizagao nao levam em conta a diferenciacdo entre a populagao masculina ¢ a feminina, Trata-se de trabalhos gender-blinded, isto €, nado consideram a dimensao de género. Raras sao as excegdes.! J4 mostramos como a extensa literatura da sociologia do trabalho senet, Schumann e Kern etc.), da economia do trabalho (Coriat, ‘emplo) ¢ da ergonomia (entre outros, de Terssac) sobre a requa- lificagao dos operadores nos novos modelos produtivos no concede nenhum espaco as diferencas de género (Hirata, 1990). A partir da constatagao de um processo de requalificagao de operadores do sexo masculino, esses autores generalizam 0 resultado para 0 conjunto dos tabalhadores. Entretanto, as repercussées da especial flexivel e dos novos modelos de organizacao e desenvolvimento industriais nao so as mesmas quando se consideram os pontos de vista dos homens e das mulheres. Da mesma maneira, os impactos das reestruturagdes produtivas sobre a qualificag’io—ou sobre a formacao profissional — nao tém a mesma extensdo, a mesma significagio e nem o mesmo alcance segundo se trate de trabalhadores homens ou mulheres. (Acrescente-se que também no interior do conjunto dos trabalhadores homens ha diferencas de acordo com a qualificagao e a categoria socioprofissional, as quais nem sempre sao levadas em conta na construgao dos modelos de organizagao.) As conseqiiéncias podem ser eminentemente contra- ditorias. Pesquisas efetuadas tanto em paises europeus como nos da América Latina tém permitido afirmar que a introdugao de novas tecno- logias pode redundar em abertura de novas oportunidades e em conse- quéncias positivas para o trabalho feminino (Abramo, 1997: 12, 24), criando novas chances de emprego qualificado, sobretudo no setor da informatica (Rapckievicz, 1997: 34-35; Marry, 1992: 264). Mas ela pode também reforcar a marginalizagao das mulheres e constituir um risco real 1 Quanto as teses sobre 0 p6s-fordismo e a espectalizasio flexivel, ver Jenson (1989); Hirata (1990); Kergoat (1992); Arestis ¢ Paliginis (1995),.Abramo (1997). Quanto as teses sobre zioba- lizagao, Todaro € Rodriguez (1995), Mears (1995); Labrecque (1996); Yanez, Todaro (1997), Ressinsturagée produtiva, trabatho ¢ relagdes de género 7 no plano do emprego, sobretudo para as trabalhadoras nao-qualificadas (Coninck, 1996; Massera, 1994; Posthuma ¢ Lombardi, 1996; Leite, 1997). Avesso a essa diversidade, 0 conceito de “especializagao flexivel” € fundado sobre 0 arquétipo do “operario prudhoniano” (Boyer, 1986: 237), pertinente ao trabalhador do sexo masculino de grandes empre- sas, com emprego regular ¢ dotado de ceria autonomia no trabalho, mas nZo a massa de trabalhadoras. Na verdade, o modelo japonés, no qual apenas o trabalhador do sexo masculino desfruta do emprego estivel (dito “vitalicio”), da promocao por tempo de servigo e carreira na empresa, parece ser o inspirador da construgao desse novo para- digma de producao industrial alternativo ao fordismo, que tem pre- tensdes a uma validade universal. Ora, a introdugao da categoria de género faz-se necessaria, pois as condicdes de trabalho ¢ de emprego, as situacdes de trabalho, as formas de inser¢ao na atividade de mulheres e homens? variam consi- deravelmente segundo o sexo da mao-de-obra. Isso pode levar a duas conseqiiéncias: a primeira, no plano analitico, é que a introducao de uma perspectiva sexuada faz “explodir’ a unidade “categorial” da empresa,’ as relacdes de género e a divisdo entre os sexos atravessa a sociedade e n’o apenas 0 espaco da empresa; a segunda, no nivel analitico, é que a introdugao da dimensao género questiona fortemente as ciéncias sociais, que partem, nas suas elabora¢oes teGricas, da figura do trabalhador homem como encarnando o universal. Da mesma maneira que, da consideracao da divisao internacional do trabalho, resulta a observagdo da coexisténcia das ilhas de moder- nidade e praticas tayloristas, ou mesmo pré-tayloristas, de produgao de massa, sem grandes preocupagdes com a qualidade, o intuito deste trabalho é apreender as desigualdades entre os sexos, levando em conta a divisao social do trabalho. A transformac¢ao paradoxal do trabalho no contexto da restruturacéo produtiva Uma das conseqiiéncias da emergéncia desses novos modelos produtivos parece consistir de um amplo processo de precarizagao do trabalho (Castel, 1995: 411-412). Assistimos, hoje, a uma dupla trans- 2 Privilegiamos neste artigo as diferencas de genero. As diferencas de classe, as consiceramos “co-extensivas’ as diferencas de género: ver Hirata e Kergoat (1993). Numa perspectiva similar, ‘ver Beneria e Roldn (1987). Quanto 3s diferengas Norte-Sul, Hirata etal. (1994); Hirata (1997a), 3 Alguns desenvolvimentos da especializagio flexivel (ex.: a andlise em termos de distritos ‘ndustriais) levam em conta a unidade familias, por exemplo, ampliando o terreno produtivo que € a empresa, mas, mesmo nesse caso, € raro encontrar um enfoque em termos de telagies sociais (de sexo/género), 8 Revists Latinoamericang de Estudios de! Trabajo formagaio do trabalho, tanto quanto ao contetido da atividade como quanto as formas de emprego ~ ransformagdo aparentemente para- doxal, pois esse duplo processo ocorre em sentidos opostos, De um lado, para a realizagao desses novos modelos, hé uma exigencia de estabilizacao, de implicagao do sujeito no processo de trabalho, através de atividades que requerem autonomia, iniciativa, responsabilidade, comunicagao ou “intercompreensao” (Zarifian, 1996), Por outro lado, verifica-se um proceso de “instabilizago", de precarizacao dos lacos empregaticios, com 0 aumento do desemprego prolongado, das formas de emprego precirio, da flexibilidade no uso da mao de-obra Deve-se acrescentar que segundo movimento, de “instabilizagao’ € precarizagdo, € macro © mundializado, enquanto o primeiro, de implicagao, concerne, tendencialmente, sobretudo aos assalariados do sexo masculino das grandes empresas industriais dos paises do Norte. Deve-se também notar que o segundo movimento 6 conseqiiéncia do primeiro, no sentido de que a emergéncia de um novo modelo produ- tivo, a especializacao flexivel, fundado sobre a flexibilidade maxima dos Processos, da tecnologia, do emprego ctc., implica um amplo movi- mento de precarizagio (Castel, 1995: 411-412; Appay ¢ Thébauc-Mony, 1997). Pode-se afirmar que esse grande movimento macro ¢ mundia lizado de precarizagio social e dos lacos empregaticios é passivel de uma andlise mais precisa quanto & convergéncia crescente entre a stabilidade e precariedade do emprego dos assalariados do Norte ¢ a inseguranga estrutural dos trabalhadores do Sul no mercado de trabalho Assiste-se a uma convergéncia cada vez maior — guardadas, eviden- temente, as proporges, e contempladas as situacdes historicamente desiguais na divisio interna do Norte e do Sul (sem que se configure uma “brasilianiz: pais do Norte — Franga -, como sugere Lipietz, 1996).* cional do trabalho ~ entre os trabalhadores io” de um se movimento extenso de precarizaio nao parece implicar o fim do trabalho, mas, sim, a dispersio, no sentido estatistico, das situagdes de trabalho ou dos "mundos de trabalho” (Hirata, 1997). Uma andlise mais pormenorizada do processo de estabilizacao implicagio do sujeito no processo de trabalho mostra que essas situagdes so bastante diferenciadas ¢ que 0 paradoxo é menor do que 4 primeira vista, pois 0 processo de “instabilizacio” & precarizacao atinge 0 coragdo da organizagio do trabalho ¢ as condigdes nas quais este se da, ¢ nao apenas os lagos empregaticios. Pesquisas sobre ‘ado em vista sobretuclo as imensas diferengas histéricas no processo de constitigho das sociedades civis © de seus atores, dos Estados ¢ de suas instirvices, O mesmo tipo de analogia jé tinha levado © autor a se referir a um “fordismo periférico” part designar paises como 0 Brasil, onde um “circulo virtuoso” harmonizando nermas de produgio © normas de consumo nunca se delineou ReestiuturagGo produtiva, trabalho e relagdes ce género 9 condigdes de trabalho (CT) efetuadas pelo Ministério do Trabalho francés (Gollac e Volkoff, 1997) mostram que tem havido nao apenas aumento da intensificagio do trabalho, como também da dependéncia dos colegas e da hierarquia. Quantitativas, elas fornecem dados que contradizem, ao menos parcialmente, as anilises correntes sobre 0 “novo conceito de producao”, o modelo de especializagao flexivel ete. ‘A pesquisa de 1991, comparada a precedente, de 1984, contradiz a idéia de que a era da especializagio flexivel corresponde a uma maior autonomia do trabalhador, a uma maior iniciativa de organizacao e a um maior enriquecimento do contetido do trabalho. As aniilises estatisticas que ultrapassam o universo dos grandes inclustriais, das grandes industrias, que empregam sobretudo trabalhadores homens mais qualificados, parecem desmentir as visdes Mais otimistas de que a automatizacao e o sistema just-in-tinie dimi- nuiriam a “penosidade” e a cadéncia de trabalho. Ao contrario, a producio flexivel e sem estoques conduziu, segundo a pesquisa CT, a uma maior intensificagio do trabalho. Entre 1984 ¢ 1993, 0 percentual de assalariados que declarou ter seu ritmo de trabalho determinado: pela demanda dos clientes ou do publico passou de 39,0% para $8,0%. JAo percentual daqueles para os quais scus movimentos estavam sendo ritmados pelo deslocamento automdtico de um produto ou de um: pega passou de 3,0% para 6,0%, pela cadéncia automatica de uma maquina, de 4,0% para 7,0%; por normas ou prazos de um dia ou de menos de 24 horas, de 19,0% para 44,0%; e, enfim, por controle da hierarquia, de 17,0% para 24,0% (Gollac ¢ Volkoff, 1996: 59) Na era do “trabalho imaterial”, a persisténcia, e mesmo 0 aumento. das imposigdes temporais, ndo pode deixar de ter consequiéncias sobre as condigdes de trabalho e satide das mulheres trabalhadoras, tradi- cionalmente mais sujeitas 4 imposicio de cadéncias ¢ ritmos, como fém mostrado as pesquisas CT desde 1978. Também a persisténcia do trabalho sujo, insalubre e penoso® — este, sobretudo para os homens — interpela as imagens recorrentes na literatura dos anos 70 ¢ 80 da “fabrica do futuro”, robotizada ¢ asseptizada. A seguir, analisa-se 5 A pesquiss Condiptes de Trabalho, do Ministério do ‘Trabalho francés, conta com uma mostra constituida de vinte mil individuos tendo um emprego. Sua taxa de sondegem & de 1/1000. Certamente, esse tipo de levantamento de dados quantitativos nto leva aos mesmos Fesultados clas monografias € estudos de caso, € podem complemeniar esses sltimos, ov) Uestioné-los. 6 Em 1991, na Franga, sequndo a pesquisa CT, 37,0% dos assulariados ¢ 57,0% clos operirios faregam ps0; 29,09 © 49,02, respectivamente, trubalham num ambiente sujo; 35,0% & 63,0%, respectivamente, respiram pocira, © trabalho "desmateriaiizicio” nas satas de controle Ou dante das miquinas/ferramemas de controle numérico nfo ¢ 9 da grande massa dos Spenivios na Franca dos anos 90. 10 sang de Estudios del Trabajo inserg&o diferencial de homens e mulheres nas assim chamadas “novas formas” de organizacao do trabalho: tal andlise pode contribuir, a partir de uma perspectiva de género, aos debates sobre a emergéncia de um novo paradigma produtivo. Novas tendéncias na organizacao sexuada do trabalho? Um certo ntimero de descontinuidades ou rupturas marcariam a passagem do taylorismo/fordismo para 0(s) novots) modelo(s) produ- tivo(s) ou o novo “conceito de producao”,” em gestacao, em processo de emergéncia, ou {4 consolidados, segundo os especialistas. Nao cabe retomar essa polémica nos limites deste trabalho (Ferreira ef al., 1991) Pode-se observar, entretanto, que tanto a evolucdo do debate quanto a consideracdo das diferencas de género levam a pensar que a visio dicotémica separando “antigas” € “novas” formas de organizagao do trabalho nao da conta da realidade complexa e contraditGria das muta- gées produtivas, na qual praticas tayloristas se renovam no coracao mesmo das novas organizacoes do trabalho. A dimensao comparativa — implicita ou explicita — Norte-Sul enriqueceu incontestavelmente o debate sobre a adogdo complexa (porque diferenciada) das novas formas de organizagdo do trabalho e da producao.’ A introdugio do ponto de vista de género pode ajudar a superar esse enfoque dico- témico, contribuindo, assim, para situar diferentemente esse debate. 7 Formulados de forma sintética, tais rupturas ou descontinuidadgs poderiam ser as seguintes: passagem de uma produgao de massa padronizada (economia de escala) para uma producto de massa ou em pequena escala, flexivel (economia de variedade) com preeminéncia de critérios de qualidade dos processos ¢ dos produtos; introducao de tecnologias automatizadas de base microcletrénica, uma organizagao produtiva com a preocupacio de aperfeicoar a gestio dos fluxos, com divisao mengs acentuada do trabalho (adoga0 de um perfil mul- tifuncional), integracao mais pronunciada de fungdes, maior impulso para a formagao e re- profissionalizacdo da mao de obra direta; uma organizacio do trabalho substituinde a nogao de postos pelo conceito de trabalho em equipe (de equipes de operadores a de multi- profissionais, como os "grupos de projeto") ou pelo de ‘organizacao qualificante” (Zarifian, 1996); passagem do modelo de qualificacio para a “l6gica da competéncia”: pasvagem da ‘deta do trabalhador-objeto para a de sujeito do proceso de trabalho — do sujeito para o qual se destinem as politicas de envolvimento‘incitagtc/mobilizagio da parte da empresa; do isolamento ¢ da ndo-comunicacdo a um modelo em que sao fundamentais as ideias de cooperagio ¢ de intercompreensio. 8 Ver, por exemplo, para uma anilise comparativa entre puises asiiticos ¢ Brasil, Fleury etal. (1995) ¢ Humphrey (1995), Ver também, de Humphrey, a comparagio india-Brasil_ nos Anais do 5° Encontro Internacional do Gerpisa (1997), para um apanhado das diferencas entre os paises latino-americanos, Gitahy (1994); para uma comparagao das inovagdes, organizacionais na Europa (Franga, Italia) ¢ no Brasil, Salerno (1996). Para a reflexto sobre as descontinuidades no quadro da reestruturagio produtiva beasileina, E. Leite (1995), M. Leite (1994, 1996); Castro (1997: 46-48); sobre a indtistria automobilistica, em varios paises, ver Gerpisa (1997) (varios autores). Reestruturacio produtiva, trabalho e relagdes de género n Nossas pesquisas comparativas sobre trabalho e divisao sexual do trabalho em grandes empresas industriais, assim como a literatura exis- tente sobre género e reestruturacdo produtiva (Jenson, 1989; Rolddn, 1993; Massera, 1994; Abreu ¢ Sor), 1995; Todaro e Rodrigues, 1995; Miter ¢ Rowbothan, 1995; Posthuma ¢ Lombardi, 1996; Leite, 1997; Abramo, 1997; Appay ¢ Thébaud-Mony, 1997), tendem a indicar que, entre os setores, empresas ¢ atividades que empregam homens ¢ os que empre- gam mulheres, nao se constrdi da mesma maneira 0 conjunto das descon- tinuidades ou rupturas que marcem os novos modelos produtivos. Algumas pesquisas tem mostrado que, com a introdugio da infor- matica nos servigos ou mesmo no setor industrial, certas profissdes ¢ tarefas que exigem iniciativa, responsabilidade, conhecimento técnico e criatividade estio sendo abertas a mulheres: engenheiras, analistas de sistemas (por exemplo, na indiistria de vidro plano no Brasil ¢ no Japio), programadoras, técnicas etc. (Marry, 1992). Mas tais postos sao em nlimero limitado, e sao preenchidas majoritariamente — e de preferéncia = por trabalhadores do sexo masculino (Rapkiewicz, 1997). Por outro *lado, no Brasil, apesar de dados quantitativos da OIT/Cinterfor/Senai indicarem, nos cursos técnicos do Senai — Servigo Nacional de Apren- dizagem Industrial, um aumento expressivo de mulheres aprendizes (em $20 Paulo, essa participagdo passou de 7,9%, em 1980, para 15,0%, em. 1995), 0 contetido do ensino por ele oferecido continua a se referir ao quadro de indtistrias ¢ postos tradicionalmente femininos, como no ramo téxtil ou alimenticio (Posthama, 1996-97: 10). Os resultados da pesquisa Brasil-Franga—Japao, no que diz res- peito a repercussio das inovagdes tecnolégicas e organizacionais sobre a divisio sexual do trabalho ~ associada a conjunturas econémicas particulares, que tém peso especifico —, demonstram como a mao-de- obra feminina foi incorporada em oficios e tarefas antes considerados eminentemente masculinos e qualificados. Incontestavelmente, a ana- lise das mudancas tecnolégicas (no inicio dos anos 80) ¢ da adogao de ‘outros modelos organizacionais (em meados dos anos 90) mostra que novos campos ocupacionais foram abertos as mulheres trabalhadoras. Dois exemplos, no Brasil. Nos anos que se sucederam ao “milagre’ econdmico (1969-1972), os efetivos femininos multiplicaram-se nao s6 €m setores tais como da construcao civil ou tansportes coletivos como também na indtistria de transforma¢ao, com mulheres recrutadas no tamo metalirgico como operadoras de fresa, torno e outras maquinas € €quipamentos, No entanto, para as empresas, essa abertura de postos de trabalho as mulheres representou uma diminuicao de custos, pois ‘€ssa feminizacao implicou uma desqualificagao—se antes, como ocorreu numa das empresas pesquisadas, todas as m4quinas eram preparadas POr contramestres, essa atividade, até entdo qualificada, passou a ser fepetitiva e sem responsabilidade, justificando salarios rebaixados e 12 Revista Latincamericana de Estudios del Trabajo conseqiiente desvalorizagao do emprego. O aumento das oportunidades de emprego deu-se concomitantemente 4 manutengio de uma hie- rarquia social e técnica, com a supremacia do masculino. © segundo exemplo diz respeito a entrada de mulheres nos postos de manuten¢io elétrica/instrumentagdo, em meados dos anos 90, simultaneamente ao processo de descentralizagao da manutengao, instalada na area de fabricacao. Essas trabalhadoras, jovens ¢ com curso técnico, estao sujeitas a ouvir -piadas e brincadeirinhas- ¢, por isso, t@m que usar roupas folgadas. Além disso, nao contam, quando da entrada nessa nova fun com instalagdes adequadas (WC feminino), ¢ exercem »os piores servigos na manuten¢ao: (E.B., em entrevista, 1996) por «medo da concorréncia» da parte dos homens. A questio da negacio da identidade sexual na realizacdo do trabalho é continuamente observada: “Tem que ter postura bem profissional, come se fosse um homem trabalhando:.? Mas @ capa- cidade técnica Ihes é solicitada no exercicio da atividade, ¢ a conti- nuidade da formagao — um curso universitirio de engenhatia - passa a ser uma realidade na sua trajetoria profissional. Cremos que esses dois exemplos ilustram bem a nossa tese de que os movimentos complexos da mao-de-obra feminina sido ligados a wés fatores indissociaveis: a conjuntura do mercado de trabalho (de “boom” econdmico ou de crise); as mudanc¢as no processo ¢ na organizacao do trabalho; e, enfim, @ subjetividade das trabalhadoras, ao seu desejo de entrar c se manter no mercado de trabalho." Dai afirmarmos a necessiria complementaridade entre uma teoria dos mercados de trabalho, uma teoria correlativa dos processos de trabalho: e€ uma teoria do “sujeito sexuado” (Hirata, 1997b). Aentrada das mulheres como operdrias € técnicas de manutencao elétrica, acima referido, constitui fato novo, e¢ é ainda bastante ex: cepcional na inddstria brasileira.’ O panorama, na maioria absoluta das empresas, parece ser a tendéncia conceituada por Kergoat (1992: 80-81) para a Franca, seja em termos de “justaposi¢ao” entre taylorismo (setor feminizado) ¢ flexibilidade (setor masculinizado), seja da ex! téncia de dois tipos de flexibilidade: formacao qualificada e polivaléncia para os homens, formas de empregos “atipicos” para as mulheres. 9 Baseamo-nos numa entrevista com ELB., técnica de manutengdo clétrica’instrumentacdo, fuma empresa clo setor quimico de Sto Paulo, em 1996, ¢ num texto escrite por seis Kéenicas de manutengao € e A mulber na manutengas

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