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Memória,


Esquecimento,
Silêncio
Michael Pollak

mum a um grupo e o que o diferen­


m sua análise da memória c0-
cia dos outros, fundamenta e reforça
letiva, Maurice Halbwachs en­
os sentimentos de pertencimento e as
fatiza a força dos diferentes frontei ras s6cio-<:uhurais.
pontos de referência que estru­
Na abordagem durkheimiana, a ên­
turam nossa memória e que a inserem
fase é dada à força quase institucional
na memória da coletividade a que
dessa memória coletiva, à duração, à
pertencemos. 1 Entre eles incluem·se
continuidade e à estabilidade. Assim
evidentemente os monumentos, esses
também Halbwachs, longe de ver Des­
lugares da memória analisados por sa memória coletiva uma imposição,
Pierre Nora,' o patrimônio arquitetô­ uma forma específica de dominação
nico e seu estilo, que nos acompanham
ou violência simbólica,' acentua as
por toda a nossa vida, as paisagens,
funções positivas desempenhadas pela
as datas e personagens históricas de memóría comum, a saber, de reforçar
cuja importância somos incessante­ a coesão social, não pela coerção, mas
mente relembrados, as tradições e cos· pela adesão afetiva ao grupo, donde
tumes, certas regras de interação, o o termo que utiliza, de "comunidade
folclore e a mUSlca, e, por que nao, as
. -
.

afetiva". Na tradição européia do


tradições culinárias. Na tradição me­

século XIX, em Halbwachs, iDclusive,


todológica durkheimiana, que consiste a nação é a forma mais acabada de
em tratar fatos sociais como coisasJ um grupo, e a memória Dacional, a
toma-se possível tomar esses diferen­ forma mais completa de lima memÓ­
tes pontos de referência como indica­ ria co1etlva.
dores empíricos da memória coletiva Em vários momentos; Maurice
de um determinado grupo, uma me­ Halbwachs insinua não apenas a sele­
mória estruturada com suas hierar­ tividade de toda memória, mas tam­
quias e classificações, uma memória bém um procesSQ de "negociação"
também que, ao definir o que é co- para conciliar memória coletiva e me-

NOJa: Esta tradução é de Dora Rocha Flauman.

Estudol HIs'6rlcos. Rio de Janeiro, \'01. 2. n. l, 1989, p. ]·1'.


4 ESTUDOS HISTÓRICOS - 1989/3

mórias individuais: "Para que nossa preferência onde existe conflito e com­
memória se beneficie da dos outros, petição entre memórias concorrentes.
não basta que eles nos tragam seus
testemunhos: é preciso também que
A memória em disputa
ela não tenha deixado de concordar
com suas memórias e que haja sufi­
Essa predileção atual dos pesquisa­
cientes pontos de contato entre ela e
dores pelos conflitos e disputas em
as outras para que a lembrança que
detrimento dos fatores de continuida­
os outros nos trazem possa ser recons­
de e de estabilidade deve ser relacio­
truída sobre uma base comum."·
nada com as verdadeiras batalhas da
Esse reconhecimento do caráter po­
memória a que assistimos, e que assu­
tencialmente problemático de uma
miram uma amplitude particular nes­
memória coletiva já anuncia a inversão
ses últimos quinze anos na Europa.
de perspectiva que marca os trabalhos
Tomemos, a título de ilustração, o
atuais sobre esse fenômeno. Numa
papel desempenhado pela reescrita da
perspectiva construtivista, não se trata
história em dois momentos fortes da
mais de lidar com os fatos sociais
destalinização, o primeiro deles após
como coisas, mas de analisar como os
o XX Congresso do PC da União So­
fatos sociais se tornam coisas. como
viética, quando Nikita Kruschev de­
e por quem eles são solidificados e do­
nunciou pela primeira vez os crimes
tados de duração e estabilidade. Apli­
stalinistas. Essa reviravolta da visão
cada à memória coletiva, essa aborda­
da história, indissociavelmente ligada
gem irá se interessar portanto pelos
à da linha política, traduziu-se na des­
processos e atores que intervêm no
truição progressiva dos signos e sím­
trabalho de constituição e de formali­
bolos que lembravam Stalin na União
zação das memórias. Ao privilegiar a
Soviética e nos países satélites, e, final­
análise dos excluídos, dos marginaliza­
mente na retirada dos despojos de
dos e das minorias, a história oral res­
Stalin do mausoléu da Praça Verme­
saltou a importância de memórias sub­
lha. Essa primeira etapa da destalini­
terrâneas que, como parte integrante
zação, conduzida de maneira discreta
das culturas minoritárias e dominadas,
dentro do aparelho, gerou transborda­
se opõem à "memória oficial", no caso
mentos e manifestações (das quais a
a memória nacional. Num primeiro mais importante foi a revolta húngara)
momento, essa abordagem faz da em­ que se apropriaram da destruição das
patia com os grupos dominados estu­ estátuas de Stalin e a integraram em
dados uma regra metodológica • e rea­ uma estratégia de independência e de
bilita a periferia e a marginalidade. Ao autonomia.

contrário de Maurice Halbwachs, ela Embora tivesse arranhado o mito


acentua o caráter destruidor, unifor­ histórico dominante do "Stalin pai dos
mizador e opressor da memória cole­ pobres", essa primeira destalinização
tiva nacional. Por outro lado, essas não conseguiu realmente se impor, e
memórias subterrâneas que prosse­ com o fim da era kruschevista cessa­
guem seu trabalho de subversão no ram também as tentações de revisão
silêncio e de maneira quase impercep­ da mem6ria coletiva. Essa preocupa­
tível afloram em momentos de crise ção reemergiu cerca de trinta anos
em sobressaltos bruscos e exacerba­ mais tarde no quadro da g/asnost e da
dos. • A memória entra em disputa. Os pereslroika. Aí também o movimento
objetos de pesquisa são escolhidos de foi lançado pela nova direção do par-
MEMÓRIA. ESQUECIMENTO, SI L�NCIO 5

tido ligada a Gorbachev. Mas, ao con­ reivindicações que se formam ao mes­


trário dos anos 1950, essa nova aber­ mo tempo em que caem os tabus con·
tura logo gerou um movimento inte­ servados pela memória oficial ante­
lectual com a reabilitação de alguns rior. Este exemplo mostra também "
dissidentes atuais e, de maneira pós­ sobrevivência, durante dezenas de
tuma, de dirigentes que nos anos 1930 anos, de lembranças traumatizantes,
e 1940 haviam sido vítimas do terror lembranças que esperam o momento
stalinista. Esse sopro de liberdade de propício para serem expressas. A des­
crítica despertou traumatismos profun­ peito da importante doutrinação ideo­
damente ancorados que ganharam for­ lógica, essas lembranças durante tanto
,
ma num movimento popular que se tempo confinadas ao silêncio e trans­
organiza em torno do projeto de cons­ mitidas de uma geração a outra oral­
trução de um monumento à memória mente, e não através de publicações,
das vitimas do stalinismo. 7 permanecem vivas. O longo silêncio
Esse fenômeno, mesmo que possa sobre o passado, longe de conduzir ao
"objetivamente" desempenhar o papel esquecimento, é a resistência que uma
de um reforço à corrente reformadora sociedade civil impotente opõe ao ex­
contra a ortodoxia que continua a cesso de discursos oficiais. Ao mesmo
ocupar importantes posições no parti­ tempo, ela transmite cuidadosamente
do e no Estado, não pode porém ser as lembranças dissidentes nas redes fa­
reduzido a este aspecto. Ele consiste miliares e de amizades, esperando a
muito mais na irrupção de ressenti­ hora da verdade e da redistribuição
mentos acumulados no tempo e de das cartas políticas e ideológicas.
uma memória da dominação e de so­ Embora na maioria das vezes esteja
frimentos que jamais puderam se ex­ ligada a fenômenos de dominação, a
primir publicamente. Essa memória clivagem entre memória oficial e do­

"proibida" e portanto "clandestina" rnjnante e memórias subterrâneas, as­
ocupa toda a cena cultural, o setor edi­ sim como a significação do silêncio
torial, os meios de comunicação. o sobre o passado, não remete forçosa­
cmema e a pmtura, comprovando, mente à oposição entre Estado domi­
• •

caso seja necessário, o fosso que sepa­ nador e sociedade civil. Encontramos
ra de fato a sociedade civil e a ideolo­ com mais freqüência esse prob�ema
gia oficial de um partido e de um Es­ nas relações entre grupos minoritários
tado que pretende a dominação hege­ e sociedade englobante.
mônica. Uma vez rompido o tabu, urna O exemplo seguinte, completamen­
vez que as memórias subterrâneas con­ te diferente, é o dos sobreviventes dos
seguem invadir o espaço público, rei­ campos de concentração que, após se­
vindicações múltiplas e dificilmente rem libertados, retornaram à Alema­
previsíveis se acoplam a essa disputa nha ou à Áustria. Seu silêncio sobre
da memória, no caso, as reivindica­ O passado está ligado em primeiro lu­

ções das diferentes nacionalidades. gar à necessidade de encontrar um


Este exemplo mostra a necessidade, modus vivendi com aqueles que, de
para os dirigentes, de associar uma perto ou de longe, ao menos sob a for­
profunda mudança política a uma re­ ma de consentimento tácito, assistiram
visão (auto)crítica do passado. Ele re­ à sua deportação. Não provocar o sen­
mete igualmente aos riscos inerentes timento de culpa da maioria torna-se
a essa revisão, na medida em que os então um reflexo de proteção da mi­
dominantes não podem jamais contro­ noria judia. Contudo, essa atitude é
lar perfeitamente atô onde levarão as ainda reforçada pelo sentimento de
6 ESTUDOS HISTÓR ICOS - 1989/3

culpa que as próprias vítimas podem a exterminação dos judeus. Entretan­


ter, oculto no fundo de si mesmas. E to, a despeito da abundante literatura
sabido que a a dministração nazista e do lugar concedido a esse período
conseguiu impor à comunidade judia nos meios de comunicação, freqüente­
uma parte importante da gestão mente ele permanece 11m tabu nas his­ •

administrativa de sua política anti-se· tórias individuais na Alemanha e na


mita, como a preparação das listas dos Áustria, nas conversas famiJiares e,
futuros deportados ou até mesmo a mais ainda, nas biografias dos perso­
gestão de certos locais de trânsito ou nagens públicos.' Assim como as ra­
a organização do abastecimento nos zões de um tal silêncio são compreen­
comboios. Os representantes da comu­ síveis no caso de antigos nazistas ou
nidade judia deixaram-se levar a ne­ dos milhões de simpatizantes do regi­
gociar com as autoridades nazistas, es­ me, elas são difíceis de deslindar no
perando primeiro poder alterar a polí­ caso das vítimas.
tica oficial, mais tarde Ulimitar as per· Nesse caso, o silêncio tem razões
das", para finalmente chegar a uma bastante complexas. Para poder rela­
situação na qual se havia esboroado tar seus sofrimentos, uma pessoa pre­
até mesmo a esperança de poder ne­ cisa antes de mais nada encontrar uma
gociar um melhor tratamento para os escuta. Em seu retorno, os deportados
últimos empregados da comunidade. encontraram efetivamente essa escuta,
Esta situação, que se repetiu em todas mas rapidamente o investimento de to­ •

as cidades- onde havia comunidades das as energias na reconstrução do


judaicas importantes, ilustra parti­ pós-guerra exauriu a vontade de ouvir
cularmente bem o encolhimento pro­ a mensagem culpabilizante dos horro­
gressivo daquilo que é negociável, e res dos campos. A deportação evoca
também a diferença ínfima que às ve­ necessariamente sentimentos ambiva­
zes separa a defesa do grupo e sua re­ lentes, até mesmo de culpa, e isso tam­
sistência da colaboração e do compro­ bém nos países vencedores onde, como
metimento. Seria tão espantoso assim na França, a indiferença e a colabo­
que um historiador do nazismo tão ração marcaram a vida cotidiana ao
eminente como Walter Laqueur tenha menos tanto quanto a resistência. Não
escolhido o gênero do romance para vemos, desde 1945, desaparecerem das
dar conta dessa situação inextricável?' comemorações oficiais os antigos de­
Em face dessa lembrança traumati­ portados de roupa listrada, que des­
zante, o silêncio parece se impor a to­ pertam também o sentimento de culpa •

dos aqueles que querem evitar culpar e que, com exceção dos deportados
as vítimas. E algumas vítimas, que políticos, se integram mal em um- des­
compartilham essa mesma lembran­ file de ex-combatentes? "1945 organi­
ça "comprometedora", preferem, elas za o esquecimento da deportação, os
também, guardar silêncio. Em lugar de deportados chegam quando as ideolo­
se arriscar a um mal-entendido sobre gias já estão colocadas, quando a ba­
uma questão tão grave, ou até mesmo talha pela memória já começou, a cena
de reforçar a consciência tranqüila e política já está atulhada: eles são de­
a propensão ao esquecimento dos an­ mais," JO A essas razões políticas do
tigos carrascos, não seria melhor se silêncio acrescentam-se aquelas, pes­
abster de falar? soais, que consistem em querer poupar
Poucos períodos históricos foram os filhos de crescer na lembrança das
tao estudados como o nazismo, in­ feridas dos pais. Quarenta anos depois
cluindo-se aí sua política anti-semita e convergem razões políticas e famili a-
MEMÓRIA, ESQUECIMENTO, SILÊNCIO 7

res que concorrem para romper esse sentido nas primeiras décadas do pós­
silêncio: no momento em que as tes­ guerra.
temunhas oculares sabem que vão de­ A partir daí, Freddy Raphael distin­
saparecer em breve, elas querem ins­ gue três grandes etapas: à memória
crever suas lembranças contra o es­ envergonhada de uma geração perdi­
quecimento. E seus filhos, eles tam­ da seguiu-se a das associaçães de de­
bém, querem saber, donde a prolifera­ sertores, evadidos e recrutados a força
ção atual de testemunhos e de publica­ que lutam pelo reconhecimento de
ções de jovens intelectuais judeus que lima situação valorizadora das vítimas
fazem "da pesquisa de suas origens e dos" Malgré nous", sublinhando sua
a origem de sua pesquisa", 11 Nesse atitude de recusa e de resistência pas­
meio tempo, [oram as associações de siva. Mas hoje, essa memória canali­
deportados que, mal ou bem, conser­ zada e esterilizada se revolta e se afir­
varam e transmitiram essa memória. ma a partir de um sentimento de
Um último exemplo mostra até que absurdo e de abandono. Ela se consi­
ponto uma situação ambígua e passí­ dera mal compreendida e vilipendiada
vel de gerar mal-entendidos pode, ela e se engaja num combate contestat6-
também, levar ao silêncio antes de pro· rio e militante. 13 A memória subter­
duzir O ressentimento que eSlá na ori­ rânea dos recrutados n força alsacia·
gem das reivindicações e colltestações nos toma a dianteira e se erige então
inesperadas. Trata-se dos recrutados a contra aqueles que tentaram forjar um
força alsacianos, estudados por Freddy mito, a fim de eliminar o estigma da
Raphael.12 Após O fracosso de uma vergonha: "A organização das lem­
política de recrutamento voluntário branças se articula igualmente com a
acionada no início da Segunda Guerra vontade de denunciar aqueles aos
Mundial pelo exército alemão na AI· quais se atribui a maior responsabili­
sácia anexada, o recrutamento forçado dade pelas afrontas sofridas ... Pare­
foi decidido por decretos de 25 e 29 ce, no entanto, que a culpabilidade
de agosto de 1942. De outubro de alemã como fator de reorganização
1942 a novembro de t944, 130.000 das lembranças intervém relativamen­
alsacianos e lorenos foram incorpora­ te pouco; em todo caso, sua illcidên·
dos a diferentes [ormaçães do exér­ cia é significativamente reduzida em
cito alemão. Ocorreram atos de re­ comparação com a denúncia da barbá­
volta, de resistência e de desobediên­ rie russa, bem como da covardia e da
cia, bem como um número significa­ indiferença francesas." te No momen­

tivo de deserções. A despeito desses to do retorno do reprimido, não é o


indícios do caráter coercitivo dessa autor do "crime" (a Alemanha) que
ocupa o primeiro lugar entre os acusa­

participação na guerra ao lado dos na-


zistas, colocou-se a questão, depois da dos, mas aqueles que, ao forjar uma
guerra, do grau de colaboração e com­ memória oficial, conduziram as víti­
prometimento desses homens. Feitos mas da história ao silêncio e à rene­
gação de si mesmas.
prisioneiros de guerra no Iron/ oriental
Esse mecanismo é comum a muitas
pelo Exército Vermelho, muitos deles
populações fronteiriças da Europa
morreram ou regressaram apenas em
que, em lugar de poderem agir sobre
meados dos anos 1950. Trata-se, por sua história, freqüentemente se subme­
definição, de uma experiência dificil­ teram a ela de bom ou mau grado:
mente dizível no contexto do mito de "Meu avô francês foi feito prisioneiro
uma nação de resistentes, tão rico de pelos prussianos em 1870; meu pai
8 ESTUDOS HISTÓRICOS - 1989/3

alemão foi feito prisioneiro pelos fran­ informais e passam despercebidas pela
ceses em 1918; eu, francês, fui feito sociedade englobante.
prisioneiro pelos alemães em junho Por consegujnte, existem nas lem­
de 1940, e depois, recrutado a força branças de uns e de outros zonas de
pela Webrmacht em 1943, fui feito sombra, silêncios, "não-ditos". As
prisioneiro pelos russos em 1945. Veja fronteiras desses silêncios e "não-di­
o senhor que nÓs temos um sentido tos" com o esquecimento definitivo e
da história muito particular. Estamos o reprimido inconsciente não são evi­
sempre do lado errado da história, sis­ dentemente estanques e estão em per­
tematicamente: sempre acabamos as pétuo deslocamento. 17 Essa tipologia
guerras com O uniforme do prisionei­ de discursos, de silêncios, e também
ro, o nosso único uniforme perma­ de alusões e metáforas, é moldada pela
nente," 15 angústia de não encontrar uma escuta,
de ser punido por aquilo que se diz,
ou, ao menos, de se expor a mal-enten­
A função do "não-dito"
didos. No plano coletivo, esses proces­
sos não são tão diferentes dos meca­
À primeira vista, os três exemplos
nismos psíquicos ressaltados por Clau­
expostos acima não têm nada em co­
de Olievenstein: "A linguagem é ape­
mum: a irrupção de uma memória
nas a vigia da angústia. .. Mas a lin­
subterrânea favorecida, quando não
guagem se condena a ser impotente
suscitada, por uma política de refor­
porque organiza o distanciamento da­
mas que coloca em crise o aparelho
quilo que não pode ser posto à dis­
do partido e do Estado; o silêncio dos
tãncia. E aí que intervém, com todo
deportados, vítimas por excelência,
o poder, o discurso interior, o com­
fora de suas redes de sociabilidade,
promisso do não-dito entre aquilo que
mostrando as dificuldades de integrar
o sujeito se conFessa a si mesmo e
suas lembranças na memória coletiva
aquilo que ele pode transmitir ao ex­
da nação; os recrutados a força alsa­
terior." 18
cianos, remetendo à revolta da figura
A fronteira entre o di7.Ível e o indi­
do ffmalamado" e do "incompreendi­
zível, o confessável e o inconfessável,
do". que visa superar seu sentimento
separa, em nossos exemplos, uma me·
de exclusão e restabelecer o que COn­
mária coletiva subterrânea da socieda­
sidera ser a verdade e a justiça.
de civil dominada ou de grupos espe­
Mas esses exemplos têm em comum cíficos, de uma memória coletiva or­
o fato de testemunharem a vivacidade ganizada que resume a imagem que
das lembranças individuais e de gru­ uma sociedade majoritária ou o Estado
pos durante dezenas de anos, e até desejam passar e impor.
mesmo séculos!' Opondo·se à mais le­
Distinguir entre conjunturas favorá­
gítima das memórias coletivas, a me­
veis ou desfavoráveis às memórias
mória nacional, essas lembranças são
marginalizadas é de saída reconhecer
transmitidas no quadro familiar, em
a que ponto o presente colore o pas­
associações, em redes de sociabilidade
sado. Conforme as circunstâncias,
afetiva e/ou política. Essas lembran­
ocorre a emergência de certas lem­
ças proibidas (caso dos crimes stali­ branças, a ênfase é dada a um ou
nistas), indizíveis (caso dos deporta­ outro aspecto. Sobretudo a lembrança
dos) ou vergonhosas (caso dos recru­ de guerras ou de grandes convulsões
tados à força) são zelosamente guar­ internas remete sempre ao presente.
dadas em estruturas de comunicação deformando e reinterpretando o pas·
M E MÓRIA. ESQUECIME NTO. SILÊNCIO 9

sado. Assim também, há uma perma­ tem em comum. em que se inclui O


nente interação entre o vivido e o território (no caso de Estados), eis
aprendido, o vivido e o transmitido. as duas funções essenciais da memó­
E essas constatações se aplicam a toda ria comum. Isso significa fornecer um
forma de memória, individual e cole­ quadro de referências e de pontos de
tiva, familiar, nacional e de pequenos referência. e portanto absolutamcnl<
grupos. " O problema que se coloca adequado falar, como faz Henry
a longo prazo para as memórias clan­ Rousso, em memória enquadrada, um
destinas e inaudíveis é o de sua trans­ termo mais específico do que memó­
missão intacta até o dia em que elas ria coletiva. ,. Quem diz "enquadra­
. .
possam aproveitar uma OcaSl80 para da" diz "trabalho de enquadramen­
.

invadir o espaço público e passar do to".:t Todo trabalho de enquadra.


"não-dito" à contestação e à reivindi­ mento de uma memória de grupo tem
cação; o problema de toda memória limites, pois ela não pode ser cons­
oficial é o de sua credibilidade, de sua trulda arbitrariamente. Esse trabalho
aceitação e também de sua organiza­ deve satisfazer a certas ex.igências de
ção. Para que emerja nos discursos po. justificação. 22 Recusar levar a sério o
Hticos um fundo comum de referên-

imperativo de justificação sobre o qual

Clas que possam constitUir uma me-


repousa a possibilidade de co�rdena­


mória nacional, um intenso trabalho ção das condutas humanas significa
de organização é indispensável para admitir o reino da injustiça e da vio­
superar a simples ftmontagem" ideo­ lência. À luz de tudo o que foi dito
lógica, por definição precária e frágil. acima sobre as memórias subterrâneas,
pode-se colocar a questão das condi­
ções de possibilidade e de duração de
o enquadramento da memória uma memória imposta sem a preo­
cupação com esse imperativo de jus·
Estudar as memórias coletivas for· tificação. Nesse caso, esse imperativo
temente constituídas, como a memória pode se impor após adiamentos mais
nacional, implica preliminarmente a ou menos longos. Ainda que quase
análise de sua função. A memória, sempre acreditem que Uo tempo tra­
essa operação coletiva dos aconteci­ balha a seu favor" e que "o esqueci­
mentos e das interpretações do passa­ mento e o perdão se instalam com o
do que se quer salvaguardar, se inte- tempo", os dominantes freqüentemen­
.
gra. como VImos, em tentativas mms
. ,

te são levados a reconhecer, demasia­


ou menos conscientes de definir e de do tarde e com pesar, que o intervalo
reforçar sentimentos de pertencimen­ pode contribuir para reforçar a amar­
to e fronteiras sociais entre coletivida­ gura, o ressentimento e o ódio dos do­
des de tamanhos diferentes: partidos, minados, que se exprimem então com
sindicatos, igrejas. aldeias. regiões, os gritos da contraviolência.
clãs, famílias, nações etc. A referência
O trabalho de enquadramento da
ao passado serve para manter a coesão
memória se alimenta do material for­
dos grupos e das instituições que com· necido pela história. Esse material
põem uma sociedade, para definir seu pode sem dúvida ser interpretado e
lugar respectivo, sua complementarie­ combinado a um sem-número de refe­
dade, mas também as oposições irre­ rências associadas; �uiado pela preo­
dutíveis. cupação não apenas de manter as fron­
Manter a coesão interna e defender teiras sociais, mas também de modifi­
as fronteiras daquilo que um grupo cá-Ias, esse trabalho reinterpreta in-
10 ESTUDOS HISTÓRICOS - 1989/3

cessantemente O passado em função me disse, antes de me pôr em contato


dos combates do presente e do futuro. com algumas de suas companheiras:
Mas, assim como a exigência de jus­ "O senhor deve compreender que nós
tificação discutida acima limita a fal­ nos consideramos um pouco como as
sificação pura e simples do passado guardiãs da verdade." Esse trabalho
na sua reconstrução política, o traba­ de controle da imagem da associação
lho permanente de reinterpretação do implica uma oposição forte entre o
passado é contido por uma exigência "subjetivo" e o "objetivo", entre a re­
de credibilidade que depende da coe­ construção de fatos e as reações e sen­
rência dos discursos sucessivos. Toda timentos pessoais. A escolha das tes­
organização política, por exemplo - temunhas feita pelas responsáveis pela
sindicato. partido etc. -, veicula seu associação é percebida como tanto
próprio passado e a imagem que ela mais importante quanto a inevitável
forjou para si mesma. Ela não pode diversidade dos testemunhos corre
mudar de direção e de imagem brutal­ sempre o risco de ser percebida como
mente 8 não ser sob risco de tensões prova da inautenticidade de todos os
difíceis de dominar, de cisões e mes­ fatos relatados. Dentro da preocupa-
mo de seu desaparecimento, se os ade­ çaa com a Imagem que a aSSOClaçao
_ . . -

rentes não puderem mais se reconhe­ passa de si mesma e da história que


cer na nova imagem, nas novas inter­ é sua razão de ser, ou seja, a memó­
pret",ões de seu passado individual e ria de seus deportados, é preciso por­
no de sua organização. O que está em tanto escolher testemunhas sóbrias e
jogo na memória é também o sentido confiáveis aos olhos dos dirigentes, e
da identidade individual e do grupo. evitar que "mitômanos que nós tam­
Temos exemplos disso por ocasião de bém temos" tomem publicamente a
congressos de partidos em que ocor­ palavra. 25
rem reorientações que produzem ra­ Se o controle da memória se esten­
chas, mas também por ocasião de uma de aqui à escolha de testemunhas au­
volta reflexiva sobre o passado na­ torizadas, ele é efetuado nas organiza­
cional,!3 como a passagem, na Fran­ ções mais formais pelo acesso dos pes­
ça, de urna memória idealizante, que quisadores aos arquivos e pelo empre­
exagera o papel da Resistência, a uma go de "historiadores da casa".
visão mais realista que reconhece a Além de uma produção de discur­
importância da colaboração. " sos organizados em torno de aconte­
Esse trabalho de enquadramento da cimentos e de grandes personagens, os
memória tem seus atores profissiona­ rastros desse trabalho de enquadra­
lizados, profissionais da história das mento são os objetos materiais: mo­
diferentes organizações de que são numentos, museus, bibliotecas etc.2f1
membros, clubes e células de refle­ A memória é assim guardada e solidi­
xão. Esse papel existe também, embo­ ficada nas pedras: as pirâmides, os
ra de maneira menos claramente defi­ vestígios arqueológicos, as catedrais
nida, nas associações de deportados ou da Idade Média, os grandes teatros, as
de ex-combatentes. Pode-se perceber óperas da época burguesa do século
isso quando se aborda, no contexto de XIX c, atualmente, os edifícios dos
uma pesquisa de história oral, os res­ grandes bancos. Quando vemos esses
I ponsáveis por tais associações. Em mi­ pontos de referência de uma época
nha pesquisa sobre as sobreviventes longínqua, freqüentemente os integra­
do campo de Auschwitz-Birkenau, mos em nossos próprios sentimentos
uma das responsáveis pela associação de filiação e de origem, de modo que
MEMÓRIA, ESQUECIMENTO, SILêNCIO 11

certos elementos são progressivamente indiretamente, na memória coletiva.


integrados num Cundo cultural comum A obra monumental de Lanzmann,
a toda a humanidade. Nesse sentido, Shoah, sob todos os aspectos fora de
não podemos nós todos dizer que des­ comparação com o filme de grande
cendemos dos gregos e dos romanos, público Holocausto, quer impedir o
dos egípcios, em suma, de todas as cul­ esquecimento pelo testemunho do in­
turas que, mesmo tendo desaparecido, sustentável.
estão de alguma forma à disposição O filme-testemunho e documentário
de todos nós? O que aliás não impede tornou·se um instrumento poderoso
que aqueles que vivem nos locais des­ para os rearranjos sucessivos da me­
sas heranças extraiam disso um orgu- mória coletiva e, através da televisão,
lho especial. . da memória nacional. Assim, os fil­
Nas lembranças mais próximas, mes Le chagrin et la pitié e depois
aquelas de que guardamos recordações Français si vous saviez desempenha­
pessoais, os pontos de referência ge­ ram um papel-chave na mudança de
ralmente apresentados nas discussões apreciação do período de Vichy por
são, como mostrou Dominique Veil­ parte da opinião pública Crancesa,
lon, de brdem sensorial: o barulho, os donde as controvérsias que esses fil­
cheiros, as cores. Em relação ao de­ mes suscitaram e sua proibição na te­
sembarque da Normandia e à liberta­ levisão durante longos anos. 2.
ção da França, os habitantes de Caen Vê-se que as memórias coletivas im­
ou de Saint-Lô, situadas no centro das postas e deCendidas por um trabalho
batalhas, não atribuem um lugar cen­ especializado de enquadramento, sem
trai em suas recordações à data do serem o único fator aglutinador, são
acontecimento, lembrada em inúmeras certamente um ingrediente importante
publicações e comemorações - o 6 de para a pereoidade do tecido social e
, junho de 1944 -, e sim aos roocos das estruturas institucionais de uma
dos aviões, explosões, barulho de vi­ sociedade. Assim, o denominador co­
dros quebrados, gritos de terror, cho­ mum de todas essas memórias, mas
ro de crianças. Assim também com os também as tensões entre elas, inter­
cheiros: dos explosivos, de enxofre, vêm na definição do consenso social
de fósforo, de poeira ou de quei­ e dos conflitos num determinado mo­
mado, registrados com precisão." Ain­ mento conjuntural. Mas nenhum gru­
da que seja tecnicamente difícil ou po social, nenhuma instituição, por
impossível captar todas essas lembran­ mais estáveis e sólidos que possam
ças em objetos de memória conCeccio­ parecer, têm sua perenidade assegu­
nados hoje, o filme é o melhor suporte rada. Sua memória, contudo, pode
para Cazê-Io: donde seu papel cres­ sobreviver a seu desaparecimento,
cente na formação e reorganização, e assumindo em geral a forma de um
portanto no enquadramento da memó­ mito que, por não poder se ancorar
ria. Ele se dirige não apenas às capa­ na realidade política do momento, ali­
cidades cognitivas, mas capta as emo­ menta-se de referências culturais, li­
ções. Basta pensar no impacto do fil­ ter.rias ou religiosas. O passado lon­
me Holocausto, que, apesar de todas gínquo pode então se tornar promes­
as suas fraquezas, permitiu captar a sa de futuro e, às vezes, desafio lan­
atenção e as emoções. suscitar ques­ çado à ordem estabelecida.
tões e assim Corçar uma melhor com­ Observou-se a existência numa so­
preensão desse acontecimento trágico ciedade de memórias coletivas tão nu­
em programas de ensino e pesquisa e, merosas quanto as unidades que com-
12 �Sl'UOOS HISTÓRICOS - 1989/3

põem a sociedade. Quando elas se in· Do lado oposto, a vontade de es­


tegram bem na memória nacional do­ quecer os traumatismos do passado
minante, sua coexjstência nâo coloca freqüentemente surge em resposta à
problemas, ao contrário das memórias comemoração de acontecimentos dila­
subterrâneas discutidas acima. Fora ceradores. Uma análise de conteúdo
dos momentos de crise, estas últimas de cerca de quarenta relatos autobio­
são difíceis de localizar e exigem que gráficos de mulheres sobreviventes do
se recorra ao instrumento da histó­ campo de concentração de Auschwitz­
ria oral. Indivíduos e cerlOs grupos Birkenau, publicados em francês, in­
podem teimar em venerar justamente glês e alemiio. e completados por en­
aquilo que os enquadradores de uma trevistas, revela em muitos casos o de­
memória coletiva em um nível mais sejo. simultâneo ao regresso do cam­
global se esforçam por minimizar ou POJ de testemunhar e esquecer para
eliminar. Se a análise do trabalho de poder retomar uma vida ·'normal".:!9
enquadramento de seus agentes e seus Muitas vezes também O silêncio das
traços materiais é uma chave para vítimas internadas oficialmente nos
estudar, de cima para baixo, como as campos por motivos outros que não
memórias coletivas são construídas, .. políticos" reflete uma necessidade de
desconstruídas e reconstruídas, o pro­ fazer boa figura diante das repre­
cedimento inverso, aquele que, com sentações dominanles que valorizam
os instrumentos da história oral. par­ as vítimas da perseguição política
te das memórias individuais. faz apa­ mais que as oulras. Assim, o fato de
recerem os limites desse trabalho de ter sido condenada por Uvergonha ra­
enquadramento e, ao mesmo tempo. cial", delito que. segundo a legislação
revela um trabalho psicológico do in­ de 1935, proibi. as relaçães sexuais
divíduo que tende a controlar as fe­ entre "arianos" e f'judeus", constituiu
ridas. as tensões e contradições entre um dos maiores obstáculos que uma
a imagem oficial do passado e suas das mulheres entrevisladas sentia pa­ 1

lembranças pessoais. ra falar de si mesma.::IO Uma pesquisa


de história oral feita na Alemanha
junto aos sobreviventes homossexuais
o mal do passado dos campos comprova tragicamente o
silêncio coletivo daqueles que, depois
Tais dificuldades e contradições da guerra, muitas vezes tcmeran\ que­
são particularmente marcadas em a revelação das razões dI! seu interna·
palses que atravessaram guerras CiVIS mento pudesse provocar denúncia.
• • •

num passado próximo, como a Espa­ perda de emprego ou revog!lção de


nha, a Áustria ou a Grécia. Um outro um contrato de locação." Compreen­
exemplo muito ilustrativo são as dis­ dt.!-se por que certas vítimas da máqui­
cussões na Alemanha sobre o fim da .na de repressão do Estado-SS - os
Segunda Guerra Mundial. Foi uma li­ criminosos, as prostitutas. os "asso­
bertação ou uma guerra perdida, ou ciais", os vagabundos. os ciganos e
as duas coisas ao mesmo tempo? Co­ os homossexuais - tenham sido cons­
mo organizar a comemoração de um cienciosamente cvilé.ldas na maioria
acontecimento que provoca lantos
-

das "mem6rias enquadradas" c não


sentimentos ambivalentes, perpas· tenham praticamente tido voz na his­
sando não apenas todas as organiza­ toriografia. Pelo falo de a repressão
ções políticas, mas muitas vezes um de que são .objeto ser aceita há muito
mesmo indivíduo? tempo, a história oficial evitou tam-
MEMÓRIA, ESQUECIME NTO. SILtNCIO 13

bém durante muito tempo submeter gica. Através desse trabalho de re­
a intensificação assassina de sua re­ construção de si mesmo o indivíduo
pressão sob o nazismo a uma análise tende a definir seu lugar social e suas
científica. relações com os outros.
Assim como uma "memória enqua­ Pode·se imaginar, para aqueles e
drada". uma história de vida colhida aquelas cuja vida foi marcada por
por meio da entrevista oral. esse re· múltiplas rupturas e traumatismos, a
sumo condensado de uma hislória 50· dificuldade colocada por esse rrabalho
cial individual, é também suscelível de construção de uma coerência e de
de ser apresentada de inúmeras ma· uma conlinuidade de sua própria his·
neiras em função do contexto no qual lória. Assim como as memórias cole·
é relatada. Mas assim como nO caso livas e a ordem social que elas con­
de uma memória coletiva, essas varia­ tribuem para constituir, a memória in·
ções de uma história de vida são Iimi· dividusl resulta da gestão de um equi­
tadas. Tanto no n{vrl individual como Ifbrio precário, de um sem·número de
no nível do grupo, tudo se passa como contradições e de tensões. Encontra·
se coerência e continuidade fossem mos traços disso em nossa pesquisa
comumente admitidas como os sinais sobre as mulheres sobreviventes do
distintivos de uma memória crível e campo de concentração de Auschwitz·
de um sentido de identidade .ssegu· llirkenau. sobreludo entre aquelas
rados.3! para as quais a inexistência de um
Em todas as entrevistas sucessivas engajamento polftico impossibilitou
- no caso de histórias de vida de conferir um sentido mais geral ao so­
longa duração - em que a mesma frimenlo individual. Assim. as difi·
pessoa volta várias vezes a um núme­ culdades e bloqueios que eventual­
ro restrito de acontecimentos (seja menre .surgiram ao longo de uma en­
por sua própria iniciativa, seja provo­ trevista só raramente resultavam de
cada pelo entrevistador), esse fenô' brancos da memória ou de esqueci­
meno pode ser constatado até na en· mentos, mas de uma reflexão sobre a
tonação. A despeito de variações imo própria utilidade de falar e transmi­
portantes, encontra-se um núcleo re­ lir seu passado. Na ausência de toda
sistente, um fio condutor, uma espé­ possibilidade de se fazer compreender,
cie de leU·mOliv em cada história de o silêncio sobre si próprio - diferen·
vida. Essas características de todas as te do esquecimenlo - pode mesmo
histórias de vida sugerem que eSlas .er uma condição necessária (presu.
últimas devem ser consideradas como mida ou real) para a manulenção da
instrumentos de reconstruçâo da iden· comunicação com o meio-ambiente,
tidade, e nâo apenas como relato, fac­ t:omo no caso de uma sobrevivente
tuais. Por definição reconstruçõo a judia que escolheu permanecer na
pOSleriori, a história de vida ordena Alemanha.
acontecimentos que balizaram uma Uma entrevista reil8 com uma de­
existéncia. Além disso. aO contarmos pOrlada residente em Berlim mostrou
nossa vida, em geral tenlamos estabe­ que um passado que permanece mudo
lecer lima certa coerência por meio de é muitas vezes menos o produto do
laços lógicos entre acontecimentos· esquecimentO do que de um trabalho
chaves (que aparecem então de uma de gestão da memória segundo as pos­
forma cada vez mais solidificada e sibilidades de comunicação. Duranle
estereotipada), e de uma conlinuida­ todH ;J «.:ntrcvista, a significação das
de, resultante da ordenaçao cronol6· paluvra� "alemã" e "judia" se a:lerou
14 ESTUDOS HISTÓR ICOS - 1989/3

em função das situações que apare­ 6 . G. Herberich-Marx, F. Raphael, "Les


ciam nO relato. Ao utiHzar esses ter­ incorporés de force alssciens. Déni, conv(r
cstion et provocation de la mémoire".
mos, essa mulher ora se integrava, Vingtieme Siec/e, 2, 1985, p. 83.
ora se excluía do grupo e das carac­ 7 . H. C8rr�re d'Encausse, Le malheur
teríslicas por eles designados. Da russe, Paris, Fayard. 1988.
mesma forma, o desenrolar dessa en­ 8. W. Laqueur, 'ahre aul Abrul, Stutt­
trevista revelou que ela havia organi­ gart, WDV, 1983.
zado toda a sua vida social em Berlim 9. Entre todos os exemplos desse fenô­
não em torno da possibilidade de po­ meno de esquecimentos sucessivos e de re·
der falar de sua experiência no cam­ escritas da história biográfica, um dos últi­
mos, o do presidente austríaco Kurt Wsld­
po, mas de uma maneira capaz de lhe
heim, é particularmente expressivo.
proporcionar 11m sentimento de segu­
10. G. Namer, La commémoration en
rança, ou seja, de ser compreendida France, 1944-1982, Paris, Papyros, 1983. p.
sem ter que ralar sobre isso. " Esse 157 e seg.; M. Pollak e N. Heinich, "Le
exemplo sugere que mesmo no nível lémoignage", Atles de la recherche en scien­
individual o trabalho da memória é ces socia/es, 62/63, 1986, p. 3 e sego
indissociável da organização social da li. N. Lapierre, Lesi/ence de la memói­
vida. Para certas vítimas de uma for­ re. A la recherche des Juils de Plock, Paris,
Plon, 1989, p. 28.
ma limite da classificação social,
12. G. Herberich-Marx, P. Raphael, op.
aquela que quis reduzi-las à condição cito
de "sub-homens", o silêncio, além da 13. Idem ib., p. 83 e 93.
acomodação ao meio social, poderia 14. Idem ib., p. 94.
representar também uma recusa em 15. Memórias de um mineiro loreno C(r
deixar que a experiência do campo, Ihidas por Jean Hurtel, citadas em G. Her·
uma situação limite da experiência berich-Marx, F. Raphael, op. cit.

humana, fosse integrada em uma for­ 16. Ver Ph. JoutaId, Ces voix qui nous
viennent du passé, Paris, Hachette, 1983.
ma qualquer de "memória enquadra­
17. C. Olievenstein, Les nOrJ-dils de ['é·
da" que, por princípio, não escapa ao motion, Paris, Odile Jacob, 1988.
trabalho de definição de fronteiras so­ 18. Idem ib., p. 57.
ciais. t como se esse sofrimento ex- 19. D. Veillon, "La Seconde Guerre
tremo eXIgisse uma ancoragem nwna Mondiale à tra'Vers les sources orales",
• •

memória muito geral, a da humanida­ Cahiers d e [l/HTP n. 4 (Questions à l'rus­


loire orale), 1987, p. 53 e sego
de, uma memória que não dispõe nem
20. H . Rousso, "Vichy, le grand rossé",
de porta-voz nem de pessoal de en­ Vingtieme Siec/e, 5, 1985, p. 73.
quadramento adequado. 21. O trabalho polltico é sem dúvida a
expressão mais visível desse trabalho de
enquadramento da memória: P. Bourdieu,
Notas "La représentation politique", Actes de la
recherche eu sciences sociales, 36/37, 1981�
I. M. Halbwachs, La mémoire collec/;ve, p. 3 e sego
Paris, PUF, 1968. .
22. L. Boltanski, Les économies de /a
2. P. Nora, Les lieux de mémoire, Paris, grandeur, Paris, PUF, 1987, p. 14 e sego
Gnllimard, 1985. 23. D. VeiUon, op. cit.
3. Para o conceito de violência simbó­ 24. H. Rousso, Le syndrome de Vichy,
lica, ver P. Bourdieu, Le sens pratique, Paris, Le Seull, 1987.
Paris, Minuit, 1980, p. 224.
25. M. Pollak e N. Heinich, "Le témoig·
4 . M. Halbwachs, op. cit., p. 12. nage", Actes de la recherche en sciences
5. M. Pollak, "Paur un inventaire", socia/es, 62/63, 1986, p. 13.
Cahiers de l'lHTP. n. 4 (Questions 3 l'bis­ 26. G. Namer, Ménroire et :iOciélé, Paris,
toire orale), Paris, 1987, p. 17. Méridiens/Klincksiek. 1987, analisa essa
MEMÓRIA, ESQU E C I M ENTO, S I LÊNCIO 15

função aplicada ãs bibliotecas, e F. Raphael 32 . M . Pollak, "Encadrement el siJence:


e G. Herberich·Marx analisam os museus le Iravail de la mémoire", Pénélope, 12,
nessa mesma perspectiva: " Le musée. pl'o­ t985, p. 37.
vacarian de la mémaire", EthlJo[og;c /ral1' 3 3 . M. Pollak, "La gestion de J'indici·
çai•• 1 7 , I , 1 987, p. 87 e sego
,
ble", Actes de la recherche en sciences
27 . D. Veillon, op. cito social." 62/63, 1986, p. 30 e sego
28. A análise dessesexemplos encon·
Ira-se em H . Rousso, op. cit.
Michael Pollak é pesquisador do Centre
29. M. Poltak e N. Heinich, op. ciL.
National de Recherches Scientifiques -
30. G. Ban, M. Pollnk, " Survivre dans CNRS. ligado ao InstituI d'Histoire du
un camp de concentratian " , Actes de la Temps Prcsent e ao Groupe de Sociologie
recherche en scionccs sociales. 4 1 , 1982, p. Polilique el Morale. Estuda as relações
3 e sego
entre política e ciências sociais e desenvolve
3 1 . R. Lautmann, Der ZWQ1'lg zur atualmente uma pesquisa sobre os sobrevi­
Tugelld, Frankfurt, Su1ukamp, t984, p. t56 ventes dos campos de concentração e sobre
e sego 8 Aids.

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