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ESPACO E POLITICA Henri LEFEBVRE Prof. Elvio FLG 560 GEOGRAFIA URBANA Texto / e Cépias BELO HORIZONTE Eprtora UFMG 2008 A CIDADE E O URBANO 1. Tornou-se uma banalidade dizer que a sociedade contemporanea esté em mutacao. A palavra “mutacao” 6 tem contetido preciso na biologia. Quando empregada com unt sentido sociol6gico trata-se menos de um conceito que de uma imagem, uma metéfora. Essa imagem pode mascarar a questo essencial: para onde vamos? Nao é menos certo que essa “mutagio” é caracterizada por crises miiltiplas que se imbricam umas nas outras, desde as crises econdmicas e as crises da economia politica, até as crises na arte, na literatura, no cinema, no teatro, na universidade, na juventude etc. Uma questéo se coloca nesse cipoal, nessa interferéncia de crises miiltiplas: existe uma crise e crises mais importantes, mais essenciais que as outras? O que se vai ler a partir daqui fundamenta-se numa hipétese, segundo a qual a crise da realidade urbana é mais importante, mais central que esta ou aquela outra. 2. E comum falar da sociedade industrial. Esse termo * € criticavel, pois ele nao evidencia certas relagées sociais constitutivas do processo de industrializa¢ao. As relagdes de producdo exigem uma anilise que o termo “sociedade industrial” tende a indir 20 acentuar a produgéo material, Serescimento puro e simples da produc endo as relacdes conseqiiéncias do processo, ou Seja, a urbanizacio, nao se tornam rapidamente mais importantes que sua causa inicial: a industrializacao. Avtese aqui apresentada é a de que a Problemética urbana desloca e modifica profundamente a problemética originada do processo de industrializacao, Enquanto a maioria dos teéricos e também dos “prticos” que procedem de maneira empirica consideram ainda a urbanizardo como uma conseqiiéncia exterior e menor, quase acidental, do processo essencial, a industri ¥ 1nés afirmamos o inverso, Nesse processo de duplo aspecto corre algo de muito importante, em termos classicos: um salto qualitativo. O crescimento quantitativo da Produgio econdmica produziu um fendmeno qualitativo que se traduz, ele préprio, por uma Problemitica nova: a Proble- matica urbana. E essencial dela tomar consciéncia e conhecimento para nfo perpetuar um erro tebico-epritico, erro que conisiste em pretender derivar da racionalidada empresarial, experiéncia da industrializacdo, modelos proccss aplicéveis a realidade urbana em formacio. 3 "dela tratar essa realidade & luz da empresa ¢ Como uma empresa. Ora, a racionalidade da empresa, de fa OrBanizacio, a divisio do trabalho que ela comporta, foi uma aquisicao essencial do periodo industrial, mas ela 80 nao mais convém ao periodo que comega, 0 qual deve elaborar uma forma nova de racionalidade: a racionali- dade urbana. Prolongar a antiga racionalidade, aplicé-la rrefletidamente, acarreta toda sorte de ‘equivocos, de ilusées ‘que se encontram no que se chama de “urbanismo”. A expressio “sociedade urbana’ nao pode ser empregada a Proposito de qualquer cidade ou cité:!na perspectiva assim definida ela designa uma realidade em formacao, em parte real e em parte virtual, ou seja, a sociedade urbana nao se encontra acabada. Ela se faz. E uma tendéncia que jé se manifesta, mas que est destinada a se desenvolver, Elucidada essa ambigtidade terminolégica, pode-se Propor uma periodizagio do tempo histérico dividindo-o em trés eras: aera agraria, a industrial, a urbana, Existiram cidades na era agréria ena era industrial. Mas aera urbana comega, ¢ s6 esta comecando. Repitamos uma vez mais que a periodiza¢ao nao é absoluta; todo recorte do tempo historico em periodos distintos é telativo. Poder-se-ia dizer, empregando-se uma metdfora corrente, que o urbano & ‘um continente que se descobre e que se explora a medida que é construido. 3. A cidade, desde os alvores da era agratia, foi uma criagdo humana, a obra por exceléncia; seu papel histérico ainda ¢ mal conhecido, sobretudo no Oriente Eateoriado modo de producio asidtico ainda reserva algumas surpresas quanto a relagio entre cidade e campo. Quanto ao proprio Ocidente, essa relagio conflitual, isto é, dialética, esta entre as que 0s historiadores menos conhecem. Quanto a cidade Propriamente dita, tanto oriental, quanto antiga, medieval ¢tc,, todo um conjunto de conceitos foi proposto: a a) b) ) a cidade é um objeto espacial ocupando um sitio ¢ uma situacao que é preciso estudar, enquanto ‘objeto, com diferentes técnicas e métodos: econdmicos, politicos, demograficos etc. Como tal, a cidade ocupa um espago especifico bem istinto do espaco rural. A relacio entre esses espacos depende das relacdes de produgio, quer dizer, do modo de producao e, através dele, da diviséo do trabalho no interior da sociedade; )nesse sentido, a cidade é uma mediacao entre uma ordem préxima e uma ordem distante. A ordem proxima é aquela do campo circundante que a cidade domina, organiza, explora extorquindo-lhe sobretrabalho. A ordem distante é a da sociedade no seu conjunto (escravista, feudal, capitalista etc). Enguanto mediagio, a cidade também é 0 local onde as contradigdes da sociedade considerada se manifestam, como, por exemplo, aquelas entre © poder politico e os diferentes grupos sobre os quais esse poder se estabelece; a cidade é uma obra no sentido de uma obra de arte. © espaco nao é apenas organizado e instituido. Ele também é modelado, apropriado por este ou aquele grupo, segundo suas exigéncias, sua ética e sua estética, ou seja, sua ideologia. A monumentalidade é um aspecto essencial da cidade enquanto obra, embora o emprego do tempo dos membros da coletividade urbana nio seja um aspecto menos importante. A cidade como obra deve ser estudada sob esse duplo aspecto: monumentos diversos e emprego do tempo que eles implicam para os citadinos e para 0s cidadaos. Em conseqiiéncia, na cidade antiga, 0 uso e 0 valor de uso ainda definem o emprego do tempo. Nas formas tradicionais da cidade, a troca eo valor de troca ainda no romperam todas as barreiras, nem se apoderaram de todas as modalidades do uso. £ nesse sentido que as cidades antigas séo e permanecem obras, e nao produtos. 4. O estilhacamento da cidade tradicional é um fené- meno evidente, ao contrario do seu sentido. E preciso procuré-lo, As interpretages desse fato foram e ainda so miltiplas. Uns pensam que ¢ preciso dar razio a “antici- dade” contra a cidade, e que a modernidade se define pela {ndo-cidade” (nomadismo, ou entio proliferacao indefi- nida do habitat). Esse fendmeno nao pode ser elucidado senio com uma anilise dialética e através do método dialé- tico, A industria surgiu efetivamente como a “nio-cidade” € a “anticidade’ Ela se implantou ao sabor dos recursos que empregava em seu favor, a saber, as fontes de energia, de matérias-primas, de mao-de-obra, mas ela atacou as cidades no sentido mais forte do termo, destruindo-as, dissolvendo-as. Ela as fez crescer desmesuradamente e provocou uma explosio de suas caracteristicas antigas (fenémeno de implosio-explosio).Com a industria, tem-se a generalizacio da troca e do mundo da mercadoria, que sio seus produtos. O uso € 0 valor de uso quase desapareceram inteiramente, nao persistindo senio como exigéncia do consumo de mercadorias, desaparecendo quase inteira- mente o lado qualitativo do uso. Com tal generalizagéo da troca, 0 solo tornow-se mercadoria; o espaco, indispensdvel para a vida cotidiana, se vende e se compra. Tudo 0 que constituiu a vitalidade da cidade como obra desapareceu frente A generalizagio do produto. 83 Pode-se dizer entao que a realidade urbana desapa- receu¥ Nao, 20 contrario, Ela se generaliza, A sociedade inteira torna-se urbana, O processo dialético é0 seguinte: a Cidade ~ sua negaco pela industrializacdo ~ sua restituicao 3 uma escala muito mais ampla que outrora, ada sociedade {inteira. Esse processo néo transcorre sem conilitos, cada vez mais profundos. As relaces de produgao existentes se estenderam, se ampliaram; elas conquistaram uma base mais empla integrando simultaneamente a agricultura ¢ a tealidade urbana, mas nessa ampliacdo introduziram conflitos novos. De um lado, instituiram-se centros de decisio dotados de poderes ainda desconhecidos, pois cles concentram a riqueza, a poténcia repressiva, a informagao. De outro lado,, oestilhacamento das antigas ‘cidades permitiu Segregagées multiformes; os elementos da sociedade sio implacavelmente separados uns dos outros no espaco, acarretando uma dissolucéo das relacdes sociais, no sentido omais amplo, que acompanha a concentracio das relagées imediatamente ligadas as relacdes de propriedade. 5. Assim se forma esse conceito novo: o urbano. E pre- iso distingui-lo bem da cidade. O urbano se distingue da cidade precisamente porque ele aparece e se manifesta no curso da explosio da cidade, mas ele permite reconsiderar € mesmo compreender certos aspectos dela que passaram despercebidos durante muito tempo: a centralidade, 0 espaco como lugar de encontro, a monumentalidade ete O urbane, isto é a sociedade urbana, ainda nao existe e, contudo, existe virtualmente; através das contradigdes enitre o habitat, as Segregacées ea centralidade urbana que éessencial a prética social, manifesta-se uma contradicéo plena de sentido, 84 O urbano é um conceito tedrico formulado e liberado Por um processo tal como ele se apresenta a nds e como © analisamos. Nio se trata de uma esséncia na acepcio tradicional do termo entre os filésofos; nao se trata de uma substéncia como tenderia a fazé-lo acteditar este ou aquele termo ainda utilizado de forma laudatoria, como Por exemplo a urbanidade; trata-se, antes, de uma forma, 2 do encontro e da reuniio de todos os elementos da vida social, desde os frutos da terra (trivialmente: os produtos agricolas) até os simbolos e as obras ditas culturais. No Préprio seio do processo negativo da dispersao, da segre- a¢ao, o urbano se manifesta como exigéncia de encontro, de reuniao, de informagio. Enquanto forma, o urbano tem um nome: ¢ a simulta- neidade, Essa forma coloca-se entre as formas que se pode estudar discernindo-as de seu contetido. Pode ser muito diverso o que a forma urbana retine e torna simultaneo, Tanto sao coisas quanto pessoas, quanto signos; o essencial €areuniao ea simultaneidade. Nesse sentido, pode-se dizer que 0 “vetor nulo” é essencial & definicao do urbano. A centralidade tem seu movimento dialético especifico. Ela se impée. Nao existe realidade urbana sem centro, quer se trate do centro comercial (que reine produtos e coisas), do centro simbélico (que retine significacdes ¢ as torna simultaneas), do centro de informacao e de decisao etc. Mas todo centro destréi-se a si proprio. Ele se destroi Por saturagao; ele se destréi porque remete a uma outra centralidade; ele se destréi na medida em que suscita a acao daqueles que ele exclui e expulsa para as periferias. A forma urbana assim revelada é uma abstracéo, porém conereta. Assim como a forma da troca, tal como demonstrada as por Marx no inicio d’O capital. Essa forma e sua teoria sio extremamente abstratas, por isso sua anilise foi pouco compreendida durante um século, E, ndo obstante, essa forma abstrata éa chave do concreto, da pritica. £0 ponto de partida para a apreensio do contetido. Outro exemplo: as formas da propria légica, enquanto formas de todo pensamento, s40 muito abstratas e, entretanto, elas sio as pedras angulares e 0 ponto de partida de toda reflexio metodicamente conduzida, Poder-se-ia multiplicar os exemplos de tal forma ao mesmo tempo abstrata e concreta (a simetria, a repetigao etc.). O cariter abstrato desta reflexao sobre o urbano e desta definigao pode se considerar como um obstaculo, mas nao como uma objegao. E a forma geral que proporciona 0 sentido as constatagdes empiricas, e nao o inverso. Em simesmas, as constatacdes empiricas nao chegam aforma geral. Entretanto, elas sao indispensaveis, pois revelam © contedido da forma. Elas permitem estudar, analisar © proceso, baliza-lo, demarcar os pontos importantes. Notadamente, a segrega¢ao, a constituigéo de espacos periféricos e pobres permitindo a reproducao das relacdes de produgao (que sdo relagdes de classes), essa segregacio constitui uma negagao tedrica e pratica do urbano, mas, enquanto tal, ela o revela. O carater desértico, abandonado, das periferias urbanas é revelador. O que ele revela? Para descobri-lo e dizé-lo é preciso lé-lo. A leitura dos espacos urbanos, periféricos ou centrais, nao se faz somente sobre mapas, construindo um cédigo abstrato, Trata-se de uma leitura sintomal por exceléncia, e nao literal. 6. Essa leitura do espaco urbano permite chegar a uma definigdo geral dele através das contradigdes e das negacdes 86 imbricadas: 0 que se constitui é um tempo-espago dife- rencial. © tempo e o espaco do periodo agrério so acom- panhados de particularidades justapostas: as dos sitios, dos climas, da flora e da fauna, das etnias humanas etc. O tempo e 0 espaco da era industrial tenderem e ainda tendem para.a homogeneidade, para 2 uniformidade, para a continuidade constrangedora. O tempo e 0 espaco da era urbana tornam-se diferenciais e esse cardter ¢ posto em evidéncia pela andlise. Redes ¢ fluxos extremamente diferentes superpdem-se e se imbricam, desde as redes vidrias até os fluxos de informag6es, desde o mercado de produtos até as trocas de simbolos. A dialética da centrali- dade introduz um movimento diferencial de uma poténcia extraordinéria. Pode-se propor a distingao de topias nesse espaco: isotopias (espacos homélogos, tendo fungdes ou estruturas andlogas); heterotopias (espagos contrastantes, jogos de forcas repulsivas, as vezes considerdveis, e de tensdes, freqiientemente extremas) e utopias (lugares do alhures e do que nao tem lugar, especialmente o saber e 0 poder, ao mesmo tempo presentes ¢ ausentes, notadamente na monumentalidade). Essa andlise diferencial do espaco urbano escapa aos procedimentos analiticos que constatam e consagram a homogeneizacio sob a aparéncia da racionalidade. Esses procedimentos analiticos apenas se atém aos esquemas uniformes, as homologias. Eles conduzem as ldgicas (a da troca, a da planificagao etc.), ao invés de por o acento nas diferencas. 7. Desse erro fundamental sobre a racionalidade resulta uma conseqiiéncia que ja mencionamos, mas sobre a qual ¢ preciso insistir: 0 urbano, essa virtualidade em marcha, essa potencialidade que jé se realiza, constitui um campo 87 cego para os que se atém a uma racionalidade jé superada, €€ assim que eles correm o risco de consolidar o que se opde a sociedade urbana, o que anega ea destréi no curso do préprio processo que a cria, a saber, a segregacio generalizada, a separacao, no terreno, de todos 03 elementos € aspectos da pratica social, dissociados uns dos outros e reagrupados por decisio politica no seio de um espaco homogeneo. (Espaces et Societés, Paris, Editions Anthropos, n. 2, mars 1971.)

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