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Machado, David
Escola de Arquitetura e Urbanismo da UFMG. Laboratório de Utopias Urbanísticas e Experimentais
dpmarq@hotmail.com
RESUMO
Este trabalho trata do estudo da história da casa brasileira. A intenção deste artigo foi identificar a
necessidade da construção de capelas particulares em propriedades rurais na Região das Minas.
Estas capelas permitiram aos moradores do campo que cumprissem suas obrigações semanais de fé,
mesmo estando as fazendas localizadas a consideráveis distâncias dos núcleos urbanos. Este hábito
se traduziu na edificação de espaços de culto privativos que criaram um aspecto muito peculiar das
práticas religiosas coloniais. A criação deste mundo particular de fé exigia autorização especial da
Igreja, além da criação de todo o aparato religioso necessário no culto cristão. Contudo, a Igreja
impôs certas restrições referentes ao uso destes espaços, principalmente quanto à presença dos
escravos. A documentação manuscrita da época permitiu traçar possíveis caminhos trilhados pela
Igreja e pelos proprietários rurais para que os moradores do campo cumprissem com suas obrigações
diárias com a fé.
Ao longo da pesquisa foi possível identificar certa divergência quanto ao uso dos termos
capela, ermida e oratório. Entre 1821 e 1825, Dom Frei José da Santíssima Trindade, sexto
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bispo da Diocese de Mariana, empreendeu uma extensa e minuciosa visita pastoral por
quase toda a região das Minas. Nas vilas e nos arraiais, o bispo nomeou as edificações
religiosas como igrejas e capelas, de acordo com sua função eclesiástica. No caso de
espaços religiosos edificados em locais ermos, o bispo os denomina de ermida, assim como
em quase todas as propriedades rurais visitadas (TRINDADE, 1998, p.40). Entretanto, os
documentos manuscritos analisados trazem diferentes denominações para o espaço
religioso particular. No caso da fazenda do Rio São João, a autorização da Arquidiocese de
Mariana para celebração de missas trata o espaço como oratório (AEAM, 1810, frente),
enquanto os assentos de batismos, registrados para a mesma propriedade, usa o termo
ermida (CEDEC, 1808/1837, p.68). Já o inventário do Visconde de Caeté, no qual aparece
arrolada a fazenda do Rio São João, herdada por sua esposa, registra uma “casa e capela
com os ornamentos necessários” (MO/CBG, 1841, p.60). Devido às diferentes
denominações possíveis, optou-se por usar o termo capela ao longo deste estudo, para
evitar qualquer tipo de associação com os oratórios portáteis, também muito populares na
Colônia.
Entretanto, estas Ordens Religiosas não foram admitidas na região das Minas, sob
acusação de ser responsáveis, sobretudo, pelo extravio do ouro (BOSCHI, 1986, p. 3), o
que favoreceu o surgimento e a proliferação das associações leigas. Por esta razão, as
Irmandades e Ordens Terceiras, a partir do século XVIII, vivenciaram a possibilidade de um
crescimento ímpar. E o pedaço da América Portuguesa, que serviu de cenário para essa
expansão assombrosa foi, não por mera coincidência, a região mais rica de todo o Novo
Mundo em sua época: as Minas de ouro e diamante (PAIVA, 1996, p.127).
Por isso, pertencer a uma associação leiga era condição de vida na Colônia e representava
a fuga à marginalização. Seguindo a estratificação da sociedade colonial, as irmandades
também se dividiam e se organizavam baseadas na cor da pele e na condição legal, social e
econômica de seus membros. Assim, é possível encontrar associações de brancos, das
classes de dirigentes ou de reinóis, como as poderosas ordens Terceiras de Nossa Senhora
do Carmo e de São Francisco de Assis, as Irmandades do Santíssimo Sacramento, São
Miguel e Almas e Nossa Senhora da Conceição. Irmandades de mulatos, crioulos ou negros
forros, como a Irmandade de Nossa Senhora das Mercês, Nossa Senhora do Amparo e a
Arquiconfraria do Cordão de São Francisco. E por fim, as Irmandades de negros escravos e
negros forros, como Nossa Senhora do Rosário, Santa Efigênia e Santo Elesbão (SOUZA,
2002, p.18).
E foi neste cenário que os habitantes das Minas praticaram suas obrigações diárias com a
fé. A Igreja determinava que a doutrina cristã estivesse presente em todas as famílias da
Colônia e, principalmente, entre os escravos. Isso incluía a celebração dos sete
Sacramentos, que eram divididos em três categorias, como forma de receber a graça de
Deus e conferir sacralidade a certos momentos da vida cotidiana. Sacramentos da iniciação
cristã: Batismo, Crisma e Eucaristia. Sacramentos da cura: Penitência e Unção dos
Enfermos. Sacramentos ao serviço da comunhão e da missão: Ordem e Matrimônio (VIDE,
1853, p.12).
Todo este contato com o sobrenatural, que criou a ponte tão necessária entre a vida terrena
e o mundo dos Céus encontrou, no ambiente urbano das Minas, seu campo mais fértil de
desenvolvimento. Entretanto, o rápido crescimento dos núcleos urbanos foi, gradativamente,
sendo seguido pela ocupação dos campos traduzido pela construção de fazendas que se
transformariam, no futuro, em grandes complexos agropecuários. Apesar da distância, as
práticas religiosas não perderam sua força propulsora, parte integrante e inalienável da vida
cristã de cada fiel e encontraram eco na construção e consagração de capelas particulares.
Esta criação de um mundo particular de fé será analisada a seguir.
O modelo mais comum de casa rural, no início da ocupação da região mineradora, seguiu,
de certo modo, o modelo adotado pelo sítio bandeirista. Dos primórdios da mineração nada
restou. Entretanto, os exemplares mais antigos que se tem notícia, como é o caso da
fazenda do Manso, nos arredores de Ouro Preto, mostra como as casas rurais, construídas
nessas duas regiões da América Portuguesa, guardavam características semelhantes. O
que mais aproxima os dois modelos é a permanência da faixa fronteira, composta por
varanda entalada entre a capela e o quarto de hóspedes. Esta solução quase sempre se
repete nas sedes de fazenda da região mineradora que, mesmo se apresentando de forma
peculiar, em decorrência do desenvolvimento de uma prática construtiva local, se manteve
vinculada aos modelos que a geraram (MELLO, 1985, p.223).
A implantação das capelas em uma das extremidades da faixa fronteira foi solução
amplamente adotada na colônia. A permanência da faixa fronteira durante quase quatro
séculos de colonização se deve, antes de tudo, à sua importante função de filtro social e as
capelas estavam diretamente ligadas a esta função. A varanda é um espaço intermediário
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entre o mundo exterior e a intimidade do interior da habitação, dominada pela esfera
privada, mais reservada às mulheres e à família. Mesmo tendo sido construídas sob a
mesma cobertura da casa, estas capelas estão estrategicamente fora da área íntima da
moradia. De acordo com a documentação analisada, esta solução teria surgido a partir de
uma exigência da Igreja que impunha a separação do espaço sagrado do espaço profano.
De 1789 é o Breve de Oratório, emitido para o Coronel Antônio Brandão de Mello, chefe do
Segundo Regimento de Cavalaria da Comarca de Sabará. O documento era um pedido feito
pelo coronel seguido de uma autorização da Igreja para a celebração de missas em sua
capela particular, localizada em Santa Bárbara. Em 1790, sua residência recebeu a
aprovação do visitador que descreveu o espaço da capela como “separado dos usos
profanos, bem ornado, com pedra de Ara e cálice dourado por dentro” (AEAM, 1789, frente).
FIGURA 1: Vista da fachada frontal da Fazenda do Rio São João em Bom Jesus do Amparo, MG. A
passagem aberta, logo abaixo da camarinha, leva à entrada da capela que está separada dos usos
domésticos da casa.
FONTE: Foto de David Prado Machado.
Portanto, é possível dizer que a Igreja Católica desempenhou papel importante na
concepção dos espaços e dos complexos arquitetônicos da propriedade rural na América
Portuguesa. A necessidade de cumprir os ensinamentos de Deus fez com que as fazendas
fossem equipadas com espaços especiais, destinados ao culto e construídos de acordo com
as rígidas regras da Igreja. Tendo em vista a condição de estar fora dos usos domésticos e
profanos das casas, as capelas foram estrategicamente instaladas nas faixas fronteiras das
residências, justapostas a elas ou mesmo isoladas (FIG. 2). Estas tipologias podem ser
encontradas em propriedades rurais de várias regiões da América Portuguesa como nos
engenhos da região açucareira, nas fazendas da região das Minas, nas fazendas de café do
Vale do Paraíba e no sítio bandeirista.
Para administrar o Sacramento do Batismo, a capela deveria estar equipada com pia
batismal de pedra lavrada com tampa e também com armário fechado para os Santos
Óleos, que eram usados tanto nas cerimônias de batismo, quanto na celebração do
Sacramento do Crisma e da Extrema Unção. Estes óleos deveriam ser guardados em
Âmbulas de prata ou estanho (VIDE, 1853, p.28). Estes objetos de culto fizeram parte do
acervo de algumas capelas particulares das Minas, como mostra o Auto de tombamento da
Fazenda do Rio São João, que traz arrolada uma pia batismal com tampa e três Âmbulas de
Santos Óleos, guardadas no Armário (IPHAN, 1973, p.10). Os batizados, por ordem da
Igreja, deveriam ser registrados nos Livros de Assentos de Batismo das Paróquias. E a
capela da Fazenda do Rio São João aparece listada várias vezes nestes registros,
O Sacramento da Ordem tem função administrativa e confere poder aos sacerdotes para
cumprir os demais sacramentos, o que exigia licença especial da Igreja. Da mesma forma,
os locais de culto também deveriam ser aprovados e precisavam receber as devidas
licenças por meio de Breve Apostólico (VIDE, 1853, p.102). Os únicos documentos
remanescentes no Arquivo de Mariana apontam para esta exigência e revelam que as
capelas haviam sido visitadas e aprovadas e os devidos Breves expedidos para João da
Motta Ribeiro e seus filhos (AEAM, 1809, verso) e para o Tenente Coronel Antônio Brandão
de Mello (AEAM, 1789, verso).
Nos arraiais ou nas vilas, havia espaços específicos para a prática religiosa dos diferentes
grupos, como as capelas das Ordens Terceiras, Irmandades e Confrarias que poderiam
abrigar todas as camadas da população. Se esta era a realidade da sociedade mineradora
nos núcleos urbanos, na propriedade rural, apesar dos mesmos valores terem sido
cultivados, as opções se resumiam a um único local de culto, a capela da fazenda.
FIGURA 3: Brasilia Qua Parte Paret Belgis. Pintura atribuída a Frans Post.
FONTE: ZANINI, Walter (Org.). História geral da arte no Brasil. São Paulo: Inst. Walter Moreira Salles,
1983.
A pintura de Frans Post, na qual se identificam a senzala e sua possível capela particular, foi
reproduzida no livro de Gaspar Barleus e identificada como “habitação dos menos
privilegiados” (VAIFAS, 1997, p.118) (FIG.4). O relato do Frei André, juntamente com as
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imagens mostradas nas Figuras 3 e 4, aponta a possibilidade alcançada pelos escravos de
dispor de um espaço privativo para suas práticas religiosas, mostrando certa liberdade
dentro do sistema escravista.
FIGURA 4: Fluvius Grande (1647). Reprodução da pintura de Frans Post encontrada no livro de
Gaspar Barleus. Gravura. São Paulo, Coleção José Mindlin.
FONTE: VAINFAS, Ronaldo. Moralidades brasílicas. In: NOVAIS, Fernando (Org.). História da vida
privada no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1997. – v. 1.
5. Considerações Finais
6. Bibliografia
AMARAL, Araci Abreu. A hispanidade em São Paulo, Da casa rural à capela de Santo
Antônio. São Paulo: Nobel, 1981.
MOTT, Luiz. Cotidiano e vivência religiosa: entre a capela e o calundu. In: NOVAIS,
Fernando (Org.). História da vida privada no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1997.
OSTROWER, Fayga. Criatividade e processos de criação. Petrópolis, Vozes, 2002.
REIS, João José. A morte é uma festa. Ritos fúnebres e revolta popular no Brasil do século
XIX. São Paulo: Companhia das Letras, 1991.
SALES, Fritz Teixeira de. Associações do ciclo do ouro. UFMG/Centro de Estudos Mineiros.
Belo Horizonte, 1963.
SOUZA, Laura de Melo e. O diabo e a terra de Santa Cruz. Feitiçaria e religiosidade popular
no Brasil colonial. São Paulo: Schwarcz, 2005.
SOUZA, Marina de Mello e. Reis negros no Brasil escravista. São Paulo: Companhia das
Letras, 2002.
TRINDADE, José da Santíssima, Dom Frei. Visitas pastorais de Dom Frei José da
Santíssima Trindade (1821-1825). Belo Horizonte: Fundação João Pinheiro, 1998.
PAIVA, Clotilde Andrade. População e economia nas Minas Gerais do século XIX. Tese de
doutorado apresentada à Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da
Universidade de São Paulo. São Paulo, 1996.
PANOFSKY, Erwin. Significado nas artes visuais. São Paulo: Perspectiva, 1979.
___. Moralidades brasílicas. In: NOVAIS, Fernando (Org.). História da vida privada no Brasil.
São Paulo: Companhia das Letras, 1997. – v. 1.
WILLEKE, Frei Venâncio. Senzalas de Convento. In: Revista de História. São Paulo, v. 53,
1976.
ZANINI, Walter (Org.). História geral da arte no Brasil. São Paulo: Instituto Walter Moreira
Salles, 1983.
7. Fontes Manuscritas
AEAM – Arquivo Eclesiástico da Arquidiocese de Mariana
Breve de Oratório de 1809 para João da Motta Ribeiro e seus filhos. Documento Nº 1363.
Breve de Oratório de 1789 para o Tenente Coronel Antônio Brandão de Mello. Documento
Nº 1243.