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A Long Long Way, de Sebastian Barry, uma

leitura…

O romance que discutiremos aqui, A Long Long Way, foi publicado nos Estados
Unidos pela editora Viking Penguin em 2005 e em 2006 pela Penguin Group
simultaneamente nos Estados Unidos, na Irlanda, na Inglaterra, Canada, Austrália, Nova
Zelândia, Índia e África do Sul. A tradução brasileira, pela escritora Cecília Prada, foi
publicada em 2014 pela Editora Bertrand Brasil, sob o título Um Longo Longo Caminho.
Barry conta, em entrevista disponível no site da editora Penguin,1 que o título da obra foi
uma homenagem ao seu avô materno, John O’Hara, que embora houvesse lutado apenas
na Segunda Guerra Mundial, apreciava cantar as músicas da Primeira Guerra,
especialmente a balada de 1912 “It’s a long long way to Tipperary,” que tornou-se muito
popular entre os soldados britânicos. Enquanto Barry pesquisava a respeito da guerra e
examinava as canções da época, podia ouvir a voz do avô cantando-as, principalmente a
que ele escolheu para título do livro. Aclamado pela crítica e pelo público, seu romance
A Long Long Way traz como tema um episódio histórico para o qual a narrativa
republicana irlandesa preferiu não dar visibilidade − a entrada da Irlanda na Primeira
Guerra Mundial (1914-1918) fazendo parte do exército britânico.
Chamamos a atenção neste capítulo para a diferença de interpretação desse
episódio nas duas Irlandas, celebrado ao norte e esquecido ao sul, usando como ilustração
a história que Barry nos conta de um irlandês de Dublin que se torna soldado muito jovem,
perde seus referenciais e até a própria vida lutando por uma causa que não sabe bem qual
é, e que será apagada da versão histórica oficial poucos anos depois, quando a situação
política de seu país levará a uma divisão que se mantém até os dias de hoje.
Enquanto na Irlanda do Norte o sacrifício dos soldados da 36ª divisão de Ulster
na Batalha do Somme é comemorado, fazendo parte da narrativa contínua de lealdade dos
protestantes à monarquia britânica, que nos remete à Batalha do Boyne em 1690,2 na
República, o memorial de guerra em Islandbridge, Dublin, em homenagem aos irlandeses

1
http://www.us.penguingroup.com/static/rguides/us/long_long_way.html
2
A batalha do [rio] Boyne foi travada em 1690 entre o exército do rei católico James que havia sido deposto
e do rei protestante William de Orange, que assumira em 1688 o trono da Inglaterra, Escócia e Irlanda na
restauração da monarquia, na chamada Revolução Gloriosa. James reclamava seu direito ao trono, mas foi
derrotado pelas forças protestantes. O episódio é emblemático na narrativa do Ulster, e até hoje esta vitória
é comemorada na Irlanda do Norte, todo dia 12 de julho.

16
do sul que lutaram na Primeira Guerra foi concluído em 1939, mas não foi inaugurado
imediatamente por conta do início da Segunda Guerra Mundial (1939-1945).
Abandonado por décadas, o memorial só começou a ser restaurado na década de 1980 e
a sua inauguração oficial só se deu em abril de 1995.
A justificativa para essa demora foi a falta de interesse dos nacionalistas em
mostrar que irlandeses e ingleses lutaram lado a lado no exército britânico, juntamente
com outras nacionalidades do império. Para a causa nacionalista, a imagem dos irlandeses
deveria ser a de que sempre foram oprimidos, não deixando espaço para celebrações que
pudessem evidenciar sua aliança com o opressor. Tal aliança, no entanto, já se estendia
por mais de um século quando a guerra teve início em 1914. No início do século XIX, em
1801, com a união dos parlamentos britânico e irlandês e a criação do Reino Unido da
Grã Bretanha e Irlanda, o país havia deixado de ser uma colônia inglesa para fazer parte
do estado britânico.
A versão da opressão adotada pela república e que consta dos livros didáticos e
livros de história da Irlanda escritos antes da década de 1970, ou em outras palavras, antes
do projeto revisionista da historiografia, não leva em conta a complexidade da realidade
irlandesa no período que antecedeu a separação do país e a criação do Estado Livre,
formado pelos 26 condados do sul, em 1922.
Alinhado ao conceito de uma revisão historiográfica, ressaltamos aqui a
intencionalidade do projeto autoral de Barry de resgatar a pequena história de anônimos
como os soldados irlandeses que lutaram na guerra, para mostrar um pouco daquela
realidade. Ao fazer uso da perspectiva histórica do irlandês comum e utilizar a experiência
individual como contraponto aos estereótipos dos discursos nacionalistas, Barry parece
querer honrar a participação dos irlandeses do sul na Primeira Guerra, negligenciada por
muitas décadas na república. Escavando fragmentos de histórias de pessoas comuns e
preenchendo silêncios e lacunas presentes nas narrativas oficiais, Barry constrói versões
alternativas e induz o leitor à reflexão.
Ser um cidadão do estado britânico, mesmo com todos os problemas que não nos
cabe aqui desenvolver, era motivo de orgulho para muitos irlandeses até as primeiras
décadas do século XX. O discurso nacionalista oficial, no entanto, enfatiza a crueldade e
a opressão vivida pelo povo irlandês e mostra apenas a insatisfação dos cidadãos com a
falta de independência política da Irlanda em relação ao Reino Unido, não contemplando
a perspectiva daqueles que apoiavam a união, de parte da população que estava sim, muito
satisfeita em fazer parte do poderoso estado britânico imperial. Na ótica do autor, as

17
identidades individuais nem sempre se alinharam à ideologia do nacionalismo, e ele
julgou ser preciso dar visibilidade também a esse aspecto.
Para isso, Barry cria uma representação do trauma coletivo da Primeira Guerra em
A Long, Long Way e pretende mostrar de que maneira o evento traumático vem a afetar
cada indivíduo, assemelhando-se, neste sentido, ao romance de trauma conforme
teorizado por Ronald Granofsky (1995), para quem esse tipo de narrativa “explora o
simbolismo literário da experiência individual de um trauma coletivo, quer em eventos
reais do passado, tendências alarmantes do presente ou horrores imaginados para o
futuro.” (1995, p.5). A experiência traumática extrapola a capacidade humana de
compreensão e a sua assimilação pela memória, o que torna a representação muito difícil,
ou até mesmo impossível, senão pelo viés do simbolismo literário. Partindo deste
pressuposto, Granofsky teoriza sobre o romance de trauma selecionando características
comuns às obras ficcionais que poderiam ser classificadas neste subgênero. Veremos aqui
até que ponto A Long, Long Way partilha dessas características e como essa teorização
pode nos oferecer uma chave para a leitura do romance.
Granofsky afirma que a experiência traumática “desafia a razão e o sentido de
organização de mundo, prejudicando seriamente a manutenção do sentido de realidade e
desafiando o modelo de mundo no qual operamos inconscientemente.” (1995, p.8). Para
explicar a resposta do indivíduo ao trauma, o autor toma por empréstimo do campo da
psicologia os termos ‘assimilação’ e ‘acomodação’, articulados por Jean Piaget em seu
livro La Formation du Symbole chez l’Enfant (Piaget, 1946 apud Granofsky, 1995).
A assimilação implica a incorporação da experiência traumática a partir das
categorias existentes nos esquemas mentais de um modelo de mundo de determinado
indivíduo. A acomodação, por sua vez, exige uma mudança na própria visão de mundo
para dar conta da nova experiência, o que é mais doloroso e frequentemente menos bem
sucedido. Para exemplificar e distinção entre os dois conceitos, Granofsky propõe que se
imagine a situação de nos depararmos com um grupo de pessoas flutuando no ar. A
assimilação dessa experiência iria requerer uma explicação, como a de que o espetáculo
se devia à ajuda de efeitos especiais. Neste caso não haveria quaisquer modificações em
nossa visão de mundo, já que efeitos especiais fazem parte de uma lógica que nos permite
entender o fenômeno apresentado.
Já a acomodação de uma experiência como a que descrevemos necessitaria de uma
reconsideração de premissas básicas a respeito do mundo físico, como o fato de que os
objetos tem peso e de que todos estão sujeitos à força da gravidade. O trauma psicológico

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no romance de trauma, entendido dessa forma, pode ser definido como “uma experiência
dolorida que desafia a assimilação e exige a acomodação.” (Granofsky, 1995, p.9). Os
protagonistas dos romances de trauma, por sua vez, tentam alcançar o “equilíbrio psíquico
e a sua [própria] integração ao mundo em um momento de mudança histórica, e essa
busca representa um esforço cultural de realinhamento” [com a realidade que se
apresenta]. (Granofsky, 1995, p.8).
Passemos então ao romance A Long Long Way para verificarmos a resposta do
protagonista ao trauma da guerra em si e a outras experiências traumáticas pessoais
decorrentes de sua participação no conflito, como a perda da namorada e o desprezo que
passa a receber por parte de seu pai quando discorda de sua posição política.
O soldado William Dunne, Willie, que vivia de acordo com os preceitos do pai, o
superintendente da polícia de Dublin Thomas Dunne, é católico e favorável à união entre
a Irlanda e a Grã Bretanha. O rapaz julgava certo defender o império contra quaisquer
ameaças, como as insurreições nacionalistas que tomaram as ruas de Dublin durante a
guerra. Depois da experiência traumática, Willie passa a nutrir certa empatia pelos
rebeldes, principalmente depois de ser obrigado a atuar como soldado britânico para
sufocar o Levante de Páscoa ao receber uma licença e voltar à Dublin em 1916. Essa
mudança de percepção demonstra que a sua visão de mundo se alterou, num processo
análogo ao de acomodação, conforme descrito por Granofsky. O soldado tenta explicar a
seu pai que a guerra o havia transformado: “há um mundo escuro e engraçado lá fora, na
guerra, papai, disse Willie devagar. Ele leva sua mente a pensar milhares de pensamentos,
milhares de novos pensamentos.3” (Barry, 2008, p. 247).
Os leitores acompanham a história de Willie desde o nascimento, sua infância e
adolescência em família, sua paixão por Gretta, o alistamento militar, o treinamento
militar em Cork e a sua ida à guerra. Primeiro ele chega às trincheiras da Bélgica, onde
passa os primeiros meses em relativo conforto no acampamento, quase não
testemunhando quaisquer lutas. Nada realmente ruim lhe acontece ou a seus
companheiros, a despeito do medo que sentem, até que um dia, os soldados percebem
uma nuvem pairando lentamente sobre a terra: “o que era extraordinário era a estranha
nuvem de tom amarelo que havia aparecido do nada, como neblina vinda do mar [...] e a

3
It’s a funny dark world out at the war, Papa, said Willie slowly. It brings your mind to think a thousand
thoughts, a thousand new thoughts. BARRY, Sebastian. A Long Long Way. New York: Viking Penguin,
2008; daqui para frente citado, parenteticamente, LLW.

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grama morria por onde ela passava4.” (LLW, p.43). Leva muito tempo até que eles
percebam o que a nuvem significa, e já é muito tarde, muitos deles estão morrendo
sufocados, quando os soldados sobreviventes começam a fugir, horrorizados, em
desespero.
Trata-se do ataque de gás de Saint Julian em abril de 19155 que mata mais de 500
homens do regimento do rapaz, dentre eles o capitão Pasley e os companheiros mais
chegados a Willie, John Williams, Joe Clancy e Joe McNulty. A sua dor contribui para
que ele modifique sua visão de mundo e inicie um mergulho melancólico em si mesmo,
experimentando conflitos de consciência e um sentimento amargo de desilusão:

O pesar que ele havia sentido pela morte de seu capitão, e por Williams e por
Clancy, algo havia acontecido com aquele pesar. Havia se tornado rançoso
dentro dele, pensou; havia se condensado em algo que ele não conseguiu
entender. O âmago do [seu] pesar deu origem a uma pequena semente de
morte6. (LLW, p.59).

Partindo desse trecho, podemos refletir não somente a respeito da resposta de


Willie ao trauma, similar ao processo de acomodação, mas também na estratégia
essencial, segundo Granofsky, para se representar a experiência traumática − o
simbolismo das imagens trazidas pela linguagem. Quando Barry faz uso do simbolismo
da fumaça amarela para representar algo terrível, o veneno que mataria o capitão e os
companheiros de Willie, a descrição da fumaça colorida permite ao leitor certo
distanciamento que o levará a compreender o que de fato está sendo narrado de forma
mais branda, sem o choque causado por um relato mais realista: “A fumaça densa não
parecia tão ameaçadora. Ela era bonita de certo modo. O amarelo parecia levantar fervura
e afundar nas crateras próximas e depois subir de novo com a fumaça7.” (LLW, p. 44).

4
what was remarkable was the strange yellow-tinged cloud that had just appeared from nowhere like a sea-
fog […] and the grass died in the path of the cloud.
5
O ataque de gás pelos alemães em 22 de abril de 1915 vitimou muitas tropas aliadas nas trincheiras de
Saint Julian, área rural localizada à nordeste de YPres, França. Sebastian Barry traz ao conhecimento dos
leitores um fato verídico, com localização e mês historicamente corretos.
6
The sorrow he had felt at the death of his captain, and Williams and Clancy, something had happened to
that sorrow. It had gone rancid in him, he thought; it had boiled down to something he didn’t understand.
The pith of sorrow was in the upshot a little seed of death.

7
The dense smoke didn’t look too threatening. It was beautiful in a way, the yellow seemed to boil about,
and sink into whatever craters it was offered, and then rise again with the march of the main body of smoke.

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Embora a maior parte da narrativa se desenvolva nas trincheiras e nos campos de
batalha, descreva ataques de gás, execuções por traição ou covardia, bombardeios, mortes
e mutilações, o seu lirismo faz com que o leitor se deixe envolver pela sensibilidade das
descrições acerca do jovem, que como tantos outros de sua geração, se alistam sem saber
muito bem o porquê, mais seduzidos pela propaganda política do que por um ideal. Willie
e seus companheiros irlandeses lutam ao lado de ingleses, escoceses, galeses, indianos,
africanos e outros representantes do império britânico, irmanados pela dor de um dia-a-
dia de desolação em batalhas e horrores em terras estrangeiras, ou como se diz
popularmente, ‘em uma terra de ninguém’ (no man’s land).
A narrativa ficcional da guerra é construída por meio de um narrador em terceira
pessoa, que focaliza a experiência traumática de um soldado que lutou no Royal Dublin
Fusiliers. Exceção a esse tipo de narrador se dá quando temos acesso às cartas de Willie
para o pai e para a namorada Gretta. O tipo de narrador que predomina em A Long Long
Way não se enquadra na definição de romance de trauma para Granofsky e outros teóricos
do tema, já que a narrativa, para esses autores, está associada à literatura de testemunho,
ou à memória dos sobreviventes, e à necessidade de tornar visível uma experiência
irracional, o que não é, decerto, a principal preocupação do romance em questão. Outras
características muito marcantes nos romances de trauma são o deslocamento extremo das
relações espaço-temporais, a exploração do tema da sobrevivência em si, o ponto de vista
retrospectivo e a fragmentação do sujeito, aspectos ausentes na narrativa de A Long, Long
Way.
Encontraremos algumas dessas características nos outros dois romances
focalizados neste trabalho, a saber: The Secret Scripture (2008) e On Canaan’s Side
(2011), mais notadamente neste último, em que há, inclusive, a descrição de uma
personagem com neurose de guerra (shell-shocked), o que sugere certa aproximação de
Barry com o gênero. A substituição do narrador em terceira pessoa de A Long Long Way
para o em primeira pessoa em The Secret Scripture e On Canaan’s Side reforça essa tese.
Já que dedicaremos capítulos específicos a cada um dos romances citados, por hora
fiquemos apenas com os conceitos mencionados e tangenciados no romance – o efeito do
trauma no indivíduo, o processo de acomodação como resposta à experiência traumática
e o uso do simbolismo literário para representar a experiência traumática, como
características passíveis de observação em A Long Long Way.
Para além do trauma, podemos considerar a obra como um romance de formação,
que retrata a vida do protagonista desde o seu nascimento até os 21 anos, idade em que

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apresenta um grau de amadurecimento precoce motivado pelo trauma que viveu. Aqui
observamos que não só a guerra, mas também a compreensão da situação política e social
da Irlanda levaram o protagonista a uma trajetória de crescimento pessoal e de formação
da sua subjetividade, características do subgênero Bildungsroman.
O termo alemão Bildungsroman, ou romance de formação, busca narrar e analisar
o desenvolvimento pessoal do protagonista, nos aspectos físico, intelectual e moral,
quando este se confronta com o meio sociocultural e a necessidade de compreendê-lo.
Trata-se uma narrativa que representa as transformações psicológicas e sociais
experimentadas pela personagem até a sua vida adulta. Observando a conceituação
proposta para esse tipo de narrativa, temos que:

Devem ser consideradas como pertencentes ao gênero, as obras em cujo centro


esteja uma história de vida de um protagonista jovem, história essa que
conduz, por meio de uma sucessão de enganos e decepções, a um equilíbrio
com o mundo. Esse equilíbrio é, frequentemente, descrito de forma reservada
e irônica; entretanto, ele é como meta ou ao menos como postulado, parte
necessariamente integrante de uma história da formação. (Mauss 2000 apud
Santana 2003, p.37).

A Long Long Way encaixa-se bem na descrição acima, e Willie se decepciona


muitas vezes, o que o faz crescer emocionalmente. Este é o equilíbrio a que Mauss se
refere na citação anterior.
A narrativa tem início com o nascimento de Willie. Seu nome, William, é dado
em homenagem ao rei inglês protestante que subiu ao trono em 1688, sugerindo desde o
início da trama a afiliação política da família, e também em honra do tio-avô da
personagem, ainda vivo e morando nas montanhas de Wicklow quando ele veio ao mundo
em 1896, o que nos leva a pensar na importância que Barry pretende dar à tradição quando
informa o leitor os motivos para a escolha do nome da personagem.
“Ele nasceu no fim de uma época. Era o final murcho do ano de 1896” (LLW,
p.3)8 escreve Barry na abertura do primeiro capítulo. Aqui podemos pensar em ‘dias
finais’ como o prenúncio de uma nova ordem social para a Irlanda, com a separação do
país e a independência do sul; mas também como uma época que determinaria o destino
de muitos rapazes, que como os contemporâneos de Willie, estariam na idade de se

8
“He was born in the dying days. It was the withering end of 1896.

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alistarem quando o conflito mundial eclodiu, e que seriam vitimados por ele, como é
possível verificar mais adiante nas palavras do narrador: “Todos aqueles meninos da
Europa naqueles tempos [...] seu destino estava escrito num capítulo feroz do livro da
vida. 9” (LLW, p. 4).
O autor nos adianta que travaremos contato com episódios tristes, difíceis, mas
que fizeram parte de determinado momento histórico, do qual as pessoas que o viveram
não puderam evitar. Ao longo do romance teremos acesso à infância e adolescência
felizes de Willie, protegido por um ambiente carinhoso na companhia de seu pai e suas
irmãs, e depois ao relato de sua experiência na guerra, que vai se tornando gradativamente
cruel e triste.
Conforme já mencionamos na introdução deste trabalho, Barry utiliza como fonte
de inspiração histórias de sua própria família, contadas a ele por sua mãe. A partir de
pessoas reais, ele recria, na ficção, suas histórias de vida, tornando-as visíveis,
preenchendo lacunas, discutindo afiliações e deixando espaço para que o leitor reflita
acerca de questões sociais e políticas da Irlanda moderna. As pessoas da família que Barry
elege para contar histórias são aquelas das quais pouco ou nada se sabe, a não ser
determinado fato que, por trazer algum desconforto à respeitabilidade da família é
escondido, tratado como segredo e a pessoa a quem se refere normalmente desaparece
das histórias contadas em encontros familiares.
Seu bisavô materno, John Dunne, por exemplo, foi o último superintendente de
polícia católico de Dublin, e essa associação com o império era tão constrangedora para
a família, que “até recentemente ninguém sabia onde ele estava enterrado, no cemitério
de Glasnevin, sem qualquer identificação,” diz Barry em entrevista concedida por
telefone, em Auckland, a Luke O’Neill em maio de 2012.10 Barry resgatou a memória do
bisavô em sua peça The Steward of Christendom (1995), que trata do destino de Thomas
Dunne após a separação da Irlanda e início do Estado Livre, e a sua consequente
aposentadoria. Na peça, ambientada em um asilo em Baltinglass, no condado de Wicklow
em 1932, Thomas, já mentalmente desequilibrado, em suas digressões, lembra-se de ter
entregado as chaves do Palácio de Dublin a Michael Collins em 1922, e de como o
carisma do jovem o impressionara na ocasião. Thomas se volta para o passado, e é

9
All those boys of Europe in those times [...] their fate was written in a ferocious chapter of the book of
life.
10
Disponível em http://www.irishecho.com.au/2012/05/15/sebastian-barry-walks-corridors-of-the-
past/18392 Acesso em 31/03/2014.

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constantemente assombrado pela lembrança do filho único, Willie, morto na Primeira
Guerra. De personagem menor na peça, Willie passa a protagonista, dez anos depois, do
romance aqui discutido.
Sobre Thomas Dunne e seus filhos, personagens inspirados por seu bisavô e tias-
avós, Barry escreveu, além da peça citada, mais dois romances focalizando duas dessas
tias: Annie, no romance Annie Dunne (2002) e Lilly [Dolly], em On Canaan’s Side
(2011), além do tio-avô que inspirou The Whereabouts of Eneas McNulty e a avó materna,
focalizada em Our Lady of Sligo. Todas essas personagens têm em comum, além de
pertencerem à família de Barry, o fato de terem vivido um momento de transição entre a
Irlanda pré-republicana e o novo regime. Nesse último, a sua posição política era
rechaçada, pois estava ligada ao império, e não se adequava à narrativa hegemônica da
resistência irlandesa.
Deve-se ressaltar que embora existam fortes traços biográficos nas obras de Barry,
fato que causou até mesmo uma desavença familiar entre Barry e o avô materno, que
deixou de falar com ele após o lançamento de Our Lady of Sligo, por achar que as
revelações ali contidas não deveriam ser tornadas públicas, não há compromisso do autor
com a precisão histórica, pois a representação dos fatos deve servir aos propósitos do
enredo para causar, em seus leitores, o efeito esperado.
No caso de Thomas Dunne em The Steward of Christendom, por exemplo, houve
uma alteração nas datas reais do serviço do bisavô de Barry como superintendente de
polícia, para permitir o episódio, na ficção, da entrega das chaves do Castelo de Dublin a
Michael Collins em 1922. Essa imprecisão é apontada por Elizabeth Cullingford, que
examinou os rascunhos e manuscritos de Barry arquivados na Universidade do Texas, em
seu ensaio “Colonial Policing: The Steward of Christendom and The Whereabouts of
Eneas McNulty”, em que a autora comenta que John Dunne aposentou-se em 1º de janeiro
de 1919, três semanas antes do início das guerras de independência. (Jim Herlihy, 2000
apud Cullingford, 2006, p. 129). Portanto, o bisavô real não teve participação nas guerras
que precederam a independência do país.
A entrega das chaves, em sua ironia sutil, é uma imagem poderosa para marcar o
início de uma nova era para a Irlanda, sua transição como parte do império para nação
soberana, literalmente pelas mãos de um nacionalista e republicano, como Michael
Collins, porém não tão radical a ponto de não fazer acordos, tendo por isso desagradado
a muitos de seus companheiros, sendo por fim assassinado. A cena descrita por Barry
ocorreu em 16 de janeiro de 1922 a portas fechadas, não com o superintendente de polícia,

24
como contado pelo romancista, mas sim com o lorde-tenente britânico Fitz Alan, que
entregou o comando do castelo a Collins, que era o chefe de governo provisório do Estado
Livre.11 Barry sugere uma transição pacífica e de certa forma conciliadora, imagens que
um escritor tem toda a liberdade de imaginar e narrar respeitando apenas a coerência
interna da narrativa.
Além do preenchimento das lacunas e dos silêncios da história, uma característica
marcante do autor em sua produção literária é a transformação de personagens menores
de uma obra em protagonistas de outras obras de sua autoria, como uma rede de histórias
de vida que se relacionam de alguma forma, como nos exemplos, já citados, de Thomas
Dunne (The Steward of Christendom) como pai de Willie (A Long Long Way), Annie
(Annie Dunne) e Lilly (On Canaan’s Side). Barry estabelece um diálogo intertextual com
suas próprias obras e personagens. Essa estratégia permite a construção progressiva de
um universo fictício coerente que compreende as personagens e suas ações, e que desvela,
por meio da representação, anônimos esquecidos pela história.
Para que possamos compreender melhor as nuances presentes na representação de
Barry acerca dos conflitos bélicos em A Long, Long Way faz-se necessário apresentar,
brevemente, o contexto histórico irlandês nos anos que antecederam a Primeira Guerra
Mundial, focalizando as tensões existentes no país em relação à autonomia nacional.
A questão mais contundente daquele momento era a devolução do poder político
à Irlanda e o retorno do parlamento irlandês, fechado em 1801, pelo Ato de União. Desde
a união, representantes irlandeses, ingleses, escoceses e galeses passaram a se reunir no
parlamento em Westminster para decidir assuntos referentes às ilhas britânicas e às
colônias do império. Aqui cabe observar que, a despeito da representação irlandesa
naquela esfera ser menor do que a inglesa, a Irlanda não poderia mais ser considerada,
propriamente, uma colônia britânica.
O movimento para o estabelecimento de um governo autônomo para a Irlanda
(Home Rule), começou a ser articulado por seus representantes na década de 1870, com
a criação do Irish Home Government Association, que contava com o apoio de
fazendeiros progressistas e ativistas de direitos dos trabalhadores rurais. Em 1874, a
associação, renomeada Home Rule League, passou a contar com o apoio de 59 dos 103

The Times, 17 January 1922 – Dublin Castle Handed Over, Irish Ministers in London Today, The King’s
11

Message.

25
representantes irlandeses em Westminster.12 Quando Charles Stewart Parnell foi eleito
presidente da liga em 1880, o governo autônomo havia se tornado uma grande força
política no país. Em 1882, a liga passa a se chamar Irish Parliamentary Party e é o partido
oficial dos irlandeses nacionalistas membros do parlamento (MPs) eleitos como
representantes na Câmara dos Comuns em Westminster.
Por três vezes tentou-se estabelecer o Home Rule na Irlanda, passando o projeto
de lei pela Câmara dos Comuns. A primeira, em 1886, foi rejeitada. A segunda tentativa,
em 1893, passou por aquela instância, mas foi vetada pela Câmara dos Lordes. A terceira
tentativa, em 1912, passou pela Câmara dos Comuns, e com a diminuição dos poderes da
Câmara dos Lordes, que havia perdido o poder de veto e passara apenas a adiar decisões,
foi ali debatida em 1913 e seria finalmente tornada lei em 1914. No entanto, a oposição
ao estabelecimento de um governo autônomo naquele momento não vinha mais do
parlamento em Westminster, mas do norte da Irlanda. Os unionistas de Ulster se opuseram
à lei e se articularam para desafiar o estabelecimento de um parlamento irlandês imposto
a eles. Em setembro de 1912, 250.000 unionistas assinaram um compromisso [Solemn
league and covenant] que levou à formação, meses depois, da Ulster Volunteer Force
(UVF), milícia civil da Irlanda do Norte, comprometida com a preservação da união.13
Os nacionalistas em Dublin responderam àquela ação com a criação de uma
organização paramilitar rival, Irish Volunteers, em novembro de 1913, para lutar a favor
do Home Rule na Irlanda. Ambas as organizações paramilitares professavam lealdade à
Coroa e ameaçavam pegar em armas se as suas demandas políticas não se
concretizassem14. Por isso, podemos dizer que o país caminhava para uma guerra civil, já
que ambas as organizações possuíam, no verão de 1914, armas contrabandeadas da
Alemanha.
Em maio do mesmo ano, em outro debate sobre o Home Rule na Câmara dos
Comuns, permitiu-se que seis dos nove condados da região do Ulster optassem por não
participar do parlamento irlandês, porém, somente por seis anos. Quando a Câmara dos
Lordes alterou a lei para permitir que os nove condados do Ulster não participassem, um
conflito entre unionistas e separatistas parecia inevitável. Em três de agosto de 1914, a

12
Entrevista do Dr. Conor Mulvagh, que leciona na School of History & Archives, University College
Dublin, concedida a RTE Boston College para o The Century Ireland Project. Disponível em
http://www.rte.ie/centuryireland/articles/home-rule-for-ireland-q-a Acesso em 19/04/2014.
13
Harte, Liam. “The Politics of Pity in Sebastian Barry’s A Long Long Way” The South Carolina Review,
p. 107.
14
Ibid.

26
invasão da Bélgica pela Alemanha dispersou a crise do Ulster.15 As duas organizações
fizeram propaganda a favor dos Aliados, cada uma defendendo a sua causa. Jovens
irlandeses do norte e do sul se alistaram no exército britânico, por diferentes razões, ou
mesmo sem saber bem a razão, argumento que Barry tem a intenção de chamar a atenção
do público leitor em seu romance.
O papel da propaganda política foi muito relevante naquele contexto. No sul, o
nacionalista John Redmond, lider do Irish Parliamentary Party, convocou os irlandeses
a lutarem como voluntários na guerra, pois acreditava que a união com a Grã Bretanha
contra a Alemanha traria como resultado a implantação do Home Rule na Irlanda ao final
do conflito. O seu argumento era o de que lutando para a Grã Bretanha os irlandeses
mostrariam a sua boa fé, e, em retribuição pela ajuda, poderiam estabelecer, finalmente,
um governo autônomo.
Para Redmond, tornar-se voluntário não era propriamente um ato de lealdade ao
Reino Unido, mas sim um compromisso com a autonomia da Irlanda. Seu objetivo
político, no entanto, não chegou a se concretizar, já que o Home Rule não chegou a ser
implantado por conta do emblemático episódio do Levante de Páscoa (Easter Rising),
rebelião que teve lugar em Dublin em 1916, antes do final da guerra, e que lutou pela
completa separação da Irlanda do Reino Unido e para o estabelecimento de uma república
irlandesa soberana. Naquele episódio, o país proclamou a república, que vigorou por
quatro dias, e o conflito foi extinto pelas forças britânicas, tendo seus líderes sido
executados ao final do embate. Essa ação extrema fez com que a população desenvolvesse
simpatia pelo movimento, e que aqueles líderes fossem considerados mártires da
liberdade irlandesa. A ideia de uma república independente fortaleceu-se sensivelmente
desde então.
No norte, a campanha pelo alistamento teve o papel importante do líder unionista
Sir Edward Carson, que pediu a seus seguidores que se voluntariassem para lutar pela
causa dos Aliados, pois anteviu uma oportunidade de demonstrar lealdade à união e
consequente derrota do Home Rule. Este contexto histórico é apresentado na narrativa de
A Long, Long Way e busca chamar a atenção do leitor para o fato de que a opinião pública
no sul não era tão bem definida em relação às alianças de guerra em ambos os lados do
país, como viria a se tornar ao final da guerra:

15
Ibid, p. 108.

27
O Parlamento em Londres havia dito que o Home Rule seria concedido à
Irlanda ao final da guerra; portanto, disse John Redmond, a Irlanda seria, pela
primeira vez em sete séculos, um país. Então ela poderia ir à guerra como uma
nação finalmente – ou quase – baseada na promessa certa e solene de um
governo autônomo. Os britânicos cumpririam a promessa e a Irlanda
derramaria seu sangue generosamente. É claro, os homens do Ulster se
juntaram ao mesmo exército por razões e propósitos contrários. Talvez isso
seja curioso, mas assim foi. Foi para evitar o Home Rule que eles entraram –
assim seu pai falou, com fervorosa aprovação. E muitos do sul naquele
momento sentiam o mesmo. [O alistamento] Era um labirinto de intenções
profundo e escuro, de qualquer modo. (LLW, p.14-15)16

Embora na citação anterior seja possível identificar facilmente dois grupos


políticos de voluntários irlandeses antagônicos entre si lutando lado-a-lado na Primeira
Guerra, ambos leais à Coroa, é importante ressaltar que, em 1914, o conceito de
identidade nacional na Irlanda não era tão estável como viria a se tornar nos anos que se
seguiram à separação do país em 1922. A esse respeito, o historiador Thomas Hennessey,
em seu livro Dividing Ireland: World War I and Partition, afirma: “A iminência da
Primeira Guerra tornou visível uma Irlanda em que a fluidez do sentido de identidade
nacional era evidente. As identidades britânica ou irlandesa não eram mutualmente
exclusivas.17” (1998, p. 235).
A noção de uma identidade irlandesa fluida antes da Primeira Guerra é muito
significativa para as nossas reflexões, pois evidencia que não era algo incomum para
muitos irlandeses serem católicos e leais ao império britânico, como o protagonista e sua
família em A Long, Long Way, e como a própria família de Sebastian Barry, ou
protestantes da região do Ulster que não se identificavam completamente nem como
irlandeses e nem como britânicos. Portanto, o soldado irlandês no exército britânico pode
ser visto como irlandês e britânico, e não exclusivamente ligado a uma ou outra
identidade. Os protestantes do norte, por sua vez, podem ser vistos não como
exclusivamente irlandeses ou britânicos, mas como Ulstermen (homens de Ulster),
habitando um espaço intersticial entre a identidade irlandesa e britânica.

16
The Parliament in London had said there would be Home Rule for Ireland at the end of the war, therefore,
said John Redmond, Ireland was for the first time in seven hundred years in effect a country. So she could
go to war as a nation at last – nearly – in the sure and solemnly given promise of self-rule. The British
would keep their promise and Ireland must shed her blood generously. Of course, the Ulstermen joined up
in the selfsame army for an opposite reason, and an opposite end. Perhaps that was curious, but there it was.
It was to prevent Home Rule they joined – so his father said, with fervent approval. And many to the south
of them in those times felt the same. It was a deep, dark maze of intentions, anyhow.
17
The eve of the First World War saw an Ireland in which a fluid sense of national identity was evident.
Neither Britishness nor Irishness were mutually exclusive identities.

28
A abordagem utilizada por Barry em seus romances e peças nega os binarismos
presentes nas narrativas republicanas nacionalistas a respeito do passado irlandês. Suas
personagens apresentam múltiplas identidades, simpatias ambíguas e conflitantes, e não
podem ser classificadas em categorias fixas de lealdade à Irlanda ou ao estado britânico,
de forma exclusiva. As imagens que dão forma à narrativa deslizam para além das
molduras unionista-protestante ou republicano-católica, forçando o leitor a uma
reconsideração das versões oficiais parciais e excludentes a respeito do passado irlandês.
Essas reconsiderações vão ao encontro dos novos estudos e pesquisas acerca da
Primeira Guerra Mundial. Historiadores irlandeses contemporâneos como Thomas
Hennessey (1998) e Keith Jefferey (2000), cujos livros dedicados à Primeira Guerra são
apontados por Barry como leituras indispensáveis, sem as quais não teria sido possível
escrever o seu romance, afirmam que a Primeira Guerra deve ser vista como um momento
de definições na história irlandesa moderna, porque o conceito de duas Irlandas, uma ao
norte e outra ao sul, foi fortalecido pela guerra. Esses historiadores afirmam que a eclosão
da guerra foi um catalisador para as mudanças que tiveram lugar na Irlanda nos aspectos
político, divisões geográficas e de identidade nacional. Thomas Hennessey escreve:

A Primeira Guerra transformou a questão da Irlanda. Em 1914, a maioria dos


irlandeses nacionalistas aceitava [o fato de] que o governo irlandês autônomo
se realizasse dentro do Reino Unido; ao final da Guerra, a maioria dos
nacionalistas aparentemente apoiava o estabelecimento de uma república
irlandesa fora do império britânico. 18 (1998, p. 236).

A mudança a que Hennessey se refere pode ser explicada por uma cisão na
organização nacionalista Irish Volunteers, em sua maioria a favor da guerra, e uma
minoria de republicanos separatistas que consideravam o estado britânico o opressor da
Irlanda. Aqueles que se alistaram seguindo o líder John Redmond formaram a
organização National Volunteers e os separatistas mantiveram o nome Irish Volunteers.
Portanto, enquanto os recrutas de Redmond marchavam em direção à Bélgica e à França
para lutar junto às divisões do Ulster, os separatistas mantinham-se na Irlanda, planejando
uma insurreição que viria a se materializar no Levante de Páscoa de abril de 1916.

18
The Great War transformed the Irish question. In 1914, the majority of Irish ationalists accepted that
Irish self-government would be within the United Kingdom; by the end of the war the majority of
Nationalists apparently supported the establishment of an Irish Republic outside the British Empire.

29
Em A Long Long Way Barry apresenta ao leitor essa divisão ocorrida no Irish
Volunteers por ocasião da guerra por meio do diálogo entre o personagem Willie a seu
companheiro no exército, Jesse Kirwan:

‘Esses Voluntários que você mencionou, o seu pessoal’ disse Willie, ‘eram
aqueles que estavam atirando em nós?’
‘O quê? Não seu bobo, aqueles eram os outros Voluntários. Você deve se
atualizar William. Nós erámos um só até que a guerra eclodiu, e então alguns
de nós passamos a lutar como soldados irlandeses, você sabe, para salvar a
Europa, mas poucos – bem, eles não quiseram aquilo. Um punhado deles, na
verdade. E os nomes, eu conheço bem, alguns de nossos melhores homens.
(LLW, p.95)19

Os líderes do Levante de Páscoa buscavam a independência do país contra o


governo da Grã Bretanha. O seu fracasso e a amnésia nacional em relação aos soldados
irlandeses na Primeira Guerra representam uma dupla traição: a dos britânicos no
exército, que eram preconceituosos com os soldados irlandeses, e a dos próprios
irlandeses, que não reconheceram o sacrifício de seus compatriotas. Reforçamos então o
fato de que a Primeira Guerra na Irlanda divide-se historicamente em duas narrativas
distintas, pois foi incorporada ao unionismo de Ulster e apagada do nacionalismo irlandês
do sul. Barry pretende dar visibilidade à participação dos irlandeses do sul em seu
romance.
Na linha de frente, o protagonista de A Long, Long Way não parece atentar para
as tensões entre o Ulster e o sul. No exército, Willie conhece voluntários de diferentes
localidades da Irlanda, personagens tão diversas como o capitão George Pasley,
fazendeiro protestante de Wicklow orgulhoso de uma longa história familiar de lealdade
imperial, e o soldado Jesse Kirwan, nacionalista que apoiava Redmond, e cujo motivo
para o alistamento militar foi tão enfraquecido pelo Levante de Páscoa e a morte de seus
líderes, que o seu destino foi a execução pelo exército britânico, ainda durante a guerra,
por covardia.

19
‘These Volunteers you mentioned, your crowd’, said Willie, ‘were they the crowd was firing at us?’
‘What? No you gammy fool, that’s the other Volunteers. You got to keep up, William. We were one and
the same up to the war breaking out, and them some of us said and fight as Irish soldiers, you know to
save Europe, but a few of them – well, they didn’t want that. You know. A handful really. But the names,
you know, I know them well. Some of the best of us.

30
Barry dá voz a uma gama variada de posições ideológicas, e com isso, ele mostra
o quão instáveis essas posições se tornaram sob o impacto da Primeira Guerra e do
Levante de Páscoa. A complexidade e as contradições de alianças e de lealdades que as
versões nacionalistas da história tendem a omitir estão claramente entretecidas na
narrativa ficcional do escritor. Tais contradições tornam-se evidentes quando
examinamos, por exemplo, as razões que levaram os jovens a se alistar. Os voluntários
criados por Barry são, em sua maioria, “O tipo de homem leal, que não crítica e nem
questiona [a sua situação]. 20” (LLW, p.26), como define o personagem Christy Moran,
que argumenta ainda que poucos parecem estar motivados por uma verdadeira convicção
ideológica; ao contrário, algumas de suas razões são puramente circunstanciais, como
podemos observar por meio da galeria de personagens criada pelo escritor.
O próprio Moran, por exemplo, revela que se alistou depois que sua esposa
queimou a mão enquanto alcoolizada, o que sugere um casamento marcado pelas
dificuldades de relacionamento advindas do abuso do álcool, problema recorrente na
Irlanda. Ele conta o triste episódio que o fez entrar no exército:

Porque a senhora queimou a mão. Estávamos os dois, uma noite, bebendo.


Estávamos bêbados quando fomos para a cama. A senhora gostava de fumar
um pequeno cachimbo sozinha. Então, acordamos de madrugada e a cama
estava em chamas no lado dela. E ela estava muito bêbada para se mover e eu
a puxei. [...] Foi a mão direita. E o trabalho dela se foi ali. Costureira no asilo
de Kingstown. Se foi. Então eu tive de fazer alguma coisa. Eu me alistei,
vendo que eles procuravam por homens. E ela está feliz com a pensão pela
separação. (LLW, p. 219)21
Joe Kielty diz que se alistou após receber uma pluma branca em Ballina [condado
de Mayo], o que nos remete à propaganda da Primeira Guerra na Grã Bretanha, em que
moças jovens e bonitas ofereciam aos rapazes não uniformizados uma daquelas plumas,
simbolizando a covardia de não terem ainda se alistado no exército britânico (Beckett,
2008).
Até mesmo o nacionalista Jesse Kirwan abandona seus votos de compromisso
político quando, depois de contar a Willie que havia se voluntariado para salvar a Europa

20
Loyal, unthinking and accepting sort of men.
21
Because the missus burned her hand off. We were the both of us drinking one night. Both of us half-
seas-over when we went to bed. The missus like to smoke this little pipe for herself. So we wake up in the
small hours and the bed is blazing away on her side. And she’s too drunk to stir. So I pull her away. […] It
was her right hand. So there went her work right there. Seamstress at the Kingstown Asylum. Gone. So I
had to do something. So I joined up, seeing as they were looking for men. And she’s glad of the separation
allowance.

31
e para garantir o Home Rule para a Irlanda. Ele se diz extremamente desapontado com o
rumo dos acontecimentos em seu país: “Eu vim para lutar por um país que não existe, e
agora […] nunca existirá. Uma [ideia de] Irlanda que fosse talvez possível existir dois
anos atrás, quando você a deixou, mas que eu duvido que persista por mais tempo22.”
(LLW, p.157).
Muitos jovens se tornaram voluntários por necessidade econômica, como a
personagem de padre Buckley aponta: “Existem muitos homens [que estão] aqui para
enviar algum dinheiro para casa, e isso também não é crime.23” (LLW, p.215). Até mesmo
os motivos para que Willie tome parte no Royal Fusiliers não são claros. Primeiro, o fato
de não ter altura suficiente para entrar na polícia, como seu pai policial sonhava. Depois,
para agradar ao pai servindo ao império, e para proteger suas irmãs e sua amada Gretta,
já que, como ele mesmo diz: “Havia mulheres como ela [Gretta] sendo mortas pelos
alemães na Bélgica, e como ele poderia deixar que isso acontecesse? 24
” (LLW, p.13)
No desenvolvimento do romance, a evocação do sacrifício dos irlandeses por uma
causa comum é repetidamente utilizada por Barry, e o retrato de soldados sucumbindo
em massa ao gás clorídrico em Saint Julian, ao lado de tropas inglesas, francesas e
africanas, parece apagar diferenças ideológicas ou étnicas, dando aos sobreviventes uma
aparência similar − de homens do império: “Eles haviam se desnudado até a cintura, e
estavam escuros como árabes do deserto. Suas peles claras desapareciam. Mayo,
Wicklow, não importava. Eles poderiam ser argelinos agora, uma outra parte do império
abençoado. 25” (LLW, 54).
Embora Willie tenha experiências terríveis nas trincheiras, é somente depois de
sua primeira licença para voltar à Irlanda que a guerra realmente o afeta: “os eventos dos
últimos dias foram suficientes para fazer sua cabeça rodopiar.26” (LLW, 101). Ele se
encontrava, coincidentemente, marchando nas ruas de Dublin durante o Levante de
Páscoa, e se compadece da morte de um dos jovens revolucionários, que morre em seus
braços depois de tentar aprisioná-lo e levar um tiro de um companheiro de Willie: “o

22
I came out to fight for a country that doesn’t exist, and now […] it never will. That’s an Ireland that
maybe did exist two years ago as you set out, but I doubt if it will much longer.
23
There’s many a man out here to be sending the few shillings home, and that’s no crime either. Existem
muitos homens [que estão] aqui para enviar algum dinheiro para casa, e isso também não é crime.
24
there were women like her being killed by the Germans in Belgium, and how could he let that happen?
25
They stripped to the waist and got black as desert Arabs. The white skins were disappearing. Mayo,
Wicklow, it didn’t matter. They might be Algerians now, some other bit of the blessed Empire.
26
The events of the last days, which was enough to make his head whirl.

32
jovem morrendo o havia chocado, mexido com seu coração, embora ele já tivesse visto
uma centena de mortes.27” (LLW, 102).
Amargurado pelas cenas violentas que assistira nas ruas de Dublin, Willie começa
a questionar se ele e seus companheiros haviam-se tornado inimigos dos rebeldes
irlandeses. De volta à Flandres, temos: “nada havia mudado. Mas algo mudara em Willie
Dunne.28” (LLW, p. 101). Pela primeira vez em sua vida, ele não enxergava o mundo
como seu pai o faria. Sua solidariedade para com os rebeldes é algo que ele tenta explicar,
posteriormente, em uma carta endereçada ao pai, que se sente, por isso, traído pelo filho.
Seu comportamento com Willie esfria a partir dessa constatação, o que se mostrará
extremamente doloroso para o rapaz, que sempre teve o pai como um herói, e cujo
relacionamento próximo é destacado no livro em diversas passagens.
A abordagem escolhida para o relacionamento entre pai e filho é importante no
romance, tanto para intensificar a dramaticidade do desencontro emocional causado pela
experiência do filho na guerra e consequente mudança de visão de mundo do rapaz,
quanto para desafiar o estereótipo de pais distantes e violentos com suas famílias, imagem
recorrente na literatura irlandesa. O impacto das descrições do pai amoroso, brincando
com a filha caçula, ou dando banho no filho já adulto, em sua primeira volta a casa em
licença do exército durante a guerra, é ainda maior quando Barry inverte a caracterização
masculina tradicional de violência na vida pessoal e cordialidade na vida pública, ao
mostrar o respeitado superintendente de polícia envolvido no episódio violento de
sufocamento da rebelião ocorrida em 1913, durante a greve geral de trabalhadores, em
que houve algumas mortes e ferimentos causados pela polícia metropolitana de Dublin, e
a figura carinhosa do viúvo Thomas Dunne, na intimidade, com seus filhos, tentando
suprir a ausência da mãe e mantendo viva para eles a memória da esposa tão querida.
Voltando às trincheiras, Willie conta aos companheiros o que vira acontecer em
seu país [o Levante de Páscoa]. Os jornais também escreviam a respeito do levante, e a
atmosfera de animosidade entre Irlanda e Inglaterra refletia-se no exército, onde os
oficiais britânicos eram agressivos, e consideravam os irlandeses, cada vez mais, como
meras buchas de canhão, e não seus pares. Quanto mais a guerra se estendia, mais intenso
se tornava o conflito na Irlanda, e menos reconhecidos eram os esforços dos soldados
irlandeses. Ademais, quando a realidade irlandesa tornou-se ainda mais sangrenta após a

27
The Young man dying had shocked him, shifted his very heart about, though he had seen a hundred
deaths.
28
Nothing had changed. But something had changed in Willie Dunne.

33
páscoa de 1916, Willie percebeu que as batalhas são sempre parecidas: “Dublin e YPres
eram uma coisa só.29”(LLW, p.124). Trata-se de uma grande carnificina de seres
humanos, em que vítimas e algozes, muitas vezes, não sabem bem o que estão fazendo
naquela situação.
Quando Willie tira a segunda licença para voltar à Dublin, a rejeição ao seu
uniforme britânico nas ruas da cidade era evidente. A nação irlandesa imaginada
(Anderson, 1983) pelos nacionalistas era refletida em uma identidade católica e
republicana, e, consequentemente, a violência contra os soldados irlandeses retornando a
um país muito diferente daquele que haviam deixado, era inevitável. Como Fintan
O’Toole apontou, a especialidade de Barry são os “restos da história, homens e mulheres
derrotados e descartados por sua época [...] desajustados, defeituosos, forasteiros.30” (Barry,
1997, p.vii). A afinidade particular de Barry é pelos indivíduos invisíveis para a história,
aqueles que por conta de escolhas pessoais, deveres públicos ou alianças políticas foram
excluídos da grande narrativa nacional. O escritor parece confirmar a tese de O’Toole
quando ele fala a respeito de suas intenções pessoais, em entrevista ao jornal The
Guardian:

Receio o dano causado por não se falar de pessoas como os velhos tios Jack
de muitas famílias, que morreram na Primeira Guerra lutando pela Inglaterra.
Preocupo-me que esses silêncios deixem uma brecha em você, e depois
deixem uma brecha em seus filhos e que pode por fim levar a um buraco no
próprio sentido de país. A história irlandesa é tão mais rica, entusiasmante,
variada e complicada do que nos damos conta. O que venho tentando fazer é
reunir [fatos] tanto quanto eu possa. Não é para acusar, é apenas para declarar
que ela [a história] é assim. 31 (Wroe, 2008, p. 13)

A fala de Barry ao se aproximar da história irlandesa nos remete ao pensamento


de Walter Benjamin, de que

quem pretende se aproximar do próprio passado soterrado deve agir como o


homem que escava. Antes de tudo, não deve temer voltar sempre ao mesmo

29
Dublin and Ypres were all the one.
30
History’s leftovers, men and women defeated and discarded by their times [...] misfits, anomalies,
outlanders.
31
. I’m afraid of the damage that is caused by not speaking of people like so many families’ old uncle Jacks
who died in the First World War fighting for England. I’m concerned these silences leave a gap in yourself
which then leaves a gap in your children and can ultimately lead to a hole in the country’s sense of itself.
Ireland’s history is so much more rich, exciting, varied and complicated than we had realised. What I’m
trying to do is gather in as much as I can. It’s not to accuse, it is just to state that it is so.

34
fato, espalhá-lo como se espalha a terra, revolvê-lo como se revolve o solo.
Pois “fatos” nada são além de camadas que apenas à exploração mais
cuidadosa entregam aquilo que recompensa a escavação. Ou seja, as imagens
que, desprendidas de todas as conexões mais primitivas, ficam como
preciosidades nos sóbrios aposentos de nosso entendimento tardio. (Benjamin,
2009, p. 239).

A analogia que Benjamin faz com a figura do arqueólogo para ilustrar o


procedimento de se refletir sobre fatos do passado lança luz sobre a técnica artística de
Barry, que segundo ele, coleta fatos e parece voltar à vida de seus antepassados e aos
fatos históricos de seu país por muitas vezes em suas obras, seguindo rastros, não temendo
revolver camadas, repensá-los, reposicioná-los e recriá-los a partir de imagens que vão
ganhando contornos mais nítidos por meio de sua narrativa. Em A Long, Long Way, o
autor delineia a imagem do soldado irlandês na Primeira Guerra, fazendo com que o leitor
penetre na intimidade das personagens que viveram aquele momento histórico.
O soldado irlandês representa uma identidade liminar, e, consequentemente não
há lugar para ele em seu lar [a Irlanda]. A família do soldado Willie, católica e leal à
Coroa, também sofre com o momento político, sendo vistos com maus olhos. Até mesmo
a imagem pública do superintendente Dunne perde a respeitabilidade que desfrutava
anteriormente. Podemos dizer que o foco de Barry é dirigido para os personagens
marginais da história irlandesa, cujas vidas foram tocadas irrevogavelmente pelos grandes
eventos que os cercaram. A esse respeito concluímos que essas pessoas foram levadas a
assumir determinada identidade mais por influência dos acontecimentos da época em que
viveram do que por convicções próprias. Pensemos nelas como tendo estado do ‘lado
errado’ da história da Irlanda, entendido aqui como o das pessoas que não se encaixavam
na identidade que a república assumiu após a sua separação do Reino Unido.
Segundo Harte (2012), a questão da identidade na Irlanda é sempre assombrada
pelo que ela exclui; isto é, pela omissão de outras construções possíveis. A nacionalista,
por exemplo, é assombrada pela ausência da identidade unionista, entre outras, e a
unionista pela falta da identidade nacionalista. É nesse sentido que Barry afirma que
pretende reunir fatos que revelem as nuances da história irlandesa e apaguem os
binarismos simplistas das narrativas oficiais e do senso comum que pretendem fazer crer
que os irlandeses dividiam-se em dois grupos antagônicos: católicos nacionalistas que
eram a favor da separação do Reino Unido e protestantes leais à monarquia que defendiam
a união.

35
A preocupação de Barry com as histórias esquecidas daqueles católicos que
apoiavam a união, por exemplo, foi questionada por alguns críticos nacionalistas e tem
sido vista por alguns como um revisionismo histórico operado por meio da ficção. A obra
de Barry, que como vimos, inclui romances, contos, drama e poesia, adota uma estratégia
comum à maioria de seus textos, que é o entrelaçamento de fios e vozes narrativas
diversas no tecido ficcional. Seu método de composição questiona os relatos aceitos para
episódios históricos e posiciona sua obra na interseção entre histórias nacionais e
pessoais, fato e ficção. O reaparecimento de personagens menores em obras anteriores
como protagonistas em novas obras, e vice-versa, sugere que a escrita de Barry se
constitui um projeto aberto e em construção da criação de uma história alternativa e
polifônica para a Irlanda, através da investigação e reescritura de fragmentos de sua
história familiar que perpassam e se constituem, assim como a história de muitas outras
famílias, na história da própria Irlanda moderna.

36

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