You are on page 1of 3

No desejo de produzir algo, abriu a mão.

Seria imprudente pensar que a criação do que quer


que seja não exigisse a abertura de um punho fechado. Tudo começou aí. Não era ao acaso
que este punho desabrochou. A vida tem destas coisas, chamemos-lhes de coisas – tudo na
vida são coisas – que aparecem assim do nada. A realidade acaba por fecundar outras
realidades que não se inserem na sua rotina inexorável. A secretária bate à porta, entra, com o
seu típico perfume amargo, caraterístico da sua imagem.

-O preenchimento dos papéis deve ser feito até às nove horas da noite – diz Clarisse – com o
mesmo ar de sempre, à mesma hora, no mesmo lugar.

John está mergulhado nos seus pensamentos e a mão continua aberta. Automaticamente
abana a cabeça, mas não ouve nada do que Clarisse diz – não é que seja algo de relevante – a
Clarisse aparece sempre de 5 em 5 horas a dizer a mesma coisa ou coisa parecida.

A mão continua aberta, uma mão como todas as outras, com uma epiderme rugosa, outrora
lisa. Poderia ter sido a chuva a principal responsável pelo enrugamento desta mão, o sol a
legitimar o seu envelhecimento, o passar dos anos – causa natural da velhice – ou até mesmo
o preenchimento dos 23.456 papéis sobre o estado clínico mental dos seus pacientes
submetidos ao EEM (Exame do estado mental) – mas não. Pareciam óbvios os porquês destas
rugas, qualquer pessoa diria o mesmo e recusar-se-ia a aceitar o contrário. As certezas que
temos não são mais do que um coletivo senso comum que aponta resultados, partindo de uma
causa que terá uma repercussão, um efeito e baseamo-nos nestas certezas para concluir seja o
que for. Queremos sempre ter a certeza de tudo, até do que não temos. Somos mais felizes
assim, com certezas. Esta mão não era uma certeza.

São nove horas da noite, John está em casa, sentado na sua secretária, já com o computador
aberto e os papéis preenchidos e enviados. Nota-se uma certa insistência na sua mão direita
em permanecer aberta, intacta, como de uma mão esculpida se tratasse, pronta a ser vista,
criticada e apreciada num museu de arte contemporânea. O telefone de casa, pousado sobre a
mesa do hall de entrada, toca. É a sua mãe, Kira. John parece surpreendido. Olha para um lado
e para o outro, como se estivesse à procura de algo e atende a chamada. A casa de John
padece de um silêncio ensurdecedor, nem o esbater do vento sobre o vidro das janelas
fechadas se ouve. No seu quarto, uma lista ínfima de grandes clássicos da literatura apresenta-
se por ordem de letra alfabética. Com uma voz grossa e abafada, a mãe de John fala ao
telefone:

- Olá, meu querido. Eu sei que é tarde, mas liguei-lhe para dizer que tenho saudades suas.
Recorda-se de quando andávamos de barco e ria, ria, parecia que estava nas nuvens – risos.
Acontece que estou sem cigarros e preciso que me traga uns. Tem alguns aí, John?

- Eu não tenho cigarros. Pare de me ligar de uma vez por todas.

- Não me faça isto de novo. Sabe que gosto muito de si, John.

John desliga a chamada furioso. É como se tivesse que excretar todas aquelas fragilidades que,
continuamente, insiste em reprimir. Ora, John não é tolo. Tudo o que queria era poder abraçar
a mãe, passear novamente naquele barco e experienciar tudo pela primeira vez. A melhor
maneira de viajar é sentir já diria Fernando Pessoa. Aquilo que o homem constrói em cima do
coração, por sucessivas repetições, torna-se fóssil incapaz de retornar à sua natureza ordinária
e original. A inocência nunca pode ser subestimada e trocada por sinónimos do gênero. Não
existe inocência a não ser na génese do ser humano. Uma vez que esta se perca, perde-se para
sempre. Não há pluralidade de sentidos aqui. Vimos ao mundo inocentes e, ao longo do
tempo, desvirtuamo-nos da nossa natureza para dar espaço ao constante progresso. Uns
acabam por nunca se desvirtuar da sua própria natureza, mas acabam por ser, de uma forma
ou de outra, encarcerados pela realidade que os cerca. Numa fase inicial, perde-se a vitalidade.
Começamos a nos habituar às metades da vida. Depois, perde-se a natureza intrínseca e
colapsamos no ideal do progresso. A individualidade não é assegurada em qualquer instância.
No século XXI, há esta tendência para se perder o génio de cada um. Numa era do facilitismo
crescente em que explorar cada parte singular que nos constitui devia ser o objetivo
primordial da nossa existência, sentamo-nos numa sombra, privilegiamos uma beleza única,
ligamos o telemóvel e a nossa realidade é esta. A verdadeira evolução seria o investimento de
cada um em si próprio, numa investigação profunda do ser e do que se está aqui a fazer. Com
o crescente acesso a uma rede de informações tão vasta, somos os mais pobres a conhecer.
Irónico? Há que desaprender o que o mundo atual nos trouxe e investir na autodescoberta. Os
descendentes da nossa e futura gerações sofrerão as marcas que os deixarmos.

São onze da noite e John adormece no sofá com a TV ligada. O relógio não dá sinais e o tempo
deixa de existir, por uma noite. A vulgaridade do descanso aquece as suas mãos geladas e,
num reencontro com o passado, volta aos 11 anos de idade. Acordara feliz, era um novo dia.
Kira já estava levantada e preparava o pequeno almoço para si e para John. Enquanto
derramava o leite sobre os cereais, pensava na sorte que tinha em poder sentir, dia após dia, o
calor do filho, o sorriso matinal – sem esforço – que agradecia à mãe em gesto de
reciprocidade. Kira deslocava-se para a varanda e contemplava o seu cigarro aceso. Não há
nada mais profícuo do que o silêncio das almas que se interpenetram e reconhecem a validade
do momento. Nas inúmeras metamorfoses da vida há que salientar aquelas que nos servem e
enaltecem o melhor que há em nós. As frações de segundo que constituem os nossos
momentos são irreversíveis, não há volta a dar, numa tentativa de os reproduzir. Guardamos
estes momentos, inconscientemente, na nossa caixinha de memórias e, por uns segundos,
estes voltam a sintonizar o momento, como se de ontem se tratasse. O decurso do dia nada
tem de especial, ele é sempre o mesmo – abre de manhã e fecha de noite. Existe muito dentro
de nós para tão pouco tempo. Contudo, os vazios do dia nem sempre são em vão, eles servem
para nos mostrar o ciclo da vida e, com isso, perceber que os momentos são o tudo que
somos.

Ouviam-se pulos fora da porta de casa – era John chegado da escola. Não conseguia se
controlar. Tocava nos botões do elevador, corria nas escadas, sentava-se, pegava na mochila e
jogava-a ao chão com força. O corredor escurecia e carregava uma atmosfera insólita capaz de
fazer soar ecos e calar o mundo, sabendo que a noite chegava e a lua se colocava. Ouvem-se
passos, pareciam ser de mais do que uma pessoa – o que não era normal – já que apenas Kira
e John habitavam neste apartamento. Pelo elevador sobe uma pessoa até ao andar seguinte e
John continua mudo, mas sentado na escada observa de frente o elevador. O tempo não
passa, nem dentro do próprio sonho que tenta escapar das rotinas de escritório e de Clarisse
que, neste momento, está na sua cama a dormir com uma vela acesa e aroma de rosas – ainda
que este aroma não a torne mais bem-disposta e incentivada durante o dia – ou da criação de
imagens sucessivas sobre os seus pacientes que vão se apresentando aleatoriamente dentro
da sua cabeça – o tempo para. Aos 11 anos de idade, habitua-se à eterna espera da chegada
da mãe. A espera repetia-se todos os dias e o rosto de John começava a apresentar mudanças
inexprimíveis. Ele não sabia o que estava a sentir, experienciava agora pela primeira vez a dor
e conhecia, aos poucos, a plasticidade das emoções. Não queria acreditar que o que sentia era
real, porque desconhecia tais sensações. Kira chega e abre a porta. Diz boa noite ao filho e
abraça-o, mas John interrompe-a com a mão e pergunta-lhe – o que andaste a fazer? – ao qual
Kira responde – fui tratar de um negócio, o Sr. Filipe chamou-me, não o conheces filho. A mãe
sabe que demorou imenso tempo, mas não volta a acontecer. Comeste algo, entretanto? –
John não responde e segue caminho para o quarto. Pela primeira vez, John não sente
entusiasmo em falar com a mãe e fecha o quarto à chave. Está farto de se sentir assim – ainda
lhe é desconhecida a novidade da dor – mas não por muito tempo. Tira os livros da mochila e
resolve os trabalhos de casa. Feitas as tarefas decide começar a escrever. John não quer que a
mãe saiba que ele sabe, por isso, pega numa folha branca. Começa por desenhar o rosto de
Kira e o seu, perdendo um minuto em cada traço, faz isto a noite inteira enquanto procura
cores para pintar o rosto de cada um. Na prateleira, à direita do quarto, na segunda divisão,
retira os seus lápis de cores todos. Pensaríamos nós que John cairia na platitude de
representar as cores típicas que se associam aos desenhos infantis. Não. John queria perceber
o que era esta sensação, porque é que se sentia assim e escolheu, por fim, a cor azul.

You might also like