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Mundo Espiritual

Morri...

Isto resume 99% de toda a história! Sim, morri! Isto é fato! Tenho 100% de certeza DISTO!

Disto tenho certeza! Acompanhei de perto a falência de meus órgãos, a incapacidade de


manter vivo meu cérebro, senhor de meus pensamentos e de minha consciência... Era incapaz
de continuar enviando a ele 20% da energia produzida por meu corpo moribundo, já bastante
fraco e debilitado. Doente? De forma alguma!! A não ser que você considere que velhice seja
uma doença... No século XXIII, qualquer pessoa com pouco mais de 200 anos (205, no meu caso)
já podia ser considerada velha. Não era mais capaz de fornecer a energia que meu cérebro me
exigia para se manter vivo, apesar de todo o suporte tecnológico que trazia anexado a meu
corpo ao longo de todos estes anos.

Presenciei claramente o momento que me separava a vida da morte. Experimentei consciente


meu cérebro morrendo, desoxigenando, carente de circulação sanguínea, algo que já sabia que
iria acontecer! Que meu coração, esta maravilhosa bomba muscular, não mais era capaz de
oferecer. Ele havia já parado a alguns minutos, e a reação em cadeia da falência de todos os
demais órgãos do corpo era consequência esperada, inevitável.

Como todos os neurologistas previam, o cérebro era mesmo o último a morrer, o que mais
tentava lutar, inutilmente, contra a morte certa do organismo. Mas ele morreu. E eu agora,
embasbacado, permanecia surpreso diante do fato de ainda estar consciente, apesar de claro
agora que todo o meu corpo, cada órgão, cada célula... estavam mortos!

Vi médicos se esforçando inutilmente, tentando me trazer de volta. Pairava sobre eles, sem
entender como. Sabia que era inútil, que havia transposto uma linha sem volta. Mas...
continuava existindo!! E a grande pergunta era: onde? como?

- Vem com a gente!! - senti uma voz sobrenatural me conduzindo pra longe daquele leito de
morte.

- Onde estou? Pra onde estão me levando?

- Nos acompanhe, por favor!!! Você foi preservado!

Preservado? Que significava isto tudo? Uma pergunta só surgia em minha mente, e não pude
resistir em fazê-la:

- Quem são vocês? Estou no Céu ou no Inferno?

A resposta demorou. Senti que a entidade que me conduzia, seja ela o que fosse, ficou confusa.
Enfim me respondeu:

- Você pode estar exatamente onde desejar estar. Cabe a você decidir...

Ouvindo esta resposta enigmática, parei de resistir e me deixei conduzir pela entidade
incompreensível...

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Senti uma quantidade incontável de outras presenças naquele local. Era tudo muito novo, sou
inclusive incapaz de descrever como as sentia. Não estavam num lugar (espaço não mais fazia
sentido para mim) nem num tempo (tampouco tempo me fazia sentido). Sabia estarem lá,
existirem compartilhando meus pensamentos, nas não seria capaz de individualizá-las.

- Olá, novato!!! Te disseram alguma coisa? Por que estamos aqui?

- Não sei! Apenas me disseram que fui reservado. Não sei o que isto significa...

- Pra mim também!!! - senti uma consciência distinta da primeira me respondendo. - Mas nem
faço ideia do que significa...

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Não sei precisar quanto tempo passei vagando naquele mundo de sonhos. Sim, pois era um
mundo de sonhos, onde podia "materializar" qualquer cenário que imaginasse e atuar dentro
dele. Mas era impossível ignorar as incontáveis consciências em volta tão perplexas quanto eu. O
próprio tempo não mais fazia sentido. Não como eu estava acostumado, mas sentia que de certa
forma ainda existia. Embora não linear, ainda existiam causas e efeitos! Seguia num ritmo
diferente, mas a estrutura básica ainda permanecia...

- Estamos mortos, não é?

Demorei um pouco para me decidir. Para saber se uma criatura externa, independente, me
questionava interrompendo meus sonhos, ou se era apenas mais um integrante do cenário de
meu próprio sonho, criado por mim. Me convenceu por persistência, percebi enfim que era uma
figura externa com existência independente, e não mais uma personagem artificial, um
coadjuvante de minhas criações oníricas...

- Isto é o Purgatório? Para onde devemos ir? Ninguém vai nos ajudar, dar uma direção?

- Amigo, estou tão perdido aqui quanto você... - respondi, de desvincilhando totalmente de
minha fantasia imaginária. Foi este o momento em que percebi que a maioria das consciências
em minha volta também sonhavam, uma tentativa lógica de fuga para quem teme o
desconhecido.

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- Acho que morremos sim, meu amigo. - respondi àquela que seria minha consciência
companheira dali em diante. - Só não sei se estamos no Purgatório, como você mesmo me diz.
Nunca acreditei nestas coisas...

- Sempre fui um cristão devoto... - meu amigo se queixava. - Por quê estou no purgatório?
Onde errei? Sempre segui os preceitos do livro sagrado, sem nunca questioná-los! MEREÇO o
Paraíso!!!

- Ah meu amigo!!! Imagine então minha situação!!! Extremamente materialista, sempre achei
que tudo no mundo se resumia ao material!!! Como você acha que estou me sentindo agora, ao
perceber que continuo existindo apesar de não mais existir nada material me ligando ao mundo
que conhecia, e que sempre imaginei ser o único possível, o único real? E você aí, se queixando
por estar no purgatório... Francamente!!!

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Ninguém sabia de onde vinha aquela voz. Nem era propriamente uma voz! Neste mundo novo,
qualquer analogia é totalmente inadequada. Era mais um pensamento, uma ideia irresistível que
penetrava em todas aquelas mentes.

- Preservados, é a hora de vocês saberem o que fazem aqui...

UAU!!! Uma revelação divina bombástica?? Pensando bem, haveria melhor forma de apresentar
aquela ideia?

- Vocês devem se perguntar por que estão aqui. Como estão aqui. Se são espíritos, almas
vagantes... Sim, vocês são!

Era sensível claramente uma comoção geral.

- Temos aqui amostras de várias correntes filosóficas e religiosas! Vários cristão, vários
muçulmanos, hinduístas, uma grande quantidade de budistas... Cada um tentando explicar o
que vêem sob a ótica de suas próprias convicções. Todos tentando mostrar que estavam certos.
E eu lhes revelo agora: todos estão ERRADOS!!

- Como errados? - ergueu a voz etérea uma consciência mais exaltada. - EU estou aqui, continuo
existindo! Apesar de estar certo de que meu corpo está morto!

- Tudo sempre foi matéria!!! Desde o big bang, a origem das estrelas, planetas, galáxias... Tudo
sempre se resumiu à matéria!!! Nunca existiu nada além da matéria no universo.

- Mas... - eu não consegui me conter, e falei: - EU estou aqui!! E eu, que nunca acreditei em nada
disto! Estou aqui vivendo uma existência extracorpórea num mundo... espiritual, não é mesmo?

Houve um lapso de tempo. Emfim, a voz retumbante voltou.

- Nunca existiu um mundo espiritual na natureza! Não antes de NÓS mesmos o criamos...

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Um mundo de átomos! Matéria formada de elétrons de carga negativa orbitando massivos


núcleos atômicos de carga positiva. Esta sempre foi a regra do universo desde sua criação. Desde
a expansão original da singularidade.
Fótons sem massa deveriam poder vagar livremente pelo universo sem praticamente interação
alguma! Até certas criaturas angélicas aprenderem a aprisioná-los, fazê-los descrever órbitas
estáveis mediante ressonância espaço-temporal . Obrigá-los a descrever órbitas em torno de...
nada!!! Átomos de luz, desprovidos de massa! Impossíveis de aparecerem naturalmente, mas...
Guiados por uma inteligência persistente, que sabia bem o que estavam fazendo, acabaram se
tornando reais!

Anjos decaídos, pouco a pouco criavam um mundo espiritual artificial, e ofereciam a seres
orgânicos materiais a possibilidade de se aproximarem de uma existência eterna que antes
somente eles mesmos possuíam...

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- Por quê fomos escolhidos?

- Temos nossos próprios critérios...

- Todas as pessoas que morrem são preservadas? - uma consciência gritou ao longe,

O anjo caído pensou. Achou melhor ser sincero:

- Não temos a tecnologia suficiente para preservar todos. 6, 7 bilhões de pessoas?? É demais
para nós! Temos que escolher os que merecem, quais as mentes que precisam ser preservadas
pela eternidade na forma de átomos de luz...

- E quem merece?

- Como disse antes, temos nossos próprios critérios de escolha...

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Lúcifer e Satã debatiam inconformados:

- Nunca serão gratos a nós, esses malditos humanos, macacos falantes! Mesmo depois de
termos criados para eles um mundo espiritual apartado da matéria, uma possibilidade de se
tornarem eternos, algo que Deus nunca lhes deu, limitando-os a uma vida material!

Satã se retorcia ao ouvir do amigo Lúcifer a palavra "Deus". Era doutor em TEOSOFIA, e se odiava
por ter este conhecimento que o mostrava o tempo todo, por toda a eternidade, de que ele
estava errado...

- Foi ideia sua, Lúcifer! Tentar preservar suas mentes! Criar réplicas delas em átomos de luz!
Onde estava com a cabeça quando pensou nisto?

Lúcifer sabia bem onde estava com a cabeça. Ele amava os humanos, de seu modo torto. Um
demônio é incapaz de amar algo? Então... ele não era totalmente um demônio! Foi o que o
levou a estudar os átomos de luz, e ao mundo espiritual, à possibilidade de levar mentes
humanas brilhantes a uma existência que transcendia às limitações da matéria!
- A maçã... - uma lágrima espiritual escorria de sua face espiritual... - Eu não deveria ter
oferecido a maçã à Eva...

Lúcifer percebia agora ter corrompido a espécie humana. Percebeu o erro disto, e... se
arrependeu!

- Saia daqui, cordeirinho de Deus!!! - vivocerou Satã ao perceber Lúcifer se tornando um


cordeirinho, voltando a querer viver sob as vontades e regras de um espírito maior que ousava
se denominar Deus...

O mundo espiritual continuou a existir mesmo sem Lúcifer. A técnica era aperfeiçoada, e o
mundo espiritual começava a ficar cada vez mais eficiente na cópia espiritual de cérebros
materiais, e era cada vez menor a possibilidade de se perder uma excelente ideia herege capaz
de refutar de uma vez por todas a sapiência da criação de Deus...
David Machado Santos Filho

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