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REIMAGINANDO NEUROSE E PSICOSE

Psicologia Arquetípica
Ajax Salvador

Estes dois termos carregam várias histórias sendo o termo psicose se diferenciava de neurose por indicar grave
comprometimento no funcionamento social e pessoal com perda ou comprometimento no teste de realidade,
delírios, alucinações etc.
O significado tradicional do termo "psicótico" salientasse a perda do teste de realidade e
comprometimento do funcionamento mental – manifestados por delírios, alucinações, confusão e
comprometimento da memória –, dois outros significados desenvolveram-se, nos últimos 50 anos.
(Kaplan, et al., 2003)pg. 308
Psicose segue sendo relacionada com regressão egóica o que teria levado a sua perda de precisão na prática clínica e
nas pesquisas.
Em conseqüência desses múltiplos significados, o termo perdeu sua precisão na prática clínica e nas
pesquisas atuais.
(Kaplan, et al., 2003)pg. 308
A Associação Norte-Americana de Psiquiatria usa psicótico como comprometimento do teste de realidade.
De acordo com o glossário da Associação Norte-Americana de Psiquiatria (American Psychiatric
Association), o termo "psicótico" refere-se a um amplo comprometimento do teste de realidade.
Pode ser utilizado para descrever o comportamento de um individuo em determinado momento, ou
um transtorno mental no qual. em algum momento durante seu curso, todos os indivíduos com o
transtorno apresentam um teste de realidade amplamente prejudicado. Quando o teste de realidade
encontra-se bastante comprometido, o individuo avalia incorretamente a acuidade de suas
percepções e pensamentos e realiza inferências incorretas acerca da realidade externa, mesmo em
face de evidências contrárias. O termo "psicótico" não se aplica a distorções menores da realidade
que envolvam temas de juízo relativo. Por exemplo, uma pessoa deprimida que subestima suas
conquis¬tas não é descrita como psicótica, enquanto aquela que acredita ter causado uma catástrofe
natural o é. (Kaplan, et al., 2003)pg. 308
Neurose é descrito como um transtorno crônico ou recorrente, ligado à sintomas com angustia inaceitável, estranho
(ego-distônico); Ansiedade expressa sintomas como: obsessão, compulsão, fobia, disfunção sexual etc. Não-psicótico
ou seja com teste de realidade intacto. O termo "neurose" não é usado no DSMIV (Manual Diagnóstico e Estatístico
da Associação Norte Americana de Psiquiatria)

No DSM III Neurose aparecia como:


Um transtorno mental no qual a perturbação predominante á um sintoma ou grupo de sintomas que
angustiam o indivíduo e que ele reconhece como inaceitável e estranho (ego-distônico); o teste de
realidade permanece globalmente intacto. O comportamento não viola ativamente as principais
normas sociais (embora possa ser bastante incapacitante). A perturbação e relativamente
persistente ou recorrente sem tratamento e não se limita a uma reação transitória aos estressores.
Não existe uma etiologia ou fator orgânico demonstrável.
(Kaplan, et al., 2003)pg. 313

No CID X (Classificação Internacional das Doenças) procura-se não seguir a dicotomia neurótico-psicótico. Faz-se isto
para evitar o envolvimento de pressupostos acerca de mecanismos psicodinâmicos. O termo psicose é usado apenas
para indicar a presença de alucinações, delírios ou de um número limitado de várias anormalidades de
comportamento
A divisão tradicional entre neurose e psicose que era evidente na CID-9 (ainda que deliberadamente
deixada sem qualquer tentativa de definir esses conceitos) não tem sido usada na CID-10. Contudo, o
termo "neurótico" ainda é mantido para uso ocasional e é encontrado, por exemplo, no título de um
grupo maior ou bloco de transtornos, F40 — F48, "Transtornos neuróticos, relacionados ao estresse
e somatoformes". Exceto pela neurose depressiva, a maioria dos transtornos considerados como
neuroses por aqueles que usam o conceito são encontrados nesse bloco e os restantes estão nos
blocos subseqüentes. Ao invés de seguir a dicotomia neurótico-psicótico, os transtornos são agora
arranjados em grupos de acordo com os principais temas comuns ou semelhanças descritivas, o que
dá ao uso uma conveniência crescente. Por exemplo, Ciclotimia (F34.0) está no bloco F30 — F39,
Transtornos do humor (afetivos), ao invés de em F60 - F69, Transtornos de personalidade e de
comportamento em adultos; similarmente, todos os transtornos associados ao uso de substâncias
psicoativas são agrupados em F10 - F19, seja qual for sua gravidade.
"Psicótico" foi mantido como um termo descritivo conveniente, particularmente em F23,
Transtornos psicóticos agudos e transitórios. Seu uso não envolve pressupostos acerca de
mecanismos psicodinâmicos, porém simplesmente indica a presença de alucinações, delírios ou de
um número limitado de várias anormalidades de comportamento, tais como excitação e
hiperatividade grosseiras, retardo psicomotor marcante e comportamento catatônico.
(CID-10 OMS, 1993) pg.3
Segue um trajeto de como estas noções aparecem em textos de Jung e na psicologia arquetípica. Propõe-se um
exercício de reimaginar a descrição da idéia de psicose através da descrição da esquizofrenia no CID X.

Jung apresenta, desde os seus primeiros textos, uma tensão importante entre as linhas de pensamento que
procuram explicar os sintomas da psicopatologia a partir de produto ilógico das células de uma máquina cerebral
em desordem e as dinâmicas psicológicas que são construídas por processos de associação seguindo complexos.
Estes teriam força de atração poderosa como imãs sobre os conteúdos coagulados, organizando-os em padrões.

Os hábitos seriam formados pela repetição de ações em associação e este conjunto complexo forçaria o sujeito a
determinadas ações.
Muitas vezes nos vemos forçados a determinadas ações por um afeto que, no início, sofre grandes
inibições e depois de várias repetições a reação se dá prontamente a partir de um pequeno impulso,
devido à diminuição da inibição.
(Jung, 1999) Pg.80
Os hábitos adquiridos nos processos de socialização produziriam marcas, traços unificados em complexos. Estes
tenderiam a funcionar de forma autônoma e a conduzir os sujeitos em determinadas ações. Assim “A forte
tonalidade afetiva cria um caminho, o que reafirma (...) cada complexo possui uma tendência para a
autonomia” (Jung, 1999).

Possibilita com isto superar a divisão entre psique e cérebro indicando que os hábitos, na socialização,
instalam processos psicológicos de automatização e autonomização de complexos na vida e no cérebro.

Todos os processos psíquicos são correlatos de processos celulares (como admite a concepção
materialista e também o paralelismo psicofísico). Portanto, nada de extraordinário que também os
processos psíquicos da catatonia sejam correlatos de uma série física. Sabemos que a série psíquica
normal se desenvolve sob a constante influência de inúmeras constelações psicológicas que, via de
regra, não nos são conscientes.
(Jung, 1999)pg.3
Jung afirma o complexo como resultado de processos associativos por analogia e semelhança que agem na psique.
Chega a afirmar que “o complexo é uma unidade psíquica” (Jung, 1999). Não haveria algo que pudesse ser unitário,
isolado e fora da psique:
Todo acontecimento afetivo torna-se um complexo. Se o acontecimento não estiver relacionado a
um complexo já existente, possuindo assim um significado momentâneo, ele submerge (...) até o
momento em que uma impressão semelhante a reproduza novamente.
(Jung, 1999) Pg.58
Os complexos são múltiplos e entre eles Jung destaca o Complexo do Ego; seria um complexo formado pela
percepção geral do corpo, existência e pelos registros da memória. Considera-o como complexo de fatos psíquicos.
Porém refere que : “o ego é um aglomerado de conteúdos altamente dotados de energia e, assim, quase não há
diferença ao falarmos de complexos e do complexo do ego.” (Jung, 1983) pg.67.

Os complexos poderiam interferir e realizar processos de invasão na consciência; estes não seriam de forma alguma
patológicos, a não ser no sentido do “pathos”, quando patologia significava a ciência das paixões. Seriam momentos
em que a pessoa fica subitamente alterada, tomada por algo; como se perdesse a cabeça. Historicamente isto era
atribuído a um demônio, a um encosto ou a um "espírito" que tomou o indivíduo. Emoções dominadoras podem ser
indesejáveis para o complexo do Ego, mas não seriam em si patológicas.

Ele diz que se as invasões tornam-se habituais conduzem a Neurose. “A idéia de dissociação psíquica é a maneira
mais segura com que consigo definir uma neurose.” (Jung, 1983) pg.156 A dissociação da personalidade se daria
devido à existência de complexos incompatíveis, que por estar em posição por demais contrária a parte consciente,
separam-se. Qualquer incompatibilidade poderia causar uma dissociação.

Os complexos teriam o centro do poder na condição esquizofrênica e se emancipariam em relação ao controle


consciente a ponto de tornarem-se visíveis e audíveis como visões ou vozes.
os complexos têm um certo poder, uma espécie de ego; na condição esquizofrênica eles se
emancipam em relação ao controle consciente, a ponto de tornarem-se visíveis e audíveis. Aparecem
em visões, falam através de vozes que se assemelham às de pessoas definidas.
(Jung, 1983)pg. 67
Jung associa a Psicose esquizofrênica a uma falta de separação e distinção entre sujeito e objeto que deveria ter
ocorrido no processo de individuação.
A separação e distinção da mãe, a "individuação" produz o confronto de sujeito e objeto, o
fundamento do consciente. Antes era a unidade com a mãe, isto é, com o universo. (...) Este
processo não parece ser muito raro na psicose. Um jovem operário adoeceu de esquizofrenia. Em
suas primeiras sensações doentias ele percebia uma relação especial com o Sol e com os astros. As
estrelas se lhe tornaram significativas, ele pensava que tinham alguma coisa a ver com ele, e o Sol
lhe insuflava idéias. Nesta doença encontra-se às vezes esta percepção aparentemente nova da
natureza. Outro paciente começou a entender a linguagem dos pássaros, que lhe traziam mensagens
da amada
(Jung, 2008) pg.388
Jung associa que os contrastes aparentes num surto “encontram-se intimamente relacionadas com lacunas na
personalidade do paciente.” (Jung, 1999)pg. 152 ; estas seriam sentidas como falta. Suscita pensar numa função
compensatória “Quem jamais sentiu a necessidade de compensar a aridez da vida de trabalho com a fruição da arte
poética?” (Jung, 1999)pg. 152. Mas indica a solução doente como renuncia temporária do problema.
A distância psicológica que separa o poeta do doente mental é bem grande. O mundo do poeta é o
mundo dos problemas resolvidos. A realidade é o mundo dos problemas não resolvidos. O doente
mental é o reflexo fiel desta realidade. Suas soluções são insatisfatórias e a sua cura, uma renuncia
temporária ao problema. Este permanece ativo e sem solução no inconsciente, emergindo, em
determinado momento, para criar ilusões num outro cenário. Como senhores bem podem ver, isso
é um fragmento da história da humanidade.
(Jung, 1999)pg. 154

Há momentos em que descreve que na psicose, como a esquizofrenia, o Ego se desintegraria, toda ordem de valores
desapareceria e as coisas não mais poderiam ser reproduzidas voluntariamente. O centro teria se esfacelado e
algumas partes da psique passariam a referir-se a um fragmento do ego, enquanto outras partes se ligarão a outros
fragmentos
O Ego (...) é um dado complexo formado primeiramente por uma percepção geral de nosso corpo e
existência e, a seguir, pelos registros de nossa memória. Todos temos uma certa idéia de já termos
existido, de nossa vida em épocas passadas; todos acumulamos uma série de recordações. Esses dois
fatores são os principais componentes do ego. O que nos possibilita considerá-lo como complexo de
fatos psíquicos. A força de atração desse complexo é poderosa como um imã: ele atrai os conteúdos
do inconsciente,(...). Ele também chama a si impressões do exterior (...)
É sempre o centro de nossas atenções e de nossos desejos, sendo cerne indispensável da
consciência. Se ele se desintegra, como na esquizofrenia, toda ordem de valores desaparece e as
coisas não mais podem ser reproduzidas voluntariamente; O centro se esfacelou e algumas partes da
psique passarão a referir-se a um fragmento do ego, enquanto outras partes se ligarão a outros
fragmentos.
(Jung, 1983) Pg. 7
Na psicose haveria a perda da unificação numa totalidade e a personalidade ficaria fragmentada.
Na histeria as personalidades dissociadas ainda permanecem numa espécie de inter-relação, o que
sempre oferece a imagem de uma personalidade total; sendo ainda possível estabelecer um
relacionamento com a pessoa, podemos sentir uma reação dos seus sentimentos. Há apenas a
divisão superficial de alguns compartimentos da memória, mas a personalidade básica está sempre
presente. Na esquizofrenia não acontece a mesma coisa, há apenas fragmentos, sendo impossível
estabelecer a totalidade. Eis porque, se tivermos uma pessoa que vimos sã pela última vez e que, de
repente, enlouqueceu, levamos um choque tremendo ao confrontarmos com a personalidade
fragmentária, partida. Pode-se manipular apenas um fragmento de cada vez, como um caco de vidro.
Não há um contínuo na personalidade, enquanto que, em um caso histérico, pensamos: Ah, se eu
pudesse apagar esse tipo de obscuridade, de sonambulismo, aí surgiria a soma total do indivíduo. Na
esquizofrenia a dissociação é profunda. Os fragmentos jamais se juntam.
(Jung, 1983)pg.93

No entanto Jung afirma, em outro momento, que a unidade da consciência é uma mera ilusão; um sonho de desejo.
Que gostamos de pensar que somos unificados, mas isso não acontece nem nunca aconteceu.
Tudo isso se explica pelo fato de a chamada unidade da consciência ser mera ilusão. É realmente um
sonho de desejo. Gostamos de pensar que somos unificados; mas isso não acontece nem nunca
aconteceu. Realmente não somos senhores dentro de nossa própria casa. E agradável pensar no
poder de nossa vontade, em nossa energia e no que podemos fazer. Mas na hora H descobrimos que
podemos fazê-lo até certo ponto, porque somos atrapalhados por esses pequenos demônios, os
complexos. Eles são grupos autônomos de associações, com tendência de movimento próprio, de
viverem sua vida independentemente de nossa intenção.
(Jung, 1983) pg. 67
Que seria impossível a tarefa de unir todos os elementos incompatíveis. Pois o ego pode apenas identificar-se com
uma parte de cada vez.
(o doente) tenta ajuntar todos os elementos dispersos no vaso, que é destinado a ser receptáculo de
todo o ser, de todos os elementos incompatíveis. Se tentasse uni-los, em seu ego, seria uma tarefa
impossível, pois o ego pode apenas identificar-se com uma parte de cada vez.
(Jung, 1983) pg. 165
Diz que é a atividade objetivante da consciência que inibe a explicitação do complexo. Que só apareceria de forma
metafórica.

A possibilidade de o complexo vir a se explicitar é inibida pela atividade objetivante da consciência. O


complexo apenas se fará notar de maneira obscura como acontece nos
automatismos melódicos que , em geral, trazem os pensamentos do complexo de forma
metafórica.
(Jung, 1999) Pg.47
Quando o complexo se fixa, não se modifica de forma alguma, intoxicaria e comprometeria as funções psíquicas
aparecendo como uma psicose.
Devemos postular, no caso da dementia praecox, uma manifestação específica do afeto (toxina?)
que aciona definitivamente a fixação do complexo, comprometendo o conjunto das funções
psíquicas.
(Jung, 1999)Pg.30
Se o complexo não se modifica de forma alguma, o que naturalmente só é possível em grave
detrimento do complexo do eu e de suas funções, então devemos falar de uma dementia praecox.
(Jung, 1999)Pg 59

Para Jung quando há o domínio permanente de um complexo insuperável o sujeito estará morto para o meio
ambiente pois seu interesse estaria exclusivamente no complexo

A todo indivíduo normal interessa libertar-se de um complexo obsessivo que impede o


desenvolvimento adequado da personalidade (a adaptação ao meio ambiente).
(Jung, 1999)Pg 58

O ego é um aglomerado de conteúdos altamente dotados de energia e, assim, quase não ha


diferença ao falarmos de complexos e do complexo do ego.
(Jung, 1983)pg.67
Porém a cisão seria efeito da revolta e combate do estilo predominante na consciência (“personalidade
consciente”) contra uma manifestação de formações diversas. Seria a oposição e combate as reivindicações,
ampliariam a cisão.
Quanto mais se alarga a brecha entre consciente e inconsciente, tanto mais iminente a cisão da
personalidade, que no indivíduo com tendência neurótica leva à neurose, naquele com
predisposição psicótica leva à esquizofrenia, à desintegração da personalidade. Normalmente os
impulsos do inconsciente são realizados inconscientemente (...) quando o respectivo conteúdo
espiritual não é levado em consideração, mas mesmo assim se insinua inconscientemente na vida
intelectual consciente
(Jung, 2008) pg. 425
As manifestações se dirigem não apenas aos pontos fracos do estilo preponderante na consciência, mas
às virtudesprincipais, a função diferenciada e mesmo aos ideais.
Em geral a personalidade consciente se revolta contra a manifestação do inconsciente e combate
suas reivindicações que, como se percebe nitidamente, não se dirige apenas aos pontos fracos do
caráter masculino, mas ameaça também a "virtude principal" (a "função diferenciada" e o ideal).
(Jung, 2008) pg.293

A loucura não apareceria separada do psiquismo “normal”; ela adquire um sentido; “é uma pessoa que sofre dos
mesmos problemas humanos que nós (...)”. Reconhece-se na doença uma reação inusitada a questões que se
apresentam em todos nós.
Quando, porém, penetramos nos segredos do doente, percebemos que a loucura possui seu sistema
próprio (a loucura revela seu sistema), e passamos a reconhecer na doença mental apenas a reação
inusitada a problemas emocionais que pertencem a todos nós.
(Jung, 1999) pg. 149
Jung problematiza as idéias que tentam propor para psicose (demência praecox) dinamismos ou psicologias
diferentes do restante quer seja neurose histérica quer seja do chamado normal.
sabemos bem pouco sobre a psicologia das pessoas normais e dos histéricos para pressupormos,
numa doença tão obscura como a dementia praecox, mecanismos novos e desconhecidos das
demais psicologias.
(Jung, 1999) Pg. 15/16

Em “Psicogênese das Doenças Mentais” há uma forte problematização perguntando se os conteúdos que aparecem
no “doente” com afetos violentos não seriam incongruente apenas para nós, que conhecemos insuficientemente
sua psique, mas também para o sentimento subjetivo do doente?

Jung afirma que os sintomas, “"idéias patológicas" desempenham, freqüentemente, um papel fundamental” (Jung,
1999);que “O distúrbio súbito da associação pela irrupção de um encadeamento estranho de idéias também ocorre
em pessoas normais”(Jung, 1999). “a associação incoerente ou "idéia patológica" talvez se relacione com um
fenômeno psicológico mais geral” (Jung, 1999). Que “a experiência de associação nos mostra que esses
fenômenos (bloqueio que parece involuntário; "amnésia", justamente na histeria, pois apenas um passo separa a
amnésia do não-querer-falar.) ocorrem também em pessoas normais” (Jung, 1999).

Assim, é possível pensar que, geralmente, as excitações permanecem incompreensíveis para nós, já
que não percebemos suas causas associativas. Isso se passa inclusive conosco: ficamos durante certo
tempo mal humorados e, até, inconvenientes e não temos consciência da causa. Damos as respostas
mais simples num tom ríspido e fora do normal, etc. Se a própria pessoa normal nem sempre é capaz
de elucidar a causa de seu mau humor, muito menos nós conseguiremos isso em relação à psique de
um demente precoce! (...) Embora no quadro clínico a incongruência seja um dado bastante
freqüente, ela não ocorre apenas na dementia praecox. Na histeria, a incongruência é, do mesmo
modo, algo corriqueiro; (...) A psicanálise, no entanto, descobre os motivos e agora começamos a
compreender por que os doentes assim reagem. (...) Sabendo que a incongruência também aparece
na histeria, será necessário pressupor um mecanismo totalmente novo na dementia praecox?
(Jung, 1999)Pg. 15

Embora Jung diga que a psicose aparece como a invasão de complexos, é com a assimilação destes que há
a proteção contra o isolamento e a psicose. Aponta para a questão da cisão diante da porção incompreensível e
irracional. Afirma a necessidade de formas de expressão coletivas e por isso não basta, no auxílio profissional, a
orientação exclusivamente pessoal.
Ao mesmo tempo, a assimilação do inconsciente protege contra o perigoso isolamento que sente
todo aquele que se vê frente a frente com uma porção incompreensível, irracional, de sua
personalidade. Pois o isolamento leva ao pânico, e com isto tão freqüentemente começa a psicose
(...) Quanto mais se alarga a brecha entre consciente e inconsciente, tanto mais iminente a cisão da
personalidade e aliás sob muitos disfarces. (...) Em geral é necessário o auxílio profissional para
sustar uma tal cisão. (...) visando formar o seu consciente de tal forma que pudesse compreender os
conteúdos do inconsciente coletivo. (...) As relações arquetípicas dos produtos do inconsciente só
podem ser compreendidas com o auxílio das "representations collectives" (LÉVY-BRUHL),(...). De
modo algum basta para isto uma psicologia de orientação exclusivamente pessoal.
(Jung, 2008) pg. 425/426

A questão da cisão estaria intimamente relacionada não apenas a luta, combate, mas ao desagrado e paralisação da
energia psíquica que estava fluindo seguindo um determinado padrão complexo constelado. Haveria aspectos
desagradáveis na paralisação da energia psíquica. Isto apareceria à consciência como indesejável, desagradável ou
mesmo catástrofe que esta tentaria evitar.
“a paralisia da energia progressiva de fato tem aspectos desagradáveis. Ela aparece como
coincidência indesejável ou mesmo como catástrofe, que naturalmente se deseja evitar.”
(Jung, 2008) pg.293

No entanto, Jung afirma que entende por sujeito todos os estímulos, sentimentos, pensamentos, e sensações vagos
e obscuros que perturbam e criam obstáculos à continuidade da vivência consciente do objeto.
Entendo por sujeito, convêm dizer desde já, todos aqueles estímulos, sentimentos, pensamentos, e
sensações vagos e obscuros que não é possível demonstrar que promânem da continuidade da
vivência consciente do objeto, mas que pelo contrário, surgem como perturbação e obstáculo, (...)
(Jung, 1981)Pg.478

Poderia ser dito que o sujeito aparece como o que resiste a continuidade do que a consciência objetificou com
unidade? Se for assim o sujeito apareceria como algo que interrompe a energia progressiva e agradável?
Tanto que indica que as invasões e dissociações, características da “doença neurótica” seriam um fator favorável,
uma tentativa de auto-cura.
(...) é uma tentativa de auto-cura, (...) Não se pode mais entender a doença como um ens per se,
como uma coisa desenraizada, como há algum tempo atrás se julgava que fosse.
(Jung, 1983) pg.156
Portanto o favorável não é o que parece agradável e favorecendo o fluxo de energia no complexo do Ego, mas o
que interrompe ou paralisa um determinado funcionamento automatizado de forma complexa. É na loucura que se
pode descobrir um sentido no sem-sentido. A loucura revela novos sentidos, outras organizações complexas
A série de acontecimentos aparentemente tão absurdos, as "loucuras", adquire, de repente, um
sentido; descobrimos um sentido no sem-sentido, conquistando, assim, uma aproximação mais
humana do doente mental. Ele é uma pessoa que sofre dos mesmos problemas humanos que nós
(Jung, 1999) pg. 149

É interessante que, Jung indica que a esquizofrenia estaria relacionada com o individualismo.
“o distúrbio mental conhecido pelo individualismo e pela originalidade de seus produtos.”
(Jung, 2008) Pg. 131

Retomando a noção de “Doença” em Jung e na psicologia arquetípica.

A Doença para Jung não pode ser vista como coisa em si, como algo separável ou isolado, como uma coisa que
estivesse em algum lugar (na pessoa, nas células, no cérebro etc.) uma vez que a unidade da psique não é um átomo
ou uma unidade em abstração como no sentido da matemática. A unidade aparece como um complexo de
relações e a doença também e portanto não pode ser um “ente em si”.
“o médico não deve jamais perder de vista o seguinte: as doenças são processos normais
perturbados e nunca “entia per si”, dotados uma psicologia autônoma.”
(Jung, 1983) pg. 2
O que indicaria a doença seriam as situações onde ocorre a fixação de um complexo, quando ele não se modifica de
forma alguma, quando há o domínio permanente de um complexo insuperável etc.

Jung nos diz que somos sempre conduzidos de alguma forma, por algum complexo, em inúmeras constelações !
a série psíquica normal se desenvolve sob a constante influência de inúmeras constelações
psicológicas que, via de regra, não nos são conscientes.
(Jung, 1999) Pg.3
A constelação dos eventos se organizaria seguindo estilos de consciência, fantasias dominantes, estilos imaginativos
de discurso que funcionam como padrões Arquetípicos. Estes são melhor comparáveis aos deuses gregos. As formas
de viver, pensar, de sentir etc. seriam, então, alegorias destes estilos e não o contrário! Seria o que organiza os
eventos em constelações.

Patrícia Berry em conferência realizada em São Paulo em 2009 refere que Jung designava deus como tudo que cruza
o caminho, perturba, muda o curso da vida.
“todas as coisas que cruzam o meu caminho de forma inesperada, violenta, tudo que perturba
minhas visões subjetivas, meus planos e minhas intenções e mudam o curso da minha vida para
melhor ou pior”
Jung por Berry

Se os deuses aparecem como o que conduz, faz sofrer, rir, chorar, pensar, interrompe e limita o caminho do ego,
então: “Os deuses tornaram-se doenças”. (Jung, 2003) §54

Não está se dizendo que os sintomas ou os desconfortos levariam o sujeito a corrigir “seu” caminho ou buscar a
divindade interna ou externa; que haveria “um” caminho próprio do sujeito e outros desviantes ou doentes e que os
sintomas levariam a correção do caminho torto em busca de “um” caminho natural, espontâneo, verdadeiro etc.
Não!

Os padrões arquetípicos (deuses), como a psique, alma ou vida, estão em nós e nós estamos neles, ao mesmo
tempo. Eles atravessam, conduzem e constituem a todos nós. “Alma ou Psique que não apenas está em nós, como
uma série de dinamismo, mas também nós estamos nela.” (Hillman, 1975)pg.134

Só pensaria que age livremente quem não pensa no que o leva a agir. Na dimensão da ação, do julgamento, da
conduta, não se trataria nunca de um indivíduo que age, julga, se comporta, mas tratar-se-ia de algo que o leva a
agir julgar e se comportar.

Na psicologia arquetípica, James Hillman em “Revendo a Psicologia” (Hillman, 1975) nos contra-educa, instabiliza os
pontos de sustentação do pensar habitual propondo que nunca verdadeiramente temos idéias! Elas é que nos têm,
suportam, contêm e nos governam. As Idéias como formas de olhar.

Os padrões arquetípicos (deuses), seriam infinitudes verdadeiras; melhor comparados aos deuses gregos que
atravessavam a tudo como infinitos sem bordas, sem começo ou fim. Estes não são seres que protegem ou castigam;
são padrões que buscam coagular, organizar, conduzir na máxima intensidade, a partir de valores específicos de
cada configuração.

“Quando a vida se inflamava, no desejo ou no sofrimento, ou mesmo na reflexão, os heróis


homéricos sabiam que ali havia um deus em ação ...”.
(Calasso, 1996) pg.68

Configura-se para Hillman uma “Doença” nas situações em que só se tem altar para um único deus! Ou em toda
forma de fundamentalismo.
Diz também que a “patologia é a maneira mais palpável de testemunhar os poderes que estão além do controle do
ego” e que“é através dos ferimentos na vida humana que os deuses entram” (Hillman, 1975)
Os complexos patológicos mostrariam a organizações de eventos em constelações a partir de padrões arquetípicos
diferentes do que está, no momento, controlando como se fosse o melhor e mais saudável.

Os sujeitos investem em diferentes intensidades nas expectativas de seguir valores ligados à realização de uma
vida bem sucedida. Constituem o complexo do Ego, no processo de socialização, construindo identidades
socialmente reconhecidas, internalizam com isto padrões que podem ser utilizados, normativamente, sobre os
sujeitos, a psique e a vida.

Sofrer-se-ia por não poder tomar distância das normas que obrigam a realizar certos valores, certas expectativas,
que, para o sujeito, parecem totalmente ligadas à realização de uma vida bem sucedida.

Os complexos “patológicos” exprimiriam outras normas de vida possíveis, que teriam organizado os eventos em
constelações de forma diversa, a partir de diferentes estilos de consciência, fantasias dominantes, estilos
imaginativos de discurso.
As categorias Psicopatológicas seriam como vasos para aglutinar exprimir outras normas de vida. Seriam padrões
arquetípicos ou normas organizadas histórica e socialmente, diferentes do que está, no momento, controlando
como se fosse o melhor e mais saudável. Validariam muitas formas outras de viver, pensar, de sentir, valorar; dariam
legitimidade às transformações nas formas de constituir famílias, tribos, redes sociais, realizar trocas, trabalhar,
morar etc.

O patológico não seria a ausência de norma, mas uma norma diversa, porém repelida pela instância que está,
naquele momento, dominando a vida.

Podem-se traçar semelhanças profundas entre esta forma de pensar e as idéias de George Canguilhem no texto “O
Normal e o Patológico” (Canguilhem, 2000) quando afirma que doença acontece quando só se pode admitir uma
única norma, não se pode ultrapassá-la, infringir a norma habitual e constituir normas novas.
“o doente é doente por só poder admitir uma norma. O doente não é anormal por ausência de
norma, e sim por incapacidade de ser normativo.” (Canguilhem, 2000, p. 149)
“o que caracteriza a saúde é a possibilidade de ultrapassar a norma que define o normal
momentâneo, a possibilidade de tolerar infrações à norma habitual e de instituir normas novas em
situações novas” (Canguilhem, 2000) pg.160

Ou seja, se está doente quando se está totalmente absorvido pelo meio; mas o meio não está do lado de fora. O
meio se duplicou. Ele exerce seus efeitos nas idéias e valores que orientam a sociedade e não só dirigem, mas
constituem a identidade do Eu nas pessoas.

As normas poderiam estar internalizadas por elos de associação abstratos. Jung fala de “unidade funcional” no
texto sobre “o complexo de tonalidade afetiva e seus efeitos gerais sobre a psique”; ali descreve, num exemplo, que
ao encontrar na rua um velho amigo: “em meu cérebro, surge uma imagem, uma unidade funcional” (Jung, 1999).
Estas unidades construídas por abstração de alguns elementos presentes em determinados acontecimentos seriam
transformadas em sistemas complexos, tanto em traços arquivados em conexões neuronais, chamados de
memória, como em experiências históricas sedimentadas nos processos mais elementares, modos de vida, valores
sociais, condutas etc. que se atualizariam em todos os indivíduos.

Assim unidades abstratas que aparecem, tanto em valores sociais, como em traços neuronais, determinam de
antemão as possibilidades de reação e organizam sistemas que fornecem o padrão e a transgressão (a regra
anunciada e as alternativas ao padrão) ligando estes a disposições de conduta independentes das crenças que se
tenha e do que está acontecendo no presente vivo.

Poderiam estas unidades abstratas serem imaginadas como princípios de incerteza, “padrões mais profundos do
funcionamento psíquico, as raízes da alma que governam as perspectivas que temos de nós mesmos e do mundo.”
(Hillman, 1975) e então pode-se aproximá-las da noção daquilo que é chamado de padrão arquetípico?

Padrões arquetípicos que se apresentariam tanto nas relações no mundo como internalizados em automatismos
cerebrais com autonomia. Interessa tomar distância, libertar-se destes complexos obsessivos, como diria Jung.
A todo indivíduo normal interessa libertar-se de um complexo obsessivo que impede o
desenvolvimento adequado da personalidade (a adaptação ao meio ambiente).
(Jung, 1999 p. 58)

A loucura desvelaria o momento em que “o outro” de um estilo de racionalidade dominante não pode ser escutado,
compreendido e acolhido.

As categorias e descrições psicopatológicas forneceriam, à maneira dos mitos, a inter-relação de poderes humanos
(poderes que o Ego julga controlar heroicamente) e sobre-humanos (forças que o conduzem) como nos aponta
Hillman em Mito da análise. (Hillman, 1984)

A questão pode ser: “(...) a qual categoria (a qual Deus) pertence este problema?” (Hillman, 1984 p.146)

As categorias Psicopatológicas invertem-se com o aprofundar metafórico Os diagnósticos categoriais apresentam o


que foi constelado, num processo histórico, como o outro da razão, da saúde e da vida realizada.
Olhando metaforicamente, através das descrições diagnósticas, que se pode perceber implicitamente as normas
valorizadas de forma mais viva e encarnada.

Metáfora como uma forma de ver que se aproxima do que aparece como constelação de atributos aglutinados e não
como unidades totalizantes.

As categorias Psicopatológicas condensam as normas tácitas que atravessam a todos e das quais se precisa tomar
distância, ao pretender trabalhar no campo da saúde mental buscando dissolver e superar certezas,
fundamentalismos, verdades únicas e literalismos hegemônicos.

A psicologia arquetípica, através de Hillman, fala de um estilo de consciência Heróico que procura determinar
unificando (Hillman, 1975). A literalização seria a resposta do olhar unificador do Ego heróico sobre o diverso, o
múltiplo, as contradições no mundo, na tentativa de eliminar a tensão entre o desconhecido, descontrolado,
inquieto, pulsante e indeterminado e as configurações determinadas.
Problemas seriam efeitos do ego heróico sobre o que se apresenta como desconhecido, descontrolado na busca de
paralisar o movimento constante da vida. A psique teria um trabalho de criar patologias (Patologizar, Hillman, 1975)
para dispor de bolsas para tudo o que não encontra lugar e permitir que o movimento não fosse bloqueado.

O Ego Heróico diante do diverso, do múltiplo, da tensão busca unificar; constitui “uma” representação diante do
diverso da existência; diante de uma questão vê problemas literais a serem resolvidos; realiza sua tarefa de coagular
o múltiplo em significados particulares que é chamado: fatos, dados, problemas, realidade. Se este se apropriar do
controle e buscar a dominação única de sua perspectiva sobre os movimentos e a multiplicidade da vida, torna-se o
único deus ao qual se deu altar, então se tem a doença!

E se for exatamente o complexo do Eu/Ego que, ao não conseguir tomar distância do estilo heróico de consciência,
obsessivamente impede a vida em sua pulsação, multiplicidade e indeterminação e destrói conexões diferentes no
cérebro e no mundo.

Isto pode fazer pensar que o complexo que não se modifica de forma alguma e que leva a falar em demência
praecox seria o próprio complexo do Eu sendo conduzido em identificação com o estilo de consciência Heróico?

Hillman no texto “Paranóia” diz que o caminho é tornar-se parte do quadro.


O modo de penetrar em qualquer quadro clínico é tornar-se parte do quadro, e isto é válido tanto
para a compreensão teórica de uma síndrome, quanto para a terapia de um caso individual que sofre
da síndrome.
Paranóia (Hillman, 1993, p.14 citação 6)

Aproximação inicia-se pelo Pathos, tudo o que nos faz sofrer, sentir, rir, chorar, pensar desta ou daquela maneira; o
que nos conduz; aquilo que nos atravessa, nos move e também nos constitui. Como diante dos limites, do
desconhecido, a psique constantemente construiria fantasias explicativas, que vistas literalmente, nos
apresentariam as patologias; estas seriam vasos para aglutinar estas fantasias.

Não seria importante entrar, metaforicamente, no que é apresentado como psicopatologia?

Foi por um crepúsculo de vago outono que eu parti para essa viagem que nunca fiz. (...)
Eu não parti de um porto conhecido. Nem hoje sei que porto era, porque nunca lá estive. (...)
Julgais, sem dúvida, que as minhas palavras são absurdas. É que nunca viajaste como eu.
(Pessoa, Viagem nunca feita, 1996 p. 41)
Tomam-me pouco a pouco o delírio das coisas marítimas,
Penetra-me fisicamente o cais e sua atmosfera (...)
Acelera-se cada vez mais o volante dentro de mim (...)
Chamam por mim as águas.
Chamam por mim os mares.
Chamam por mim levantado uma voz corpórea, os longes, as épocas marítimas todas sentidas (...)
(Pessoa, 1996 p. 319)
Ode marítima/Álvaro de Campos/Fernando Pessoa
Há vozes que mandam, querem me obrigar a fazer coisas...
Visões que dizem o que vai acontecer no futuro...
Há chips implantados em mim que controlam o que faço...

Há vozes e vozes, perseguições e perseguições. Alguns poemas e outras sintomas.


Algumas possibilidades de vida e outras prisões.
O que encarcera é o fato de serem vozes ou pensamentos de perseguição?
Para quem, para que forma de ver, para que estilo de consciência, vozes e perseguições são um problema
aprisionante?

Pode-se metaforizar e tornar-se parte do quadro, na descrição do diagnóstico de Esquizofrenia no CID X

Os transtornos esquizofrênicos são caracterizados, em geral, por distorções fundamentais e


características do pensamento e da percepção (...) (CID-10 OMS, 1993, p. 85)

No meio das características fundamentais do pensamento e da percepção tinha um transtorno, tinha um transtorno
no meio do caminho.
No meio do caminho tinha uma pedra, tinha uma pedra no meio do caminho ...
No Meio do Caminho/ Carlos Drummond de Andrade

Quantos defeitos sanados com o tempo eram o melhor que havia em você?
A lista/Oswaldo Montenegro

A perturbação envolve as funções mais básicas que dão à pessoa normal um senso de
individualidade unicidade e direção de si mesmo. (CID-10 OMS, 1993, p .85)

Meu tema é a vida. Procuro estar a par dele, divido-me milhares de vezes em tantas vezes quanto os
instantes que decorrem, fragmentária que sou e precários os momentos (...) Esta é a vida vista pela
vida. Posso não ter sentido, mas é a mesma falta de sentido que tem a veia que pulsa. (...) E
doidamente me apodero dos desvãos de mim (...) Eu sou antes, eu sou quase, eu sou nunca.
Água viva/Clarisse Lispector

Os transtornos esquizofrênicos são caracterizados (...) e por afeto inadequado ou embotado. Os


pensamentos, sentimentos e atos mais íntimos são sentidos como conhecidos ou partilhados por
outros.(CID-10 OMS, 1993)
Inadequado como imperfeição?
Que santificados do absurdo os artistas que queimaram uma obra muito bela, daqueles que,
podendo fazer uma obra bela, de propósito a fizeram imperfeita, (...) Por que escrevo este livro?
Porque o reconheço imperfeito. Calado seria a perfeição; escrito imperfeiçoa-se...”
(Pessoa, 1996, p.27/28
Apoteose da Mentira/Fernando Pessoa)

E se a norma do pensamento e a percepção sem distorções, os afetos adequados e sem embotamentos, o senso de
unicidade, individualidade e direção de si mesmo; os pensamentos e atos íntimos não compartilhados, tornarem-se
norma única? O único deus ao qual se dê altar?

(...) e podem se desenvolver delírios explicativos, a ponto de que forças naturais ou sobrenaturais
trabalham de forma a influenciar os pensamentos e as ações do indivíduo atingido, de formas que
são muitas vezes bizarras. (CID-10 OMS, 1993, p.85)

Karl Jaspers em Patologia Geral fala de delírio como uma alteração na forma do pensamento com convicção
extraordinária,certeza subjetiva, incomparável, Impossibilidade de influenciamento da parte da experiência e de
raciocínios constringentes e impossibilidade do conteúdo.
Aplicando-se os três critérios ao pensamento literal e unificador não poderíamos dizer que é ele que tem certeza
plena?
Não se duvida do Princípio da não contradição! Uma proposição verdadeira não pode ser falsa e uma proposição
falsa não pode ser verdadeira. Nenhuma proposição, portanto, pode ser os dois ao mesmo tempo - Ou é A ou é não
A. Não pode ser A e “não A” ao mesmo tempo. Como nos apresenta Aristóteles na Metafísica livro IV capítulo 4.
Subjaz no pensamento literal a idéia de que semelhanças e analogias não são formas de conhecimento e sim ficções
do espírito. Que discernir é estabelecer identidades. E que o ser pensado é essencialmente representado; onde
aparece como objeto adequado a categorização. Isto leva a idéia de autodeterminação e liberdade que se
caracteriza pela certeza subjetiva; ou seja, só se aceita algo que satisfaça as exigências de verdade para mim.
Embora vários pensadores tenham problematizado este princípio lógico com raciocínios constringentes e elementos
da experiência, aparece haver uma impossibilidade de influenciamento nas idéias. Todas as operações desta razão
literal são pautadas por: unidade, identidade e diferença. Entre os autores que refletem sobre a questão
da Unidade e Identidade, buscando superar as oposições entre “Um e Múltiplo”, “Ser e Nada” estão:

Heráclito ao dizer que: O combate (Pólemos) é o que é comum; onde a harmonia visível esconde a tensão, não
visível; esta tensão é a mais bela Harmonia! Afirma a não existência de solução para a tensão. Não escutar a tensão
constitutiva das coisas, levaria os homens a viverem como se possuíssem um particular e tomarem por particular o
que é comum. (Heráclito, 1973).

Para Nietzsche “toda palavra torna-se conceito quando tem de convir a um sem-número de casos, nunca iguais,
portanto, a casos claramente desiguais. E chamamos de igual o desigual para podermos nos comunicar.” (Nietzsche,
1978).

Adorno aponta que é através das operações de construção de unidade e identidade, onde torna-se igual o desigual,
que se instala um sistema de equivalências; tudo pode ser transformado em unidade e visto como uma coisa
(reificação) e adquire uma forma que permite trocas (forma mercadoria). O princípio da unificação do diverso da
intuição sensível, sob a forma de um objeto, que é dado pelo próprio “Eu”, leva à coisificação do mundo. (Adorno, et
al., 1985)

Para Hegel toda determinação é um processo relacional. Só se determinaria algo em relação a outro algo que é
posto ao mesmo tempo; quando é posto em uma situação, em um contexto próprio a existência. Determina-se um
objeto através do acesso as suas qualidades, mas como toda qualidade é uma determinação relacional, a identidade
do ser consigo mesmo é sempre em trabalho de contraste relacional tentando excluir uns dos outros. Fora das
estruturas de relação só pode haver indeterminação. O Ser aparece como o excesso que indica como toda
estruturação de objeto vai ser sempre assombrada pela indeterminação. Ser e Nada são abstrações. O devir seria o
primeiro pensamento concreto. O devir introduziria a oposição no interior do Ser. Nada no interior do Ser é o
devir (Hegel, 1995). Pode-se pensar então em determinação para além da idéia da determinação atributiva de
predicados limitadores e em objeto para além da idéia do objeto como pólo fixo da identidade.

O pensamento metafórico simbólico, imaginativo seria uma forma de pensar por constelações ou o que pode ser
entendido como algo muito próximo de pensar por metáforas (metáfora como uma forma de ver que se aproxima
do que aparece como constelação de atributos aglutinados e não como unidades totalizantes), seria uma construção
imaginativa que se aproxima do olhar poético e que afirma a potência cognitiva da mímese. Pensar por constelações
pode aproximar este pensamento do que Walter Benjamim refere como constelações:
a idéia pertence a uma esfera fundamentalmente distinta daquela em que estão os objetos que ela
apreende. (...) Sua significação pode ser ilustrada por uma analogia. As idéias se relacionam com as
coisas como as constelações com as estrelas. O que quer dizer, antes de mais nada, que as idéias
não são nem os conceitos dessas coisas, nem as suas leis. Elas não servem para o conhecimento dos
fenômenos, e estes não podem, de nenhum modo, servir como critérios para a existência das
idéias.
(Benjamim, 1984) Pg. 56

Jung falava da importância do conteúdo e da necessidade de aprofundar nos processos associativos e não ficar com
as unidades. Hillman indicará que o olhar metafórico dissolveria os atributos aglutinados pelo literalismo do ego
heróico e quebraria a vivência de unidade e de imediaticidade de qualquer coisa.
“a regressão infinita do psicologizando, seu processo interiorizante do visível ao invisível (...) chega a
um descanso ao encontrar a permanente ambiguidade da metáfora, onde descansar e permanecer
são ficções – “como se”. (...) como todo conceito intelectual, repousa ou encontra solo permanente
e base na metáfora e pode apenas se estabelecer pelo consentimento da metáfora.
(Hillman, 1975)Pg. 153
Isto se alinha a Hillman quando fala na via negativa e na natureza metafórica da Alma:
“O terapeuta não literaliza (...) ele se move ao longo da Via negativa tentando desliteralizar todas as
formulações” (...)
(Hillman, 1983)pg. 76
A natureza metafórica da alma tem uma necessidade suicida, uma afinidade com o mundo das trevas
(...) Aquele sentido de fraqueza, de inferioridade, de mortificação, de masoquismo, e de fracasso é
inerente ao método metafórico em si, o qual anula a definição da consciência como controle sobre
os fenômenos.
(Hillman, 1983)pg. 48
O poeta talvez ajude quando diz que:
Ter opiniões definidas e certas, instintos, paixões e caráter fixo e conhecido – tudo isto monta ao
horror de tornar nossa alma um fato.(...) Viver é um doce fluido estado de desconhecimento das
coisas e de si próprio.
Livro do desassossego/Máximas / Fernando Pessoa

Volta-se a descrição no CID X


As alucinações, especialmente auditivas, são comuns e podem comentar sobre o comportamento
ou os pensamentos do paciente. (CID-10 OMS, 1993)pg. 85

A questão é aparecerem vozes comentando comportamentos, pensamentos ou sentimentos ou o que as vozes são
tomadas como literais? Qual a diferença de que aparece em todos? Quantas vozes não chamam, metaforicamente,
a cada momento cada ser humano?
A questão pode estar mais na literalidade e na insistência dos chamamentos.
A insistência é o nosso esforço,
A desistência o nosso prêmio. (...)
Desistir é a escolha mais sagrada de uma vida.
Desistir é o verdadeiro instante humano.
E só esta, é a glória própria de minha condição.
A desistência é uma revelação.
Clarisse Lispector

A percepção é freqüentemente perturbada de outras formas: cores ou sons podem aparecer


excessivamente vívidos ou alterados em qualidade e aspectos irrelevantes das coisas comuns,
podem parecer mais importantes que todo o objeto ou a situação (CID-10 OMS, 1993)pg. 85

Quando a percepção não é perturbada? A percepção depende em parte dos estímulos externos, mas é elaborada
por uma série de conexões. O que se vê não são os comprimentos de ondas e sim uma imagem formada no lobo
occipital fruto de muitas interferências. Interessante que aspectos são irrelevantes para quem? Para o senso
comum? Há algo que não está dando a mesma relevância ordinária para as coisas.
Perplexidade é também comum no início e leva, frequentemente, a uma crença de que situações
cotidianas possuem um significado especial, usualmente sinistro, destinado unicamente ao
indivíduo. (CID-10 OMS, 1993)pg.85
As situações cotidianas não deveriam ter significado especial? A questão é dar um significado ou ter que desvendar o
significado? Ou estar certo de que o significado é sinistro? Sinistro para quem?
Na perturbação característica do pensamento esquizofrênico, aspectos periféricos e irrelevantes
de um conceito total, que estão inibidos na atividade mental normalmente dirigida, são trazidos
para o primeiro plano e utilizados, no lugar daqueles que são relevantes e adequados à
situação. (CID-10 OMS, 1993)pg.85
E se a norma que indica quais aspectos devem ficar mais reforçados, em primeiro plano, utilizados de maneira
adequada a um conceito total, relativo a esta norma, tornar-se fundamentalista?
E se só puder dar altar a estes aspectos (a este deus)?
Os outros poderão ser considerados periféricos e irrelevantes e deverão estar inibidos?

Dessa forma, o pensamento se torna vago, elíptico e obscuro e sua expressão em palavras,
algumas vezes incompreensível. São assíduas as interrupções e interpolações no curso do
pensamento e os pensamentos podem parecer serem retirados por um agente exterior.
O humor é caracteristicamente superficial, caprichoso ou incongruente. A ambivalência e a
perturbação da volição podem aparecer como inércia, negativismo ou estupor. A catatonia pode
estar presente. (CID-10 OMS, 1993) pg. 85

Psicose ou “Esquizofrenia” é o que se apresenta quando alguém:


1. Ouve vozes ou vê coisas que outros não vêem?
2. Têm os pensamentos, sentimentos e atos mais íntimos sentidos como conhecidos ou partilhados por outros?
3. Desenvolve explicações, a ponto de que forças trabalham de forma a influenciar os pensamentos e as ações?
4. Não consegue separar nitidamente o que pensa do que acontece?
5. Apresenta afetos inadequados ou embotados?
6. Não apresenta um senso de individualidade, unicidade ou direção de si mesmos firmes?
7. O Humor se expressa superficial, caprichoso, incongruente ou ambivalente?
8. Quando há perturbação da volição que aparece como inércia, negativismo ou estupor?

Não houve vontade ou ocasião que eu não perdesse.


Hoje (...) tenho que arrumar mala, (...)
A mala.
Não posso levar as camisas na hipótese e a mala na razão.
Sim, toda a vida tenho tido que arrumar a mala. Mas também, toda a vida, tenho ficado sentado
sobre o canto das camisas empilhadas, (...)
Tenho que existir a arrumar malas. (...)
Grandes/ Álvaro de Campos / Fernando Pessoa

Pode-se reimaginar esquizofrenia como o que aparece quando o estilo de consciência, unificador (que Hillman
chama de ego heróico), conduz e obriga o sujeito a:
1. Dar importância, ter que responder e seguir todas as vozes que aparecem?
2. Ter que reagir, explicar e entender tudo que percebe?
3. Ter que separar nitidamente o que pensa do que acontece?
4. Não poder ter dúvidas, incertezas, não saber?
5. Não poder dividir, falar, compartilhar etc.
1. Não poder se ver como múltiplo e um?
2. Não poder ter sentimentos contraditórios (amar e odiar uma pessoa ao mesmo tempo)?

Qualquer estilo de consciência, ao virar norma e tomar de forma única e fundamentalista a vida, poderia
transformar-se em doença?
E se o olhar literal, heróico, que busca unificar, identificar, dominou as descrições do que aparece como indivíduo,
transtorno esquizofrênico, sintomas etc. Não teria este olhar tornado-se a norma única ao invalidar outras
aproximações como pensar por analogias, constelações e metáforas ?

Quando em Re-Visioning psychology Hillman fala do estilo de consciência baseado no herói e ego-centrado, diz que
este dá crédito aos problemas e desacredita as fantasias; “(...) as fantasias se apresentam primeiramente projetadas
como os problemas, que são fantasias literalizadas.” (Hillman, 1975)

O Literalismo procura manter estável o que está em constante movimento; esquecer as diferenças entre os
múltiplos na construção das idéias, conceitos e representações; funciona como se conhecimento só pudesse ser
síntese totalizante da multiplicidade, numa ordem de sucessão, de causalidade, de categorias que unifiquem. Realiza
sua tarefa de coagular o múltiplo em significados singulares que chamamos: fatos, dados, problemas, realidade.

Ao começar esta reflexão foi relatado que psicose estava associada comprometimento do teste de realidade chega-
se num ponto onde se afirma que, com razão, há mesmo um comprometimento no teste de realidade, porém agora
se inverte a questão. Chama-se de fatos dados e realidade o efeito do ego heróico unificador e literalizante sobre a
vida em movimento e a multiplicidade de sentidos possíveis.

Quando algo aparece para um sujeito este algo não permanece sempre o mesmo com o passar do tempo. Isto que
tinha uma forma, textura, cheiro e consistência com o tempo mudará. Quando se tenta descrevê-lo só se é capaz de
fazer descrições comparando com outros atributos que sempre estão mudando também. E o sentido da coisa
dependerá de cada olhar e do momento histórico em que a coisa aparecer. O sentido dependerá sempre da
interpretação do outro. Ou seja, o que se chama de realidade está em fluxo de transformação constante, em relação
ao que está estabelecido como conhecido.
Inverte-se a noção de realidade material e pode-se entender como realidade aquilo que, indeterminado e em
mudança, resiste às unificações e estabilizações engendradas pelo olhar unificador, guiado pelos princípios de
unidade, identidade e diferença.
Vendo através das ilusões dos problemas na realidade das fantasias, vamos do ego heróico ao ego
imaginal.
(Hillman, 1975)
Psicologizar tenta dissolver o material em mãos, não resolvendo-o, mas dissolvendo-o na fantasia em que está
congelado (como um “problema”).
Em outras palavras, nós assumimos que eventos têm uma casca externa que chamamos dura,
resistente, real
(Hillman, 1975)
Problemas, transtornos, verdades, dados, fatos, realidade. Podem ser efeitos do “eu unificador”, ego heróico, razão
instrumental sobre o que se apresenta como desconhecido, descontrolado, vivo, pulsando, em movimento.
Os problemas, assim como as verdades, podem ser vistas como metáforas que se literalizaram, se unificaram, pela
dominação deste olhar, através das operações de construção de unidades e identidades.
Dominados pela unidade, uma viagem só pode ser uma viagem; uma voz, apenas uma voz; um transtorno, apenas
“um” transtorno.

Pode-se re-imaginar a esquizofrenia como a apresentação de uma identificação maciça com funcionamento ego
heróico.

Poderiam os sintomas falar de uma reação quando a vida está dominada de forma fundamentalista, pelo que está
mais bem estabelecido, unificado, funcionando “melhor”, integrado ao “Eu” (Ego heróico) de forma mais
automática?

Poderia os sofrimentos vividos pelo “Ego”, identificado maciçamente pelo estilo heróico, estar pedindo a
interrupção, o bloqueio disto que não para de funcionar automaticamente?

Na clínica não é frequente a expressão : “A cabeça não para!”

Quem sabe não pare por ficar tentando reproduzir as mesmas soluções (remédios metafóricos) que foram os mais
valorizados, lhe deram mais reconhecimento no contexto vivido pelo “Eu” e, talvez por isso mesmo, lhe deram mais
prazer, tenha adquirido maior saliência e tenha dominado a vida como norma única.

É curioso que fantasia neuropsicofaramacológica de que a dopamina seria o neurotransmissor mais largamente
considerado envolvido com a esquizofrenia (antiga demência praecox), vem da observação de que substâncias que
elevam os níveis de dopamina, como anfetaminas e cocaína, podem produzir sintomas quase indistintos da
esquizofrenia. Soma-se a isto que todas as substâncias antipsicóticas são bloqueadores dopaminérgicos. Os
“psicofármacos aceitos no tratamento dos transtornos esquizofrênicos são, direta ou indiretamente, inibidores de
dopamina. (...)” (Bressan, et al., 2008). Porém é também a dopamina que está relacionada com os sistemas
de saliência e de recompensa e prazer. O que faz com que certos sistemas tenham mais importância e que, quanto
mais usado, mais ele se fortalece e acaba por remover os outros mais fracos.

Dopamina é o neurotransmissor envolvido com a função de saliência e sistema de recompensa e


prazer em sistemas neuronais do sistema nervoso central. (...) A saliência (dada pela dopamina) em
certos sistemas está relacionada ao aumento da importância que determinadas idéias apresentam
para as pessoas
(Bressan, et al., 2008) pg.158

Pode-se rever e imaginar que justamente o processo de constituição do complexo do Eu, conduzido por princípios de
unidade e identidade poderiam se formar incrementando a liberação de dopamina e produzindo saliência destes
traços sobre outros. Como a dopamina também se relaciona com o sistema de recompensa e prazer, a repetição das
associações salientes geraria sensação de prazer retro alimentando o sistema. Isto incrementaria a durabilidade e
estabilidade das repetições que seriam cada vez mais prazerosas quanto mais se reproduzissem; em especial com o
menor número de interferências, obstáculos ou resistências.

Estudos de neuroplasticidade afirmam haver uma massiva poda neuronal que remove mais da metade das sinapses
até a puberdade, no transcorrer habitual da vida. O crescimento sináptico, seguido por poda, que acompanha o
desenvolvimento, aumentaria a performance da rede de associações da memória com recursos sinápticos limitados.
“A melhor estratégia de poda neuronal se mostra no apagamento ou destruição de sinapses de acordo com sua
eficácia, removendo as sinapses mais fracas primeiro” (Chechik, et al., 1999). O desuso das sinapses ocasionaria sua
atrofia e perda de suas funções.

Se Jung apontava que o nascimento da psiquiatria se deu no seio do materialismo pernicioso e que há muito tempo
“ela vem privilegiando ao órgão, o instrumento, em detrimento da função” (Jung, 1999 p.145), a própria
neuropsiquiatria, ao realizar-se, chega a afirmar que, literalmente, a função faria o órgão.

Pode-se entender que o resultado da sociabilidade, ao se realizar, liberaria as “toxinas metabólicas” de que Jung
falava. Então estas não estariam em oposição ao funcionamento dos complexos na psique, mas seriam a expressão
da própria formação destes.
A educação tem por fim implantar complexos duradouros na criança. ... A tonalidade afetiva se
mantêm devido a estímulos constantemente atualizados.
(Jung, 1999, p. 36)
As associações com o corpo, o prazer na realização automatizada da vida poderia tornar a vida insuperável e auxiliar
o trabalho de destruição?
O eu constitui a expressão psicológica de uma combinação firmemente associada entre todas as
sensações corporais. (...) Devido sua ligação direta com as sensações corporais, é o mais estável e
rico em associações
(Jung, 1999, p. 33)
O complexo do Eu ao assumir a unificação (combinação estável de múltiplos em um) de forma fundamentalista no
domínio da vida que daria suporte ao que apareceria como doença?

Seria o sujeito com todos aqueles estímulos, sentimentos, pensamentos e sensações vagos e obscuros que, surgindo
como perturbação e obstáculo à continuidade da vivência consciente da unidade do objeto, poderia interromper a
dominação das unificações em complexos, em especial o mais forte e estável complexo, o do Eu?

Jung problematiza a consciência como a atividade do pensamento dirigido. Ele nos aponta para uma base essencial
que seria a afetividade. Pensar e agir seriam sintomas da afetividade. Citando Bleuler diz:
"A afetividade, portanto, mais do que uma reflexão é o elemento que pulsa em todas as nossas
ações e omissões.(...)” O estado afetivo é um fato dominante e as idéias lhes são sujeitas. – a lógica
dos raciocínios é somente causa aparente.(...)
(Jung, 1999) Pg 31
Seria o afeto, como o elemento que pulsa em todas as nossas ações e omissões, que instabilizaria os complexos
unificados possibilitando associações e conexões novas capazes de impedir a dominação de um único estilo de
consciência - de dar altar a um único deus?

Entende-se então a profundidade do que Hillman fala com “a alma ou psique teria uma particular relação com a
morte” (Hillman, 1975). A morte como metáfora da dissolução destas relações de associações complexas que
valoram a partir das vivencias relacionadas ao funcionamento do Ego identificado com o padrão heróico.

Jung falava da importância do conteúdo e da necessidade de aprofundar nos processos associativos e não ficar com
as unidades. Hillman indicará que o olhar metafórico dissolveria os atributos aglutinados pelo literalismo do ego
heróico e quebraria a vivência de unidade e de imediaticidade de qualquer coisa.

“a regressão infinita do psicologizando, seu processo interiorizante do visível ao invisível (...) chega a
um descanso ao encontrar a permanente ambiguidade da metáfora, onde descansar e permanecer
são ficções – “como se”. (...) como todo conceito intelectual, repousa ou encontra solo permanente
e base na metáfora e pode apenas se estabelecer pelo consentimento da metáfora.
(Hillman, 1975)Pg. 153
Não se deveriam usar todos os dispositivos necessários e acessíveis para instabilizar os fundamentalismos?
Dar espaço para outros estilos?

Deslocar a posição ocupada que só dá altar a um único deus (este que se colocou como norma única pelo uso
repetitivo e contínuo da mesma solução unificadora, do mesmo remédio metafórico)?

Não são as soluções que se dá na vida que sustentam ao que aparece como “problema” ?

Haveria sustentação para a estabilidade de sintomas, (identidades, propriedades - doente, saudável etc.) ao
interromper a repetição da norma única literalista e, através de encontros e processos, fosse possível :
a. Ter altar para muitos deuses?
b. Poder olhar também metaforicamente, num estilo de consciência Imaginal?
c. Reconhecer o sujeito da ação como um lugar de movimento, indeterminação e flexibilidade?
d. Conseguir olhar através de múltiplos padrões de consciência.
e. Buscar aprofundar nas invisibilidades, sem identificar-se fixamente com nenhum padrão, identidade ou
propriedade?

Seria possível tal constelação de sintomas se os sujeitos no mundo pudessem se reconhecer e ser reconhecidos
como posição de indeterminação?
Isto não dissolveria a sintomatologia no processo contínuo da vida no mundo?

A questão é que o estilo unitário está presente cotidianamente na gramática do senso comum que orienta a todos,
quando não se esta fazendo arte ou poesia!

(...) Fornecei-me metáforas, imagens, literatura,/ porque em real verdade, a sério, literalmente,
minhas sensações são um barco de quilha para o ar, minha imaginação uma ancora meio submersa,
minha ânsia um remo partido, e a tessitura dos meus nervos uma rede a secar na praia!
(...) (Pessoa, 1977) Ode marítima / Fernando Pessoa

O horizonte é manter o uso de todos os recursos disponíveis, comprometido no sentido das condições para que, a
vida não fique dominada por uma norma única, fundamentalista e os sujeitos possam ser normativos.
A vida possa seguir o fluxo do devir, configurando e dissolvendo configurações infinitamente.

O temor de errar introduz uma desconfiança na ciência, (...) porque não introduzir uma desconfiança
nesta desconfiança, e não temer que esse temor de errar já seja o próprio erro?
(Hegel, 2007) pg. 72
Fenomenologia do Espírito/ GWF Hegel

“Renda-se, (...). Mergulhe no que você não conhece (...). Não se preocupe em entender, viver
ultrapassa qualquer entendimento”
Clarisse Lispector

Bibliografia
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