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NÃO UMA ÉPOCA DE MUDANÇAS,

MAS UMA MUDANÇA DE ÉPOCA


24 E 25 JUNHO
ISITEC, SÃO PAULO

extratos de textos em preparação


ao

forúm da companhia das obras


2017

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Extrato do Discurso do papa Francisco
aos participantes no 3º Encontro Mundial dos Movimentos Populares
5 de novembro de 2016

“Naquele dia, com a voz de uma «cartonera» e de um camponês, na conclusão foram lidos os dez
pontos de Santa Cruz de laSierra, onde a palavra mudança estava carregada de um grande conteúdo,
ligada às coisas fundamentais que vós reivindicais: trabalho digno para quantos são excluídos do
mercado do trabalho; terra para os camponeses e as populações indígenas; habitações para as
famílias desabrigadas; integração urbana para os bairros populares; eliminação da discriminação,
da violência contra as mulheres e das novas formas de escravidão; fim de todas as guerras, do
crime organizado e da repressão; liberdade de expressão e de comunicação democrática; ciência e
tecnologia ao serviço dos povos.
...
Desenvolvimento Humano Integral. O contrário do desenvolvimento, poder-se-ia dizer, é a atrofia, a
paralisia. Temos o dever de ajudar a curar o mundo da sua atrofia moral. Este sistema atrofiado é capaz
de fornecer algumas «próteses» cosméticas que não constituem verdadeiros desenvolvimentos:
crescimento da economia, progressos tecnológicos, maior «eficiência» para produzir coisas que
se compram, se usam e se abandonam, englobando-nos todos numa vertiginosa dinâmica do
descarte... Mas este mundo não permite o desenvolvimento do ser humano na sua totalidade, o
desenvolvimento que não se reduz ao consumo, que não se limita ao bem-estar de poucos, que
inclui todos os povos e as pessoas na plenitude da sua dignidade, desfrutando fraternalmente da
maravilha da criação. Este é o desenvolvimento do qual nós temos necessidade: humano, integral,
respeitador da criação, desta casa comum.
....
Não se deixar amarrar, porque alguns dizem: a cooperativa, o refeitório, a horta agroecológica, as
microempresas, o projeto dos planos assistenciais... até aqui tudo bem. Enquanto vos mantiverdes
na divisória das «políticas sociais», enquanto não puserdes em questão a política econômica ou a
Política com «p» maiúsculo, sois tolerados. Aquela ideia das políticas sociais concebidas como uma
política para os pobres, mas nunca com os pobres, nunca dos pobres e muito menos inserida num
projeto que reúna os povos, às vezes parece-se com uma espécie de carro mascarado para conter
os descartes do sistema. Quando vós, da vossa afeição ao território, da vossa realidade diária, do
bairro, do local, da organização do trabalho comunitário, das relações de pessoa a pessoa, ousais
pôr em questão as «macrorrelações». quando levantais a voz, quando gritais, quando pretendeis
indicar ao poder uma organização mais integral, então deixais de ser tolerados, não sois muito
tolerados porque estais a sair da divisória, estais a deslocar-vos para o terreno das grandes decisões
que alguns pretendem monopolizar em pequenas castas. Assim a democracia atrofia-se, torna-se
um nominalismo, uma formalidade, perde representatividade, vai-se desencantando porque deixa
fora o povo na sua luta diária pela dignidade, na construção do seu destino.
Vós, organizações dos excluídos e tantas organizações de outros setores da sociedade, estais
chamados a revitalizar, a refundar as democracias que estão a atravessar uma verdadeira crise. Não
caiais na tentação da divisória que vos reduz a agentes secundários ou, pior, a meros administradores
da miséria existente. Nestes tempos de paralisia, desorientação e propostas destruidoras, a
participação como protagonistas dos povos que procuram o bem comum pode vencer, com a
ajuda de Deus, os falsos profetas que exploram o medo e o desespero, que vendem fórmulas
mágicas de ódio e crueldade, ou de um bem-estar egoísta e uma segurança ilusória.
Sabemos que «enquanto não forem radicalmente solucionados os problemas dos pobres,
renunciando à autonomia absoluta dos mercados e da especulação financeira e atacando as causas
estruturais da desigualdade social, não se resolverão os problemas do mundo e, em definitivo,
problema algum.
A desigualdade é a raiz dos males sociais» (Exortação Apostólica Evangelii Gaudium, n. 202).
Por isso, disse e repito-o, «o futuro da humanidade não está unicamente nas mãos dos grandes
dirigentes, das grandes potências e das elites. Está fundamentalmente nas mãos dos povos; na sua
capacidade de se organizarem e também nas suas mãos que regem, com humildade e convicção,

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este processo de mudança» (Discurso no segundo encontro mundial dos movimentos populares,
Santa Cruz de laSierra, 9 de julho de 2015).”

Extrato do Discurso do papa Francisco


aos participantes no encontro promovido pelo movimento dos Focolares
4 de fevereiro de 2017

“Economia e comunhão. Duas palavras que a cultura atual mantém bem separadas e muitas vezes
considera até opostas. Duas palavras que vós ao contrário unistes, aceitando o convite que há vinte
e cinco anos vos dirigiu Chiara Lubich no Brasil quando, diante do escândalo da desigualdade na
cidade de São Paulo, pediu aos empresários que se tornassem agentes de comunhão. Exortando-
vos a ser criativos e competentes, mas não só. Vós considerais o empresário como um agente
de comunhão.Instilando na economia a boa semente da comunhão, deste início a uma profunda
mudança no modo de ver e de viver a empresa. A empresa pode não destruir a comunhão entre as
pessoas, assim como edificá-la, promovê-la. Mediante a vossa vida, vós demonstrais que economia
e comunhão se tornam melhores quando uma está ao lado da outra. Melhor a economia, sem
dúvida, mas melhor também a comunhão, porque a comunhão espiritual dos corações é ainda mais
completa quando se torna comunhão de bens, de talentos e de lucros.
....
Quando o capitalismo faz da busca do lucro o seu único objetivo, corre o risco de se tornar uma
estrutura idolátrica, uma forma de culto. A «deusa da fortuna» é cada vez mais a nova divindade
de certas finanças e de todo aquele sistema do risco que continua a destruir milhões de famílias
no mundo, e que vós justamente combateis. Este culto idolátrico é um sucedâneo da vida eterna.
Todos os produtos (automóveis, telefones...) envelhecem e se desgastam, mas se eu tiver dinheiro
ou crédito posso adquirir imediatamente outros, criando a ilusão de derrotar a própria morte.
...
O capitalismo conhece a filantropia, não a comunhão. É simples doar uma parte dos lucros, sem
abraçar nem tocar as pessoas que recebem aquelas «migalhas».”

Extratos do artigo publicado no site Avvenire.it, por StefaniaFalasca. Entrevista realizada


com ZygmuntBauman durante sua fala na inauguração do encontro “Sede de Paz”, realizado
em Assis
de 18 a 20 de setembro de 2016

Como nos integrar sem aumentar a hostilidade, sem separar os povos?


É a pergunta fundamental da nossa época. Não podemos sequer negar que estamos num estado de
guerra e provavelmente que essa guerra também será longa. Mas o nosso futuro não é construído
por aqueles que se apresentam como “homens fortes”, que oferecem e sugerem aparentes soluções
instantâneas, como construir muros, por exemplo. A única personalidade contemporânea que leva
adiante essas questões com realismo e que as faz chegar a todas as pessoas é o papa Francisco.
No seu discurso à Europa, ele fala de diálogo para reconstruir o tecido da sociedade, da justa
distribuição dos frutos da terra e do trabalho, que não representam uma mera caridade, mas uma
obrigação moral. Passar da economia líquida para uma posição que permita o acesso à terra com
o trabalho. De uma cultura que privilegia o diálogo como parte integrante da educação. Prestem
atenção, ele repete: diálogo-educação.

Por que, segundo o senhor, o Papa está convicto de que essa é a palavra que não podemos
nos cansar de repetir? Afinal, o que é o diálogo?

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Ensinar a aprender. O oposto das conversas inúteis, que dividem as pessoas: no certo e no errado.
Entrar em diálogo significa superar o limiar do espelho, ensinar a aprender a se enriquecer com
a diversidade do outro. Diferentemente dos seminários acadêmicos, dos debates públicos ou
conversas partidárias, no diálogo não há perdedores, mas só vencedores. Trata-se de uma revolução
cultural em relação ao mundo no qual a pessoa envelhece e morre antes mesmo de crescer. É a
verdadeira revolução cultural em relação ao que estamos habituados a fazer e é o que permite
repensar a nossa época. A aquisição dessa cultura não permite receitas ou fáceis escapatórias;
exige e passa através da educação, que requer investimentos de longo prazo. Esse é o pensamento
do Papa Francisco, o diálogo não é um café instantâneo, não produz efeitos imediatos, porque
é paciência, perseverança, profundidade. Ao percurso que ele indica, eu acrescentaria uma só
palavra: assim seja, amém.

Luciano Violante e Julián Carrón responderam as perguntas que nasceram da entrevista


concedida para a revista “Jotdwon”.
16/5/2017

“... Na mesma manhã em que a entrevista foi publicada, Violante tinha enviado ao Observatore
Romano uma reflexão paralela, exatamente sobre o mundo que nasceu com o Iluminismo (“Como
gatinhos cegos”). “Tocou-me”, diz, “o fato de termos tido a mesma impressão a partir de posições
diferentes”. Resume-a assim: “Trata-se de repensar o peso que a razão tem. O que prevalece hoje
é a emoção. Estamos diante de uma reedição do Romantismo”. E de seus temas típicos: a Pátria
contraposta ao Universo, o povo como detentor da verdade, o herói solitário... “E o outro aspecto
que me tocou muito”, continua, “foi a novidade de leitura em relação ao outro: não cria os nossos
problemas, mas revela os problemas que temos. Ele nos questiona”. Um exemplo cotidiano:
“Quando estou diante de um deficiente, ou de um imigrante, me vejo em dificuldades. O problema
é meu, não dele. O problema é como entendo – ou não – o verdadeiro valor da pessoa, se reconheço
ou não que o outro me permite descobrir a mim mesmo”.

Carrón diz que, por temperamento, gosta de olhar as coisas de frente: “Procurei entender mais os
desafios que estamos enfrentando. Se não os compreendemos, não podemos enfrentá-los. Mas é
preciso tempo para entender”. Para ele, a chave, que “não resolve tudo, mas é iluminadora”, foi a
reflexão de Bento XVI sobre o Iluminismo, um olhar cheio de positividade que viu naqueles homens
“a tentativa de salvar os valores fundamentais da vida, depois das guerras religiosas”. O problema
foi “ter pensado que aqueles valores fossem uma evidência que duraria no tempo. Porém, faliu.
E isso também explica a desorientação atual”. Divisões sobre questões que algumas décadas
atrás não eram sequer colocadas em discussão: os grandes valores que plasmaram os direitos, as
legislações das nações, e que não resistem mais. “Se não entendemos verdadeiramente o que está
acontecendo, vamos propor respostas que já se revelaram fadadas ao fracasso”.

O programa é transmitido ao vivo. Michele (estudante do oitavo ano do ensino fundamental)


pergunta se, ao buscar bases sólidas sobre as quais fundar a sociedade, estamos destinados a girar
em círculo: “A chegar no topo para cair novamente e recomeçar do zero”. “Acho que não somos
destinados a isso”, responde Violante: “Somos destinados a refletir sobre como usamos a razão.
Tenho a impressão de que nos sentamos sobre a razão, como se fosse um confortável sofá, não a
utilizamos como um instrumento de construção, mas como instrumento de identidade própria”.
Reflete sobre todos os problemas que afastamos porque os achávamos incômodos – o conjunto
de comportamentos que são “politicamente corretos” – e sobre os “esquecidos pela razão”: se
não uso bem a razão, inevitavelmente esqueço um pedaço da sociedade, porque não enfrento os
problemas em toda a sua amplitude, mas tento apenas fazer uma boa figura. E isto leva ao conflito
social. Faz referência à campanha eleitoral americana e ao ancião que o parou na rua, em uma
cidadezinha da Calábria, e lhe pediu para explicar por que os imigrantes recebem dois euros por
dia e seu filho desempregado, não.
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“A razão é um instrumento difícil, até doloroso”, aprofunda Violante: “Revela os nossos limites,
a falácia das nossas interpretações. Deitamo-nos sobre a razão ao invés de usá-la como um
instrumento de luta, de empenho, de interpretação, de transformação”. Deitar-se sobre a razão
quer dizer abandonar-se à ideia de que “de qualquer modo tínhamos razão, nós éramos os que
tinham interpretado bem a realidade”. É um tema retomado com frequência no decorrer da noite: a
dificuldade de colocar em discussão a si mesmo. “Por isso, evitamos o relacionamento com o outro,
refugiando-nos no celular, no sms e em outras coisas. Evitamo-lo porque solicita um empenho
nosso”.

Para ele, a vida pessoal, assim como a vida democrática, segue o mesmo fio: “Acabamos por relegar
a inteligência ao artificial e a emoção ao humano, enquanto a razão deve ser inerente às nossas
vidas. A emoção é má conselheira. As dificuldades em que as democracias se encontram são fruto
desse não enfrentamento dos problemas de modo razoável”.

Carrón toma a palavra e continua chegando ao ponto mais sensível, para onde o resto converge:
a liberdade. “Estamos habituados ao progresso material, tecnológico, que se desenvolve cada vez
mais rapidamente e nunca regride. Pensamos que isso também vale no campo da vida humana, ou
em tudo aquilo em que a liberdade entra em jogo. Então, ficamos desconcertados: como é possível
que certas coisas, reconhecidas pela razão como tão evidentes em um determinado momento,
possam, depois, não ser mais evidentes? Porque a liberdade do homem é sempre nova! É como em
uma família: os pais podem fazer todo o possível para transmitir uma concepção das coisas, mas o
filho não é um prolongamento deles. A mesma coisa acontece com os valores fundamentais, com o
modo como me relaciono com o estrangeiro que chega em casa, com quem está no fim da vida...
temos um tesouro diante de nós, podemos acolhê-lo ou rejeitá-lo”. Quem promete um “mundo
melhor” faz uma promessa falsa: “Falsa porque ignora a liberdade. Boas estruturas ajudam, mas
não bastam”, continua Carrón, retomando Bento XVI, “porque o homem nunca pode ser redimido
simplesmente por fora”. Essa é a sua grandeza, esse é o grande risco.

Um dos pontos de unidade mais evidente entre os dois convidados é ver, em tudo o que acontece,
uma possibilidade de protagonismo absoluto para cada um de nós. “A luta entre o bem e o mal
ainda não está resolvido. Por isso viver faz sentido”, desconcerta Violante respondendo à pergunta
de um estudante sobre como restabelecer novos valores: “A vida nos solicita continuamente a
encontrar um modo de afirmar os valores. Ou esperamos que alguém confeccione um mundo para
nós, ou somos chamados a fazê-lo, nós mesmos. Vemos que a emoção não é um instrumento de
ordem, mas a batalha da razão não está de forma alguma perdida. A vida perde o sentido para
aqueles que deixam de se empenhar”. Depois, afirma: “Às vezes, a dor e a dificuldade são muito
grandes e é preciso compreender quem vive isso, mas a vida, ou é um empenho, ou é deixar-se
viver”.

E convida a conhecer, conhecer, conhecer: “2007 foi um ano de inovações que mudaram radicalmente
a nossa vida”. Faz um elenco, do iPhone ao acesso ao Big data, da Airbnb à superação do silício nos
microprocessadores. “E quando, em uma conferência, ouvimos dizer que uma poesia de Montale,
na verdade, é produzida por um algoritmo, a primeira reação é: ‘Estas coisas me dão medo...’.
Temos medo daquilo que não conhecemos”.

“Normalmente vemos que uma experiência de beleza, de atração não leva a um empenho ético
duradouro. É possível educar a liberdade? ”, pergunta Melissa, estudante de Medicina. “Se o
homem aderisse ao bem automaticamente, pagaríamos um preço muito alto”, diz Carrón: “O preço
da própria liberdade. Péguy diz: a quem interessaria uma salvação que não fosse livre? Um mundo
mais humano é um mundo de homens livres. Mas sabemos que gerar homens livres significa criar
espaço para a possibilidade do mal, que faz sofrer a nós e aos outros. Como educar a liberdade?
Desafiando-a continuamente com algo atraente, testemunhando que a vida pode ser mais humana,

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mais acolhedora. Como uma mãe que, para fazer o filho sorrir, continua sorrindo para ele, não muda
o método, mesmo que precise esperar”.
A pergunta de Bernardo, estudante de Letras, é exatamente sobre os laços: como é possível esperar
quando os relacionamentos de base, como o relacionamento com os pais, são destinados a serem
instáveis? Violante toma como base como a tecnologia, já tida como um fator existencial, inverteu
os relacionamentos: “Os pais, os avós, os ‘adultos’ não são mais depositários de conhecimentos
que os jovens não têm. É quase o contrário. Meu neto tem um conhecimento que eu não possuo.
No entanto, eu devo educá-lo a usar aquilo que sabe. É preciso recriar a aliança. É fundamental a
questão dos relacionamentos: ter laços é um ato de liberdade. O laço nos torna mais livres, porque
nos muda, transforma nossa maneira de ver a realidade, nos corrige, nos faz descobrir coisas sobre
nós, nos torna mais ricos”. Sublinha com paixão uma coisa: “A importância do diálogo com quem
é diferente de nós e não pensa do mesmo modo”.

Dá o exemplo flagrante da degeneração da política, e fala do seu primeiro dia no Parlamento ao


lado de um sindicalista que insultava os oponentes assim que intervinham e do Secretário da Casa,
que se aproximou dele e disse: “Estamos aqui para falar com quem não pensa como nós”. Fala da
Itália no início dos anos Noventa, quando, segundo ele, foi consumada uma ruptura: “O clima que
se criou tirava o crédito de tudo o que existia, e o tesouro não foi passado de uma geração a outra”.
Era um “relacionamento a ser sanado”, bem distante do atual “coloquemos um jovem”, embora
justo, “mas o jovem não pode ser deixado por conta nem usado instrumentalmente”.

Carrón retoma uma publicação recente sobre o projeto da Silicon Valley contra as notícias falsas: “É
preciso colocar a pessoa no centro”, lê no CorrieredellaSera, “para treiná-la a olhar o mundo com
os próprios olhos e pensar com a própria cabeça, desenvolvendo o espírito crítico que a tornará
mais atriz e menos espectadora, mais líder e menos seguidora, mais cidadã e menos súdita”. Então,
há algo que nenhum algoritmo pode substituir. “E não há desafio mais fascinante para nós do que
este”, diz, respondendo a Gianni, professor, que pergunta como é possível despertar os jovens
diante do vazio que vivem: “Fazer com que a pessoa volte a ser pessoa. E oferecer um real mais
fascinante do que o virtual”.

A “humanização da vida”. Violante usa estas palavras para sintetizar a urgência que sente. Também
diante do equívoco de “confundirmos o problema dos valores com o da identidade”, diz a Alberto,
um pai que conta como, no relacionamento com o filho, os valores levam-no a se fechar ao invés
de se abrir. “Achamos que temos que defender valores”, continua Violante, “mas o valor não existe
solitariamente. O outro deve fazer parte do valor, senão não é valor! ”. E acrescenta. “Precisamos
decidir como queremos conduzir a vida. Se vamos ficar fechados no casulo das nossas convicções.
Mas, esta, não é uma vida rica. É uma vida presunçosa, arrogante”. Pouco depois, diz: “Viver é difícil.
É um contínuo colocar-se em discussão. Não é um passeio. E certamente há muitos momentos
de queda. Mas isso não é um problema. O importante, sempre, é reconstruir a aliança, sempre
reafirmar o bem que há no conflito. Sabendo que há uma meta”. Fica mais sério e comovido: “Não
é fácil, mas isso permite viver verdadeiramente, permite dizer, no final: vivi. Combati, até o fundo, o
combate. Depois, o Senhor decidirá o que fazer comigo”.”

Tradução portuguesa do artigo de Julián Carrón, publicado no jornal ABC


24 de outubro de 2016

Diante de uma mudança de época, de onde recomeçar?


Há pouco mais de dez anos que vivo fora da Espanha. Não é por isso, contudo, que deixo de
acompanhar com interesse tudo o que diz respeito ao nosso País, mais precisamente a situação
de paralisia em que, desde há quase um ano, vivem as nossas instituições políticas. Por vezes, esta
distância, juntamente com as muitas viagens que sou chamado a fazer por todo o mundo, permite-

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me ler as dificuldades espanholas no contexto de uma crise mais aguda e geral que ataca todo o
Ocidente.

O Papa Francisco, aludindo a esta crise, disse que “hoje vivemos não uma época de mudanças, mas
uma mudança de época” (Florença, 10 de novembro de 2015). Em que se diferencia a nossa época
das outras, que experimentaram também elas, no entanto, grandes mudanças? Fundamentalmente,
em que caíram as grandes evidências que constituíam a base na qual se apoiava a nossa convivência.

Para compreender a amplitude da mudança que estamos a viver, basta considerar como a Europa,
depois da queda do Império Romano e apesar de atravessar grandes crises, se construiu em torno
de algumas grandes palavras como pessoa, trabalho, matéria, progresso, liberdade. Estas palavras
alcançaram a sua plena e autêntica profundidade por meio do cristianismo, adquirindo um valor
que antes não tinham, facto que determinou um profundo processo de “humanização” da Europa
e da sua cultura.

As guerras da religião que se seguiram à reforma protestante mostraram que a fé não era um
factor de unidade na Europa. Por isso, na consciência europeia, difundiu-se a tentativa de salvar
aquele património fundamental adquirido independentemente da experiência que permitira
o seu desenvolvimento, a experiência cristã. Como escreveu há alguns anos o então Cardeal
Ratzinger, “na época do iluminismo […] tentaram-se manter os valores essenciais da moral fora das
contradições, e encontrar para eles uma evidência que os tornasse independentes das múltiplas
divisões e incertezas das várias filosofias e confissões. Pretendeu-se assim assegurar as bases da
convivência” (J. Ratzinger, A Europa de Bento na Crise de Culturas, Lisboa, Alêtheia, 2005, p.
39). A tentativa iluminista de manter vivos os “grandes valores”, marginalizando-os da sua origem
cristã resistiu durante pouco mais de duzentos anos. Hoje assistimos à sua queda, que assinala a
excepcionalidade da nossa época.

Não é por acaso, assim, que a nossa convivência humana se esteja a deteriorar. Não só em Espanha,
onde é evidente a incapacidade de chegar a acordos que transcendam as ideologias. Pensemos
também no incremento na Europa e nos Estados Unidos de uma política de muros como forma
de se defender dos migrantes, ou até mesmo dos vizinhos, em tempos amigos (como se vê com o
Brexit). Ou pensemos na insegurança que gera o terrorismo internacional.

O famoso sociólogo Zygmunt Bauman, lúcido observador da nossa época, guarda-se de fazer uma
análise superficial desta situação: “As raízes da insegurança são muito profundas. Estão enterradas
na nossa maneira de viver, estão marcadas pelo enfraquecimento dos laços [...], pelo esmigalhar das
comunidades, pela substituição da solidariedade humana pela competição”. Diante de tudo isto,
diz Bauman, as barreiras não servem de nada: “Uma vez que novos muros tenham sido erguidos
e mais forças armadas forem convocadas nos aeroportos e nos espaços públicos; uma vez que a
quem pede asilo por guerras e destruições essas medidas forem recusadas e mais imigrantes forem
repatriados, tornar-se-á evidente como tudo isto é irrelevante para resolver as verdadeiras causas
da incerteza […] os demónios que nos perseguem não se evaporarão nem desaparecerão” (“Alle
radici dell’insicurezza”, Corriere della Sera, 26 de julho de 2016, p. 7).

De onde repartir para uma reconstrução? “Uma crise – afirma Hanna Arendt – obriga-nos a voltar às
perguntas; exige de nós respostas novas ou velhas, desde que procedam de um exame directo; e
apenas se transforma numa catástrofe quando tentamos fazer-lhe frente com juízos preconcebidos
[de qualquer tipo], ou seja, preconceitos” (H. Arendt, TraPassato e Futuro, Milão, Garzanti, 1991,
p. 229).

Uma crise destas dimensões é um desafio para todos, a nível pessoal e institucional,
independentemente das ideologias. Também para os cristãos. Se nos quisermos transformar num
factor de construção e não numa parte do problema, nós, cristãos, somos os primeiros a dever

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compreender a fundo esta mudança de época, para evitar sucumbir à tentação de defender ou
reforçar as grandes verdades do Ocidente (de raiz cristã) desligadas do acontecimento que as
originou. Não há outro acesso à verdade senão a liberdade. É tarefa da Igreja voltar a oferecer à
liberdade dos homens e mulheres de hoje em dia toda a beleza desarmada do cristianismo. Mas
nós, cristãos, acreditamos ainda na capacidade da fé de exercer uma atratividade sobre aqueles
que encontramos?

Extratos do Livro “A BELEZA DESARMADA” do pe. Julian Carron,


Presidente da Fraternidade do Movimento Católico Comunhão e Libertação

“O perigo mais grave, hoje, não é nem mesmo a destruição dos povos, o assassinato, mas a
tentativa do poder de destruir o humano.E a essência do humano é a liberdade, ou seja, a relação
com o infinito. Por isso a batalha que deve ser combatida pelo homem que se sente homem é a
batalha entre a religiosidade autêntica e o poder. É essa a natureza da crise, que não é antes de
tudo econômica. Diz respeito aos fundamentos. ”
....
“ Apesar de todas as enormes tentativas de esquecer o homem, de reduzir a exigência de sua
razão (reduzindo o tamanho de sua pergunta), e a premência de sua liberdade (que não consegue
deixar de se exprimir, em cada impulso, como desejo de realização), o coração do homem continua
a bater, irredutível”
....
“Uma crise – dizia Hannah Arendt – nos obriga a voltar às questões mesmas e exige respostas
novas ou velhas, mas de qualquer modo julgamentos diretos. Uma crise só se torna desastre
quando respondemos à ela com juízo pré-formatados (de qualquer tipo), isto é, com preconceitos.
Uma atitude dessas não apenas aguça a crise como nos priva da experiência da realidade e da
oportunidade proporcionada por ela à reflexão”
....
“Há um clamor de realização por trás de toda a tentativa humana. Escutar esse grito não é de modo
evidente e constitui a primeira escolha da liberdade. ”
....
“ E eu, quem sou eu? Mas não levantar a pergunta sobre o que vem a ser o sujeito, o que vem a
ser o eu, é como tentar curar uma doença sem fazer um diagnóstico... A solução dos problemas
que a vida apresenta todos os dias – alerta D. Giussani – não nasce diretamente do enfrentamento
do problema, mas aprofundando a natureza do sujeito que os enfrenta. Em outras palavras “ o
particular resolve-se aprofundando o essencial”.
....
“Ajudar-se a ter um olhar verdadeiro sobre a realidade, sobre as circunstâncias que vivemos, é o
primeiro gesto de amizade para vivermos como homens diante das necessidades do mundo”
....
“Uma pessoa cheia de inseguranças, ou que tem um medo e uma ânsia existencial no fundo,
dominante, busca a segurança nas coisas que faz: a cultura e a organização.... Assim, todas as coisas
que fazemos, “toda a atividade cultural e toda atividade organizativa não se tornam expressão de
uma fisionomia nova, de um homem novo”
....
“Parece-me que o primeiro ponto de uma retomada consiste em adquirir uma consciência
elementar: cada empresário ou trabalhador envolvido de várias maneiras em uma empresa é uma
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pessoa. Pode parecer a descoberta da pólvora, mas é justamente isso que todos dão por óbvio,
reduzindo a pessoa às suas próprias capacidades. Mas a pessoa não é só o que sabe fazer. Dizer
que o empresário é uma pessoa significa que, antes de qualquer outra coisa, precisa de uma clareza
em relação à própria origem e ao próprio destino, à fonte do próprio valor, sem a qual todo o resto,
começando por suas capacidades, é insuficiente. É evidente demais: hoje o terremoto atinge o
centro do eu, sua consistência. Nesse sentido, a crise pode ser uma ocasião não desejada, mas
preciosa para descobrir a verdade de si, onde reside a própria consistência, e assim por um alicerce
adequado para enfrentar a situação presente e futura, o difícil desafio que temos pela frente, nunca
desligado do exercício da própria profissão. ”
....
“ Mas onde é que um eu assim constituído, com um desejo de bem que o caracteriza, pode
encontrar a própria consistência para poder resistir em meio ao terremoto das circunstâncias? Está
justamente aqui a provocação representada pela situação que estamos enfrentando. O que está
à altura da sede humana? A resposta não pode consistir em opiniões, interpretações, conversas
fiadas que não mudam a vida em nada. ”
....
“É isso que nossa experiência evidencia para nós: só Cristo, presente aqui e agora, pode ser o
fundamento adequado de uma amizade operativa que encare o mundo, como quer ser a de vocês,.
É numa companhia verdadeira de amigos que cada um pode estar em condições de olhar a realidade
da própria empresa com liberdade, sem ser vencido pelo medo que impede o reconhecimento do
estado das coisas, condião necessária para agir com alguma possibilidade de sucesso. ”

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