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Alto-Falante: “Senhores passageiros com passaportes dos seguintes países: Irã, Somália, Sudão, Síria,
Iêmen, Chade e Líbia dirijam-se ao Portão “E” e apresente-se ao Oficial Davemport e seus auxiliares.”.
Valdirene resmunga...
- Pensei que ia ser por ordem alfabética. É um das poucas vantagens de se ter passaporte brasileiro.
- Estão seguindo a ordem de periculosidade estatal do governo norte-americano.
- Eu só queria ver o que a televisão está mostrando. Será que vai aparecer alguém do Itamaraty para
conversar com a gente ?
- Á estas alturas, o teu banco já deve ter entrado em contato com a Ministério das Relações Exteriores em
Brasília. Não é que eles gostem de você, é que multinacional nenhuma quer o logotipo da corporação
associado a terroristas.
- Tem razão. O que fazia antes de ser bruxa ?
- Eu era aprendiz de bruxa, grudada na barra das longas saias da minha mãe.
- Que meigo... E quando você foi promovida a Bruxa Sênior ?
- Quando mataram a minha mãe com 38 tiros porquê ela errou em um feitiço.
- Que horror !
- Tudo bem... Ela deveria saber que, neste ramo profissional se você comete um erro grave podem haver
consequencias igualmente devastadoras. Ela foi contratada por um fazendeiro em Goiás para arrasar um
assentamento do M.S.T. que estava instalado nas beiradas do latifúndio improdutivo do sujeito.
- E conseguiu ?
- Sem problemas. Uma legião de elementais do ar foi invocada para provocar um ciclone extra-tropical que
simplesmente varreu os sem-terra do lugar, só que, após fazer destruição na zona rural, prosseguiu até uma
estrada próxima derrubando e incendiando um ônibus escolar onde estavam os dois netos do fazendeiro, de 5
e 7 anos, respectivamente. Danos colaterais da “Operação Dorothy” se assim quiser chamar.
- Meu Deus !
- Deus não tem nada a ver com isto. Mamãe pagou o erro de sua incompetência. De certa forma, foi justo.
Eu também já cometi meus erros, só que a consequencia do pior deles não passou de ser obrigada a me
mudar do Rio para São Paulo, o que, convenhamos, não é nenhuma tragédia.
- Eu estou sem palavras.
- Como diria o Sinatra: “It’s my way.”
Valdirene, intranquila, tenta tirar as botas para relaxar.
A mulher sem nome simplesmente observa a ansiedade de todos e se cala, com a fleuma de quem já
esteve nos sete infernos e voltou.
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- Miss Jones eu estou aqui representando um grupo empresarial aqui do Rio mesmo, a Artplancton e nossos
associados estrangeiros. Durante muitos anos, meu chefe, o Sr. Mendina gestou o sonho de organizar um
grande festival de Rock com diversas atrações internacionais para entreter a juventude carioca portadora de
Transtorno Obsessivo Compulsivo, o Toc in Rio. Perseverante, ele alcançou 4 sócios estrangeiros e obteve os
recursos necessários para construir a Cidade do Toc, a área na Barra onde será realizado o festival. O
Sr.Mendina foi pessoalmente vasculhar as imobiliárias e encontrou 5 terrenos contíguos. Com os cofres
cheios do dinheiro dos investidores estrangeiros, cometemos um erro. Ao invés de reunirmos os 5
proprietários dos terrenos para negociar conjuntamente, o que pouparia tempo, mas poderia encarecer o preço,
a Artplancton tentou comprar os terrenos um a um e... Enquanto negociava-mos os dois maiores, o dono do
terreno do “meio” vendeu a propriedade para uma empreiteira de São Paulo. Grosseiramente, a área é um
retângulo. Compramos os dois terrenos de uma das pontas e os dois da outra ponta, mas o terreno do meio
está indisponível, entende ?
- Sem o terreno do meio, que liga as duas pontas não tem festival porquê o dinheiro dos investidores não vai
ser suficiente para ressarcir a empreiteira de SP já que eles vão querer lucrar na estória, mesmo que resolvam
repassar o terreno para vocês. Que encrenca !
- É bem pior. Como você deve saber, Construção Civil é uma área onde tudo anda mais rápido se você tem
recursos abundantes para “tocar” a obra. E esta empreiteira de SP estava extremamente capitalizada. Enquanto
nós estávamos negociando os terrenos das pontas, eles ergueram um condomínio fechado dos mais exóticos
que eu já vi na minha vida no terreno do centro.
- Quantas unidades ?
- Oito. Mais as lojinhas e conveniências que não são um problema, pois pertencem ao condomínio. Se
alguém possuir as 8 cotas pode simplesmente mandar os lojistas para o olho da rua para que tudo seja
demolido e limpo para erguer a Cidade do Toc !
- Acho que entendi. E o que seus empregadores querem que eu faça ?
- Que você coloque as oito escrituras em um envelope na mão do Sr.Mendina em 45 dias.
- E estes 45 dias significam o quê ?
- É o prazo final para começarmos a construir a Cidade do Toc ou devolver o dinheiro aos investidores
estrangeiros com juros. Aceita o serviço ?
- Cem mil dólares até amanhã depositados em minha conta offshore nas ilhas Seychelles e outros cem mil
em 45 dias quando o serviço estiver terminado.
- Dá para negociar ?
- Diga para o Sr.Mendina que, se ele tivesse vindo pessoalmente falar comigo, ao invés de enviar um
empregado, talvez eu pudesse fazer um abatimento, mas como ele não me considerou digna de sua atenção é
200 mil divididos em duas vezes mesmo.
- Então você aceita ?
- Temos um trato assim que a minha atabalhoada secretária voltar do BarraShopping com os ventiladores que
eu mandei comprar. Você precisa assinar uns papéis.
- Mas você não tem um feitiço para deixar a temperatura mais agradável ?
- Invocar uma massa de ar polar ártica no Rio de Janeiro só se eu fosse Jesus Cristo.
- É... Jesus Cristo tem Poder.
- Sem dúvida, mas a genética que ele tem ajuda bastante.
- Agora você parece uma bruxa.
- Obrigada.
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Acordo. Queria terminar aquilo o mais rápido possível. Tomo um banho. Devoro uma tigela de amoras
com cobertura de leite condensado e chocolate granulado e vou para o carro.
Doze minutos depois: Barra da Tijuca: onde o vernáculo britânico encontra a arquitetura brasileira de
terceira linha.
Ando um pouco em círculos e me deparo com o tal condomínio: meu alvo, minha missão. Muito mais
exótico que eu poderia imaginar, só que eu sou paga para matar, roubar e destruir não para fazer crítica de
arquitetura.
Só gostei do nome: “The Castle”. Aquela porcaria fazia parte do mesmo estilo de condomínio temático que
já parira o “The Mandarin’s Paradise”, com suas pipas coloridas que ficavam tremulando sobre os muros e o
“The Reign of Mermaids” com sereias fluorescentes de acrílico e neon que cercavam os jardins verde-alga-
marinha da entrada do condomínio fechado. Blargh !
O “The Castle” era um octógono cinza, com gravuras medievais em relevo na parte posterior e, é claro, um
portão monumental de bronze com uma escultura do Rei Arthur sentado à tavola redonda. Empreendimento
imobiliário para quem jogara RPG quando adolescente, mas não conseguiu se livrar da papagaiada pseudo-
medieval do jogo. Gente que cresceu, enriqueceu e veio parar aqui.
Paro o carro do lado da portaria.
- Oi ! O senhor sabe se tem alguma unidade do condomínio para vender ou alugar ?
O porteiro vasculha a papelada, organiza como quem corta cartas de baralho e responde:
- As oito unidades estão ocupadas, mas tem duas lojinhas que ainda estão para alugar, se a senhora se
interessar. Quem trabalha aqui diz que o movimento é bom.
Fui ver as tais lojinhas. Parte de um mini-shopping subterrâneo. Tinha de tudo: salão de beleza, confeitaria,
agência bancária do Manufacturers Hanover, empório de produtos naturais, um bar... Praticamente tudo para
fazer o sujeito não precisar sair do condomínio.
Peguei os dados da imobiliária, dirigi até a Senador Dantas, no centro e acertei tudo com um corretor com
cara de fuinha e sotaque do litoral de São Paulo.
Agora era a feliz locatária de uma unidade comercial no Stonehenge mini-shopping.
Infiltração: completa.
Entrei.
Como eu estou na Barra... Mission Accomplished !
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Dia dois.
Ando por um lado, ando por outro. Meus 42 metros quadrados de estabelecimento comercial me pareciam,
agora, menores do que ontem. Tinha um banheirinho, com chuveiro de marca boa e, aparentemente, toda a
parte hidráulica funcionando.
Na parte de fora, em frente, uma minúscula praça de alimentação com dragões entalhados em forma de
cadeiras de plástico e uma fonte de onde, no centro, um punho feminino erguia uma espada. Excalibur,
obviamente.
Aquilo era demais para a minha cabeça.
Passeio entre as lojas ainda fechadas tentando deduzir que tipo de serviço o shopping não oferecia e
resolvo, com certa malícia no olhar que viraria açougueira. Entrando no jogo... Morgana’s Beef Shop. Onde
os pecados da carne oferecem entrega delivery.
Belo slogan. Morgana aprovaria.
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Dia doze.
Se fosse uma joalheria, um pet-shop ou mesmo um salão de beleza eu faria tudo sozinha. Só que... Açougue
é complicado. Envolve balcão frigorífico, mudança na fonte de força e uma coleção de facas considerável.
Mesmo a contragosto, tive que contratar uma firma para montar a “boutique de carne”. Fui no google, achei e
contratei a Prét-a-boi-zê, que montou tudo e me deixou com um açougue vazio prontinho para funcionar.
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Dia catorze.
Contratei um açougueiro de verdade, um moto-boy e uma loirinha que havia sido vendedora do São
Conrado Shopping Mall.
Ao invés dos panfletos de praxe visitei, uma por uma as oito famílias proprietárias do condomínio com um
kit de boas vindas: filé mignon, bife Kobe, almôndegas pré-temperadas. Kibes pré-temperados e uma garrafa
de vinho francês para completar a generosidade.
Na realidade, visitei 7 das famílias, uma vez que Pedro Arueira, a esposa e os filhos estavam caçando onças
no Mato Grosso do Sul.
E daí ? Mais cedo ou mais tarde voltariam. Onça não é rinoceronte: um tiro na cabeça e acabou. Daqui a
pouco estão de volta.
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Dia dezessete.
Admito. Estava adorando. As empregadinhas alcoviteiras trajadas como camponesas medievais por
obrigação dos Estatutos do Condomínio me lembravam aquelas mocinhas da série “Handmaid’s tale”: sempre
ávidas a compartilhar os podres dos padrões, mas, ao mesmo tempo, sempre elevando ao máximo a condição
financeira dos chefes para, indiretamente, se erguer perante as colegas. “Não sou qualquer uma, sou a
empregada do pecuarista Davi Fontes Pereira.”.
Era um mundo a parte. De pecadinhos e indiscrições de gente pobre que convive com gente muito rica e
que nunca foi preparada para lidar com o choque cultural. Comemoravam as vitórias dos patrões como se
fossem suas em um sentimento de simbiose, de busca por uma identidade que lhe era negada pela situação
financeira ou pela cor da pele. O máximo que recebiam era um “...fulana é da família.”. E muito pouco além
disto.
Elas gostavam de mim. Eu conversava com todo mundo, ouvia as abobrinhas do dia e ainda vendia mais
barato se a garota garantisse que era para ela mesma ou a família no Vidigal ou na Rocinha. Informação é um
ativo como qualquer outro, se compra barato, se vende caro.
Não deixa de ser irônico, você abre um estabelecimento comercial dentro de um condomínio de alto luxo
para tratar com gente que ganha 1 salário mínimo e não com os donos ricaços dos imóveis.
Estava tudo dando certo.
Minha desgraça foi a ausência de um pouco de saudável rigor contábil.
Só um pouquinho. Um bocadinho de nada e não teria ocorrido o que ocorreu.
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E eu senti frio.
Muito frio.
Estava no meio de um deserto de gelo com ventos cortantes rasgando minha carne translúcida. Ventos que
uivavam como lobos ameaçadores.
Não vi nada. Não vi ninguém.
Me ajoelho no chão e oro para o “Grande Pai”, o Deus-mamute que trazia abundância em forma de caça
para os homens, fertilidade para as mulheres, mas dizimava a todos se houvesse o menor sinal de devoção à
outra entidade. Marpaloth não conhecia o perdão, suas pragas somente cessavam quando o último infiel era
torrado por raios que de espirituais não tinham nada. Não importa quanto tempo isto levasse. Elefantes não
esquecem.
Ouço passos.
Um homem chega até mim. Trajado como um caçador neolítico, mas andava com a segurança de um Lorde
Inglês cercado por um batalhão de 10000 cavaleiros.
Se curva e toca em meus cabelos.
- Faz muito tempo que não recebo visitas.
- Faz muito tempo que não vislumbrava tão poderosa divindade.
- E queres uma dádiva em troca de teus elogios e de tua companhia, eu presumo.
- Eu preciso de uma dádiva para ajudar outras pessoas, gente doente que, se vivesse em tua era seria cuidada
pela tua infinita misericórdia.
- Prossiga.
- No meu tempo, no meu mundo, há muitos jovens com uma doença chamada TOC. Meu senhor, Lorde
Mendina, quer construir um santuário onde estes desgraçados da Sorte possam desfrutar de um pouco de
alegria e esquecer as agruras da enfermidade, mas há oito famílias que se negam a vender suas posses para
Lorde Mendina construir a Cidade do Toc, o santuário onde estes enfermos encontrariam algum conforto para
suas almas.
- Seu mestre, Lorde Mendina vai pagar um preço justo pelas terras ?
- Tão generoso quanto possível.
- Então estes homens gananciosos que se recusam a ajudar os enfermos devem conhecer a ira de Marpaloth.
O que queres que eu faça, mulher ?
- Próximo ao portal que usei para vir até teus domínios, tenho uma boa quantidade de carne, boa para
consumo humano. Tenho como vender estas peças para os desgraçados que não querem ajudar os enfermos.
- Porquê não usas veneno ?
- Poderia ser aprisionada, senhor.
- Entendo.
Então o caçador que acreditava ser uma antropomorfização de Marpaloth, toca, com sua luva de um couro
inidentificável minha testa. Apago de novo.
Acordo com sua voz ressoando nas estepes.
- Está feito. Quem comer desta carne só falará a verdade, será tomado pelo ódio e terá a força equivalente a
10 macacos das neves. Nestas condições, qualquer briga familiar estúpida se transformará em uma carnificina.
Tudo que seu mestre terá a fazer é comprar a terra dos herdeiros.
Por motivos óbvios, me ajoelho em frente à divindade, que, até agora, havia se mostrado benevolente.
- Senhor, há algo que esta pobre mulher possa fazer para servir-te ?
- Mulher... Meu tempo se foi jazem muitas eras. Quando Aníbal cruzava os alpes usando minhas crianças
como tanques de guerra eu estava com eles, mas não fomos páreo para o panteão romano, já que, meus
seguidores já eram menos que pó há séculos. Mas não reclamo. Estou resignado com meu destino neste
mundo gelado e vejo, com alegria, que minhas crianças prosperam: Ganesh tem templos em sua honra por
toda a Índia e John Merrick, o elefante símbolo do partido republicano norte-americano representa a força, a
imponência e a virilidade para milhões de pessoas. São meu sangue, e sangue, afinal, é o que importa.
Eu sorrio.
- É bom aqui ?
- Tem paz. Considerando a vida que eu tive é justo. Se você visse onde estão Odin e Zeus veria que eu estou
muito bem alocado.
Havia uma dignidade, um senso de virtude naquela entidade que Rebeca só havia conhecido em seus
encontros com os deuses indígenas norte-americanos.
E Marpaloth, o senhor das planícies, se debruça até a fascinada feiticeira e sussurra em seus ouvidos:
- Parta.
E eu parto.
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18:06. Rio de Janeiro-RJ , Brasil
Barra da Tijuca, Condomínio “The Castle”.
Residência do Artista Plástico Eduardo Lemos e seu consorte o “hair designer” Carlos Olavo Cintra, vulgo
“Olavinho”.
Lemos é um herdeiro. Nunca trabalhou na vida. Presenciou, aos 8 anos, seus pais morrerem, em um crime
horrível na escuridão de um beco lúgubre do Baixo Leblon. Só que, ao invés de sair por aí vestido de
morcego, Lemos viveu como rentista a vida inteira, se aproveitando das taxas de juros brasileiras, as maiores
do mundo. Rico e gay. Um dia encontrou Olavinho, igualmente aboiolado e se juntaram. Quando a lei mudou
se casaram e, para se mostrar para a borbulhante comunidade gay carioca, adotaram um bebê. Uma menina
perdida em um orfanato que ganhou o nome de Patricia. Continuava perdida, mesmo aos 20 anos.
Bife à milanesa. Muito gostoso. Geovana, a empregada, cozinhava que era uma beleza.
Patrícia come o bife.
Não costumava brigar com os pais em conjunto. Um dia brigava com um, no outro brigava com o outro.
O dia chegara.
- Papais, eu não sou lésbica !
Lemos, o gay-alpha leva na tranquilidade.
- Bobagem... É só uma fase. Você está confusa. Logo você vai estar fazendo festas do pijama de 3 dias com
suas amigas da PUC.
- Eu nunca fiz festa do pijama.
Agora Lemos acorda. Olavinho observa sonolento ruminando a salada.
- Como é que é ?
- A gente ficava vendo DVD e conversando sobre a saga crepúsculo, não tenho amigas lésbicas. Nem bi. Até
onde eu sei.
- E a Jane, a Carla Machadão, a Fabiana Terremoto ?
- Eu trato todo mundo bem, mas vocês colocaram estas moças na minha vida. Eu me limitei a interagir
socialmente.
- Está querendo dizer que nós, teus pais estávamos tentando te transformar em lésbica ?
- E não estavam ? Me matricular em curso de mecânica de automóveis no SENAI com 12 anos ? Me dar de
presente de aniversário filme pornô de lésbicas desde os 15 ? Encher esta casa de gays e lésbicas desde que eu
me entendo por gente ? Me inscreveram na Juventude LGBT do PT desde que eu tinha 15 ? O último casal
“normal” que entrou nesta casa foram o palhaço e a palhaça que animaram minha festa de aniversário de 9
anos ?
O tom sobe. Olavinho e suas garfadas cheias de rúcula na outra ponta da mesa só observam.
- Olha aqui, sua pivetinha homofóbica ! Você foi escarrada em um orfanato. Se não fosse eu e o Olavo você
teria apodrecido lá até fazer 18 anos e daí para a zona do baixo meretrício porquê bonita para ser “escort” de
turista americano você não é.
- Eu vou te matar.
E vai mesmo.
Olavinho, que, finalmente percebe que a coisa estava feia, salta de sua cadeira e segura Lemos por trás.
- Não fala mais besteiras. Se ela não quer ser lésbica, deixa.
- Deixa o cacete ! Esta mentirosa está comendo e bebendo ás nossas custas. Vai assinar 100.000 promissórias
até pagar cada centavo que gastamos com ela. E vai viver na rua agora mesmo !
- Te acalma.
- Acalmar ? Ela está dissimulando que é lésbica para nos agradar e ganhar presentes desde os 15 anos !
Vadiazinha ordinária !
E o primeiro tempo acaba.
Patrícia explode em fúria.
- Não sou e nunca fui vadia !
- SOCK !
O soco direto no rosto, lançado do punho da filha adotiva simplesmente quebra o pescoço do pai
decepcionado.
Olavo corre para o cadáver. Mede seu pulso e percebe a tragédia.
- Você matou o Olavo.
- Ele me chamou de vadia.
- Você é uma vadiazinha ordinária, ingrata e homofóbica.
- Bem... Você me criou.
- SOCK !
O punho da jovem parricida estoura no peito de Olavo destruindo toda e qualquer funcionalidade de seu
músculo cardíaco como quem atira um despertador do vigésimo andar de um prédio.
Fim de jogo.
Patrícia não era idiota. Sabia que, por algum motivo desconhecido adquirira superforça, só não sabia se isto
seria temporário ou não. Mas, como em nosso plano ninguém acredita em super-heróis com superpoderes
pareceu sensato chamar a polícia e dizer que os dois gays se golpearam mutuamente até a morte. Como
galináceos nas rinhas de galo. Seus braços magros jamais teriam a potência suficiente para golpear alguém até
a morte.
Sempre achara fascinantes as coincidências da vida de seu pai Lemos com o Batman. No delírio da
adrenalina somada com o fato de saber que agora estava podre de rica como herdeira única, se sentia muito
bem. Bem demais. Quem sabe se a superforça for permanente ? Até que seria interessante colocar uma capa e
sair por aí espancando bandidos. O que, aliás, não falta no Rio de Janeiro.
Um uivo.
Há um Husky Siberiano uivando lá fora.
Patrícia sabe como ele se sente.
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O pai chega.
No sofá, Janete e a filha comendo sorvete e assistindo o Show das Kardashians. Um pouco mais para trás,
Berenice, alheia ao drama que se desenrola na TV, só queria presenciar o que aconteceria quando o pai visse a
filha andando.
Assim que Gesser aparece da escada que dava acesso à garagem, Thalita corre para os braços do pai.
Assustado, o geneticista abraça a menina, mas a reação é muito mais de susto do que alegria.
- Você está andando ?
- Tô.
Janete chega e abraça o marido e filha juntos.
- Você pode me explicar o que está acontecendo, Jan ?
- Ela estava na cadeira, comeu um pedaço de um bife que a Berê fez, passou mal e começou a andar.
- O quê ? Cadê este bife ?
- Na geladeira, dentro de um saco plástico.
Gesser vai até a cozinha e volta com o saco do bife na mão.
- Amanhã eu vou levar isto para um laboratório especializado. Seria bom levar a Thalita para fazer um
check-up clínico amanhã também em um médico qualquer.
- O que você acha que aconteceu ?
- Jan, estes pecuaristas são criaturas gananciosas, irresponsáveis, que injetam todo tipo de hormônios e
suplementos químicos no gado para que cresça mais rápido. Vai ver o coquetel bovino reagiu com algum dos
remédios que a Thalita toma e restaurou a coluna dela. Se é permanente ou se vai durar só algum tempo é que
nós temos que descobrir.
- Eu me lembro, das minhas aulas de Química, que tinha na Idade Média um alquimista que escreveu que a
pedra filosofal só seria descoberta por acaso de tão complexos que eram os procedimentos para chegar até ela.
- Você tem idéia do que nós temos aqui, Jan ?
- Um bife ?
Ele fica sério. E arremata:
- A chance de sairmos da casa dos milhões de dólares e passarmos para a casa dos bilhões de dólares como o
Bill Gates e o Warren Buffet !
- Você quer vender o bife ?
- Analisar o bife, descobrir que raios de substâncias ele contém. Analisar a Talitha, os remédios que ela toma
e encapsular tudo em um tratamento eficaz para restauração de danos na coluna cervical, o único no mundo.
- Mas você não deveria fazer tudo isto em parceria com alguma instituição pública como a Fundação
Osvaldo Cruz para o remédio ser distribuído de graça na rede pública ?
- Claro... No futuro, quando a patente vencer e tudo virar domínio público, o governo pode copiar à vontade,
mas eu não vou perder a chance da Gesser Inc. ter ações listadas em Wall Street.
Janete não se choca pois conhecia o marido, mas se irrita.
- Só tem um problema... O bife não é seu. Talitha, vem cá, meu amor !
Talitha emerge do quarto com a cadeira de rodas dobrada na mão.
- Posso guardar a cadeira ou será que eu vou ter uma recaída ?
- Depois... Agora mamãe quer que você decida sobre uma coisa...
- Fala aí ! Eu tenho pilhas de tralhas que eu quero mover para os armários de cima antes que o efeito da
mágica passe e eu volte para a cadeira.
Janete sorri.
- Seu pai quer mandar o bife para análise para patentear o que te curou e depois vender nas farmácias só para
quem puder comprar. Eu quero que ele procure o governo para que o remédio possa ser distribuído para todo
mundo que não possa andar como você. O que acha ?
- Eu não acho nada. O bife é meu. Estava no meu prato. Se é para fazer um remédio que seja para distribuir
para todo mundo que precise como aquelas vacinas dos postos de saúde.
Rapidamente, Talitha apanha o saco plástico com o bife que estava na mesa de vidro no centro da sala,
levanta e mostra para o pai, desafiando-o.
- É meu !
Gesser reage:
- Não é não, devolve.
- Eu não vou devolver, a gente já tem dinheiro demais. Não é legal andar de cadeira de rodas, se o bife puder
fazer esta gente andar, que faça. Mas não só os que possam pagar por isto.
- Me dá isto aqui !
Cenário – Talitha com o bife na mãe esquerda e a cadeira de rodas na mão direita. Gesser salta sobre a
filha, ensandecido, tenta agarrar o saco do bife. Ela recua e, com raiva, golpeia o pai com sua força aditivada
usando a cadeira de rodas dobrada como o Capitão América usaria seu escudo. Um dos ferros perfura a
garganta de Gesser e o geneticista se esvai em sangue.
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A construtura que ergueu o condomínio “The Castle” estava mirando em dois tipos de prováveis
compradores para as oito unidades oferecidas ao mercado imobiliário: ex-jogadores de RPG medieval como
AD&D que cresceram e enriqueceram e indivíduos com fixação por este período histórico. Em uma cidade do
tamanho do Rio de Janeiro achar 8 pessoas com este perfil não foi uma tarefa árdua.
Ariquemes Deodato Rodrigues pertencia ao primeiro time: jogador e mestre de RPG desde os 12 anos. Ao
ver a propaganda do condomínio nas páginas da falecida Gazeta Mercantil imediatamente ligou para a
construtura e agendou uma visita. Extasiado, foi o primeiro a comprar um terreno e o terceiro a se mudar.
Gostava dali. Era um ambiente excessivamente “fake”, mas o estatuto do condomínio tinha grandes idéias
como obrigar as empregadas domésticas a se vestirem de camponesas e os motoristas e jardineiros a trajarem-
se como servos domésticos prussianos do século XIII. Proprietários de cavalos tinham 10% de desconto nas
taxas de condomínio. Era tudo muito doido e Ariquemes adorava esta dose de excentricidade que a vida lhe
permitia ter. Infelizmente, sua esposa, Célia, não concordava com as extravagancias juvenis do marido.
Ariquenes era o próprio self-made-man. Fez fortuna com um comprimido para fazer vomitar que foi a febre
das adolescentes bulímicas dos anos 90. Importava ilegalmente as cápsulas da China e revendia para
farmácias “escolhidas” próximas de colégios, universidades e agências de modelo da Zona Sul. Na caixa,
vinha escrito LC-430, mas a galera batizou de “vomitol” mesmo.
Pegou o dinheiro do “vomitol” e investiu em negócios variados: campos de golfe na Irlanda, hotéis na
África do Sul, uma clínica para tratamento de viciados em videogame na Argentina e por aí vai...
Sem querer, acabou construindo um conglomerado peculiar que mais parecia uma colcha de retalhos dada a
disparidade de modelos e tipos de negócio que possuía.
- Foi acidental. Não me convidem para dar palestra em MBA porquê quem me copiar vai quebrar a cara.
Costumava retrucar o milionário quando convidado para servir de “case” em MBAs e Faculdades de
Administração.
Célia, a esposa, era um “pé-no-saco”. O que se comentava era que Ariquemes só não a largava por gratidão
ao pai da criatura que havia emprestado dinheiro para a importação das primeiras caixas do “vomitol”. Mas,
outra teoria afirmava que ele não se divorciava dela para se manter sempre próximo da cunhada mais nova:
Belinha, uma belezinha de morena pálida/esquálida, estilo Amy Lee do Evanescence.
Teorias a parte, tinham diferenças demais para permanecerem juntos, mas, algum fator-X misterioso que
ninguém sabia exatamente o que era, produzia o cimento necessário para evitar o divórcio.
Era uma convivência complicada, principalmente porquê Ariquemes era ateu e absolutamente cético sobre
absolutamente tudo e Célia era espiritualista, ingênua e presa fácil de videntes, cartomantes e médiums das
mais variadas colorações esotéricas.
Das oito residências que emergiram dos oito terrenos originais do “The Castle”, a de Ariquemes era a que
havia sido decorada mais fielmente em consonância com a proposta temática do condomínio. Ariquemes criou
uma área livre de modernidades que incluia a sala, a varanda e o corredor que ia para os quartos. Nada, neste
espaço deveria parecer que não era do ano 1300 ou mais antigo que isto. O resto da casa foi preenchido
normalmente, com todas as facilidades eletrônicas dos dias de hoje, o que produzia um efeito de “portal
interdimensional” assustador quando você ficava muito tempo em uma área e então, penetrava na outra.
Na “zona medieval” tinha de tudo: uma mesa de pedra imitando a távola redonda do Rei Arthur. Espadas,
maças e escudos pregados em quase todas as paredes. Duas armaduras reluzentes manufaturadas em
impressora 3D. Uma cabeça de cavalo empalhada com um chifre de narval pendurada na parede como um
troféu de caça. Uma pele de urso servindo de cortina e o mais impressionante; uma réplica do Santo Graal em
uma jaula de pequenos palitos de metal pintados para parecer ouro. Era o samba do templário doido.
Célia havia sido vítima de uma traumática tragédia quando tinha uns 16 anos. Debaixo das ferragens de um
acidente de carro, o avô, moribundo, havia dito as seguintes palavras para ela, que já tinha se evadido do
veículo em destroços pronto para se auto-inflamar:
- Cuidado com o...
BUM !
O carro explodiu e o velho nunca concluiu a frase.
Aí começou a busca: Espiritismo Kardecista, Espiritualismo genérico, Pais de santo, Médiums, Videntes...
Célia procurava qualquer um que pudesse lhe proporcionar a comunicação com o além que tanto desejava,
mas, nunca encontrara o “profissional” que realmente fosse capaz de realizar o contato.
Ariquemes achava tudo aquilo uma grande bobagem, mas como a mesada era dela e ela gastava como
queria, havia de respeitar as extravagâncias místicas da esposa.
Tinham um trato: todo dia 18, dia do aniversário do avô, Ariquemes estava proibido de colocar o pé em
casa, entre 18 horas e a meia-noite, pois a casa seria usada em mais uma tentativa de comunicação com o
além-túmulo. Ou seja, mais um espertalhão mediúnico sairia dali com os bolsos cheios de dinheiro, tirando
mais um naco da esperança que Célia tinha de contatar o avô.
Madame Petúnia era a “especialista” da noite. Mais três amigas de Célia que sempre compareciam às
“sessões” para ajudar com a energia positiva.
Em um ramo profissional que apresenta uma competitividade absurda como a picaretagem mediúnica, ou
você se destaca ou morre de fome. E Madame Petúnia se distinguia pelo fato de exigir comer uma porção do
prato preferido do falecido (ou falecida) antes de tentar o contato, para melhor reconhecê-lo no “éter” do
espaço entre mundos. Isto a diferenciava da concorrência, mas gerava um risco: nem todo mundo come
buxada de bode, mas tem quem coma. E tem também salada de jiló, pirão de cabeça de peixe e uma série
enorme de iguarias nojentas que sempre são objeto de predileção de algum doido que se delicia com
excentricidades culinárias. Madame Petúnia às vezes se sentia um avestruz humano, mas aquilo era diferente
do “modus operendi” da totalidade da picaretagem esotérica do Rio de Janeiro e, realmente, atraia um número
considerável de novos “clientes”.
Naquela noite, não haveria nada exótico para alívio da médium: um pratinho de kibes, que o velho Samir,
gostava de desfrutar pelo gosto e para não se olvidar da origem de imigrante sírio-libanês. Madame Petúnia
gosta da simplicidade da iguaria, do sabor da hortelã e da qualidade da carne moída.
A refeição termina e as cinco mulheres sentam-se à mesa de pedra. Dão as mãos. Velas tremulando.
Madame Petúnia começa a passar mal. Sua. Fios de cabelos suados grudam em sua testa engordurada de
creme anti-rugas de segunda linha.
Célia interrompe o pré-transe:
- A senhora está passando mal ?
- Querida, quem o Universo premia com grandes poderes também recebe grandes responsabilidades.
Célia se cala tentando digerir a frase feita e tentando se lembrar onde havia ouvido isto.
- Quer continuar ?
- É a minha sina, minha maldição, meu compromisso com os espíritos de luz das sete esferas.
As mãos são entrelaçadas novamente. Sem cânticos ou mantras, só o respirar nervoso das quatro mulheres
que esperavam um sinal do mundo do desconhecido. Madame Petúnia já havia desistido de encontrar um sinal
do além muito tempo atrás.
Mas o sinal veio.
AAAHHHH !!!!
Madame Petúnia dá um grito.
E caí para trás, estática, no chão.
Glaucia, uma das amigas de Célia, por sorte era médica. Pula sobre a médium abrindo a gola de sua blusa.
Depois de examinar rapidamente o pulso da vidente, dá o diagnóstico:
- Célia, chama uma ambulância do SAMU. Acho que esta mulher teve um derrame.
- Acha ? Mas você não é médica afinal ?
- Pelo que eu me lembro da faculdade de Medicina em Vassouras, você deve chamar uma ambulância agora!
As outras duas amigas continuam na mesa, esperando uma solução para o impasse.
E Sebastiana, a empregada enxerida, surge vinda da cozinha, aguardando os acontecimentos no umbral da
porta.
De repente, Madame Petúnia se levanta:
- ¿Dónde estoy?
Célia, aliviada, faz o primeiro contato mediúnico:
- A senhora está bem ? Quer que eu chame uma ambulância ?
Petúnia encara a anfitriã com olhos parados de possessão demoníaca.
- ¿Dónde estoy, mujer ?
Zélia, a amiga nordestina, grita e apavora todo mundo.
- Esta mulher está possuída, suas estúpidas ! E não é o avô da Célia.
Como é que um negócio destes aconteceu, caro leitor ? Bem... Como havia adiantado Lady Rebeca: a “Alta
Magia” não é, definitivamente, uma ciência exata.
- ¡Sí, sé dónde estoy! ¡Estoy en el infierno! Y todos ustedes son demonios que están aquí para probar mi fe.
No canto esquerdo do ringue – Dom José de Ortega y Ramirez, fidalgo andaluz morto pela Inquisição
espanhola pelo fato de ter 1/32 avos de sangue mouro. Devido a intempéries do mundo dos mortos ficou
vagando por aí desde 1512.
Todas em pânico, principalmente porquê ninguém entendia direito o que o desencarnado falava.
Zélia, a mais corajosa das cinco, contando com a empregada, tenta contato. Faz o tradicional gesto com a
palma da mão aberta e o antebraço apontando para o céu em ângulo reto.
- Viemos em paz.
Ortega, cuja visão já havia se adaptado à penumbra da sala, arranca uma das espadas fixadas à parede por
Ariquemes como objetivo de fazer clima para partidas de R.P.G. medieval e decepa a cabeça de Zélia, a
valente.
De repente, o som do carro de Ariquemes entra na sinfonia de horror, já que este havia se esquecido de um
de seus suplementos de mestre de R.P.G. no quarto e retornara para buscar o livro.
Só que ninguém percebe, com as quatro mulheres gritando.
Ortega, extremamente confuso, estava certo que aquilo era o Inferno, e que retirar o máximo de informações
destes demônios que encontrara era essencial para sua sobrevivência nos domínios de Satã. O fidalgo agarra
Glaucia pelo ombro, encostando a lâmina afiada no pescoço da dermatologista transformada em dona-de-casa
pelas contingências do casamento.
Então, a surpresa: Sebastiana surge da cozinha com uma panela em punho, pronta para acertar com toda a
força possível o crânio da inimiga que falava como algum tipo de argentino alucinado.
Só que Ortega foi mais rápido. Golpeando a negra com a espada no ombro, antes que ela o atingisse. Uma
vez com o joelho no chão, o nobre andaluz atravessa o coração da serviçal com a espada embanhada no
próprio fluido rubro da moça. Que escorre, vagarosamente para o corredor.
Gláucia, antes refém, tenta fugir em direção à porta aberta da cozinha, mas é agarrada por seus longos
cabelos negros pelo ser espectral. Irritado com a atitude da médica. Ortega a golpeia na cabeça com a bainha
da espada, provocando um buraco no crânio, já que estava muito mais forte do que um homem normal. Se
assusta com o fato, mas racionaliza pensando que no Inferno, as coisas haveriam de ser diferentes mesmo.
Contra a parede, no chão, a anfitriã: Célia e a última amiga sobrevivente: Dircinha.
Objetivo, Ortega decide que precisaria de somente uma criatura do Inferno para interrogar. Vai em direção
às duas apavoradas e encolhidas no chão, e, com a bainha da espada golpeia Dircinha, que tomba morta por
traumatismo craniano. O andaluz agarra Célia e a arrasta, gritando, para a grande mesa de pedra. Onde
pretendia amarrá-la e interroga-la,
Célia grita, grita e grita.
E, habilidoso, Ortega consegue amarrar a jovem senhora na mesa, utilizando a toalha de crochê que a
cobria como corda.
Estava na hora de Ortega utilizar algumas técnicas que havia aprendido com a Santo Ofício muito tempo
atrás. Não haviam ali os instrumentos necessários, mas improvisar sempre é possível.
O que era para ser uma noite monótona, de mais uma tentativa frustrada de contato com o além, se
transformara em um cenário de filme de horror, com quatro cadáveres espalhados pela casa e uma médium
possuída por algo que balbuciava alguma coisa entre o castelhano e um possível dialeto ibérico extinto.
E a porta da sala se abre.
No canto direito – Ariquemes, com seu uniforme tradicional de “Noite de RPG”: calça de moleton,
camiseta promocional da C&A e tênis fuleiro do camelô de Copacabana. Afinal, não ficara rico à toa.
Célia grita:
- Chama a polícia !
- Polícia ? Uma maluca entra na minha casa, amarra minha esposa na minha mesa como se fosse a roda do
roletrando no Sílvio Santos e você quer que eu chame os tiras ?
Ortega acha engraçado. Fazia muito tempo que não matava um varão, mesmo um plebeu ridículo como
aquele.
O fidalgo corre até Ariquemes, com a espada sobre seu ombro gritando algo incompreensível até mesmo
para os mais peritos linguistas.
Ariquemes fica parado.
Esperando.
Quando Ortega está a cerca de um metro de sua cabeça, rapidamente, o empresário retira da parede a
cabeça de unicórnio falsa, soma de cabeça de cavalo manga-larga com chifre de narval que custara uma
fortuna na Comic Con de 2005 em San Diego, California, USA.
Quando Ortega está a cerca de meio metro de seu dorso, Ariquemes coloca a cabeça de “unicórnio” contra
o peito do inimigo ibérico e se desloca para o lado, fazendo com que a criatura tropeçasse no joelho do Mestre
de RPG e se estatelasse no chão, com o chifre de narval atravessado no peito.
Game Over.
Ariquemes fica em torpor. Imóvel. Tentando respirar enquanto observa a bagunça de seu adorada sala
medieval e os corpos atirados aqui e ali.
Célia grita:
- Dá para me tirar desta mesa ?
- Claro.
Ariquemes salta um cadáver para chegar até a mesa, retira a esposa que já estava com os pulsos roxos
marcados dos nós górdios aplicados por Ortega. Célia simplesmente se atira em uma das cadeiras da mesa e
olha, catatônica, para o teto.
Ariquemes começa a arrastar os cadáveres, empilhando-os em frente à replica do Santo Graal.
Célia sai do transe, percebe aquilo e não perde a chance de gritar com o marido:
- Vá chamar a polícia ! O que você está fazendo ?
- Eu vou fazer uma pilha deste presuntos para tirar uma foto em cima deles com uma espada na mão e
colocar no Instagram !
- Ariquemes, você está maluco ?
- Primeiro, a casa é minha, eu fotografo o que eu quiser.
- Segundo...
- Segundo, o quê, Ariquemes ?
- Ariquemes é o caralho ! Meu nome agora é Zé Pequeno !
* * * * *
As feministas exageram um pouco. Há muitas vantagens em se ter nascido mulher. Uma delas é que, se
você ostenta a posse de uma grande fortuna, mas não trabalha, não é difícil fazer as pessoas acreditarem que
você é uma herdeira cujos pais morreram em um acidente aéreo, por exemplo. Agora, homem não tem esta
moleza não... Se você sai de casa de manhã todo dia para jogar golfe e só volta a noite sempre tem um espírito
de porco na vizinhança lhe acusando de ser traficante de drogas, contrabandista ou até terrorista, se você for
um pouco mais “moreninho” que a média étnica do condomínio. Se as feministas colocassem a mão na
consciência veriam que as desvantagens não são tantas.
Não eram de muita conversa.
Luna devia estar beirando uns 55 e o marido Péricles uns 35. Sem filhos.
Helicóptero próprio, ao contrário dos outros dois que haviam por lá que eram fruto de contrato de leasing.
Toda manhã, o helicóptero partia, pilotado por sua proprietária. Voltava lá pelas 6 da tarde.
Toda manhã, Péricles partia para o clube para jogar golfe. E ali ficava até umas 6 da tarde também.
Eram (aparentemente) mais ricos que os outros condôminos. Ricos, antipáticos e alvos da boataria geral.
A empregada, Vanessa, fiel aos patrões, nunca forneceu informações para o cardume de piranhas
fofoqueiras que a cercava com milhares de perguntas.
Boa moça, Vanessa. Não existe mais gente assim.
Sexta-Feira.
Como acordado com a patroa desde o princípio, nos fins de semana, a moça retornava para São João do
Meriti, para a convivência com os pais e irmãos menores e para seu quartinho cor-de-rosa que pintou ela
mesma com as sobras de tinta Suvinil que ganhara de uma amiga.
Nas sextas, ela deixava o jantar pronto no forno, fechava tudo e ia embora para voltar na segunda de
manhã. Encostava o olho direito no leitor de retina do sistema de segurança e rumava para o ponto de ônibus
onde iniciava a Odisséia até o subúrbio. Acredite em mim, é estrada para Ulysses nenhum achar agradável.
17:30 – Casa vazia.
17:42 – Luna chega. Entra na residência, lava o rosto. Joga a pasta com papéis sobre a mesa e vai para a
cozinha ver o que Vanessa tinha deixado para o jantar.
Ensopadinho de carne moída com cenoura, batata e azeitona acompanhando arroz branco e uma saladinha
de palmito. Não era o tipo de comida que a executiva serviria para as amigas em um jantar formal. Mas,
matava a fome e era gostoso.
Luna se serve do arroz, joga uma concha de ensopado em cima e vai para frente da televisão com um copo
de suco de laranja de caixa.
Mastiga. Mastiga.
Rumina. Rumina.
Começa a ficar tonta.
Busca o remédio para pressão no quarto, mas não consegue se levantar do sofá.
O marido chega.
- Péricles, corre aqui !
Assustado, encosta os tacos de golfe contra a porta e corre para acudir a esposa.
- Você está bem ?
- Tontura, mas está passando... Eu não estou me sentindo bem. Tem uma coisa que eu preciso contar para
você, mas... É complicado.
- Você me traiu ?
- Não, não ia fazer isto.
- Quer se divorciar ?
- Não é com você. É comigo. O que eu faço, o que eu fiz. Seria menos vergonhoso se fosse prostituição.
- Todo mundo faz besteiras...
- É bem mais grave que simples besteiras ou um deslize ético trivial. Me diz o que eu faço
profissionalmente, por favor.
- Você é proprietária de uma fazenda de plantação de alface hidropônica e orgânica no Méier. É o que nos
sustenta.
- Errado. A fazenda é fachada. Não rende 2% do que eu ganho com o outro negócio.
Péricles coloca a mão na cabeça. A primeira coisa que lhe passa: ela está plantando drogas.
Luna se levanta, pega o marido pela mão e resmunga, baixinho:
- Você não vai me perdoar nunca, mas eu preciso te mostrar. Isto está me matando. Eu abasteci. Tem muito
combustível no helicóptero.
- Mas você está bem para pilotar até o Méier ?
- Estou.
Péricles sabia, pelo nervosismo da mulher, que viria uma grande bomba sobre sua cabeça, mas não tinha
elementos para deduzir a magnitude do choque.
Duas horas e trinta e um minutos depois a aeronave aterrissa no heliporto improvisado da pequena empresa
agropecuária. Zona rural do subúrbio carioca, onde nos anos 70 os bixeiros “desovavam os presuntos” de seus
inimigos, cadáveres insepultos apodrecendo sob o mesmo sol que aquecia as praias da Zona Sul onde Carlos
Imperial caçava suas “lebres”.
Imediatamente, Juvenal, o vigia, corre para auxiliar a patroa a descer do helicóptero.
- Tudo bem, Dona Luna ? Algum problema ?
- Nada não. Só queria mostrar umas coisas para o meu marido.
Péricles dá um aceno amigável.
- Então eu vou voltar para a guarita, qualquer coisa que precisar é só gritar.
- OK.
Luna pega o marido pela mão e inicia a caminhada até os limites da propriedade. Depois de andarem quase
uma hora, encontram a cerca de arame farpado derradeira.
- Acabou, Luna ?
- Teria acabado se o terreno do lado também não fosse meu. Ou nosso, como queira.
Então a mulher se abaixa, começa a tatear o solo até encontrar um ferrolho de alçapão. Retira uma chave da
carteira, abre, levanta a madeira e faz o convite para que o marido fosse iniciado naquele mundo de horror.
- Vamos ?
- O que tem aí embaixo ? Drogas ?
- Não, apesar de que, quem recebe o produto fica feliz como um viciado.
- E isto é legal ?
- Se fosse legal estaria em uma estufa subterrânea em um terreno no fundo da minha propriedade ?
Péricles se cala.
- Vamos !
Lentamente, Péricles vai descendo degrau após degrau desbravando a escuridão que o convidava ao grito.
Chegam ao fim da escada.
Luna acende a luz. Uma pequena sala, com uma mesa, uma cadeira de escritório e uma geladeira pequena
meio abalroada lateralmente. Uma porta ao fundo.
- É aqui que eu fico. É tosco, mas é prático.
- E o que tem atrás da porta é o que está nos sustentando, afinal ?
- É... Eu não sei como começar. É meio inacreditável.
- Só comece. Me dê o direito de ter a decisão de acreditar ou não.
- Eu sei que é meio clichê, mas se estas coisas não caírem do céu, caem da onde ?
- Coisas ?
- Eu tinha uns 15 anos e passava férias na fazenda do meu tio em Montes Claros.
- Montes Claros, Minas ?
- É. Lá por umas duas horas da manhã, eu estava sem dormir e vi um risco no céu que se chocou no chão
perto de onde os cavalos bebiam água. Tipo um meteoro, só que como caiu muito perto, no dia seguinte fui
ver se achava alguma coisa. Dou de cara com uma cratera com uma esfera prateada dentro com símbolos em
relevo. Minha surpresa foi que, quando me aproximei, a esfera se abriu como uma íris de máquina fotográfica.
Dentro, uma pequena caixa de madeira. Usando o casaco para não me queimar, retirei a caixa do interior da
esfera e a levei para casa. Sabe-se lá como, o interior da esfera estava frio como uma melancia. Na caminhada
até a sede da fazenda já percebi que a caixa não estava fechada, só encostada. Dentro: oito sementes cor de
caramelo e mais escritos alienígenas.
- É uma estória e tanto. Tem a caixa e as sementes para comprovar ?
- A caixa sim, as sementes não.
- Perdeu as sementes ?
- Plantei.
- Você é louca.
- Louca não, irresponsável. Na época já sabia que estava introduzindo no ecossistema uma espécie
alienígena, mas queria ver o que ia nascer. Você já teve 15 anos, sabe do que estou falando.
- E aí ?
- As férias terminaram e voltei para casa em Belo Horizonte. Escondi a caixinha de todo mundo para evitar
que meu tio a tomasse, afinal o meteoro caiu nas terras dele. O artefato alienígena era dele, legalmente. Na
quadra da minha casa havia uma fábrica de refrigerantes abandonada, apodrecendo, servindo de privada para
mendigos e de abrigo para drogados, esporadicamente. Com muito medo, penetrei naquele monte de ferragens
enferrujadas e, no meio do mato, plantei uma das sementes. Todo dia, depois da escola, eu passava por lá. No
terceiro dia já havia um caule negro ereto que eu, hoje, acharia com a textura similar a de fibra de carbono,
mas na época era só um caule preto. E o milagre acontece: uma pequena massa esponjosa rubra surge na
ponta do caule. Cresce, parecendo um girino. E... Cresce....Cresce... Até que, após 20 dias de plantio, um bebê
aparentemente humano cai ao lado do caule, chorando como qualquer rebento saudável. Eu já havia percebido
o que a planta estava gerando. Mas, quando cheguei no local, fiquei sem fala e sem ação. Não sabia o que
fazer. Embrulhei a criança com meu casaco, tirei dali, coloquei em um ponto de ônibus e liguei para a polícia
dizendo que tinham abandonado um bebê naquele local.
- Que loucura. E o bebê, que fim levou ?
- Deve ter ido para adoção. Mas o pior vem agora: percebi que, em cada ombro da criança, nascia outra
semente. Quando a criança se desprendeu do caule, as duas sementes se soltaram do bebê direto para o chão
protegidas por uma vesícula transparente. Dias depois de colocar a criança no ponto de ônibus, encontrei as
duas novas sementes lá. Do ladinho do caule, que enrugava e morria. Peguei as duas novas sementes, voltei
para casa e nunca mais retornei àquele campo de horrores.
- Base dois ! Melhor que isto só os Gremlins que se multiplicavam em base 5. Você está consciente que
auxiliou uma invasão alienígena produzindo aquela criatura ?
- Claro. Mas a coisa é bem pior. Você sabe muito bem que meu pai sempre foi funcionário público e minha
mãe vendia Avon para ajudar nas despesas. Mas, apesar disso pagaram a minha faculdade e a do meu irmão.
- Lembro. Eu gosto do seu pai, e daí ?
- Pagar a faculdade significa exatamente pagar a faculdade. Só isto. Se eu não tivesse arrumado uma gaúcha
para dividir um porão, trezentos mil sub-empregos e a faculdade não tivesse uma biblioteca que me permitia
não comprar livros eu não teria o diploma. Por uma destas coincidências do Destino, minha colega de porão
tinha um namorado para lá de suspeito: aluno de medicina, Porshe 911, morando em um duplex com piscina
sozinho com um labrador. Eu sempre pensei que a jogada do Betinho era tráfico de drogas, mas Sofia, a
gaúcha, um dia, bêbada, me confidenciou a verdade: o cara tinha um esquema com policiais corruptos: os
tiras sequestravam crianças de até 4 anos e ele repassava a petizada para uma clínica de transplantes em
Campinas, onde a mercadoria era devidamente fatiada e destituída de seus rins, coração, córneas e o que mais
tivesse liquidez, naquele momento do mercado.
- Campinas, São Paulo ou Campinas, Santa Catarina ?
- Campinas, São Paulo. Então... E... É pesado, sabe ?
- Imagino.
- E... Eu perdi meu emprego de balconista em uma loja de auto-peças. Os dias foram passando, meu dinheiro
foi acabando e o desespero de chegar o dia do aluguel e não ter como pagar me fez procurar o Betinho, com
uma pergunta bem direta: “- Quanto você pagaria por um bebê recém-nascido ?”. Já avisado por Sofia de sua
indiscrição, responde na tampa: “Quatro mil dólares, pode entregar quando ?”. Vinte dias depois eu estava
quatro mil dólares mais rica e o bebezinho-alien viajava de Porshe 911 para ser fatiado e retalhado na Clínica
de Campinas. Com o dinheiro, saí do porão, aluguei uma kitinete perto da faculdade para economizar com o
ônibus, comprei 5 xaxins, adubo e toda a tralha de jardinagem que me pareceu necessária. Betinho comprava
tudo: a cada 20 dias eu tinha vinte mil dólares nas minhas mãos. Até que acabou a minha festa: os “meus”
bebês eram muito mais baratos para o Betinho do que os conseguidos através de sequestros feitos pela polícia.
Claro que era muito mais seguro trafegar com uma criança sem documentos em uma rodovia interestadual
dentro de uma viatura policial do que dirigindo um Porshe 911, mas não compensava. Betinho chama o chefe
do esquema, um tal de Sargento Sampaio para conversar e encerrar com a “parceria comercial”. O policial
não gosta dos termos, há uma discussão e Betinho é simplesmente fuzilado dentro de seu apartamento com os
olhos de Bob, o labrador, como únicas testemunhas. Ele já havia me avisado que, se aparecesse morto, o
assassino seria o tal do Sampaio. Até onde eu sei, nunca foi preso ou expulso da corporação.
- Gostava dele ?
- Não. Era um canalha ordinário que ganhava dinheiro com a dor e o desespero dos outros, no caso, os pais e
mães das crianças que eram sequestradas pelos seus “amiguinhos” da polícia. Mas a foto no jornal de alguém
que você conhece deitado em uma poça de sangue dá sempre a impressão que na próxima foto pode ser você.
- O que fizeram com o cachorro ?
- Não sei. Nunca pensei nisto. Naquele momento, eu entendi que, se quisesse continuar no negócio dos
bebês-alien deveria eliminar os intermediários, vendendo direto para o consumidor final, verticalizando a
cadeia não haveria espaço para gente armada entre a entrega da mercadoria e o recebimento do meu
pagamento. A morte de Betinho travou a minha vida por uns seis meses. Até que percebi que poderia vender
os bebês sem intermediários se os negociasse diretamente com quem busca crianças para adotar e com os
satanistas que costumam matar inocentes em seus rituais de depravação e sangue. Na internet “comum”
encontrei grupos de discussão sobre adoção, na Deep Web esbarrei com uns doidos de um grupo esotérico
chamado “Filhos do Grande Mestre” que se interessaram pela oferta e pelos meus termos negociais: sem
perguntas, pagamento em ouro, leve 4 pague 3.
- E você entregava como ?
- Entregava pessoalmente, em lugares de pouca luminosidade como becos, debaixo de viadutos e terrenos
baldios. Com o rosto envolto em uma echarpe de seda. Meu plano era continuar com aquilo até terminar a
faculdade e depois queimar tudo começando a vida de novo como Engenheira Mecânica. Mas é difícil,
entende ?
- É o mesmo que dizem da chantagem. É um dinheiro tão fácil que vicia. O chantageado paga eternamente se
tiver dinheiro para isto. O chantagista pode parar a hora que quiser só que não consegue largar o osso.
- Já foi chantageado ou chantagista ?
- Não, mas conheço quem foi chantageado.
- E como terminou ?
- O chantagista ganhou uma oferta irrecusável para mergulhar nas águas turvas da Lagoa Rodrigo de Freitas e
nunca mais foi visto.
- Acontece.
- E você se formou e aconteceu o quê ?
- Sempre gostei do Rio, então eu peguei o diploma e vim para cá. Gastei quase quatro meses para encontrar
este terreno no Méier, montei a fachada das alfacinhas hidropônicas e com mão de obra de fora construí a
estufa. Em uma situação destas, encher um caminhão pau-de-arara de baianos, obrigar eles a trabalharem em
4 turnos ininterruptos de 6 horas e mandar os caras de volta para o nordeste é sensato.
- E o projeto, o cálculo estrutural, a planta baixa ?
- Eu que fiz. Já ouviu falar em livros de engenharia ?
- Faz sentido.
- Eu pensei grande. Montando uma matriz de 8x8, poderia produzir 64 crianças simultaneamente. Um
sistema de irrigação funcionava 24 horas, o resto: adubo orgânico e algum fertilizante eu sempre apliquei
manualmente. Como o ambiente simula um útero significa que não tenho gastos com luz. Quando eles
nascem vão entregues por drones para seus novos “donos” que ficam esperando em um raio de 2 Km. Estou
mais maleável, acho que é a idade... Além de ouro estou aceitando diamantes e algum material de
melhoramento genético bovino se interessar: sêmen congelado de touro premiado, estas coisas...
- Nada que possa ser rastreado.
- Exatamente.
- E quem compra ?
- A maioria vai para a adoção, uns 20% para satanistas que adoram demônios diversos e o resto vai para uma
Clínica de Transplantes de Piracicaba que eu encontrei no Facebook. Nunca sobra nada na prateleira. Não
vendo para pedófilos, mesmo que tentem me assustar com uma Carteira Funcional do Ministério Público.
- E você está colaborando com uma invasão alienígena, caso não tenha percebido.
- É... Vamos ver lá dentro ?
- Não. Isto acaba aqui.
- Imaginei que você fosse dizer algo assim. Eu concordo com você. O negócio das alfaces é lucrativo, só
vamos ter que nos mudar para um apartamentinho no Leblon, vender o helicóptero e você pode me ajudar
aqui com a “peãozada” se não quiser reabrir seu escritório de advocacia. Este negócio dos bebês-alien dá
dinheiro, mas está me roendo por dentro faz muito tempo.
Péricles a abraça. Jamais havia visto a esposa tão vulnerável, mas por outro lado, a idéia do divórcio para se
afastar das consequencias desta carnificina que perdurava por décadas parecia sensata. O fato de ser marido,
poderia fazer com que algum juiz pensasse que ele era sócio no empreendimento. Seu “advogado interior” lhe
ordenava para queimar tudo e , amanhã de manhã, sair correndo para o Acre, mandando um amigo com uma
procuração para realizar o divórcio o mais rápido possível. Seu “macho provedor interior” lhe ordenava para
auxiliar a esposa no encerramento do empreendimento e levá-la para uma semana romântica em Paris para
que pudesse descansar os olhos dos horrores da vida.
Como podem ver, o advogado interior era um grande filho da puta.
- Luna, você tem algum gerador a diesel aqui ?
- Não.
- Então vamos fazer o seguinte: vamos tirar um pouco de querosene do helicóptero, espalhar pela estufa e
atear fogo. As pessoas vão ver a fumaça mas não vão saber de onde está saindo. E é noite, isto facilita. Vamos
para casa de taxi e amanhã nós voltamos com um mecânico que tenha alguns galões de querosene da aviação,
reabastecemos e, aos poucos, retiramos o resto do entulho em sacos, com calma.
- E vamos fazer o quê com o entulho ?
- Fazer uma laje e jogar concreto em cima ?
- Parece bom. BANG !
A bala atravessa o crânio de Luna. Péricles dá um passo para trás instintivamente e....
BANG ! BANG ! BANG ! BANG !
Quatro tiros certeiros no peito tiram a vida do dublê de golfista e advogado Péricles de Alencar Souto.
Juvenal desce o último degrau da escada enferrujada.
Haviam dito para ele que seria uma missão de rotina. Uma incumbência de infiltração sem atropelos e sem
necessidade de exterminar ninguém, o que sua religião proibia, mas, ás vezes, era necessário no ofício que
exercia para ganhar a vida fora de Carcalon VIII: observador de ninhos. Tudo que tinha a fazer era garantir
para que, pelo menos metade das novas crias carcalonianas chegassem a famílias adotivas terrestres para que,
no momento certo, preparassem a invasão e a aniquilação dos terráqueos. O traje holográfico que usava
permitia viver em anonimato como um cearense “boa praça” e inofensivo. Não era nem uma coisa nem outra.
Era assim que os carcalonianos se espalhavam pelo cosmo: mapeando planetas com vida inteligente e
enviando sondas com sementes que, aparentemente, geravam seres idênticos à espécie dominante. Em uma
segunda fase, as crias passavam a exalar bactérias e toxinas que infectavam cada exemplar da espécie local
dominante com vida inteligente, exterminando assim seus pais, mães e irmãos adotivos.
Cada um daqueles bebezinhos fofos gerados através de sementes cor de caramelo era um vetor para a praga
mais aniquiladora da galáxia: “A Devastação Púrpura”. Cada um daqueles bebezinhos fofos era o que existia
de mais avançado em armas biológicas, a excelência na arte do genocídio em massa.
Juvenal remexe e vasculha os bolsos de Luna e Péricles, retirando todas as chaves que poderiam lhe ser
úteis. Leva os corpos para dentro do helicóptero, aplica uma dose da pasta explosiva VX9 de Borblax e....
BUM !
O helicóptero explode.
Chama a polícia e diz que explodiram ao aterrisar.
Acorda com os tiras a obrigação de ir depor no dia seguinte na delegacia mais próxima, mas jamais
apareceu por lá. Retirou todos os bebês (ainda não formados completamente), colocou em uma pick-up de
transportar alfaces e rumou para o interior de Teresópolis, onde foi abduzido de maneira clássica por uma
belonave da esquadra carcaloniana.
Dois meses depois...
Um carro para em uma rua lamacenta de São João de Meriti. Salta do veículo um sujeito de terno e gravata
com um embrulhinho debaixo do braço;
Bate na porta.
Atende uma moça de uns 21 anos, mulata clara, cabelo alisado com uma trança que mal alcançava a metade
da nuca. Magra, mas não esquelética como uma modelo de passarela, só magra.
- O que o senhor quer ?
- Você é Vanessa Gonçalves ?
- Sou, sim senhor. O que o senhor quer ?
- Você trabalhou para Luna de Alencar Souto no Condomínio “The Castle” na Barra ?
- Sim senhor. E ela nunca teve motivos para reclamar de mim.
- Fique tranquila, é exatamente o contrário. Dona Luna gostava de você e lhe deixou uma lembrança em um
testamento informal encontrado nas coisas dela.
- Dinheiro ?
- Acho que não. Talvez jóias. É esta caixinha aqui. Eu não tenho autorização para abrir. Se você assinar o
recibo comprovando que eu entreguei você pode abrir, já que será sua.
Um pouco desconfiada, Vanessa lê o documento de uma lauda. Pensa ter entendido e assina.
O advogado entrega o pacotinho embrulhado e vai embora.
O pai chega.
- O que é isto ?
- Veja só, pai... Minha última patroa me deixou esta caixinha no testamento. O advogado que entregou disse
que podem ser jóias.
- Então vá abrir, menina !
Nervosa, a moça retira o papel... Abre a caixinha.... E...
- Sementes ?
- É.
- Vai ver ela achava que eu tinha “boa mão”.
- Olha, Vanessa... Eu acho simpático deixar sementes para alguém e você pode usar a caixinha para guardar
suas bijuterias. Tudo isto significa que ela gostava de você.
- É... Eu preferia jóias, mas não se pode ter tudo.
[ Riem ]
- Como ninguém sabe o que é isto, primeiro planta uma semente, depois, dependendo do que nascer, plante o
resto.
- Vai ver eu tenho “boa mão” mesmo, né, pai ?
- Vamos ver...
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E o tempo passa.
A fila dos interrogados caminha em sua marcha preguiçosa.
Algumas crianças organizam uma partida de futebol no hall do aeroporto usando um urso de pelúcia
perdido como bola.
Um turista sueco saca um violão e tenta arrecadar alguns trocados tocando velhos sucessos do ABBA.
Lá fora, técnicos da perícia entram e saem da carcaça negra do 747 como formigas albinas em um bolo de
chocolate.
Naquele micro-verso, o frio induzia ao sono e a letargia. Se fosse em um aeroporto marroquino com 42
graus à sombra, todos já estariam se estapeando faz muito tempo.
* * * * *
Rebeca se levanta.
Vai até o banheiro.
Lava o rosto.
Prende o cabelo com um elástico xexelento que trazia no bolso da calça.
Se surpreende ao descobrir que tantos cabelos brancos recorrentes haviam retornado à sua função eterna de
aborrecê-la com a simples existência.
Retorna à Sala Vip da American Airlines.
Encontra Valdirene folheando uma revista Time emprestada de um turista guatemalteco.
Educadamente, Valdirene oferece o entretenimento:
- Depois que eu terminar, quer ler ?
- Não, tô indo embora.
- E vai passar como por aquela gente toda que investiga a explosão do avião ?
- Quem você pensa que explodiu o 747 para forçar este encontro acidental com você ?
- Eu não acredito. Parte do que você faz é real, mas parte é o velho teatro das ciganas e seus colares, dos
faquiris e suas cobras e dos mágicos de salão com seus coelhos e suas assistentes loiras reluzentes.
Rebeca ri.
- Eu vou indo, mas... Não se esqueça. Mais cedo ou mais tarde eu passo na sua casa para pegar meus
honorários.
E então, Rebeca segura as duas malas. Não sorri. Não torce o nariz como Samantha ou pisca os olhos como
Jeannie. Neva lá fora.
BANF !
O cheiro de enxofre e de chifre de bode queimado empestiam toda a Sala Vip da American Airlines.
Aparentemente, ninguém percebeu a partida da bruxa, exceto Valdirene. No fundo, a executiva já esperava
que Rebeca se retirasse de alguma forma espetacular, cinematográfica.
Rebeca não parecia o tipo de pessoa que esperaria horas para ser entrevistada por um burocrata canadense
para, só aí, recuperar a Liberdade.
Apesar de que, usar a palavra “Liberdade”, para ela, caracterizava um eufemismo de humor negro com um
sarcasmo extremamente cruel.
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