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LITERATURA COMPARADA E LITERATURA MUNDIAL: DESTAQUE ÀS

SEMELHANÇAS ENTRE OBRAS E ÀS SUAS PECULIARIDADES1

Mylena de Lima Queiroz


myi@hotmail.com.br

RESUMO

A Literatura Comparada, como parte dos Estudos Comparativos Interculturais, como classifica
o CNPq, tem levado obras ao conhecimento de leitores de diversos países através das
relações estabelecidas entre produções literárias distintas. Esse campo da Teoria Literária,
atento à multiplicidade da literatura mundial, tem, portanto, frequentemente se deparado com
novas demandas literárias e culturais. Dessa maneira, esse artigo se propõe a uma breve
explanação sobre o campo de Estudos Literários nomeado por Literatura Comparada, tendo
em vista a sua relação com a literatura mundial.

Palavras-chave: Estudos Literários. Literatura Mundial. Literatura Comparada.

1. INTRODUÇÃO

Se queres ser universal, começa por pintar a


tua aldeia. Liev Tólstoi

A epígrafe do escritor russo Tólstoi (1928 - 1910) compreende certa


universalidade no trato para com questões próprias de uma cultura, as quais se
relacionam fortemente, sejam em seus âmbitos linguísticos, discursivos, sejam
nos artísticos. À luz da Literatura Comparada, costumeiramente, é possível
adentrar a uma nova cultura, sendo viável certa analogia vinda à tona com
base em aspectos e elementos que aproximam obra de distância quilométrica,
no que se refere aos seus ambientes de produção, a uma cultura que nos é
mais inteligível, e, só então, partimos ao mundo da obra que nos era distante,
agora se fazendo compreensível, de modo a possibilitar reflexões sobre
questões interculturais.

1 Artigo apresentado à professora Doutora Sudha Swarnakar, da disciplina Tópicos


Especiais em Teoria Literária: Literatura Mundial - Cultura e Tradição, do Programa de
Pós-Graduação em Literatura e Interculturalidade da Universidade Estadual da
Paraíba (PPGLI/UEPB).

1
Dessa maneira, as publicações na área de Literatura Comparada dizem
respeito, dentre outras questões, a relações literárias entre tradições e outras
características, isto é, comumente notamos como produções da área “Artigos
comparativos (...) de estudos entre autores e relações literárias na e entre a
tradição ocidental”2 [e/ou oriental]. De certa forma, é compreensível a falta de
ênfase a esse tipo de estudo nas academias, visto ser necessário ao
especialista em tal área, para além de um conhecimento de obras literárias as
mais diversas, um conhecimento linguístico profundo dos termos das obras a
serem analisadas. Nesse sentido, além de conhecer literaturas dos mais
variados países, seja da Índia, das Coreias, da China, da Rússia, do Irão, da
Noruega, do México, de Angola, da Austrália – e de tantos outros -, faz-se
necessário o conhecimento de certos termos que, tendo de origens culturais
muito específicas, apresentam-nos certas condições culturais que dão um teor
único, peculiar, às obras. Como bem diz Bassnett: [No campo da Teoria
Literária, infere-se que] “a maioria das pessoas não começam pela Literatura
Comparada, mas terminam com ela de alguma maneira ou outra (...)” 3

A ideia do termo cunhado em 1927 por Goethe, Weltliterature (literatura


mundial), “empregue para indicar o tempo em que todas as literaturas se
uniriam uma só, traduz o ideal da unificação de todas as literaturas uma só
grande síntese, em que cada nação desempenhasse o seu papel num concerto
universal” (WELLEK e WARREN, 2003, p. 57), apesar de bela, guarda consigo,
quiçá, certa dificuldade, dado o fato que a proposta de que os países
abandonem a “nacionalidade” da obra em prol de uma literatura mundial é um
tanto complicada. Mesmo Wolfgang von Goethe (1749 – 1832), autor da versão
do mito alemão de Fausto com maior número de exemplares vendidos em todo
o mundo, não fugiu à nacionalização de sua literatura. Na Alemanha nazista, a
peça Fausto e Mephisto, baseada em seu Fausto – Uma tragédia (1808), foi

2 Original: “Comparative articles about (…) studies between authors and literary relations within
and beyond the Western tradition”, [tradução nossa]. BEEBEE, O. Thomas. Comparative
Literature Studies. Disponível em: http://www.psupress.org/journals/jnls_cls.html

3 Original: "Most people do not start with comparative literature, they end up with it in
some way or other". BASSNETT, Susan. Comparative literature: a critical
introduction. Oxford: Blackwell, 1993.

2
apresentada imensuráveis vezes com a proposta de que fosse possível
valorizar os autores nacionais, nesse caso, evidentemente, de maneira
imprudente, como sustenta a narrativa do livro do filho do também escritor
Thomas Mann, Klaus, em Mephisto4.

Essa busca por uma nacionalização da cultura não é exclusiva dos


regimes nacionais socialistas, certamente, ainda que no Brasil tenha ocorrido
algo de qualquer semelhança com o movimento Verde-Amarelismo, de
inclinação fascista e ufanista. No entanto, mesmo que na contramão desses
pensamentos, é impossível realizar um estudo com obras como Potiki (1896),
de Patricia Grace, sem atentar às suas especificidades. No entanto, isso, de
maneira alguma, se adequa ao isolacionismo literário, algo “combatido” pela
Literatura Comparada. Compreender esse aspecto é, por conseguinte, um dos
primeiros passos em direção aos Estudos Literários Comparativos.

Em Potiki a premiada autora traça um painel de uma cultura e de sua


resistência contra o imperialismo violento a que o seu povo foi submetido.
Nesse sentido, é possível, desde já, imaginar que obras de outros âmbitos
poderiam ser eleitas para um estudo comparado com a de Patricia Grace,
como Tenda dos Milagres (1969), de Jorge Amado. Após uma análise desse
campo de intersecção, em relação à repressão, em seguida, porém,
evidenciam-se as peculiaridades, isto é: o livro de Grace é um mergulho na
Austrália dos Maoris, inclusive linguisticamente - termos como “tipunas”
(ancestrais), “wharekai” (refeitório), “pakeha” (homem branco) compõem o
mundo da obra; por outro lado, no livro do autor baiano, será a cultura afro-
americana que nos virá aos olhos – passamos por elementos como o
candomblé, a capoeira, os afoxés, o samba de roda nas ladeiras de Salvador.
Em Potiki os maoris chamam o homem que quer comprar as terras da família
para fazer um campo de golfe e outros espaços que nenhuma relação têm com
a cultura maori de “Dollarman”. A condição de imposição e de imperialismo
perpassa a obra da autora de maneira peculiar, mas a história de tantos países
leva a marca de colonizações passadas. Aliás, basta lembrar que Kosovo ainda
é dependente da Sérvia ou que a Palestina, não reconhecida como nação, é

4 Ver MANN, Klaus. Mephisto, Roman einer Karriere. Reinbek: Rowohlt, 1981.

3
parte de Israel, e compreender que o “Dollarman” estão em mais lugares que
apenas na Austrália.

Pensando em como tanto Potiki quanto Tenda dos milagres podem ser
classificadas como Literatura Mundial, é possível, assim, aplicar tópicos e
temas comparativos dando espaço tanto às especificidades das obras quanto
às suas semelhanças, em um trabalho de comparação entre que surge destas
àquelas. Esse tipo de estudo nasce, assim, de características que unem obras
aparentemente de poucas conexões, como uma sobre nativos neozelandeses
e uma sobre a cidade brasileira considerada a mais negra do mundo, cujos
estudos possibilitam uma imersão cultural no que diz respeito aos âmbitos das
produções literárias escolhidas para além do óbvio: apresenta-se a Nova
Zelândia aos brasileiros e o Brasil à Nova Zelândia, ou, ainda, ambos ao
Mundo.

2. LITERATURA COMPARADA E LITERATURA MUNDIAL: NOVAS


PERSPECTIVAS

Como temos visto, a Literatura Comparada diz respeito ao estudo de


comparação entre textos, evidentemente literários, tomando como base certos
critérios que podem dizer respeito, em certos casos, à “filiação” de certas
obras, mas não apenas. A título de exemplo, com base nessa questão é
possível compreender, aqui em uma ilustração curta, que certos Folhetos
Nordestinos têm uma relação intercultural bastante complexa com algumas
produções europeias. Isto é, remetendo-se a que os folcloristas chamam de
Literatura tradicional, da qual, segundo Câmara Cascudo, recebemos impressa
há séculos em pequeninas novelas desde Portugal com títulos como Donzela
Teodora, Imperatriz Porcina, Princesa Magalona, João de Calais, Roberto do
Diabo, História do Imperador Carlos Magno e dos 12 pares da França, de
origem erudita, fora tradicionalmente adaptadas às redondilhas menores e
maiores, impressas em folhetos nordestinos.

Essa literatura chegou com temas diversos e com o passar dos anos e
através de suas leituras, tornaram-se bases para versos cantados. Leandro

4
Gomes de Barros, um dos mais importantes cordelistas brasileiros, reelaborou
Donzela Teodora, intitulando o seu folheto por História da Donzela Teodora
(1891):

Eis a real descrição

da história da donzela

dos sábios que ela venceu

e a aposta ganha por ela

tirado tudo direito

da história grande dela (...)

Caro leitor escrevi

tudo que no livro achei

só fiz rimar a história

nada aqui acrescentei

na história grande dela (...)

muitas coisas consultei

(BARROS, 1891, p 10)

René Wellek e Austin Warren, em Teoria da literatura e metodologia dos


estudos literários, asseveram que esse tipo de relação é passível de análise à
luz da Literatura Comparada, ainda que costume ficar restritos aos campos do
folclore (2003, p.58), mas que esse tipo de estudo seria apenas uma das
vertentes da Literatura Comparada. Outra possibilidade seria uma relação entre
obras distintas, geralmente duas, tomando-se aspectos formais como
semelhantes, em busca de suas diferenciações sendo esse “o sentido
estabelecido pela escola dos comparatistas franceses, (...) que tem prestado
atenção – por vezes mecanicamente, por vezes com considerável finura – a
questões como as da reputação de (...) Carlyle e Schiller em França” (WELLEK
e WARREN, 2003, p. 59), mas, ainda para os autores, os ecos e reverberações
das obras em lugares distintos são poucas vezes considerados.

5
Entretanto, o próprio campo de estudo tem dado ênfase às questões que
mais afligem e se evidenciam na nossa época, e, desta maneira, nota-se o
destaque que a Literatura Mundial tem nessa compreensão de possibilidades
da Literatura Comparada. A CLCWeb: Comparative Literature and Culture se
faz primordial para compreender esse processo. Se buscarmos a edição de
Setembro de 2015, encontraremos vinte e duas produções textuais acadêmicas
cujo tema central é Life Writing and the Trauma of War (2015). Ainda que,
certamente, o tema Guerra tenha perpassado, e ainda o faça, a condição
humana por todos os tempos, o artigo Women Writing for Other Women in
Colombia’s Current Armed Conflict, de María Mercedes Andrade, compara Las
mujeres en la guerra (2000), de Patricia Lara e Las viudas del conflicto armado
en Colombia: Memorias y relatos (2006), de Patricia Tovar, cujas produções,
uma com foco em uma maior popularização, fundindo literatura a alguns relatos
recolhidos, enquanto a outra, com um público bem mais acadêmico, tem
escritos que refletem sobre as implicações no mercado editorial, têm, como se
nota, diferenças evidentes . Ainda assim, “Andrade argumenta que ambos os
textos são valiosas tentativas de representar as experiências de mulheres
colombianas em tempos de guerra.” 5 Evidenciando, portanto, similaridades
entre as produções, bem como distinções, peculiaridades.

Já em outro artigo da mesma edição citada, intitulado The Korean War,


Memory, and Nostalgia, Won-Chung Kim analisa o quanto a questão da
migração ainda perpassa a cultura coreana, ao comparar o livro publicado em
1979 por Wonil Kim's 도요새에 관한 명상 (Dreaming of the Snipe / Meditation
on a Snipe) e 유령 (The Ghost), escrito por Hui-jin Kang's, em 2011. A análise
possibilita compreender que, “devido à guerra, dez milhões de coreanos foram
deslocados e separados de suas famílias e eles lutam contra o trauma da
guerra.”6, trazendo à tona, a partir dos estudos literários, que comparando
períodos e Coreias distintas é possível identificar essa condição traumática a
qual, após a diáspora e com sucessivas tentativas de migrarem ao Sul,

5 Original: “Andrade argues that both texts are valuable attempts to represent the
experiences of Colombian women in wartime.” ANDRADE, María Mercedes. Women
Writing for Other Women in Colombia’s Current Armed Conflict. Literature and Culture
17.3 (2015): Disponível em: http://dx.doi.org/10.7771/1481-4374.2680

6
inclusive atuais, muito diz sobre os coreanos. Nesse sentido, é possível
destacar que:

Comparar é um procedimento que faz parte da estrutura de


pensamento do homem e da organização da cultura. Por isso,
valer-se da comparação é hábito generalizado em diferentes
áreas do saber humano e mesmo na linguagem corrente, onde
o exemplo dos provérbios ilustra a frequência de emprego do
recurso. A crítica literária, por exemplo, quando analisa uma
obra, muitas vezes é levada a estabelecer confrontos com
outras obras de outros autores, para elucidar e para
fundamentar juízos de valor. Compara, então, não apenas com
o objetivo de concluir sobre a natureza dos elementos
confrontados mas, principalmente, para saber se são iguais ou
diferentes. É bem verdade que, na crítica literária, usa-se a
comparação de forma ocasional, pois nela comparar não é
substantivo. (CARVALHAL, 2006, p. 8)

Disse Goethe que “Como tudo de valor supremo, [arte] pertence ao


mundo inteiro e pode apenas ser promovida por uma livre e geral interação
entre contemporâneos”7. É só nas últimas décadas, no entanto, que a literatura
comparada ganha espaço mais central nas grandes universidades do Brasil.
Em especial no continente Europeu e também nas instituições de nível superior
estadunidenses, os estudos geraram renomadas disciplinas no campo das
Letras. Em uma breve síntese, informa-nos ainda Tania Franco Carvalhal em
Literatura Comparada, Doutora em Teoria Literária e Literatura Comparada pela
Universidade de São Paulo, que:

Se remontarmos aos estudos considerados clássicos neste


campo e a propostas como a que está expressa no primeiro
número da Revue de Littérature Comparée, criada em 1921 por

6 Because of the war as many as ten million Koreans were displaced and separated from their
families and they struggle with war trauma. [tradução nossa]. KIM, Won-Chung. The Korean
War, Memory, and Nostalgia. CLCWeb: Comparative Literature and Culture 17.3 (2015):
http://dx.doi.org/10.7771/1481-4374.2786

7 Original: “[Kunst] gehöre wie alles Gute der ganzen Welt an und könne nur durch
allgemeine freie Wechselwirkung aller zugleich Lebenden, in steter Rücksicht auf das,
was uns vom Vergangenen übrig und bekannt ist, gefördert warden.” [tradução nossa].

7
Fernand Baldensperger e Paul Hazard, veremos que, na
época, os estudos comparados seguiam duas orientações
básicas e complementares. A primeira era a de que a validade
das comparações literárias dependia da existência de um
contato real e comprovado entre autores e obras ou entre
autores e países. A identificação de tais contatos abria caminho
para os estudos de fontes e de influências; com isso, as
investigações que se ocupavam em estabelecer filiações e em
determinar imitações ou empréstimos recebiam grande
impulso. Ao mesmo tempo, crescia o interesse pelo
acompanhamento do destino das obras, a "fortuna crítica"
delas fora do país de origem. Multiplicavam-se as publicações
do tipo "Goethe na França", "Taine e a Inglaterra". A segunda
orientação determinava a definitiva vinculação dos estudos
literários comparados com a perspectiva histórica. Nesse
contexto, a literatura comparada passa a ser vista como um
ramo da história literária. Tal vinculação se deve ao fato de a
nova disciplina ter atraído de pronto a atenção de historiadores
literários, como Ferdinand Brunetièrc. Este, ao ministrar um
curso de literatura comparada cm 1890-1891, lança os
pressupostos de uma história dos grandes movimentos
literários no mundo ocidental com base na comparação entre
eles. Outro conhecido historiador literário francês, Gustave
Lanson, investiga, na mesma época, a influência da literatura
espanhola nas letras clássicas francesas e Emile Faguct, ao
dirigir a Revue Latine, de 1902 a 1908, adotará, como subtítulo
da publicação, "journal de Littérature Comparée". ( 2006. P. 14)

A Literatura Comparada é, portanto, uma área relacionada aos


chamados Estudos Culturais. A Literatura Mundial, como objeto de estudo,
classificação cara àquela, tem sido apresentada também como de grande
importância frente às problemáticas desencadeadas pela própria condição do
homem globalizado, que se depara com entraves culturais, que por vezes os
cria, cotidianamente. Nesse sentido, como asseverou Franco Moretti em seu
artigo Conjecturas sobre a Literatura Mundial: “literatura mundial é —
inevitavelmente — um estudo da luta pela hegemonia simbólica ao redor do
mundo” (2001. p. 178), fazendo com que os estudos de Literatura Comparada
com obras de literatura mundial sejam, portanto, uma luta contra essa
hegemonia.

3. EM DEFESA DA LITERATURA MUNDIAL

8
No prefácio da obra referência para os estudos da área que aqui
destacamos, Comparative Literature: Theory, Method, Application, de Steven
Tötösy de Zepetnek, Elizabeth Dahab informa que o livro possui mais de
seiscentas obras, tanto literárias quanto teóricas, citadas. Ao fazermos o
download da obra de Tötösy pela plataforma do CLCWeb, a informação dada
pelas estatísticas do google foi de que, ao mesmo instante, alguém também o
fazia na Finlândia.

Certamente apenas em uma breve ilustração, é viável vislumbrar a


atuação da Literatura Comparada no que diz respeito a essa relação entre
produções literárias, evidenciando a Mundialização da Literatura, como quisera
ver Goethe. Apenas na plataforma do CLCWeb, segundo se apresenta,
ocorreram dois milhões, cinquenta e cinco mil e cinquenta e quatro downloads
das revistas acadêmicas de Literatura e Estudos Comparados.

Figur
a 1: Estatísticas de downloads do CLCWeb

Por outro lado, ainda que saibamos que os “escritores africanos, sul-
americanos e asiáticos têm sido lidos em todo o mundo, muitos deles são
migrantes e estão no exílio, como Chinua Achebe, Wole Soyinka, Ngugi wa
Thiong’o, ou o Nobel chinês que vive na França, Gao Xingjian.” (GNISCI, 2010,
p. 09). Deixando à parte a própria questão política do Nobel, é possível dizer

9
que essas arbitrariedades são parte do lado obscuro que a globalização
carrega consigo, fruto, em verdade, dos próprios seres humanos, o que nos faz
pensar que “descolonizar e mundializar as mentes torna-se a única prática civil
que podemos contrapor a essa nova forma de ‘vontade de potência’”. (Ibid., p.
10)

No romance gráfico Persépolis (2007), a iraniana Marjane Satrapi


evidencia como foi sua infância tendo presenciado a queda da monarquia
autocrática pró-Ocidente em 1979 e o início de uma república teocrática
comandada por Ruhollah Khomeini. Estudando até então em uma escola laica
bilíngue, as crianças passaram, obrigatoriamente, a usarem véus e serem
separadas por sexo até mesmo na hora de subir escadas, além de,
obviamente, não poderem mais estudar em escolas cujo idioma remetesse à
cultura ocidental. Um país como o Irã, que tantas vezes foi palco de invasões,
agora vivia sobre o julgo institucionalizado de um “islã do subterrâneo,
esotérico e revolucionário” (SATRAPI, p. 04, 2007) herdeiro da invasão dos
árabes na Pérsia em 642. Esse cenário parece relativamente conhecido já dos
jornais ocidentais. Por outro lado, a leitura da obra não nos deixa no âmbito
supérfluo das relações interpessoais no trato para com o islamismo.

Pela necessidade de compreensão de cenários como esses, em A


literatura mundial como futuro da literatura comparada, como sugere o título, o
professor da Universidade de Roma, Armando Gnisci, articula-se em torno da
ideia de que a Literatura Mundial seja a própria perspectiva futura da disciplina
de Literatura Comparada. Para Gnisci, a defesa se dá em torno da condição de
abertura ao conhecimento do Outro, proporcionada pela literatura de outras
“aldeias”, universalisadas. Com base nesse ponto de vista, é possível inferir a
importância da leitura de obras como Persepolis, dado o cenário
superficialmente apresentado pela mídia padrão, que repudia de imediato
qualquer comportamento que não seja como ao Ocidente. Aos olhos e pelas
narrativas de Marjane, é-nos possível uma leitura que vai além do estereótipo
que apresentado dos seguidores do islamismo, costumeiramente associados
apenas ao Talibã e ao Wahhabismo, inclusive porque a própria criança a qual
acompanhamos o crescimento em meio ao regime de Khomeini é uma islâmica
- que queria ser profeta para abrandar os males do mundo.
10
Já em outra narrativa e em outro âmbito cultural, no conto popular
coreano de autoria desconhecida intitulado A Strange Memorial Ceremony,
parte integrante da obra Chung Hyo Ye (2010), um inspetor a caminho de
Kangwon precisava de um lugar para passar a noite e pediu a uma família que
realizava seu chesa8 que lá pudesse ficar, visto que era tarde. Um leitor que
desconhece o ritual estará se deparando com uma realização muito peculiar e
muito própria da cultura em questão. Além disso, no entanto, como sugere o
título, a cerimonia ocorre de maneira pouco usual mesmo para os coreanos. Ao
seguirmos com a narrativa, lemos sobre como é conduzido o chesa, através
das falas do filho que perdeu o ente: "Pai, estamos em frente ao portão. Tenha
cuidado para não tropeçar no degrau.
Este é o quintal. Lembre-se desta pedra irregular.
Este é o pátio. Tire os seus sapatos."9

Só ao prosseguirmos é que identificamos a condição específica da


cerimônia: visto que o falecido pai era cego e em vida os filhos precisavam
guia-lo, a chesa ocorria de maneira semelhante, e os filhos guiavam o espírito
do pai, com a fala, para que todos se reunissem em tal dia.
Ao concluir o artigo The Goethean Concept of World Literature and
Compative Literature, Hendrik Birus, professor de estudos germanísticos e
Literatura Comparada pela Universidade de München, argumenta que:

O que se observa não é a substituição das literaturas nacionais


por uma literatura mundial, mas o rápido florescimento de uma
multidão de literaturas europeias e não europeias e,
concomitantemente, a emergência de uma literatura mundial
(principalmente em traduções em inglês) como dois aspectos
de um mesmo processo. Compreensão dessa dialética -
Isso não deveria ser um dos principais alvos da Literatura
Comparada hoje?10 (BIRUS, 2000, p. 8)

8 Cerimônia memorial para ancestrais. Quando a chesa é performatizada, coreanos


acreditam que os espíritos de seus antecessores vêm para sua casa e saboreiam a
comida preparada para eles. [Memorial ceremony for ancestors. When a chesa is
performed, Koreans believe that the spirits of their deceased ancestors come to their
house and enjoy the food they prepare for them.] (Diamond Sutra Recitation Group.
Chung Hyo Ye. 2010, p. 20)

9 “Father, we are in front of the gate. Be careful not to trip up on the step. This is the yard. Mind
that jagged rock. This is the patio. Take off your shoes.” [Tradução nossa]. (Ibid. p. 21)

11
Dada a indagação, e toda a abordagem anterior sobre literatura mundial,
é possível destacar que a estranheza é, provavelmente, o primeiro sentimento
que surge ao nos depararmos com diferenças culturais tão notórias. Contudo,
as leituras de obras dessas naturezas possibilitam-nos um contato primeiro,
não significando prontamente que o respeito surgirá, mas, surtem, certamente,
efeitos, quiçá positivos, nesse espaço intercultural.

4. CONCLUSÃO

Em Matadouro 5 ou a cruzada das crianças (1969), o ex-combatente


Billy Pilgrim que, assim como o autor da obra, assistiu ao bombardeio de
Dresden, justifica sua motivação por escrever sobre o tema em tal passagem:
“O Senhor fez chover enxofre e fogo dos céus sobre Sodoma e Gomorra; e Ele
destruiu as cidades e toda a área ao redor e todos os moradores das duas
cidades e tudo o que crescia de suas terras” (VONNEGUT, 2005, p. 25).
Seguindo, acrescenta: “A mulher de Lot, claro, foi orientada a não olhar para
trás, onde todas aquelas pessoas e suas casas um dia estiveram. Mas ela
olhou para trás, e eu a amo por isso, porque foi uma atitude muito humana”
(Ibid., p. 26). Sua observação não se trata de um desrespeito a qualquer
crença, mas de associação a uma narrativa bíblica de destruição ao
bombardeiro de Dresden, no qual resultou em duas vezes o número de mortes
que houve com a bomba de Hiroshima, de ter sobrevivido e precisar, nesse ato
de olhar para traz, narrar.

Como evidenciamos, não é por acaso que a Teoria Literária tem estado
profundamente relacionada à Literatura Mundial nos últimos anos, inclusive

10 Original: “what we (…)observe is not the replacement of national literatures by


world literature, but the rapid blossoming of a multitude of European and non-European
literatures and the simultaneous emergence of a world literature (mostly in English
translations) as two aspects of one and the same process. The understanding of this
dialectic -- should not this be one of the main targets of comparative literature today?”
[tradução nossa].

12
porque os próprios meios e as novas narrativas midiáticas têm se apresentado
como sendo necessárias novas conjecturas – e a Literatura Mundial sempre,
ao passar das produções, as abarca. Ainda que o termo Weltliteratur tenha sido
cunhado por Goethe há mais de dois séculos, a própria globalização tem dado
um entorno muito peculiar às novas literaturas, e, atentas às mudanças, as
Literaturas Comparada e Mundial fazem-se mais que necessárias nesse
complexo e cotidiano cenário pós-moderno de extrema globalização, mas
também de desconhecimento das culturas alheias e de xenofobia.

O Massacre de Toxcatl ocorreu quando os astecas realizavam a


cerimônia aos deuses Tezcatlipoca e Huitzilopochtli, isso porque os espanhóis
optaram por classificar sacrifícios humanos como algo abominável, mas lhes
parecia justiça humana fundar territórios já ocupados tendo o massacre de
mexicas como pilar. Isto é, a história de muitos povos se construiu com base
em narrativas muitas vezes forjadas nas habilidades de se argumentar a
respeito da inferioridade de certos grupos.

Ainda que tenhamos evidenciado a condição introdutória da pesquisa


que gerou esse artigo, vale ressaltar ainda que o curto espaço impossibilita
apresentar de forma mais profunda a Literatura Comparada, mas tentamos
expor a sua importância pensando no cenário atual acadêmico, em específico
pela ênfase que essa tem dado à Literatura Mundial, buscando compreender a
formação de estereótipos e, concomitantemente, anulando-os, sem qualquer
proposta de fomentar visões xenófobas daqueles que desconhecem rituais,
comportamentos e culturas outras, mas que as ridicularizam.

Dessa maneira, a Literatura Mundial convida-nos às belezas das


pinturas de aldeias distintas, sejam de maoris, sejam de chechenos, abrindo as
portas à mundialização literária e cultural, além da possibilidade de olhar para
trás, de olhar para o Outro, humanamente, no melhor sentido possível.

13
REFERÊNCIAS

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Colombia’s Current Armed Conflict. CLCWeb: Comparative Literature and
Culture 17.3 (2015): Disponível em: <http://dx.doi.org/10.7771/1481-
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[Tipografia s.n.], 1891.

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Blackwell, 1993.

BIRUS, Hendrik. The Goethean Concept of World Literature and


Comparative Literature. CLCWeb: Comparative Literature and Culture 2.4
(2000): Disponível em: http://dx.doi.org/10.7771/1481-4374.1090

CARVALHAL, Tânia Franco. Literatura comparada. - 4.ed. rev. E ampliada. -


São Paulo : Ática, 2006.

Diamond Sutra Recitation Group. Chung Hyo Ye: Tales of filial devotion,
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Diamond Sutra Recitation Group, 2010.

GNISCI, Armando. A Literatura Mundial como futuro da Literatura


Comparada. E-scrita Revista do Curso de Letras da UNIABEU Nilópolis, v. I,
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Comparative Literature and Culture 17.3 (2015): Disponível em:
http://dx.doi.org/10.7771/1481-4374.2786

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14
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SATRAPI, Marjane. Persépolis. Trad. Paulo Wernek. São Paulo: Cia das
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VONNEGUT, Kurt. Matadouro 5. Porto Alegre: L&PM, 2005.

WELLEK, René; WARREN, Austin. Teoria da literatura e metodologia dos


estudos literários. Tradução Luís Carlos Borges. São Paulo: Martins Fontes,
2003. (Coleção “Leitura e Crítica”)

IMAGENS

Fig. 1. Estatísticas de download do CLCweb. Disponível em:


http://docs.lib.purdue.edu/clcweb/ Acesso em: 30 de dez. 2016.

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