É sabido, com precisão estatística, que o número de
pessoas em redor do leito de um moribundo é diretamente proporcional ao dinheiro e bens detidos por ele – a herança que deixará, portanto. O mesmo se pode dizer sobre a qualidade afetiva e de cuidados médicos e outros que ao pobre coitado serão proporcionados nessas circunstâncias de passagem, seja esta certa ou eventual. Que sensação de solidão deverá emergir na sua mente e coração se um moribundo com fortuna material souber desta verdade científica e não conseguir abstrair-se dela! Mas, claro, tem sempre ao seu dispor o artifício mental muito humano, tão usado por todos nós em diferentes circunstâncias e a propósito de tudo e de nada, de se julgar um caso especial e quase único, uma exceção a esta regra. E, até, em pura tese, o nosso concreto e terminal paciente poderá ser uma dessas raras exceções, mas nunca alcançará o ensejo de o comprovar inequivocamente. Jamais terá a oportunidade de demonstrar aos outros, e a si próprio, o que seria o mais necessário e importante, que quem o rodeia lá está por genuíno afeto, por verdadeiro temor de perda, primordialmente por amor e desejo de lhe amenizar aquela hora. É que as verdadeiras razões e motivações dos humanos, em cada situação concreta, de ninguém são conhecidas com segurança. Ou, se quiser, caro leitor, conhecer as tendências gerais do comportamento humano não nos garante à partida a explicação de cada comportamento, em cada momento, de cada exemplar em concreto da nossa espécie. Mas, avançando, pergunto-me, e os que têm muitos bens e dinheiro e ainda não estão de pés para a cova? O que fazer com aquela científica e estatística sentença universal e, provavelmente, opino eu, intemporal? Refiro-me àqueles que obtêm dos outros o cumprimento das suas vontades José, por Pôncio Arrupe 2 precisa e essencialmente porque possuem fortuna maior do que os demais? Como poderão fugir a esta solidão inevitável? De novo, considerando-se uma exceção? Ou alegando a superioridade moral e ética, ou o seu superior conhecimento e experiência, ou o bem comum, das suas ordens e vontades? Ou o – suposto, claro! - benefício daqueles próximos que o rodeiam, alvos das suas instruções e veículos dos seus desejos? Uma coisa é certa, os filhos soem ser as vítimas mais frequentes nestes últimos casos. Talvez por isto, não hajam desmandos mais exasperantes e aviltantes do que os dos materialmente afortunados mais estúpidos e ignorantes. Serão as vítimas e reféns preferenciais, e as mais cegas e irredutíveis, dos artifícios mentais a que me referi. Mas, no entanto, terão o seu leito de morte rodeado de uma pequena multidão, e poderão atribuir a esse facto as explicações que melhor lhes convirem… Livres de qualquer escrutínio rigoroso, imparcial, digamos, científico. Aliás, tal como o fizeram durante toda a sua vida ativa. A clarividência é madrasta, é contundente, é implacável. Na vida e na morte. A mentira, a que nos dizem e, também, a que nos dizemos, pode ser piedade doce, morna, suave, afável, gentil, clemente… Pode ser mel! Pode ser vinho tinto quente com canela! Na vida e na morte. Por outro lado, quanto aos moribundos sem fortuna - não nos esqueçamos deles -, ser-lhes-á consolador saberem dos verdadeiros e crus motivos da sua aparente maior solidão em comparação com os outros mais afortunados? Não creio. Enfim, é caso para se cunhar um novo aforismo, uma nova máxima: Verdade, para que te quero?!!! José não sabe da tal estatística. E mesmo que lha dessem a conhecer, não seria capaz de dela retirar as ilações mais imediatas. Ainda bem! Para ele… Mau para o
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mortificado António, que muito tem exasperado face à sua total impotência perante a pura e simples ignorância e estupidez. A tal condição de ignorância e estupidez que pode ser providencial e reconfortantemente piedosa para o seu portador. Logo, quase impossível de desmontar. Afinal, quem escolhe sofrer se a impressão e crença de não sofrer implica alcançar um pouco menos de sofrer? Quem sabe e sofre da dor que tem se crê que não a tem? Quem, quando no meio de outros, se verá só se nunca se soube de estar só, se nunca provou de se encontrar desacompanhado o tempo suficiente para se deparar de caras e em silêncio com a sua solidão? Em suma, quem sabe que está só se nunca sequer provou de outra circunstância? Que sabe o escravo de ser livre se nunca experimentou a liberdade? Que sabe o cego de ver se nunca viu? Ou seja, que sabe o escravo de não se ser livre, que saberá o cego de se não ver?…
José, sentado e imóvel na sua cadeira, soltava uma
risada prolongada, incontida, desbragada e alvar, perante aquela queda com efeitos muito sérios, pelo menos na aparência, na perspetiva de toda a gente presente. Os que viram com os seus próprios olhos, muitíssimo consternados, logo se levantaram e aproximaram de Maria, mulher de José, caída no chão, sangrando da testa e ora gemendo, ora lançando gritos e lamúrias pungentes enquanto passava freneticamente a mão na zona superior lateral do glúteo direito. Os restantes convidados de José, aqueles que apenas se deram conta do sucedido pelos gritos da pobre sinistrada, ficaram atarantados e sem perceber minimamente o que pudesse ter sucedido para causar acidente tão brutal e espetacular. Maria, ao descer uns três degraus de umas escadas de mármore polido que davam acesso da cozinha ao quintal, onde se encontravam todos os convivas, havia escorregado e se desequilibrado. Na
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queda, bateu violentamente no vértice saliente de um dos degraus e estatelou-se desamparada no chão, onde foi bater com a testa na laje de pedra que cobria o terreno naquela zona. Mesmo já depois terem cessado as mais sonoras manifestações de dor de Maria, e de a terem, a custo, sentado numa cadeira, restando apenas alguns fios de sangue correndo-lhe pela face como sinais evidentes do sucedido, José mantinha-se sentado e continuava a rir de forma incontida e convulsiva, em descontrolo total. António sentiu um forte constrangimento perante tamanha manifestação de insensibilidade e falta da prestação dos cuidados que se impunham a qualquer ser humano, particularmente a um cônjuge. Porque, naquela época, ainda fazia muita cerimónia com todos os presentes, ficou paralisado e mudo, estarrecido, mesmo, sem saber como se comportar. Alguns dias depois, ainda matutando no insólito sucedido, concluiu que aquele deveras grotesco comportamento de José o chocou enormemente, causando- lhe visceral indignação, ainda mais porque foi quase o seu primeiro contato com a personagem, não conseguindo descortinar naquele momento qualquer explicação razoável para o mesmo. Mas, com o devir dos anos, tendo presenciado alguns outros episódios semelhantes, percebeu que se tratou de uma reação de demarcação daquilo que José sempre percecionava intimamente como o saliente e essencial: o ridículo do sucedido, o risível naquele acontecimento inesperado, o que entendia que poderia ser considerado vergonhoso para si. E assim é: José, hipersensível ao que os outros em geral podem pensar dele, sente nestas ocasiões avassaladora vergonha, e impulsivamente age demarcando-se ostensivo, preocupando-se apenas com a sua imagem, indiferente aos efeitos, até eventualmente graves, no acidentado.
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Sim, José preocupa-se sobretudo com a sua imagem, em todas as situações, e sacrifica quem for preciso para a tentar manter impoluta. É como se fosse um animal acossado em permanência pelo risco do ridículo, sempre tomado pelo pânico que os outros lhe possam apontar o dedo em censura. Para isso, não hesita em, aos olhos dos outros, se dissociar de quem for preciso no momento, inclusive de seus próprios filhos e familiares próximos. Para o lograr, trai sem hesitação; Mentalmente e, se necessário, por palavras e atos. Uma ocasião houve em que alguém, não sem alguma malévola intenção, lhe mostrou um pequeno artigo, saído num site de intriga social, que punha a completo ridículo uma sua familiar próxima, Margarida de seu nome. Apesar dos factos aduzidos no referido texto serem, em parte, manifestamente falsos, e a maioria deturpados, exagerados e olhados sob um ponto de vista, entre muitos outros possíveis, manifestamente malicioso, José preocupou-se única e exclusivamente com o seu medo da vergonha que poderia vir a sentir se mais alguém o viesse a interpelar enquanto familiar da personagem alvo do referido texto. Não se incomodou minimamente com a gritante injustiça perpetrada sobre Margarida. Não fez qualquer menção de argumentar, nem em privado, em defesa dela. Só a possibilidade da sua exposição ao ridículo o interessou e, por isso, em algumas conversas, indignado lançou invetivas, não contra o malicioso autor, mas sim contra Margarida, procurando dela demarcar-se. Aliás, como quase analfabeto que é, sempre atribuiu um enorme peso ao que quer que seja que se lhe apresente na forma escrita. Numa ocasião, ainda jovem adulto, cortou relações com um outro familiar, e isto durante décadas, só porque lhe passaram, por baixo da porta, maledicência referente àquele num papel escrito, de autoria não
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identificada. Isto apesar de nunca ter ficado, nem minimamente, a suspeitar de quem seria a autor daquilo que, veio mais tarde a saber ao certo, era pura calúnia. Nem assim reatou relações normais com a vítima, e jamais lhe ocorreu que lhe devia desculpas. Na sua perspetiva imatura, a culpa era inteiramente de quem havia escrito aquela folhinha que foi sub-reptícia e cobardemente enfiada por debaixo da sua porta. Mas nunca ficou a saber quem foi… Volvendo ao episódio da gargalhada incontida de José, António, vendo bem, não se lembra de alguma vez o ter visto a rir, a bom rir, de alguma piada – normalmente não as compreende -, ou de alguma situação engraçada ou divertida, ou, até, de algum programa humorístico – normalmente não os capta também, pelo menos aos de humor menos óbvio –, enfim, rir de divertimento, de simples e pura boa disposição. José só costuma fazê-lo de troça de outros, por motivos mesquinhos, ou em circunstâncias idênticas às do episódio referido, ou em jeito de fuga quando fica demonstrado preto no branco a absoluta imbecilidade e ignorância do que se atreve a dizer. Nestas ocasiões, solta uma gargalhada alvar interminável, sobrepondo-se às vozes argumentativas certeiras dos outros, como disfarce para o simples facto de se sentir sem capacidade de resposta e esmagadoramente humilhado por força do ridículo em que cai. Isto acontece sobretudo e com mais alarido quando está a ser observado por outros.
José sempre se orgulhou de ter muitos amigos. Mas todos
eles são, e sempre foram, relações iniciadas e mantidas exclusivamente por motivos dos seus negociozitos, e não por qualquer afinidade desinteressada e espontânea ou, sequer, por comunhão de gostos ou atitudes. São relações que nasceram e se alimentaram da troca de benefícios financeiros, de maior ou menor dimensão. Tão só. José, lá está, acredita que não. E também acredita que a
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subserviência que os seus familiares lhe votam se deve a afeto e respeito. Em síntese, José acha-se feliz. Aliás, podemos agora dizê-lo – já o sabemos e compreendemos na sua verdadeira e justa medida – José é feliz. Como os seus negócios são, e sempre foram, de caracacá, as suas relações também o são, e sempre foram. O nível intelectual e de carácter dos seus amigos é pouco apresentável: donos de casas de alterne disfarçadas de discotecas; corruptores de juízes em países do terceiro mundo; antigos chulos e prostitutas; corruptores naquele tipo de países de governantes e funcionários camarários; cabeleireiras e manicuras peitudas e rabudas bem casadas; mulheres e homens com pecúlio obtido por casamento com homens e mulheres mais velhos entretanto falecidos; foragidos da justiça de outros países, aguardando nesta terra de brandos costumes a prescrição de seus crimes; homens ricos casados em segundas e terceiras núpcias com mulheres muito mais jovens em atitude inequívoca de prostituição muito bem remunerada, em exclusividade, de serviço vinte e quatro sobre vinte e quatro horas, a prazo alargado, com termo certo - por certo! -, embora, à partida, indefinido; refugiados que em tempos se aproveitaram de outros países mais licenciosos quanto a diversas ilegalidades, agora em busca da reputação e respeito que jamais conseguiriam nos países de origem; fazedores de fortunas em países africanos em conluio com governantes corruptos, entretanto caídos em desgraça; herdeiros de fortunas postas a salvo entre portas porque obtidas à margem da lei no estrangeiro; etc.; e, numa proporção significativa, perfeitos inúteis que vivem exclusivamente de dinheiro herdado, ou recebido de outra forma mas sem esforço ou mérito algum. Como já foi referido, José faz mesmo questão de exibir e demonstrar publicamente que é senhor de uma vasta pletora de relações. E sempre o fez. Muita daquela gente
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em busca da respeitabilidade que não consegue conquistar noutros círculos tira partido da leviandade e apetência com que José utiliza o epíteto amigo. Naturalmente, quando algum é visivelmente apanhado nas malhas da Justiça, José afasta-se inapelavelmente, e só nessa altura. E em seu redor faz-se absoluto e eterno silêncio sobre o assunto. Para fazer ainda maior número, chegou ao ponto de convidar um vendedor de automóveis para um almoço de seu aniversário, que de lado nenhum conhecia, a quem havia comprado recentemente o seu último Mercedes. Vendedor esse que esfregou as mãos de contente, por certo, quando fechou negócio com José e conseguiu despachar uma viatura sobrante porque equipada com leitor de cassetes numa era em que já ninguém comprava carros com aqueles leitores, mas somente de cd. Quer dizer, ninguém com a exceção do ignorante e crédulo José. E isto apesar de um amigo dele, entendido em automóveis e a quem José havia pedido que o acompanhasse como conselheiro, lhe ter recomendado vivamente, na presença dos dois – José e vendedor -, que visse outras opções. Fez tábua rasa dessa recomendação, sem se incomodar minimamente, infligindo-lhe uma pequena humilhação pela desconsideração evidente em frente ao vendedor. E este ainda conseguiu que José lhe ficasse particularmente grato por, supostamente, lhe ter concedido um desconto especial. Desconto esse que era considerável mas que, afinal, estava previsto, fosse qual fosse o cliente que aceitasse levar aquela viatura. Tinha sido o pensado em antecipação para conseguirem despachar um carro que, de outro modo, seria muito difícil de vender. José não compra preço, compra desconto. Adora fazê-lo! E a sua ignorância ajuda-o a ficar tranquilo e satisfeito com as escolhas que, para a maioria um pouco mais informada, são absurdas. E, por maioria de razão, como vimos, para aqueles que ele assume como
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mais conhecedores do assunto ou, até, especialistas na matéria. António considera que, apesar de singelo e relativamente benigno, este é o episódio de que se recorda que toca em quase tudo sobre José, o mais sincreticamente ilustrativo da sua índole… Algumas pessoas, poucas muito rapidamente - as mais inteligentes e sem escrúpulos -, percebem, dentro de certos limites, que se consegue levá-lo a fazer o que se queira desde que se saiba explorar a sua necessidade extrema de aprovação utilizando os devidos salamaleques e bajulices encantatórios. Sim, é de encantamento que se trata. José sempre se sensibilizou sobremaneira quando o tratam acima da sua condição intelectual, social e reputacional. Por isso, por exemplo, quando vai a uma consulta médica, se aperalta quase como se estivesse a arranjar-se para ir a um casamento. Por vezes, faz alarde com orgulho das grandes festas que dá e, sobretudo, das que deu no passado, sublinhando a quantidade de convidados que compareciam, e a riqueza de muitos deles. Convidados esses que, já sabemos, o caro leitor já antevê, eram, em parte significativa, relações quase inexistentes, de que o exemplo do vendedor acima relatado serve de ilustração. No entanto, porque José se deixa afetar muito por qualquer crítica, embora nunca o revele de forma clara e direta, passou a conter-se no número de convidados a partir do dia em que um familiar mais jovem, e menos dado ao clima de subserviência e falso respeito generalizado, talvez apenas por simples inconsciência, lhe perguntou: - Mas já experimentou dar essas festas de aniversário, que costuma fazer em restaurantes, mas sendo cada convidado a pagar a sua refeição? Aliás, como quase toda a gente faz hoje em dia…
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José, profundamente magoado e envergonhado, emudeceu instantaneamente. As pessoas que o rodeavam, e ouviram a pergunta, também se silenciaram, em pesado embaraço. Terá sido um dos raros momentos, diria instantes, em que se defrontou de chofre, cruamente, a frio e, mormente, em público, com a amarga solidão, ainda que somente por visualização mental teórica em tese hipotética. Mesmo assim, podemos dizer que lhe foi esfregada na cara, à frente de “toda a gente”, uma verdade incómoda. Uma indignidade da parte do rebelde, irreverente e inconveniente e, até, implacável e impiedoso jovem familiar por afinidade. Desculpável somente porque já se encontrava algo sob o efeito do álcool, pensou António, mas era ainda uma época em que mal conhecia os dois.
Apesar de no seu círculo de relações sempre terem
pontuado inúmeras pessoas de vida relativamente tranquila e, sobretudo, anódina, sem trabalho ou profissão, limitando- se a gastar e a administrar, a maior parte com pouquíssima competência, dinheiro e bens recebidos, José, estando isso ao seu alcance, jamais permitiu que seus dois filhos enveredassem por esse tipo de existência. Isto apesar de sempre ter votado admiração desmesurada, que não é mais do que puro deslumbramento de pateta ignaro, àqueles que ostentam a sua condição de financeiramente ainda mais afortunados e, sobretudo, apenas mais gastadores do que ele. José não tem qualquer interesse e capacidade para manter conversação com outro tipo de pessoas. Não percebe como é ser rico de outra forma, não conhece e nunca conheceu esse mundo. Chega ao ponto de apontar aos filhos os modos de vida daquelas pessoas como algo admirável, em gritante contradição com a sua proverbial avareza militante para com a sua descendência. Admira noutros o que seriam as consequências óbvias daquilo que
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ele faz questão de lhes recusar. Mas, aparentemente, não se apercebe do absurdo. É, e sempre foi, feliz, lá está… Nunca entendeu que, desse modo, tem acicatado nos seus o deslumbramento e vontade desmesurada de se alcandorarem um dia, precisamente, àquela forma de estar na vida. O caminho mais curto e, sobretudo, o mais evidente, seguro e certo, seria, desde sempre, o de, um dia, usufruírem do dinheiro e bens de seu pai, e da sua herança futura. Entretanto, conseguirem casar-se com alguém contemplado com progenitores com fortuna e menos avaros do que o seu, também poderia ser uma boa contribuição para esse desiderato. Os seus dois petizes - sim, o termo petizes é apropriado, mesmo quando chegados à meia- idade - foram, deste modo, educados a confundir amor e desejo passional com deslumbramento e material cobiça… Precisando, porque foi sempre o exemplo que tiveram em casa e nos casais das relações de seus pais, verdadeiramente nunca observaram em outros o verdadeiro amor, e a verdadeira paixão avassaladora, telúrica. Apenas aprenderam o que presenciaram: a valorizar em absoluto as riquezas materiais e o que elas permitem aparentar, e, instintivamente, a oferecer a sua desmesurada consideração e estima às pessoas que as possuem e, sobretudo, lá está, que as exibem sem qualquer pejo; E a humilhar-se, se preciso for, para conquistar e preservar essas relações. António, que há muito que descreve só para si esta forma de vida com a figurativa frase, de autoria de outro mas, no seu entendimento, muito bem aplicada, “Dar o cú por uma semana no Algarve”, diverte-se para dentro imaginando, por força da formatação continuada, simplória, rígida e radical que sofreram durante a infância e adolescência, que os dois descendentes de José têm os seus cérebros ligados entre si e, sobretudo, diretamente ao do progenitor por meio de um qualquer artefacto eletrónico de modo a que o par quase
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funcione em uníssono, como um só, sob a direção do de José, sem qualquer autonomia e liberdade, e também a qualquer distância que seja necessária. Sob outro ponto de vista, tamanha aberração poderá ser encarada como o resultado de violência doméstica, reincidente durante décadas, porque de uma enorme indignidade se trata. Sim, aqueles petizes nunca chegaram, de verdade, a libertar-se daquele jugo e a entrar na idade adulta. Um outro aspeto desta educação artificiosa, forçada, é o da imposição por José da proibição da manifestação de qualquer tipo de sofrimento. José baniu do seu círculo a lamentação e as manifestações de tristeza e frustração. Habituou os seus a negar a existência deste tipo de emoções. Para José sempre só existiu a alegria e o “tudo é possível”. Tornou-se exímio na exibição de um exuberante sorriso postiço em todas as circunstâncias públicas, para as fotografias em especial (os seus petizes também). Tão omnipresente é, esse sorriso postiço, que não se lhe conhece outro. E força-se a exibi-lo, especialmente aquando de circunstâncias de aflição ou pesar para alguém próximo. Diz – acreditará? – que desse modo contagia os outros. Pensará que esse seu sorriso e aparente boa disposição têm poderes curativos? De certa forma, este seu comportamento típico também o ajuda a distanciar-se dos problemas dos outros, de modo não se ver envolvido neles. Para António, isto é simples e primário egoísmo, é total falta de empatia disfarçada do contrário. Veremos mais à frente como para José é importante manter o distanciamento nessas circunstâncias. Mas, quando os problemas lhe dizem respeito diretamente, e quando não está à vista de outros fora do círculo familiar mais restrito, é capaz de se manter quase em silêncio absoluto durante dias, de rosto duro, e mal conseguindo conciliar o sono à noite. E quase sempre por motivos de lana-caprina.
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Por vezes, poucas, muito poucas, os petizes saem dos limites delineados pela formatação rígida a que se viram sujeitos desde a primeira hora. Normalmente, por pouco tempo e em insignificâncias. Mas a natureza humana é a natureza humana e, quando se dão as imprevisíveis circunstâncias propícias, emerge inapelavelmente e sobrepõe-se a tudo o resto, e de forma durável e descarada – escandalosa, até. Um deles, um dos petizes, a petiza, já bem depois dos vinte anos, quase nos trinta, acabou por ceder – por soçobrar, podemos dizê-lo - perante o verdadeiro amor e, principalmente, tomada pela verdadeira e carnal paixão, que a possuiu quando menos esperava, acabando por casar fora daquele círculo de aparências, futilidades e hipocrisias, o que, embora só passados alguns meses – mais à frente ficaremos a saber porquê -, passou a provocar profunda insatisfação em José sem que ele próprio conseguisse perceber e, muito menos, explicar-se porquê. Aquela união passou a ser sempre para ele um foco de conflito interior já que o genro vivia e vive do seu trabalho, o que ele sempre disse valorizar sobremaneira na sua estória de vida em particular, mas não era, nem é, rico, não ostenta nada que a José costuma deslumbrar e é próprio dos inúteis do seu círculo. Para além disto, sempre houve também o seu pânico de que algum dos seus petizes fosse vítima do típico, e quase tão antigo como a Humanidade, golpe do baú. Aquele genro não tinha herança, enquanto que sua filha viria a tê-la, embora quanto mais tarde melhor. No entanto, já sabemos, José sempre teve tendência a dar-se com muitas pessoas que, claramente, se casaram pelo dinheiro do cônjuge, ou que conseguiram um tão desejado matrimónio, por falta de quaisquer outros encantos, somente porque, por assim dizer, possuíam dote para oferecer. Em rigor, porque não dizê-lo, José trocaria de bom grado aquele casamento de sua petiza por um outro que lhe desse
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acesso regular ao postiço glamour que tanto o fascina, mesmo que para isso a piquena se remetesse a uma existência de simples biblot e pudesse vir a ser encornada vezes sem conta – “as mulheres não podem, está errado, mas os homens sim, não tem mal”, afirmou algumas vezes com absoluta convicção, embora sob outros pretextos e a propósito de outras pessoas, em contradição frontal, sem se aperceber, com a religião que sempre disse professar. Esse seu ideal e hipotético genro teria a sua autorização implícita, e explícita, se necessário fosse, para a total devassidão, sem que isso lhe viesse a causar, e a José também, qualquer rebate de consciência. Aliás, tal como ele se comportou toda a vida em relação à sua Maria. Esse genro só teria que pagar o devido e justo preço com a partilha das ansiadas ostentações e prebendas, de preferência bem públicas e vistosas. A José nunca lhe passou pela cabeça que isto não seria mais do que uma forma de prostituir a sua petiza e em que ele, José, seria, mais ou menos, o proxeneta que receberia a sua quota-parte. Como forte indício desta sua predisposição de fundo basta recordar um seu comportamento em relação a um detalhe, por ocasião da preparação do referido casamento. Iludido no início, porque o seu futuro genro, que era profissional muito bem-sucedido, lhe pareceu pessoa de posses, empenhou-se pessoalmente para que tudo corresse muito bem, embora, claro, o seu contributo financeiro viesse a ser bem diminuto. Pois, para espanto dos poucos que vieram a sabê-lo, e a maior parte já estavam bem familiarizados com as suas aberrações, instigou diretamente Maria, mais uma outra mulher da família e a própria petiza, para escolherem, para esta, roupa interior bem provocante, a ser usada na noite de núpcias. E fez questão de inspecionar a dita lingerie e de dar a sua aprovação após a compra. Antecipadamente, recomendou vivamente que fosse preta e de renda. Mas isto, este entusiasta empenho
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pessoal naquela relação, já o demos a entender, foi antes da sua posterior desilusão, quando ficou a perceber que a riqueza do seu jovem genro provinha apenas do trabalho…
Visão esta de José, sobre o casamento e o papel da
mulher no mesmo, incluindo o de sua própria filha, que não surpreende ninguém que o conheça minimamente uma vez que ele, é sabido e já o dissemos, foi infiel a Maria vezes sem conta. Maria, de proveniência humilde e de muito baixa instrução, sabe e sempre soube, mas José foi a via a que ela recorreu para aceder a algum conforto e segurança. Muitas vezes, comparando-se com outras mulheres, e também com a petiza sua filha, afirmou despudoradamente algo parecido com isto, deixando claro, embora de forma implícita, que na sua escolha tinha sido essencial a questão do dinheiro: “Eu é que escolhi bem!”, com orgulho, em tom triunfante. Bem mais nova do que ele, conheceram-se quando José já havia acumulado notório pecúlio. Claro que, e outra coisa não seria de esperar de uma relação prolongada e diária com José, Maria nunca teve uma mínima palavra a dizer que fosse sobre qualquer assunto relevante da vida em comum e da dos petizes. Deu-se, sem grande esforço, diga-se, em total submissão e irrelevância. As decisões importantes foram sempre tomadas pelo marido. Com José, só poderia ser desta forma. Portanto, uma família, desde a sua fundação, alicerçada em estranhas formas de existir… E os petizes acabaram por reproduzir este modo de estar de sua mãe nos seus matrimónios. Ainda mais ele do que ela, ao arrepio, claro, das convenções dominantes sobre o papel masculino na sociedade e na família. Creio que o leitor não entreveria outra coisa, pelo que sabe até agora. E o que ler daqui em diante, penso, reforçará essa sua convicção. Todos os próximos sempre souberam daquela faceta de vida de José e toleraram, e toleram, aquilo que seria, para muitos, algo inaceitável noutros homens. Talvez, também,
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porque Maria inspira pouca consideração e não parece importar-se. E José, vá-se lá saber por que retorcidos percursos mentais, é extremamente condescendente para com essa sua vida passada. Parece acreditar que o seu Deus lhe concedeu um qualquer estatuto de exceção, do mesmo modo que se veria, se fosse capaz e propenso e tais análises, como uma exceção quanto à questão da solidão com que, se se recorda, caro leitor, começámos esta narrativa. Aliás, vem a propósito, José foi ouvido afirmar diversas vezes enormidades como: “Vivi intensamente todos os momentos da minha vida e não tenho saudades de nenhum, não voltaria atrás”; “Não me arrependo de nada do que fiz, teria feito exatamente o mesmo se voltasse ao passado”; “Sou feliz, sou tudo o que quero, tenho tudo e fiz tudo o que queria”. Perante estas certezas só acessíveis a seres sobrenaturais omniscientes, António não consegue evitar pensamentos seus sobre quase sociopatia, que só não o é, por inteiro, devido a conjunção com, simplesmente, menoridade mental. Acredita, não fora o aspeto grosseiro de José que o torna impossível, que este exibiria quase sempre uma postura e expressão facial de beatífica candura, mesmo aquando das suas bárbaras afirmações. José bem se esforça quase sempre por isso, mas não o consegue suficientemente de modo a disfarçar os seus traços faciais rudes, os seus gestos deselegantes e a sua compleição física atarracada, em altura diminuta e excessiva em largura. Ou seja, configuração corporal que, ao invés, lhe acentua a boçalidade de seus dizeres e atitudes. E nem o seu hábito, desde jovem adulto, de se vestir sempre aprimoradamente - mas sempre! - consegue compor-lhe a imagem. Talvez, porventura por efeito de contraste gritante, ao invés, lhe acentue a deselegância, deveras frustrando a sua permanente tentativa de a encobrir. Ou, porventura ainda, a sua apetência pelo uso em volta do pescoço de fios de ouro com medalhas
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pendentes e de, nos dedos, um ou outro anel com pedras preciosas, o traiam e contribuam sobremaneira para o grotesco do todo. Quanto ao outro petiz, que se tenha notado, não terá alguma vez experimentado tais sentimentos e emoções, os do amor e da paixão, como sua irmã, nem se antevê que alguma vez os venha a experimentar; só mesmo o encantamento alvar, herdado sabemos de quem, e a atração irresistível pelo que muito luz. E, na sua perspetiva ignorante e tacanha, acabou por conseguir o que expressamente sempre desejou numa mulher só porque ele próprio encerrava em si mesmo a promessa implícita para a sua noiva de uma herança futura considerável. Até hoje não se apercebeu da vida de permanente ridículo, e desconhecida infelicidade, lá está, em que caiu. Escusado será dizer que, uma vez saciada a sua líbido e, sobretudo, inteiramente satisfeito o seu instinto maternal, que na esmagadora maioria das mulheres parece ser incontornável, dando à luz três rebentos de rajada, na mente e coração da nossa petiza, assim que as grilhetas da telúrica mãe natureza se aliviaram, começou, gradualmente, a ser tomada e controlada pela inescapável formatação mental a que tinha sido sujeita na infância e adolescência. As comparações gritantes entre a sua vida modesta, dependente essencialmente do fruto do trabalho do pai dos seus filhos, e as vidas das pessoas do círculo de relações de seu pai, começaram a produzir efeitos corrosivos e a ânsia pelo que luz e a frustração voltaram a tomar conta da sua indigente alminha. Como consequência, o desencanto foi-se avolumando e a aura do genro pouco adorado de seu pai, pai de seus filhos, seu marido e grande amor e paixão de outrora, começou a fenecer lentamente. Como diria o nosso jovem desbocado e irreverente, começou a grelhar em lume brando.
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Compreensivelmente, pela sua ação continuada e inflexível, José gerou em ambos os seus petizes pura subserviência instrumental, bem disfarçada sobretudo pela distância e não conversação sobre o que quer que seja de importante, principalmente sobre os ativos materiais e financeiros – assunto tabu -, e por algumas muito esporádicas e de conveniência manifestações de afeto e, ainda menos, de reverência, e, menos ainda, de respeito. É que, muito de vez em quando, alguma esmola cai que é importante não enjeitar… Em tese… É que nunca sabem quando virá… De alguma forma, José sempre pressentiu que só manteria o seu controlo e proximidade deles indo dando a conta gotas, em momentos e de forma e em montantes imprevisíveis. Tal como alguns donos de cães educam os pobres animais a obedecer sempre, e a exibirem as mais diversas e inúteis habilidades ao mínimo comando, dando pequenas recompensas só esporádica e aleatoriamente. Desse modo, os petizes, habituaram-se a, quase sempre, nada receberem e a conformar-se, mas nunca perdendo a esperança de, um dia, quem sabe, alguma recompensa cair. Tal como o cãozito que sempre, mas sempre, abana expectante a cauda após executar prontamente e na perfeição, e pela enésima vez, a sua habilidadezinha, embora só muito de vez em quando receba a recompensa desejada. Isto implica que nunca pode arriscar as consequências de não demonstrar efusivamente o seu desejo e de não realizar alegremente a cabriola solicitada. Perderia a graça e poderia gerar no seu dono desinteresse que, por sua vez, se refletiria em ainda menos solicitações e correspondentes recompensas efetivas. Está bem de ver, caro leitor, foi tortura chinesa, foi prolongadíssima lavagem ao cérebro com consequências irreversíveis. José, verdadeiramente, nunca quis dar, e pouco ou nada deu em proporção ao que tem e tinha, mas sempre tudo fez para manter nos seus petizes a esperança
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de que, a qualquer momento, à semelhança de outros pais, daria. Sempre os manteve, assim, sob o seu quase total controlo e comando. Em seus netos também se começou a desenvolver esta forma de estar para com o avô, ainda que em menores proporções, em grau de ubiquidade menor.
E, muitas vezes, quando é generoso, é-o apenas na
aparência porque visa sobretudo obter alguma vantagem ou agrado pessoal. Assim foi por ocasião do casamento de Manuel e Manuela, familiares algo afastados, que estava para ocorrer no interior do país, na zona da terra natal de José. Uma semana antes deu-se, à mesa de almoço e na presença de todos os interessados, a seguinte conversa entre ele e o seu pouco adorado e já nosso conhecido genro, que, já agora, se chamava Miguel. - Uma vez que vamos todos ao casamento, eu proponho irmos todos na véspera, o mais cedo possível, e dormimos lá de sábado para domingo num hotel. Eu pago tudo, a estadia e as refeições. Assim, no sábado, poderemos visitar família e amigos para que vos fiquem a conhecer. Miguel, de imediato, percebeu que José queria, mais uma vez, exibir-se, desta vez junto dos seus humildes e pouco instruídos familiares e conhecidos de infância, passeando- se na sua terrinha e arredores na companhia dos seus filhos, genros e netos, que eram pessoas da cidade, instruídos, bem-educados e de nível, com bom aspeto como as que se veem na tv, e, embora ainda jovens, já com bons carros e dinheiro para comprar roupas caras, de marca. Por isso, logo inventou ali um pretexto para, intencionalmente, estragar os planos a seu sogro, roubando-lhe o prazer que se lhe anunciava. Para além disso, e principalmente, Miguel desde cedo que sempre aproveitou todas as oportunidades para demonstrar por atos uma clara indiferença - desprezo, até -, pelas esmolas e falsas esmolas de José. E evita
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transparecer esse desprezo por palavras, para não afligir a nossa já conhecida petiza de seu pai. - Obrigado, mas eu já tinha a intenção de aproveitar a viagem, já que tem que ser feita, para ir visitar uns amigos que vivem em Castelo Branco. Iremos sexta à noite para lá. E, para não deixar qualquer hipótese de arranjo para o fim-de-semana que envolvesse José e seus planos, Miguel ainda rematou: - Ficaremos duas noites num hotel em Castelo Branco e, no domingo, partiremos cedo para o casamento. Lá nos encontraremos. Miguel sabia bem que, agindo deste modo, transmitia a mensagem a José da forma mais veemente e contundente, que calava fundo, que o frustrava e assaz magoava e irritava, evitando em simultâneo perturbar a petiza de seu pai. Mais um motivo para José se sentir, podemos dizê-lo, defraudado com aquele casamento, ainda que não assumidamente. E o pano de fundo no relacionamento de José com os seus filhos qual acabou por ser?: uma muito profunda frustração, um sentimento arraigado de impotência, e revolta surda dos petizes constantemente disfarçada e refundida, quase desconhecida para eles próprios. Refundida em somatizações evidentes – úlceras, ataques de pânico com palpitações, friagens e paragens digestivas, cefaleias agudas e prolongadas, doenças de diagnóstico indeterminado, hipersensibilidade ao desagrado de outros, complexos de inferioridade muitas vezes incapacitantes, para além de níveis de ansiedade e de insegurança bem acima do normal – e, claro, evidente formatação mental forçada que resultou em deformação de carácter. De facto, se nos abstrairmos das diferenças cosméticas geracionais e de diferentes épocas, assemelham-se em tudo a José no que a atitudes, princípios, valorizações, expectativas sobre a vida, prioridades, interesses, desejos, deslumbramentos,
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etc., diz respeito. E dessa absoluta formatação os petizes pouco ou nada se apercebem, a ponto de da qual nem desejar libertar-se alguma vez poderão.
- Não me foi dado, fui eu que o ganhei! -, disse José alto e
bom som, algumas vezes ao longo dos anos, para justificar não se comportar generosamente, tal como outros pais se comportam, para com os seus filhos. Numa dessas ocasiões, em que José proferiu tal afirmação, ou algo parecido, estavam sentados à mesa de jantar e o nosso já conhecido jovem familiar com tendência para a impertinência e indecoro rebelde resolveu provocar, mas fazendo de conta de que não intervinha precisamente na sequência e em relação com o que José havia acabado de dizer. Sorrindo para dentro e dirigindo-se a António, que estava sentado na sua frente e com quem sentia especial cumplicidade, dissertou de modo a que todos o ouvissem: - Tenho pensado neste assunto das fortunas e cheguei à conclusão de que, na minha opinião, só há mérito em enriquecer se se verificarem duas condições. Uma, claro, é se o enriquecimento foi conseguido honestamente. A outra é – e aqui o jovem provocador e irreverente elevou um pouco mais o volume – se foi conseguido com pouco esforço… Fez uma pausa e olhou em volta para se se certificar de que todos tinham ficado suspensos na sua afirmação surpreendente, contrassenso comum, e se estavam a ouvi- lo e em condições de assim continuarem, incluindo José. Prosseguiu então: - Bem, sem esforço, quer dizer… com pouco trabalho, ou mesmo com muito mas com pouco esforço, sem sacrifício, sem sofrimento… Enfim, sem se dar por isso, com prazer… A audiência mantinha-se em silêncio. José não tirava os olhos do prato. António sorria para si, embora algo intranquilo, prevendo já o desfecho que aí vinha. E o jovem
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familiar resolveu, então, dar a estocada final, subindo ligeiramente o volume e articulando mais lentamente as palavras: - Ou seja, não respeito quem enriqueceu desonestamente, ou, mesmo que honestamente, quem o conseguiu à custa de sacrifício. E quanto mais sacrifício, menos esse enriquecimento me inspira respeito e consideração. Aliás, tenho verificado que as pessoas que muito se sacrificaram para ganhar dinheiro desenvolveram problemas de carácter… Quase sempre… Ou já os tinham… E, ainda escarafunchando com indisfarçável prazer na ferida aberta, finalizou: - Costumo preferir os que enriqueceram por sorte. Por herança, por exemplo… Desde que não sejam uns tontos, claro. Não há muitos, é certo… O jovem saboreou particularmente estas últimas frases que proferiu. António, que sempre se divertia interiormente com aquelas tiradas daquele seu familiar, sabia que aquela atrevida intervenção havia calado bem fundo em José. Este manteve os olhos no prato e ruboresceu. Estava bem ciente de que o seu enriquecimento não cumpria nenhum dos critérios exigidos pelo jovem contundente, embora acreditasse que, quanto à desonestidade, ninguém o acusaria de tal, mesmo que em surdina, porque se sentia seguro de ter conseguido ocultá-la de todos toda a vida. Portanto, o que mais lhe custou constatar foi a total manifestação de desrespeito e, até, de desprezo, por parte do jovem em relação a toda a sua vida de muitíssimo trabalho, cheia de abdicação, agruras e dor. É que essa vertente era bastamente conhecida uma vez que José muito se orgulhava dela publicamente, fazendo com frequência alarde da mesma através do relato de episódios com algum detalhe, e a utilizava como forma de se diferenciar dos, lá está, outros pais mais mãos largas para com filhos e netos.
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Fazia uso, precisamente, desse facto como argumento moral para se comportar diferentemente para com os seus dependentes. Em suma, gostava de transmitir a ideia, está bem de se ver, de que não tinha tido uma vida fácil como os outros. Naturalmente, dando pouco e tornando imprevisíveis as ocasiões das suas raras dádivas, acrescido da expectativa por parte dos seus descendentes de um dia haver uma herança, José, sem o saber, manteve-os junto de si, precisamente, pelos motivos que sempre tanto receou, mas que não descortina nas suas relações familiares, embora os aponte e critique em outras famílias. Ou seja, juntou à sua volta incompreensão e revolta, disfarçadas de falsas manifestações de afeto, por pura hipocrisia calculista. Rodeou-se de pessoas que nunca lhe expõem o que realmente pensam, que só lhe dizem o que adivinham que ele quer ouvir, assegurando-se assim das, ao menos, parcas recompensas: um jantar ou almoço, uma notita pelo natal ou aniversário, uma pequena contribuição para uma despesa mais avultada, desde que por ele aprovada, um convite para uma festa de aniversário em restaurante apetecível, uma pequena viagem de recreio...
E como José, já o sabemos, é de pouca dotação
intelectual e extremamente ignorante, sempre foi fácil saber em antecipação o que dizer para lhe agradar. Ou seja, sem o saber, José cedo na vida atingiu o estádio de solidão suprema: rodeado de gente interessada sobretudo em tirar vantagem dele, numa perspetiva de relacionamento pouco mais do que de conveniência. E, de facto, já vimos, era e é fácil seduzi-lo: basta fingir achar que toda a sua vida é digna de ser apontada como exemplo aos outros. Precisamente o contrário do que o jovem insurgente familiar gosta de fazer. Mas este vive e viveu sempre bem com as consequências,
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embora, talvez, nunca tenha tido a perfeita noção de todas elas. Como exemplo ilustrativo, António nunca mais esqueceu um diálogo que presenciou, em silêncio, entre José e uma sua sobrinha por afinidade que, precisamente, aprendeu a dizer só o que a ele caía bem. A propósito de uma notícia que estava a passar na tv sobre as mais recentes estatísticas relativas a emprego e desemprego, José comentou: - Não percebo…, se há empresas que se queixam de que não conseguem arranjar os trabalhadores de que precisam, como é que há desemprego?! A que a sobrinha respondeu: - Só pode ser porque não querem trabalhar... E José assentiu de imediato. Os raciocínios com princípio, meio e fim de que é capaz foram sempre só deste calibre, totalmente falaciosos, de verdades aparentemente evidentes e irrefutáveis. E sente-se sempre muito gratificado quando alguém, seja quem for, concorda expressamente consigo, ou verbaliza os superficiais lugares comuns com os quais tem predisposição para sentir afinidade. Se alguém surge e avança uma perspetiva sobre o assunto em causa que lhe introduz as devidas complexidades e incertezas, José mal ouve e, quase sempre, fica calado. Mas aquele era um momento em que José e aquela sobrinha estavam de bem um com o outro. Outra época houve, posteriormente, em que a indigência e futilidade dela foram motivo de reprovação indignada da parte dele que, o leitor já pode prever, não se eximia a revelar a conhecidos e quase desconhecidos, sem pretexto algum. Acusou-a ele de que ela só pensava em festas e em jantares em restaurantes caros, obrigando o marido, chegado sobrinho de sangue de José, a gastar muito dinheiro. Para além disso, ela exibia excessivamente o corpo com as roupas indecorosas que gostava de usar em público. E, ainda, dizia
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em tom despeitado que ele, o sobrinho, era infeliz com ela e que devia procurar outras mulheres e encetar relações extraconjugais. Claro que, o leitor também já prevê, esta atitude extremamente virulenta de José tinha, como sempre em casos idênticos, um motivo mesquinho: a sobrinha em causa havia dado uma festa de aniversário para a qual não convidou José e Maria. O pretexto dado foi o de que era uma festa tardia, pela madrugada adentro, só para gente mais jovem. Mas, os mais próximos sabem-no bem, o verdadeiro motivo foi a vergonha. Sim, e era de concordância geral, as figuras grotescas de Maria e José, particularmente a deste, descompunham qualquer cenário que se quisesse de requinte e nível. E pior ainda seria se José resolvesse abrir a boca para intervir em alguma conversa. Mais à frente o leitor irá perceber vivamente como José pode ser embaraçoso para os seus quando a tal se atreve. De qualquer forma, com o passar do tempo, a relação de José com aquela sua sobrinha voltou a passar por fases boas e menos boas. Tal como com todas as pessoas do círculo familiar mais restrito. Retornando ao pequeno diálogo sobre desemprego, escusado será dizer que a tontinha - é como António a designa em conversas jocosas privadas, nomeadamente com Miguel e o nosso já conhecido jovem rebelde impertinente e impenitente - nunca jamais se sustentou, nem à sua profusa prole, por um segundo que fosse, com proveitos do seu trabalho, ou do seu cônjuge. Nem é, de todo, previsível que alguma vez o venha a fazer. Aliás, nem de longe conhece o mundo do trabalho, a não ser o das suas empregadas domésticas. Portanto, a António ouvir tal pessoa proferir tamanha bárbara e grotesca imbecilidade sobre os desempregados em geral, revelando total desconhecimento e, sobretudo, insensibilidade perante a desgraça de outros menos afortunados, causou-lhe profunda indignação, que chegou a doer.
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E também a Miguel, que sustenta a petiza e sua prole só com o seu trabalho e que, obviamente, não pode ter a certeza de que virá sempre a conseguir fazê-lo. Aliás, não tem dúvidas, se um dia se abater sobre ele o desemprego, a falta de trabalho, o sentimento predominante que isso gerará em José, e também na petiza, será a vergonha, seguido da culpabilização, tão só; E as insinuações e maus tratos velados, a guerra surda, que daí decorreriam, tal como sempre fez com os petizes e Maria. Nunca a compreensão e o apoio emocional, apesar de uma vida de trabalho intenso e esgotante a ganhar muito bom dinheiro e a proporcionar-lhes um nível de vida bem acima da média, gastando-o generosamente. Miguel sabe que, nessas circunstâncias, não lhe pagariam na mesma moeda. Pairaria sobre a sua pessoa o espectro acusatório do golpe do baú. Não dúvida. Para José, e a petiza facilmente seria contaminada, sublinhamo-lo de novo, a prova mais evidente dessa intenção, a de pretender dar o dito golpe, seria, tão só, o facto de Miguel deixar de conseguir pagar as contas. Simples. Para José, já vimos, uma simples suspeita é já tratada como culpa, até prova em contrário. Mas sempre foi com aquele tipo de gente desocupada, gente de quem verdadeiramente nada de importante nem ninguém jamais dependeu, que José consegue trocar pequenos comentários. Só com pessoas desse calibre, precisamente do modo de vida que ele sempre afirmou tanto desprezar e em que desde sempre pareceu recear que os seus petizes se viessem a transformar. Já sabemos, a sua vida foi inteiramente feita de contradições, o que diz valorizar ou detestar nunca passou a consequentes e coerentes opiniões e comportamentos concretos duradouros. Portanto, a sua atuação constante ao longo dos anos gerou e chamou ao seu redor gente muito tonta e ignorante ou, pior, gente de carácter deformado, hipócrita e
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interesseira, eternamente esperançada em alguma recompensa, e afastou qualquer pessoa de verdadeiro bom coração e de elevação de espírito. Sobretudo, a maior parte dos mais próximos aprendeu a nunca o indispor porque, caso contrário, sabiam que isso faria retardar, mais ainda, a chegada de uma qualquer, ainda que incerta, recompensa. Isto implica, inclusive, mesmo nos assuntos mais inócuos, evitar expressar opiniões diferentes das de José. Quanto mais não seja, pelo risco de o humilhar. Mas este nunca o percebeu. Melhor, nunca o reconheceu porque isso significaria exercer uma enorme violência sobre si próprio. E nunca lhe foi difícil, já que, em boa verdade, raramente chegou perto de gente de bom carácter. Quando isso aconteceu, as pessoas, numa questão de, no máximo, meses, optaram por se afastarem do convívio frequente. Durante a maior parte da sua vida nunca chegou, verdadeiramente, a experimentar o que seria relacionar-se regularmente ao longo de anos com pessoas impassíveis – imunes - perante a sua estratégia de vida implícita. Só muito tarde, com uma ou, no máximo, duas pessoas, e por força de circunstâncias que lhe fugiram ao controlo.
Como já vimos, José chegou ao ridículo extremo, algumas
vezes, de considerar seu amigo um qualquer desconhecido vendedor que afirmasse, com total desfaçatez, já se vê, que lhe estava a fazer um desconto especial, único. Aquele tipo de profissionais utiliza para isso afirmações vácuas e hipócritas como: “Porque gostei de si especialmente”; “Porque não é um cliente como os outros”; “Porque o tenho em especial consideração”; “Porque quero o melhor para si”; “Porque acho que vamos ser bons amigos”; “Em nome da nossa amizade”; “Porque gosto de si, abdico da minha comissão”; Etc. E José sempre acredita porque … quer sempre acreditar. Por isso, frequentemente recebe também como um especial favor e consideração os conselhos que
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aqueles profissionais inúmeras vezes lhe dão e que implicam, quase sempre, incorrer em despesas adicionais. Não aconteceu só quando comprou o seu Mercedes ultrapassado, com leitor de cassetes. José sempre se deslumbrou com as suas estratégias sedutoras e oferece-se aos seus encantos, invariavelmente, parecendo nada ter aprendido com a experiência de uma longa vida. A sua absoluta credulidade reincidente, intocada, quase virgem, é ainda hoje desconcertante e exaspera quem quer que se proponha defendê-lo de ser enganado. Inclusive, muitos outros sofreram o mesmo tipo de tratamento infligido por ele ao seu amigo entendido em automóveis aquando da compra do mencionado Mercedes. É que José, sem se aperceber, talvez…, troca de bom grado um pouco do seu dinheiro pela rápida ilusão de que o outro lhe vota respeito e especial consideração; Amizade, até, carente como sempre foi, também sem o saber. E tende a menosprezar – a maltratar - as velhas amizades em troca da perspetiva de novas… Observando José nestas circunstâncias, não restam dúvidas, é possível confirmar que os meandros misteriosos da sabedoria humana são, em grande parte, insondáveis. De alguma forma, a maioria daqueles vendedores, ou de outras pessoas que tenham a intenção imediata de conseguir algo dele, ficam instantânea e subconscientemente a saber que o melhor caminho para alcançarem os seus intentos será o de começar por um rasgado e alargado elogio a José, preferencialmente bem à vista de outros. Quase todos encontram um pretexto, mais, ou menos, patético, que sirva. António quer acreditar, espera que assim seja, que, para muitos de nós, aquela forma de atuar seria pura e básica charlatanice, motivo gerador de desconfiança imediata. Mas em José toca fundo e amacia-o, fá-lo baixar as defesas da sua proverbial e mesquinha avareza intestina.
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Tal como também ensinou aos seus filhos em atitude e comportamentos efetivos, José nunca conheceu, portanto, outras formas de relacionamento senão a de trocas de favores, ou de supostas trocas de favores. Desenvolveu também o hábito de considerar amigos quem quer que lhe pagasse um jantar num restaurante de luxo, ou uma semana de férias numa estância que fosse muito requisitada. São sempre daquelas pessoas endinheiradas acima referidas a quem tem prestado toda a vida pequenos serviços de conveniência, dos quais só completos analfabetos têm necessidade, ou então por se encontrar perto, e eles não, do local onde é necessário tratar de qualquer assunto. E inúmeras vezes, ao longo dos anos, sofreu ao constatar que essas mesmas pessoas se afastaram, para ele incompreensivelmente, mas, de verdade, porque, devido a novas circunstâncias, lhes deixou de ser de préstimo. Digamos que José tem sucesso temporário junto delas porque consegue aparentar possuir, sobretudo de início, alguma sabedoria útil, o que lhe é particularmente aprazível. Mas, muitas vezes, são esses seus amigos que fingem dar crédito a algumas das suas opiniões ou recomendações, de modo a utilizar isso como pretexto para lhe pedirem que se encarregue de alguma tarefa. Por vezes, aqueles que melhor o conhecem e dele já têm conquistada a confiança, a abordagem que lhe fazem, embora dissimulada, vai bem direta ao que realmente pretendem: entram a pedir alguma informação ou, sobretudo, conselho, encantando-o, predispondo-o desse modo para assentir quanto ao pedido de favor que lhe pretendem fazer e que é, realmente, ao que vêm. Muitas vezes não chega a ser necessário explicitar o pedido porque José se adianta, oferecendo-se de iniciativa própria. Aquelas oferendas de que beneficia, que são pagas de favores, por vezes dispendiosas, e que José gosta de
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considerar que são manifestações de apreço e amizade por ele, são do tipo em que ele, por mesquinhez e avareza, jamais incorreria com ele próprio ou com os seus familiares. No entanto, não perde o ensejo de fazer estes usufruir também delas, sempre que essa oportunidade surge, conseguindo desse modo providenciar mais algumas das tais recompensas esporádicas e aleatórios, desta vez a expensas de outros. Ouro sobre azul! Considera desse modo que fica cumprida alguma sua obrigação, dispensando-se, no curto prazo, de desembolsar seja o que for. Mas, quase sempre, só consegue cair no ridículo porque as suas intenções revelam-se evidentes. Por outro lado, obrigação aquela que ele presume, e bem, que existe no juízo de outros. Mas não no seu, afirma-o terminantemente! Deste modo, entende que melhora a sua imagem junto dos mais críticos. É que José sempre intuiu que muita gente não aprova o seu modo de vida. Sim, de facto, trata-se de um modo de vida na verdadeira aceção da expressão. Portanto, seus descendentes próximos e sob a sua influência direta aprenderam, também, a olhar as relações nesta perspetiva. E também a aproximar-se dos incautos ou desvalidos afortunados para, na primeira oportunidade, lhes sacar os últimos recursos. Terá sido assim que José conseguiu um impulso significativo no incremento da sua pequena fortuna e que foi posteriormente aumentada consideravelmente com alguns golpes de sorte do tipo estar no lugar certo na altura certa em que toda a gente ganhou dinheiro, e não só ele. As más línguas dizem que cuidou da viúva rica que viveu em sua casa nos seus derradeiros anos de vida, sem herdeiros, a troco de lhe ficar com a considerável maquia que lhe restasse depois da morte. Estava, numa ocasião, José a gabar-se em detalhe do luxo com que tinham sido agraciados, ele e Maria, numa viagem paga por um casal que os convidou a acompanhá-
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los, quando Miguel, algo impulsivamente, ao contrário do que lhe era habitual, o interpelou: - Sabe que esse dinheiro com que lhe pagam essas mordomias provém do crime? Em grande parte, podemos dizê-lo, foi roubado, obtido indevidamente, é de negócios ilegais, de fuga a impostos.... - Não sei bem, mas não fui eu que o roubei… E não havia lá nenhum mordomo, também que exagero! Alguns dos presentes, os que perceberam o equívoco de José, incluindo Miguel, sorriram, contendo-se para não rir francamente. Mas Miguel, passando por cima daquela segunda observação risível de José, logo se focou no assunto inicial, adotando um tom francamente irónico: - Então, assim é fácil viver segundo os preceitos da santa madre igreja… Combino com outro que…, talvez, quem sabe, não sei, vamos os dois roubar, mas, claro, não o confessamos um ao outro, e, depois, usufruímos só do dinheiro que foi roubado só pelo outro. Nós até suspeitamos mas não temos provas, ele não nos disse nada, e até pode ser dinheiro da parte que não foi roubada, de uma herança… Ou, digamos que ambos roubamos mas, verdadeiramente, qual Robin dos Bosques, não é para nós, é para o outro… Uma mão não sabe o que a outra faz. A que gasta não conhece a que recebe… Tristeza! António, e mais um ou outro dos convivas, olharam Miguel espantados, estupefactos, até, algo receosos pela possível reação do visado, pelo inusitado das suas cruas palavras, pelo seu desbragado atrevimento. Claro está que José não entendeu nada. “E ainda bem!”, disse António para si mesmo. A maior parte dos presentes também não. António, passados uns segundos, sorriu para dentro e disse de novo para si: “Felizmente que, na maior parte dos casos, mal entende o que lhe dizem…”.
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Assim, José, viveu quase sempre no dilema permanente entre o pânico de se tornar evidente, para si e para todos, de poder ficar só – só, já o sabemos, no sentido de desacompanhado de forma humilhantemente visível para os outros - e o pânico de que os outros se aproveitem desse mesmo pânico, acentuado pela sua estupidez, e ignorância que ele próprio, só para si, reconhece. Por isso a sua vida foi sempre uma sucessão de avenças e desavenças com pessoas que o bajularam e que, na primeira oportunidade, o enganaram, capitalizando na sua enorme e desconcertante credulidade. Quando o engano se descobre mas, no seu entendimento, é pequeno, faz de conta de que nada é com ele, de modo a preservar a relação. Quando considera que o prejuízo ultrapassou os limites do aceitável, e isso depende também da importância que dá ao faltoso, corta definitivamente relações, não sem antes se entregar a cenas de grande alarido, mas inconsequentes e nas quais mistura realidade com ficção, perdendo credibilidade. E isto independentemente de, de facto, ter sido enganado, ou de mais tarde vir a perceber que não o foi. O mesmo orgulho que o conduz a estes cortes radicais, repentinos e cegos, impede-o de reconhecer perante os outros, quando se justificaria, que se precipitou e se equivocou no seu julgamento e, na maior parte das vezes, de o reconhecer para si mesmo. José é senhor de uma indefetível e infantil capacidade de amuar. Só nestas ocasiões, qual criança rabuja e birrenta, parece revelar alguma, embora apenas por cegueira visceral, indiferença aos olhares críticos e censuradores dos outros. Estranhamente, ou talvez não, José deixa-se afetar em especial quando alguém faz uso do mesmo tipo de comportamento para lhe mostrar desagrado relativo a algo que ele tenha dito ou feito. Particularmente quando se trata de alguém que em nada dele depende e que tem alguma influência sobre aqueles que a ele estão submetidos: em
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especial petizes. Nessas circunstâncias, qual criança manipuladora, tenta recuperar as pessoas com conversas sedutoras que envolvam elogios e concordâncias com o que quer que seja que esteja em cima da mesa. Chega ao ponto de se forçar a não gostar, e a manifestá-lo com clareza, de quem essas pessoas que pretende reconquistar não gostam. Claro que, o leitor já o pode prever, em momento posterior poderá vir a fazer o mesmo, se as circunstâncias o pedirem, mas fazendo os alvos do seu amor e ódio trocar de papéis diametralmente opostos. Para José, o jogo das relações também é uma imatura dança de ora se gosto de sicrano tenho que odiar beltrano, e vice-versa. Alguns mais inteligentes e perversos descobriram, encontrado o pretexto de circunstância certo, e se usarem da devida subtileza de modo a que mais ninguém se aperceba, evitando assim colocar José na iminência de perder a face, que se lhe transmitirem a ideia de que a sua relação poderá perigar, conseguem alguma benesse. Benesse esta sempre disfarçada de modo a não o parecer, claro. Um almoço em restaurante digno sob pretexto de apoiar José em trabalho com outras pessoas, uma pequena viagem de recreio sob pretensa intenção de analisar hipóteses de investimento, e outras justificações que visam, principalmente, preservar as aparências perante outros não intervenientes. E, claro, como já vimos, o ganho, ainda que normalmente apenas temporário, poderá ser também o de indispor José contra alguém. E já que é de birras que falamos, as de José caracterizam-se, desde sempre, pelo refúgio num mutismo absoluto quando na presença da pessoa de seu desagrado do momento. O leitor poderá pensar, pelo que até agora leu, que as relações entre os quatro membros do núcleo familiar foram sempre, na aparência, anódinas e, só por isso, sempre irrepreensíveis no que a civilidade diz respeito. Mas não. De vez em quando José adota a descrita solução da
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birra quando algum dos petizes, ou Maria, não se comportam de acordo com a sua vontade. Já sabemos, o leitor imaginará, que os motivos serão sempre de importância menor, uma vez que é inconcebível pensar que assim não seja, que alguma vez eles se atrevam a mais. E o petiz, desde pequeno, também aprendeu a ganhar ascendente sobre a petiza e Maria utilizando o mesmo método. Elas, coitadas, ficam em polvorosa quando qualquer um dos dois adota esse registo comportamental para com elas. Entram em ansiedade, choram e imploram perdão, de modo e tom desproporcionados ao assunto em causa, e sem que lhes seja imputável qualquer culpa por qualquer pessoa mentalmente sã. Cenas lamentáveis, confrangedoras, que colocam em sobressalto quem por perto esteja e que causam indignação a António e raiva contida a Miguel. E José e o petiz, à medida que este tem avançado na idade adulta, assumem cada vez com mais frequência este registo entre eles. Naturalmente, não há choro e ranger de dentes, e nunca há pedidos de perdão de parte a parte. Apenas se mantém o mutismo entre os dois durante algumas semanas, e que acaba por esmorecer em rigor, até desaparecer completamente. Digamos que resolvem as suas dissensões por via da troca de pesados e significativos silêncios e ignorância ostensiva um do outro que o tempo ameniza. Um telefonema cirúrgico para a petiza, com as acusações certeiras, de qualquer um dos dois, depois desta se casar e passar a estar mais tempo com Miguel, era garantia de infernizar a existência deste por uns dias por via do alvoroço, recriminações e ataques de pânico induzidos na piquena. Com a enorme vantagem de não terem que presenciar nada nem de enfrentar o genro e cunhado. Inconscientemente, cedo ambos aprenderam a agredir indiretamente Miguel deste modo, indiferentes ao sofrimento provocado na petiza. Esta, até hoje, não se libertou deste
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jugo exercido sobretudo à distância, nem o reconhece. As consequências seriam pesadas se o fizesse.
O pânico de ser mal visto e de perder "amizades" foi
sempre tal que, quando alguém ligado a si causa evidente mal a um seu amigo, o que não é raro dado o tipo de gente em causa, faz de conta de que não é nada com ele. Tenta, desse modo, ao arrepio de qualquer decência, preservar ambas as relações. - Não tenho nada a ver com isso, não fiz mal a ninguém, nem me fizeram mal a mim! Respondeu José deste modo a uma crítica indireta de um seu familiar pelo facto de continuar a agir como se nada tivesse sucedido quando tinha ficado evidente um comportamento desonesto de um seu amigo para com outro. Referia-se aquele familiar ao comportamento de um deles, que por José foi apresentado ao outro e recomendado para prestar determinado serviço profissional. Para isso, por intermédio de José, sem contactarem diretamente entre si, o primeiro solicitou ao segundo um adiantamento do pagamento futuramente devido, para fazer face a despesas necessárias. Veio-se mais tarde a verificar que essas despesas nunca chegaram a ser realizadas, porque nada chegou a ser feito, e o interessado, o mandante, não foi informado em tempo útil, e, no entanto, o dinheiro previamente adiantado jamais foi devolvido. No entanto, para António e para mais umas poucas pessoas, esta forma de estar de José há muito que tinha deixado de ser surpreendente. António cedo percebeu que, para José, no mundo dos negócios é aceitável enganar, desde que se não se seja descoberto pelo enganado. E isto, claro, em evidente contradição com os valores em que se banha todos os domingos na missa a que, com fervor supersticioso, atende impreterivelmente. Mas não perde
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pela demora, caro leitor, a este assunto retornaremos mais adiante… Em diversas ocasiões, António sabe-o seguramente, José optou por ficar mudo e quedo perante o desfecho previsível de negócios entre amigos em que um se preparava para, inequivocamente, enganar o outro. E esse outro pode, até, ser um familiar seu. Sempre entende, lá está, que não é nada com ele e que, sendo assim, não está obrigado a alertar a vítima da manifesta falta de lealdade e ética. E nem se exime a receber alguma comissão ou outra vantagem, se for o caso, desde que isso fique no segredo dos deuses, quando serve de intermediário para a realização do negócio. A sua forma de atuação pode passar por, inclusive, em concertação secreta com alguns amigos e conhecidos ofertantes, sem que revele ao potencial vendedor a existência dessas ligações entre esses diferentes supostos interessados, fazer baixar o valor das ofertas de compra por um bem, de um apartamento, por exemplo, de um outro amigo, ou, mesmo, familiar próximo, o tal vendedor. Tenta, desta forma, enganá-lo, tirando partido do facto dele nele ter confiado e o ter assumido como conselheiro e aliado, uma vez que, supostamente, são amigos ou parentes. Nestas circunstâncias, e com esta forma de atuar, fica fácil a José transmitir-lhe a ideia de preço justo mais conveniente para si, mas que, de facto, está a níveis claramente abaixo do mercado, abaixo do que o vendedor conseguiria se estivesse fora da teia urdida por José. As vítimas – sim, é o que são - quase nunca se apercebem porque, por um lado, partem do princípio de que José atua zelando genuinamente pelos seus interesses, e, por outro, porque se consideram leigos no assunto, ao contrário de José, nas mãos do qual, também por isso, se entregam de boa fé. Claro está, este acha que não está a fazer mal nenhum. Esta sua estratégia funciona tanto melhor quanto mais necessitado está o amigo ou familiar vendedor de realizar o
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negócio; Quanto maior a sua urgência, que não poucas vezes é desespero. José sempre teve um especial faro para se encontrar com este tipo de necessitados. Chega a sair-se da situação como o amigo ou parente benemérito, comprando o bem pelo preço mais alto de entre todas as ofertas feitas, quase todas elas fictícias e, artificiosamente, extremamente baixas, claro. Pode utilizar frases como: “Bem, não sei bem se vale, mas eu compro, para ajudar, por esse preço…”. Normalmente, aceita os eventuais agradecimentos com perfeita cara de pau. Por vezes chega, inclusive, a comover-se. Até de joias de famílias em desespero, supostamente amigas ou aparentadas, se apropriou por valores irrisórios. Algumas chegaram a, na sua presença, chorar de dor e raiva pensando ele que era de alívio, de agradecimento. António suspeita que José acredita, muitas vezes, que naquelas circunstâncias, o seu papel foi o recomendável do ponto de vista da ética e da caridade cristã e, até, que crê no que diz à sua vítima do momento. António pensa que a José não lhe passa pela cabeça que, nas circunstâncias descritas, o seu dever verdadeiramente cristão, de amigo ou familiar, seria o de ajudar a vender pelo preço mais alto possível, e não tirar vantagem pessoal das circunstâncias desfavoráveis ao vendedor. Em coerência, José sempre entendeu que no mundo dos negócios é legítimo recorrer à vingança por meios pouco éticos, para compensar prejuízos resultantes de enganos do passado. Esta é uma das justificações que dá a si próprio para não interferir nos tais negócios entre amigos ou familiares. Outra justificação, que ele reconheceu junto de apenas alguns, muito poucos, nomeadamente perante António, é de que foi muitas vezes enganado. António bem sabe, porque conheceu inúmeros desses episódios, que esses enganos foram quase todos possíveis devido às proverbiais estupidez e ignorância de José, que resultam
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em credulidade a níveis inconcebíveis. Sem se aperceber, é como se toda a humanidade estivesse em dívida para com quem tenha sido enganado – no caso, ele -, ainda que fosse apenas por um só dos seus exemplares. E quanto maior o número de enganos e mais vultosos os prejuízos, maior a dívida, a ponto de poder ser impagável durante uma só vida, mesmo que fosse a humanidade inteira que ele enganasse… Por isso, entende também que pode transferir para outros, sem que eles se apercebam e, até, dando-se ares de quem lhes está a fazer um favor, os incómodos e inconveniências que lhe caem no colo por via do tipo de gente com quem se dá. - Enfim, eu continuaria a deixar o Pedro lá ficar mais umas semanas, uma vez que é filho de um grande amigo meu, mas preciso mesmo de iniciar as obras quanto antes. Por isso, já não me posso responsabilizar por ele. Se quiseres, eu já lhe falei nessa hipótese e ele aceitou, ele vai para o teu apartamento enquanto está vazio e não encontras inquilinos mais definitivos. Sempre tiras algum rendimento, entretanto, porque ele concordou em pagar o mesmo que acordou comigo, mais as despesas de água, gás e eletricidade. É só uma questão de combinares com ele uma data para sair. José, durante uma parte significativa da sua vida, investiu na compra de apartamentos para os alugar. Falava deste modo com um dos seus amigos que também se dedicava à mesma atividade, referindo-se a Pedro que estava a viver num seu apartamento. Inicialmente, não teve coragem de lhe recusar o favor de o deixar lá pernoitar enquanto ele não encontrava uma morada definitiva na mesma zona, onde procurava trabalho. Mas como Pedro lhe disse que seria só por duas semanas, e também porque José não tinha a intenção de alugar de imediato o apartamento, porque nele pretendia fazer obras, aceitou fazer o favor, embora
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relutante, desde que Pedro pagasse todas as despesas de eletricidade, água e gás. Entretanto, passaram as duas semanas, e mais duas ainda, e Pedro, apercebendo-se do constrangimento que estava a provocar, propôs começar a pagar também uma renda, mas que não seria mais do que por mais duas semanas porque já tinha uma alternativa de morada em vista. E disse também que pagaria uma renda respeitante às duas semanas decorridas em excesso relativamente ao que havia sido combinado inicialmente. Mas, entretanto, no momento daquele diálogo de José com o seu amigo, dois meses já haviam passado e, pior ainda, José não havia ainda recebido de Pedro qualquer valor a título de rendas e, mais, ainda não tinha sido ressarcido das contas que já havia pago respeitantes aos consumos de água, eletricidade e gás. Mas nada disto contou ao seu amigo. Como vimos, apenas lhe referiu o inocente motivo de que precisava de iniciar obras quanto antes no apartamento. Só isso. Pedro acabou por mudar para o apartamento do amigo de José e este logo se desligou completamente do assunto, aliviando-se de qualquer responsabilidade e protegendo-se de qualquer incómodo com o subterfúgio, por si armado e profusamente divulgado, de que estava de relações cortadas com Pedro. Daí em diante, sob essa justificação, recusou-se a voltar a falar sobre ele, inclusive com o seu amigo, que bem arrependido ficou de ter deixado Pedro ir para o seu apartamento. E José, que nem pingo de rebate de consciência aparentou, lavou daí as suas mãos. Mas, naturalmente, ao contrário do que aconteceu neste caso com Pedro, José prefere sempre recusar os favores que lhe pedem, mesmo àqueles que apelida de grandes amigos. Só não o faz naquelas circunstâncias em que não consegue encontrar uma boa justificação que lhe permita dizer que não airosamente, deixando intocada a relação. Quando consegue encontra uma saída, utiliza muitas vezes o estratagema de implicar terceiros ausentes no motivo da
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recusa. E, muitas vezes, não se importa de manchar a imagem destes, desde que isso lhe permita apresentar um motivo de recusa que fique fora da possibilidade de verificação de quem fez o pedido. Uma vez, perante uma solicitação idêntica à de Pedro, mas posterior – estava escaldado com a má experiência -, conseguiu recusá-la da seguinte forma: - Eu teria todo o gosto em deixar-te ficar no apartamento por alguns dias, mas acabei de o recusar a uma outra pessoa, não porque não pudesse, mas porque não quis, porque não confio lá muito nessa pessoa. Por isso, não posso agora emprestar-te o apartamento porque isso ficaria a saber-se e eu não quero ter que dar explicações para não me chatear. António não pára de se admirar com os estratagemas que José desenvolveu ao longo dos anos para dizer não sem, verdadeiramente, o dizer. Mas, ainda assim, muitas vezes, na falta de algo mais definitivo, ele limita-se a dizer que vai pensar no assunto e deixa o tempo passar indefinidamente, sem nunca mais ter a iniciativa de o retomar, desejando que do outro lado o mesmo se passe. Algumas pessoas diriam que José é cínico, que esconde o que pensa só para não se chatear. Mas, na opinião de António, na verdade, José sempre foi incapaz de assumir qualquer posição de oposição ou confronto de modo claro e inequívoco, mesmo quando imperativos de ética mais elementares e universais o recomendariam. É cobarde e hipócrita, e não cínico, muito menos irónico – nunca foi capaz de tais subtilezas -, e desleal por sistema e intriguista para poder navegar entre as inúmeras contradições do seu comportamento e atitudes. E é tudo isto, quase sempre, por motivos e interesses pessoais mesquinhos. Quando alguém, que se sente vítima da sua falta de lealdade e da sua intriga, o confronta com factos que o comprovam, José opta invariavelmente por deixar entender que foram
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terceiros ausentes que o induziram em, suposto, claro está, erro de julgamento por lhe terem passado informação falsa. Consegue, deste modo, prolongar, embora por tempo muito variável, relações que perigam.
E, claro, é também bem de se ver, nunca suportou quem
lhe pudesse dizer as coisas na cara, de modo direto e claro, nunca o enganando. Jamais tolerou quem, simplesmente, demonstrasse desinteresse em ser aliciado com alguma vantagem ou em entabular uma relação de permuta de favores. Como Miguel, por exemplo. Com essas pessoas nunca houve base para qualquer comunhão. E, uma vez que tendem a ser mais inteligentes e cultas do que José, nunca houve condições para qualquer conversa com sentido. É que José consegue ser exasperante nas suas alocuções porque, para além destas normalmente serem sentenciosas, muito breves e inicialmente metidas a talhe de foice, só para se fazer entrosado nos debates, nelas é insistente já que é raro que se aperceba, pela sua total falta de entendimento, do ridículo constante em que cai. José, das raríssimas vezes que é convidado para, por exemplo, festas de aniversário, normalmente por alguém de conhecimento recente, sente-se desmesuradamente honrado. Quer, por isso, estar ao nível, procurando fazer boa figura aos olhos do aniversariante e de quem o rodeará no evento. - Ele é colecionador de moedas antigas. Faço questão de lhe oferecer uma. Onde poderei comprar? Tem que ser bem antiga, bem gasta, para valer muito. Interpelou deste modo António que, para ele, era culto, sabia de muita coisa. António logo tentou que ele desistisse da ideia: - Na minha opinião, particularmente quando somos leigos na questão, não se deve oferecer a ninguém algo que é da sua especialidade, do seu conhecimento profundo. Oferecer
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uma moeda antiga a um numismata é um risco e um atrevimento. Ele pode já ter, pode não valorizar e, quem compra, não sendo especialista, não sabe exatamente o que está a comprar e não consegue perceber bem o seu valor. - Então, mas é só encontrar uma moeda bem gasta, bem velhinha. Há tantas! Com certeza que não iria logo ter o azar de lhe oferecer uma repetida… E se for, troca-se! António sabia, há muito, que não valia a pena insistir no mesmo argumento que já havia sido rejeitado por José. Este, ou por não conseguir compreender, ou por orgulho, jamais volta atrás. Resolveu, por isso, tentar outra via para o dissuadir: - As moedas, quanto mais gastas, menos valem… - Como assim?!!! A prova de que são bem velhas, bem antigas, é de que estão gastas. Se estiverem novinhas, não valem nada! - respondeu José, triunfante e algo jocoso. António tentou, então, a via da redução ao absurdo: - Quer dizer, então, que se eu apanhar uma moeda muito antiga, mas em excelente estado de conservação, como se estivesse nova, ela ficará a valer mais se eu a esfregar em qualquer sítio para que fique gasta?!!! Se a puser na lama, dentro de água para ganhar ferrugem, se passar com um carro por cima para a espalmar, etc.?!!! E António continuou, entrando francamente no sarcasmo, ainda que indireto, o que quase nunca fez com José porque sabia que este era dado a fáceis suscetibilidades: - E até posso fazer tudo isto logo ali à frente de quem ma vendeu… E o burro do vendedor a ver a sua moedinha a valorizar ali à sua frente, logo a seguir a tê-la vendido, por efeito dos maltratos que eu lhe infligisse ali mesmo… Vendedor estúpido! José ficou em silêncio, cabisbaixo. António prosseguiu, levando ao extremo a demonstração pela redução ao
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absurdo, mas, sob o efeito do emudecimento de José, abandonou o tom sarcástico: - Então seria quase impossível arranjar moedas antigas em bom estado de conservação porque quem as apanhasse ou as tivesse pôr-se-ia logo a desgastá-las… E se o desgaste provocar o desaparecimento do valor facial da moeda? Como se sabe que moeda é? - Sabe-se pelo tamanho e pelos desenhos… - retorquiu José, já um pouco receoso. - E se a data desaparecer? Sabe que moedas do mesmo valor facial, mas de anos diferentes, têm valores para colecionador muitíssimo diferentes… Umas datas são muito mais raras do que outras… Se não tiver data, como se avalia a moeda? José, como lhe era proverbial neste tipo de desfecho de conversa, estava já a ruborescer. Resolveu, então, encerrar o assunto tentando, também como lhe era costume, uma saída airosa, sem apelo nem agravo para o interlocutor: - Bem, não sei, não deve ser bem assim, teria que falar com alguém que entenda do assunto… Mas a festa é já amanhã, já não tenho tempo para isso e para ir comprar… Tenho que pensar noutro presente. E assim termina abruptamente José as conversas, deste modo infantil, sem dar o braço a torcer, sempre que se vê encurralado, sem capacidade de argumentação. Dá a entender, quase sempre indiretamente, que o interlocutor, mesmo quando na sequência de um pedido de ajuda de José, inclusive quando lhe apresenta justificações razoáveis que não requerem grande grau de especialização para serem entendidas e aceites, não está adequadamente qualificado para emitir opiniões sobre o assunto em liça. Isto, a um só tempo, é manifestação, da parte de José, por um lado, de despeito pelo interlocutor que está a humilha-lo, e, por outro, do seu proverbial deslumbramento pela suposta sabedoria única de diplomados e outros
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especialistas, que não concebe como poderá estar ao alcance de leigos. Portanto, e realçaremos isso mais à frente, José tem sérias dificuldades em compreender como é possível que não especialistas em um qualquer assunto em causa possam ter informações e opiniões válidas sobre o mesmo. Postura própria, lá está, de ignaro deslumbrado pelo saber em geral que lhe escapa à mínima compreensão. Esta sua atitude é comparável à de assombro dos físicos teóricos e astrofísicos perante a singularidade, perante a ideia de buraco-negro, por exemplo: é quase certo que ali está, não se veem os seus contornos, está sujeito a leis, em princípio, inesprecutáveis, não se percebe bem para que serve e, no entanto, ali está e, de alguma forma funciona e é incontornável. Um mistério! Um mistério é para José a existência de saberes que ele próprio não domina, nem de longe. Em outra ocasião exasperou uma pequena audiência de quase desconhecidos, e envergonhou alguns dos seus familiares que estavam por perto, com intervenções a propósito de um tema quente à época: o terrorismo islâmico e as migrações para a Europa de muçulmanos fugidos da guerra na Síria. Afirmou, em síntese, numa pequena sucessão de intervenções, que se deveria proibir a entrada de emigrantes muçulmanos, e não dos outros. Confrontado com como conciliaria isso com o princípio constitucional da liberdade religiosa e da não descriminação com base na religião professada, com o qual veementemente concordou, monstrou a todos os presentes que não percebeu nada de inconciliável na sua posição. Para José, tratava-se, simplesmente, de impedir a entrada de muçulmanos e de deixar entrar quem professasse outras religiões. Naturalmente, de nada serviram argumentos de que os islâmicos radicais são uma minoria, de que a esmagadora maioria dos atentados terroristas acontecem em países de
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maioria islâmica e são perpetrados contra muçulmanos (José pôs isto em dúvida, o que não foi mais do que um exemplo da estratégia que utiliza com frequência quando lhe apresentam factos que, embora elementares, ele desconhece e que contrariam as suas convicções. É absolutamente patético nestas suas negações do óbvio, do factualmente estabelecido.). Só se refreou quando lhe apresentaram argumentos mais operativos do género: E o que se faria com os muçulmanos que já cá vivem?; E com aqueles que já têm nacionalidade?; E como seriam inequivocamente identificados e escolhidos, se é proibido registar a filiação religiosa em documentos oficiais?; E como se ficaria a saber se os candidatos a entrarem no pais, ao declararem a sua religião, não estariam a mentir só para o conseguirem? Uma outra vez, para lhe apresentar apenas mais um exemplo, caro leitor, em que José, de novo caiu no ridículo em público, sem vislumbrar minimamente porquê, afirmou que os presos não deveriam ter direito a muito do que usufruem nas prisões. Deveriam viver como os mais pobres dos mais pobres. Portanto, sem camas, sem banho, sem refeições certas a horas certas, sem aquecimento no inverno. Deveriam, inclusive, viver apenas das esmolas que arranjassem, concordou ele quando um dos presentes lho perguntou em desafio jocoso de que ele não se apercebeu. Acrescentou ainda, a propósito, que deviam ser obrigados a trabalhar para pagarem as suas despesas. E manteve esta sua posição mesmo perante a pergunta, do mesmo brincalhão, de como conciliar isso com a proibição legal de trabalho forçado, mesmo que remunerado? E de como se faria a distinção desse regime de vida, que José recomendava para os presos em geral, de tão só e simplesmente maus tratos? E qual seria a bitola? Qual seria o termo de comparação do grau de pobreza adequado para
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os presos? Nesta altura já José estava completamente perdido, mudo e ruborescente. Para se ficar com uma ideia ainda mais precisa do que é isto de se conversar com José ou de se presenciar as suas conversas, vale a pena ter em conta a ideia que se impôs a António diversas vezes sobre ele: até o conhecer não imaginava que fosse possível uma mesma pessoa conjugar tanta estupidez e tanta ignorância a ponto de nenhuma consciência ter dessa sua condição. José, de facto, não se apercebe que causa nos outros incredulidade, consternação, indignação, constrangimento, sensação de aviltamento, e um enorme e muito desagradável exaspero, um sentimento de total impotência quanto a conseguirem com ele uma conversa com pés e cabeça, com alguma sustentação, e intelectualmente honesta. Sofre apenas por via dos efeitos claramente observáveis: essas pessoas, depois de o conhecerem, evitam aproximar-se dele de novo porque qualquer conversa minimamente interessante e informada é impossível. Isto para além do risco de serem vítimas da falta de urbanidade e civismo de José.
Mas, já vimos, não descortina porquê e, por isso, vinga-se
alinhando sem pestanejar na propagação de intriga sem qualquer fundamento. Sempre foi uma das suas ocupações favoritas e fá-lo com ligeireza e sem grande esforço. Na sua mente infantilmente perversa sempre se justificou, sem lugar a qualquer dúvida, a seguinte norma: se não gostas de mim, eu também não gosto de ti e isso dá-me o direito a fazer-te mal. E para isso basta que o ignorem, ou perto disso. Para José, como para as crianças ainda bem pequenas, não gostar dele é fazer-lhe uma maldade, logo, maldade que merece castigo. Quase toda a gente de que dele não precisa para nada vem a ser vítima desta sua propensão, sentindo-se, no mínimo defraudada, acabando por esfriar a relação ou, mesmo, cortá-la radicalmente.
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Nesse sentido, José é daquelas pessoas a quem se aplica por inteiro o cliché normativo de que “se, junto de ti, faz intriga sobre outras pessoas, junto dessas, e de outras pessoas, fará intriga sobre ti”. Muitas vezes utiliza, e utilizou, um método simples que frequentemente resulta para os seus intentos. Em conversas a dois, privadas, refere-se a alguém ausente, levantando apenas o véu, em termos pouco abonatórios, mas genéricos. Então, aguarda que o interlocutor do momento concorde com ele e, eventualmente, que acrescente algo mais à maledicência, algo de mais concreto. Posteriormente, munido destas novas armas, assim que tem oportunidade, numa conversa subsequente, desta vez com a vítima visada naquela inicial conversa, conta-lhe o que o seu interlocutor desta lhe disse sobre ela. E, se munições também recolher nesta segunda conversa, irá fazer o mesmo numa conversa posterior com o seu interlocutor da conversa original, revelando-lhe o que o segundo lhe disse sobre ele. E esta cadeia poderá durar para sempre, se nenhuma das vítimas a interromper afastando-se. Assim, tenta criar e prolongar relações, agradando a gregos e troianos, agindo, por assim dizer, como agente duplo. E José insiste neste modo de atuar como forma de tentar manter as pessoas próximas de si, ilusoriamente, já que a maior parte de nós, tão somente, não resiste a ficar a conhecer, mesmo que incrédulos e em dúvida, alguns suculentos íntimos podres e escabrosos de outros. É isto o que José tem para oferecer a troco de alguma atenção daquelas pessoas que ele gosta de considerar amigos e, sobretudo, que lhe permitem mostrar-se em público rodeado de alguém. É a forma que tem de aplacar o pânico de ficar só. Outros argumentos não possui com a generalidade das pessoas que dele não dependam nem pretenderam alguma vez retirar dele qualquer vantagem, ou que já desistiram de
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tal intento. Quase invariavelmente, essas relações terminam a curto e médio prazo. E compreende-se que assim tenha sido quase sempre… Daí uma parte significativa das presenças nas suas festas de aniversário de que tanto se orgulha, ao longo dos anos, terem acontecido não mais do que duas ou três vezes seguidas, quatro já será muito, e depois se terem obliterado totalmente e para sempre do seu círculo relacional. Uma outra forma de interessar outros em relacionar-se consigo, quando se encontra em posição propícia, consiste em dar a entender que é o interprete legítimo e fidedigno das intenções e desejos de pessoas ausentes, e mesmo de que tem mandato para por elas decidir. Esta estratégia funciona particularmente bem quando os ausentes lhe pediram, embora apenas isso, que recolhesse alguma informação junto de outros sobre assuntos de seus interesses, ou que tratasse de burocracias sem impacto no essencial. No entanto, por vezes, nem nada lhe pediram... E, embora só algumas vezes, quando os acontecimentos tomam um curso por si imprevisto e quando pressionado para isso pelos interlocutores do momento, e para que não fique a descoberto que, efetivamente, não tem real poder de representação, toma decisões que não lhe competem. Alguns equívocos, e alguns problemas graves relacionais por via de expectativas aparentemente legítimas criadas e não satisfeitas, tiveram que ser desfeitos. Mas José, sempre que se chega a esse ponto, retira-se de campo e enjeita qualquer responsabilidade, afirmando que fez o que lhe parecia ser o melhor para quem, supostamente, representava. Autonomeia-se, a posteriori, como intérprete e mandatário dos anseios de outros.
Claro está que José não sente qualquer desconforto
quando alguém, e pode ser um perfeito desconhecido, entabula conversação consigo denegrindo, caluniando,
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levantando as mais graves suspeições sobre qualquer amigo seu e, até, familiar próximo, incluindo os seus petizes e a sua Maria. Pelo contrário, alimenta a conversa e encanta-se de modo a agradar ao interlocutor e tentar cimentar ou renovar uma antiga amizade ou construir uma nova. E, claro, fica, em particular, muito satisfeito quando a conversa versa sobre pessoas em relação às quais já estava à partida de pé atrás. Já percebeu, caro leitor não é preciso muito para se cair neste saco. Por vezes, embora não sejam as circunstâncias preferidas de José porque acaba por se retrair e não interpelar, isto acontece no seio de um pequeno grupo. António não consegue evitar uma sensação de repulsa sempre que na sua mente surge a imagem de José em postura de sôfrega audição de alguém falando de um qualquer ausente. Ele senta-se hirto, absolutamente imóvel de corpo e rosto, expressão de cara de pau, olhos fixos em quem fala. Quase que apenas se nota abaixo das maçãs do rosto, na continuação dos cantos da boca, um ligeiríssimo tremor provocado pelo profuso salivar. Apenas isso. E também se percebe, pelo distender desalentado do corpo, o desapontamento de José quando nenhuma revelação suculenta foi feita. E propaga o que ouve, aos quatro ventos, em todas as ocasiões propícias com que se depara. - Mas não cortou com a conversa, não se sentiu mal, não sentiu desconforto?!!! - perguntou-lhe um dia António depois de José lhe ter relatado circunstanciadamente uma dessas suas conversas a dois supostamente muito reveladoras. José não reagiu, nem percebeu verdadeiramente a sustentação da pergunta. Apenas retorquiu: - É sempre bom ouvir o que as outras pessoas têm a contar sobre os nossos conhecidos… E António contra-argumentou:
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- Mas sabe que tudo isso não é verdade, não sabe? Não esclareceu isso?! A que José respondeu: - Não. Não era sobre mim… O acusado que se defenda… - Então, mas se ainda por cima sabe que não é verdade…- Tentou António chamá-lo à razão. - Sim, algumas coisas não são verdade, mas outras não sei, não estou em situação de ter a certeza de que não são verdade. Para José o “não estar em situação de ter a certeza de que não são verdade”, não conseguir provar que não são verdade, era, e é, mais ao menos, o mesmo do que suspeitar seriamente de que são verdade até prova em contrário. José prefere, a qualquer pretexto, assumir suspeitas como quase certas, para que em circunstância alguma seja apanhado de surpresa fora de pé, mesmo que isso signifique enganar-se muitas vezes e cometer injustiças, algumas visivelmente bem graves e prejudiciais. Atitude esta hiperdefensiva que, pensa António, resulta da sua estupidez e ignorância e de uma história de vida em que foi mutas vezes enganado. António ainda tentou fazê-lo ver, usando do máximo de urbanidade que conseguiu, que não estava certo propagar maledicência, muito mais aquela de cuja veracidade nem tínhamos a certeza; Que podíamos, procedendo desse modo, causar graves danos; Que até prova irrefutável, qualquer suspeito tem direito à presunção da inocência…; Que não é o réu, por assim dizer, que tem o ónus da prova. E não é só no sistema judicial. Para não falar de que quem propaga uma intriga pode estar a fazê-lo deliberadamente para prejudicar o alvo dessa intriga e, até, pode estar a mentir deliberadamente. “Ónus da prova”, “presunção de inocência”, “sistema judicial”, quando António proferiu estas expressões logo
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hesitou e refletiu sobre se não as deveria explicar a José. Mas pouco se importou e não o fez. Já sabia e estava habituado a que ele não conhecesse o significado de muitas palavras e expressões e, também, que não o desse a entender, continuando a agir como se estivesse a compreender tudo. Poderia, inclusive, ter recorrido à célebre e venerável expressão in dubio pro reo que José nem acusaria o toque da sua absoluta incompreensão. Embora, também estava certo, teria atribuído, por causa desse simples uso, mais importância e credibilidade ao que António lhe havia dito. Mas, para além do que sobre o tema foi descrito atrás, para José a simples suspeição, tenha que origem tiver e seja qual for o seu criador ou propagador, já é razão suficiente para castigo. De alguma forma, considera, sem verdadeiramente o saber, que a condição de suspeito já é de uma indignidade cujo ónus é justamente assacável ao próprio. Essa condição é já um delito em si, uma falha com culpa. E é, também, como se fosse já um castigo merecido por antecipação de algo que ainda não se sabe bem e na totalidade. A simples suspeição, o dar-se à suspeição, e quanto mais badalada ainda mais, é já prova indelével de algo defeituoso na pessoa e, por isso, é já censurável. Em suma, José, sem o saber, é cega, selvática e indiscriminadamente adepto da versão mais radical e fundamentalista do aforismo “Não há fumo sem fogo”. No entanto, na perspetiva de António, aquela conversa relatada atrás teve um efeito benéfico. José nunca mais voltou a fazer dele seu confidente de intrigas. A relação esfriou, é certo e ainda bem, mas, por imperativos de natureza familiar, manteve-se assídua e civilizada apenas quanto o necessário para assegurar o fluir do dia-a-dia corrente. Algumas pessoas sabem deliberadamente utilizar esta tendência de José para propagar maledicência com o intuito
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de causar mal aos seus familiares, amigos e, até, a apenas conhecidos. José, porque não se autocensura minimamente, é das vias mais rápidos ao dispor para se conseguir propagar boatos e fazê-los chegar rapidamente a quem se quiser para, desse modo, inquinar relações. Basta plantar qualquer suspeita na mente sôfrega e acrítica de José, mesmo que muito indefinida e com pouco fundamento, para que este desempenhe o papel de idiota útil de modo diligente e eficaz. Muitas relações se estragaram, algumas para sempre, outras por muito tempo, graças ao seu amoral e abjeto contributo. Contudo, José entende que está a prestar um bom serviço àqueles a quem faz as suas supostas revelações. António e Miguel costumam concordar sobre que José é uma porta escancarada – a melhor porta! - para quem queira causar dano a qualquer pessoa que com ele se dê, incluindo aos familiares e amigos mais próximos, e também mesmo quando essa relação seja quase inexistente. Sim, José também propaga sem freio os murmúrios que se refiram a gente que apenas conhece de vista. Uma das suas frases típicas é: “Eu não sei mas estou a vender como me venderam a mim… “. Perante esta pérola da sonsice, António considera que está tudo dito e há, apenas, que conter o vómito. Miguel acrescenta que há que conter e guardá-lo para mais tarde, para a casa-de-banho, a bem da saúde puramente corporal. O que causa repulsa às vísceras precisa de ser expulso.
Mas José não se limita a transmitir boatos e suspeições
pouco fundamentadas. Por vezes, também os cria. E quase sempre por confusões suas e motivos vários absolutamente desconcertantes para quem ainda não o conhece bem. Por exemplo, como homem de algumas posses e quase analfabeto, e não integrando jamais ideais elevados e inocentes na sua visão do mundo, odeia os comunistas que,
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na sua conceção simplória e finita, são somente e apenas um bando de ladrões organizados que não querem trabalhar; Só querem roubar o que não é deles para exclusivo proveito privado. Numa ocasião, tendo-se apercebido que o amigo de um dos petizes estava a ler um livro sobre a História do Comunismo - um dos raros amigos que tinha por hábito ler -, logo lançou sobre ele o anátema de que seria um perigoso revolucionário de esquerda a evitar. E de seguida difundiu também a suspeita de que tinha sido ele que havia roubado uma pequena peça de porcelana dada como desaparecida de casa após uma pequena festa para a qual tinha sido convidado. De nada serviu dizerem-lhe que o amigo da família em causa não era, de todo, comunista, antes pelo contrário, mas que apenas se interessava por História em geral. Ficou irredutível. Desafiava os defensores do acusado a responderem satisfatoriamente à pergunta: “Mas porque raio está ele a ler um livro sobre Comunismo se não é comunista?!!!”. E ainda rematou: “E a porcelana continua desaparecida! Hão de lhe perguntar por ela…” Na mesma linha de processo mental, José acusou um conviva um dia, em termos absolutamente impróprios, de gostar da guerra somente pelo simples facto dessa pessoa, conhecido como apreciador de cinema por toda a gente da família, ter manifestado publicamente a sua admiração por um filme, lá está, cujo enredo se passava, integralmente, em contexto de guerra. Tratava-se de uma obra aclamada pelas pessoas em geral e pela crítica profissional, e profusamente premiada. E não ouve maneira de demover José da sua convicção. Para ele, os filmes eram bons ou maus consoante o enredo era, ou não, agradável e recomendável. Os finais, sobretudo os finais, tinham que ser belos e edificantes. Para ele, uma estória só era boa se reproduzia o bem, o belo, a felicidade e a alegria, e o que está certo. Para José, retratar a maldade era como ser-se
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mau, retratar o horrível que o mundo tem era como ser-se horrível. E apreciar esses retratos, de alguma forma, significava o mesmo. Por isso, José consumia quase só cinema na tv de sábado e domingo à tarde, principalmente nas épocas do Natal e da Páscoa. Só merda glicodoce, como diria António, só para si. Posteriormente, António veio a compreender melhor esta postura tão radical e infantil de José, e a encará-la com mais benevolência, por comentários que lhe ouviu sobre alguns filmes e, sobretudo, novelas. Percebeu que, tal como as crianças, ele tem dificuldade em distinguir uma obra de ficção da realidade propriamente dita a que ela eventualmente se reporta. Sendo assim, tal como as crianças até certa idade, por esse facto, em grande parte por essa incapacidade em fazer essa distinção, José revela- se extremamente impressionável quando vê ficção na tv de pendor realista. Mas, justiça seja feita, a José tanto se lhe dá para tais juízos delirantes inconcebíveis quer seja para o mal, quer seja para o bem. Na mesma linha, entendeu um dia que um outro conhecido seria um profundo e bom devoto de Deus, uma boa pessoa, porque se interessava pela História das Religiões, já que andava a ver uma série documental na tv sobre o assunto. Também de nada serviu dizerem-lhe que a pessoa em causa era um ateu convicto. Aliás, para José, o epíteto de ateu, a par do de comunista e do de socialista, era do pior que se poderia dizer sobre o carácter de alguém, logo certamente de todo desadequado a quem piamente, no seu entendimento só poderia ser desse modo, se interessasse por religiões. No entanto, é e sempre foi incapaz de explicar com um mínimo de rigor o que são as ideologias comunista e socialista, assim como, por exemplo, de distinguir um ateu de um agnóstico. As associações de ideias que se dão na mente de José são, e sempre foram, imprevisíveis para qualquer mente sã,
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assim como as convicções que, para ele, delas emergem inapelavelmente. Mesmo depois de muitos anos de convívio, ainda que moderado, António nunca deixou de se surpreender de quando em vez, embora gradualmente fosse diminuindo a sua incredulidade e espanto, com aquelas produções mentais de José. Digamos que para ele, o absurdo, no que a José diz respeito, foi-se paradoxalmente instalando como a norma. Ao longo dos anos, embora a espaços, José é protagonista de surtos episódicos em que despeja as suas inconcebíveis associações na cara do visado, em acessos públicos descontrolados de ira acusatória infame, retirando-se logo de seguida, cobardemente, não dando hipóteses de defesa à vítima vilipendiada. No entanto, convicto, considera que este seu proverbial, ainda que raro, comportamento é prova de que não é hipócrita nem cobarde. António, Miguel e o jovem já nosso conhecido, entre si, a propósito, divertem-se a pôr-lhe rótulos. O último, sugerido por Miguel, foi: “O cascavel - quando nada o faz prever, José executa uma rápida aproximação e como que lança uma cuspidela na cara de sua vítima seguida de fuga para local fora do alcance visual desta, ou protegido no meio de outros convivas”. Por vezes, estes acessos têm tão só por ignição um simples sopro de orelha de alguém sobre algo que o visado da investida possa ter dito na ausência de José. Às vezes nem isso, por vezes apenas uma insinuação. No entanto, José age como se fosse absolutamente certo e comprovado o que lhe foi dito. Sem sequer interpelar a vítima, lança-lhe a sua ira acusatória com tal veemência que quem assista, e ainda o conheça mal, tenderá a olhar o acusado como alguém que tenha cometido falta grave. Da fama este não se livrará facilmente.
Às vezes José, tão só por falta de pudor, por manifesta
insensibilidade e incompreensão do que é do âmbito
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estritamente familiar, comenta com estranhos à família assuntos pessoais privados de membros da mesma. Assuntos que estes jamais ventilariam com aqueles estranhos. E aqui se incluem os do foro mais íntimo. - Ele teve, coitado, um tumor na ponta do coiso… - José, utilizando o seu polegar esquerdo a fazer de coiso, procurava dar uma ideia da localização do mal no dito coiso – e teve de ser operado. Coitado, parece que não ficou a funcionar muito bem e já não fazem há algum tempo… Parece que ela sente falta, não se queixa, mas, já sabemos como é… António, que já ouvia em total silêncio, mais mudo ficou de estarrecido que estava por tão bárbara inconfidência, que nem vinha nada a propósito, que não era necessária na conversa que estava a decorrer, e que se referia a um casal com quem tinha pouca intimidade. Optou, daquela vez, por não comentar ou dar seguimento ao assunto. António costuma dizer para si próprio que José, uma vez de posse de uma qualquer informação, seja ela qual for e respeitante a quem for, entende que é seu dono e senhor e que, por isso, lhe pode dar o uso que bem entender. Assim se compreende que José não entenda o alarido que hoje em dia se faz a propósito da necessidade de leis adequadas de proteção de dados. Mais um tema em voga a propósito do qual tem também caído no ridículo sem se aperceber disso. Na mesma linha, entende que quando obtém uma informação que diga respeito a outra pessoa, que seja do interesse desta, é livre de decidir se lha faculta, ou não. Arvora-se em decisor, sem que o interessado o saiba e possa ter uma palavra a dizer, como seria de seu direito, daquilo que será para seu bem ou mal. - Eu não lhe disse o que me contaram sobre a possibilidade e facilidade em conseguir, para o Francisco, uma bolsa de estudo para Inglaterra porque o Francisco tem
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é que ficar cá a estudar. As nossas universidades são muito boas e de graça. Não é preciso bolsa para nada! E assim José se arvorou em decisor sobre um aspeto importante da vida de um seu neto, o que já de si foi uma abusiva e aviltante intromissão na esfera de decisão dos pais dele, sobre um assunto do qual nada entendia e sobre o qual tinha convicções elementares, preconceituosas e erradas, pelo menos no que ao neto em concreto dizia respeito. José tem por hábito atuar deste modo: sempre que tem esse poder, toma e impõe decisões que não lhe competem. Quase sempre pela calada, claro está. Por vezes com efeitos irreversíveis, às vezes gravosos. Afortunadamente para Francisco, ainda foi possível pedir a bolsa a tempo por um feliz acaso.
Também acontece José manchar a reputação de alguém
por pura precipitação, sob pretextos insignificantes, por motivos pueris. Muitas vezes levanta facilmente suspeitas graves por simplesmente se apressar nos seus julgamentos, ou por exagerar quanto ao que pensa que são as intenções da pessoa em causa, para depois vir a verificar que se enganou. Mas o mal fica feito porque do seu desengano muito menos gente fica a saber. Não é tão lesto e profícuo a desfazer suspeições como é a criá-las e a difundi-las. Lá está, a suspeição, para si, já deve, pelo menos parcialmente, a índole culposa do suspeito e, por isso, já justifica o seu afã divulgador. António lembra-se bem como José criou um boato, que perdura há anos, sobre um familiar que lhe pediu uma pequena quantia de dinheiro emprestado apenas por uma semana. Precisava de fazer um pagamento dentro do prazo, para não ser multado e para que não lhe fossem cobrados juros, mas só teria o dinheiro necessário disponível uma semana depois desse prazo. Infelizmente, por questões burocráticas relacionadas com transferências bancárias
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transnacionais, só conseguiu pagar a sua dívida a José duas semanas depois, não uma. Pois, na semana que mediou entre o fim do prazo acordado e o efetivo pagamento, para muita gente com quem José se encontrou, aquele seu familiar passou a ser conhecido como o maior caloteiro. José, quase sempre a despropósito, deixava transparecer, enquanto a dívida não lhe foi paga, que estava a ser enganado, que o motivo apresentado para o pedido do empréstimo não era real, que receava nunca mais vir a receber o seu dinheiro. Isto apesar de José, em devido tempo, ter tido acesso a informação documentada, fornecida pelo devedor, que provava que, de facto, tinham havido os tais problemas não previstos que tiveram como consequência o atraso na disponibilização da verba. Mas José tem fraca capacidade de compreensão e, talvez também por isso, desconfia de tudo e todos ao mínimo pretexto e não o esconde. Algo idêntico aconteceu com uma outra pessoa com quem José acordou comprar-lhe um apartamento. Foi marcada uma data para a realização da escritura de compra e venda e para a efetivação do correspondente pagamento por parte de José. Mas, dois ou três dias antes dessa data, o vendedor telefonou-lhe para lhe dizer que tudo teria que ser adiado quinze dias porque, diferentemente do previsto, a inspeção dos bombeiros ainda não se tinha realizado, não estando, por isso, ainda a licença de habitação pronta. Pois, apesar da compra se ter vindo a realizar efetivamente, sem quaisquer incidentes adicionais, na segunda data aprazada, no espaço de tempo desse adiamento meio mundo ficou a saber que “Já não confio naquela pessoa, não sei já se quero fazer o negócio, tenho medo”, “Os bombeiros devem ter encontrado qualquer problema e eu não sei, não querem que eu saiba”, “Estão a enganar-me”, “Deve, mas é, haver qualquer defeito grave com o projeto, com a construção, com qualquer licença na Câmara…”. Escusado será dizer que a maior parte das
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pessoas a quem José manifestou estas suas infundadas suspeitas não chegaram a ficar a saber do desfecho do negócio que decorreu dentro da normalidade, a contento dele e do vendedor. Ou seja, este da fama nunca mais se livrou! Das muito poucas vezes que alguém o censurou abertamente por estar a manchar a reputação de uma pessoa com base, apenas, em suspeitas que não podia provar nem podia, ele próprio, verificar, José defendeu-se enfaticamente afirmando que era livre de ter e expressar as suas opiniões como bem entendesse. José, desgraçadamente para as suas vítimas e outros que o ouvem, nunca distingue o que é uma opinião sobre ideias, sobre formas de resolver problemas, sobre decisões a tomar, sobre escolhas a fazer, etc., do levantamento de hipóteses sobre factos, atitudes e comportamentos supostamente efetivos de outros. José sente-se livre de pressupor, sem provas, o que bem entender sobre quem quiser. Até prova em contrário, lá está, já sabemos. Para ele, tudo se enquadra no princípio da liberdade de opinião e de expressão. Aliás, sobre qualquer assunto, sente-se livre de opinar quando, quase sempre, desconhece os factos essenciais relevantes. José ignora a simples possibilidade de não ter opinião, ou de precisar de informar-se para a ter. Para ele, tudo se pode enquadrar no campo das opiniões e, por isso, sente-se sempre livre de se expressar e propagar o que quer que seja que lhe assome à mente. António, há muito tempo, é certo, chegou a exasperar uma vez ou outra ao tentar explicar-lhe a diferença entre suposições e opiniões, mais simples ainda, entre adivinhar e constatar, entre supor e verificar. No fundo, tentou, sem sucesso, fazê- lo perceber o que pode ser considerado calúnia, mesmo que em círculos restritos. Mas para José isso da calúnia é coisa que só se aplica a personalidades públicas, políticos, …, em jornais, televisões…
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Ninguém está livre de, inadvertidamente, acender o rastilho altamente inflamável que é José. Mesmo das conversas mais inocentes e, até, bem-intencionadas, ele entrevê motivos para propagação do boatos e rumores. Como a sua postura é a de permanente intriga e desconfiança e de difusão velada, e não tão velada, de maledicência, presume que todos os outros também assim são. E, diga-se que em grande parte por seus equívocos de estulto, municia-se ao mínimo pretexto. Referindo-se à petiza, comentou um dia na presença de Maria e de António: - Vejam lá que o Miguel se queixa que ela anda com muito mau hálito… Imagino que está muito insatisfeito, que já não gosta muito de estar com ela na… Enfim, parece que já não lhe agrada tanto como antes, que lhe mete um bocado de nojo… António, já bastamente prevenido, não comentou e resolveu averiguar. Para além da evidente falta de pudor no que a um assunto privado do casal em causa diz respeito, José, mais uma vez, adquiriu uma convicção absolutamente falsa e, até, como lhe é hábito, adornou-a com alguns detalhes que, no mínimo, são indecorosos. E qual foi a suposta fonte de informação de José? Foi uma simples conversa entre Miguel e o petiz, que lhe foi relatada por este, em que aquele revelou a sua preocupação já que receava que aquela alteração no hálito da petiza, que era um facto, pudesse indiciar alguma doença grave. E mais, Miguel, até então, tinha optado por não falar do assunto à mãe de seus filhos porque queria evitar, o que não era fácil, que ela entrasse em pânico e, nomeadamente, afligisse as crianças. Mas o que acabou por acontecer, porque José lhe contou a ela a sua tendenciosa versão, transmitindo-lhe a ideia de que não lhe restavam quaisquer dúvidas, foi a petiza adquirir o convencimento íntimo e angustiante, mas
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que rapidamente se transformou em infantil despeito e, depois, em desdenhar forçado, de que Miguel pretendia deixá-la. E José nada fez para a dissuadir ou fazer moderar tal convicção. Depois disto tudo, António ficou ainda a perceber que a intenção de Miguel na conversa com o petiz tinha sido, tão só, a de buscar aconselhamento sobre como levar a petiza a uma consulta médica sem a apoquentar em demasia. Seguiu-se um largo período em que Miguel foi alvo de atenções especiais de toda a família e amigos próximos, não fosse ele estar interessado em uma qualquer outra mulher. Naturalmente, todas as mulheres que, entretanto, passaram perto de Miguel foram consideradas, entre o vulgo, sérias e quase certas candidatas a destronar a petiza. Sim, rapidamente, José, Maria e o petiz, este facilmente convertido à interpretação de seu pai sobre os eventos, difundiram a sua convicta suspeição sobre Miguel. Equipas de batedores espontâneos, constituídas por gente desocupada, se mobilizaram para vigiar Miguel. Para tranquilidade deste, e não obstante a propensão para facilmente se desenvolverem falsas crenças naquelas mentes, não foram encontradas provas que pudessem ser consideradas irrefutáveis, mesmo em face de critérios muito pouco rigorosos. Miguel levava uma vida impoluta e assoberbada de trabalho. No entanto, como o leitor pode antever, a suspeição manteve-se para sempre, umas vezes adormecida, outras vezes nem por isso, sempre pronta a ser avivada ao mais ínfimo pretexto. Por exemplo, basta Miguel levantar-se da mesa e afastar- se antes de atender o telemóvel, como mandam as mais elementares regras de educação. Para José e outros, sobretudo aqueles que lhe querem agradar, este comportamento, ainda por cima frequente, é prova inequívoca de infidelidade efetiva ou, no mínimo, iminente. A tal suspeição que, para José, já é em si reprovável e
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merecedora de opróbrio. Para Miguel, são apenas telefonemas inoportunos que recebe por motivos profissionais, os quais muito desejaria poder rejeitar. Mas sempre a leste ficou de todo este enredo criado na sequência da sua ingénua conversa com o petiz sobre o bafum da petiza. Para sua tranquilidade, também.
Em algumas raras ocasiões as relações com José
esfriam, e ou terminam, por outros motivos mais invulgares e ainda mais abjetos, que não somente a intriga e maledicência pouco fundamentada. Quando familiares e outros próximos enfrentam problemas graves e complicados de resolver, põe-se à distância, “foge”, e mantém-se em silêncio (apenas tudo ouve atenta e sofregamente) para não correr o risco de ser chamado a contribuir com esforço ou dinheiro, e para não se comprometer com qualquer opinião sua que possa, eventualmente, vir a verificar-se ser disparatada. (Daí, por exemplo, a previsão de Miguel, a que aludimos atrás, sobre o que aconteceria se, um dia, deixasse de conseguir pagar as contas da petiza e sua prole.). Mas, como acontece na vida em geral, na maior parte das vezes tudo acaba por ser resolvido, a maior ou menor contento dos interessados, e José continua a manter- se distante e em silêncio. Se, eventualmente, o problema se agrava, parecendo não ter resolução, na primeira oportunidade, sem o mínimo de pudor e de caridade, aponta culpados e debita sentenças sobre o que não foi feito e devia ter sido. Naturalmente, isto numa altura em que já não é possível comprovar o acerto das suas críticas e recomendações. Para José, o facto de não aconteceram os resultados desejados é consequência direta, sempre, de decisões erradas. Já sabemos, para ele, a vida é simples, não há ligações complexas entre fatores, as relações diretas de causa-efeito estão aí para serem apanhadas (de acordo
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com as suas conveniências, mas isso ele não sabe). Mas vai mais longe, ainda que também não tenha consciência disso: não acontecerem os resultados desejados é prova irrefutável de que as medidas alternativas por ele preconizadas – sempre à posteriori, já sabemos – são as corretas. Em cada caso concreto, incorre na falácia de que a medida alternativa que, em particular, lhe ocorre daria, certamente, não só melhores resultados, como os melhores possíveis. Aliás, a que lhe ocorre é, na sua perspetiva, a única correta porque se lhe apresenta como diametralmente oposta àquela que resultou em algo indesejável. Outras possibilidades de atuação, eventualmente melhores, não existem, nem existiram. José vive, lá está, num mundo simplificado de contrários, unidimensional, e não no das múltiplas diferenças e opções, conhecidas e desconhecidas, cujos efeitos são difíceis de prever e de controlar. Por isso, também, e falácia esta ainda mais difícil de desmontar, é a crença de José de quando a opção por ele recomendada ou, mais frequentemente, por si adotada no passado em situação que julga semelhante à vertente, é implementada e dá resultados desejáveis. Nestas circunstâncias, José não tem dúvidas de que seria a única a adotar, de que não havia melhor e, até, outra possível. E adota também este padrão comportamental de distanciamento e não comprometimento, e explicativo, até perante problemas de saúde de seus familiares e outros dependentes, particularmente em relação àqueles para cuja resolução ele se encontra em posição privilegiada para contribuir, e com esforço pessoal muito menos pesado e gravoso do que outros e do próprio. Mesmo quando, para qualquer mortal sensível e bem formado, se impõe a necessidade, e o impulso, de, ao menos, dar conforto emocional, José preserva o seu distanciamento, não vá ser apanhado nas malhas de eventuais escrúpulos de consciência e de alguma réstia de empatia ou dó. Sempre
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incorreu no incumprimento dos mais elementares deveres de paternidade e de cônjuge, para não falar dos da simples caridade, particularmente se visto em proporção às suas possibilidades e à natureza da sua relação com quem se encontre necessitado. Como que fecha os olhos, tapa os ouvidos e se vira de costas. E se entrevê que alguém por perto está capaz e poderá, eventualmente, fazer face a despesas inevitáveis e a prestar outros cuidados, ainda mais desobrigado se sente. E isto sempre sob justificação de que o seu pecúlio vale mais porque, supostamente, lhe custou mais a acumular. O que, no mínimo, nem sempre é verdade. Nestas ocasiões, a sua ignorância sempre lhe facilitou a vida – sempre o ajudou a encontrar boas justificações para se eximir às obrigações que a maior parte dos seres humanos em circunstâncias idênticas adotaria espontaneamente como suas. Sempre em busca do mais barato, chegou a correr riscos com a saúde dos seus filhos que, tendo em conta a sua situação financeira, eram perfeitamente evitáveis. A sua existência foi sempre simples, sem complicações: o mais barato, se possível, o gratuito, é sempre, mas sempre, a melhor opção. Com esse princípio subjacente, cometeu barbaridades sobre outros, e prejudicou-se financeiramente por, nomeadamente, se deixar enganar por vendedores da banha da cobra de baixo preço. Mas raramente se apercebeu disso e, muito menos, o reconheceu perante si e perante outros. Com frequência, perante casos concretos, argumentou que não contribuía para despesas, que eram bem necessárias, porque entendia que a solução escolhida era cara. Tão só, sem se preocupar em fundamentar minimamente e ignorando demonstrações óbvias do contrário, muitas vezes, qual criança mal-educada, recusando-se a ouvir. Iliba-se assim de qualquer responsabilidade sobre a decisão do que é, realmente, mais
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importante. E, pior, sente-se desobrigado daí em diante de intervir. Posicionando-se em relação às questões deste modo, substituindo a necessidade de decidir sobre o assunto principal pela decisão pela negativa quanto ao assunto secundário de se é caro ou barato, disfarçou inúmeras vezes que fugia a responder à interpelação que verdadeiramente o incomodava: se ia ou não ajudar; se ia, ou não, gastar algum dinheiro. No limite, chega a utilizar uma versão modificada do mesmo argumento, reportando- se à época em que foi criança, adolescente e jovem adulto com poucos recursos, dizendo algo do género: “Quando isso me aconteceu, não tive essa possibilidade.”; “No meu tempo não era assim.”; “Eu tive que me contentar com…”. Ainda hoje não se apercebe que, para se eximir à prática do bem, utiliza o argumento falacioso de que consigo ninguém o praticou. Esquece, ou oculta, também, que no seu caso, isso aconteceu quase sempre por manifesta impossibilidade, e não por falta de vontade de quem dele cuidou. E, desde sempre, a inveja sobrevém quando alguém, mesmo que familiar próximo ou amigo, recebe os tais cuidados de saúde de que ele, supostamente, não foi alvo. A propósito, com indisfarçável despeito, diz que foi caro, que se arranjava mais barato, confundindo muitas vezes, para exaspero dos envolvidos, procedimentos de naturezas radicalmente diferentes, que implicam diferenças abissais nos custos. - Esse problema deve ter a ver com o Miguel… Na minha família nunca houve problemas com os bebés… A Josefa – José referia-se aqui à sua petiza – sempre foi cheia de saúde! E sempre achei que aquele casamento sem ser pela Igreja ia dar problemas… Foi este o único comentário, e o seu único sinal de tomada de conhecimento do problema, que proferiu quando lhe disseram que o segundo filho da sua petiza havia nascido prematuro e muito pequeno, e que precisaria de
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cuidados médicos especiais nas primeiras semanas ou meses. A partir desse momento, apenas ouviu em silêncio os comentários sobre o assunto que ia apanhando no ar. E António bem se apercebeu que ele esteve sempre repleto de sentenças a propósito, que sempre esteve na iminência de regurgitar frases que ouviu a especialistas diplomados e a supostos especialistas, que informalmente consultou por sua conta, que verdadeiramente não compreendia. Mas conteve-se! E conteve-se até que tudo entrou na normalidade e, por isso, não houve lugar a que fosse pertinente debitar a sua suposta sabedoria alternativa. Mas este episódio evoca em António uma outra faceta da figura central deste pequeno texto. Naquele preciso momento, António, ao ouvir o comentário de José, ficou siderado, em particular pela insinuação de que os problemas com o recém-nascido poderiam estar relacionados com o casamento não religioso dos pais. Miguel e a petiza casaram só pelo Registo – ele já tinha sido casado pela Igreja -, embora em cerimónia pública, com todos os convidados a assistir atrás, dispostos de forma idêntica à de uma capela, por baixo de umas arcadas de um belo e antigo edifício onde se realizou o copo de água. Talvez pelo cenário, José só alguns anos depois é que realmente percebeu que o casamento não tinha sido pela Igreja quando alguém lhe explicou que o senhor de fato cinzento escuro que oficiou à cerimónia não era padre. Inicialmente recusou-se a aceitar aquilo que, para si, era absoluta surpresa – e bem desagradável! -, mas acabou por o fazer após corroboração de várias pessoas. Mais à frente, caro leitor, será possível entender melhor como é possível José viver tanto tempo em tal equívoco quando nos referirmos ao seu proverbial sincretismo religioso cristão com pinceladas de paganismo quase mágico.
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Como já vimos, José sempre atribui aos titulares de diplomas académicos competências e capacidades de desmesurado valor e que aceita que vão muito para além da sua compreensão. Lida com eles quase como se fossem oráculos detentores de sabedoria oculta, logo, dispensados de fundamentarem com racionalidade os seus diagnósticos, as suas recomendações e previsões. No que diz respeito a José, basta-lhes serem convictos e razoavelmente articulados de palavras. E tanto mais é assim se ostentarem sinais exteriores de sucesso, mais próprios de charlatões que pretendem, precisamente, veicular essa imagem falsa, mas que José não identifica. Tende, portanto, a confiar quase cegamente nos seus conselhos e orientações. Por isso, em algumas ocasiões, procurou aconselhamento que seguiu sem verdadeiramente compreender e deu-se mal. Porque valoriza muito mais tudo e que lhe dizem ou lê se adornado, de preferência com fluência e ênfase, de palavras e expressões que não compreende. Isto é, verdadeiramente, sem o saber, o que sempre esperou e espera dos diplomados em geral. Por isso, algumas pessoas fazem uso deliberado de uma estratégia de grandiloquência hermética para se valorizarem junto dele. Sobretudo aqueles que têm a intenção de lhe oferecer os seus serviços profissionais em troca de remuneração. Incluindo médicos, já vimos. E quando quer dar a entender que está dentro de um assunto, a que atribui alguma complexidade, gosta de usar palavras que designam coisas que, verdadeiramente, não percebe. Portanto, por absurdo que pareça, José tende a atribuir tanta mais competência aos diferentes especialistas quanto mais eles utilizem um discurso incompreensível para si. Logo, poderíamos dizer, seria a vítima perfeita para qualquer charlatão. Mas não. Paradoxalmente, para infelicidade da generalidade deles, José interrompe, também sem conseguir explicar porquê, qualquer tentativa
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de o aliciarem a contratar serviços profissionais no momento em que procuram compromete-lo com despesas e honorários. E fá-lo, indistintamente, tanto com os mal, como com os bem intencionados (embora poucos destes andem por perto). Para ele, como acontece com frequência entre as pessoas ignorantes e de baixa instrução, sempre só teve valor em dinheiro aquilo que ocupa espaço, ou os serviços cuja execução demora um tempo determinado, de preferência verificável in loco, de modo a que José constate que algo de concreto e visível está a ser feito, com resultados palpáveis: barbeiros, manicuras, massagistas, enfermeiros, taxistas, empregadas de limpeza, dentistas, mecânicos, etc. Mas, constantemente, procura, desde que seja gratuito, os conselhos dos tais profissionais de préstimos mais intangíveis, e, com frequência, papagueia e segue as suas orientações, sem, já vimos, verdadeiramente as compreender. Os vendedores em geral, também já sabemos, beneficiam igualmente deste estatuto, ainda que mais moderadamente. Mas José, num padrão recorrente na generalidade das suas relações, como já pudemos observar, por exemplo, no que aos seus filhos e outros descendentes e dependentes diz respeito, costuma dar pequenas recompensas esporádicas e aleatórias àqueles profissionais que mais tempo se aguentam perto de si. Falamos aqui, sobretudo, de juristas, contabilistas, mediadores imobiliários, etc. Mantém- nos, assim, na esperança de um dia virem a alcançar condições remuneratórias melhores para os seus serviços. Isso nunca chega a acontecer. António acredita que José sempre sentiu, e ainda sente, um prazer mesquinho, algo mórbido, até, em ter na dependência de si, em suspenso e em situação de desespero e humilhação, de subalternidade algo mendicante, podemos dizer, gente com instrução superior à dele, titular dos tais diplomas que ele tanto idolatra, mas em situação financeira bem pior do que a sua.
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Claro que, compreensivelmente, os profissionais que se prestam a este tipo de vida não costumam ser de grande reputação e, normalmente, encontram-se em situação financeira tal de nem sequer as incertas, parcas e indignas recompensas de José poderem enjeitar. Aliás, sempre que um deles consegue encontrar alguma via alternativa que lhe dê, um pouco que seja, de alívio financeiro, de imediato, sem contemplações e demais explicações, deixa de frequentar o círculo de relações de José. De outro modo não poderia ser uma vez que ele só consegue manter em seu redor gente em dependência forçada. José fica magoado, já sabemos e, também já sabemos, usa a intriga para retaliar, desfazendo reputações. Felizmente para os visados, o alcance de José é muito limitado porque tem pouco acolhimento fora do seu restrito, desqualificado e ridicularizado mundo.
Mas gosta muito de dar a entender, sempre que possível,
que está bem por dentro da vida de outras pessoas afastadas de si que, visivelmente, estão financeiramente desafogadas, mesmo que, de facto, perceba mal o que elas fazem. Para José, quase que só existem diplomados médicos - os que mais considera -, e farmacêuticos, advogados, engenheiros e arquitetos, e contabilistas. Todos os outros, não compreende para que servem. Aliás, já vimos, não concebe como é que alguém titular de um diploma não tenha sempre acesso a uma determinada e mesma profissão e, obrigatoriamente, muito bem remunerada. Não obstante, sempre que se depara com alguém que não se enquadra naquele grupo restrito, mas que parece ganhar muito por via do desempenho profissional, faz questão de dar a entender que sabe muito bem ao que essa pessoa se dedica. Por exemplo, um seu familiar afastado, que estava a atravessar uma fase financeiramente muito boa, e que andava quase sempre de fato e gravata e viajava muito de carro era, para ele, logo
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para toda a gente com quem conversava sobre o assunto e que lhe pediam esclarecimentos, vendedor. Já sabemos que José nutre também uma admiração especial por este grupo profissional. Talvez, em grande parte, porque tendem a andar mais cuidadosamente vestidos e arranjados do que a maioria dos outros profissionais. E, talvez também, porque são pessoas que, por imperativo profissional, costumam tratá-lo com muita deferência porque se apercebem que é de posses e esperam, por isso, que se torne um bom cliente. Faz isto com tanta gente que muitos dos visados abdicam de desfazer as confusões de José, quando têm conhecimento delas, e os mal-entendidos daqueles a quem ele prestou os seus supostos esclarecimentos. Por vezes, basta ele dizer uns disparates quaisquer e as pessoas indevidamente enaltecidas, tendo conhecimento no momento, ou posteriormente, limitam-se a não corrigir ou desmentir, deixando o boato circular e retirando o possível usufruto do prestigioso disparate. “A minha sobrinha inventou este medicamento!”, dizia José numa ocasião, ufano, a um pequeno grupo de companheiros de clube, onde costuma ir fazer algum exercício, explicando de seguida que a tal sobrinha era farmacêutica e que trabalhava no país, mas na empresa multinacional de origem suíça responsável pelo medicamento cuja caixa exibia. Para ele, isso era prova evidente e irrefutável daquela sua afirmação. Para José, um farmacêutico diplomado estava, de mote próprio e por si mesmo, capaz de inventar medicamentos, e era isso que a maioria faria. Afinal, que andam todos os farmacêuticos a estudar durante tantos anos se não for para descobrir remédios? Considera isto possível do mesmo modo que, na sua imensa credulidade, acredita em todas as mesinhas que lhe apresentam, sobretudo as que lhe chegam publicitadas profusamente através da net, não sendo capaz de entender
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a diferença essencial para os medicamentos reconhecidos legalmente como tal. Aliás, tem dificuldades em perceber porque há distinção entre uma farmácia e uma ervanária. Também por esta via se entende a facilidade com que, no que a questões médicas e de saúde diz respeito, José opta quase sempre pelas alternativas mais baratas. Na mesma linha crédula e ignorante, considerou que um conhecido seu, de bem mais de quarente anos e que praticava a exigente modalidade de triatlo nos tempos livres, representava uma seleção nacional porque, uma vez, um conhecido comum publicou no Facebook uma fotografia dele a cortar a meta numa prova enquanto agitava no ar a bandeira de seu país. Aquelas pessoas que acabam por conhecer melhor José sabem que é muito fácil convencê-lo de qualquer coisa mirabolante. António, nos primeiros tempos da relação, procurava sempre desfazer os equívocos de que tinha conhecimento. Mas, porque quase sempre não tinha sucesso, com o passar do tempo foi-o tentando com cada vez menos convicção e cada vez menos vezes. Também porque foi sendo cada vez menos tolerante para com as manifestações de incredulidade obtusa de José. E para com a desconfiança com que José o foi olhando cada vez mais já que António sistematicamente acabava por toldar, e às vezes arruinar, a imagem das pessoas que José tanto enaltecia por ignorância e credulidade. Este chegou a insinuar se não seria a inveja a principal motivação de António. Perante isto, António percebeu que não valia a pena tentar. Pior, que tentar daria, precisamente, no efeito contrário e no seu achincalhamento. Assim, a pouco e pouco, foi-se também juntando ao grupo de pessoas que, a bem da sua tranquilidade, haviam abdicado de dizer a José o que realmente pensam. Gradualmente, foi deixando Miguel e o jovem irreverente a sós em campo.
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- É tal o valor que lhe dão que, em poucos anos, já esteve a trabalhar em cinco países diferentes e agora vive numa casa, paga pela nova empresa, que custou seiscentos mil euros! José referia-se a um sobrinho seu, com cujos pais havia conversado recentemente, orgulhoso e em jeito de desafio, de repto provocador, mostrando de forma velada, por contraste implícito, a pouca consideração que tinha pelos feitos profissionais dos jovens adultos diplomados presentes, particularmente seus filhos e genro. Este não esteve com meias medidas e resolveu, então, pegar no seu smartphone e fazer umas consultas na net: - Deixe-me cá ver qual é o valor das casas na cidade onde ele está… E enquanto dedilhava com o indicador direito no écran do aparelho com destreza e determinação, ia explicando para todos ouvirem: - Mas, já agora, eu sei bem como funciona a empresa em que ele trabalhou até recentemente. É uma multinacional muito importante que tem como política de recursos humanos fazer circular os seus jovens quadros de todo o lado, obrigatoriamente, por todo o mundo, nos primeiros, mais ou menos, dez anos de carreira. Aliás, aqueles que não quiserem acabam por sair cedo da empresa. Mas são prevenidos quando os recrutam. E, continuando a olhar e a passar com o dedo indicador no écran do seu aparelho, rematou: - No final desse período, a multinacional fica com uns, os que mais lhe interessam, e os outros, como esse vosso primo – olhou para os petizes, e não para José - são incentivados e ajudados a arranjar emprego noutras empresas… Miguel fez, então, um silêncio suspensivo, continuando a dedilhar e a olhar para o pequeno écran. Não pôde constatar que José já ruborescia de humilhação, mas,
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regozijante para dentro, suspeitou disso. Ao fim de, apenas, mais alguns segundos, disse, mal disfarçando o tom de triunfo: - Cá está! Já vi em, pelo menos, três sites de empresas imobiliárias lá da cidade. É uma das cidades do mundo onde a habitação é mais cara. É impressionante! Um apartamento de seiscentos mil euros, mais ou menos setecentos mil dólares, tem, em média, apenas mil pés – só noventa e três metros quadrados, mais coisa, menos coisa, menos quarenta do que o meu -, e isto é numa zona de classe média… Enfim, talvez um pouquinho acima… As multinacionais do mundo civilizado não põem o seu pessoal que está no terceiro mundo numa zona qualquer. É compreensível… E assim, à frente de toda a gente, Miguel arrumou com o encantamento de José pelo seu sobrinho bem diplomado e, profissionalmente, muito viajado, que supostamente levava uma via de opulência paga pelos seus empregadores. A veneração que sempre votou aos diplomas académicos está subjacente ao modo interiormente conflituoso como encara a sua instrução e a dos seus filhos. Apenas com a instrução primária, malfeita, enaltece frequentemente o facto de ter começado a trabalhar aos doze anos e de ter enriquecido relativamente cedo. No entanto, exigiu que os seus petizes se licenciassem e que, só depois, começassem a trabalhar. Este foi um outro dilema sob o qual sempre viveu: obrigar os seus filhos a adotar um percurso de vida bem diferenciado do seu, que ele tanto valoriza em comparação com o de outros com mais instrução. Oscilou toda a vida, por isso, entre a atitude crítica velada ao facto dos seus dois filhos terem começado a trabalhar tarde para que, embora em grande parte por sua insistência, tivessem estudos superiores e, em simultâneo, não terem tido um sucesso profissional estrondoso e não terem enriquecido por si sós após esses estudos, como
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entendia que era obrigação deles por força dos diplomas obtidos. Já vimos, também porque a sua curta experiência escolar foi traumática, José ainda hoje pressupõe que qualquer curso superior será de tal forma imensamente trabalhoso que tem que dar acesso a uma qualquer profissão forçosamente bem remunerada. Este é o seu paradigma de base que sustenta a sua posição crítica implícita em relação aos filhos: presos por ter e por não ter cão; por não enriquecerem trabalhando desde cedo e por não enriqueceram por si sós apesar de diplomados, apesar das oportunidades e ferramentas que lhes proporcionou. José não o sabe, mas este é, no fundo, um castigo anunciado desde há décadas que lhes esteve destinado, desde mesmo antes de nascerem: em troca de um estatuto e respeito social que escapou sempre a seu pai – o proporcionado por uma formação superior -, obtiveram o não enriquecimento por mérito próprio, algo que ele conquistou sem precisar dos tais diplomas e seu prestígio, como entende que ficou demonstrado. Assim se desculpabiliza José de sempre ter sido medíocre na escola e de a ter abandonado cedo. Uma vitória a posteriori! É também esta a atitude subjacente aos seus comportamentos para com os diferentes profissionais e especialistas a que acima nos referimos, como já vimos.
Pelo que foi descrito até agora sobre José, podemos
compreender melhor a resposta de António a uma pergunta que algumas vezes se fez a si próprio: Se tivesse que o caracterizar com um só atributo, numa só palavra, que termo escolheria? António responde, cada vez com menos hesitação, mesquinhez. Mesquinho no sentido de limitado a sentimentos vis, desprezíveis. E também no sentido de avaro. Avaro não só com bens materiais mas, sobretudo, no sentido de incapacidade de dádiva de si próprio, do seu real e genuíno empenho, da sua preocupação, seu esforço e
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seu tempo sem esperar receber mais em troca; No sentido da total, absoluta e radical incapacidade de empatia e de conceder ao outro o direito e liberdade para agir tendo em conta, em primeiro lugar, as suas convicções, os seus interesses e prioridades, e não os de José. Mesquinho no sentido de total ausência de elevação. Por razão nenhuma verdadeiramente transcendente, importante, para além do crescimento do seu pecúlio, traiu constantemente os valores e princípios que sempre disse professar, e as pessoas em geral. Isso é que é o mais odioso. E, last but not least, mesquinho porque profundamente ressabiado por não ter conquistado a respeitabilidade e prestígio social idênticos aos de outros com idênticas posses, bem acima da média. Se José não fosse feliz – e aqui, de novo, o leitor já sabe em que sentido usamos o termo felicidade – provaria o amargo sabor do aforismo “Dinheiro não compra felicidade”. Para António, um detalhe especialmente revoltante no comportamento de José, no que diz respeito à sua relação com os tais profissionais, e com os seus familiares, particularmente aqueles que bem podem estar a necessitar de apoio, é o da falta de pudor com que exibe perante eles o desperdício; A facilidade, e indiferença, com que desperdiça bens alimentares em casa, com que perde dinheiro na rua e noutros locais – gosta de andar com a carteira bem recheada porque desconfia dos meios de pagamento eletrónicos -, com que entra em despesas avultadas perfeitamente evitáveis, nomeadamente se tivesse dado ouvidos a alguns daqueles profissionais e a familiares e amigos melhor informados do que ele, com que encara a perda de joias valiosíssimas por Maria, com que gasta dinheiro em, por exemplo, eletrodomésticos, computadores, etc., para depois não os utilizar, de todo, sendo que dariam muito jeito a outras pessoas, nomeadamente da família. Para ele, o desperdício, o dinheiro malgasto, trata-se de uma prerrogativa de quem pode, um privilégio, embora verbalize o contrário, embora
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tenha dito inúmeras vezes que jamais se deve desperdiçar e gastar dinheiro sem se ter a certeza de que é necessário. Um dia, há muito tempo, mas já bem depois dos sessenta, tomou contacto pela primeira vez com o conceito de música clássica, sobretudo a de orquestra, por intermédio de um novo vizinho, que era do meio, de quem tentou fazer-se amigo, lisonjeado pelas atenções que ele lhe dispensava, aliás normalíssimas e expectáveis em quem se havia há pouco estabelecido numa nova vizinhança. Para isso, sob conselho dele, e forçando-se a mostrar gosto por aquele tipo de música, meteu-se a comprar uma bela aparelhagem modular de alta fidelidade e discos da tal música de orquestra (ainda era o tempo do vinil). Foi sol de pouca dura porque o seu vizinho, uma vez que não tinha necessidade dele para nada, foi-se afastando até à separação definitiva. Não tinham nada em comum. A aparelhagem lá está, usada apenas uma dezena de vezes numa dezena de anos. Um grande desperdício na altura, uma dor de alma para alguns verdadeiros melómanos menos abonados. E com os seus cães – teve alguns – sempre procurou também projetar uma imagem de grande nível. Fazia questão de que fossem de raça pura, de linhagem principesca comprovada documentalmente. Mas, de novo por avareza, lá está, mais uma vez, fundamentada em pura ignorância casmurra, não lhes prestava todos os devidos cuidados sanitários, veterinários e alimentícios - nesta última área tendia a aplicar-lhes cegamente as normas da alimentação para humanos. Todos morreram excessivamente cedo e de doenças prolongadas perfeitamente evitáveis, de causas bem identificadas e conhecidas.
E, caro leitor, podemos afirmar que tudo o que até agora
aqui foi exposto é um retrato fiel de José apesar de ele sempre se afirmar publicamente como religioso praticante e muito crente na fé da Igreja Católica. Mas, realmente, nunca
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soube bem o que é aquilo em que diz acreditar, o que é a religião que de modo veemente e, até, triunfante, afirma professar… Gosta, sobretudo, de se sentir parte do grupo maioritário no seu meio. José jamais se acolheria em minorias, jamais defenderia causas nascentes, de aceitação reduzida e futuro incerto (Aliás, o leitor já está em condições de adivinhar, José jamais defenderia causas nobres que fossem para além dos seus particulares caprichos.). José, tão só, atribui-se pertença ao grupo dos que, aparentemente, pelos sinais exteriores, comungam da sua fé e parecem ser piedosos. E não saberia explicar, nem tem verdadeira consciência das diferenças de fundo, porque professa a fé católica e não uma outra qualquer religião cristã. Na sua mente, de modo inconsciente, existe uma absoluta indistinção entre catolicismo e qualquer outra religião inspirada em Jesus Cristo. Durante muitos anos ostentou no vidro traseiro do seu Mercedes um grande autocolante, de lado a lado, que gritava “Deus é grande, Jesus Cristo é o meu Senhor”. Até perceber que causava profunda estranheza na generalidade das pessoas próximas e vizinhança. E nunca chegou verdadeiramente a perceber porquê. Apenas constatou, na sua perspetiva, não obstante viver num meio predominantemente de fé em Cristo, que as pessoas sorriam, troçavam, envergonhavam-se, torciam o nariz, e, no entanto, para seu espanto, comungavam também, parecia-lhe, da sua crença. Não percebeu que era, precisamente, por ser uma zona católica, e ainda por cima de classe média alta, ainda menos dada a manifestações exteriores populares de religiosidade. É que José vivia, e ainda vive, desarvoradamente a sua fé, que sempre vivenciou através de um livre sincretismo cristão, em direto conflito com a doutrina de Igreja de Roma. A sua vivência religiosa sempre foi uma manta de retalhos de puras superstições e crendices, rezas e gestos ritualistas, quase
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magias, por vezes a roçar a bruxaria, e quase sempre por motivos pueris. Enfim, tudo muito à la carte. Como para José tudo na vida é instrumento, também a religião sempre o foi. Também a religião é uma via para a obtenção de estatuto social, de pertença a grupos recomendáveis e, sobretudo, para conseguir favores de deus e, em última instância, a sua salvação. Sim, a sua salvação na eternidade. Diariamente José entrega-se a rezas e mesinhas para, acredita António, por problemas profundos de consciência, prolongar ao máximo a sua vida e ganhar tempo para se redimir dos seus pecados. Quanto mais tempo de vida, no conforto material conquistado sabe-se lá bem como, mais tempo para rezar, para compensar e evitar o inferno. Para ele, o inferno é uma realidade indesmentível que, verdadeiramente, teme. - Porque raio deus há de favorecer quem lhe reza e pede favores?! - perguntou o nosso jovem impenitente para a geral, antes do jantar festivo, enquanto viam as imagens de uma cerimónia religiosa na tv, no decurso de um programa noticioso. Ninguém respondeu ou comentou, todos mantiveram silêncio, que logo se tornou pesado. António calculou que José não tivesse percebido minimamente o alcance da pergunta. Mas o jovem resolveu insistir: - E se uma pessoa boa não rezar e uma má rezar? A pessoa má será beneficiada por deus? António acredita que, em um primeiro tempo, José terá respondido no seu íntimo que sim. Afinal, para que rezava ele todos os dias?! E, em um segundo tempo, que as pessoas más não rezam e as boas, todas elas, sim, rezam. E sorriu para si. Mas o jovem resolveu insistir: - Então compensa pecar, cometer malvadezas e beneficiar disso e, depois, rezar, pedir perdão… Sai beneficiado o crente pecador que reze, em comparação
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com o impoluto, não crente, que nunca reza, que não acredita em deus, mas que nunca fez mal a ninguém, nunca se aproveitou de ninguém, nunca infringiu a lei. Enfim, vale mais cair em tentação e, depois, arrepender-se – e aqui fez sinal de aspas com as duas mãos no ar. António não tem dúvida de que José espera bem que assim seja. - Mas o que mais me faz confusão – continuou o jovem - é por que razão deus, ainda por cima havendo tanta gente mais necessitada, em maior sofrimento do que muitos dos que rezam e lhe pedem coisas, há de conceder mais favores a quem lhe reza do que a quem não… Parece-me um deus bem mesquinho, que favorece quem lhe presta vassalagem, um deus muito humanozinho, que faz escolhas por motivos interesseiros, egocêntricos, que não me parecem ser bons motivos… Deveria agir de acordo com as necessidades das pessoas, e não de acordo com rezas… Muito pouco deus… Nesta altura António apercebeu-se que José já ruborescia. Mas o jovem ainda não havia concluído: - Por exemplo, por que raio há pessoas que acham que foram salvas pelo próprio deus, após uma catástrofe natural ou um ataque terrorista, quando se encontram rodeadas de cadáveres e feridos, envoltas em mortandade e carnificina? Porquê eles e não qualquer um dos outros? Porque foram eles os escolhidos de deus… Pode haver maior presunção do que isto?! Entretanto, o programa que dava na tv passou a uma notícia sobre alguns políticos suspeitos e acusados de corrupção e outros crimes. O jovem, dando deliberadamente seguimento aos seus comentários anteriores, logo disse: - Estes malandros, muito deles, vão todos os domingos à missinha! Eu sei… Estão lá caídos todos os domingos, não perdoam! E, no entanto, são uns aldrabões, uns grandessíssimos gatunos… Há aí paróquias de certas
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vizinhanças em que aos domingos se apanham lá quase todos à saída da igreja. São muito mais os que vão do que os que não. Ao menos os que não vão não são hipócritas. Os outros, os que vão, a maior parte, vão pecando durante a semana e, depois, ao domingo, vão lá obter a remissão dos seus pecados… E comungam! Será que acreditam nisso?! Vergonha! José, não só ruborescia mais intensamente, como agora, embora recostado, também se agitava na sua poltrona de patriarca da família, colocada mesmo em frente à tv. E o jovem resolveu encerrar o assunto: - Se queremos apanhá-los todos juntos, em grande quantidade, como em mais nenhum sítio, é ir a certas igrejas aos domingos… Nesse momento José não se conteve mais e falou algo exaltado: - Isso não é verdade! Esses comunistas e socialistas que não acreditam em Deus é que são uns criminosos! E esses não vão à missa. E eu tenho conhecido só gente boa na missa, gente que reza e dá esmolas. Gente muito bem- educada, gente que me cumprimenta com uma grande consideração! E eu não me dou com criminosos… O jovem, algo intimidado, mais pelo repentismo inusitado da reação, optou por não retorquir e um silêncio pesado se instalou de novo. Para além da evidente imprecisão da afirmação de José, António apercebeu-se também que ele havia entendido que o jovem pretendia afirmar que quem frequentava a missa era, forçosamente, desonesto. Ou que, pelo menos, tinha forte probabilidades de o ser. Tal era a sua incapacidade para ler e desenvolver raciocínios que se ativessem às regras mais elementares da lógica e racionalidade. Por isso recebeu tudo aquilo como um intolerável e direto ataque pessoal. Uma enorme ofensa. Uma inequívoca acusação. António, por isso,
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resolveu, então, deitar água na fervura, assim que na tv passaram a outro assunto: - Bem, eu estou convencido, tal como acontece na maior parte dos ajuntamentos de gente, que nas missas a maioria das pessoas não são criminosas, corruptas, ladras… Mas também ficou convencido de que a convicção equivocada de José sobre o que o jovem teria pretendido dizer não ficou minimamente beliscada. E assim deve ter sido porque a relação entre os dois, a partir daquele momento, ainda mais esfriou, como nunca, e aparentemente para sempre. E já abemos como, com José, isto é fácil de acontecer…
Mas retornando ao medo que José sempre teve da justiça
de deus, algum castigo acabou por acontecer? António perguntaria de outra forma: algo lhe aconteceu que pudesse ser visto por ele, e por outros, como um castigo do seu Deus? Sim, algumas pessoas mais crentes e que se considerem, em maior ou menor grau, suas vítimas, poderiam dizer que sim, e ele próprio também. Castigo esse que terá resultado diretamente de ter sido cobarde e avarento perante, há décadas atrás, sintomas precoces dos seus problemas de saúde que agora o assolam. Justiça seja feita, embora não nos sirva de consolo, não o foi só com a saúde de seus dependentes. Acabou por provar do seu próprio veneno, diriam alguns mais maldosos e vingativos. António entende que isto não desculpa as falhas de José no passado neste departamento da assistência na doença aos seus que se recusou a prestar na verdadeira medida das suas possibilidades e obrigações. No entanto, acredita que para José servirá para lhe amenizar um pouco alguma culpa que o assole. Agora, que já se nota que está a perder autonomia, que está a ficar muito mais dependente dos outros, já se vêm abutres de falinhas mansas a rondá-lo com muito mais
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frequência do que anteriormente. Constata-se que está cada vez menos vezes só, melhor, mais acompanhado, se o leitor entende o que aqui se quer dizer. Nomeadamente, a já nossa conhecida sobrinha tontinha, e outros de semelhante índole, têm estado mais presentes e ainda mais glicodoces, pacientes e submissos, dizendo-lhe ámen a tudo. António diverte-se serenamente a observar estas movimentações, e não se incomoda porque sabe que são fonte de algum aconchego para José. Afinal, assim ele vá crendo que não está só. E isso é melhor do que nada. Isto também já abemos… António está plenamente convencido de que José entende que o agravamento do seu estado de saúde é, verdadeiramente, pena enviada por Deus para sua salvação. Embora ele, José, só o confesse a si mesmo e a mais ninguém. A sua visão instrumentalista e finalista de tudo há de enformar inteiramente os seus pensamentos e emoções também nesta hora. Uma penitência, um castigo de um deus menor, mesquinho, próprio de José, à sua imagem e semelhança, pensa António, mas que também agora bem satisfaz as suas ânsias; Que agora também lhe serve, a seu gosto, a felicidade. Por isso, está ainda – se isso for possível! - mais cumpridor dos preceitos ritualistas da Igreja, embora, como sempre, não entenda as suas origens, significados e propósitos. - Eu pensava que era por causa do sangue de Cristo derramado na cruz, … Que é Deus e, por isso, está em toda a parte, logo no sangue da toda a carne… Pensava que era por causa do sangue de Jesus e da carne… Os peixes e o marisco não têm sangue… Este foi o comentário que o petiz fez, com a absoluta concordância de seu pai, perante uma notícia informativa na tv que explicava a origem da tradição da Igreja Católica recomendar a abstinência de carne na Sexta-feira Santa e
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na véspera do Natal. Os dois absolutamente ignorantes da ideia de jejum e de penitência, preparando-se para almoçar uma lauta cataplana de marisco naquela sexta-feira santa, seguros do seu pleno cumprimento na forma - e seria também em espírito, se conseguissem alcançar o significado desse conceito - dos preceitos da Santa Madre Igreja, da santidade daquela refeição, certamente abençoada por Deus, porque rigorosamente depurada do sangue de Jesus Cristo Nosso Senhor, que está em toda a parte, em toda a carne... António, que assistiu àqueles comentários, sentiu-se tentado a explicar um pouco melhor que ideia era essa da abstinência de comer carne, da penitência e jejum, mas conteve-se porque seria em vão, correndo, ainda por cima, o risco de causar indignação e, até, pio escândalo. E, também, de ser, de novo, considerado comunista porque agnóstico – aliás, melhor, um pouco recomendável ateu, na perspetiva daqueles dois, já que as subtilezas do agnosticismo lhes escapam ao entendimento. Aliás, por este mesmo facto, qualquer simples explicação que pudesse dar seria de imediato desvalorizada e descartada; Seria logo considerada falsa, sem mais. Mas, a este propósito e refletindo posteriormente sobre a religiosidade de José e, também, do petiz, seu herdeiro espiritual, António não pôde deixar de se colocar a questão: E alguma ideação haverá que não seja instrumental, finalista, que não sirva propósitos?; Resta-nos apenas esperar que hajam uns propósitos melhores do que outros?; Uns de mais elevação do que outros?; Teremos ao menos isso?; E saberemos destrinçá-los?; E todos nós da mesma forma?