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[-] www.sinaldemenos.org Ano 9, n°12, vol.

2, 2018 2

[-] Sumário # 12, vol. 2

EDITORIAL 4

ENTREVISTA com Marildo Menegat 8

“ONDA CONSERVADORA” OU DECLÍNIO SOCIAL? 20


Marcos Barreira

DOSSIÊ “ISLAMISMO”

DEUS ACOLHE A CRISE 26


Ernst Lohoff

O GRANDIOSO FINAL DO UNIVERSALISMO 40


O islamismo como fundamentalismo da forma moderna
Karl-Heinz Lewed

INSURREIÇÃO, E DEPOIS? 74
Ernst Lohoff

DE MOSCOU A MOSSUL 78
Lothar Galow-Bergemann

DESGRAÇADAMENTE MODERNO 82
Por que o islamismo não pode ser explicado através da religião
Norbert Trenkle

AS ORIGENS DO ESTADO ISLÂMICO NO IRAQUE 90


Colapso social e guerra civil no Jardim do Éden
Maurilio Lima Botelho
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OUTROS ARTIGOS

DIREITO, DEMOCRACIA E A POLÍTICA 132


COMO TORÇÃO DO SIMBÓLICO
Diogo Mariano Carvalho de Oliveira

A CATEGORIA TRABALHO NA (RE)INTERPRETAÇÃO 157


DA TEORIA DO VALOR E NA LUTA DE CLASSES
Thiago Canettieri

ESPECULAÇÕES SOBRE A LUTA DE CLASSES 170


Danilo Augusto de O. Costa

CRUZ E SOUSA: A CONTRALUZ DO ILUMINISMO 195


Poesia, abstração e história de um malogro nacional
Cláudio R. Duarte

RESENHAS
CE CAUCHEMAR QUI N’EN FINIT PAS

Resenha comentada do novo livro de Christian Laval e Pierre Dardot 224


Frederico Lyra de Carvalho
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Editorial

Em novembro de 2016 lançamos a primeira parte do número 12 de Sinal


de Menos. Aqui segue o volume 2 deste mesmo número, apesar do longo intervalo
de mais de um ano. De maneira geral, ele avança análises da decomposição social
da periferia capitalista mundial e local, passando pelo estudo do processo de
estruturação do Estado Islâmico e a situação atual no Oriente Médio – através de
um conjunto de textos que forma um Dossiê Islamismo –, além da crítica
marxista das formas jurídicas, a análise das bases do pensamento neoliberal, a
discussão teórica sobre as lutas de classes e a reavaliação de um poeta das ruínas
novinhas em folha da jovem nação brasileira no fim do séc. XIX.

A revista inicia-se com a ENTREVISTA com MARILDO MENEGAT,


professor Pós-doutor em Filosofia pela USP, atualmente trabalhando como
professor adjunto IV na Escola de Serviço Social da UFRJ. Em uma série de
perguntas respondidas por e-mail, Marildo reflete criticamente sobre a situação
atual do Brasil pós-Dilma e o papel histórico do Partido dos Trabalhadores na
trajetória do colapso da modernização periférica.

Na abertura da seção de artigos, temos o ensaio de MARCOS BARREIRA,


“’Onda conservadora’ ou declínio social?” O texto contrapõe à ideia de
“onda conservadora” uma descrição do conservadorismo como elemento
ideológico profundamente arraigado na sociedade brasileira. O “pacto social”
lulista é descrito como uma aliança com o conservadorismo dominante durante
um período relativamente breve de crescimento econômico. Nesse contexto, o
retorno de temas abertamente conservadores indicaria não uma verdadeira
guinada ideológica, mas o esgotamento das formas de administração da crise
social da era Lula.

Em seguida, temos o referido dossiê sobre o Islamismo, que reúne


traduções de textos publicados entre 2006 e 2015 nos círculos da revista alemã
Krisis, mais um texto inédito de Maurílio Lima Botelho. Em “Deus acolhe a
crise”, ERNST LOHOFF afirma que as novas comunidades culturalistas são um
produto da crise da sociedade da mercadoria. Em particular no espaço de
influência islâmica, o fracasso da modernização recuperadora e a falência do
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marxismo tradicional deixou um vácuo interpretativo que foi ocupado pelo


fundamentalismo islâmico. Longe de ser “tradicional”, o islamismo seria
hipermoderno.
Em “O grandioso final do universalismo”, KARL-HEINZ LEWED
analisa o fundamentalismo islâmico moderno como o herdeiro da “vontade
popular” após o fracasso da modernização retardatária nos países de influência
islâmica. De acordo com a sua análise, o ponto de vista defendido pelo
fundamentalismo islâmico em oposição aos interesses particulares é o interesse
geral na forma da lei e do direito, porém não mais ancorada no conjunto de uma
nação, e sim em uma instância metafísica de soberania divina. Essa relação reflete
a erosão das bases do Estado nacional, que não tem mais condições de mediar o
conjunto dos interesses privados e de zelar pelo funcionamento geral da máquina.
A fuga para a esfera transcendente revela não apenas o caráter metafísico da
forma do direito, mas também a crise fundamental dessa forma.

Em “Insurreição, e depois?”, ERNST LOHOFF reflete sobre a forma


dos movimentos populares “insurgentes” desta década, da Primavera Árabe aos
protestos contra a Copa no Brasil, do Occupy Wall Street ao Egito, dos
Indignados na Espanha aos protestos contra a Troika, entre outros. Todos esses
movimentos passam por um ciclo efêmero de rebelião e resignação e, por fim,
parecem condenados ao fracasso. Não importa quantos milhões de pessoas
fiquem temporariamente mobilizadas sob esse auspícios, a verdadeira força de
mudança social continua a ser a dinâmica capitalista. Isso significa que é
necessário não somente “organização” da luta, mas uma elaboração teórico-
prática que ponha radicalmente em questão a socialização pelo dinheiro e a
política estatal.

LOTHAR GALOW-BERGEMANN, em “De Moscou a Mossul”


argumenta que o movimento antifascista (Antifa) deve ter no jihadismo um dos
seus alvos a serem contrapostos. Segundo ele, a simpatia de setores da esquerda
com o jihadismo decorre da proximidade das suas concepções históricas do
sujeito.

No ensaio “Desgraçadamente moderno”, NORBERT TRENKLE


retoma temas desenvolvidos no texto de Ernst Lohoff. Ele argumenta que o
islamismo não pode ser explicado a partir da religião, e vê um campo comum
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entre o fundamentalismo islâmico e a nova extrema-direita ocidental no contexto


da crise do capitalismo.

Em “As origens do Estado Islâmico no Iraque: colapso social e


guerra civil no Jardim do Éden”, MAURÍLIO LIMA BOTELHO refaz o
percurso histórico de ascensão do Estado Islâmico (ISIS), recuperando em linhas
gerais as condições sociais e econômicas do Iraque nas últimas décadas, focando
nos conflitos militares que foram o pano de fundo desse processo. A rejeição
jihadista ao “Ocidente” é sustentada por uma afirmação violenta de uma
identidade religiosa particular, uma tentativa de enfrentar o vácuo social deixado
pelo colapso econômico e estatal iraquiano. Pela complexidade do tema, o texto
se prende aos limites da fundação do Califado e das operações do ISIS no Iraque.

THIAGO CANETTIERI, em “A categoria trabalho na


(re)interpretação da teoria do valor e na luta de classes”, afirma que
vários autores, dentro do campo marxista, se empenharam em refazer o estatuto
da crítica do capitalismo. Como um dos possíveis pontos de partida para isso,
considera que os processos materiais e concretos da vida social estão dominados,
sobretudo, pela forma social abstrata do valor. E, nesse contexto, se faz necessário
revisitar a categoria trabalho a partir de uma posição mais radical, que seja mais
voltada aos fundamentos críticos da teoria marxiana. O objetivo do autor é
apresentar como a categoria trabalho revisitada pode oferecer elementos para
(re)interpretar a teoria do valor e da luta de classes a partir da leitura dos próprios
textos de Marx.

Reflexões dessa mesma natureza ecoam pelo ensaio de DANILO


AUGUSTO DE O. COSTA, em “Especulação sobre a luta de classes”, que
visa, a partir da articulação da teoria da crise do capitalismo e do valor com as
análises das atuais dinâmicas do poder e estudos sociológicos sobre o atual
regime de trabalho e condição do proletário, especular sobre os limites da antiga
forma da luta de classes, sobre as formas de lutas que passam a tomar a cena e a
relevância das experiências de auto-organização e autogestão para um processo
de emancipação.

DIOGO MARIANO CARVALHO DE OLIVEIRA, em seu “Direito,


democracia e a política como torção do simbólico”, tem como objeto a
análise do fenômeno jurídico a partir de uma abordagem dialética de alguns de
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seus conceitos fundamentais, principalmente no tocante às noções jurídico-


filosófico-políticas de liberdade, igualdade e democracia. A partir da investigação
de sua efetividade, o autor expõe as relações entre essas noções e os conceitos de
forma jurídica, permitindo a compreensão de como eles se relacionam de maneira
intrincada e interdependente. No entanto, o autor propõe demonstrar que a plena
realização desses conceitos articula-se através da realização de puros meios
escusos, ausentes de uma finalidade propriamente axiológica, que não se deixam
ver sob um primeiro olhar e que acabam por legitimar o funcionamento de uma
democracia que se mantém sob um regime policial excludente.

No último ensaio da revista, “Cruz e Sousa: a contraluz do


Iluminismo – Poesia, abstração e história de um malogro nacional”,
de CLÁUDIO R. DUARTE, temos uma reavaliação crítica da estranha poética
desse artista ainda hoje mal compreendido. Em vez dos estereótipos que o
classificam sem mais como um poeta simbolista e decadentista, devotado apenas
a temáticas espiritualistas e esteticistas, o ensaio busca apresentar um artista bem
enraizado no solo do movimento abolicionista e republicano brasileiro –
entendido como um movimento pela transformação e a construção nacional, que,
como se sabe, terminariam por falhar miseravelmente. O país capitalista atrasado
e desigual persistiria reproduzindo seus mecanismos de dominação quase como
uma “condenação fatal”. Nesta chave, sua poesia passa a ser uma espécie de
contraluz do pseudoesclarecimento brasileiro, trazendo à tona o processo
silenciado, apontando também o formalismo do capitalismo periférico, que gira
em torno de ideias sem fundo e sem peso em nossa construção. Ao invés do clichê
do poeta “abstrato” e “nefelibata”, entra a violência da abstração, da alienação, do
racismo e da morte grudada na alma dos oprimidos, transpostas em páginas de
grande literatura.

A revista finaliza com a resenha do novo livro de Christian Laval e Pierre


Dardot – “CE CAUCHEMAR QUI N’EN FINIT PAS - Comment le
néoliberalisme défait la démocratie” – por FREDERICO LYRA DE
CARVALHO.
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Entrevista com Marildo Menegat

Marildo Menegat é professor Pós-doutor em Filosofia pela USP, atualmente


trabalhando como professor adjunto IV na Escola de Serviço Social da UFRJ.
Publicou, entre outros, Estudos sobre as ruínas (Revan, 2012) e O olho da
barbárie (Expressão Popular, 2006). A entrevista a seguir foi concedida em
dezembro de 2016.

Sinal de Menos - Qual o significado do ciclo petista e do impeachment


na história global do capital e da modernização brasileira fracassada?
Aliás, fracassada para quem?

Marildo Menegat - Seria necessário inicialmente sobrepor outra pergunta à sua:


qual o sentido que ainda tem um partido (e de esquerda!) neste momento
histórico? O clube dos Jacobinos, no seu tempo, participou e dirigiu uma
revolução moderna que era na época uma relativa novidade. Na metade do século
XIX já havia uma disputa de teorias da revolução - Bakunin, Blanqui, Marx... E
no tempo de Lênin a revolução pôde seguir um modelo 'científico' que, inclusive,
se pretendeu universal. A história das revoluções, porém, se empobreceu
vertiginosamente depois dos anos 1970. Para tomarmos um modelo teórico de
referência neste assunto, o que Gramsci chamou de 'guerras de movimento', que
explicava o tipo de revolução em países com sociedades civis gelatinosas etc,
chegou ao seu limite - lógico e histórico - naquela década. A outra modalidade de
revolução, formulada por este mesmo autor, a de 'guerra de posição', mais comum
nos países europeus ocidentais depois da IIª GM - tanto na modalidade social-
democrata, como na eurocomunista, também esgotou seu arsenal de conquistas
nestes mesmos anos (as datas podem variar, mas estão entre o Maio de 1968 na
França e a Itália dos 1970). Depois deste marco histórico, ao que parece, o partido
como organizador de um processo revolucionário perdeu sua substância. Algo
muito grave e profundo ocorreu na sociedade burguesa que passou a desfibrar tal
modalidade de organização. Não foi apenas seu posicionamento crítico contra o
capital (o chamado programa) que perdeu densidade, a base social dos partidos
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de esquerda erodiu, enfraquecendo-os de modo irremediável. E aqui começo


responder a sua pergunta, o PT nasceu justamente nesta conjuntura histórica de
fim de linha. Por isso, seu sucesso inicial precisa ser bem compreendido, para
não se projetar expectativas sobre sua história que não estavam em jogo. A
explicação mais comum sobre as origens do PT procura entendê-lo a partir da
atuação de uma classe operária numerosa e combativa, formada nos anos de
intensa industrialização da ditadura militar e que, por sua própria situação
objetiva, teve força para protagonizar os momentos mais espetaculares do
enfraquecimento político que levaram ao termino do regime. Derivaria desta
situação a sua força para propor a criação de um partido que se apresentava como
uma necessidade histórica que daria unidade a um amplo movimento popular
que surgiu junto, e por motivos semelhantes, às greves operárias do ABC paulista.
Nesta chave ele é entendido como a organização política da ala radical e popular
do movimento pela redemocratização do país que deveria concluir o processo de
modernização, elevando finalmente o Brasil aos padrões ocidentais de civilização.
Contudo, há dois problemas nesta explicação. O primeiro é que a experiência
mais próxima a uma revolução, já vivida por aqui, ocorreu no período pré-1964,
cujo golpe a interrompeu preventivamente - e quem dirigiu este processo foram
os velhos PTB-PCB, com todos os limites que os caracterizavam. Creio que nesta
experiência se esgotaram as possibilidades de uma revolução popular como mito
fundador mais democrático (e esclarecido) de uma moderna sociedade produtora
de mercadorias no Brasil. Francisco de Oliveira no ensaio Ornitorrinco diz algo
parecido com isto. Este argumento ganha consistência se lhe acrescentarmos a
crítica de Moishe Postone ao marxismo tradicional, visto por ele como uma
esquerda restrita a crítica da distribuição de riqueza no capitalismo e não a crítica
das categorias fundamentais que constituem este modo de produção enquanto
uma objetividade abstrata destrutiva. O tempo histórico possível para esta
distribuição de riqueza, tudo indica, está encerrado. Por isso, um partido
revolucionário que surge num tempo em que as revoluções se encerraram - ao
menos no modelo moderno que as conhecemos - somente será revolucionário por
ilusão de seus membros. Tudo isto posto para dizer que o PT somente foi ou pôde
um dia ter sido sonhado como revolucionário por meio de uma sorte de projeção
ideal que nada tem a ver com sua história. O segundo problema da explicação
comum das origens do PT é que se exclui de antemão a hipótese de que ele possa
ser algo muito original, um tipo novo de partido - e talvez único, o que indicaria
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inclusive a impossibilidade de ser copiado. O PT nasceu no início do colapso do


processo de modernização da sociedade brasileira, que é parte - um momento
articulado - da crise estrutural do capitalismo iniciada nos anos 1970. Neste
sentido, ele representou durante muito tempo a capacidade de reação e
resistência das camadas populares e de setores das classes médias que, por
diversas razões, se pensavam nos velhos moldes de uma sociedade estável e
centrada na dinâmica do progresso - que, aliás, aparecia a estes mesmo setores
como algo eterno. Por isso, a ilusão da revolução surgia com frequência como uma
miríade, um motivo indefinido de alegria em dias de festa, mas nada real
objetivamente. Ele foi a grandeza e a miséria do fim de um tempo e o início de
outro que, a princípio, o PT não podia entender e, depois, quando isso era
possível, não quis entender. Portanto, se ele não surgiu numa conjuntura em que
as revoluções se apresentavam como possibilidades no horizonte histórico - basta
lembrar a ominosa coincidência das eleições presidenciais de 1989, em que a
Frente Brasil Popular apresentava-se como uma proposta, mesmo que
moderadamente socialista, ao mesmo tempo em que o socialismo desmoronava
no leste europeu - que sentido poderia ter sua existência que o fez efetivamente
ser um partido de esquerda e de massas?

O papel do PT esteve confundido com este desejo de salvar um horizonte


histórico não mais possível, mas caro a uma compreensão progressista da
história, que acabou se mesclando com uma atuação no presente na qual foi
possível produzir 'escoras' numa sociedade que desmoronava mas,
paradoxalmente, por esta mesmas escoras, ficava em pé. Estas escoras são
técnicas de gestão social da crise, intervenções que procuram fazer uma sutura
num tecido social completamente esgarçado por índices alarmantes de
desemprego que se transformam facilmente em violência cotidiana assustadora.
A 'governabilidade social' que estas técnicas desenvolvidas em prefeituras
administradas pelo PT ao longo dos anos 1990 proporcionaram, diante do medo
que este mergulho na regressão à barbárie produziu, fez dela a aparente
materialização do desejo de uma sociedade menos desigual, quando era na
verdade a evidencia da sua impossibilidade. Pouco se sublinha na história das
lutas sociais recentes no Brasil que, se nos anos 1980 eram massivas e
predominantemente ligadas ao movimento sindical, já nos 1990 havia refluído e
migrado para os conselhos participativos e orçamentários etc. e, no fim da
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década, para movimentos como o MST que, como o PT, foi uma senhora
experiência (também em vias de extinção) de reação ativa das massas à crise
em curso. O que pretendo com este raciocínio é mostrar que, na dinâmica de
desmoronamento de uma sociedade, as modalidades de reação e resistência se
modificam, assim como sua composição social, apesar de se apresentarem com
definições e autocompreensões antiquadas - como, por exemplo, o conceito de
consciência de classe, que quase nada explica do que há de novo neste processo.
Devo lembrar que uma reação não é, necessariamente, um movimento
consciente. Apesar de PT e MST terem surgido na mesma conjuntura histórica,
ninguém nos anos 1980 poderia imaginar que o MST teria a projeção que teve
desde 1997, assim como, ninguém teria imaginado a retração que a CUT vive hoje.
O que explicaria tal fenômeno, no meu entendimento, são os diferentes
momentos do colapso do capitalismo e as formas 'reativas' organizadas que por
acaso podem se produzir. Enquanto uma revolução era, em muitos sentidos, um
processo reflexivo - como pode ser demonstrado, por exemplo, pela relação entre
o Iluminismo e a Revolução de 1789 -, estas reações de massa de hoje constituem
um frágil fio de negatividade, por serem essencialmente movimentos de
sobrevivência que respondem inconscientemente a uma mudança brusca das
suas condições de vida, que passam a ser inviabilizadas pelo agravamento da
crise. Quando finalmente Lula venceu as eleições presidenciais em 2002, não
havia nenhum acenso do movimento de massas, apenas o desastre de uma
década de contínuas e absurdas regressões produzidas por políticas neoliberais -
que, aliás, também são uma mera reação à crise, esta, da parte do capital. Pelo
visto, não há necessidade de insistir muito que nestes tempos andamos às cegas
entre uma reação e outra, apenas com sinais trocados, mesmo porque, esta
insistência não seria nada original e o leitor faria melhor ao recorrer à impactante
imagem que Saramago produziu num de seus romances na metade dos anos
1990. Da minha parte restaria perguntar: o que esperar de Lula e do PT no
governo, ao terem esta história e ao terem chegado ao poder numa conjuntura
com estas tonalidades catastróficas? Talvez nada além de um governo de salvação
nacional. E mesmo esta intenção somente foi salva, literalmente, por causa de
uma dessas reações do capital, que Kurz chamava de fugas para frente, que são as
bolhas especulativas. Entre 2003 e 2008 a economia brasileira - profundamente
arruinada depois de duas décadas de crise sem saída - viveu um estranho
processo de reanimação (artificial) que coincidiu com o primeiro 'trabalhador na
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presidência'. O quanto este fato atiçou imaginações inflacionadas que, a despeito


de todas as ilusões indicadas, pensaram se tratar do início de um processo
revolucionário, pode ser lamentavelmente observado nestes dois últimos anos,
que antecederam o impeachment da presidente Dilma Rousseff.

Esta análise parte de algumas proposições que alguns autores da - esta também,
agora, extinta - tradição crítica brasileira elaboraram para entender o país pós-
1964. Roberto Schwarz, por exemplo, pensou o golpe militar como parte da
dinâmica - obviamente contraditória - do capital e suas determinações impostas
via mercado mundial, às quais estamos umbilicalmente ligados. Num livro de
ensaios dos anos 1980 (Que horas são?) ele já se perguntava se fazia algum
sentido pensarmos a dinâmica mundial e local do capital como um movimento
ainda dotado de força progressista - aquela mesma que um marxista tradicional
conceberia como etapa necessária para se chegar ao socialismo. Quando Schwarz
se deparou com O colapso da modernização de Robert Kurz, penso que o tema,
tão caro às nossas ilusões objetivadas, do desenvolvimento da periferia do
capitalismo, que deveria um dia nos impulsionar ao emparelhamento com os
países avançados, ganhou a confirmação do que ele já andava escrevendo e
intuindo. Em termos mais claros, poderia se dizer que a dialética do
desenvolvimento desigual e combinado que, como dizia Trotsky, funcionava
como 'um acoite para as nações atrasadas', empurrando-as para frente, estava -
como dinâmica do capital mundializado - encerrada. Veja, isto não significa
nenhuma abolição das desigualdades entre nações, antes o contrário. Com isso,
digo apenas que a força viva que se produzia como um bloco histórico do
progresso, dos direitos assegurados e da formação de uma nação com critérios
básicos de civilidade - mesmo que medida pelos padrões da sociedade burguesa -
se esgotou como 'horizonte de expectativas' (Paulo Arantes), perdendo sua
capacidade de atração e organização de, para falar em termos do passado, um
projeto nacional. Esta mudança está relacionada com o conceito de crise que Kurz
(e os grupos Exit e Krisis) elaborou. Para ficar numa expressão sintética, podemos
tomar a definição desta crise como o resultado do limite absoluto da lógica
interna do capital. Este limite já estava em curso nos anos 1960 e tornou-se
incontornável nos anos 1970 - por isso, este tempo da história do capitalismo tem
sido o de uma crise sem fim. Não será difícil perceber que como um todo, a
modernização está fracassada no mundo inteiro. Ela não é um background da
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emancipação humana, mas apenas a forma em que a valorização do valor se


desenvolveu historicamente. Que dela um dia se tenha tirado a poesia das
revoluções na periferia, apenas reforça o tema das ilusões objetivadas que tentei
explicar acima. O que resta são sociedades conflagradas em meio a um processo
inconsciente e violento de dissolução.

Com a PEC 241 plenamente aprovada, quais podem ser as novas


formas de "gestão da barbárie", dessa vez por um governo
abertamente neoliberal e de direita conservadora, e isso sem excluir
a chance de retomada do crescimento da economia?

A gestão da barbárie que o PT realizou dificilmente será novamente possível. Ela


não dependeu apenas de vontade política, mas foi produto de um acaso. Foi
necessário a criação de recursos que estiveram diretamente ligados aos resultados
de uma 'bolha especulativa' em torno de commodities que durou de 2003 a 2008,
e depois deu um suspiro final entre 2010 e 2012. Esta bolha sucedeu em parte a
bolha americana do ponto.com que tinha estourado em abril de 2001. Sua
arquitetura e engrenagem nada deve ao fato de Lula e o PT estarem no governo.
Ela foi um sintoma agudo do aprofundamento catastrófico da crise. O que o PT
fez a partir desta contingência, se quisermos continuar falando nos termos do
moderno príncipe, revela este 'virtuosismo muito particular' que eu chamo de
gestão da barbárie. Em resumo, este dinheiro a mais e sem valor (Kurz) - uma
fantasmagoria reduzida a mero signo, sem nenhum conteúdo real possível - que
passou a circular devido a uma sobrevalorização repentina de produtos como
soja, milho, açúcar, ferro, etc., em que o Brasil havia se tornado - meio por acaso,
meio por necessidade - um grande exportador, tal dinheiro concedeu ao Estado
uma espécie de respiração aliviada - apesar de, mesmo assim, ainda ter
continuado ligado ao tubo de oxigênio - depois de anos estacionado na CTI da
ruína econômica. Esta situação de acaso e necessidade explica como um tipo de
mecanismo de compensação foi sendo forjado para equilibrar, em expectativas
muito baixas, a balança comercial após a agressiva desindustrialização iniciada
nos anos 1990. Este equilíbrio rebaixado garantiu o acesso a um fluxo de dinheiro
do comércio internacional que já não viria pela exportação de produtos
manufaturados e, menos ainda, por empréstimos internacionais, e que permitiu,
de certa forma, a estabilização-instável de um arranjo social esdrúxulo e grotesco
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- para dizer o mínimo - a partir da reprodução em condições cruéis de parcela


cada vez menor da sociedade via financeirização. Fazer com este dinheiro a mais
sem valor uma transfusão - na forma inicial de transferência de renda e, logo
depois, de crédito a profusão -, injetando sangue novo na economia, foi, sem
dúvida, um grande feito menor. É necessário sublinhar que as politicas de
assistência foram parte desta política econômica para reanimar 'o gigante'.
Formou-se um sistema de retroalimentações induzidas (para nos mantermos no
significado artificial do todo) que pretendia recriar os velhos ciclos virtuosos, em
que, por meio de ações anticíclicas, o motor da economia pegaria no tranco, para
depois seguir em frente por suas próprias forças. Veja, fazer Lázaro se levantar da
tumba não é um prodígio para qualquer um - mesmo porque andamos numa
época de baixas também nos milagres. A combinação de transferência de renda,
aumentos reais do salário mínimo, aquecimento do mercado interno de consumo
e de trabalho e grandes investimentos em infraestrutura (PAC-I, PAC-II,
Petrobras, financiamentos do BNDES...) criaram uma ilusão objetivada de que
nunca antes se vira algo igual. Mas estes mecanismos de bolha são de fato
perversos, pois, quando seus protagonistas julgam estar em alto mar de vento em
popa exclusivamente por seus próprios méritos, justo neste momento advêm o
pior - e, como não é possível correr nestas horas para um porto seguro, resta o
naufrágio.

A PEC 241 é a regulamentação do acesso aos botes salva vidas. Como não há botes
para todos, ela pretende definir quem se salva e quem morre afogado - algo
semelhante ao que ocorre com os navios precários de imigrantes africanos que
naufragam semana sim semana não no Mediterrâneo. Isso será o que você
chamou de 'novas formas de gestão da barbárie'. O que vale a pena perceber é a
ideia geral da lei proposta - lembrando que lei é uma medida, um metrum
regulador das práticas sociais. Nas atuais condições da crise do capitalismo,
prever gastos por 20 anos é um monumento à imbecilidade - seus propositores
fazem de tudo para o merecer. Este nível de previsibilidade é impossível, muito
provavelmente os valores absolutos das verbas agora congeladas serão
insustentáveis daqui há poucos anos, pela razão inversa do que se imagina, ou
seja, simplesmente porque a crise terá quebrado o governo federal. Nem estes
valores ele será capaz de honrar. Desse modo, poderíamos fazer uma pergunta:
se isso que digo é um segredo de Polichinelo, pois qualquer operador bisonho de
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corretora de bolsa de valores o sabe, por que insistir numa lei tão absurda - com
todo o confronto social e desgaste que ela produz? A questão talvez esteja no que
anda oculto na sua pretensão. Ela deve induzir uma ampla regressão como nova
base do que alguns teóricos clássicos um dia chamaram de contrato social. Nas
justificativas da lei se pode ler que seu objetivo é daqui a 20 anos (2036)
voltarmos à situação fiscal de 2004. Não será difícil conseguir bronze para a forja
do monumento. Qualquer um pode entender que se trata de grandezas
absolutamente antagônicas: a população do país em 2036 será maior, e não igual
a de 2004. Mesmo hoje o país já não caberia neste orçamento - metrum. Mais
pessoas, menos dinheiro... Há, no entanto, uma premonição nisso tudo. Ela é o
sentimento inverso do que um dia foi produzido pelo 'desenvolvimento desigual
e combinado'. Este, como sabemos, era uma ilusão objetivada em torno da qual
se formavam blocos históricos progressista que formulavam medidas de nação
em que todos indivíduos deveriam caber. Agora, o bloco histórico da crueldade
(Paulo Arantes) se forma em cima do mais deslavado darwinismo social - a lei da
selva legitimando a seleção dos mais fortes economicamente diante do
extermínio dos mais fracos. Em outras palavras, a frieza de como se pisa sobre
cadáveres para entrar num bote salva vidas em pleno naufrágio - e esta é apenas
a medida da desumanalidade que 'cimenta' as práticas competitivas que são
necessárias para se levar adiante o capitalismo. Barbárie. E isto não é um adjetivo
ou recurso retórico, mas o conceito apropriado para explicar a tentativa de
estabilização desta sociedade (em desmoronamento) num tempo em que o
conteúdo social já não pode mais se realizar por meio desta forma social. É o
extermínio em massa de seres humanos que sobram segundo a lógica de uma
sociedade produtora de mercadorias em crise estrutural - e, desde a experiência
dos campos de concentração e das bombas atômicas, para esta sociedade
governada por uma espécie de 'sujeito automático' (cego), não há limites
destrutivos, mas apenas novas modalidades de destruição.

Como foi possível se formar uma consciência radicalmente


antipetista, antiestado e contrária aos direitos sociais, centrada na fé
no mercado e na individualização, não apenas entre os setores mais
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ricos ou a classe média, mas entre entre os mais pobres? Ou será


impressão ideológica nossa?

Sempre existiu um antipetismo radical no Brasil. Em Porto Alegre ou São Paulo,


por exemplo, isto já era uma força atuante visível desde os anos 2000. Ele se
tornou agora uma força nacional organizada, unificada e, por isso, majoritária
porque houve uma cuidadosa construção destas posições a partir dos erros
inevitáveis que uma gestão da barbárie produziria. O antipetismo é, neste sentido,
o amuleto da nova direita. Esta não é exatamente o mesmo que as formas
anteriores da direita. Ela não é a velha direita conservadora que defendia a
preservação dos laços de dominação aparentemente pessoais de uma sociedade
tradicional ameaçada pelas forças modernizadoras urbano-industriais.
Tampouco pode ser reduzida ao conceito da direita nazifascista, que explica bem
a reação à crise do capitalismo nos anos 1920-50. A nova direita é a primeira
formulação de direita predominantemente americana e é, em diversos aspectos,
um fenômeno pior que todas as versões anteriores juntas. Nós estamos
presenciando o nascimento da serpente cujos feitos ainda são modestos, mas
prometem não deixar pedra sobre pedra. O aspecto novo essencial que a
caracteriza é uma mentalidade fundamentalista (portanto, intransigente) em
torno da qual se cria um tipo de crença laica de defesa entusiástica das categorias
que constituem esta modalidade de sociedade governada inconscientemente pela
lei do valor, e que é a razão do estado destrutivo em que vivemos. É a seita do fim
do mundo. Num de seus ensaios, Roswitha Scholz mostra como há uma relação
estruturante entre a forma valor e a constituição social e histórica do poder
masculino. Um é o outro, diz ela. O resultado da globalização foi o inverso de sua
propaganda, e as perdas que impôs mundo afora produziu uma massa de homens
brancos ofendidos e ressentidos por sua violenta e repentina impotência social. A
ofensa decorre desta humilhação do falo, cuja potência no período anterior
retirava sua força da cultura fundada no poder que a forma valor empresta às
personificações sociais. Este homem branco é o próprio sujeito assujeitado que a
lei geral constituinte da realidade da sociedade necessita para se reproduzir.
Como estamos em meio a uma crise generalizada do capitalismo, em que na raiz
desta crise está o limite lógico que impede de se continuar produzindo novas
quantidades de valor e que, por seu turno - e contraditoriamente - esta produção
é a condição incontornável de existência do todo e sua dinâmica, não há como o
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homem branco não ser (e se sentir profundamente) humilhado. Portanto, a crise


do capitalismo é também a crise do moderno patriarcado. É uma revolta por
direitos hereditários - enfim, o mundo não lhes pertence? Os protagonistas do
Brexit, os eleitores de Marine Le Pen, de Bolsonaro, de Trump, todos têm esta
cicatriz - esta falha de caráter! - em comum. Por isso vociferam, urram como feras
embriagadas que querem de volta suas jaulas - elas ao menos lhes davam um
sentido seguro às suas vidas. Se não forem o centro de tudo, a razão última de
todas as coisas - em síntese, a personificação sexual do poder social da lei do valor
- o mundo não merece continuar existindo. Mais uma vez, na história do
capitalismo, a pulsão de morte se organizou politicamente.

O que os move é uma fantasmagoria ideológica (Kurz). Eles pretendem sustentar


como existentes formas (isto que Postone chama de categorias apriorísticas
fundantes desta realidade metafísica, porém, real, como o valor, o dinheiro, o
trabalho...) que já estão socialmente mortas. Uma das razões pelas quais Marx se
interessava pelas categorias da economia política, era o fato destas representarem
formas reais de existência (Daseinform) às quais os indivíduos eram submetidos
coativamente. A sua crítica não se voltava para denunciar um problema
meramente econômico, derivado de uma injusta reparação dos esforços
produtivos de cada um, mas uma crítica ao próprio modo de existir que estas
categorias impunham como reles imperativo da sobrevivência. A liberdade de
escolha no capitalismo é uma falsa consciência das contingências - como Spinoza
há muito percebeu. Portanto, as fantasmagorias são projeções do não-mais, uma
espécie de melancolia do presente cuja realização do luto colocaria esta ordem de
pernas para o ar. Observe a loucura: o apego a estas práticas sociais determinadas
pelas categorias apriorísticas constitutivas deste real impedem a liberdade - ou
melhor, impedem a emancipação - e, ao mesmo tempo, torna o fim do mundo
(sua destruição) cada vez mais próxima ao real. Um presente que já não existe e
um luto inviável se parece a uma tortura, literalmente: um ser em torção. Quem
não tem sentido vertigens nesses tempos é porque já está morto! Um realismo
sem realidade e uma existência des-existente podem se assemelhar a luz no
firmamento de uma estrela apagada. O problema é que criamos a possibilidade
de re-esquentar, por meio de bombas nucleares, este pedaço de estrela fria que
formou a terra há bilhões de anos. Talvez esta - se não mudarmos radicalmente o
curso das coisas - seja a última luz que emitiremos ao universo, e seu reflexo será
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o resultado de uma fantasmagoria ideológica de uma espécia que um dia quase


foi um ser inteligente, mas que, ao fim, se autodestruiu.

O melhor marxismo sempre centrou sua crítica no modo de produção,


no meio cego da forma valor, ao invés da distribuição. O que temos
para o momento no entanto parece-nos uma esquerda que mais ou
menos perdeu o bom combate na teoria e na prática, querendo
participar cada vez mais da "gestão da barbárie". Por outro lado, a
distribuição nunca foi tão questionada socialmente como agora. Um
salto a partir desse questionamento social da distribuição em direção
à forma do valor e do mais-valor é possível? Como fazer esse salto?

Não sei. Por certo você concorda com Postone quando este chama o marxismo
'que temos hoje' de marxismo tradicional. A capacidade crítica que dele um dia
irradiou se extinguiu. A razão de tal feito, como já comentei acima, era o limite da
própria crítica. Ela não se opunha ao modo de produção e ao 'meio cego da forma
valor', mas apenas à injustiça da distribuição. Claro, num tempo em que o
desemprego é estrutural, e a maioria da humanidade vive em cidades cuja única
política consistente de produção de moradias é a favelização (Davis), reclamar
por um pedaço de pão e um buraco para morar, sem se esquecer do direito a um
sacrifício diário assalariado, tem a força de nos deixar diante da soleira do
impossível. Mas pão e manteiga para todos é um acontecimento impossível no
capitalismo, por isso, não há impulso capaz do salto que você sugere. A própria
realização da ideia da troca justa é logicamente incompatível com um regime
fundado na concorrência. Uma ilusão, mesmo que generosa. Tem sido muito
difícil explicar isto, mas não existe outro caminho senão explicar. Em algum
momento, práticas que não sejam parte do problema, como o são estas que
comumente a esquerda tradicional propõe diante do aprofundamento da crise (a
gestão da barbárie, por exemplo), talvez se tornem viáveis - e isso pode
representar que para muitos ficou possível decifrar o monstro: ou produzimos
outras formas de sociabilidade, não mediadas pela mercadoria e o dinheiro ou...
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A que temas específicos você tem se dedicado nos últimos anos em sua
pesquisa e que campos novos de crítica se abrirão para quem quiser
contribuir para a crítica social responsável?

Anda muito difícil a produção de uma teoria crítica hoje. Em geral, a teoria foi
capturada pela indústria cultural, com seus eventos, instituições (como
universidades, revistas) e personalidades narcísicas que pouco agregam etc. Além
disso, a crítica não goza de muito respeito entre nossos pares teóricos. Uma
hipótese para isso pode ser que, pelo fato de na atual situação histórica a
produção do negativo precisar ser radical e sem tréguas, isso possa parecer algo
irresponsável. Contudo, a crítica que não abala certezas e não tem a contundência
de um martelo demolidor não faz sequer cócegas ao estado de coisas calamitoso
em que ingressamos. Ela não pode ter qualquer responsabilidade com a
sustentação desta ordem se quiser ajudar a mantermos alguma esperança de que
haverá futuro.
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“Onda conservadora” ou declínio social?

Marcos Barreira

Os acontecimentos recentes parecem não deixar a menor dúvida: quer se


trate de campanhas contra exposições de arte, “cura gay”, ensino religioso nas
escolas ou da pregação da “intervenção militar” nas redes sociais, estamos diante
de uma inequívoca onda de conservadorismo. Somadas ao processo de desmonte
do sistema de proteção social criado ao longo da modernização da sociedade
brasileira – um processo acelerado após o fim do período de crescimento da “Era
Lula” -, essa “onda” indicaria um recuo das forças “progressistas” e das ações
afirmativas e/ou de redução da pobreza. É como se todo um período quase idílico
de estabilidade política, crescimento econômico, inclusão social e florescimento
da diversidade cultural fosse subitamente golpeado.

Esse modo de ver as coisas faz parte de uma visão enganosa e cheia de
simplificações que a esquerda construiu a respeito de si mesma e do seu papel
histórico. Tal ideia é facilmente desmentida em dois aspectos: primeiro, o
conservadorismo da sociedade brasileira não é uma “onda”, pelo menos não no
sentido de uma simples agitação momentânea, e sim um dado estrutural da nossa
ordem social; em segundo lugar, a “Era Lula” foi um fenômeno “pós-ideológico”
(i.e., uma forma pragmática de gestão que pretendia ultrapassar os conflitos do
período de consolidação da modernidade) de adequação cada vez maior de
partidos e movimentos de esquerda ao sistema político vigente. Para funcionar, o
modelo de crescimento com inclusão adotado pelos governos de Lula e Dilma
dependia da ampliação da ordem conservadora, especialmente da sua estrutura
social e econômica, não de uma transformação em larga escala; eram
transformações na ordem, não dá ordem conservadora.1 Se a década de 1990
ainda foi marcada por processos de mobilização popular – luta pela terra, pela
moradia, contra as privatizações etc., os anos de hegemonia “lulista”, nos quais a
política continuou a ser tutelada pelo poder econômico, os movimentos de

1O modelo econômico da “Era Lula” se baseava fundamentalmente na ampliação e


modernização das monoculturas de exportação e da exploração mineral, bem como da
respectiva criação da infraestrutura.
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contestação da ordem foram desmobilizados e substituídos pela combinação de


“pautas afirmativas”, reivindicações corporativas e programas de renda mínima.
Durante essa conjuntura, uma parte crescente das camadas populares ascendeu
socialmente por meio do consumo individual, o que deu um forte respaldo ao
projeto de poder organizado em torno do ex-presidente Lula.

O modelo de reprimarização da economia a partir da conjuntura do boom


das matérias primas ajudou a reconfigurar a geografia econômica brasileira:
foram reforçadas as tendências de expansão das monoculturas no Cerrado, os
grandes projetos de infraestrutura na Amazônia e no semiárido nordestino.
Aproveitando-se da conjuntura favorável, o governo acionou mecanismos
estatais de “ativação” do mercado interno e estimulou o consumo das famílias de
baixa renda nas periferias das metrópoles e nas cidades pequenas e médias do
interior. Também foram reforçadas as tendências de esvaziamento industrial e de
empobrecimento dos setores médios: a tão festejada expansão dos empregos -
que já em 2015 havia regredido a patamares idênticos aos da década de 1990 -
ocorreu sobretudo nos serviços de baixas qualificação e remuneração.

A expansão do mercado (quer se trate da fronteira agrícola, de matérias


primas industriais ou do consumo interno) produziu uma série de efeitos
ideológicos colaterais: o país assistiu à última etapa da transição da universidade
de elite para o ensino comercial massificado. A ampliação do sistema de ensino
universitário não apenas orientou-se para os novos nichos de mercado
decorrentes da expansão do consumo popular (turismo, publicidade, novas
mídias, estética e cuidados com o corpo, etc.), como também promoveu uma
“cultura empreendedora” para as camadas sociais ascendentes. 2 Ocorreu ainda
um deslocamento de segmentos importantes da indústria cultural para o interior,
enquanto multiplicavam-se soluções de mercado para os problemas da pobreza
urbana, como a ideologia da “Favela S.A.”, e a juventude da periferia criava sua
cultura da “ostentação” ou da socialização no “rolê” em shopping centers. Tais
exemplos revelam formas ilusórias de interiorização dos pré-requisitos da
concorrência capitalista após a falência do modelo de desenvolvimento nacional.
Por trás de toda a retórica do governo, a capacidade real de integração das massas
populares permaneceu limitada. Não por acaso, foi também nesse período que a

2 Com instituições de ensino privadas usando dinheiro público para fomentar a retórica
empresarial.
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militarização da segurança pública e o encarceramento dos pobres atingiram


dimensões inéditas e brutais.

A militância de esquerda assumiu uma defesa institucional dessa duvidosa


integração dos pobres pelo mercado, incluindo seus desdobramentos no plano
cultural, pretendendo, inutilmente, instrumentalizar a constituição ideológica
das novas identidades do “capitalismo popular”. Igualmente orientadas pelo
lucro e pelo sucesso individual, as seitas evangélicas ampliaram ainda mais a sua
presença nas periferias por meio do infatigável trabalho de base e da exploração
da reação conservadora ao caráter “liberalizante” dos processos de
individualização que acompanham o aprofundamento das relações de mercado.

Até o mais distraído dos observadores é capaz de notar que tais padrões de
comportamento e visões de mundo estimuladas pelo efêmero boom de
crescimento não podiam romper com a ordem conservadora, nem apontavam
qualquer perspectiva de mudança social – a não ser aquela promovida pelo
próprio mercado. Tratava-se não de reforma ou “mudança”, mas de reafirmação
– em parte, uma aceleração - de tendências sociais regressivas que estavam em
curso bem antes de 2002. Não cabe, portanto, apontar uma contradição entre o
crescimento econômico com redução da pobreza e a “vocação conservadora” do
país, como fez, por exemplo, um porta-voz do lulismo.3 Foi por meio da
reprodução do sistema político, da estrutura econômica concentradora e da
ideologia de mercado que se construiu o modelo de crescimento e de integração
das camadas de baixa renda.

Desse modo, é possível inverter a perspectiva: se o conservadorismo é uma


condição estrutural, ainda que em dissolução devido às pressões
individualizadoras, o que pode ser compreendido como fenômeno puramente
conjuntural é o “pacto social” da “Era Lula”. O “pacto social” é essencialmente um
“recurso jurídico-político das elites em horas de crise da sua hegemonia”. 4 Jamais
se tratou de uma retomada do “desenvolvimento”, para a qual faltavam as bases
objetivas, mas apenas de um momento da crise da modernização periférica no
qual havia a explosão do desemprego e da pobreza em massa tornou urgente o

3 André Singer, Os sentidos do lulismo. Reforma gradual e pacto conservador, São


Paulo, Companhia das Letras, 2012, p. 12-13.
4 Tarso Genro, Instituições políticas no socialismo, São Paulo, Ed. Fundação Perseu

Abramo, 2001, p. 16.


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tratamento da crise social. A partir daí a correlação de forças entre os dois


maiores projetos nacionais de poder (PT e PSDB) foi parcialmente invertida - e
dessa inversão nasceu um projeto mais amplo de administração da crise que, de
um lado, incorporava parte significativa das massas populares e, de outro lado,
pactuava com as elites econômicas a manutenção do modelo concentrador.

Esse arranjo, no entanto, produziu uma forte oposição das camadas


médias, que não só permaneceram fora do “pacto”, mas ainda foram
sobrecarregadas com parte dos custos da integração das camadas populares. Os
estratos médios negligenciados por esse arranjo político nada conciliador
abarrotaram durante toda uma década as mídias sociais em rápida expansão com
um discurso antiestatal tão violento quanto delirante, que identificava como
“socialista” qualquer tipo de protagonismo do Estado. Por sua vez, as camadas
populares festejadas pelos governos Lula e Dilma como a “nova classe média” não
se integraram apenas pelo consumo individual, mas igualmente pelo sistema de
comunicação em rede que nesse meio-tempo se tornou o elemento central da
indústria cultural. Esse é o embrião da hegemonia ideológica pós-lulista em
formação, que unifica a ideologia individualista das camadas médias tradicionais
e uma parte cada vez maior das massas das periferias e do interior do Brasil
“emergente”.

Se as camadas médias constituíram uma base de sustentação da oposição ao


governo Lula, esse novo matrimônio ainda não inteiramente consumado já
produziu grandes mobilizações de massa. O próximo passo, que agora é esboçado
pelos movimentos da “nova direita”, promove a união da ideologia liberal radical
com a mentalidade repleta de resíduos tradicionais e autoritários das camadas
populares. Os inventores dessa aliança idealizam um paradoxal
“conservadorismo de mercado” que haveria de restaurar os valores tradicionais
da família e da religião. Para isso, exploram os preconceitos populares,
adicionando a eles uma guerra contra a “mentalidade revolucionária” que estaria
por trás da dissolução de todos os valores.5

5 “Enquanto o PT perdia os eleitores das faixas de renda média, suas bases sociais não se
renovavam. Ao contrário, os segmentos diretamente assistidos pelo Estado ou
assalariados de baixa renda que ampliaram sua capacidade de consumo nunca se
identificaram com o projeto político do PT – ou de qualquer outro partido. No plano
dos valores, a maior parte dessa massa é conservadora e abertamente hostil à agenda
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Toda essa confusão ideológica produziu um novo estranhamento mútuo:


minorias progressistas e cultivadas da “classe média” dos grandes centros, ela
mesma preconceituosa até os ossos, não param de se chocar com a mentalidade
rústica e “tradicionalista” das maiorias, que, por sua vez, ainda são capazes de se
escandalizar com exposições de arte em museus. Outro aspecto desse choque
cultural é a exposição, por meio das novas mídias, de uma violência sempre
recalcada por parte das camadas médias: grupos de extermínio, controle mafioso
de territórios, estupros coletivos e linchamentos há muito fazem parte da vida
cotidiana das massas “sobrantes” da modernização periférica. Já nos anos 1990,
o sociólogo José de Souza Martins mostrou verdadeira dimensão dos casos de
“justiçamento” nos quais as populações sem acesso ao Estado reagem à quebra
das regras morais.6 O mesmo pode ser dito, por exemplo, a respeito da violência
no sistema carcerário ou nas favelas cariocas. Também o avanço da
“modernização conservadora” no campo levou à morte de nada menos do que 560
lideranças indígenas, entre os anos 2005 e 2015.7

O verdadeiro sentido desse modelo de crescimento com inclusão, que já é


parte do passado, não foi a reforma gradual das estruturas sociais e sim uma
acomodação dos potenciais de transformação à lógica coercitiva do dinheiro.8
Enquanto o desejo de ascensão social era parte de uma conjuntura de crescimento
econômico baseado na bolha das matérias primas, agora subsiste apenas a
mobilização pela simples preservação de um estado de segurança (social,
econômica, psíquica, etc.) que já não encontra bases reais para se sustentar. Desse
estado psicossocial alimentado pela dinâmica do colapso das estruturas de
reprodução da sociedade fazem parte as diversas “seitas de salvação” e a
tendência crescente de militarização e de administração armada dos conflitos.9 O

petista e da esquerda culturalista em geral”. Marcos Barreira, Terra arrasada, neste


blog.
6 José de Souza Martins, Linchamentos: a justiça popular no Brasil, São Paulo,
Contexto, 2015.
7 Carlos Walter Porto Gonçalves, Amazônia: encruzilhada civilizatória. Rio de Janeiro,

Consequência, 2017.
8 Não por acaso, o “Bolsa Família” foi definido por dois de seus defensores como um

“instrumento de autonomia individual” (Walquiria Leão Rego e Alessandro Pinzani,


Vozes do Bolsa Família. Autonomia, dinheiro e cidadania, São Paulo, Editora UNESP,
2013, p. 20), isto é, como mais autonomia para atuar no sistema de trabalho-renda-
consumo de mercadorias e para reproduzi-lo.
9 Cf. Felipe Brito e Pedro Rocha de Oliveira (org.). Até o último homem. Visões cariocas

da administração armada da vida social, São Paulo, Boitempo, 2013.


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que aparece como uma “onda” de intolerância para a consciência horrorizada de


minorias “progressistas” é apenas a crise do pacto social e o retorno das
contradições abrandadas pelo amortecedor social da “Era Lula”. O fim desse
período de adiamento da crise (que foi confundida pela ideologia afirmativa com
uma nova era de crescimento) representa o início do declínio social. No plano da
subjetividade, o recrudescimento da violência física ou simbólica de todos contra
todos é a resposta mais imediata para o fim da normalidade capitalista. Com isso,
não pode mais ser ocultado o vínculo entre a mercantilização das relações
humanas e a violência sem freios que o ensaísta alemão H. M. Enzensberger
definiu como uma “guerra civil molecular”.
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Deus acolhe a crise


Onde outros veem um conflito do “Oriente contra o Ocidente” ou do
“Ocidente contra o Resto”, a esquerda deve tomar distância e
combater a política identitária culturalista

Ernst Lohoff

A maior parte dos debates políticos e disputas conceituais evanescem sem


deixar muitos rastros ou consequências. Muitos são quase esquecidos enquanto
ainda estão sendo travados. Raros são aqueles que representam rupturas
históricas, encontrando em algum momento um lugar na escritura da história. É
de se temer que o miserável debate sobre o “choque de culturas”, que no início de
2006 ocupou o espaço público não apenas alemão, recaia nessa categoria.

É certo que nesse tempo as fortes ondas geradas pela “guerra das
caricaturas”1 se assentaram, e também a discussão sobre a introdução dos testes
de cidadania para islâmicos evanesceu2; tendo em vista a agudização do conflito
entre Israel e o Hizbollah e a miséria sem fim do Iraque em decomposição, a luta
contra as correntes islamistas e antiocidentalistas no momento parece, a
princípio, um problema de "política externa" dos Estados Unidos e de Israel, e a
sua função política identitária mais uma vez recua ao pano de fundo; mas isso
sempre pode mudar abruptamente. A sociedade mundial está no limiar de uma
catástrofe climática global de consequências imprevisíveis, não apenas no sentido
meteorológico, mas também ideológico e de política identitária.

Diante da crise da sociedade mundial da mercadoria, os “cidadãos do


mundo” modernos se refugiam em comunidades definidas de maneira
culturalista, e procuram abrigo na pseudoclareza das relações de tipo amigo-
inimigo, nas quais as diferenças étnicas e religiosas são elevadas a oposições de

1“Guerra das caricaturas”: referência a um conjunto de doze caricaturas entituladas “A


face de Maomé”, publicadas pelo jornal dinamarquês Jyllands-Posten em 2005. As
caricaturas geraram protestos de islamistas, nos quais houve mais de cem mortes,
ataques a embaixadas e a tentativa de homicídio de um dos desenhistas (N. T.)
2 Referência a provas realizadas para candidatos à obtenção de cidadania alemã,

especialmente para os de origem muçulmana (N. T.).


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princípio essenciais. Essa fuga ameaça tornar-se uma bola de neve, que pode
influenciar decisivamente o desenvolvimento da crise. No que concerne aos
centros ocidentais, o antagonismo com o “Islã” tem um papel chave. O
enfrentamento da questão islamista atualiza e revive exatamente aquela projeção
no “judaísmo” como objeto do ódio, que se alojou profundamente no
autoentendimento coletivo do inimigo forjado no Ocidente.

Ninguém pode estimar precisamente o alcance e as consequências dos


acontecimentos atuais. Mas é possível constatar a que ponto o espírito do tempo
já se deslocou em relação ao que era hegemônico ainda nos anos 80 e 90. A era
neoliberal integrou a religião do mercado e o culto extremo do individualismo,
que Margaret Thatcher trouxe por vários anos na formulação tão concisa quanto
famosa: “There's no such thing as society. There are individual men and women
and there are families”.3

Tendo em vista as consequências devastadoras da política neoliberal, essa


concepção simplória do mundo, porém, perdeu o seu poder de convencimento.
Mas não há volta possível para o status quo ante fordista. Os estados nacionais
perderam, de fato, a sua capacidade de integração ideológica e prática da
sociedade, tal como pregado pelo neoliberalismo, mas não deixou o campo aberto
para o combatente individualizado, que só reconhece a si mesmo e a sua própria
família; antes, o seu lugar é assumido por novas identidades coletivas,
caracterizadas pela exclusão e pela definição de inimigos. À medida que a
sociedade se faz ausente, comunidades definidas de maneira culturalista ou
religiosa preenchem os espaços deixados pelos seus sucessivos recuos.

Nos países periféricos, essas comunidades já tomaram há anos uma parte


das funções que segundo o ideal clássico da modernização seriam assumidas pelo
Estado ideologicamente neutro. De certa maneira, é o Hizbollah, e não o Estado
nominal libanês, que cuida, em seu território, da manutenção de uma certa
infraestrutura, e garante à sua clientela um resquício de salvaguarda social.

Na Europa, onde o recuo da capacidade de integração estatal começou a


partir de um nível de socialização muito mais alto, a construção etnicista de

3 “Não existe essa coisa chamada ‘sociedade’. Existem homens e mulheres individuais, e
existem famílias”. Em inglês no original. (N. T.)
[-] www.sinaldemenos.org Ano 9, n°12, vol. 2, 2018 28

“comunidades imaginárias” (Benedict Anderson) permaneceu essencialmente


como um fenômeno ideológico – mas de amplo e profundo alcance. Isso torna
evidente que mesmo a ideologia de legitimação oficial para a desmontagem do
Estado social local assumiu nova forma. O disparate da individualização das
responsabilidades permaneceu; mas ela se baseia cada vez menos no culto do
indivíduo. Percebe-se no discurso dominical dos governantes que eles evitam
importunar o Estado social com direitos, demandas e reponsabilidade diante do
conjunto da sociedade nacional.

A virada para a comunalidade de base religiosa e culturalista coincide com


a virada para a irracionalidade. A era neoliberal conhecia apenas o “terror da
economia”, ou seja, a racionalidade insana do lucro; o seu tipo ideal era o
calculista frio voltado apenas aos seus próprios interesses. Hoje ressurge, ao
contrário, a heroica comunidade. Por quase um quarto de século a utopia
anticoletivista dominou a paisagem ideológica, na qual os homens unidos
imediatamente pelo mercado têm de concorrer até a morte, sem preconceitos
racistas ou culturalistas, em um mundo sem fronteiras e livre de inimigos.

A encenação identitária coletiva que ocorre com o "choque de culturas", ao


lado da imposição individual na competição do sujeito do trabalho e do consumo,
implica não apenas a exclusão de base etnicista, mas tende também à violência
estetizada.

Culturalismo antiocidental

A miragem de uma sociedade de mercado mundial sem fronteiras, que se


realizaria nos bilhões de empresários de si mesmos acostumados ao sucesso, foi
um produto da lua de mel do capitalismo de cassino. Nas regiões do mundo que
tiveram pouca participação nos longos booms induzidos pelo mercado financeiro,
isso nunca pode se instalar tão profundamente na consciência coletiva quanto nas
metrópoles do centro. Nestas regiões, a etnicização das contradições da sociedade
da mercadoria como forma de reação ideológica dominante se estabeleceu antes,
no processo de globalização de crise.

Especialmente no espaço islâmico entre o Marrocos e o Paquistão, a


decadência econômica e política com a transição para o capitalismo globalizado
[-] www.sinaldemenos.org Ano 9, n°12, vol. 2, 2018 29

se acentuou, com agudo processo de empobrecimento. O fracasso final dos


regimes de modernização nacional mais próximos ao socialismo na Argélia, no
Egito, na Síria, no Iraque etc., que foi oficialmente selado com o colapso do
socialismo real, deixou também, com a bancarrota da crítica marxista tradicional
do capitalismo, um vácuo interpretativo.

Isso foi percebido pelas tendências antiocidentalistas, que, fatalmente


para o mundo islâmico, não responsabilizam o capitalismo mundial, mas a
influência "decadente" da "cultura ocidental". A fracassada fabricação das nações
árabes, contrariamente ao que pode parecer, abre espaço para um construto
coletivo pós-estatal e pós-moderno: a Umma, a comunidade de todos os crentes
muçulmanos, que seguem o "autêntico" Islã.

O Islã histórico real sempre demonstrou uma boa capacidade de adaptação


aos costumes e circunstâncias regionais. O Islã unia pessoas com condutas e
perspectivas de fé de grande heterogeneidade sob um teto religioso comum. O
Islã "puro e imutável" nunca existiu. A adaptação projetiva da Umma em direção
a um sujeito coletivo idêntico no tempo e no espaço oferece, porém, uma grande
vantagem em termos de política identitária, exatamente após a queda do
nacionalismo laico árabe.

Esse construto permite, por um lado, confrontar “o Ocidente” de igual para


igual em termos de política identitária; a Umma transnacional é a versão
antiocidental do sujeito mundial pós-moderno. Por outro, essa frente de batalha
(entre o "Islã puro" de um lado e os infiéis e apóstatas do outro) permite imputar
a um poder externo tudo aquilo que é ameaçador e destrutivo no capitalismo
globalizado.

Na Europa Ocidental, o etnicismo fincou pé nos anos 80 e 90, de início


principalmente como ideologia neonacionalista confusa e de ampla difusão da
visão de mundo neoliberal, mas que involuntariamente traduziu o medo do
rebaixamento social em programas agressivos de exclusão e ofereceu uma
autoafirmação performativa à identidade branca masculina ameaçada. No que se
refere à determinação da imagem do inimigo e à escolha do próprio padrão
identitário, o etnicismo europeu emergente tomou diretamente as ideias clássicas
nacionalistas e racistas.
[-] www.sinaldemenos.org Ano 9, n°12, vol. 2, 2018 30

O desenvolvimento in God's own country ofereceu, em contraste, outra


imagem madura, a priori. Aqui se trata acima de tudo do fundamentalismo
cristão, que se fortaleceu, e cuja rede desde o começo exerceu muito mais
influência no discurso público do que Schönhuber, Haider, Le Pen e consortes.4
Além disso, a interpretação cristã-fundamentalista do mundo se movia
contrariamente ao etnicismo europeu autárquico de tipo nacionalista de
pequenos territórios, estando de antemão à altura do tempo pós Estado nacional
da sociedade mundializada.

Enquanto na Europa se queria salvar as "culturas dominantes" nacionais


do "radicalmente estranho" com limitada orientação defensiva, os
estadunidenses agiram de antemão como Global Player e iniciaram,
especialmente na América Latina e na África Ocidental, uma intensa atividade
missionária para a difusão de sua visão de mundo.

A inimizade une

O fundamentalismo islâmico se dirigiu de início de maneira


imediatamente prática contra os regimes de modernização locais em colapso e os
governos-fantoche do Ocidente nos países islâmicos. Nessa fase, ele atuou apenas
marginalmente na Europa e nos Estados Unidos, apesar das guerras civis
sanguinárias, como na Argélia. A constituição de uma corrente jihadista, que
levou o confronto interno para o palco global, significou um salto qualitativo não
apenas para o desenvolvimento do fundamentalismo islâmico, mas também para
o rearranjo da paisagem ideológica no "Ocidente".

Como se estivessem todos apenas esperando por esse adversário, o 11 de


setembro de 2001 marcou a passagem do processo de etnicização da forma
insidiosa para a aberta. Enquanto o Ocidente oficialmente combatia o
fundamentalismo islâmico, extra-oficialmente ele o emulava. Na defesa do
indivíduo e da democracia pluralista contra o retorno das massas fanáticas e da
"questão totalitária" da imaginada "cultura islâmica", a ideologia ocidental dos
direitos humanos assumia cada vez mais os contornos de uma religião tribal pós-

4 Referência a líderes de extrema-direita na Alemanha, Áustria e França,


respectivamente. (N. T.)
[-] www.sinaldemenos.org Ano 9, n°12, vol. 2, 2018 31

moderna.

Não se trata apenas de um bilhão de pessoas como comunidade


ideologicamente responsabilizada, colocada sob suspeição generalizada, e que
com isso têm a sua exclusão preventiva legitimada; uma vez que os defensores da
"comunidade de valores ocidentais" constrói uma essência da "cultura islâmica"
cujo elemento central é a violência e a opressão das mulheres, eles externalizam
projetivamente o caráter violento e sexista da sociedade capitalista e criam para
si uma contraimagem do "Ocidente", que funciona ao mesmo tempo como
imagem do inimigo e como exemplo.

Já no mentor do Clash of Civilizations, Abu Huntington, é palpável a


ambiguidade da cultura islâmica fabricada, de pensamentos atemporais e
fechados. "Culture is to die for", escreveu ele no álbum de família do Ocidente
para ele em decadência, e declarou já em 1994 que a assimilação do ostensivo
desejo de morte essencial dos "orientais" era precondição existencial para o
"Ocidente" no "choque de culturas".

E também o que ele prescreve para a sobrevivência da "comunidade de


valores ocidentais", além da matança, é bastante claro: “What ultimately counts
for people ist not political ideology or economic interest. Faith and family, blood
and belief, are what people identify, and what they will fight and die for”.5

A unidade espiritual da sociedade mundial da mercadoria, apesar dos


rumores contrários, não está à disposição do Clash of Civilizations. Ela é
produzida em grau há muito inédito na ação recíproca dos cruzados da
democracia e dos islamistas da guerra santa. Mas ela assume uma forma um tanto
diferente daquilo que os mentores neoliberais previram. Ela consiste no
gentlemen's agreement dos etnicistas e fundamentalistas de todos os países para
a instalação de uma espécie de cultura hooligan mundial, com pronunciada
tendência ao apocalíptico.

No que se refere à relação com os muçulmanos que vivem na Europa


Ocidental, a maior parte da população e dos formadores de opinião não segue

5 “O que conta em última instância para as pessoas não é a ideologia política ou o


interesse econômico. A fé e a família, o sangue e a fé, são o que as pessoas identificam,
e é por isso que elas irão lutar e morrer”. Em inglês no original. (N. T.)
[-] www.sinaldemenos.org Ano 9, n°12, vol. 2, 2018 32

necessariamente com muito entusiasmo o conflito entre a "comunidade de


valores ocidentais" e a "cultura islâmica". Isso não esconde, porém, as profundas
mudanças que já ocorreram.

A necessidade de excluir "o diferente", que por longo tempo permaneceu


difusa, não apenas recebeu um objeto identificável no construto do Islã, mas
também se tornou, como "defesa das conquistas ocidentais", compatível com o
liberalismo. O brado sombrio e vago "fora estrangeiros" da escória fascista, no
contexto da chamada "capacidade de integração" dos muçulmanos, toma uma
forma de impasse muito adequada ao pensamento do centro democrático.

Para a crítica da suposta ou real autoguetização da minoria islâmica, o


ressentimento anti-islâmico torna-se aceitável. O chamado à integração é
propagado por meio da exclusão, e naturalmente há muitos talkshows
convenientes e "convertidos" de maneira livre e democrática protegidos pelo
Spiegel, Schily e Companhia, como a inevitável Necla Kelek, que serve de
testemunha contra os seus duros irmãos e irmãs de fé.6

A força da exclusão para fabricar consensos é agora revelada pelas


pesquisas de opinião. Segundo uma pesquisa da Allensbach ainda sob o impacto
do 11 de setembro, apenas 43 por cento da população alemã responde
negativamente quando perguntada se se deve esperar tensões maiores com a
população islâmica na Alemanha. Um estudo posterior mostrou que esse número
foi reduzido para apeanas 22 por cento (FAZ de 17 de maio de 2006). Esse é o
terreno no qual a "guerra de civilizações" como guerra preventiva populista de
grande escala se torna executável e toma o caráter de uma self-fulfilling
prophecy.7

A vilanização do Islã ganha contornos internos cada vez mais claros. Isso
se choca contra o grande ceticismo em relação à chamada cruzada democrática
"contra o terror" no Iraque e na "velha Europa". Por um lado, a perspectiva de
uma guerra civil mundial compreensivelmente provoca mais medo do que
entusiasmo por parte daqueles que ainda não perderam o juízo. Por outro, outra

6 Necla Kelek: socióloga alemã nascida na Turquia, conhecida por suas posições críticas
em relação ao Islã. (N. T.)
7 Profecia que se autorrealiza. Em inglês no original. (N. T.)
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projeção culturalista se sobrepõe e contrarresta o efeito anti-islamista.

Exatamente na Alemanha, o berço espiritual original do antiocidentalismo, os


tempos de crise possuem um fundo ideológico que pode ser recuperado, de
externalização do que é percebido como ameaçador no capitalismo mundial na
forma projetiva "civilização ocidental", para identificar-se com mais
determinação com o seu "lado bom". O velho construto "cultura alemã versus
civilização ocidental" encontrou uma forma contemporânea pós Estado nacional
no confronto entre a "velha Europa" amante da paz e o Ocidente asselvajado,
representado pelos Estados Unidos.

A etnicização interna ao imperialismo pode funcionar como contrapeso da


vilanização do Islã. Isso é demonstrado pelo equilíbrio precário das
caracterizações vilanizadoras culturalistas que concorrem entre si de maneira tão
vigorosa quanto os padrões interpretativos em conjunto se tornaram
onipresentes. Tampouco o fato de que o chamado ao "diálogo intercultural" da
política oficial momentaneamente ressoe mais alto do que o brado pelo "choque
de culturas" é ocasião para desligar os alarmes.

Esse padrão de linguagem e pensamento demonstra, ao contrário, o


quanto a metamorfose culturalista avançou nesse meio tempo. Se as "culturas"
devem dialogar, os indivíduos e seus problemas são silenciados e grupos de
pessoas com histórias específicas e experiências sociais diferentes já são
metamorfoseadas em meros representantes de pensamentos homogeneizados de
blocos identitários coletivos.

A princípio deveria ser saudado o fato de que na Alemanha se discute


politicamente não apenas sobre os imigrantes, mas com os imigrantes. Mas por
que as organizações islâmicas são automaticamente os interlocutores
preferenciais dos imigrantes do norte da África e do Oriente Médio, e não
associações indiferentes à religião? Por que se lamenta a falta de uma
contrapartida das igrejas cristãs ao "lado" islâmico? O discurso da necessidade de
construir pontes entre a "Cristandade" e o "Islã" se baseia no reconhecimento do
sistema etnicista que pregam Huntington e os jihadistas, e a sociedade mundial
acaba por recair em entidades culturais e, de regra, religiosas, fixas e claramente
delimitadas.
[-] www.sinaldemenos.org Ano 9, n°12, vol. 2, 2018 34

Um conflito intracultural

O fundamentalismo islâmico encarnou na "civilização ocidental" o seu


oponente oficial, e em primeiro lugar no "grande e pequeno Satã", ou seja,
Estados Unidos e Israel. Esse autoentendimento, porém, não consegue esconder
um elemento essencial. Apesar das ações espetaculares contra "sionistas e
cruzados" comandadas por organizações como o Hizbollah e a Al-Qaeda, o
fundamentalismo islâmico encontra o seu verdadeiro campo de batalha e os seus
verdadeiros destinatários nas comunidades islâmicas e comunidades de
imigrantes.

Mary Kaldor em sua análise das "novas guerras" demonstrou que os


combatentes étnicos dos anos 90 não se dirigiam tanto uns aos outros nas
batalhas, mas em primeiro plano contra a população civil relutante "no seu
próprio lado".8 Essa descoberta se aplica também para o "choque de culturas". As
ruidosas declarações de guerra dirigidas ao “exterior” anunciam acima de tudo
uma campanha "interna" nem tão silenciosa. O “choque de culturas” cria o
quadro de referência no qual o fundamentalismo islâmico, com a invenção do
“Islã puro”, pode legitimar e desenvolver uma rígida coerção à adaptação e à
homogeneização, tanto na diáspora muçulmana quanto nos países islâmicos. A
onda repressiva, que dessa vez respinga no Irã, revela muito a esse respeito.9

Apenas o confronto com os Estados Unidos torna possível em poucos anos


marginalizar e criminalizar a até então poderosa oposição civil como suposta
"quinta coluna". Mas essa é apenas a variação estatal de um mecanismo que já
funciona de maneira pós-estatal. Basta que o "Ocidente" imagine e trate os
muçulmanos como massas fanáticas obscurantistas, para fortalecer a política
identitária antiocidental. À medida que a sociedade local exclui, à medida que a
"política de segurança" ocidental pune o refém como se fosse o sequestrador, ela
cria exatamente aquilo que teme. Esse é o tipo de ataque ideológico, policial e
militar que faz com que aquilo que se quer combater na verdade se fortaleça com

8 Mary Kaldor: acadêmica britância, professora de governança global na London School


of Economics. (N. T.)
9 Referência à escalada repressiva iniciada com o governo de Ahmadinejad a partir de

2005. (N. T.)


[-] www.sinaldemenos.org Ano 9, n°12, vol. 2, 2018 35

vigor.

Mas também sob outro ponto de vista a belicosidade ocidental em nome


dos direitos humanos funciona como contrarrevolução preventiva. O seu
programa de exclusão tem efeito não apenas em relação ao fundamentalismo
islâmico como um programa de apoio, mas, além disso, o "choque de culturas"
cria o clima ideal para instaurar a repressão e coerção fortalecidas para a
adaptação, e engendra uma coalizão fatal. Com o "Patriot Act" e as relevantes leis
de segurança na Europa, os governos forjaram armas que não apontam para os
novos inimigos externos do confronto, mas que podem mostrar a sua utilidade
como instrumento de repressão de movimentos emancipatórios.

Sob a casca da luta intercultural se esconde, na verdade, um conflito


intracultural. Isso não apenas no sentido de que no Clash of Civilizations se
constitui uma espécie de "grande coalizão" secreta entre os poderes
antiemancipatórios de ambos os lados da alegada trincheira "cultural"; o
fundamentalismo islâmico é carne da civilização ocidental, contra a qual ela entra
em campo. A ideia de que o choque de "culturas" é um conflito entre a
modernidade e a pré-modernidade é pura ideologia, e é tão difundida quanto
conceitualmente absurda.

O fundamentalismo islâmico gosta de falar e agir energicamente como se


fosse a ruptura absoluta com o pensamento moderno ocidental, mas na verdade
se trata de um movimento hipermoderno. Isso não apenas devido à simples
utilização dos meios da técnica moderna, em especial a manipulação
frequentemente virtuosa das possibilidades midiáticas da "era da informação",
mas também nos seus conteúdos e objetivos. Quem confunde a ideologia do
fundamentalismo islâmico e sua produção de identidade com o Islã tradicional
poderia também supor, a partir do culto germânico de Himmler e companhia,
que os nazistas pensavam e sentiam como os antigos povos germânicos.

A própria ideia de um "Islã puro" em si homogêneo tem suas raízes não na


realidade histórica passada; se trata muito mais de uma ideia genuinamente
ocidental. E também o ostentado amor à morte não se origina de maneira alguma
da tradição especificamente islâmica, mas está relacionada com a história da
modernidade, e tem nela o seu modelo.
[-] www.sinaldemenos.org Ano 9, n°12, vol. 2, 2018 36

Ela se adapta – Farhad Khosrokhavar desenvolveu essa ideia há dez anos


– a uma refundação assassina da subjetividade moderna frente ao pano de fundo
de uma modernização nacional fracassada: "quando o projeto de constituição dos
indivíduos, que participa plenamente da modernidade, revela o seu absurdo na
experiência real da vida cotidiana, a violência se torna a única forma de
autoafirmação para o novo sujeito. A nova comunidade se torna então
comunidade da morte. A exclusão [Ausschlissung] da modernidade assume
significação religiosa: o autossacrifício se torna um caminho para lutar contra a
exclusão [Exclusion]".10

Considerando essa constelação, torna-se supérfluo discutir se o verdadeiro


mal a ser considerado é o Ocidente em sua nova realidade ou o fundamentalismo
islâmico. Essa discussão é inútil e fatal. O multiculturalismo de direitos humanos
ocidental e as comunidades da morte de roupagem religiosa não são a mesma
coisa, mas são dois lados da mesma moeda, uma política identitária pós-moderna
altamente perigosa sob o signo da crise da sociedade de mercado mundial. Elas
só podem ser entendidas e combatidas em conjunto.

A teoria crítica social de orientação política anti-identitária não deve de


forma alguma minimizar as diferenças entre o antiocidentalismo islâmico e o
belicismo ocidental dos direitos humanos, muito pelo contrário. Somente uma
crítica radical do campo de referência comum no qual os adversários pensam e
agem esclarece também o que separa e diferencia os inimigos-irmãos.

A emancipação é anticulturalista

Há poucas razões para se chorar pela era neoliberal e seu culto à


individualização. Mas havia ao menos uma utilidade colateral. Pegando carona
em seu impulso, prosperou por anos a fio nos círculos intelectuais ambiciosos a
crítica da ideia das identidades "culturais", "raciais" e "sexuais" fixas. O
pensamento desconstrutivista não deixou de ter um certo carisma social.

Hoje tem lugar em amplas frentes uma reversão. A visão culturalista está

10Farhad Khosrokhavar (1948) sociólogo franco-iraiano, atual diretor de estudos na


Escola de Altos Estudos Sociais em Paris. O livro referenciado é L’islamisme et la mort:
le martyre révolutionnaire en Iran. (N. T.)
[-] www.sinaldemenos.org Ano 9, n°12, vol. 2, 2018 37

a ponto de tomar o poder da definição e a liderança de opinião. O desejo de


fabricar definições identitárias, em vista da crise da sociedade mundial, se tornou
uma das fontes principais de opressão, destruição e caos. Quem se coloca a favor
da emancipação, e não da autodestruição, tem de contrarrestar esse fenômeno. O
ponto de vista da libertação, sob as condições do capitalismo globalizado, só pode
ser o da “desconstituição do povo” [Entvolkung] (Franz Schandl) e da
desculturalização. Isso vale especialmente após o fim da "boa fase" na qual a
opinião dominante confundiu a globalização com uma pacificação sob o signo do
mercado totalizado.

Dificilmente se pode dizer que a esquerda europeia até aqui tenha se


colocado essa questão. Ao invés de ter uma posição ofensivamente contrária ao
movimento de culturalização, ela apenas reproduz em pequena escala a tendência
geral. Enquanto a maior parte da esquerda desapareceu no silêncio, as vozes nos
debates relevantes de uma ou outra maneira participam da virada culturalista.

Com especial zelo, todas as minorias participam do jogo da etnicização,


tomando o lugar da fração hardcore na luta contra a "eterna confusão islâmica",
e com isso passam do anticapitalismo para o liberalismo. Aos olhos dos "amigos
da sociedade aberta", o potencial irracional e altamente destrutivo do
fundamentalismo islâmico simplesmente deixa de ser visto como um parceiro de
Bush e Companhia para ser um campeão da emancipação, e os Estados Unidos se
tornam uma espécie de imagem invertida no espelho do antiamericanismo, a
"terra da liberdade". No palco europeu em geral, o funcionamento da
reconciliação com as relações dominantes foi documentado, entre outros, pelo
"Manifesto Euston", compilado no último ano por blogueiros britânicos.11

Fazem parte da grande corrente culturalista regressiva não apenas aqueles


que, sob o signo dos "valores ocidentais", confraternizam com o liberalismo e com
a reação, mas também a sua concorrência de esquerda. Nos anti-imperialistas
vulgares (como o AIK) isso é bastante visível. Eles analisam as correntes pós-
modernas antiemancipatórias ainda com as lentes herdadas dos anos 70, quando
conheceram esses novos movimentos de libertação nacional. Celebra-se com toda
a seriedade as vitórias eleitorais do Hamas, como se fosse uma espécie de Unidad

11 “O Manifesto de Euston”: disponível em http://eustonmanifesto.org/blog/wp-


content/uploads/2009/06/PT_Manifesto.pdf (N. T.)
[-] www.sinaldemenos.org Ano 9, n°12, vol. 2, 2018 38

Popular da Palestina, aplaude-se a chamada "revolta iraquiana", como se se


tratasse de uma versão árabe dos Vietcongues.

Mas também a parte majoritária da esquerda, que evita esse tipo horrível
de tomada de partido e pratica a equidistância e a neutralidade, de forma alguma
fica de fora do movimento de culturalização. De um lado, não apenas aqui e
independentemente de uma "guerra contra o terror", o limite entre a esquerda e
o anticapitalismo, de um lado, e uma difundida má vontade antiamericana, de
outro, é bastante permeável. Frente a esse pano de fundo acabou por se
naturalizar o mal-entendido de que os programas de assassinato e suicídio das
elites modernizadoras fanáticas pela morte seriam um suspiro maligno, mas de
qualquer forma compreensível, das massas humilhadas e insultadas do mundo
islâmico. O que se apresenta oficialmente como neutralidade e equidistância
frequentemente tem um programa bastante claro.

Por outro lado, a “neutralidade” e a “imparcialidade” – inclusive quando


são levadas a sério – não entendem o caráter do conflito. Esse ponto de vista leva
em consideração apenas a faceta oficial, e aceita a oferta dos ideólogos da cultura,
que vendem um conflito intracultural como intercultural. Diante da rígida
coerção ao confessionalismo e à militarização, que é garantida de “ambos os
lados” da população civil, toda “equidistância” é de antemão interditada. E
quanto ao choque dos partidos oficiais, a “neutralidade” assume uma simetria
que passa ao largo da realidade.

O anticapitalismo que faz jus ao nome lida de forma diferente com o


evocado Clash of Civilizations. Ele não pode nem apelar abstratamente pela
"paz", para divagar sobre tempos melhores, nem se envolver no jogo dos
etnicistas, colocando-se ao lado do mal supostamente menor. Ao invés de agitar
a bandeira branca, trata-se de tomar partido de maneira plenamente consciente,
mas o partido daquilo que os ideólogos da "comunidade" destroem, o partido
daqueles que buscam escapar da coerção à uniformização, à classificação e à
militarização.

A situação clama não por mediação e reconciliação no terreno do


culturalismo, mas por um "terceiro" poder social, que se coloque completamente
contra o culturalismo. No momento, iniciativas estritamente anticulturalistas
[-] www.sinaldemenos.org Ano 9, n°12, vol. 2, 2018 39

como a Medico International, no centro do conflito, são raras, e não há alternativa


consequente para o desenvolvimento de sua antipolítica.

Quem pensa que a onda etnicista perderá força e que outros “temas”
voltarão ao centro da conjuntura, pode esperar sentado. Acabou-se o tempo no
qual o culturalismo era um fenômeno mundial localizado na periferia do mercado
global, do qual o centro capitalista não se envolvia. Querendo ou não, a esquerda
europeia se encontra em uma constelação histórica diferente. Uma perspectiva
de esquerda hoje só pode ser formulada em contraposição à visão de uma guerra
civil mundial em constante latência, como um contraprograma político
claramente anti-identitário, em oposição à fabricação de definições culturalistas.

Se a esquerda europeia não tomar essa nova orientação, ela perderá não
apenas a sua legitimidade, mas também o seu fundamento existencial.

[Traduzido por Daniel Cunha.

Título original: Gott kriegt die Krise

Publicação original: Jungle World, 27.09.2006 –

http://jungle-world.com/artikel/2006/39/18275.html ]
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O grandioso final do universalismo


O islamismo como fundamentalismo da forma moderna

Karl-Heinz Lewed

“Os valores ocidentais são valores do Ocidente.


Os valores islâmicos são valores universais.”
(Mohamad Mahatir, Ex-Primeiro Ministro da Malásia).

O Ocidente respondeu à ameaça do terror islâmico, especialmente após o


ataque ao World Trade Center, de duas maneiras: prático-política, por meio de
campanhas seletivas de extermínio no Afeganistão e no Iraque, e ideológica por
meio do mito chamado por Samuel P. Huntington de “choque de civilizações” e
do fundamentalismo dos “valores ocidentais”. O 11 de setembro teve aqui o papel
de acelerador da ideologia, que conseguiu alimentar a já crescente onda
culturalista. O agravamento da crise econômica nos centros capitalistas, junto
com a insegurança social e material das pessoas, tinha preparado o terreno para
o culturalismo na década de 1990. Seu paradigma de uma linha de confronto
entre o Ocidente e o “Islã” foi recebida com grande aprovação como resultado dos
ataques terroristas de grupos islâmicos. Desde então, uma corrente de
elaborações culturalistas continuou a ter vazão, e os estereótipos comuns do
culturalismo ocidental avançam com uma veemência crescente e generalizada. 1 É
dito que o islã não tem nada a ver com a história da civilização ocidental, seu
modo de vida e seus valores básicos. Ao contrário, ele representaria outra tradição
com uma cultura completamente diferente. Diz-se que ele é pré-moderno porque
sua visão de mundo parte de motivações religiosas, pensamentos medievais e,
portanto, é diametralmente oposto à liberdade individual, núcleo do modo de

1 O escritor e publicista de Hamburgo Ralph Giordano afirma, por exemplo, sobre a


mesquita de Colônia, que “o problema não é a mesquita, mas o próprio Islã”, e
acrescenta que a integração do muçulmanos na Alemanha fracassou completamente, e
não poderia ter sido diferente. Ao fim, esses “milhões de pessoas” vêm de uma “cultura
completamente diferente”. “Então eu penso”, ele acrescenta, “como alguém pode
considerar o Corão, essa escritura arcaica de uma cultura pastoril, como algo sagrado,
e como ele pode formam a base da lei... um impossibilita o outro” (Kölner
Stadtanzeiger, 1 June 2007).
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vida ocidental. O “Islã”, como sociedade totalitária, esforçar-se-ia para ampliar


seus horizontes, o que representaria uma ameaça à “cultura ocidental”. Na
verdade, o confronto entre o islamismo e os guerreiros da cultura ocidental não é
uma oposição entre duas culturas essencialmente estranhas, mas duas formas
complementares de lidar com a crise do capitalismo globalizado, cujo
fundamento comum tomou a forma moderna de interação por meio das
mercadorias, trabalho abstrato, Direito, assim como as formas subjetivas
correspondentes. Se a implantação das formas capitalistas de socialização nos
países “islâmicos”2 adquiriram um caráter muito específico e contraditório, a
transformação fundamental das relações sociais há muito ocorreu sob a
orientação das ditaduras nacionalistas de modernização e continua através das
relações burguesas modernas.
Com a excomunhão do mundo “islâmico” da estrutura social da
modernidade burguesa, no entanto, desaparecem as formas sociais fundamentais
que dominam tanto os países capitalistas centrais quanto as regiões do Sul global.
A crescente decadência nos países da periferia, resultado final da modernização
recuperadora, é pintada pela projeção culturalista como algo puramente
produzido por uma cultura estranha ao Ocidente. Assim, a não-simultaneidade
da crise atual, polarizando ainda mais a periferia e o centro, surge como um
conflito existencial entre Ocidente e Oriente. Ao mesmo tempo, a crítica dos
antecedentes políticos e ideológicos e seu contexto histórico torna-se impossível
na medida em que a crítica culturalista elimina o distanciamento crítico em favor
da classificação e da identidade. Para o culturalismo, compreender contradições
sociais e suas distorções no contexto histórico é algo completamente obsoleto. A
perspectiva da lógica identitária simplifica o processo histórico de formação
cultural em supostas essências autossuficientes e estruturas culturais estáticas. O
culturalismo é constituído pela criação e classificação de identidades coletivas,
incluindo a formulação, como diz Huntington, de um “choque” implacável entre

2 Pode-se ver o quanto a perspectiva culturalista se difundiu e o quanto permanece sem


questionamento na imaginação coletiva na terminologia utilizada para expressá-lo: do
discurso coloquial às declarações acadêmicas, fala-se do “mundo islâmico”, de uma
“cultura islâmica”, e também, em forma mais moderada, dos “países de influência
islâmica” e de “regiões de tradição religiosa islâmica”, e assim por diante. Todas essas
formulações são marcadas por certo grau de culturalismo e pela a ideia de uma cultura
unificada característica do “Islã”. Para evitar esse erro linguístico, utilizarei “islâmico”
entre aspas. Meu objetivo é levar a sério a importância da tradição religiosa no processo
de modernização, sem hipostasiá-la como uma essência independente.
[-] www.sinaldemenos.org Ano 9, n°12, vol. 2, 2018 42

elas. Assim, se apagam tanto a dimensão histórica real quanto o desenvolvimento


futuro que se avizinha. Ao contrário do que diz a tradição culturalista, a situação
atual nessas regiões não resulta de uma suposta continuação de séculos de velhas
tradições culturais. É, antes, um processo de dissolução das formas de mediação
social com base nas modernas relações sociais burguesas. Mesmo entre as
ditaduras nacionais de modernização foi realizada uma transformação
fundamental das estruturas sociais tradicionais. Esse processo de transformação
teve como condição prévia tanto a dominação colonial quanto a secessão e
“emancipação” dessa dominação por movimentos de libertação nacional. Mas o
conteúdo recém-criado das relações sociais abstratas foi a produção de riqueza
igualmente abstrata a partir da utilização do trabalho. A contradição central que
a ideologia islâmica do declínio atesta só pode ser encontrada no fato de que,
embora o contexto de relações sociais esteja baseado em formas modernas, a
universalização da produção de riqueza abstrata falhou nessas formas. O
islamismo é o produto direto desse fracasso. Ele representa uma forma ideológica
e pós-política específica de declínio da modernização recuperadora e como tal
uma continuação desse processo. Tanto a gênese quanto o declínio da forma do
Estado-nação são constitutivos da emergência do islamismo. A sua orientação
reflete momentos centrais da moderna forma burguesa, encoberta em vestes
religiosas, em particular a reivindicação de soberania e um único sistema legal
para todos, com base nas leis religiosas.3 Para uma crítica séria, a ideologia do
islamismo não pode ser compreendida sem referência ao nível do Estado nacional
e da forma do direito – em outras palavras, do ponto de vista político em geral.
Por essa razão, me concentrarei nessas formas, cujo conteúdo econômico, em seu
processo de declínio, é reformulado em roupagem religiosa. O islamismo se
mostra como o fundamentalismo da forma social moderna.
O movimento de formação do Estado não ocorreu apenas através da
junção racionalizada de unidades individuais, arrancadas de seus modos de vida
tradicionais e tornadas um todo funcional. Em vez disso, o momento irracional
tem precisamente um papel central na comunidade nacional, constitutivamente
associado ao sujeito masculino-patriarcal e seu impulso inerente para a

3 É claro que o universalismo da igualdade perante a lei colapsa diante das estruturas
fundamentais de poder patriarcal das relações sociais modernas, que são inerentes à
forma burguesa e se tornam explícitas no fundamentalismo islâmico.
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classificação num contexto de uniformização abrangente. A condição para a


aparência de concretude e identificação com uma “pura totalidade” imaginada –
como o “povo” ou determinada cultura – encontra aqui seus fundamentos
subjetivos mais profundos. Somente com a universalização de identidades
isoladas e a impotência em face do contexto social é que se torna necessária a
submissão ou subordinação a uma comunidade nacional ou étnica e a diluição
nela. Em um artigo posterior, vou tentar determinar essa relação ao nível dos
sujeitos e mostrar em mais detalhe como as estruturas patriarcais, desvarios
antissemitas e, finalmente, a capitulação de sujeitos coletivos são reelaborados
no islã como elementos específicos da modernidade, tornando-se virulentas
como forma de processamento da agitação socioeconômica e suas contradições.4

A universalidade do interesse egoísta

A implementação da moderna forma burguesa do intercâmbio social


mediada pela forma-mercadoria ocorreu fundamentalmente no plano da
formação do Estado-nação. O soberano estatal desempenhou um duplo papel
nesse processo. Por um lado, ele desmontou as formas tradicionais de dominação
pessoal com suas “velhas formas hierárquicas e orgânicas de associação”. 5 Por
outro lado, a violência estatal perseguia uma racionalização geral da ordem social,
substituindo as estruturas sociais estabelecidas por relações de poder novas e

4 A crítica social radical poderia encontrar a harmonia aqui com a desconstrução, se o


foco estivesse apenas no nível da construção de identidades compartilhadas. Porém, o
ponto de vista geral permanece não tematizado nesse nível. A construção é válida em
um nível geral, ou seja, nações e sistemas políticos são obviamente produtos históricos
que, como sabemos, se configuraram na era moderna, ou seja, nos últimos dois séculos.
Porém, eles são ao mesmo tempo o resultado de um processo de mediação organizada
pela forma-mercadoria, um processo que ocorre à revelia dos indivíduos, a expressão
de uma forma de práxis moderna específica, inconsciente. O Estado e a forma da lei não
são, portanto, apenas formas manipuladoras de sociabilidade empregadas
simbolicamente através de estruturas culturais, mas o resultado de uma práxis
executada inconscientemente dentro do sistema de relações sociais baseadas na
mercadoria. A formação dos estados nacionalistas não podem de nenhuma maneira ser
adequadamente formulada como o produto ou resultado de um simples “conceito”,
como sugere a formulação construtivista “invenção da nação”, de Benedict Anderson.
Através desse idealismo conceitual, a emergência do Estado-nação é reduzida a uma
matriz de estruturas semânticas e significados, subestimando com isso o nível central
do Estado, da justiça e da nação como elementos específicos das estruturas sociais
formadas pela mercadoria e as formas de livre arbítrio por ela constituídas.
5 Marcel Gauchet. Die Erklärung der Menschenrechte. Die Debatte um die bürgerlichen

Freiheiten 1789 (Reinbek bei Hamburg: Rowohlt, 1991, p. 59).


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objetivadas. O processo de implementação da sociedade produtora de


mercadorias foi um “empreendimento geral de desenraizamento” dos indivíduos
e ao mesmo tempo uma nova coesão social sob a forma da mediação abstrata,
uma reconstituição social “de acordo com os princípios racionais”.6 A constituição
do poder estatal e a criação das novas relações abstratas entre indivíduos estavam
de mãos dadas. Exemplar dessa consonância, como Tocqueville já o mostrou, é o
desenvolvimento do poder absolutista na França, que antecipou as formas
fundamentais do domínio burguês.7 Dessa perspectiva, os sistemas políticos - do
Estado absolutista à democracia burguesa e às ditaduras modernizadoras -
representam diferentes manifestações de uma identidade comum em um nível
fundamental, uma identidade para além da formação concreta do aparato de
poder que administra os negócios públicos. Rousseau chamou esse nível, que se
encontra fora dos órgãos de soberania, de volonté générale.8 O fundamento geral
da práxis estatista se expressa no fato de as operações estatais se legitimarem não
em si mesmas, mas através de um interesse geral, que ao mesmo perpassa e está
no fundamento Estado.9 Marx descreve adequadamente o caráter dessa
universalização nos Grundrisse: “o interesse geral é precisamente a
universalização dos interesses egoístas (...) o outro [o parceiro na troca
generalizada de mercadorias, K-HL] também é reconhecido e conhecido como
sujeito que realiza seu interesse egoísta exatamente da mesma maneira, de modo
que ambos sabem que o interesse comum consiste precisamente na troca do
interesse egoísta”.10 O que Marx chamou de “interesse egoísta” não é o caráter
pessoal desprezível do indivíduo, mas o resultado da interação social geral entre
proprietários de mercadorias. Assim, as relações sociais na sociedade mercantil
são essencialmente marcadas pelo fato de o trabalho ou a mercadoria cumprirem
a função de mediação social. Todo indivíduo é incluído nesse tipo de relação de

6 Gauchet, Menschenrechte, p. 19.


7 “Se trata da redução das relações sociais à oposição pura e direta dos polos público e
individual, que a monarquia havia prometido e a “monarquia democrática” (como disse
Tocqueville) demandou enfaticamente” (Menschenrechte, p. 51). Com a dissolução da
sociedade em indivíduos isolados, uma relação social é constituída na qual “não existem
mais corporações, de agora em diante existe o interesse especial de cada indivíduo e o
interesse geral. Ninguém pode garantir um interesse entre eles aos cidadãos.
8 Cf. Peter Klein, A essência do Direito. Krisis 24.
9 A diferença entre o poder estatal concreto e o ponto de vista geral se mantém, mesmo

se, no sentido mais amplo, a “vontade do povo” não é sempre propriamente separada
das formas explícitas do exercício do poder.
10 Karl Marx, Grundrisse, São Paulo, Boitempo, 2011, p. 188-189.
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mediação apenas como proprietário da sua mercadoria – o que significa, em


geral, a sua força de trabalho. Nessa função, ele não trabalha para produzir um
objeto específico, mas para assegurar o dinheiro e, portanto, uma parte da riqueza
abstrata das mercadorias. A relação de mediação pelo trabalho se decompõe em
dois momentos da atividade concreta para os outros, i.e., para o contexto social
anônimo representado nas mercadorias e na esfera privada do interesse “egoísta”
pelo dinheiro. “Cada um [ambas as partes do processo de troca, K-HL] só cuida
de si mesmo. O único poder que os junta e leva a um relacionamento é o proveito
próprio, a vantagem particular, os seus interesses privados”.11 Em uma sociedade
na qual o trabalho é o centro da mediação social, todas as atividades tornam-se
meios externos aos indivíduos. No nível das relações sociais, essa forma de
mediação se expressa nas relações de vontade particulares dos respectivos
proprietários de mercadorias com seus produtos, isto é, no valor representado
nelas, ou seja, em relações de propriedade privada.12 É precisamente isso que
Marx quer dizer quando usa a expressão “interesses egoístas”. Não é casual,
portanto, que no final da “Declaração dos direitos do homem e do cidadão”, o
documento político fundador da moderna sociedade burguesa, possamos ler que
a “propriedade” é um “direito inviolável e sagrado” do qual “ninguém pode ser
privado”. Propriedade como “direito sagrado”, obviamente, não significa uma
relação “natural” com um objeto, mas expressa a sociabilidade abstrata das
mônadas mercantis individuais e o ponto de vista dos seus interesses privados.
Portanto, a comunidade social universal é uma universalidade abstrata, um
contexto comum de mônadas separadas, individualizadas e livres.
No direito, como outro lado da universalidade abstrata, interesses
privados separados são colocados numa relação igualmente abstrata uns com os
outros e, como tal, são mediados. O indivíduo mercantilizado não só se constitui
(em relação à sua propriedade privada) como livre, mas ao mesmo tempo como
um igual entre iguais, ligado a uma comunidade (Lei) que forma a relação

11 Marx, O Capital, Livro I. São Paulo: Abril/Nova Cultural, Ed. Os economistas, p. 145.
12 Sieyès deixa claro no debate sobre a Declaração que o núcleo da constituição burguesa
reside precisamente nas relações de todos os cidadão dotados de livre arbítrio com a
sua respectiva propriedade privada: “Se fôssemos escrever uma declaração para um
novo povo... quatro palavras seriam suficientes: igualdade de direitos civis, isto é,
proteção equivalente da propriedade e da liberdade de cada cidadão; igualdade de
direitos políticos, isto é, a mesma influência na formulação da lei” (citado em
Menschenrechte iv).
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abstrata de indivíduos abstratos. Além da liberdade dos proprietários de


mercadorias, a vontade geral emerge – em outras palavras, a esfera do Direito e
da Lei, na qual todos são vistos como iguais. O conceito de universalismo expressa
a generalização do ponto de vista privado abstrato, assim como a igualdade dos
indivíduos abstratos como sujeitos do direito. Há sempre duas almas residindo
no moderno sujeito universal: o livre arbítrio e a “lei geral”. O representante mais
avançado da razão burguesa, Immanuel Kant, delineia em sua Crítica
precisamente estes dois aspectos da subjetividade burguesa – o livre arbítrio e a
forma geral da lei - e também formulou um programa de completa submissão a
eles. Kant é teoricamente consistente enquanto o seu conceito de “forma da lei
em geral” não visa às leis tomadas individualmente - ao contrário das atuais
noções positivistas aplanadoras de “jurisprudência” - mas o nível da “lei em geral”
subjacente ao sistema jurídico estatal.13 Essa forma subjacente não é nada mais
que um polo da relação abstrata de mediação dos indivíduos com a mercadoria.
A mediação implica, por um lado, o poder discricionário dos proprietários de
mercadorias sobre a sua propriedade privada, incluindo a sua própria força de
trabalho, com a exclusão de todos os demais. Por outro lado, ocorre a constituição
de uma “universalização dos interesses egoístas” como Direito e Lei. Os
indivíduos abstratos são profundamente afetados pelos dois lados de uma mesma
moeda da subjetividade burguesa. Obviamente, a combinação de liberdade e
legalidade se encontra na já citada “Declaração dos direitos do homem e do
cidadão”. O artigo um estabelece que “os homens nascem e são livres e iguais em
direitos”, enquanto o artigo VI esclarece especificamente o conteúdo das relações
na forma de universalidade abstrata do Direito: “a Lei é expressão da vontade
geral”. Essa formulação torna absolutamente claro como a coesão social de
indivíduos reduzidos a mercadorias só pode ser expressa sob a forma das leis.
A forma básica da relação de proprietários de mercadorias que estamos
descrevendo deve tomar uma forma concreta no cotidiano dos indivíduos, uma
forma por sua vez com duplo caráter: a relação abstrata se expressa, de um lado,
na esfera do mercado, na qual o proprietário individual de mercadorias realiza
sua parte privada da massa social de valor; por outro lado, a mediação das
relações abstratas através da forma do Direito manifesta-se num sistema

13 Mais sobre o tema em: Peter Klein, A essência do Direito. Krisis 24, p. 51-64.
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diferenciado de instituições públicas: a esfera da política e do Estado. A


“Declaração” de 1791 destaca de modo explícito a existência da força externa: “a
garantia dos direitos do homem e do cidadão necessita de uma força pública”. De
acordo com uma compreensão acrítica dos direitos humanos, ela expressa apenas
os interesses dos indivíduos (“homens”) em relação à violência estatal.
Contrariamente a essa perspectiva limitada, no entanto, a “Declaração” de 1791
formula claramente o caráter dual das relações privadas: os indivíduos são livres
para lidar com sua propriedade “sagrada” como desejarem e ao mesmo tempo
estão atados à Lei e ao Estado como uma comunidade. Tendo em conta seus
elementos básicos, o Estado e a liberdade individual não estão em oposição,
formando uma unidade lógica e complementar: “o ‘soberano’ pressupõe cidadãos
que sejam indivíduos, precisa deles como indivíduos (...) e garante sua existência
como indivíduos isolados (...) Aqui reside o “interesse comum”: as duas esferas
necessitam uma da outra tanto quanto elas diferem uma da outra”.14 A forma
geral do interesse é privada e a institucionalização estatal representa essa forma
geral e abstrata. O Estado é apenas a configuração externa da forma de relação
(Beziehungsform) abstrata entre os indivíduos. As condições fundamentais da lei
e da ordem não estão de modo algum nas manifestações empíricas da violência
estatal, do mesmo modo que nas decisões voluntárias dos indivíduos. A dimensão
profunda da já citada crítica kantiana consiste precisamente em ter formulado o
livre arbítrio e a forma da lei como “transcendentais”, ao invés de deduzi-los a
partir de uma determinação empírica da vontade, como, por exemplo, foi tentado
por Thomas Hobbes. Isto leva de volta à constituição da soberania através da
relação contratual entre indivíduos isolados e, de maneira pervertida, pressupõe
sua existência de mônada desde sempre como “humanidade” natural. Em
contraste, a “forma da lei em geral” kantiana é uma esfera supra-individual, ou
seja, um arcabouço da legalidade “transcendental” e da liberdade nas quais os
indivíduos atuam. A crítica marxiana da produção de mercadorias pode
identificar essa “transcendência” como uma forma de relação historicamente
específica e, até certo ponto, baixá-la do reino da razão situado no além ao solo
terrestre da produção mercantil.

14 Klein, op. cit., p. 81.


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Independência e unidade nacional no horizonte do interesse geral

Não foram apenas os ideólogos da sociedade burguesa que enfatizaram as


categorias da universalização abstrata e da vontade geral; os atores da formação
dos Estados nacionais retardatários legitimam-se explicitamente através dessas
categorias. E até mesmo sua forma em declínio, o islamismo político, refere-se a
elas quando se legitima. Todos os sistemas políticos modernos, independente de
como eles próprios se intitulam, pertencem a uma longa e unificada tradição de
soberania estatal como um ponto de vista geral que remonta aos primórdios da
sociedade burguesa, um ponto de vista que obriga as instituições do poder estatal
a manter uma posição de neutralidade face aos interesses privados. Da forma
jurídica como mediação das respectivas relações de propriedade privada resulta
que os órgãos representativos devem constituir-se como uma esfera neutra e
independente. Em sentido figurado, essa afirmação se expressa bem na figura da
Justiça – cega ao conteúdo de suas balanças, que são os respectivos interesses
privados; é apenas uma questão de equilíbrio legal, o equilíbrio formal entre
interesses privados abstratos.15 Essa afirmação de independência, ou melhor, de
indiferença em relação à questão específica que nos ocupa, implica que os
representantes da vontade geral institucionalizada, em outras palavras, os
funcionários da corte e os administradores públicos estão obrigados a manter
uma estrita neutralidade, pois, como funcionários dos negócios comuns, eles
atuam numa esfera que está idealmente localizada fora do interesse particular,
incluindo eles próprios como pessoas privadas. No entanto, está implícita a
violação dessa regra básica, quer dizer, a mescla de interesses gerais e interesses
privados de pessoas públicas. Os funcionários, que devem levar o interesse geral
a sério, encontram-se muito facilmente misturados com os seus interesses
privados. Em termos gerais, a história mostra que não há uma correlação clara
entre a função regular da esfera de relações privadas (mediadas pelo mercado) e

15 Essa ilustração da forma abstrata de Lei na forma feminina da Senhora Justiça é tanto
um eufemismo quanto a expressão da projeção burguesa patriarcal. O Porteiro de Kafka
mostra vividamente essa projeção androcêntrica e como a forma legal moderna
representa uma relação totalmente objetiva e insensível de violência e uma relação
insanamente racional marcada pela compulsão. Para as unidades individuais, a lei
como coesão geral do poder abstrato significa tanta a inclusão sob o encantamento da
forma legal e a impossibilidade e exclusão de ligações sociais diretas e formadas
conscientemente. A neutralidade também pode ser encontrada em Kafka, mas na
exclusão generalizada da autoridade da lei concebida como neutra.
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a administração “sem interferências” das funções gerais. A afirmação histórica


das formas modernas, nas quais a esfera das relações privadas foi criada, se
caracterizou pela confusão entre as duas esferas. Com o processo de crise da
produção de mercadorias, é exacerbada a tendência à difusão dos interesses
particulares de tal maneira que a separação entre os negócios comuns e o
interesse privado fica muito mais difícil. Comumente se fala então de Estados
corruptos, que passam a ser classificados em uma escala criada especialmente
para eles. Em última análise, essa contradição conduz ao colapso da necessária
neutralidade da esfera pública.16 A força gravitacional da corrupção também afeta
os países nos quais o islã ascendeu ao poder político: “o islamismo no poder não
fornece novas formas de justiça social e econômica. A hipocrisia prevalece: sob o
véu do conservadorismo moral, a corrupção se generaliza (...) o empoderamento
leva à corrupção, compromisso, perda da utopia”.17
O ideal de independência formal e funcional e neutralidade da soberania
como autoridade pública é apenas um aspecto dessa relação. Além disso, a

16 Nos estados pós-soviéticos, esse processo atingiu um estágio notavelmente maduro:


Putin (mesmo sem ser um Medvedev), o mais poderoso “padrinho público” até hoje,
representa uma nova qualidade tanto na difusão dos interesses privados quanto na
abrangência do poder. As dimensões que a infiltração de tipo mafiosa do aparelho do
Estado tomou é claramente documentada na execução da jornalista russa Anna
Politkovskaya, cujo jornalismo mirava diretamente essa corrupção generalizada. Em
seu livro A Rússia de Putin, ela mostra como “a nomenclatura nova-velha de Putin
levou a corrupção a novos níveis jamais sonhados sob o comunismo ou com Yeltsin. Ela
está agora devorando pequenas e médias empresas, e com ela a classe média. Ela está
dando a empresas grandes e super-grandes, os monopólios e empresas quase-estatais,
a oportunidade de se desenvolver (em outras palavras, elas são a fonte favorita de
propinas da nomenclatura). De fato, elas representam o tipo de empresa que produz os
maiores e mais estáveis lucros não apenas para os seus proprietários e gerentes, mas
também para os seus patrões na administração estatal. Na Rússia, grandes empresas
não existem sem patrões (ou “curadores) na administração estatal. Essa má conduta
não tem nada a ver com as forças de mercado. Putin está tentando ganhar o apoio dos
assim chamados byvshie, os ci-devants, que ocuparam posições de liderança sob o
regime soviético. O seu saudosismo pelos velhos tempos é tão forte que a ideologia que
suporta o capitalismo estilo Putin cada vez mais se parece com o pensamento da União
Soviética durante o ápice do período de estagnação nos últimos tempos de Brejnev no
final dos anos 70 e início dos anos 80” (New York, wl Books, 2007, 82-83). A
visibilidade do “patenteamento do Estado” de Putin, juntamente com a sua economia
de compadrios, porém, não impediu que a classe política internacional ou a mídia de
apoiá-lo em seu teatro ou autorreinvenção como um estadista confiável. No geral,
podemos falar de um período de transição, pelo menos no que diz respeito aos centros
capitalistas. A tendência na qual os interesses privados se difundem no setor público
em tal grau, assim não apenas erodindo a alegada independência e neutralidade estatal,
mas também em última análise colocando-a em questão, é de qualquer forma uma
novidade apenas para esses centros.
17 Olivier Roy, The Islamic Way West (Munich: Pantheon, 2006, p. 89-91).
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soberania política representa a unidade nacional das relações individuais


privadas. No interior da Nação, a massa de indivíduos isolados se se reúne em um
contexto mais elevado. Portanto, também o indivíduo, a soberania pressuposta,
como vontade geral das relações de propriedade privada, encontra sua forma
concreta na Nação, que tudo abrange. A transfiguração mística dessa submissão
como “devoção à Nação” (Marx) assinala a qualidade metafísica real da forma de
relacionamento burguesa abstrata produzida pela mediação da forma
inconsciente do dinheiro – e das formas jurídicas. A carga mística do conceito de
nação resultou, desde as suas primeiras formulações, dessa externalização das
relações sociais e da conseguinte metafísica da “universalidade absoluta da lei”
(Kant). O soberano é, então, a comunidade ampliada do indivíduo nacionalmente
definido, que se encontra em uma relação negativa com as demais nações. O
conjunto nacional se situa só num território determinado, cercado pelo soberano,
sempre fechado e protegido. Do mesmo modo, os privilégios (como os benefícios
sociais) também são exclusivos dos membros da respectiva comunidade nacional.
Tanto para a autoimagem e a autolegitimação da Nação como um todo,
como para a perspectiva dos indivíduos, a forma burguesa inerente à dinâmica
social joga um papel importante: primeiro, a necessidade de circulação contínua
dos fundamentos da produção de riqueza; segundo, a dissolução das relações e
formas de produção tradicionais; terceiro, a expansão permanente. A produção
material, como a estrutura social que sustenta a exigência de modernização
permanente, torna-se ideologia do progresso social universal, encontrando
aceitação geral. A nação, identificada com essa dinâmica abrangente, deve, como
sujeito do “progresso”, dar significado e atingir suas metas concretas. Essa
identificação com a unidade nacional, no entanto, é atravessada pela perspectiva
individual, pela qual os respectivos interesses privados são incluídos na promessa
de progresso conjunto. A legitimidade do poder estatal executivo é baseada em
duas regras: de um lado, a neutralidade das formas jurídicas institucionalizadas
que regulam as relações de propriedade privada; de outro lado, perceber os
interesses nacionais no sentido da dinâmica de própria comunidade e em
contraste com todos os interesses não nacionais.
Esses dois momentos então jogando agora um papel importante na
imposição das formas sociais modernas – e não só como um processo real, mas
igualmente como um ponto de referência ideológico para a mobilização da
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população. Isso é particularmente verdadeiro para a modernização recuperadora,


na qual a soberania estatal se destaca tanto na dissolução das estruturas sociais
tradicionais quanto na implementação da formação social moderna. Nos países
islâmicos, tal evolução veio acompanhada das marcas históricas do colonialismo,
o subsequente regime de modernização nacional e, finalmente, a recusa desse
regime pelo islamismo político. As respectivas contradições, tanto dos regimes
modernizadores quanto do islamismo, cuja aparição no palco histórico eles
provocaram, podem ser ilustradas junto aos dois momentos anteriormente
delineados da legitimação nacional.

Libertação anticolonial nos marcos da dominação abstrata

Nas colônias e semicolônias europeias, é sabido que a política e as


instituições coloniais foram submetidas aos interesses econômicos e políticos
centrais, uma prática legitimada pela desvalorização racista das populações
colonizadas. Os movimentos anticolonialistas de libertação se colocaram contra
o sistema de dominação em nome da Nação ou do povo e o atacaram em dois
níveis relacionados do interesse geral: por um lado, isso foi feito com a demanda
de independência da recém-criada autoridade pública face aos interesses
coloniais. O movimento de libertação nacional colocou-se contra os interesses
particulares dos poderes coloniais pela independência política e pela sua própria
soberania, que cumpriria os requisitos da neutralidade. Por outro lado, havia a
necessidade de redistribuição da riqueza abstrata administrada pela autoridade
estatal e distribuída no seu próprio território entre membros determinados pela
nacionalidade – quer dizer, para realizar o interesse nacional em benefício da
própria comunidade.
Em comparação com a opressão e exploração colonial e imperialista, esse
passo é, sem dúvida, progressivo, como é a libertação individual em relação às
condições coercitivas legitimadas pelo racismo, à exclusão social e à violência do
aparato colonial.18 Não menos importante, as lutas coloniais eram animadas pela

18Assim, a pátria-mãe dos direitos do homem e dos direitos civis criou uma base legal
especial para os nove milhões de habitantes da Argélia de crença muçulmana, o código
dos nativos. Apenas em 1944 de Gaulle o revogou oficialmente, sem as relações reais
melhorassem consideravelmente. (Ver Bernhard Schmid, Algerien – Frontstaat im
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esperança de que as condições de vida miseráveis da maioria da população iriam


melhorar. Mesmo assim, a legitimidade e, portanto, a prática dos movimentos de
libertação nacional permaneceu essencialmente no interior do quadro da
universalidade política abstrata. O esforço de independência não se referia
somente à libertação do domínio colonial; para a realização da independência se
constituiu também a forma do direito como mediação das relações sociais. Desse
modo, se levou a cabo um processo de substituição das estruturas repressivas do
colonialismo através das formas modernas de dominação abstrata. A promessa,
forjada na luta, do direito à participação social e à segurança material para todos,
resultou numa estrutura social que, em última instância, exclui justamente isso.
Aqui, o processo de transformação das relações sociais não caminhou, em sua
maior parte, em direção à diferenciação e à expansão de uma burguesia nacional,
mas no sentido da mobilização “socialista” do trabalho sob a administração
estatal direta. Sua função, nessas circunstâncias, não se limitava apenas ao
“desenvolvimento geral”, como a construção da infraestrutura pública, incluindo
também o conteúdo imediato dessa relação privada, a produção de riqueza social
abstrata. Uma vez que o Estado se comportou como o empreendedor geral da
mobilização pelo trabalho, a “vontade do povo” se manifestou na tríade produção,
dispêndio de trabalho e renda monetária. A direção estatal da modernização
recuperadora nos países retardatários baseou-se essencialmente no modelo das
metrópoles, onde a valorização no interior do espaço nacional também foi
conduzida por meio de programa de industrialização dirigido pelo estado.
Exemplar aqui foi a Alemanha do século XIX. A industrialização deveria conduzir
a uma revolução geral nas bases produtivas. Nesse processo, categorias como
trabalho e dinheiro foram pressupostas tanto quanto a soberania política, que
traria esse desenvolvimento. Nasser fez isso no Egito na década de 1950. Ele
expressou as dificuldades de implementação do sistema produtor de
mercadorias, afirmando enfaticamente num discurso para trabalhadores em
greve: “de qualquer forma, hoje é impossível elevar o nível de vida dos
trabalhadores. Para fazer isso, temos que dar-lhes dinheiro e para isso é preciso
aumentar a produção através da industrialização. Oferecer qualquer outra
perspectiva seria enganá-los. A única maneira que nos permite elevar o nível de

globalen Krieg? Neoliberalismus, soziale Bewegungen und islamistische Ideologie in


einem nordafrikanischen Land. Münster: Unrast, 20052005, p. 28).
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vida dos trabalhadores é a construção e o trabalho”.19 Com a universalização da


produção de riqueza abstrata, necessariamente a forma de relação dos interesses
individuais privados se generaliza socialmente. Dinheiro e trabalho se tornam o
centro da mediação social, de modo que os indivíduos estavam cada vez mais
inseridos no contexto funcional das relações privadas.
Abaixo da superfície da intervenção estatal que assenta cada vez mais a
reprodução social com base na força de trabalho e na renda monetária, ocorreu
uma mudança fundamental no tecido social que afetou todas as esferas da vida.
Tal mudança era visível e tangível em fenômenos como o êxodo rural e a
urbanização crescente, a desintegração das relações familiares tradicionais e a
integração em funções sociais objetivadas. Os governos coloniais já haviam
transformado parcialmente as relações sociais em trocas de mercadorias e num
jogo de interesses privados. Em seguida, as ditaduras modernizadoras
revolucionaram as mediações sociais de uma maneira mais fundamental. Chama
atenção o fato de que mesmo os maiores pensadores dos movimentos de
libertação nacional são completamente imparciais no que diz respeito à
contradição entre o interesse geral e o interesse “egoísta”, tomando ambos como
um fato. Isso fica claro na acusação de Frantz Fanon ao sistema de dominação
colonial: que ele havia fracassado em produzir uma burguesia, precisamente a
classe que representaria os interesses privados essenciais pra promover o
desenvolvimento nacional.20 As ditaduras de modernização nacional tentaram
compensar isso o mais rápido possível através de programas de desenvolvimento
econômico e político abrangente: “a tarefa é o desenvolvimento da burguesia
nacional ou, se isso não for possível ou muito dependente de interesses e
influências ocidentais, o Estado assumir a tarefa. À luz dessa teoria, os partidos

19 Eckart Wörtz, “Die Krise der Arbeitsgesellschaft als Krise von Gewerkschaften: Die
unabhängige Gewerkschaftsbewegung in Ägypten” (Diss. Friedrich-Alexander-
Universität Erlangen-Nürnberg, 1991, p. 84).
20 Os enormes lucros que ela (referência à “burguesia nacional”; K. L) acumulou com a

exploração da população foram exportados para outros países... Ela se negou a investir
no território nacional, e mostrou notável ingratidão em relação ao Estado que a protegia
e nutria... Uma burguesia, como a que podia se desenvolver na Europa, com o aumento
do seu poder, podia criar uma ideologia. Essa burguesia dinâmica, ilustrada e laica
efetivou plenamente a acululação de capital e contribui minimamente para o bem-estar
da nação. Nos países subdesenvolvidos não havia uma verdadeira burguesia, mas
apenas uma pequena casta de dentes afiados, gananciosa e insaciável, que era
dominada pelo espírito dos pequenos ganhos e se contentava com os dividendos que
asseguravam o seu poder colonial anterior. Essa burguesia de visão curta mostra que
ela é incapaz de ter grandes ideias e de ter espírito inventivo” (Fanon, p. 148-ss.)
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comunistas tendem em muitas ex-colônias – especialmente no mundo árabe – a


se aliar aos partidos nacionalistas, que representam a burguesia nativa ou até
mesmo um Estado militar-burocrático”.21 Dos nacionalistas à burguesia estatal,
dos socialistas aos partidos comunistas, todos representam uma posição comum
em relação à recomposição radical das relações sociais sob a direção do
universalismo abstrato das categorias da Razão burguesa e do sistema do
trabalho.. Liberdade e igualdade da pessoa jurídica foram tanto o quadro de
referência quanto a mediação entre o trabalho e o dinheiro. Os movimentos de
libertação anticolonialistas transformaram explicitamente a execução da
moderna forma burguesa em seu programa. Quando se desenvolveram modos
alternativos à organização social e à apropriação da riqueza em curso (como
conselhos ou cooperativas), estas foram rapidamente suprimidas ou
incorporadas às instituições estatais.
A história da modernização recuperadora mostra o quão difícil era ter
acesso ao padrão econômico do Ocidente e do mercado mundial. Dado o
alinhamento unilateral à estrutura econômica metropolitana, com pouca
integração vertical e orientada para a agricultura e as matérias primas, as
condições de partida no contexto da produção de mercadorias para o sistema
mundial eram muito ruins. O Estado precisa não só criar as bases para uma ampla
gama da produção econômica (prover a infraestrutura necessária, desde as
estradas às estruturas de comunicação, criação e expansão da administração
pública, criação do sistema educacional, etc.), mas também atua como um agente-
chave da economia na criação de riqueza abstrata. Mas o conceito de
“industrialização por substituição de importações”, seguido por quase todos os
países em desenvolvimento e desenhado para reduzir a dependência da
importação dos bens de capital mediante o desenvolvimento de uma indústria
autossuficiente, em última instância fracassou. A maior parte da produção
industrial era limitada ao trabalho de montagem simples, com baixo nível de
integração vertical e atrasada em relação ao padrão internacional, de modo que
se manteve a dependência de bens de capital caros e de alta qualidade. Ao mesmo
tempo, as exportações tornaram-se mais caras devido às taxas de câmbio
sobrevalorizadas, de tal forma que a necessidade crescente de divisas levou à

21 Bernhard Schmid, 2005, p. 75.


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ampliação da dívida pública. Ainda mais grave, no entanto, é que o objetivo geral,
a produção industrial autossuficiente, falhou nos seus próprios termos. Além da
liderança incontestável em produtividade dos centros industriais desempenhar
um papel central, o mais importante foi a contradição entre a tentativa de
construir um sistema de produção complexo e diferenciado sob os princípios do
planejamento burocrático central. A pesada economia de comando era
estruturalmente incapaz de organizar processos de fabricação flexíveis, como os
que são criados quase automaticamente nas condições de concorrência capitalista
sob os ditames do mercado. No geral, portanto, o regime de modernização
enredou-se em contradições estruturais que finalmente derrubaram a política de
industrialização nacional-estatista na crise.

As ruínas da modernização e a emergência do islã

A dinâmica da produção de riqueza abstrata nos “países em


desenvolvimento” perdeu cada vez mais seu impulso nas décadas de 1970 e 1980
devido à deficiência geral da sua base industrial. Mesmo as crescentes receitas do
petróleo em alguns países “islâmicos” centrais eram insuficientes para compensar
essa estagnação, contribuindo em vez disso para uma orientação unilateral das
estruturas econômicas para essa fonte de receita, beneficiando substancialmente
apenas uma minoria da sociedade. Desse modo, o sistema de relações abstratas
se generalizou, mas não o seu conteúdo: a produção de riqueza abstrata. O
especialista em islã Gilles Kepel data o início do “período islâmico” no início dos
anos 1970 e, mais precisamente, na primeira “crise do petróleo”.22 A Arábia
Saudita, como país central ideal e fonte do suporte material para o islamismo,
converteu-se, devido ao preço do petróleo, na principal potência regional. Isso se
refere, em parte, à época ultrapassada das tentativas de desenvolvimento
econômico nacional independente. Por outro lado, há uma certa ironia: apesar
das polêmicas e demarcações antiocidentais e antiamericanas do islamismo, eles
permanecem materialmente ligados às migalhas da valorização do valor devido à
dependência face aos movimentos da economia de petrodólares.

22 Gilles Kepel, Das Schwarzbuch des Dschihad. Aufstieg und Niedergang des
Islamismus (München: Piper, 2002, p. 28 e ss.).
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Para a população, a implementação das modernas formas de socialização


significava, em especial nas regiões até então predominantemente rurais, a
transformação de tais relações pelo processo de modernização: uma migração em
direção à metrópole urbana em expansão; e os modos de vida urbanos
prevaleceram. Inicialmente, essa mudança representou uma melhoria real nas
condições materiais de vida, porque surgiram oportunidades de ascensão e
participação no quadro recém criado das formas abstratas de relação. A ideologia
do progresso nacional se baseava explicitamente em um programa universalista
de participação na riqueza abstrata. Essa primeira transição, percebida como
uma mudança social amplamente positiva se encerrou, no mais tardar, em
meados dos anos 1970, sobretudo devido ao enorme crescimento de uma geração
mais jovem que não viu melhorar sua condição material e perdeu a perspectiva
social.23 Sobre a Argélia, Bernard Schmid descreve a situação da seguinte
maneira:

“a maioria vivia (na época das promessas do progresso nacional, K-HL) a


expectativa de que o progresso no desenvolvimento do país a longo prazo
beneficiaria as fileiras ‘inferiores’ da sociedade. Tal esperança estava em
consonância com a realidade na medida em que eram construídas escolas e linhas
de transporte nos anos 70, e a população argelina se beneficiou com o relativo
desenvolvimento do sistema social, como o atendimento médico gratuito (em
1974). Para ilustrar isso: os ocupantes do último vagão podiam suportar penúrias
sempre e quando tinham a impressão de que o trem – o conjunto da sociedade
argelina – ia adiante e também os transportava até o objetivo. Mas a situação se
torna insuportável se os passageiros no vagão traseiro têm a impressão de que
foram desligados do resto do trem e que o carro da frente segue adiante sozinho.
Essa percepção se intensificou no curso dos anos 80: desigualdades sociais
crescentes, corrupção ainda mais evidente e determinando o acesso ou não aos
bens de consumo artificialmente escassos – que são importados por estruturas
estatais, mas são frequentemente vendidos em canais paralelos em um setor-
sombra, e é lá distribuído.”24

A situação nas regiões de modernização fracassada se faz sentir agora em termos


mais gerais, causando fricções econômicas que são experimentadas como miséria
social generalizada e falta de perspectiva individual. Essa cadeia de
acontecimentos coloca em questão a participação dos indivíduos imersos no todo
nacional nas bênçãos da mercadoria. Por um lado, prevaleceu o sistema formal
de interesse privado. Por outro lado, o conteúdo, a produção de riqueza abstrata,

23 Kepel, Das Schwarzbuch..., op. cit., p. 86 e seguintes.


24 Schmid, 2005, p. 89.
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continuou muito precária, o que tornou impossível a participação nessa riqueza


para uma parte crescente da população. Oliver Roy, no estudo The Islamic Way
West, mostrou de maneira convincente a extensão em que o processo de
transformação social se generalizou e como o ponto de vista individual se tornou
a base das relações sociais.25 Ele mostra a estreita relação entre os países
“islâmicos” e o Ocidente em desenvolvimentos sociais essenciais. A destruição
das relações tradicionais levou a uma matriz social de individualização, que Roy
também identifica como uma característica central do fundamentalismo
islâmico. Tal como no ocidente, predominam as estratégias baseadas no sucesso
profissional e no desempenho individual.26 A situação atual é descrita como uma
“crise das culturas originais”, momento de um “processo de desculturação” 27, no
qual a “autoridade social da religião desaparece” ou ocorre uma perda geral da
“autoridade social”.28 A atual reislamização, argumenta Roy em sua tese central,
tem o seu fundamento na forma secularizada da individualização. Ela pressupõe
a vontade dos indivíduos e conduz à “reformulação individual da religiosidade
pessoal”29. “O centro é o Eu e portanto o indivíduo [...] Atualmente ocorre entre
os muçulmanos uma individualização da crença e comportamento, especialmente
entre os que vivem no Ocidente. O ego prevalece, cada um aspira a realização
pessoal e procura pela reconstrução individual da sua atitude para com a religião”
[...] A individualização é um pré-requisito para a ocidentalização do islã – e foi
isso que aconteceu”.30 Nesse processo, Roy faz a distinção entre forma e conteúdo
da práxis: ocidentalização significa algo mais do que apenas o Ocidente. O
conteúdo pode ser diferente, mas “a forma da individualidade é a mesma”. 31 A
modernização das relações sociais imanente à formação do Estado nacional
ocorreu, portanto, como transformação das relações em direção à posição de

25 A intenção da análise de Roy reconhecidamente não é a crítica da forma moderna de


socialização, mas ao contrário, de mostrar o quanto a sociedade “islâmica” já se ajustou
às relações democráticas do Ocidente. Essa afirmação da forma da razão moderna em
processo de estabelecimento o conduz então à esperança de que os “muçulmanos”, com
o apoio político apropriado do Ocidente, se integrarão no pluralismo da sociedade civil
(ver Roy, 2006, p. 13). Mesmo assim, ou devido isso, o estudo é pouco preciso quanto
à maneira pela qual o ponto de vista privado se generalizou nos países “islâmicos”.
26 Roy, 2006, p. 30.
27 ibid., p. 38.
28 ibid., p. 41-ss.
29 ibid., p. 48, 43.
30 ibid., p. 46.
31 ibid., p. 48.
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indivíduo abstrato. O processo de aculturação e a mudança da “gramática comum


das relações sociais” evoluiu no horizonte da moderna relação burguesa na base
do interesse privado e do “livre arbítrio”.32
Portanto, não é nada surpreendente que essas regiões se mostrem
decisivamente em um dos principais campos de ação do ponto de vista privado
generalizado: o consumo. Com a generalização do interesse privado e a
individualização das condições de vida, chega também a atitude consumista do
Ocidente. Desde o primeiro momento, resta pouco do futuro coletivo imaginado
e associado à promessa de progresso da Nação. Pelo contrário, a universalidade
abstrata do “espírito do povo” é confrontada pela privacidade abstrata como
vontade individual. Isso é claramente percebido no caso da Argélia: “predomina
a fascinação com colorido mundo das mercadorias que, depois de a política
industrial ser abandonada em favor do livre comércio e da importação de
mercadorias ocidentais, foi em seguida exposto nas prateleiras dos
supermercados estatais criados para isso”.33 Esse “livre arbítrio” dada ao
indivíduo abstrato está sujeita à cada vez mais atrativa estética colorida das
mercadorias que constitui um momento essencial da experiência da subjetividade
moderna. Mas uma parte crescente da população não pode participar do mundo
do consumo porque as experiências geradas pela modernização recuperadora
criaram não um sistema de produção em massa, com trabalho e consumo em
massa, mas antes pobreza e exclusão em massa, onde as condições de vida e de
trabalho são cada vez mais precárias e acompanhadas do rápido crescimento de
um setor informal.
Grande parte da população não percebe os mecanismos de exclusão social
como expressão de contradições econômicas e da crise estrutural do contexto
global, mas interpretam-nos através da parcialidade dos seus pontos de vista
privados. Portanto, a miséria geral parece ser fruto da corrupção, isto é, a mistura
ilegal de “operações gerais” com os interesses privados de seus executantes. A
nomenklatura nacional consegue enormes lucros por meio do acesso privilegiado
aos recursos materiais comuns. Essa percepção muito difundida não é totalmente
errada, como a corrupção, como é evidente para todos, cresceu junto com as
distorções econômicas. No entanto, é uma confusão entre causa e efeito. A sempre

32 ibid., p. 51.
33 Schmid, 2005, p. 89.
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crescente difusão do interesse privado na esfera pública pode ser considerada


uma consequência do fracasso da promessa de erguer um Estado como
universalidade abstrata acima dos interesses particulares, que acompanhou o
fracasso do processo de modernização recuperadora. Na perspectiva dos
indivíduos, a regressão social parece ser causada pela nomenklatura, que é
responsabilizada pela crise. Esta tem conduzido a soberania para o abismo, por
usá-la incorretamente em benefício próprio e não como uma base para a
mediação dos diversos interesses sociais privados, criando assim um
desenvolvimento adequado das oportunidades privadas. A falha estrutural da
produção de riqueza abstrata se afigura, na perspectiva do seu próprio quadro
social de referência, como resultado da má conduta da “elite privilegiada” que
governa o país.34
Com a burocracia estatal nacional, o conceito de nação cai totalmente em
descrédito. A acusação de que a elite nacional oprime e rouba os indivíduos foi,
de forma retroativa para toda a época do nacionalismo (isto é, da construção
nacional recuperadora), misturada com padrões interpretativos do período
anticolonial. Assim, a fase nacional aparece como extensão da dominação e
exploração coloniais, só que os portadores dessa regra já não eram diretamente
as potências coloniais e sim as camarilhas da burocracia estatal, que se
caracterizam como lacaios bajuladores das potências estrangeiras, especialmente
os Estados Unidos. E assim como as potências coloniais mantiveram suas
colônias economicamente dependentes e sem qualquer soberania política
substantiva, o regime pós-colonial minou mais ainda a ordem social, provocando
a miséria social geral. Pelo fato de perseguir apenas seus interesses particulares
ao invés de servir ao bem público, a própria esfera da soberania independente foi
desautorizada. O resultado disso é a visão do nacionalismo como idêntico às
posições particularistas e responsável pela crescente exclusão de outros setores
da população em relação à participação social. O soberano independente, de
acordo com essa lógica, rompeu o princípio de igualdade atrelado à soberania,
que, afinal, garante a ideia dos direitos iguais para todos. O anti-imperialismo e
o anticolonialismo do passado são atualizados agora contra a modernização
fracassada e tornam-se, em grande parte, idênticos ao nacionalismo. Dessa

34 Schmid, 2005, p. 92.


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forma, o islamismo era um reservatório para o novo anti-imperialismo, apto a dar


expressão política à agitação social crescente e às tensões resultantes – ainda que
introduzisse certos motivos religiosos nesses protestos. Isso resultou numa
mudança geral na voz dos protestos sociais em direção até então marginal em
termos políticos. Uma referência comum aos diferentes movimentos islâmicos foi
a crítica dos regimes nacionais opressivos como particularistas, cúmplices do
Ocidente, especialmente dos Estados Unidos e de Israel. O hemisfério ocidental
e seu sistema democrático se converteram num símbolo do particularismo,
contra o qual se afirma a universalidade do islã: “Os valores ocidentais são valores
do Ocidente. Valores islâmicos são valores universais”.35 Como contraponto da
visão particularista da dominação estrangeira, os islâmicos defendem a
organização da “sociedade justa” na qual seria garantido o mesmo direito (mas
entendido no sentido da “lei islâmica”) para todos através da soberania
transcendente, a soberania de Deus.36 Os movimentos do islã político do início
dos anos 80, assim como hoje, especialmente as redes terroristas, compartilham
essa perspectiva. A lei como personificação da ordem divina e como objetivo
central a ser atingido era uma referência tanto para a “revolução islâmica” no Irã
quando é atualmente para a Al-Qaeda.
Antes de analisar essa virada ideológica e mostrar que a reformulação geral
do ponto de vista religioso reflete as condições da crise global, cabe esclarecer em
primeiro lugar algumas afirmações de Osama Bin Laden, Ayman al-Zawahiri, and
Sayyid Qutb.

A “vontade do povo” de acordo com Bin Laden, Ayman al-Zawahiri,


and Sayyid Qutb

Comecemos com três citações, duas de George W. Bush e uma de Osama


Bin Laden.
- “Essas pessoas desprezam a liberdade. É uma luta pela liberdade. É uma
luta, de modo que podemos dizer a todos os amantes da liberdade: nós não vamos
deixar que nos aterrorizem”.37

35 Mahatir, citado em Kepel 2002, p. 120


36 Sobre isso, ver as observações da nota 3.
37 Bush on 17 September 2001, quoted in Gilles Kepel and Jean-Pierre Milelli, Al-Qaida.

Texte des Terrors (München: Piper, 2006) 137.


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- “Eles declararam guerra contra nós. E os EUA irão à caça. Enquanto eu


for presidente, estaremos determinados a permanecer firmes e fortes na busca
por essas pessoas que matam inocentes porque odeiam a liberdade”.38
- “Bush diz... que odiamos a liberdade... Ao contrário, queremos que nosso
país volte à liberdade, porque se a nossa liberdade for destruída, o mesmo vai
acontecer com a sua liberdade”.39
A última citação é de um vídeo divulgado por Bin Laden chamado
“Mensagem ao povo americano”. O texto inteiro é instrutivo na medida em que o
quadro teórico – se se quiser chamar assim – das categorias é bastante familiar:
primeiro, liberdade pra o povo e segurança, mas também valores como justiça,
povo, trabalho, economia e razão. Todos os termos fazem referência à moderna
forma de socialização. A linha de pensamento desenvolvida na mensagem ao povo
americano reflete a tradição das lutas de libertação anti-imperialistas, bem como
a dimensão da busca de soberania e o ponto de vista geral da “vontade do povo”.
A dominação do Ocidente, isto é, dos Estados Unidos e de Israel, significa que os
países muçulmanos estão condenados, de acordo com Bin Laden, ao sofrimento,
à injustiça e à miséria. Como as nações dominantes apenas fingem defender a
liberdade, a guerra dos povos oprimidos, a guerra dos jihadistas, não é ofensiva,
mas defensiva. Os Estados Unidos são um regime opressivo, semelhante aos
regimes militares e neo-feudais nos países islâmicos, dominados por “orgulho e
arrogância, ganância e corrupção”.40 Também Bush triunfou devido ao seu clã
familiar, em parte pela fraude eleitoral, em parte pelas mentiras abertas, tal como
nos regimes dos países “islâmicos”. Bin Laden caracteriza os Bush da seguinte
maneira: “ele transferiu para o seu filho, que aprovou o Patriotic Act, sob pretexto
de combate ao terrorismo, o despotismo e o desdém pela liberdade”.41
A posição de Bin Laden e da Al-Qaeda não é, como se vê, uma oposição
implacável entre o “islã” e o “Ocidente”, ou entre o “Oriente” e o “Ocidente” no
sentido do discurso culturalista ocidental (tipo Huntington) do “choque de
civilizações”. Ao contrário, essa posição é muito mais próxima da universalidade
abstrata do interesse geral. Afinal, sua crítica não é dirigida ao “povo americano”
como um todo, como comunidade cultural, alegando, ao contrário, representar

38 ibid.
39 Bin Laden am 30.10.2004, citado por Kepel/Milelli 2006, p. 129
40 Kepel/Milelli 2006, p. 132
41 Kepel/Milelli 2006, p. 133
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seus “verdadeiros interesses”. O governo despótico do clã Bush, segundo Bin


Laden, é reforçado pelo Patriotic Act, que deve restringir a liberdade dos
indivíduos e controlá-los. Essa retórica reproduz exatamente a perspectiva dos
anti-imperialistas islâmicos em relação aos regimes de desenvolvimento
nacional, que eram responsabilizados por suprimir os “verdadeiros interesses” do
povo. Enquanto rede global, a Al-Qaeda transcende essa perspectiva, pois não se
limita mais aos países “islâmicos” e também procura combater as camarilhas das
burocracias estatais locais. O ponto de vista anterior é universalizado num âmbito
global, com o que afirma representar todos os interesses individuais no contexto
da universalidade abstrata em escala global. Segue-se, então, a tentativa de
mobilizar o povo americano contra o particularismo imputado ao governo e à
oligarquia dos Estados Unidos: “os verdadeiros perdedores são vocês, o povo
americano e sua economia”.42 Bin Laden não se refere apenas ao ponto de vista
da abstração universal na forma do “povo americano”, mas igualmente ao seu
contrário imanente, a liberdade individual na esfera econômica do mercado.
Ambos os momentos ameaçados pela “ganância” dos interesses privados da
camarilha de Bush, cuja política se alinha apenas aos interesses particulares das
empresas privadas. O povo americano, por sua vez, tem sido manipulado por essa
camarilha econômica e cometido um erro. O final da mensagem diz: “sei que é
melhor voltar para o bom do que permanecer no erro e que as pessoas razoáveis
(sic!, K-HL) não vão abandonar sua segurança, nem seu dinheiro e nem seus
filhos ao mentiroso da Casa Branca”.43 Bin Laden apela aqui aos interesses
privados dos indivíduos isolados, junto aos seus atributos essenciais, dinheiro e
família, que na situação dada não poderiam se realizar. A razão deve ajudar a
restaurar uma ordem de acordo com o indivíduo e o conjunto do povo – e Bin
Laden reivindica esse ponto de vista como o da Al-Qaeda e do movimento
islâmico global. Eles seriam os verdadeiros representantes da forma jurídica
universal em sua referência à lei islâmica, enquanto a democracia, pelo contrário,
representaria o domínio dos interesses especiais de certos grupos de poder
privados em detrimento do público. Isso significa que não só os regimes nacionais
de modernização e seu nacionalismo, mas também as democracias ocidentais
representam os interesses particulares.

42 Kepel/Milelli 2006, p. 134


43 Kepel/Milelli 2006, p. 136
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Com o principal teórico da Al-Qaeda, Ayman al-Zawahiri, se torna ainda


mais clara a dialética dos interesses gerais e privados. Tal como Bin Laden, ele
identifica o sistema democrático com o domínio dos interesses particulares
identificado com o ponto de vista geral. Para al-Zawahiri, em uma democracia, o
parlamento – ou, mais precisamente, os parlamentares tomam individualmente
o lugar das pessoas. “Na democracia, o legislador é o povo, representado por uma
maioria de deputados no parlamento. Esses deputados são homens e mulheres,
cristãos, comunistas e secularistas. O que eles aprovam se torna a lei, que deve
ser imposta a todos, pela qual os impostos são cobrados e as pessoas
executadas”.44 No parlamentarismo prevalecem os deputados e seus respectivos
interesses particulares, que se impõem “ao povo” por meio da lei, em vez do
soberano representar o “interesse verdadeiro” do povo. Desse modo, a
democracia não é percebida como a forma correta de alcançar a universalidade
da lei, submetendo, ao invés disso, a maioria do povo à vontade arbitrária de
determinados interesses privados. A reivindicação dos interesses universais
corresponde, assim, em um nível fundamental, à argumentação anti-imperialista
habitual. Portanto, al-Zawahiri compartilha a cegueira total em relação ao ponto
de vista geral como domínio da forma de relação social abstrata. Pode-ser dizer
que essa perspectiva torna-se finalmente enlouquecida quando deixa de criticar
o ponto de vista universal como tal para formulá-lo em termos neoreligiosos:
“Essas pessoas, que estão a fazer leis para as pessoas na democracia, tornam-se
ídolos. Há aqueles governantes a quem Deus [...] mencionou: ‘não aceiteis outro
como senhor ao lado de Allah’”.45 O sistema parlamentar, fundamentalmente
corrompido pelos interesses individuais, culmina na arrogância de se tornar o
soberano supremo. Ele coloca os interesses privados de alguns no lugar do
interesse geral e um punhado de ídolos no lugar do único Deus.
Essa perspectiva da lei universal dada por Deus já podia ser encontrada
em Sayyid Qutb, o mais importante teórico do islamismo político. Ele interpreta
a condição “de pessoas que adoram pessoas e seres humanos que alegam, como
tais, o direto de serem obedecidos e o direito, como instrumentos da lei, de ditar
valores e regras”, como uma presunção de soberania divina. “Isso acontece nas
democracias avançadas e nas ditaduras: a primeira característica divina é a lei

44 al-Zawahir, zit. nach Kepel/Milelli, p. 329


45 al-Zawahiri, zit. nach Kepel/Milelli, p. 330
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[...] para estabelecer regras e doutrinas e adotar leis e regulamentos, para


estabelecer valores e para julgar como árbitro [...] Para elevar sistemas terrenos
a esse direito, de uma maneira ou de outra, em todos os casos, o assunto é
decidido por um grupo de pessoas e esse grupo, que impõe suas leis, valores e
ideias aos outros, consiste de simples homens terrenos, alguns dos quais
obedecem aos homens em lugar de Deus e permitem que o homem se torne
divino. Adoram homens no lugar de Deus, ainda que não se inclinem ou caiam de
joelhos diante deles”.46 E Qutb acrescenta: “essa é a diferença entre o muçulmano
e aqueles que estão comprometidos uns com os outros ao invés vez de
comprometerem-se com Deus. Isso mostra claramente quem são os
muçulmanos. São aqueles que adoram somente a um Deus”.47

Legitimidade transcendente e soberania divina

A oposição do islamismo ao interesse particular é a compreensão do


interesse público em termos de legalidade e justiça, mas não se baseia no contexto
secular da nação e sim na instância superior e metafísica da soberania divina. Os
guerreiros culturais do Ocidente esclarecido entendem essa orientação islâmica
como uma prova do seu caráter pré-moderno ou do atraso da sua mentalidade
regressiva e totalitária, usando isso para destacar o caráter progressista da
civilização baseada na razão moderna. A crítica favorita do Ocidente esclarecido
ao islã é a ausência de separação entre religião e política. Em contrapartida, os
islâmicos declaram que a realização da lei universal está relacionada com a mais
elevada autoridade divina. A questão é se essa alegada identidade entre o Deus
monoteísta e a unidade da Lei pertence realmente a uma visão de mundo arcaica
e expressa uma estrutura social pré-moderna ou se ela se refere, ao contrário, às
formas especificamente burguesas de socialização. Olhando mais de perto a
posição do islamismo relativamente à religiosidade tradicional, deve-se dizer
claramente que eles combateram ardorosamente as tradições religiosas e a
herança cultural do Islã. “os principais alvos dos novos fundamentalistas são as
chamadas culturas muçulmanas”. Eles “falam contra formas locais do Islã, como
as que existem no Egito ou no Marrocos, e travam uma luta incansável contra as

46 Qutb, zit. nach Kepel/Milelli p. 332


47 ibid
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velhas tradições... por exemplo, contra todos os ‘cultos santos’, como o ‘Ziarat’ na
Ásia central ou Moussem no norte da África, uma peregrinação religiosa que atrai
pessoas para orar na tumba dos santos locais.48 As comunidades pré-modernas
eram – também no que se refere à sua práxis religiosa – o oposto de uma
padronização estrita das relações sociais em leis gerais. O islã tradicional integrou
uma variedade de momentos pré-islâmicos, como o antigo culto egípcio dos
mortos. Para o islamismo, tais adaptações da religiosidade pré-islâmica e de
práticas religiosas diversas foram sempre uma monstruosidade. 49 Sua
perspectiva de um reino da lei eterna exige a construção de uma base uniforme
para todos os muçulmanos e, portanto, inclui a tarefa de acabar com a diversidade
da vida religiosa e cultural. Nas condições pré-modernas, era algo impensável
orientar a realidade social a partir de um princípio legal em geral, i.e., político.
Mas a natureza moderna do islamismo aponta justamente para isso. Enquanto os
regimes seculares de modernização deslocavam as relações sociais tradicionais
em favor de um sistema de mediação social abstrato, os islâmicos seguem fazendo
isso sob a bandeira da “lei eterna”. Sua luta não é dirigida apenas contra o regime
nacional e seus “aliados ocidentais”, mas igualmente contra as estruturas sociais
cultural-religiosas tradicionais. De acordo com o islamismo, todos eles são
cúmplices no estado de miséria em que se encontram os países “islâmicos”. A
resistência contra o colonialismo, entendido como a dominação pelo regime
nacional, está ligada à luta contra os remanescentes culturais da tradição
islâmica, na medida em que ambos teriam tido responsabilidade pelo declínio
social da ordem “islâmica”.50 Essa idéia parte principalmente do pensador egípcio
já mencionado, Sayyid Qutb, que faz o empobrecimento e a desintegração social
remontarem ao fato de a sociedade “islâmica” estar abandonando a prática social
e religiosa verdadeira: a referência a um único princípio, dado pela lei divina. As
diversas e heterogêneas heranças religiosas existentes nos países “islâmicos”
aparecem para eles como equivalentes da apostasia da forma individualista de
legalidade, que marca a vida depravada e dissoluta do Ocidente decadente.
A esse respeito, os islâmicos proclamam a identidade, desacreditada no
Ocidente, de religião e política, não para deter o desenvolvimento do islã numa

48 Roy 2006, p. 255.


49 Dorn im Auge. Literalmente, um espinho no olho. [NT]
50 Ver o ensaio de Ernst Lohoff, A exumação de Deus. Da santa Nação ao reino celeste

mundial, Krisis 32.


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Idade Média pré-moderna e religiosa, mas no contexto de uma uniformização da


práxis vital no interior da modernidade mercantilizada. O desejo de orientar o
todo social de acordo com critérios baseados em leis religiosas corresponde à
execução das formas abstratas de relacionamento. A ambiguidade do
pensamento iluminista é que o próprio pensamento é secular e antirreligioso, mas
a racionalidade abstrata da modernidade se baseia na “transcendência” da
mediação social. A filosofia do iluminismo de Kant, pelo menos, era consistente
enquanto formulava forças da razão como um mais além, como “metafísica”,
independente da experiência humana concreta e da prática sensível. A ação dos
indivíduos, de acordo com a fundamentação kantiana da razão burguesa, deve
corresponder a um quadro “transcendental” a priori, e apenas esse quadro
metafísico estabelece comportamento concreto dos sujeitos. Isso se relaciona
pelas formas da racionalidade moderna a um sistema no qual liberdade e forma
do direito são entendidos como expressões de relações privadas abstratas.
É mais coerente entender a orientação para o além na forma legal no
islamismo no contexto dessa transcendência do que como um prolongamento de
relações sociais “atrasadas”. O conceito de soberania surgiu com a modernidade
e seu sistema de relações sociais abstratas, assim como a vontade geral e a
uniformidade da forma legal. Portanto, a metafísica islâmica da lei divina deve
ser vista no horizonte das relações burguesas modernas, como formuladas por
Kant na Metafísica dos Costumes.
Tal relação também é evidente à medida que a soberania estatal como
materialização real do ponto de vista geral é erodida no processo de crise. O
soberano, deste modo, não é mais a autoridade que faz a mediação dos diversos
interesses privados e garante o funcionamento do marco geral, como idealmente
no moderno Estado nacional. Então, onde buscar a legitimidade e exigir, em face
da crescente polarização social, “igualdade social”, “justiça” e “direitos iguais para
todos”? Não mais na terra, a esfera metafísica real inconsciente que cria uma teia
de interesses privados, a nação ou o Estado, e sim a pura imaginação de um ser
sobrenatural, uma esfera transcendental. Por isso, a metafísica da forma do
direito ascende aos céus e a universalidade do interesse privado encontra sua
última referência na soberania divina. Que essa transcendência seja assumida
como idêntica à “vontade do povo” é algo evidente nos textos de Bin Laden, al-
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Zawahiri e Qutb.51 A fundamentação transcendental da vontade geral pelo


islamismo aparece como algo mais que acidental. O atual positivismo nivelador
do ponto de vista esclarecido confunde essa dimensão quando toma o seu
adversário construído tomando essa identidade de religião e Estado como
retrocesso cultural, escondendo assim o problema dos seus próprios
fundamentos.
No início da afirmação do sistema de comércio burguês, como indicam
as “críticas” de Kant, as formas do “livre arbítrio” e da legalidade não eram de
modo algum evidentes. A transformação das relações sociais era tão fundamental
que existia um interesse nada desprezível em sua autolegitimação. Um aspecto
importante era resolver a aparente contradição de como a abrangente e não-
empírica vontade geral da forma do direito pode ter sua representação estatal
adequada. O problema consiste na tentativa de realizar a “vontade do povo” nas
instituições da esfera pública ou ainda a resolução da tensão fundamental entre a
universalidade metafísica real da forma de relacionamento e a concretude estatal,
o corpo legislativo. Na esteira da Revolução Francesa, essa tensão se expressou
na forma de antagonismo entre a Nação sagrada e geral e os respectivos
representantes do todo nacional.52 A desconfiança dos representantes do poder
estatal a partir da perspectiva da posição geral do povo tornou-se cada vez mais
virulenta no curso dos eventos revolucionários e ajudou a causar o radicalismo
que pretendia abolir a separação entre o povo e o poder estatal. A crítica de
Robespierre à Constituição de 1791 descreve um “estranho sistema de governo
totalmente representativo, sem qualquer contrapartida na soberania do povo” –
“um governo assim é o mais intolerável de todos os despotismos”.53
Os eventos que cercam 1789 na França ficaram no passado, mas
permanece a tensão fundamental entre a universalidade metafísica real da forma

51 Portanto, tampouco parece ser válida a sugestão de Schmid de que o conceito da


“vontade divina” reivindicada pelos islamistas seria combinada de maneira apenas
“discursiva” com o conceito de “povo muçulmano”. É uma relação quase lógica, que se
aproxima da tradição anti-imperlialista, e tudo o mais é visto como uma “combinação”
externa e, antes, contingente (ver Schmid, p. 158).
52 No estilo tipicamente pós-moderno que Gauchet às vezes desenvolve, isso quer dizer:

“Aqui se toca o ponto cego por excelência do imaginário politico revolucionário: pensar
a representação de toda impossibilidade” (Gauchet, op. cit., p. 23). Quando esse
imaginário político não pode ser pensado, essa formulação deve ser combatida, para
que a realidade seja atingida em forma não familiar.
53 Apud Gauchet 1991, p. 26.
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social e a sua realização concreta na autoridade legislativa estatal. Essa


contradição é mais evidente na reformulação islâmica da soberania. É
precisamente a difusão de interesses privados na esfera dos sistemas de governo
dos regimes nacionais nas regiões de modernização fracassada que permite que a
burocracia estatal apareça como “o mais intolerável dos despotismos”. Por outro
lado, o islamismo levou o ponto de vista da universalidade para além do
paradigma nacional, dando-lhe um reforço religioso. Em vista da canonização da
Nação ou do povo, que caracteriza o processo de formação dos Estados nacionais,
se fez presente a referência a uma base religiosa. Islamismo e “revolução islâmica”
surgem assim como uma herança histórica do nacionalismo de libertação,
respondendo ao descrédito das estruturas nacionais nas regiões em crise, mas
dando ao interesse geral uma veste religiosa. Central para esse renascimento da
vontade geral é o direito à participação nas formas modernas avançadas de
socialização. Essa exigência é afirmada contra os regimes corrompidos das
ditaduras de modernização por meio da reformulação religiosa dos ideais de
igualdade e justiça, contra ditadores acusados de aumentar a exclusão social para
amplos setores da população e dar vantagens particulares para outros, violando
a promessa constitucional de igualdade.

Da máquina do progresso à forma legislativa

A orientação temática do islamismo, seu programa, caso se queira, difere


em aspectos essenciais dos objetivos das ditaduras de modernização. A estrela
guia dos movimentos de independência nacional foi a Nação como sujeito do
progresso social real, recalcando e destruindo as estruturas tradicionais em favor
da integridade nacional. Isso se relacionava com a pretensão de levar a cabo a
produção de riqueza abstrata. Isso foi acompanhado de uma ênfase no progresso
e no desenvolvimento das forças produtivas, que tinha por objetivo revolucionar
técnica e organizacionalmente a produção de riqueza, e orientá-la para a
utilização de força de trabalho. A colocação em marcha da máquina de progresso
dirigida pelo estado estava relacionada à promessa da criação de formas cada vez
mais ricas de satisfação material para os indivíduos. No islamismo, esse momento
da modernização material ficou em segundo plano. Tal programa de libertação
face à dominação, identificada com o colonialismo, mascarou sistematicamente
[-] www.sinaldemenos.org Ano 9, n°12, vol. 2, 2018 69

o plano das condições de produção da riqueza. Em seu lugar, o programa islâmico


se resume à dimensão da obediência à lei dada por Deus e apresentada por
Mohammed. O islamismo como força política se obriga a impor os valores e
princípios islâmicos contra as sociedades “corrompidas”. Esse é o pano de fundo
para as políticas universais de moralização do movimento islâmico em termos de
obediência à Sharia. O conteúdo social real da forma legal, a produção abstrata
de riqueza, é para os islâmicos, apenas um problema menor que será corrigido
apenas pela restauração da lei correta. “Se a sociedade respeitar os mandamentos
religiosos e sua identidade cultural”, então “todos encontrarão um lugar nela”.54
“A reforma da alma deve preceder (...) a reforma do Estado. Política não ajuda a
purificar a alma”.55 Daí os apontamentos vagos, ambíguos e nebulosos sobre
objetivos sociais concretos. Em última análise, o controle do indivíduo em relação
ao cumprimento da legislação permanecem o conteúdo central da ação estatal.
No Afeganistão, quando no poder, o Talebã realizou esse programa com uma
espécie pós-nacional de ditadura jacobina da virtude. Com as contradições sociais
reais e tensões decorrentes da deterioração contínua da situação material os
islâmicos estavam distantes e, em última análise, desprezados, ou melhor,
desprezados e distanciados:56 “No poder (Irã) ou na oposição (Egito) os islamistas
sempre tem sido incapazes de fazer frente às mudanças sociais e econômicas em
que participam. A mensagem social revolucionária (...) desvaneceu em favor de
um programa conservador: a insistência na ‘sharização’ do direito estatal. 57 Essa
orientação legal como único conteúdo da ação estatal só reflete a evolução do
processo de crise. O impulso do islamismo é a defesa e demarcação dirigidas ao
exterior, enquanto, interiormente, em primeiro lugar deve ser imposta a ordem
legal. “Para os radicais islâmicos, é uma questão de prioridade ‘restabelecer sua
própria moral’ em sua própria sociedade, de modo que eles se tornem ‘saudáveis’
para resistir à ‘agressão cultural do ocidente’”.58 Essa redução das funções estatais

54 Schmid, 2005, p. 127.


55 Roy, 2006, p. 244.
56 Sobre isso, um pequeno episódio na campanha eleitoral para o parlamento argelino de

1991: lá o então sindicato único havia chamado uma greve geral, em protesto contra a
crescente pobreza e por maiores salários. A reação da direção do FIS – eles possuíam
então a maioria entre as autoridades locais – foi um chamado ao boicote da greve, com
a indicação de que se tratava apenas de uma tática “reformista” e “modernizadora” (ver
Schmid, p. 162).
57 Roy, 2006, p. 84.
58 Schmid 2005, p. 122.
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à manutenção da lei demonstra uma vez mais o núcleo da função do Estado.


Especialmente no processo de crise em curso, a forma legal excluiu as relações
sociais diretas e relega o indivíduo ao sistema abstrato de socialização.

Teoria da conspiração

Seria muito simplificador caracterizar a reformulação religiosa da forma


legal como uma mera reedição islâmica do anti-imperialismo na tradição dos
movimentos anticoloniais. Essa ênfase na forma legal deixa claro que é uma
questão de restauração da ordem social que está prestes a se desintegrar. A
subjugação do indivíduo à lei divina deve ser vista como uma forma de tratamento
psicossocial da crise, que processa um desespero geral a respeito das
possibilidades de mudança efetiva. Sua impotência em relação à crise estrutural
e à decomposição das forças abstratas de conexão social impulsiona certos
padrões de interpretação para além do horizonte da resistência anticolonial
“clássica” do período da libertação nacional. O perigo real de dissolução social se
faz perceptível, entre outras coisas, na matriz ideológica com a qual se tenta
explicar a impotência estrutural em face do colapso da sociedade. Em última
análise, se trata de um mecanismo de defesa projetiva que explica a miséria geral
como resultado da conspiração de interesses e intervenções externas, de modo
que se possa continuar se aferrando na ficção de uma sociedade “justa”. A
reivindicação de “direitos iguais para todos” é, ao mesmo tempo, a projeção da
identidade total em um coletivo religioso-legal. A subjetividade ameaçada pelo
processo de desintegração social atribui tal ameaça à dominação externa de certos
grupos e, simultaneamente, cria a identidade coletiva do “grande eu” (Heinz
Kohut) na comunidade imaginada de fiéis. Desse modo, a teoria da conspiração
suplanta a crítica anti-imperialista dos regimes de modernização fracassados
como um suposto sistema neocolonial. Esta perspectiva impregna todo o
islamismo. Por trás da desintegração do todo harmonioso imaginado não estaria
apenas uma elite corrupta que colocou seus interesses privados no primeiro
plano, negligenciando ou transgredindo o interesse geral, mas sim um projeto de
poder trabalhando sistematicamente a favor de um plano secreto. As elites
nacionais não se limitaram a agir simplesmente de acordo com suas vantagens
privadas – o que, de fato, estavam fazendo cada vez mais durante a crise, mas
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também seriam primeiramente marionetes dos verdadeiros mentores da


decomposição, que são identificados, dependendo da perspectiva, com o conjunto
do Ocidente ou pelo menos com os Estados Unidos e Israel.
Na Argélia, este padrão projetivo das teorias conspiratórias já estava
formulado no manifesto de fundação da FIS, cujo nome – Frente Islâmica de
Salvação – se refere à sensação de ameaça elas produziram. Ele diz: “O Estado
servindo ao colonizador, em sua empresa de guerra contra nossa religião e nossa
dignidade e questionando a unidade do nosso país, é uma clara agressão contra
nossa soberania e nossa identidade”.59 Ele denuncia “a existência, dentro do
aparato estatal, de elementos hostis à nossa religião e que são os únicos agentes
executores de planos coloniais (...) é vital frustrar essa trama por meio de um
expurgo de todos os traidores nas instituições de governo e, por outro lado, uma
ação decidida para acabar com a sabotagem em todo o país”. 60 As alegadas
relações estreitas entre a forte unidade nacional e a sua estrutura institucional
enfraquecem na perspectiva do islamismo atual, que, no entanto, cada vez mais
defende uma vaga identidade territorial da comunidade espiritual de todos os
muçulmanos, conhecida como Ummah. No fundo, se trata sempre do mesmo:
restaurar a ordem e a unidade ameaçadas ou perdidas devido às influências
externas através da aplicação consequente da lei. O processo de desintegração do
sistema da forma abstrata de socialização é assim explicado a partir de causas
externas que o planejaram. Essas teorias da conspiração, que são uma forma
antissemita de compreensão da crise, provam mais uma vez que o islamismo é
um filho da modernização ou uma forma decadente da modernização e não um
fenômeno pré-moderno.

Conclusão

O islamismo mostra-se uma corrente específica que, reivindicando a


soberania da lei, se opõe ao fenômeno da decadência social e ao processo global
de exclusão no universo da produção abstrata de riqueza através da inversão
religiosa. A contradição entre forma das relações sociais e crise do seu conteúdo

59 Schmid 2005, p. 121


60 ibid
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é resolvida na afirmação da reformulação religiosa da primeira a partir de um


ponto de vista universalista.
O desenvolvimento nos países “islâmicos”, no entanto, deve ser
considerado como uma antecipação negativa do processo que começou há muito
tempo nos centros capitalistas e que, em diferentes formas concretas, continua a
se acelerar. Putin como um “padrinho” paraestatal representa um polo: a
resolução do universal no interesse privado; o islamismo representa o outro: um
renascimento do ponto de vista da universalidade na forma de uma ditadura dos
valores e princípios morais. Assim como a implantação e universalização da
produção mercantil se caracterizou por uma nova forma de dominação violenta,
também a universalização da exclusão representa uma liberação e
potencialização dos momentos de dominação e violência. Para olhar isso mais de
perto em todas as suas formas e níveis é preciso que o aspecto irracional do livre-
arbítrio, da lei e do sistema que liga os agentes livres para sustentar o todo
“racional” seja discutido mais extensivamente do que aqui. Em seguida, pode-se
esclarecer a questão da seção anterior – a maneira pela qual a carga identitária
da comunidade – seja o “grande eu” (Kohut) ou o “grandioso nós”, ligado no
islamismo à perspectiva geral. Esse “nós” é o equivalente coletivo do sujeito
masculino da modernidade, cuja meta obsessiva é sempre assegurar-se de sua
própria perfeição e que, em última análise, se dispõe a sacrificar o mundo à
perfeição desejada. Neste sentido, os sujeitos coletivos, na medida em que o
processo de crise os produz na forma do islamismo, não são apenas os seus
produtos passivos, mas fazem parte ativamente de seus momentos propulsores.

[Traduzido por Marcos Barreira e Daniel Cunha


Originais:
http://www.mediationsjournal.org/articles/curtains-for-universalism
http://www.krisis.org/2008/finale-des-universalismus/ ]

BIBLIOGRAFIA

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Insurreição, e depois?
Aos protestos em todo o mundo falta uma só ideia, onde pode ser procurada
uma alternativa social

Ernst Lohoff

As ruas e praças das grandes cidades desse mundo há dois anos e meio não
pertencem como antes apenas à circulação de mercadorias, ao consumo e ao
turismo. Desde a chamada Revolução de Jasmim, na Tunísia, no final de 2010 e
início de 2011, foram impulsionadas, em um país após o outro, centenas de
milhares de pessoas para os protestos em massa nas ruas.
À primeira vista os movimentos parecem ter pouco em comum. Já nas
ocasiões em que os protestos inflamaram, cada um não podia ser mais diferente.
Os protestos na Tunísia se dirigiram contra o governo autoritário e corrupto que
surgiu do antigo movimento de libertação nacional, e da mesma maneira os
Indignados não vão aceitar que o governo da Espanha, em obediência antecipada
à chamada “Troika”, formada pela Comissão Europeia, Banco Central Europeu e
o Fundo Monetário Internacional, sacrifique as perspectivas de vida de toda uma
geração de sua política de austeridade mortal. No Brasil, por outro lado, uma
Copa do Mundo com custos elevados fez o barril transbordar.
Os países afetados também não poderiam ser mais diferentes. No começo
de 2011, no Egito, a agitação na Praça Tahrir derrubou o governo autocrático de
Mubarak. Meses depois, os protestos de massa contra o aumento dos custos de
vida em Israel abalaram as fundações de uma estabelecida democracia
parlamentarista; e depois de uma queda total e violenta da economia, a Grécia
vivenciou repetidos protestos, e rapidamente na vizinha Turquia, país do boom
econômico, milhões de pessoas foram às ruas contra o governo eleito.
No entanto, há semelhanças marcantes entre esses movimentos. Todos
foram provocados pela subordinação cada vez mais cruel de toda a vida aos
imperativos da valorização do valor, que encontra a sua expressão política em um
[-] www.sinaldemenos.org Ano 9, n°12, vol. 2, 2018 75

aprofundamento do autoritarismo, quer sob a forma de regimes corruptos de


modernização ou de uma impiedosa administração de crise.
Os movimentos também se assemelham na forma, ainda que sejam tão
diferentes as suas causas imediatas: eles surgem quase da noite para o dia, mas
também rapidamente desaparecem de cena. Isto se aplica, por exemplo, ao
movimento Occupy que, há apenas dois anos, em poucas semanas espalhou-se
dos EUA para o mundo Ocidental e, no entanto, desmoronou. Quando se trata de
desenvolver alternativas de ação e demandas concretas, os movimentos de
protesto as delegam aos outros movimentos de protesto, como, por exemplo, os
partidos políticos estabelecidos. O baixo poder organizacional é o menor dos
problemas. É acima de tudo uma orientação básica, alguma ideia de onde
procurar uma alternativa social digna desse nome, que lhes faz falta.
Essa fraqueza revelada no coração da “Primavera Árabe” ocorre até hoje.
Os protestos em massa na praça Tahrir, no início de 2011, tinham sido dirigidos
contra décadas de paternalismo e foram impulsionados principalmente pelas
forças anti-autoritárias e não religiosas. A reacionária Irmandade Muçulmana
desempenhou apenas um papel menor no movimento. A queda do governo levou,
no entanto, à imediata marginalização das forças de apoio ao movimento; o êxito
foi dos recém-chegados, porque os islamistas é que foram capazes de oferecer
orientações políticas e promessas sociais, arrastando nas últimas eleições os votos
que de algum modo correspondiam à sua visão de mundo regressiva. Os protestos
anti-autoritários, no entanto, cobraram seu recibo, pois eles tinham representado
um grande papel na resposta à questão que todo movimento emancipatório, hoje
como há 100 anos, deve responder para obter um terreno firme sob seus pés:
como caminham juntas liberdade e necessidade?
Consequentemente, um ano e meio depois de seu triunfo sobre o regime
de Mubarak, o campo anti-autoritário encontra-se em uma situação aterradora.
Impotente e desorientado, ele presta homenagem e aplaude os militares, que com
centenas de mortes substitui as duramente conseguidas bases democráticas, e
juntam esforços à reação islâmica dominante.
Na Alemanha, a “Primavera Árabe” foi celebrada como uma espécie de
1789, como a entrada do mundo islâmico em um processo retardatário de
democratização nos moldes ocidentais. É difícil fazer uma analogia mais lunática
do que essa. O processo de expansão do capitalismo, em suas fases anteriores de
[-] www.sinaldemenos.org Ano 9, n°12, vol. 2, 2018 76

desenvolvimento, apenas nas regiões vencedoras do mercado mundial combinou-


se com uma participação mais ampla de setores da população na riqueza
capitalista e um razoável equilíbrio de interesses conciliáveis. Mas, mesmo na
Europa e os EUA, esse momento se esgotou. O triunfo do mercado total
efetivamente anda de mãos dadas com uma espécie de convergência do sistema,
mas o ponto de fuga não é a democracia ocidental com proteção no bem-estar
social. O capitalismo rima hoje com exclusão e um novo tipo de tutela
(Entmündigung) e autoritarismo.

Esta tendência não é apenas o resultado de determinadas decisões


políticas, que poderiam novamente ser revistas na base da produção capitalista.
Ela assenta-se muito mais em profundas mudanças no sistema de produção de
riquezas capitalista. A democratização das sociedades ocidentais não se impôs de
forma aleatória, mas em uma fase de desenvolvimento capitalista na qual o
capital foi integrando os setores da sociedade como vendedores de força de
trabalho e consumidores em um ciclo de valorização. Mesmo que a classe
dominante inicialmente tenha resistido com unhas e dentes, em seguida a
participação democrática desses novos cidadãos e o equilíbrio das diferenças de
interesse entre capital e trabalho acabaram se tornando funcionais para o
sistema.

Hoje em dia, no entanto, a autovalorização do capital depende de


mecanismos para os quais a população em geral e sua participação democrática
só podem representar um estorvo. Isto vale em primeiro lugar para a
capitalização em larga escala de informação digital, que agora é baseada na
revogação da autodeterminação informacional. Em segundo lugar, nos países
periféricos bem-sucedidos no mercado mundial (por exemplo, Brasil e Turquia)
o crescimento é sustentado principalmente pela capitalização impressionante de
terras e outros recursos naturais; seu bom funcionamento garante, contudo, que
as pessoas mais afetadas pelas consequências negativas desse processo sejam
rebaixadas à luta individual pela sobrevivência, e de prefêrencia sem direitos. E
em terceiro lugar: como as instâncias estatais poderiam manter a precária
indústria financeira em movimento quando a maioria da população “não
sistemicamente importante” e os seus representantes nos parlamentos tem uma
palavra a dizer da adoção de várias medidas de resgate?
[-] www.sinaldemenos.org Ano 9, n°12, vol. 2, 2018 77

Quando o sistema produtor de mercadorias mesmo em seus centros


tradicionais nega com uma velocidade de quase tirar o fôlego a promessa de
prosperidade e participação, com a qual há décadas justificou o seu domínio, isso
deve conduzir a uma profunda crise de legitimidade. O inflamar de movimentos
de protesto por toda a parte documenta isso. No entanto, esses movimentos
também tornam visível o quão é profundamente dominante a loucura do livre
mercado na qual estão ancorados o pensamento e a ação. Onde o protesto
espontâneo tenta articular-se de forma mais rigorosa, fica limitado à mobilização
dos ideais rejeitados pela sociedade burguesa contra a realidade e às promessas
do passado contra a atuial praxis estabelecida.
Independentemente de o protesto poder ou não impor o seu desejo
imediato, ele permanece condenado a esses princípios, preso em um ciclo de
resignação e rebelião efêmera e, por fim, condenado ao fracasso. Não importa
quantos milhões de pessoas fiquem temporariamente mobilizadas sob esse
auspícios, a verdadeira força de mudança social continua a ser a dinâmica
capitalista. E a iniciativa estratégica em todos os cantos onde estouram conflitos
sociais fica nas mãos dos defensores da pauperização, do isolamento e do novo
autoritarismo.
Para que isso mude e o campo emancipatório recupere a capacidade de
iniciativa, ele deve superar a contradição fundamental que hoje o paralisa. Pela
primeira vez na sua história, a sociedade produtora de mercadorias não oferece
mais qualquer significativo espaço de manobra emancipatório. Ao mesmo tempo,
todos estão fixados na busca por soluções para o mal-estar dentro do âmbito da
ditadura de mercadoria, dinheiro e Estado.

[Original: http://www.krisis.org/2013/empoerung-und-dann/

Tradução: Marcos Barreira ]


[-] www.sinaldemenos.org Ano 9, n°12, vol. 2, 2018 78

De Moscou a Mossul
Jihadistas são fascistas. Um Antifa, se não quiser abrir mão de suas exigências,
tem que se opor tanto aos jihadistas quanto aos neonazistas.

Lothar Galow-Bergemann

No verão de 1935, quando ocorreu em Moscou o VII (e último) Congresso


Mundial da Internacional Comunista, os comunistas tiveram que processar uma
dura derrota. Ironicamente, na Alemanha, onde se esperava, desde Lenin, a
continuação da Revolução de Outubro, o Partido Comunista fracassou
catastroficamente. Os nazistas tinham varrido os últimos resquícios da
democracia da República de Weimar e esmagado o movimento operário. À parte
um par de grupúsculos ilegais isolados da população, os “partidários de
Thälmann”, que até pouco antes não se deixavam calar, não mais existiam. 1 . O
pior de tudo foi que os nazistas tinham alcançado tudo isso com forte aprovação
da “classe operária e do povo” e que seu apoio cresceu inexoravelmente nesses
dois objetos de adoração dos comunistas.
No entanto, a Internacional Comunista não podia saltar sua própria
sombra diante desse desastre e colocar em questão o princípio do sujeito
revolucionário. Com a “fórmula” de Dimitrov, posteriormente designado seu
novo Secretário Geral, o fascismo foi definido como “a ditadura aberta e terrorista
dos elementos mais reacionários, chauvinistas e imperialistas do capital
financeiro”, salvando assim a sua fé na classe operária, que, supostamente, não
teria a ver com isso. Contra toda a experiência empírica, insistiu-se na “linha de
classe” – já que a grande maioria dos alemães não via o regime nacional-socialista
como uma “ditadura terrorista”, e sim como a realização de suas próprias
aspirações. Isso já não era uma análise rigorosa dos acontecimentos, e sim um
impulso à preservação dos acalentados dogmas que ofereciam respostas fáceis a
questões complexas.

1 Referência a Ernt Thälmann, dirigente do Partido Comunista Alemão (KPD) durante a


maior parte da República de Weimar. Preso pela Gestapo em 1933, foi mantido em
prisão solitária até 1944, quando foi enviado para o campo de concentração de
Buchenwald, a mando de Hitler. (N. E.)
[-] www.sinaldemenos.org Ano 9, n°12, vol. 2, 2018 79

No entanto, deve-se ser indulgente com as pessoas que, em 1935, não


podiam suspeitar que nos dez anos seguintes o impensável ocorreria. Também
era desculpável do ponto de vista histórico que naquele tempo se falasse do
“fascismo”, sem maiores distinções, quando se pensava no nacional-socialismo –
o mais antigo objeto de estudo era o Estado de Mussolini na Itália; a guerra de
aniquilação e a Shoa ainda não haviam se tornado realidade. No entanto, quem
ainda hoje se aferra à “fórmula” Dimitrov já não encontra qualquer circunstância
atenuante. Dois terços dos alemães ainda não são imunes ao desejo de que “um
forte partido único encarne a vontade do conjunto da comunidade” (Universidade
de Leipzig 2013).
É verdade que o fascismo tem relação estreita com o capitalismo, mas de
uma maneira diferente do que imaginam os teóricos da conspiração. A
possibilidade do fascismo como um movimento de massas transversal às classes
sociais se funda no fato de que o capitalismo não é uma dicotomia do tipo: “em
cima está o capital, embaixo estamos nós”, mas uma relação social que também
atravessa os próprios sujeitos. O sujeito que se submete à coerção da valorização
nega permanentemente a liberdade e a felicidade a si mesmo, e quem insinua não
fazê-lo é visto com desconfiança e pode mesmo se tornar objeto de ódio mortal.
Ele é misógino, homofóbico, racista e despreza o indivíduo e a sociedade. Ele
deseja ardentemente a comunidade e os líderes. Ele não quer mais da liberdade
que possui na democracia burguesa, e sim menos liberdade. A comunidade
imaginária dos bons e honestos clama pela exclusão daqueles que “não fazem
parte dela” e delira em sonhos de violência. Na revolta conformista do
antissemitismo, ela se realiza. Aflora nos sujeitos capitalistas o desejo de
extermínio dos imaginados vilões que seriam responsáveis por todas as
humilhações e insultos. Quanto mais o mundo abalado pelas crises for
incompreensível, quanto mais ele parece ameaçador, tanto mais se rompe a
constituição de base dos sujeitos também no nível da política real.
Há muito tempo que esses critérios já não são preenchidos apenas pelos
nazistas. Um mero olhar sobre os bandos de terror jihadistas e seus círculos de
apoio mostra impressionantes similaridades: desprezo dos indivíduos,
autossacrifício em face da comunidade, culto à “honra”, afinidade com a morte,
recrutamento de gangues de delinquentes embrutecidos. Integrantes do “Estado
Islâmico” avançam com facões contra os membros da etnia Yazidi. O mesmo
[-] www.sinaldemenos.org Ano 9, n°12, vol. 2, 2018 80

acontece nas estradas alemãs: “nós os matamos no Iraque, nós os matamos aqui
também!” – vociferava-se abertamente contra os Yazidis em Herford. Nos
comícios de massa dos simpatizantes do Hamas se exige “morte aos judeus!” E a
polícia os libera quando estão sem alto-falantes, como ocorreu em Frankfurt.
Pode um movimento antifascista silenciar diante de tudo isso? O problema não
pode mais ser resolvido apenas com debates teóricos. Antifascismo significa
liberdade e proteção para minorias e indivíduos, seja contra a repressão estatal,
seja contra “o povo”. E turba continua sendo turba, pouco importa se tem avós da
Suábia ou da Anatólia. Um movimento antifascista que leve a sério suas próprias
exigências também deve incluir os jihadistas.
É notável que precisamente as pessoas que inflacionam o uso do conceito
de fascismo e que rapidamente chamam de fascista tudo que não podem tolerar
– às vezes a polícia, às vezes os Estados Unidos e, é claro, sempre Israel –, nem
em sonhos pensam em denominar desse modo os salafistas, o Estados Islâmico
ou o Hamas. Todavia, tanto sua ideologia como sua prática bárbara falam por si.
Liberdade e direitos democráticos, autodeterminação sexual, liberdade das
mulheres, luta contra a homofobia? A esquerda deve estar obrigatoriamente
comprometida com todos esses objetivos. As práticas jihadistas opõe-se
precisamente a elas. É “terrorismo aberto” – para usar as palavras de Dimitrov.
Atribuir um caráter fascista ao “Islã” seria também recair no fascismo: essa
é uma das estúpidas desculpas da esquerda reacionária, que fica assim contra a
parede. Como se o a crítica do fascismo clerical cristão tivesse sido tratada dessa
forma alguma vez. No entanto, quem pensa que fascismo tem a ver com as
intenções dos poderosos super-ricos, deveria, conforme sua própria lógica, lidar
com os dirigentes do Irã ou do “Estado Islâmico” e seus enormes meios
financeiros. Nem uma palavra, porém. A razão de a esquerda reacionária tratar
os jihadistas com tantos cuidados reside no considerável cruzamento de suas
visões de mundo: desprezo pelas liberdades democrático-burguesas,
anticapitalismo personificado, ressentimento antiocidental, ódio ao Estado
judaico, fantasias conspiratórias ao invés de análise crítica. Desde que o
stalinismo perseguiu sionistas reais ou imaginários, a ideia de que antifascistas
não podem ser antissemitas pertence ao reino das lendas com as quais a esquerda
reacionária mistura mentiras com sua visão simplória do mundo. E quem se
mostra hoje contra os nazistas e amanhã contra Israel, se comporta como aquele
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povo costeiro que construía o dique no domingo e o demolia novamente na


segunda. Pode-se lutar melhor não apenas contra os nazistas, mas também contra
os jihadistas, quanto menores forem as semelhanças que se tem com eles. No
entanto, para salvar a práxis antifascista das implicações da “fórmula” Dimitrov,
por princípio, e contra seus adeptos, seria preciso, em uma situação onde não
exista qualquer perspectiva de abalar as relações fundamentais, ao menos,
enfrentar as mais reacionárias e mais bárbaras emanações da crise. E que, desse
modo, se lute não apenas por um mínimo de dignidade humana, mas também
por condições mínimas para que algum dia talvez ainda possa haver uma
emancipação bem sucedida. Precisamente hoje, quando o declínio da ordem
burguesa induzido pela crise se estende também em todo o centro e o Estado
democrático de direito está claramente erodindo, enquanto, por outro lado,
nenhuma ação política real de um movimento de superação emancipatório pode
ser minimamente vislumbrada, o que de mais importante uma intervenção
comprometida com uma boa vida para todos pode fazer é colocar o máximo de
pedras no caminho da barbárie desenfreada.
No avanço da crise de valorização, as relações de capital global se
assemelham a uma Hidra – esse monstro da mitologia grega que, logo que perde
uma cabeça, nascem duas novas. Somente Hércules conseguiu cortá-las mais
rápido do que elas podiam nascer. Foi somente após ter eliminado todas as
cabeças da besta que ele pôde ir ao seu centro e dar um fim à cabeça até então
considerada imortal. A Antifa será tanto mais fraca quanto menos cabeças de
dragão dessa Hidra moderna ela for capaz de perceber. Quanto mais ela a mirar
em conjunto, mais indispensável será a sua contribuição para um mundo melhor.

[Fonte: Jungle World Nº 34, 21. August 2014.

Tradução: André Villar Gomez]


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Desgraçadamente moderno
Por que o islamismo não pode ser explicado através da religião

Norbert Trenkle (2015)

Como sempre acontece após um ataque terrorista islâmico, também após


o massacre na redação do Charlie Hebdo e no supermercado judeu em Paris, o
debate público se dá em torno da relação do “Islã” com os referidos
acontecimentos. Ao menos desta vez, os círculos políticos oficiais e os meios de
comunicação de massa colocam a questão com menos agressividade do que em
casos anteriores. Predominou o tom de que a sociedade não se deveria deixar
dividir, e de que a violência terrorista não deveria ser explicada a partir de um
ponto de vista religioso. Mais parece que se está tentando tapar o sol com a
peneira. Pois é bastante claro que os acontecimentos insanos de Paris jogaram
água nos moinhos do fundamentalismo racista e nacionalista em toda a Europa,
que prega com cada vez mais força que o Islã, devido aos seus valores, seria
incompatível com os valores da “civilização ocidental”, e que os muçulmanos,
portanto, nada teriam a buscar aqui.

Contra essa percepção fortemente ancorada no assim chamado “centro” da


sociedade, os apelos à harmonia vindos da política oficial parecem inúteis. Não
apenas porque as posições racistas são em grande medida imunes a argumentos,
mas também no que se refere ao próprio discurso empregado. Quando a política
governamental e grande parte da mídia respondem ao “choque de culturas”,
proclamado abertamente pelos Le Pen, PEGIDA e UKIP, com um chamado ao
“diálogo entre culturas”, elas assumem tacitamente a definição do conflito dos
seus opositores.1 Assim como os soldados da “guerra”, partem do princípio de que
se trata da relação entre diferentes comunidades religiosas e suas
correspondentes culturas. Uns destacam que o islamismo em seu conjunto e o
terror islâmico em especial seriam imputáveis ao Islã, enquanto outros insistem
que isso é uma falsa interpretação de uma religião que, em seu “núcleo

1 Le Pen: líder da extrema-direita francesa (Front Nationale); PEGIDA: movimento de


extrema-direita alemão; UKIP: partido inglês de extrema direita.
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verdadeiro”, é incompatível com a violência e a intolerância. Quem admite essas


referências discursivas, querendo ou não, já caiu na armadilha do culturalismo.2

Um confronto sério com o fenômeno do fundamentalismo islâmico exige


uma mudança de ponto de vista e uma crítica consequente do imaginário
culturalista. Para ir direto ao ponto: querer explicar o islamismo a partir do Islã
faz tanto sentido quanto a tentativa de derivar o nacional-socialismo da Saga dos
Nibelungos ou dos Eddas. Naturalmente, os fanáticos islamistas reivindicam o
Corão e os profetas com insistência provocadora e cansativa, mas na verdade eles
não dão a mínima para discussões e especulações teológicas; para eles, o Islã é o
que eles fazem dele, ou seja, exatamente aquilo que corresponde às suas
necessidades subjetivas identitárias. As narrativas religiosas tradicionais são para
eles nada mais do que cifras e códigos culturais que os ajudam a proteger a sua
precária condição de sujeito. Os islamistas não são tradicionalistas religiosos que
perderam o trem da Modernidade ou que se negaram a nele embarcar. Antes,
trata-se muito mais de indivíduos altamente modernos, talhados pelo
capitalismo, que como tais buscam apoio em um coletivo aparentemente
poderoso, com o qual possam se identificar.

Esse impulso à identificação com um sujeito coletivo não é nada novo. Ele
pertence ao aparato básico do indivíduo moderno, formatado para a sociedade da
mercadoria, e acompanha a história da modernização desde o começo do século
XIX. Isso não pode passar por surpreendente. Pois a imposição de atuar
socialmente como sujeito particular isolado, sempre atento à realização de seus
interesses privados, considerando os demais membros da sociedade, em última
instância, apenas como instrumentos para alcançar esse objetivo, essa imposição
produz a necessidade urgente de uma comunidade imaginária, na qual essa
individualização e instrumentalização mútua é aparentemente superada. Essa
identificação com um “grande sujeito” apazigua, ao mesmo tempo, o sentimento
de impotência diante do próprio contexto social, que confronta o indivíduo como
agregado compulsório coisificado, pois ela oferece a superfície de projeção ideal
para fantasias compensatórias de onipotência. Aqui estão em primeiro lugar, ao
longo da história de desenvolvimento capitalista, os clássicos “grandes sujeitos”
nação, povo e classe, e há bons três séculos, as comunidades religiosas - e de

2 Cf. Lohoff (2006).


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maneira alguma apenas no espaço influenciado pelo islamismo, mas também na


forma do fundamentalismo protestante, das seitas evangélicas na América Latina
e na África, ou do nacionalismo hindu. Em escala social macro as causas dessas
“megatendências globais” estão certamente no declínio das grandes religiões
seculares da era burguesa, em especial o socialismo e o nacionalismo. Pois no
decurso da globalização de crise o Estado é desconstituído como contrapeso
regulador dos imperativos do mercado, ou – como em muitas regiões do então
chamado Terceiro Mundo – simplesmente desintegrado, enquanto ao mesmo
tempo a crença quase religiosa no progresso da era pré e plenamente capitalista
é diariamente desmentida pelas catástrofes ecológicas cada vez mais graves e pela
crescente exclusão social.

Em vista disso, a fuga para fantasias religiosas do além aparecem para


muitos como um caminho viável; mas isso não tem nada a ver com um suposto
retorno às formas tradicionais de religiosidade, mesmo que seja frequentemente
assim interpretado. Antes, trata-se de um fenômeno totalmente moderno, que
podemos caracterizar como “religionismo”, pois ele toma o lugar dos grandes “-
ismos” que determinaram e marcaram a era burguesa.3 Esse caráter
fundamentalmente moderno se destaca também especialmente na relação do
indivíduo com as correspondentes ofertas identitárias. O seu pertencimento a
uma comunidade “religionista” é determinado apenas pelo ato volitivo do
indivíduo – não necessariamente realizado de maneira consciente e racional. É
precisamente nesse ato que o indivíduo atua como sujeito volitivo. Ele não nasceu
em um universo preexistente de valores, crenças e práticas tradicionais e
religiosos, que então, obviamente, assume; antes, ele precisa se decidir a favor ou
contra uma determinada oferta identitária – ou, ainda, recusar essa coerção à
identificação.

Daí vem a pergunta que, tendo em vista o terror islâmico, deve ser
colocada. Ou seja, não o que isso tem a ver “o Islã”, mas por que, dentre todos os
“religionismos” que surgiram e cresceram nas últimas décadas, foi o islamismo
que tomou uma forma especialmente agressiva contra os valores ocidentais e
originou uma corrente terrorista tão forte. Mas essa pergunta só pode ser
respondida quando ela é arrancada do céu das especulações teológicas e trazida

3 Cf. Lohoff (2008).


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de volta ao chão da análise social crítica, considerando mais de perto as condições


sociais e políticas específicas sob as quais o islamismo surgiu e se tornou
influente.

Dessas condições fazem parte essencial o projeto de modernização


capitalista retardatária em grandes regiões do Oriente Próximo e do Oriente
Médio, um projeto que, após a Segunda Guerra Mundial, sob o signo da libertação
nacional, do socialismo e do pan-arabismo gerou grandes esperanças e, ao fim,
com a crise econômica mundial dos anos 70, fracassou. Também em outras
regiões do mundo (sobretudo em grandes partes da África e da América Latina)
esse fracasso deixou um vácuo ideológico e identitário, que em parte foi
preenchido de maneira “religionista” (especialmente na forma de seitas
evangélicas). Nos países islâmicos se desenvolveu uma forma específica de
“religionismo”, que devido à sua reivindicação do universalismo (referência à
Umma global) desenvolveu um alto poder de coesão social, e pôde tomar o lugar
das religiões seculares destituídas do nacionalismo e do socialismo. Com isso
também se relaciona a promessa de uma renovação da condição de Estado
independente, para além das formas decadentes do regime laicista deslegitimado
e das suas demarcações nacionais, uma promessa que se apoiava na base legal de
base supostamente divina da Sharia (que, é claro, pode ser estabelecida de
maneira completamente arbitrária). Essa característica político-universalista
forneceu ao islamismo uma atração, sintetização e potência que faltam aos
religionismos em outras regiões do mundo.4

Ao contrário desses outros “religionismos” o islamismo tinha, acima de


tudo, a grande vantagem ideológica de colocar-se contra “o Ocidente” e assim não
apenas de assegurar a construção da imagem de um inimigo coletivo, mas, além
disso, de herdar o anti-imperialismo do espólio do nacionalismo e do socialismo.
Essa é uma vantagem concorrencial ideológica que as seitas evangélicas na
América Latina e na África, por exemplo, não possuem, não apenas porque elas
foram em grande medida criadas por pregadores dos Estados Unidos e da
Europa, mas porque elas mesmas se definem como parte da assim chamada
“comunidade de valores cristãos”. O islamismo, por outro lado, podia facilmente,
com a sua construção identitária, recorrer à oposição histórica anterior entre

4 Cf. Lewed (2008, 2010).


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“Ocidente” e “Oriente, que teve papel constitutivo na formação do “Ocidente” e


com isso era e é perfeitamente adequado como projeção, uma identidade coletiva
definida como demarcação desse “outro”. Isso é ainda exacerbado pelo fato de
que também no “Ocidente” essa oposição culturalista foi ansiosamente assumida,
em parte para explicar o fracasso da modernização retardatária, que
naturalmente não pode ter nenhuma relação com a lógica interna do glorioso
sistema capitalista mundial, que devido aos seus próprios processos de crise
fundamental torna supérfluas regiões inteiras do globo e suas populações; em
parte existe simplesmente a necessidade ideológica de proteger a própria
identidade coletiva através da imagem de um novo inimigo, após o fim da Guerra
Fria.5 Não por acaso a publicação da paradigmática diatribe de Samuel
Huntington, com o título programático de “Guerra de Civilizações”, veio no
primeiro ano após o colapso do chamado “socialismo real”, que representa um
elo central no processo fracassado da modernização retardatária capitalista (de
fato, também no espaço da ex-União Soviética o religionismo surgiu com força,
tanto na forma islamista quanto na russa-ortodoxa).

Esse antagonismo identitário foi ainda intensificado devido ao fato de que


grandes porções do mundo de influência islâmica foram afetadas com especial
intensidade pela guerra e pela violência, porque estavam e estão no centro de
interesses geoestratégicos. Naturalmente, isso concerne especialmente a
ocorrência de reservas de petróleo, mas durante a Guerra Fria também a luta das
grandes potências por zonas de influência, como na queda do Afeganistão, que foi
oficialmente desintegrado nos moinhos do conflito Leste-Oeste, e na sequência
se tornou um centro de islamismo militante. Aqui se adiciona o conflito Israel-
Palestina, que vai muito além do seu caráter próprio de conflito relativamente
pequeno, territorialmente delimitado, carregando no mundo árabe e na ideologia
anti-imperialista um significado simbólico imenso e se tornando uma projeção
do ressentimento antissemita, herdado pelo islamismo. Precisamente nesse
ponto fica mais uma vez bastante claro que o islamismo não tem relação com o
Islã tradicional, que não conhecia o antissemitismo ou o antijudaísmo: isso indica

5 Cf Trenkle (2008, 2010).


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antes uma importação do “Ocidente esclarecido”, e só pode se estabelecer no


espaço muçulmano no contexto da modernização retardatária capitalista.6

O estado de guerra e guerra civil permanente no Oriente Próximo e no


Oriente Médio, consequência das correspondentes intervenções das grandes
potências, redunda não apenas na extrema desestabilização da região e na
destruição dos requisitos para um desenvolvimento capitalista em alguma
medida coerente e integração no mercado mundial. Assim se prepara o terreno
para a atratividade da promessa de salvação islamista, bem como
simultaneamente para a brutalização de gerações, principalmente homens
jovens, que são socializados em estado de guerra permanente, ora aberta ora
latente, e internalizaram a prontidão à guerra. Finalmente, esse é o contexto para
a criação de figuras heroicas mistificadas, com as quais sobretudo homens jovens
(não apenas das regiões em questão) podiam e podem se identificar. Assim como
Bin Laden foi festejado como um novo Che Guevara, o EI aperfeiçoou a encenação
e a heroicização midiáticas das suas atrocidades. O islamismo militante
conseguiu assim forjar o status de uma cultura de protesto radical, o que lhe
garante enorme popularidade entre apoiadores dispostos ao sacrifício de todo o
mundo.7

Justamente aqui se mostra mais uma vez claramente o caráter plenamente


moderno e de nenhuma forma tradicional-religioso desse movimento. Ele
fornece o material para uma construção identitária delimitadora de pessoas
completamente formatadas pelo capitalismo (sobretudo, mas não
exclusivamente, homens jovens), que frequentemente não possuem nenhuma
relação de tipo familiar ou cultural com o Islã, e através de sua “conversão” se
rebelam de maneira regressiva contra o seu meio. É claro que, apesar do grande
número de “convertidos”, o grosso dos apoiadores islamistas nos países do centro
ainda é constituído por jovens imigrantes do sexo masculino com raízes
familiares no chamado arco de crise islâmico. Não se trata de uma redescoberta
de uma tradição religiosa da qual eles provêm, mas de uma reação à exclusão
social e ao racismo.8 Isso não significa que se trata de marginalizados sem

6 Cf. Holz (2005).


7 Cf. Roy (2005).
8 Em um resumo de um seminário sobre o salafismo diz-se sobre os jovens que se filiam

a essa corrente: “A juventude admira os pregadores salafistas, pois eles não se deixam
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nenhum tipo de oportunidade, que de qualquer maneira não têm nada a perder.
A exclusão funciona de maneira muito mais sutil e é sentida como especialmente
ofensiva por aqueles que possuem os requisitos pessoais para vencer a
concorrência por uma sempre socialmente definida ascensão, mas sempre se
chocam contra limites não diretamente visíveis erguidos pela maioria social, que
exigem grande incômodo para serem superados. Algo semelhante ocorre nos
países do Oriente Próximo e do Oriente Médio, onde com frequência é
exatamente a classe média frustrada que se volta ao islamismo, porque suas
esperanças de ascensão social foram frustradas. Decisivo, portanto, não é se o
indivíduo se encontra em uma situação de “pobreza objetiva”, mas o sentimento
subjetivo de estar com os perdedores ou de ser ameaçado pelo rebaixamento
social. E esse medo, criado permanentemente pelo capitalismo sob as condições
do processo de crise global, é invocado em grande escala.

Exatamente aí repousa o campo comum fundamental dos extremistas


islâmicos e dos seus inimigos militantes do Pegida e da Frente Nacional. A força
motriz em ambos os casos é o impulso regressivo de remover a pressão social
produzida pela crise através da demarcação de um inimigo imaginário.9 Assim, é
completamente enganoso buscar um entendimento “intercultural” ou
“interreligioso”; pois não se trata de um conflito entre diferentes “culturas”, mas
de uma polarização agressiva entre diferentes identidades coletivas regressivas
no interior da sociedade capitalista mundial, um antagonismo que é um momento
da crise global, à medida que leva a um estado de guerra permanente. É também
inútil a esse respeito chamar os valores republicanos e democráticos de liberdade
e igualdade. Esses valores há muito perderam o seu apelo, pois foram esvaziados
também nas democracias ocidentais, através da exclusão social e do racismo, da
economização de todos os momentos da vida e do crescente Estado de controle
disciplinar. É muito mais necessária uma nova orientação emancipatória, que

intimidar pela rejeição explícita que provocam. Pelo contrário: eles defendem
abertamente o seu ponto de vista e não se deixam calar”. O isolamento da geração
anterior tem um papel importante, pois eles se comportam, segundo a percepção dos
jovens, defensivamente em relação a uma situação de marginalização social e de
ascensão social bloqueada. O salafismo oferece aqui novamente a possibilidade de
passar à ofensiva, de conquistar poder de influência, e com isso superar
regressivamente o sentimento de impotência. Cf. Alevitische Gemeinde (2013).
9 Cf. Bierwirth (2005)
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aponte para a superação da lógica capitalista e da sua subjetividade cada vez mais
enlouquecida.

Bibliografia

Alevitische Gemeinde Deutschland e.V. (2013): Salafismus in Deutschland, Köln


2013.
Julian Bierwirth (2005): Irrationalismus und Verschwörungswahn.
Klaus Holz (2005): Die Gegenwart des Antisemitismus, Hamburg 2005.
Karl-Heinz Lewed (2010), “Erweckungserlebnis als letzter Schrei”, Krisis 33,
2010.
Karl-Heinz Lewed (2008), “Finale des Universalismus”, Krisis 32, 2008. (Cf. “O
grandioso final do universalimo”, nesta edição de Sinal de Menos).
Ernst Lohoff (2008): “Die Exhumierung Gottes”, Krisis 32, 2008.
Ernst Lohoff (2006): “Gott kriegt die Krise” (Cf. “Deus acolhe a crise”, nesta
edição de Sinal de Menos).
Olivier Roy (2005): “Wiedergeboren, um zu töten. Der terroristische Islamismus
ist keine traditionelle, sondern eine höchst moderne Glaubensrichtung. Sie
wurzelt in Europa”, in: Die Zeit, 21. Juli 2005.
Norbert Trenkle (2010): Feuer und Flamme für Demokratie und Aufklärung.
Thesen zum Fundamentalismus der ,westlichen Werte‛ in: Zeiten ihres Zerfalls.
Norbert Trenkle: “Kulturkampf der Aufklärung”, Krisis 32, 2008.

[Traduzido por Daniel Cunha


Original: Gottverdammt modern: warum der Islamismus nicht aus der Religion
erklärt werden kann. http://www.krisis.org/2015/gottverdammt-modern/ ]
[-] www.sinaldemenos.org Ano 9, n°12, vol. 2, 2018 90

As origens do Estado Islâmico no Iraque


Colapso social e guerra civil no Jardim do Éden

Maurilio Lima Botelho

O Estado Islâmico do Iraque e da Síria (ISIS) ou simplesmente Estado


Islâmico (EI) é o resultado de um longo e amplo processo de rejeição islâmica à
modernização ocidental. Esse repúdio às práticas, costumes, instituições e
símbolos da sociedade ocidental vem desde os primeiros contatos mais
sistemáticos com o Estado moderno (século XVIII), foi se aprofundando no pós-
guerra e se radicalizou exatamente no momento em que a modernização
capitalista se esgotou. Imposta externamente ou trilhada internamente
(principalmente pelo nacionalismo árabe do pós-Guerra), a modernização levou
ao acirramento dos conflitos nas quatro últimas décadas no Oriente Médio, o que
combinou experiências diversas (a revolução iraniana, o jihadismo no
Afeganistão) com a “resistência” ao regime de Saddam e às intervenções norte-
americanas. O processo de crise da modernização é o contexto geral de
surgimento de grupos “radicais” que, apesar de se afirmarem contra o “Ocidente”,
são crias evidentes do seu desmantelamento social.
O Estado Islâmico é um exemplo particular entre grupos fundamentalistas
islâmicos que abraçaram a luta contra os infiéis do Ocidente, seus aliados entre
os árabes e aqueles que não seguem as leis islâmicas com fidelidade (apóstatas).
Mas a sua trajetória demonstra um “refinamento” das táticas e estratégias
jihadistas que se devem às condições específicas de um Iraque que sofreu com um
duro bloqueio econômico (nos anos de 1990) e quase uma década de intervenção
externa (2000). Além da herança anterior do conflito Irã-Iraque (década de
1980), o embrião do Estado Islâmico adquire suas feições, no início do século
XXI, num cotidiano de aprofundamento da miséria, penúria material, terror
oficial dos governos e guerra civil aberta.
Essas são as determinações imediatas de formação do ISIS, mas seria
preciso considerar também aquele contexto mais amplo, isto é, a condição de
crise econômica mundial, principalmente os seus efeitos sobre as periferias de
cidades asiáticas e europeias, onde muitos imigrantes ou descendentes de
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muçulmanos enfrentam dificuldades cotidianas crescentes. A jihad do Califado


se alimenta tanto em termos ideológicos quanto em “material humano” (soldados
para suas fileiras) da discriminação, exploração e exclusão social dessas
periferias. O Estado Islâmico é a demonstração da falência geral do processo de
modernização capitalista, que se manifesta de modo claro na falta de esperança
atual nos guetos e favelas dessas cidades, no engajamento de seus jovens numa
luta suicida e na completa carência de solução para os conflitos iniciados pela
tentativa de levar essa modernização às terras do Levante.
O objetivo a seguir não é aprofundar em todas essas dimensões do
terrorismo e fundamentalismo islâmico, o que demandaria um grande esforço de
apresentação histórica e reflexão teórica, mas simplesmente enfatizar as
particularidades de criação do Estado Islâmico no contexto da crise no Iraque,
fazendo sempre que necessário conexões com os aspectos mais amplos que
determinam a sua atuação enquanto grupo jihadista. Com esse foco evitamos
tratar da complexidade da guerra civil na Síria, o que demanda uma análise
específica, e limitamos a abordagem histórica ao ponto culminante da fundação
do Califado pelo ISIS, sem considerar a guinada militar com a intervenção russa
naquela região.

O Iraque antes da queda de Saddam

O Iraque resultou da independência conquistada após a Primeira Guerra


Mundial, quando o Império Britânico, em conflito com o Império Turco-
Otomano, ocupou a Mesopotâmia e instalou aí um governo simbólico. Como
quase todos os demais países do Oriente Médio, teve suas fronteiras estabelecidas
artificialmente pelo Acordo Sykes-Picot (1916). Mesmo após as lutas pela
independência, o reinado estabelecido pelos ingleses ainda estava submetido à
sua influência, o que manteve a situação política do país instável até a deposição
da monarquia por nacionalistas. Durante a Segunda Guerra Mundial, os ingleses
ocuparam o país devido a uma inclinação nacionalista para a Alemanha e
reconduziu a monarquia ao poder. Aos poucos, a influência inglesa foi substituída
pela norte-americana no contexto de Guerra Fria e em função dos interesses na
produção de petróleo pelas grandes corporações do setor.
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O movimento nacionalista se fortaleceu e, em 1958, o país se transformou


numa república graças ao golpe liderado por Abd al-Karim Qasim, que constituiu
uma junta soberana que incluía um líder sunita, um líder xiita e um líder curdo.
Inspirado no nacionalismo árabe de Nasser, do Egito, Qasim tornou-se chefe de
governo mas deu início a uma guinada que o aproximou de países comunistas,
fomentou a indústria e iniciou a reforma agrária no país. O resultado da
independência política e econômica do Iraque sob Qasim foi um isolamento tanto
em relação ao pan-arabismo – rejeitava participar de qualquer tipo de federação
– quanto em relação aos países ocidentais. Quando o Reino Unido permitiu a
independência do Kuwait, em 1961, o governo de Qasim exigiu a anexação do seu
território em virtude da unidade histórica e importância geopolítica. O Kuwait
era parte da província de Basra durante o Império Otomano e o núcleo dessa
região possui a terceira cidade iraquiana mais importante, principal centro da
região produtora de petróleo e maior porto do país – que ficou então espremido
pelo território do Kuwait na pequena faixa litorânea que possui o Iraque. A
reinvindicação por parte de Qasim quase levou à guerra com o Reino Unido, que
deslocou tropas para garantir a independência kuwaitiana. A instabilidade
política se ampliou, o conselho das etnias tornou-se meramente figurativo e os
curdos também iniciaram uma guerra pela autonomia de seu território. O
resultado foi uma sucessão de tentativas de golpe contra Qasim: um deles,
fracassado, liderado por Saddam Hussein, um jovem militar nacionalista que teve
que se exilar.
Finalmente, em 1963, um golpe com apoio do Partido Baath, e até mesmo
dos EUA, retira Qasim do poder, mas o novo governo logo afasta os baathistas
(Saddam, que retornava ao país foi preso). Secretário do Partido Baath, Saddam
organizou um novo golpe com Ahmad Hassan al-Bakr, que tomou o poder em
1968. Transformado em vice-presidente e presidente do Conselho de Comando
Revolucionário, o jovem Saddam assumiu cada vez mais poderes até se tornar
General (1976) e o principal eixo de estabilidade do regime, pois construiu um
aparato repressivo, mas tentava também conciliar diversos setores em
permanente tensão (nômades e camponeses, líderes tribais e o comércio urbano,
nacionalistas e comunistas). O forte crescimento econômico iraquiano permitiu
a ampliação do poder de Saddam, que liderava o esforço de modernização do país
e deu estabilidade ao governo. Com a nacionalização do petróleo, no início da
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década de 1970, o país passou a investir pesadamente numa acelerada


industrialização, distribuiu terras, ampliou escolas e universidades públicas, deu
oportunidade às mulheres no mercado de trabalho e criou o mais amplo sistema
de saúde pública do Oriente Médio (então premiado pela ONU). Em 1979,
Saddam tornou-se formalmente o que já era de fato – o líder maior do país, graças
ao afastamento do presidente al-Bakr, que estava envolvido numa tentativa de
unificação do país com a Síria (também liderado pelo partido Baath, sob o
governo de Hafez al-Assad). Os interesses nacionais da cúpula econômica e forças
armadas (que eram inseparáveis) agora se sobrepunham ao pan-arabismo. A
artificialidade das fronteiras estabelecidas com o fim do Império Otomano não
era mais questionada – a não ser diante de Estados vizinhos.
A postura de independência do Iraque sob o poder de Saddam Hussein
parecia nítida a todo o mundo: engajava-se no movimento dos países não-
alinhados, fazia acordos com países comunistas, criava cooperativas de
produtores inspiradas na Iugoslávia mas também dialogava com os países
ocidentais para não sucumbir à influência soviética. Se aos olhos dos líderes
religiosos a modernização de hábitos, a escolarização generalizada e as liberdades
femininas já eram intoleráveis, uma ligação mais íntima com os “ateus
comunistas” seria um erro que colocaria em jogo o poder de Saddam. O apoio
soviético ao governo do Afeganistão, em 1979, o demonstraria: o islamismo
radicalizado sob influência do wahabismo saudita e das doutrinas de Sayyid Qutb
anunciava que o comunismo era o mal principal a ser combatido, assim como os
líderes árabes cujos governos reproduziam os valores laicos e hábitos seculares
dos países ocidentais. Os grupos radicais islâmicos passariam a mirar seu ódio e
sua luta contra a intervenção soviética no Afeganistão, mas não deixavam de
denunciar os líderes árabes como responsáveis pela crise do Islã, por isso
confrontavam os “imperialistas estrangeiros e modernistas domésticos”.1
É evidente que essa independência por parte do Iraque saddamista
desagradava aos interesses externos – tentativas de golpes palacianos, apoiados
por serviços de inteligência ocidentais, foram sufocados —, mas se tornou algo
aceitável para o Ocidente frente ao conflito em escalada crescente no Afeganistão
e, principalmente, depois da revolução iraniana em 1979. O caráter laico

1 Bernard Lewis. A crise do Islã: Guerra Santa e Terror Profano. Rio de Janeiro: Zahar,
2004, p. 13.
[-] www.sinaldemenos.org Ano 9, n°12, vol. 2, 2018 94

assumido pela sociedade iraquiana com Saddam se tornava um ponto de apoio


numa região onde os movimentos religiosos começavam a se radicalizar contra a
influência ocidental.

É verdade que as doutrinas religiosas eram até então utilizadas de modo


instrumental por forças estrangeiras e líderes árabes para desestabilizar seus
adversários na região. Mas com a revolução iraniana, o Islã fundamentalista
tornou-se um exemplo vitorioso de conquista do poder, doutrina sistemática que
reconstituía as instituições e força de arregimentação contra o Ocidente. Tudo
isso, evidentemente, num processo de expropriação de empresas estrangeiras e
transformação da economia iraniana num capitalismo de Estado sob invólucro
islâmico. No Irã, as concepções islâmicas se debateram com um governo pró-
ocidental extremamente corrupto e repressivo e foram alimentadas pelo ímpeto
revolucionário que se radicalizou com a doutrina de Sayyid Qutb e sua defesa da
sharia como fundamento do Estado. Embora pregasse o retorno ao Califado
original, isto é, a uma sociedade onde não há separação entre Estado e Islã – no
islamismo tradicional sequer existe a concepção de uma estrutura religiosa
formal apartada do Estado, pois ela própria é o Poder —, o Irã na verdade
implementou um processo de organização burocrática fundado na religião.
Mesmo xiita, o governo revolucionário do Irã se tornou exemplo para a maioria
sunita do Oriente Médio: se até eles tinham conquistado o Poder, como os
verdadeiros seguidores de Alá não poderiam fazer o mesmo?
A partir daí o Iraque passa a desempenhar um papel fundamental para o
Ocidente. Uma nação construída sobre uma grande divisão interna entre xiitas e
sunitas tornava-se importante para o controle ocidental da região diante da
ameaça fundamentalista. Por isso um país foi lançado contra o outro.
Mas a guerra entre Irã e Iraque (1980-1988) não pode ser apenas explicada
apenas pelos interesses externos. As tensões entre os dois países já se
acumulavam de longa data. O Iraque era dominado por um governo
predominantemente sunita, por isso a dissidência xiita — a maioria da população
iraquiana — era estimulada por Teerã. Também os iranianos incentivaram e
apoiaram a revolta no território curdo — em 1975, o governo de Saddam entrou
em acordo com o Irã na cessão de áreas de fronteira em troca da renúncia do
apoio aos rebeldes curdos. Por fim, assim que o aiatolá Khomeini se tornou a
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grande força religiosa do Oriente Médio, muitos de seus discursos se dirigiam


contra o regime apóstata baathista.
Essas tensões passaram a ser sistematicamente exploradas pelos países
ocidentais, pelos principais governos árabes e até mesmo por uma União
Soviética que tentou manter uma aparência de neutralidade durante o conflito. O
apoio norte-americano ao Iraque foi sem dúvida o mais declarado e evidente, com
o engajamento de membros do governo Reagan na assessoria direta a Saddam,
fornecimento de armas e empréstimos legais e ilegais por parte de governo e
empresas.

A Guerra Irã-Iraque tornou-se o conflito convencional entre duas nações


mais longo de todo o século XX. De natureza complexa, a guerra demonstrou os
problemáticos conflitos envolvendo o islamismo radical e as lutas internas entre
frações muçulmanas, as tensões relativas à Guerra Fria em seus últimos dias e os
efeitos transformadores da modernização de antigas sociedades agrárias e
comunidades tradicionais no Oriente Médio. O conflito podia ser visto como o
resultado da tensão promovida pela secularização de sociedades islâmicas que
possuíam hábitos enraizados, cujo poder religioso estava em declínio há muito
tempo, mas que sempre esteve vivo nas comunidades rurais, tribos do desertos e
aldeias de pescadores do Golfo. O Irã representava a ressurgência desse poder,
contraditoriamente reforçado pelas estruturas do Estado moderno.
O conflito entre Bagdá e Teerã hoje parece uma nota histórica esquecida
depois de tantos eventos dramáticos que lhe sucederam, mas deve ser visto como
o momento agudo da deflagração interna do Islã e, portanto, como o evento que
tornou possível a total radicalização de grupos jihadistas que culminariam no
Estado Islâmico. Além disso, a guerra pode ser uma síntese das atrocidades e
barbáries do século XX.
Foram anos a fio de luta sangrenta nas principais regiões da fronteira entre
os dois países, com drama maior em cidades do Iraque, já que os iranianos
tiveram muito mais força no cabo-de-guerra militar e forçaram o front para
dentro do território iraquiano. Além disso, muitas cidades mais afastadas do
campo de guerra foram alvo de constantes ataques de mísseis, principalmente as
iranianas, sob alvo dos Scud, de fabricação soviética, e Exocet, de fabricação
francesa. A rede de financiamento ao Iraque no conflito foi realmente
impressionante, pois envolvia notórios inimigos. Muitos países europeus
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declararam apoio e forneceram recursos ao Iraque, como Itália, França,


Alemanha e Reino Unido. Governos árabes fizeram empréstimos ou doações de
bilhões de dólares e até mesmo a Líbia fornecia armamentos ao governo de
Saddam, reconhecendo o perigo que representava a revolução iraniana.
A guerra foi um grande negócio no Oriente Médio pois o sistema
financeiro, estabelecido pelos petrodólares, alimentava os países em guerra,
assim como estimulava a indústria bélica e gerava empregos: enquanto os
iraquianos estavam no front, calcula-se que 4 milhões de árabes de países
vizinhos foram trabalhar no Iraque em sua substituição.2 Os Estados Unidos
despejaram recursos financeiros para compra de armas, forneceu material bélico
(aeronaves, misseis e equipamentos de inteligência) e apoio direto ao patrulhar
as águas do Golfo Pérsico e atacar embarcações que comercializavam com o Irã.
Contudo, o significativo nessa rede de apoio foi que o próprio Estados Unidos
venderam equipamento militar ao governo de Teerã, num esquema que foi
denunciado no congresso norte-americano como Irã-Contras (o serviço de
inteligência dos EUA vendia armas ao Irã e com esse recurso financiava os
paramilitares anticomunistas na Nicarágua). A União Soviética também se
destacou por ter fornecido equipamentos aos dois lados, principalmente nos
primeiros anos do conflito, quando manteve uma aparência de neutralidade.
Entretanto, orientou seu apoio direto ao Iraque quando a ofensiva iraniana
mostrou-se mais forte em meados dos anos 80 – já sentindo a força do islamismo
radical contra os jihadistas no Afeganistão, o receio era de que este se espalhasse
pelas republicas soviéticas de maioria muçulmana.
Contudo, o mais assustador foi o nível de conflagração entre as tropas
inimigas e que deixou sequelas permanentes nos dois países. Quando os militares
iranianos começaram a adentrar território iraquiano, campos de petróleo foram
queimados em retirada (tática empregada posteriormente contra os EUA nas
duas guerras do Golfo), para diminuir visibilidade dos ataques (principalmente
aéreos) e óleo foi despejado nos rios fronteiriços para incendiar as embarcações.
Os pântanos ao sul de Amarah — cidade iraquiana que é atravessada pelo rio
Trigres e fica a cerca de 500 km da fronteira com o Irã — foram inundados por
gasolina de grandes caminhões-tanque. As tropas iranianas que se deslocavam

2 Jon Lee Anderson, A queda de Bagdá. Rio de Janeiro: Objetiva, 2004, p. 58.
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por ali foram surpreendidas pelo incêndio. Um general iraquiano ainda ordenou
que seus soldados afundassem os cabos dos geradores de uma usina hidrelétrica
da região nas águas do pântano, eletrocutando toda a vida em centenas de
quilômetros quadrados.3
A estratégia iraquiana era a de acumular vitórias por meio de terra arrasada. A
pequena cidade de Howeyzah, na província do Khuzistão iraniano, a cerca de 250
km da fronteira, foi tomada pelos iraquianos logo no início da guerra, em
setembro de 1980. Quando a ofensiva iraniana retomou a cidade, em maio de
1982, descobriu que dos 1900 edifícios que haviam na cidade só restavam dois
em pé, todo o resto estava destruído. Sequer a diferença étnica poderia explicar o
ódio: a destruição teve por alvo uma cidade de maioria árabe, com cerca de 35 mil
habitantes.
A conflagração assumia tons mais dramáticos porque muitos dos soldados
iraquianos eram xiitas lutando contra o exército xiita iraniano. A retomada das
cidades ocupadas pelos iranianos deixou muitas baixas entre iraquianos e o
transporte dos soldados caídos em guerra se tornou um problema para o governo:
em 1985, o governo iraquiano obrigou a todo taxista do país a buscar cadáveres
nas áreas militares e levá-los até Fallujah, onde galpões refrigerados mantinham
os corpos até a entrega aos parentes. Se não fizessem o transporte de um cadáver
pelos menos, os taxistas perdiam a licença.4
A guerra se tornou ainda mais grave quando o Iraque começou a fazer uso
sistemático de armas químicas. Inicialmente lançadas contra os soldados
iranianos na frente de batalha, as bombas logo começaram a ser utilizadas contra
a insurreição curda que se aproveitava da instabilidade provocada pela guerra
para conquistar a independência.5 Também houve relatos de ogivas com armas
químicas que foram lançadas nos centros urbanos iranianos pelos aviões

3 Robert Fisk. A grande guerra pela civilização: a conquista do Oriente Médio. São
Paulo: Editora Planeta, p. 301.
4 Ibidem, p. 396.
5 “Durante a chamada Operação Anfal, na segunda metade da década de 1980, o governo

iraquiano cometeu genocídio contra curdos, yazidis e assírios iraquianos no Curdistão.


Essa não era uma novidade na história iraquiana. Em 1933, durante o regime do rei
Faissal, o exército do país, num processo de consolidação estatal iraquiana, já havia
promovido um genocídio contra os assírios. O império britânico impediu que a Liga das
Nações levasse à frente qualquer investigação com o argumento de que isso poderia
gerar instabilidade no regime e provocar o ódio à influência estrangeira na região”.
(Ibidem, 469-470).
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iraquianos. Jornalistas descreviam campos de batalha onde intermináveis fileiras


de soldados estavam mortos sem nenhum ferimento: haviam sido asfixiados por
seu próprio sangue e saliva, numa combinação de gás paralisante com gás
mostarda.6 O uso desse tipo de arma provocou uma estagnação no conflito: o
poderio bélico e o maior número de soldados iranianos, que fez a balança pender
para Teerã, foram compensados pelo uso indiscriminado das armas químicas por
parte do Iraque.
Foi a posse de armas químicas que serviu de justificativa para a
intervenção norte-americana na Segunda Guerra do Golfo e a deposição de
Saddam Hussein. Contudo, o que raramente foi discutido pelos principais meios
de comunicação é que o receio ocidental em relação aos estoques de armas
químicas iraquianos se devia a um fato muito óbvio: foram os próprios norte-
americanos que as venderam ao governo de Bagdá. Na falta de comprovação
posterior para a existência desses estoques (provavelmente gastos na guerra
contra o Irã e depois na repressão aos curdos), os yankees poderiam ter
apresentado a nota fiscal.
Quando as imagens de iranianos contaminados surgiram na imprensa
internacional, uma comissão do Senado dos EUA se formou, em 1994, para
investigar o uso dessas armas proibidas em convenções internacionais. Descobriu
que o governo americano fornecia esse material tanto diretamente, por meios
legais, como por meio de empresas que o vendia como “pesticida”. Foi descoberto
pelo Senado que era fornecido suprimento para a guerra química e para a guerra
bacteriológica.7
Por fim, a guerra ficou equilibrada durante um longo período a ponto de
forçar um acordo de cessar fogo. Embora a força do Irã estivesse evidente no
desenrolar da guerra, a economia dos dois países forçava o fim dos combates. Em

6 Ibidem, 304.
7 “O relatório do comitê informava o Congresso dos Estados Unidos sobre os envios de
agentes biológicos que companhias norte-americanas faziam ao Iraque desde 1985 ou
antes, aprovados pelo governo. Esses envios incluíam Bacillus antracis – bactéria
causadora do antraz —, Clostridium botulinum, Histoplasma capsulatum, Brucella
melitensis, Clostridium perfringens e Escherichia coli (E. coli). O mesmo relatório
afirmava que ‘os Estados Unidos forneceram ao governo do Iraque material de ‘duplo
uso’ com suas licenças correspondentes, que ajudaram no desenvolvimento dos
programas químicos, biológicos e de sistema de mísseis, inclusive bases de produção
de agentes químicos para a guerra bacteriológica e projetos técnicos (fornecidos sob o
rótulo de projeto para a instalação de uma base de produção de pesticidas),
equipamento para a guerra bacteriológica” (Ibidem, 305).
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1988, os dois assinaram uma resolução da ONU que colocava um fim no conflito:
“Pobre de mim que continuo vivo”, teria dito o aiatolá Khomeini, diante da
pressão econômica para pôr um fim à guerra, “bebi do cálice envenenado da
resolução”.8
A fala de Khomeini foi premonitória, pois pouco menos de um ano depois
sua vida terminava e um imenso funeral tomou conta do país, mostrando a força
do islã fundamentalista e a vitória da revolução iraniana: a guerra serviu ainda
mais para consolidar o regime, pois tinha unificado o país em torno da defesa da
Pátria do Islã.9 A guerra Irã-Iraque seria a primeira demonstração que as táticas
dos países ocidentais contra o islamismo radicalizado acabariam por fortalecê-lo.
O Iraque de Saddam Hussein, com cidades fronteiriças devastadas,
endividado e com o peso de uma guerra que não havia resultado em nada, realizou
pouco tempo depois uma manobra miliar ocupando o Kuwait, tentando com isso
canalizar os problemas internos para um conflito externo. Os motivos variados
para justificar a invasão, desde à íntima ligação histórica entre os dois países
durante o Império Turco-Otomano, passando pela geopolítica (maior área para
acesso ao mar) e pelos conflitos econômicos no interior da OPEP (o Iraque
acusava o Kuwait de ultrapassar as cotas de exportação da organização e assim
afetar o preço do petróleo no mercado mundial) somou-se à dívida contraída com
aquele país, um dos seus principais financiadores durante a guerra Irã-Iraque.
A resposta dos EUA, com apoio inglês e legitimada pelas Nações Unidas, é
imediata: menos de cinco meses depois da anexação do Kuwait pelo governo de
Bagdá, os EUA dão início à operação Tempestade no Deserto (1991): os
bombardeios do território iraquiano com mísseis Tomahawk ganham a imprensa
internacional e uma campanha por terra começa a empurrar a força iraquiana de
volta a seu território. As forças norte-americanas, baseadas na Arábia Saudita,
rapidamente começaram a reverter a ocupação iraquiana, mas o regime de
Saddam respondeu com um tática de tentar estender o conflito, lançando misseis
Scud contra alvos em território saudita e israelense. O discurso do regime de

8 Ibidem, p. 389.
9 Durante o conflito, parte da classe média, que era então o grupo interno mais
ocidentalizado, fugiu do recrutamento e antigas figuras do governo, derrubadas pela
revolução, tinham se posicionado contra. Recaiu sobre esses grupos a pecha de
traidores da Pátria Islâmica, o que fortaleceu ainda mais o projeto revolucionário dos
aiatolás.
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Saddam Hussein apontava para o poder sionista crescente no Oriente Médio, com
apoio dos EUA, apelando então para o argumento antissemita, comum na região
desde a formação do Estado de Israel e a repressão aos palestinos. Também
utilizou pela primeira vez de modo sistemático o discurso islâmico takfirista
contra o poder saudita, argumentando sobre o caráter apóstata do regime naquele
país e o domínio ilegítimo das cidades sagradas dos muçulmanos.
A estratégia de Saddam foi um fracasso e em poucas semanas um cessar
fogo foi anunciado, logo após a expulsão das tropas iraquianas e de destruição de
bases em parte do seu território. Contudo, a denúncia da traição saudita aos
valores islâmicos seria abraçada logo por grupos jihadistas – em particular a Al-
Qaeda, em formação naquele momento depois da guerra contra os soviéticos no
Afeganistão. A utilização de áreas sagradas do Islã na Arábia Saudita por soldados
norte-americanos seria imperdoável, embora o financiamento saudita de grupos
jihadistas nunca tenha sido eliminado.10
A rápida ação de intervenção norte-americana foi discutida e o legado
posterior extremamente questionado. De um lado, as forças lideradas pelos EUA
tinham receio de uma invasão e destituição de Saddam Hussein, ainda um líder
extremamente popular em seu país e no Oriente Médio.11 Havia também o receio
de, em caso de invasão, fossem utilizadas contra as tropas americanas as armas
químicas e bacteriológicas fornecidas ao país. Por fim, a esperança dos governos
ocidentais foi depositada numa insurreição interna por parte de curdos ou xiitas.
Mas essa aposta foi um fiasco: embora fomentada e financiada pelo Ocidente,
assim como pelo Irã, a rebelião xiita varreu o Iraque nos meses seguintes ao
cessar-fogo — 14 das 18 províncias chegaram a ser controladas pelos rebeldes —,
mas a falta de apoio direto externo acabou favorecendo a resposta do governo,
que massacrou a rebelião e impôs um duro controle sobre os bairros da crença

10 Segundo as leis islâmicas, seguindo determinação de Maomé, na Arábia não são


permitidas duas religiões, o que significa para os mais rigorosos que nenhum
estrangeiro pode pisar as terras santas que compõem atualmente parte da Arábia
Saudita (Bernard Lewis, A crise do Islã, cit., p. 21-23).
11 O príncipe Abdullah, da Arábia Saudita, então vice-presidente durante o reinado de seu

irmão Fahd, se opôs à estreita aliança militar com os Estados Unidos durante a
Primeira Guerra do Golfo e havia indicado que uma negociação do Saddam Hussein
seria melhor para toda a região. Veja sobre isso: Morre Abdullah, o rei que quis
reformar a Arábia Saudita, BBC Brasil, 22 jan. 2015. Disponível em:
http://www.bbc.com/portuguese/noticias/2015/01/150122_rei_arabia_saudita_obit
uario_rb. Acesso abr. 2016.
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majoritária, assim como ampliou ferozmente os aparatos de vigilância e


repressão. A infraestrutura militar iraquiana havia sido erguida com apoio
internacional, agora ela era utilizada integralmente para reprimir uma
insurreição que recebeu um frágil apoio internacional.
Uma síntese de todo esse período que envolve a modernização da
sociedade iraquiana, o conflito com Irã e a rebelião interna pode ser visto no
significativo exemplo dos “iraquianos do pântano”, os tradicionais moradores das
terras alagadiças do sul, área de fronteira com Irã. Xiitas em sua maioria, os
“iraquianos do pântano” ainda eram, na década de 1970, conhecidos como
moradores de palhoças, criadores de búfalos e contrastavam fortemente com os
árabes do deserto. Sofrendo os efeitos da modernização do país, as lideranças
locais perdiam poder, os jovens fugiam para trabalhar em empregos mal
remunerados nas cidades e o preconceito contra seu modo de vida tornava-se
evidente. Com o conflito com o Irã, muitos fugiram para o outro lado da fronteira,
ou foram logo capturados e transformados em prisioneiros de guerra por seus
irmãos de fé. Isso ampliou ainda mais a tensão entre os homens do pântano e a
sociedade iraquiana: em 1991, muitos dos moradores da região de Maysan se
levantaram contra o regime de Saddam, mas foram esmagados. Entretanto, a
resposta não seria apenas prisões e fuzilamentos.

“Em represália, Saddam Hussein drenou os pântanos e dispersou


os habitantes. Mil e seiscentos quilômetros quadrados de
alagadiços foram escoados por um fosso conhecido como canal
da Vitória, de cerca de 3,2 quilômetros de largura e 80 de
comprimento. Saddam negou tratamento médico aos árabes dos
pântanos, bombardeou aldeias, incendiou casas, matou milhares
de líderes tribais e religiosos e encheu de minas aquáticas as
partes alagadas que restaram. Grande parte da província se
transformou em deserto. Mais de 10 mil pessoas ficaram
desabrigadas. Pequenos bolsões de contrabandistas e lutadores
da resistência continuaram a escapar ao controle central, mas os
pântanos jamais voltariam a hospedar muitos dos inimigos de
Saddam. As antigas estruturas sociais tinham sido rompidas e
substituídas pela organização do partido Baath. Tudo começou
em Bagdá, passando pelas mãos da corrupta família do
presidente e seu serviço secreto”.12

12 Rory Stewart, Acidentes de Trabalho: meu governo no Iraque. Rio de Janeiro: Record,
2008, p. 30.
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Essa drástica medida de repressão não deixaria de afetar a imagem do governo


frente ao fundamentalismo religioso: segundo variadas exegeses bíblicas, aceito
por todas as tradições monoteístas, as áreas úmidas destruídas por Saddam
seriam o original lar das primeiras criaturas de Deus. Saddam Hussein teria
destruído o Jardim do Éden.
A situação do Iraque após o primeiro conflito do Golfo é uma calamidade
em progresso: o país sofre com um embargo econômico rigoroso, o que afeta
gravemente a economia nacional, já prejudicada pelas duas guerras. A proibição
de todo comércio externo pela ONU (excluído aquele que se enquadrasse em
“ajuda humanitária”) provocou um colapso na economia iraquiana: com um PIB
de 179 bilhões de dólares em 1990, dois anos depois chegava apenas a 11,5 bilhões
de dólares. Cada vez mais o orçamento do país era utilizado para alimentar a
repressão, manter a unidade diante da ameaça de desintegração territorial e calar
as reinvindicações curdas e xiitas por independência. Também havia um gasto
público em obras faraônicas para manutenção da identidade do regime e
bajulação da figura de Saddam – o regime em declínio fazia uso sistemático do
controle social e culto à liderança.
Embora o Estado tenha erguido uma série de grandes monumentos para a
adoração do líder, mausoléus em homenagem aos mortos na Um al-Marik (Mãe
de Todas as Batalhas, denominação local da primeira Guerra do Golfo), luxuosos
palácios governamentais e perdulárias mesquitas, a situação econômica do país
era extremamente precária. A simulação de normalidade e bonança em alguns
bairros de classe média contrastava fortemente com a pobreza na maioria das
cidades, falta de manutenção de prédios públicos e principalmente nos bairros da
maioria da população. O investimento localizado nos símbolos do poder era parte
da estratégia de controle absoluto do grande líder e contrastava com a situação
das décadas anteriores, em que inclusive amplas reformas urbanas haviam sido
realizadas – como a de Bagdá, nas décadas de 1970 e 1980, quando bairros
inteiros foram reurbanizados ou removidos para a criação de nova infraestrutura
e adequação à arquitetura oficial do regime (estilo “Novo Islâmico”) 13. Agora as
carências começaram a ficar visíveis, tais como acesso à água e saneamento, pois
muitos bairros de Bagdá apresentavam esgoto a céu aberto. Segundo o discurso

13 Jon Lee Anderson, A queda de Bagdá, cit., p. 9


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oficial do Partido Baath, entretanto, o Iraque havia saído vitorioso da batalha


contra os Estados Unidos, pois tinha repelido uma inevitável invasão.
A Guerra entre Irã e Iraque deixou, em pouco menos de uma década, em
torno de um milhão de mortos: cerca de 300 mil iraquianos e 700 mil iranianos.
O bloqueio econômico imposto pelos EUA e legitimado pela ONU depois da
Primeira Guerra do Golfo foi tão mortal quanto a violência direta da armas:
centenas de milhares de crianças morreram de inanição ou tiveram seu
desenvolvimento afetado pela carência alimentar. Embora os números sejam
bastantes discrepantes devido ao uso dessa denúncia por parte do governo
iraquiano, membros da ONU renunciaram depois de apontar a culpa da própria
organização na morte sistemática de crianças.14 A falta de alimentos no país
afetava principalmente os mais jovens, assim como as precárias condições de
saneamento e saúde, além dos problemas educacionais resultantes: a evasão
escolar saltou drasticamente devido à necessidade precoce das crianças
trabalharem para completar a renda familiar. Até mesmo a tentativa da ONU de
flexibilizar as sanções, através de um programa de troca de recursos do petróleo
por ajuda humanitária, se transformou num fiasco — corrupção envolveu o
governo iraquiano, funcionários da ONU (o filho de Kofi Annan foi acusado de
receber recursos) e o Conselho de Segurança, que acabava por tomar parte dos
recursos do programa Petróleo por Comida em nome de uma retratação dos
gastos na guerra de 1991.15
A situação ainda se tornou mais dramática porque uma extensa região de
fronteira, áreas de maioria xiita e territórios curdos, foi declarada zona de
exclusão por parte do acordo de cessar-fogo e passou a ser alvo semanal de
bombardeio dos EUA e Reino Unido. Durante uma década, apesar do fim do
conflito, os EUA continuaram a bombardear partes do território iraquiano com
as justificativas mais variadas (apoio ao terrorismo ou violação das áreas de
exclusão) ou simplesmente sem justificativa alguma, apenas se utilizando de sua

14 UN sanctions rebel resigns, BBC News, 14 fev. 2000. Disponível em:


http://news.bbc.co.uk/2/hi/middle_east/642189.stm. Acesso abr. 2016.
15 The Hostage Nation, The Guardian, 29 nov. 2001. Disponível em:
http://www.theguardian.com/world/2001/nov/29/iraq.comment Acesso abr. 2016.
Entenda o escândalo do programa Petróleo por Comida, BBC Brasil, 07 set. 2005.
Disponível em:
http://www.bbc.com/portuguese/reporterbbc/story/2005/09/050907_entendaocas
oro.shtml. Acesso abr. 2016.
[-] www.sinaldemenos.org Ano 9, n°12, vol. 2, 2018 104

estrutura militar secreta. Em 1998, não satisfeitos com o bombardeio já


sistemático, EUA e Inglaterra resolvem bombardear pontos considerados
estratégicos nas principais cidades iraquianas, sob a alegação de que o país havia
interrompido as inspeções das Nações Unidas sobre as armas de destruição em
massa. A operação ficou conhecida como Raposa do Deserto e piorou ainda mais
as condições de infraestrutura do país, reduzindo a capacidade de geração de
energia e forçando o governo a conter o perigo de uma sublevação através de
repressão. Entre os “alvos estratégicos” estavam palácios de Saddam Hussein,
torres de telecomunicação e a imensa sede em Bagdá do Partido Baath.
Em nome dessa tensão em torno das armas de destruição em massa, a
imprensa internacional, com avançado grau de amnésia, esquecia a sua origem e
sequer revelava que no conflito contra o Iraque também as forças armadas norte-
americanas fizeram uso de material bélico radioativo. O uso de projeteis
radioativos se tornou cada vez mais comum, sendo ampliado até mesmo para as
tropas de intervenção da OTAN.16 Vastas áreas de fronteira iraquianas onde
ocorreram confrontos com as tropas dos EUA passaram a apresentar uma alta
incidência de câncer entre camponeses. Também moradores de cidades
bombardeadas começaram a sentir os efeitos da radiação. A cidade de Basra, um
dos principais teatros da guerra de 1991, foi fortemente afetada pela radiação, já
que no oeste da cidade destroços do material bélico foram largados depois do
conflito. Segundo um médico iraquiano, nem os EUA conseguiriam levar a cabo
o processo de limpeza da área contaminada no local, pois seria necessário
remover parte considerável da superfície em mil quilômetros de extensão. 17 Para
agravar ainda mais a situação, graças à economia colapsada e desemprego
alarmante, os moradores mais pobres dessas cidades tinham por hábito recolher
metais abandonados em antigas zonas de combate para vender em ferro-velho,
ampliando o grau de contaminação para fora das áreas de exclusão.
O cotidiano de devastação militar, elevada repressão estatal e penúria
econômica alastrada geraram um ressentimento mudo e um ódio velado a todo
tipo de poder secular, principalmente entre os grupos étnicos e religiosos
submetidos ao domínio da minoria sunita no controle do Estado. Milhares de
xiitas iraquianos, presos durante o conflito com o Irã, foram libertados ao longo

16 Desejo e reparação, Carta Capital, 25 fev. 2008.


17 Jon Lee Anderson, A queda de Bagdá, cit., p. 26.
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da década de 1990 e retornaram ao Iraque para reencontrar suas famílias. Depois


de uma luta contra seus irmãos de credo, apoiada pelo Ocidente, o que
encontraram foi um país empobrecido, famílias passando necessidades básicas,
reprimidas pela polícia e ainda sob um embargo econômico do ex-aliado. O ódio
a Saddam, às potências ocidentais e aos EUA em particular se ampliou com essa
imensa frustração represada. Milhares de xiitas iraquianos, para fugir da
repressão iraquiana, principalmente do serviço de inteligência (Mukhabarat),
ultrapassaram a fronteira e formaram gigantescas favelas nas periferias das
cidades iranianas. Ali aprenderam a cultivar o ódio, foram doutrinados na sharia
e estabeleceram estreitos contatos com as instituições religiosas iranianas.
Mas o processo também ocorreu com prisioneiros sunitas que foram
libertados pelo Irã na década de 1990. Eles desenvolveram da mesma maneira
um ódio aos EUA, por causa da guerra do Golfo, e por Saddam, já que este havia
cometido erros graves e agora se confrontava com seus amigos antigos. Por outro
lado, eles também mantinham o desprezo pelo regime iraniano, influenciados por
um salafismo radicalizado que foi cultivado com seus companheiros na prisão.18
Na última década do século XX, há um declínio econômico absoluto que
mina a popularidade e a figura de liderança que Saddam tinha conquistado nas
décadas anteriores, assim como o caráter de alternativa secular e nacionalista que
o partido Baath representava no Oriente Médio. Em toda a região, o
fundamentalismo islâmico começa a crescer de modo vertiginoso. Aqui são
diversos os caminhos que se unem, de modo complexo e por vezes conflitantes. O
exemplo de sucesso da revolução iraniana apresenta um dos países mais estáveis
no Oriente Médio, mesmo depois da violenta guerra em que se envolveu. A
vitoriosa campanha dos mujahedins no Afeganistão colocou no poder um grupo
que pretendia varrer de vez os princípios de Estado laico, implantando um regime
baseado na sharia. Em oposição à imagem e exemplo crescente do regime

18“Muitos milhares de prisioneiros iraquianos voltavam a seus lares após dez anos de
fome nos campos de prisioneiros iranianos, e então descobriam que as sanções
apoiadas pelos Estados Unidos depois da guerra de 1991, da qual eles não haviam
“participado”, faziam com que suas famílias morressem de fome. Todo um furioso
exército de antigos prisioneiros cheios de ódio pelo Irã, por Saddam e pelos Estados
Unidos vivia na miséria e na pobreza do Iraque. Entre o barro e a areia, ele e os milhões
de iraquianos que evitavam tanto a prisão quanto a morte haviam aprendido a viver e
a morrer. Haviam aprendido a lutar. Sob a letal imaginação de seu ditador,
continuavam resistindo contra o Irã”. Robert Fisk. A grande guerra pela civilização,
op. cit., p. 393.
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iraniano, o wahabismo se radicaliza em toda a região, patrocinado


principalmente pela família saudita e se opondo principalmente aos xiitas. A Al-
Qaeda, cujas operações começam a ganhar as manchetes da imprensa mundial
nesse momento, é o resultado desse triplo movimento.
Resultado da jornada vitoriosa no Afeganistão – patrocinada pela CIA, não
podemos esquecer —, a Al-Qaeda surgiu do encontro entre Ayman al-Zawahiri,
um médico pediatra egípcio formado pela Irmandade Muçulmana e seguidor das
palavras de Sayyid Qutb, e Osama Bin-Laden, filho de uma família iemenita que,
migrada para a Arábia Saudita, tornou-se o grupo mais rico e poderoso do país
junto com a casa Saud. Os dois se conheceram no Afeganistão seguindo a fatwa
lançada contra o poder soviético. Inspirada nas vertentes mais radicais do
islamismo, as ações da Al-Qaeda serão capilarizadas em várias frentes e com
diversos alvos, desde o poder Ocidental presente no Oriente Médio e em países
muçulmanos da África (ataque a diversas embaixadas e diplomatas), passando
pelos líderes políticos que tinham boas relações com o Ocidente (Hosni Mubarak
e a própria família real saudita) e atingindo os governos seculares do
nacionalismo árabe que enfrentavam dificuldades crescentes. Ao contrário do
que era pregado pela imprensa ocidental como legitimação da invasão norte-
americana no Iraque, Bin-Laden nutria ódio pelo regime de Saddam. A Al-Qaeda,
apesar de todo seu sectarismo sunita, é capaz de se ajustar a determinadas
situações conjunturais e construir táticas flexíveis: assim como instrumentalizou
o apoio norte-americano durante o combate aos soviéticos, as divergências em
relação ao Iraque não a impediriam de mandar mujahedins para o país, nas
vésperas da intervenção americana, ou mesmo se aliar temporariamente com
grupos xiitas. Essa maleabilidade nos meios de atuação seria um dos pontos que
levariam à ruptura futura com o Estado Islâmico.
Diante desse quadro complexo de ascensão do radicalismo, gravíssima
crise interna e com a decadência econômica dos demais países onde o governo
era formado por nacionalistas do Baath, não restou ao regime saddamista senão
erigir um aparato repressivo cada vez mais amplo para se manter no poder e, ao
mesmo tempo, reestabelecer laços com o islamismo para tentar se legitimar. A
repressão se aprofundou no meio da crise, as prisões se encheram de inimigos
políticos, divergentes religiosos, criminosos comuns que tentavam sobreviver em
meio ao caos econômico ou meros suspeitos de traição à Pátria. O culto à
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personalidade de Saddam foi levado ao extremo, assim como a exposição pública


dos inimigos do regime nos meios de comunicação de modo a personalizar as
causas da crise e também causar temor de um destino idêntico. Nas prisões, a
tortura se tornou ainda mais sistemática e o famoso complexo penitenciário de
Abu Ghraib criou sua notória fama de centro de flagelo, ampliando o rol de
martírios e liquidando milhares de inimigos do regime, principalmente os xiitas.
Além do poder crescente da Mukhabarat nesse período – investigando
políticos e militares, desbaratando possíveis ou inventadas conspirações xiitas e
extorquindo os negócios no mercado negro que se ampliou com a crise econômica
—, o governo de Saddam criou em meados da década de 1990 uma força
paramilitar paralela, os Fedayeen. Uma espécie de braço militar do partido
Baath, a formação dos Fedayeen tinha como objetivo o doutrinamento de recrutas
desde a infância numa adoração da liderança pessoal de Saddam, mas também
servia como válvula de escape para a juventude desempregada e cada vez mais
precarizada – calcula-se que nos últimos anos do governo de Saddam, havia entre
30 a 40 mil fedayeens.
Além disso, como parte desse movimento geral de fundamentalismo
crescente no Oriente Médio, Saddam Hussein passou a dar maior voz aos líderes
religiosos e estimular o envolvimento de seus aliados no partido Baath com o
islamismo. Ele seguia uma tendência comum do nacionalismo árabe em crise no
final do século XX: “o Baathismo secular iraquiano tinha o hábito (...) de
acomodar-se com o Islamismo a fim de antecipar-se ao seu potencial
revolucionário”.19 Com isso, o fundamentalismo em ascensão era trazido para o
país, de modo que o regime pudesse opor seus líderes religiosos aos estrangeiros
que pregavam contra o “socialismo infiel baathista”. Mais ainda: as lideranças
religiosas eram trazidas para dentro do governo ou criadas por ele mesmo,
oferecendo um contrapeso aos mulás iranianos que tinham forte influência entre
os xiitas.
A “islamização” do regime saddamista é algo ainda pouco conhecido pelo
Ocidente, cuja atenção esteve voltada aos regimes religiosos de outros países ou
preocupado apenas com o caráter repressivo do governo iraquiano. Algumas
medidas governamentais começaram a seguir os princípios da sharia, como a

19 Michael Weiss; Hassan Hassan, Estado Islâmico: desvendando o exército do terror.


São Paulo: Seoman, 2015, p. 99.
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amputação das mãos de ladrões e o corte das orelhas de desertores do exército.


Uma importante medida tomada por Saddam foi a proibição do trabalho
feminino, o que colocou o país ao lado do governo do Talebã no quesito da
exclusão feminina do mercado de trabalho – nem o Irã revolucionário havia
tomado tal decisão. Mas a medida tinha outra função além de agradar aos imãs
sunitas: com o ato, o governo baixava de modo significativo a taxa de desemprego,
que oficialmente passava dos 13%, mas era de fato muito maior e em algumas
cidades chegava a um terço ou mesmo metade da população em idade de
trabalhar. Muitas ocupações em pequenas indústrias têxteis, que até então
empregavam principalmente mulheres, ficaram disponíveis com a medida do
governo.
Com isso se vê que os vínculos religiosos tinham também outros objetivos.
A mais expressiva de todas foi a montagem da Campanha de Fé Islâmica de
Saddam, um programa de doutrinação religiosa com verniz baathista e que
patrocinava a haji, ou seja, a peregrinação anual para Meca. O caminho aberto
pelo governo que enviava periodicamente os fiéis à Arábia Saudita servia também
como parte de um esquema de contrabando entre os dois países, permitindo
driblar parcialmente os efeitos do bloqueio econômico. O resultado dessa rede
foi, em primeiro lugar, o aprofundamento da corrupção no governo, pois o acesso
à rota de contrabandos dava uma série de privilégios aos homens-fortes do
regime. Contudo, o mais grave foi que a doutrinação religiosa de lideranças na
Arábia Saudita minou exatamente os valores mais seculares do baathismo e criou
um islamismo radical que esteve adormecido enquanto o Estado estava
centralizado na figura de Saddam. Um oficial da inteligência norte-americana
compreendeu o significado dessa formação no interior do governo iraquiano e
que explicaria posteriormente a violência insurgente:
“— Saddam acreditava que estava enviando para as escolas
islâmicas Baathistas comprometidos que seguiram leais
enquanto estabeleciam uma posição segura nas mesquitas a
partir das quais o regime poderia então monitorar e manipular o
movimento islâmico. Na realidade, o reverso aconteceu. A
maioria dos oficiais que foi enviada para as mesquitas não era
mais profundamente comprometida com o Baathismo àquela
altura, e à medida que se depararam com os ensinamentos
Salafistas, muitos tornaram-se mais leais ao Salafismo do que a
Saddam”.20

20 Ibidem, p.36.
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Além disso, diante do temor que Saddam possuía de uma possível nova
insurgência xiita – que pudesse repetir de modo mais incisivo a insurreição de
1991 —, inúmeros abrigos subterrâneos foram criados pelo território iraquiano
(num deles Saddam seria descoberto em dezembro de 2003 pelas forças
americanas, meses depois de sua deposição). Também paióis foram espalhados
pelo país, caso fosse necessária uma ofensiva contrainsurgente: nesses depósitos,
armas, munição e material para explosivo serviriam para uma possível luta contra
forças que derrubassem o governo.21 Tudo isso, como se pode imaginar, ficou
disponível depois para os grupos jihadistas que lutaram contra a ocupação norte-
americana.

Esse era o contexto do Iraque pré-invasão norte-americana, com o detalhe


de que em 2002 uma eleição deu 100 % dos votos para Saddam continuar na
presidência. Satisfeito com o “apoio” unânime, Saddam encenou um “gesto de
humanidade e superioridade”: decretou a libertação de quase todos os presos do
país, incluindo aí presos políticos e criminosos comuns. Apenas os prisioneiros
acusados de espionagem, colaboração com os EUA ou ligação com Israel foram
mantidos cativos. As interpretações para esse ato foram muitas: buscava mostrar
benevolência e reforçar a adesão ao seu governo (que de qualquer modo já estava
protegido com a repressão), reduzir os custos de manutenção de uma imensa
população carcerária ou, numa estratégia de médio prazo, deixar livre nas ruas
indivíduos que lutariam de qualquer modo contra uma invasão estrangeira.
Naquele momento, outubro de 2002, era apenas uma questão de tempo para o
início da intervenção protagonizada pelos EUA – menos de seis meses depois
ocorreria de fato a ocupação.

O Iraque depois da queda de Saddam

A invasão do Iraque por uma coalização militar internacional liderada pelos


Estados Unidos começou no dia 30 de março de 2003. Os argumentos para a

21 Ibidem, p. 34.
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invasão foram os estoques de armas de destruição em massa que poderiam ser


utilizados por terroristas, já que se apontavam pretensos vínculos entre o regime
de Saddam Hussein e a Al-Qaeda, algo que os órgãos de informação americanos
sabiam não ser verdade. Pelo contrário, se em algum momento ocorreu alguma
vinculação entre o regime de Saddam e os jihadistas radicais, foi um produto da
invasão norte-americana. Nos momentos que precederam o ataque, muito dos
“guerreiros do Islã” começaram a chegar em Bagdá para lutar contra os ocidentais
que anunciavam o ataque. Junto aos fedayeen, foram esses combatentes
internacionalistas que organizaram a resistência imediata à ocupação ocidental,
principalmente organizando milícias sunitas que se antecipavam ao anúncio de
criação de um novo governo que representasse todas as etnias e facções religiosas,
ou seja, cuja maioria necessariamente seria árabe xiita.
Já no início de abril, a capital estava sob controle das tropas de
intervenção, Saddam se escondeu e em 15 de abril os conflitos diretos com o
exército iraquiano estavam encerrados. Os correspondentes estrangeiros, mesmo
os mais críticos à intervenção norte-americana, dão conta de uma forte aceitação
imediata da tomada do país e derrubada de Saddam. Conscientes da precariedade
do regime e, portanto, que ele não poderia mais ser restaurado, muitos civis
saíram as ruas enaltecendo as forças militares americanas e britânicas.
Entretanto, o que aos olhos da opinião ocidental parecia como uma legitimação a
posteriori da guerra e uma expressão da carência democrática do país, mostrou-
se apenas uma breve celebração no calor da destituição do ditador de décadas. Os
sucessivos e sistemáticos equívocos na política de reconstrução do Iraque, já
colocados em prática nas semanas seguinte à tomada de Bagdá, mudariam
completamente essa aceitação dos invasores.
Os problemas se iniciam com a formação de uma autoridade provisória
que tinha por objetivo substituir o governo destituído, mas se mostrou logo
voltado quase unicamente à restauração e preservação das condições de produção
de petróleo – ou seja, os interesses econômicos da coalização. Não se pode dizer
que outro objetivo da administração provisória era restaurar a normalidade
social, pois isso já não havia há muito tempo num país marcado pela penúria e
opressão. A falta de energia, comum no período do bloqueio econômico, depois
dos bombardeios para a ocupação se tornaram tão frequentes que duravam dias
seguidos – foram agravados nas cidades menores porque as torres de destruição
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que cortavam os desertos eram derrubadas para que sua sucata fosse vendida nos
ferros-velhos do Irã.22 Os mercados estavam vazios e as principais atividades
econômicas tentavam se restabelecer depois do cessar-fogo oficial, mas
enfrentavam a incerteza diante de um governo destituído e do desemprego
ampliado pelo conflito.
No centro da capital, a área administrativa que reunia prédios da
administração econômica, repartições governamentais e palácios de Saddam foi
alvo de ataques durante a invasão. Vazios depois da fuga das lideranças do
governo e com a destituição do regime, esses prédios passaram a ser ocupados
por sem-tetos, desempregados e desabrigados pelos bombardeios, assim como
virou local de instalação do governo de ocupação. Isso não deixou de gerar
conflitos, principalmente pela infiltração de criminosos e terroristas. Com a
escalada de violência em Bagdá, em poucos meses a autoridade provisória se viu
obrigada a erguer um imenso muro cercando a área administrativa central. A
chamada Green Zone virou o símbolo de que a administração americana não
tinha interesse em reconstrução do país, pelo contrário, virava as costas às
demandas da sociedade e se preocupava apenas em recuperar as atividades
relacionadas ao petróleo.23
Com o término oficial da guerra, a maior parte do exército iraquiano depôs
armas e ficou no aguardo das medidas anunciadas pelo novo governo. Entretanto,
a falta de decisão política por parte da coalização e o caos econômico provocaram,
durante quase todo o mês que se seguiu ao fim do conflito, uma onda de saques
às instituições públicas, ministérios, escolas, universidades e museus. Sequer
sobraram cadeiras e mesas em prédios públicos para que os membros da
administração de transição iniciassem os seus trabalhos. O Museu de Bagdá, um
dos mais importantes em relíquias pré-cristãs, sofreu um saque que levou quase
todo o seu acervo. O cálculo é que a pilhagem nas repartições representou um
prejuízo de 12 bilhões de dólares, algo comparável ao orçamento público do país
no ano anterior.24
O caos seria ampliado com a nomeação de Paul Bremer para chefe da autoridade
provisória em maio de 2003. Alinhado politicamente com os principais políticos

22 Rory Stewart, Acidentes de Trabalho, cit., p. 80.


23 Jon Lee Anderson, A queda de Bagdá, cit., p. 352.
24 Documentário No End in Sight, dir. Charles Ferguson (EUA, 2007).
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do governo Bush e ideologicamente com as doutrinas de guerra direta ao


terrorismo, as primeiras decisões de Bremer destruíram qualquer possibilidade
de restauração imediata das estruturas políticas do país:

— suspendeu temporariamente a organização de um governo, o que estendeu o


controle da administração provisória e fortaleceu a sensação, entre a população
civil (e alimentou os grupos de resistência), de que a promessa dos militares
yankees de se retirarem o mais rápido possível era falsa;

— tomou medidas para a “desbaathificação” do país, isto é, o desmonte de partido


de Saddam, a destruição dos antigos serviços de defesa e informação, a
expropriação de todos os bens da família Hussein e a eliminação da estrutura de
poder então existente. Com isso, 40 mil funcionários públicos foram dispensados,
o que desorganizou completamente a administração civil;25

— dissolveu o exército iraquiano, o que em termos práticos significou colocar


imediatamente 400 mil soldados no desemprego, ou seja, afetou milhões de
pessoas que possuíam como única fonte de renda o salário de algum membro da
família nas Forças Armadas. Essa decisão foi crítica, pois com o elevado
desemprego e as limitações materiais crescentes, foi o principal estopim para o
imediato fortalecimento da resistência contra a ocupação. Oficiais do exército
derrotado, que haviam se apresentado voluntariamente ao exército americano
para ajudar a reestabelecer a paz e apoiar um novo governo foram afastados com
essa medida, considerados não-confiáveis devido aos vínculos com o Partido
Baath.

Nas semanas seguintes os depósitos de armas estrategicamente


construídos pelo governo Saddam em seu temor de uma sublevação foram
esvaziados pelos soldados desempregados: as armas seriam utilizadas ou como
bens a serem comercializados no mercado negro ou como instrumentos de uma
resistência que começava a se organizar. Os saques também aumentaram com o
fim da estrutura militar e a autoridade provisória só mobilizou as tropas de

25“No Ocidente, a opinião dos comentaristas era de que as ações para desmobilizar o
Baath haviam sido excessivas – muito mais, diziam eles, do que na Alemanha ou no
Japão do pós-guerra – e que em decorrência disso havíamos demitido todos os
funcionários eficientes e criado inimizades desnecessárias” (Rory Stewart, Acidentes de
Trabalho, cit., p. 88-89).
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intervenção para proteger os prédios da administração petrolífera e refinarias –


não por acaso, um mês depois da chegada de Bremer ao Iraque, o único sinal de
“normalidade” foi a retomada das exportações de combustível.
Se a situação da vida cotidiana no Iraque sob Saddam era de penúria e
repressão, sob a intervenção externa o cotidiano se transformou numa catástrofe
e em guerra civil. Diante das limitações econômicas agravadas, vazio institucional
e completa falta de segurança (os sequestros se tornaram comuns,
principalmente tendo por vítimas as mulheres), as tensões étnicas e religiosas
anteriormente represadas rapidamente se metamorfosearam em guerra civil.
Organizações milicianas e facções para controle, segurança local e resposta a
violência foram organizadas pelas correntes religiosas em conflito e grupos
atuando no exterior começaram a penetrar em território iraquiano.
Poucos meses depois da intervenção norte-americana se organizou o Exército
Mahdi, uma milícia xiita liderada por Muqatar al-Sadr, oriundo de uma
tradicional família de aiatolás. Perseguido durante o regime de Saddam e tendo
organizado um grupo de ataque ao governo logo no início da ocupação norte-
americana, a milícia se ampliou e passou a anunciar que o grande inimigo agora
era o exército dos EUA.
Outra força xiita de grande importância se reorganizou: a Brigada Badr.
De constituição antiga, a Brigada era uma espécie de força paramilitar do Irã que
arregimentou iraquianos xiitas durante a Guerra Irã-Iraque e, portanto, lutou
internamente contra Saddam e em apoio ao regime dos aiatolás. Com líderes
mortos, presos ou exilados no Irã depois do fim dessa guerra, a Brigada Badr se
formou novamente logo após a queda de Saddam e rapidamente se juntou a
diversas outras milícias xiitas, refundando o Conselho Supremo Islâmico do
Iraque, uma organização política que agregava grupos inspirados na Revolução
Iraniana.
A rápida organização dos grupos xiitas, depois de décadas submetidos à
repressão e controle do Estado, assumiu logo um evidente caráter revanchista que
levou à conflagração nas ruas de diversas cidades iraquianas. Isso alimentou a
organização de grupos armados e frentes sunitas, muitas delas agora reforçadas
por jihadistas estrangeiros que vieram combater o grande mal norte-americano.
Nesse caso, o grupo mais importante atuando após a queda de Saddam foi o
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Tawhid wal-Jihad (Monoteísmo e Jihad), um braço da Al-Qaeda liderado por


Abu Musab al-Zarqawi e que seria o embrião do Estado Islâmico.
Al-Zarqawi foi um jihadista jordaniano que chegou atrasado na luta contra os
soviéticos no Afeganistão, organizou grupos terroristas em seu país e por isso foi
preso durante alguns anos até receber o perdão junto com mais de 3 mil
prisioneiros na Jordânia depois de uma mudança política em que o novo monarca
tentava se reconciliar com a Irmandade Muçulmana. Livre, Al-Zarqawi se aliou a
Al-Qaeda e foi designado a administrar um campo de treinamento no
Afeganistão, onde fundou a célula terrorista Tawhid wal-Jihad. Durante algum
tempo, o serviço de inteligência dos EUA acreditou que Al-Zarqawi era o ponto
de ligação entre a Al-Qaeda e o regime de Saddam Hussein, pois o terrorista foi
operado num hospital iraquiano depois de ser ferido em combates com as tropas
norte-americanas no Afeganistão. Essa conexão foi logo desfeita, pois o serviço
secreto iraquiano também estava tentando capturar Al-Zarqawi para evitar o
transbordamento dos grupos jihadistas em seu território. Evidentemente, mesmo
com o desmentido, o governo norte-americano continuou a utilizar essa
informação falsa nas suas acusações do patrocínio de Saddam ao terrorismo.
Al-Zarqawi organizou sua milícia no norte do Iraque, na fronteira com o
Irã, aproveitando-se de terrenos livres do exército iraquiano devido à
proximidade com o Curdistão (áreas de exclusão). Ali, como mais um exemplo
das confusas conexões estabelecidas entre redes complexas de inimigos e ódio
difuso, o grupo Tawhid wal-Jihad receberia um apoio de Teerã para
desestabilizar o regime de Saddam. Evidentemente, o objetivo foi revirado logo
que as forças de coalização derrubaram o regime: a força conquistada por essa
célula seria canalizada contra os xiitas.26
Essa “virada” contra os xiitas que até então haviam fornecido apoio ao
grupo de Al-Zarqawi não era obviamente estranho à doutrina da Al-Qaeda, que
pregava uma luta encarniçada contra os apóstatas. Entretanto, nesse momento
de intervenção da potência inimiga por excelência no Iraque – os EUA —, essa
não era uma tática compartilhada pelas lideranças do grupo terrorista

26“... o advento do reino de terror de al-Zarqawi no Iraque notabilizou-se por seu foco
em matar ou atormentar a maioria xiita da população do país; isto, ele acreditava,
criaria um estado de guerra civil que forçaria os sunitas a recuperarem seu poder e
prestígio perdidos em Bagdá e restauraram a glória de Nurar al-Din” (Weiss e Hassan,
Estado Islâmico, cit., 31).
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internacional. Aqui temos uma das diferenças que vão tornar gradativamente
mais autônoma e sem controle a célula de Al-Zarqawi e que culminará com o
rompimento: diferente do radical sectarismo de seus aliados no Iraque, a Al-
Qaeda era mais aberta a alianças temporárias visando o fortalecimento de lutas
futuras e tentando evitar erros de isolamento.27
A guerra civil instaurada levou rapidamente a uma piora ainda maior das
condições de vida iraquianas: uma ano após a ocupação, nas principais cidades
iraquianas a eletricidade só funcionava 2 ou 3 horas por dia. A água tinha
abastecimento regular em menos de metade da semana. O inverno se tornaria
mais frio por causa da falta de combustível para os aquecedores. Uma pesquisa
realizada pelo novo governo iraquiano, constituído em 2005, demonstrava que
mesmo pelos índices oficiais a sociedade iraquiana estava em franco colapso:

“Em 85% dos lares, o fornecimento de energia é precário, segundo a


pesquisa. Apenas 54% das famílias têm acesso à água potável e 37% dos
lares têm saneamento básico; metade da cifra registrada na década de
1980.
Há duas décadas, o Iraque tinha um dos melhores atendimentos
médicos do Oriente Médio. Agora, os hospitais estão sobrecarregados
com vítimas de bombas e tiros. Faltam equipamentos e remédios.
O número de mulheres que morrem no parto atingiu 93 em cada 100
mil nascimentos, segundo a pesquisa. Na Jordânia, são 14; na Arábia
Saudita, 32. "Isso mostra claramente a deterioração dos serviços de
saúde no Iraque", diz o relatório.
A pesquisa diz ainda que 25% das famílias iraquianas não conseguem
gerar renda equivalente a US$ 70 por semana, para lidar com uma
emergência”.28

A escalada do Tawhid wal-Jihad, principalmente nas cidades à oeste e norte de


Bagdá, fez com que as lideranças da Al-Qaeda ignorassem os desvios táticos de
sua célula. Também por parte de Al-Zarqawi era necessário manter os vínculos
com o grupo de Bin Laden e al-Zawahiri, principalmente por causa do apoio
econômico e militar. Assim, as tensões entre eles foram temporariamente
dissipadas e com a incorporação cada vez maior de novos membros o Tawhid
wal-Jihad se transformou em Tanzim Qaedat al-Jihad fi Bilad al-Rafidayn (Al-

Ibidem, p. 64-65.
27
28Desemprego no Iraque chega a 50%, Terra, 12 maio 2005. Disponível em:
http://noticias.terra.com.br/mundo/noticias/0,,OI531035-EI865,00-
Desemprego+no+Iraque+chega+a.html. Acesso abr. 2016.
[-] www.sinaldemenos.org Ano 9, n°12, vol. 2, 2018 116

Qaeda na Terra dos Dois Rios). Para o serviço de informação norte-americano, o


grupo seria conhecido como AQI (Al-Qaeda no Iraque).
Em 2004, pouco tempo após a confirmação dessa subordinação a Bin
Laden e al-Zawahiri, o AQI protagonizaria a mais marcante batalha de toda a
história da ocupação norte-americana no Iraque: a chamada Batalha de Fallujah.
Na verdade, trata-se de um conjunto de batalhas, normalmente dividido em duas
etapas, em que as forças militares da coalização tentaram retomar o controle da
cidade de Fallujah, após a demonstração pública do poder por parte da milícia
zarqawista ao assassinar em frente às câmeras quatro seguranças da empresa
Blackwater. Uma ofensiva contra a cidade foi tentada em abril de 2004, mas as
tropas norte-americanas e britânicas foram rechaçadas. Estudos da inteligência
dos EUA mostraram que o AQI realizava uma espécie de “trabalho comunitário”
na cidade, não apenas em termos de radicalização religiosa mas principalmente
pela imposição do medo, com execuções públicas, decapitações gravadas em
vídeo e amputações de inimigos. Fallujah seria a primeira demonstração dos
métodos bárbaros do futuro Estado Islâmico.
Entre novembro e dezembro de 2004, as forças de coalização realizaram
uma segunda ofensiva contra Fallujah e conseguiram retomar a cidade,
espalhando os militantes zarqawistas por outras cidades a oeste e norte do país
(entre elas a cidade de Mossul, então a segunda mais importante e que
apresentava uma taxa desemprego de 75 %). Junto com Abu-Graib — a prisão
localizada na cidade vizinha em que fotos das torturas realizadas por soldados
norte-americanos seriam divulgadas nesse mesmo ano —, Fallujah tornou-se um
símbolo da violência das forças de intervenção, fortalecendo os grupos
insurgentes e o ódio popular à ocupação.

“Dez mil casas, ou aproximadamente um quinto do total de


residências em Fallujah, foram destruídas nas duas semanas que
duraram as intensas batalhas urbanas acompanhadas por
ataques aéreos punitivos. O resultado foi uma paisagem lunar,
inabitável para muitos – não que tivessem sobrado muitas
pessoas. Fallujah havia sido em grande parte evacuada, com
centenas de milhares de refugiados fugindo antes do começo do
combate principal. Aproximadamente um quarto de todos os
insurgentes mortos pelas tropas norte-americanas em 2004 –
2.175 de 8.400 – morreu na Segunda Batalha de Fallujah, mas a
um preço proporcionalmente alto: 70 Marines também foram
mortos e 651 feridos, além de outras baixas norte-americanas.
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Em outras palavras, outra vitória tática para os Estados Unidos


foi tornada estrategicamente desprezível ao enorme ganho em
propaganda que ela gerou para a insurgência (...). Bin Laden
também aproveitou a oportunidade para transformar um revés
em um importante passo à frente, reivindicando que ele conhecia
alguns dos “mártires” da batalha e colocando a responsabilidade
pela inegável devastação de Fallujah aos pés do presidente Bush.
Os Estados Unidos estavam lançando uma “guerra total contra o
Islã”, declarou Bin Laden, enquanto os Zarqawistas haviam
“escrito uma nova página de glória de nossa comunidade de
crentes”.29

A amplificação das tensões seria bem representada na disputa territorial


de Bagdá no final de 2006: as forças americanas dominavam as áreas centrais, a
Zona Verde e o aeroporto; as novas forças armadas do Iraque controlavam o leste
e o sul da cidade; as milícias sunitas tinha poder sobre os bairros onde sua fração
era dominante; a milícia de Muqatar al-Sadr dominavam grandes partes da
cidade, principalmente os bairros xiitas mais pobres; por fim, as forças xiitas da
Brigada Badr controlavam os bairros xiitas de classe média. Algumas
organizações de moradores e comerciantes criaram patrulhas para controle local
dos demais bairros e várias zonas continuavam sem nenhum controle efetivo —
nesses locais os conflitos eram mais intensos, com periódicas limpezas étnicas
promovidas por algumas das forças beligerantes, entre elas o AQI, que atuava
principalmente nos cinturões ao redor da capital.30
Na tentativa de administrar um país retalhado, as forças norte-americanas
se utilizavam de métodos cada vez mais violentos e arbitrários. As revistas
cotidianas promovidas pelo exército americano tinham por alvos jovens em idade
militar. Muitos deles eram detidos sem nenhuma prova de ligação com a rebelião
ou por receio de que pudessem compor um grupo jihadista, por isso eram levados
às prisões para interrogatórios. Aí recebiam toda a lavagem cerebral promovida
pelos radicais islâmicos, o que provocava o efeito contrário ao esperado.

29 Weiss e Hassan, Estado Islâmico, cit., 31. Notícias posteriores, de pouca repercussão
na mídia internacional, apontaram para o uso sistemático de armas químicas por parte
do exército americano em Fallujah, principalmente um sucedâneo do “napalm”, o
fósforo branco, uma substância que queima de tal modo a pele que se utilizado de modo
rigoroso dissolve o corpo humano até atingir os ossos. Veja quanto a isso RAI: Exército
dos EUA usou armas químicas em ofensiva em Faluja, UOL, 08 nov. 2005. Disponível
em: http://noticias.uol.com.br/ultnot/efe/2005/11/08/ult1808u52909.jhtm. Acesso
abr. 2016.
30 Documentário No End in Sight, cit..
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Observadores internacionais, jornalistas e mesmo os representantes do governo


iraquiano são unânimes em apontar que as prisões se tornaram verdadeiras
universidades do jihadismo. Portanto, o exército americano acabava produzindo
e potencializando a força rebelde que eles procuravam combater.
Com a formação do novo governo iraquiano em 2005, a situação dos
grupos jihadistas no Iraque mudaria completamente porque a criação do novo
Estado levaria a uma centralização da insurgência sunita em torno do AQI. Com
o objetivo de formar um governo multiétnico, as forças de coalização deram início
às eleições sob vigilância internacional, o que levou a um representação variada
entre as etnias e correntes religiosas, mas fortemente centralizada nos xiitas,
maioria no país.

Eleito deputado em 2005, Nuri al-Maliki, um líder xiita que fazia oposição
do exterior ao governo de Saddam e havia retornado ao país após a sua deposição,
logo se tornaria um dos principais responsáveis pelo comitê de segurança do país.
Antes ele tinha participado da coalização como cabeça do comitê de
“desbaathificação” e, ao assumir o cargo de primeiro-ministro em abril de 2006,
iniciaria uma campanha de “revanchismo xiita”. Nos próximos anos, expurgos,
conspirações e prisões de lideranças políticas e religiosas sunitas levariam a uma
espécie de oficialização da guerra civil já existente nas ruas entre as variadas
milícias. Além disso, uma série de líderes ligados a grupos milicianos xiitas
patrocinados por Teerã, eleitos para o parlamento iraquiano nas eleições de 2005,
agora se tornavam parte do governo “reconstruído” pelos EUA. Entre eles se
destacava Abu Mahdi al-Muhandis, um antigo líder terrorista iraquiano que
fizeram carreira no Irã, atuando junto a Brigada al-Badr e que agora possuía uma
força independente que promovia combates nas ruas com as tropas de ocupação.
Em 1983, al-Muhandis foi identificado pela inteligência norte-americana como o
responsável por um atentado a bomba contra a embaixada dos EUA no Kuwait.31
A “democratização” promovida pelos Estados Unidos levava aos cargos de
governo e assentos parlamentares seus antigos inimigos.

A composição desse novo governo reverteu completamente a situação


política no Iraque e colocou os antigos membros do Estado de Saddam na
defensiva, na insurgência e em oposição ao governo da maioria xiita. Não foi um

31 Weiss e Hassan, Estado Islâmico, cit., p. 59.


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acaso que rapidamente os grupos sunitas organizados começaram a receber apoio


de regimes árabes vizinhos – a visão dominante entre os regimes sunitas é de que
com a derrubada de Saddam “os Estados Unidos deram o Iraque ao Irã”.32 Foi
essa reconfiguração do poder político que consolidou de vez a aliança que seria
uma das marcas determinantes do futuro Estado Islâmico: a adesão baathista às
fileiras do AQI.
A aproximação já vinha se desenhando há algum tempo, devido aos
vínculos sunitas de fundo e a resistência à intervenção externa. Um ponto de
contato inicial foi o boicote às eleições de 2005: tanto os zarqawistas quando os
baathistas, alijados do poder, fizeram um chamado para os sunitas não
comparecerem às urnas. O resultado foi a vitória avassaladora dos políticos xiitas,
o que reforçaria o revanchismo que estava por vir. A aliança plena entre essas
duas frentes sunitas seria logo referendada nas prisões iraquianas, que fariam
exatamente o papel de unir os iraquianos do AQI, os internacionalistas da Al-
Qaeda e os baathistas. Encontrando-se nas prisões, os meses e anos de
encarceramento serviriam para a doutrinação jihadista, para a construção de
estratégias conjuntas e aproximação das lideranças – conforme relatou um ex-
membro do Estado Islâmico sobre a prisão do Campo Bucca, onde teria ficado
preso o futuro líder do ISIS: “aqui nós não estávamos somente seguros, como
estávamos a apenas algumas centenas de metros de toda a liderança da Al-
Qaeda”.33
Em janeiro de 2006, al-Zarqawi cria o Majlis Shura al-Mujahidin fi al-
Iraq (ou Conselho Consultivo Mujahidin do Iraque), uma espécie de consórcio
que tinha o objetivo de juntar fracções sunitas de origens diversas e que se formou
com cinco grupos salafistas iraquianos e mais o AQI. Uma das metas desse
consórcio era enraizar ainda mais as atividades do AQI, muito rejeitada devido à
forte presença de jihadistas estrangeiros.
Em junho de 2006, o primeiro grande líder do embrião do Estado Islâmico
foi assassinado por uma gigantesca bomba de duzentos quilos lançada por um

32 Ibidem, p. 63. Mais significativo ainda para a história do Islã é que o governo xiita de
al-Maliki seria “o primeiro no mundo árabe desde que Saladino derrubou a Dinastia
Fatímida no Egito, em 1171”. (Patrick Cockburn, A Origem do Estado Islâmico: o
Fracasso da “Guerra ao Terror” e a Ascensão Jihadista. São Paulo: Autonomia
Literária, 2015, p. 137).
33 Weiss e Hassan, Estado Islâmico, cit., p. 88.
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drone norte-americano numa cidade à noroeste de Bagdá.34 A Al-Qaeda nomeou


como seu substituto Abu Ayyub al-Masri, que em seguida, outubro de 2006,
transformria aquele consórcio de insurgentes no ad-Dawlat al-Islāmiyah fī al-
ʿIrāq (Estado Islâmico do Iraque). Com essa nova denominação e agrupamento,
o Estado Islâmico designa como seu principal líder o iraquiano Abu Omar al-
Baghdadi, como forma de demonstrar uma insurgência sunita genuinamente
nativa.
Omar al-Baghdadi é uma figura controversa entre os serviços de
inteligência e estudiosos do Estado Islâmico. Seu sobrenome é comum e indica a
origem do nascimento – “de Bagdá”. Dada sua capacidade de se esconder de todas
as maneiras dos serviços de inteligência, espiões, monitoramento etc., há uma
controvérsia sobre a sua real existência. Há indícios de que suas mensagens
gravadas e chamadas públicas aos jihadistas foram na verdade feitas por um
membro iraquiano da Al-Qaeda. Com a nomeação dessa liderança fictícia
iraquiana, a Al-Qaeda tentaria dar uma face totalmente doméstica ao seu braço
no “país dos dois rios”.35 Contudo, em abril de 2010, Omar al-Baghdadi teria sido
morto num ataque norte-americano e das forças oficiais iraquianas a uma base
do Estado Islâmico — a dificuldade de identificação de seu cadáver confirmaria o
poder de dissimulação do novo grupo terrorista.36
Seja sob liderança real ou fictícia, o Estado Islâmico se tornou uma ameaça
significativa para o novo Estado iraquiano e à intervenção norte-americana. Isso
despertou os serviços de inteligência, levando a uma mudança nas estratégias da
contrainsurgência: as forças oficiais do novo governo iraquiano e o exército dos
EUA passaram a trabalhar em conjunto com lideranças xiitas locais, milícias
articuladas ao governo (aquelas que davam sustentação a al-Maliki) e mesmo a
líderes tribais sunitas que não confiavam na Al-Qaeda. O Estado Islâmico
conheceu, portanto, uma feroz repressão nos anos seguintes à sua fundação e a
eliminação de dezenas de lideranças do grupo ligado a Bin Laden, culminando
com a morte de al-Masri e al-Baghdadi em 2010. A eliminação do próprio Bin
Laden, em 2011, poderia indicar que a Al-Qaeda estava em franca decadência.

34 Ibidem, p. 67.
35 The Fiction of Abu Omar al-Baghdadi, Threats Watch, 5 dez. 2007. Disponível em:
http://threatswatch.org/analysis/2007/12/the-fiction-of-abu-omar-albagh/. Acesso
abr. 2016.
36 Weiss e Hassan, Estado Islâmico, cit., p. 68, 87-88.
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Se por um lado a forte repressão conseguiu reduzir imediatamente o poder


do Estado Islâmico, desestabilizando sua primeira organização como uma frente
de diversos grupos jihadistas sob liderança da Al-Qaeda, a progressiva eliminação
de lideranças promoveu uma espécie de “seleção natural” em que os líderes
capazes de atuar de modo mais cuidadoso, enraizado e integrado ao cotidiano
iraquiano restaram no grupo. Também a temporária vitória da contrainsurgência
permitiu que o Estado Islâmico, nessa sua primeira configuração, rompesse
progressivamente com os vínculos externos e criasse sua estrutura interna de
comando, sobretudo com o apoio dos baathistas. Por isso é um lugar-comum
entre estudiosos do grupo terrorista de que a tomada do controle do grupo por
Abu Bakr al-Baghdadi, em 2010, significou um renascimento do Estado
Islâmico.37

O Estado Islâmico

O novo al-Baghdadi tem uma história pessoal muitas vezes confundida


com o líder anterior, de sobrenome idêntico, pois passou um período preso em
Campo Bucca onde também teria arregimentado muitos jovens insurgentes e
baathistas para as fileiras do Tawhi al-Jihad. Contudo, al-Baghdadi tem uma
trajetória singular, pois nasceu numa cidade que era forte reduto baathista,
Samarra, e se formou em teologia na Universidade de Bagdá, provavelmente
graças aos contatos familiares no partido de Saddam Hussein. Fazendo uso de
um discurso religioso que lhe garantia ser descendente direto de Maomé, al-
Baghdadi tornou-se imã em Bagdá e Fallujah. Foi graças a esse carisma e contatos
pessoais, provenientes do regime de Saddam, que o permitiu tornar o Estado
Islâmico uma organização independente.

O “renascimento” do Estado Islâmico, ou propriamente a sua afirmação,


derivam dessa aliança entre jihadistas e baathistas alijados do poder com a
intervenção estrangeira. Essa é mais uma característica que diferencia o ISIS dos
demais grupos terroristas: ao contrário de um terrorismo organizado em

37Weiss e Hassan, Estado Islâmico, cit., principalmente o capítulo 8 – Renascimento


(112-125). Loreta Napoleoni intitula seu livro devido exatamente a essa reorganização
do EI sob al-Baghdadi: A Fênix Islamita: o Estado Islâmico e a Reconfiguração do
Oriente Médio. Rio de Janeiro: Bertrand, 2015, p. 38.
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acampamentos precários e financiado por meios paralelos, o Estado Islâmico se


desenvolveu com forte apoio baathista, portanto, utilizando-se de sua vinculação
às comunidades sunitas iraquianas, ao forte treinamento militar e a um
conhecimento estratégico do território em que atuavam, herança do longo
período de poder.38
Esse é um dos motivos para a rápido ascensão do Estado Islâmico após a
“limpeza” em sua liderança externa: articulando-se às regiões
predominantemente sunitas, o Estado Islâmico foi conquistando o apoio das
comunidades locais contra o revanchismo oficializado xiita, 39 ganhou territórios
ao norte do país e durante os conflitos mostrou a sua capacidade militar
sofisticada.
As táticas do EI seriam rapidamente percebidas como algo diferente do
usual no conflito iraquiano: utilização sistemática de dispositivos explosivos
improvisados (DEIs) de todos os tipos,40 aplicação da lei islâmica nos territórios
ocupados (sharia), saque aos depósitos de armas oficiais, constituição de falsos
grupos jihadistas “moderados” para conseguir o apoio norte-americano (essa
estratégia seria fundamental no conflito que transbordava para a Síria) 41 e um
conhecimento prático de guerra incomparável. Um sargento do exército norte-
americano descreveu o que viu em campo de batalha:

“Eu nunca tinha visto, ou vi desde então, uma organização assim


(...). Eles eram organizados. Eram bem treinados, atiravam e
conseguiam acertar coisas. Em vez de apenas ficar pelas esquinas
disparando e correndo, eles nos atacavam e manobravam. Era
quase como observar soldados norte-americanos treinando”.42

Com isso se compreende o pano de fundo da limpeza étnica e religiosa


praticada pelo Estado Islâmico: resultado de uma intensificação dos conflitos

38 Weiss e Hassan, Estado Islâmico, cit., p. 120.


39 “Muitos dos sunitas vivendo sob o Califado instituído pelo ISIS não gostavam de seus
novos governantes e sentiam-se amedrontados por eles. No entanto, temiam ainda
mais o exército iraquiano, as milícias xiitas e os curdos do Iraque, ou o exército da Síria
e as milícias favoráveis a Assad nesse país” (Patrick Cockburn, A Origem do Estado
Islâmico, cit., p. 37).
40 Weiss e Hassan, Estado Islâmico, cit., p. 70-73.
41 Patrick Cockburn, A Origem do Estado Islâmico, cit., p. 67.
42 Weiss e Hassan, Estado Islâmico, cit., p. 80.
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entre sunistas e xiitas, a raiz baathista do ISIS o tornava herdeiro daquela fonte
violenta de rivalidade com os xiitas e ao mesmo tempo uma reposta às
atrocidades cometidas por estes ao assumir o poder com apoio norte-americano.
Cerca de 150 mil xiitas tinham sido mortos durante o governo do Partido Baath
— agora, a resposta desse grupo àqueles que tinham sido seus algozes durante
mais de duas décadas não economizava em violência e destruição. Com o
baathismo presente em suas fileiras — o que não era de modo algum estranho à
sua lógica, pois este tinha sido radicalizado com o wahabismo nos últimos anos
do regime de Saddam —, o Estado Islâmico representava agora uma resistência
simultânea ao revanchismo xiita, à “invasão iraniana” e ao imperialismo norte-
americano.
Essa peculiar linha de continuidade com o baathismo extirpado de seus
caracteres seculares é uma clara diferença do ISIS em relação à Al-Qaeda, pois no
momento em que se reorganizava, sob comando do novo al-Baghdadi, aos olhos
da antiga matriz a sua célula terrorista parecia uma “franquia fora de controle”.43
À medida em que se desligava das lideranças de Bin Laden e al-Zawahiri, o Estado
Islâmico baseava sua ação em conquista e domínio territorial, enraizando sua
estrutura administrativa e construindo uma fonte de financiamento. Além disso,
o Estado Islâmico oferecia uma rede de proteção ao imediatamente impedir
ataques às comunidades sunitas, impunha as leis islâmicas e reconstruía
minimamente as instituições públicas que haviam sido destruídas com o bloqueio
econômico ou com a guerra civil.44
Este último aspecto é significativo frente uma situação de “Estado falhado”
tal como se apresentava o Iraque depois de anos de destruição: o Estado Islâmico
conquistou progressivamente a importância e repercussão que assustou ao
mundo, não da noite para o dia, mas depois de uma década de contínua
preparação junto às comunidades sunitas onde reconstruía a infraestrutura
básica, fornecia serviços públicos de saneamento, distribuía alimentos para os
mais necessitados45 e até mesmo promovia a vacinação em sua base social. 46 Foi

43 Idem.
44 “O EI então se aproveita de temores populares a respeito da ausência da lei e ordem
oferecendo-se como a única alternativa para o colapso da sociedade. Como qualquer
governo, ele busca reter um monopólio da violência” (Ibidem, p. 211).
45 Ibidem, p. 153.
46 Segundo Loreta Napoleoni, entre outras medidas de “bem-estar”, o EI teria construído

cozinhas comunitárias, instituições para adoção dos órfãos da guerra e mesmo


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preenchendo um vácuo deixado por um poder público já há muito inexistente que


o fundamentalismo sunita pôde se afirmar e conquistar territórios, enviar sua
mensagem bárbara para todo o mundo através do uso inédito das redes sociais e
tecnologias digitais e, por fim, declarar a reconstituição do Califado.
A ascensão do Estado Islâmico se acelera a partir de 2011, logo após a
retirada das últimas tropas norte-americanas do Iraque (dezembro).
Imediatamente após o fim da ocupação, o governo de al-Malik aprofundou o ódio
religioso: o vice-presidente, sunita, foi preso sob acusação de conspiração,
conseguiu fugir do país mas foi condenado à morte. Parlamentares dessa mesma
crença também foram presos, milhares de sunitas civis começaram a encher as
prisões do Iraque e cada vez mais a polícia dispersava manifestações contra o
governo atirando contra a multidão. Em 2013, logo após um desses ataques
policiais a um protesto sunita, o Estado Islâmico executou uma grande operação
e libertou 500 detentos de prisões ao redor de Bagdá – o revanchismo oficial xiita
era a maior fonte de poder para o grupo terrorista.47
Seguindo uma estratégia apenas esboçada por al-Zarqawi, o Estado
Islâmico foi pouco a pouco conquistando terrenos ao redor de Bagdá,
principalmente a oeste e ao norte, mas também focos ao sul da capital. Mas a
diferença entre o antigo grupo e o novo, ressurgido das entranhas de um Iraque
em guerra civil e onde atrocidades de diversas ordens se acumulavam, residia na
operacionalização dos territórios como sustentação do poder baseado na sharia,
na incorporação das comunidades e reconstrução mínima do tecido social e como
fonte de financiamento. Realizando uma espécie de trabalho de base, oferecendo
segurança contra ataques externos e a imposição de uma norma absoluta de
controle da vida social, o Estado Islâmico renascido foi aos poucos desenvolvendo
o controle territorial a passos coordenados, de modo que não colocasse em risco
toda a sua estrutura. Isso fortaleceu a organização funcional e militar do grupo,
permitiu a sua identificação entre os sunitas – seja como única alternativa

promovido a vacinação contra a poliomielite: “Programas sociais são, portanto, o outro


lado da moeda da bárbara ditadura religiosa-sectarista do Estado Islâmico” (A Fênix
Islamita, cit., p. 60).
47 Documentário The Rise of ISIS, prod.: Martin Smith (EUA, 2014). Disponível em:

http://www.pbs.org/wgbh/frontline/film/rise-of-isis/. Acesso abr. 2016. Sob pressão


internacional devido aos erros cometidos, Nouri al-Maliki renunciaria ao cargo de
primeiro-ministro em agosto de 2014, condição para que Obama enviasse ajuda
novamente ao Iraque para combater o EI.
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apresentada frente ao colapso social ou ao extermínio praticado por grupos


inimigos – e uma expansão econômica ímpar. Evidentemente, tudo isso foi
conquistado por meios militares, no que se acoplava um dinamismo econômico
que retroalimentava a sua escalada bélica e territorial. A demarcação do inimigo
apóstata – o sunita ocidentalizado pela política mesquinha, o xiita ou o próprio
ocidental – não era portanto o efeito colateral da expansão territorial, como
ocorreu no passado islâmico medieval em que grupos religiosos distintos eram
relativamente respeitados em suas práticas, desde que estivessem nas franjas ou
se retirassem dos santuários árabes.48 Agora, a própria dinâmica de guerra
destrutiva e a conquista territorial eram simultaneamente os objetivos: a
pretensão de construir um Califado só fazia sentido por meio da demonstração
das vitórias objetivas de eliminação do infiel e o domínio territorial era tanto
realização desse intento quanto base para o seu soerguimento. Por isso o Estado
Islâmico teve uma expansão gradativa mas acelerada: aos olhos dos crentes, as
sucessivas vitórias eram signo de uma destinação mística de refundação do
Califado, o que fazia ampliar as adesões.
O resultado foi um escalada de poder, incluindo aí uma penetração em
territórios sírios a partir de 2011, o que culminou com uma aliança com a brigada
sunita Jabhat Fateh al-Sham (Frente al-Nusra) naquele país.49 Em 2013,
finalmente, anuncia uma grande conquista: a cidade de Raqqa, no centro-norte
da síria, torna-se uma espécie de capital para o grupo jihadista. Dado que o
governo norte-americano despeja, através seu patrocínio a grupos insurgentes na
Síria, recursos para uma guerra contra o governo de Bashar al-Assad, não é
incorreto supor que o Estado Islâmico estava se alimentando também do
financiamento norte-americano. Ou seja: através de diferentes frentes de
intervenção, o governo norte-americano acabava financiando a insurgência

48Bernard Lewis, A crise do Islã, cit., p. 22.


49O rompimento definitivo com a Al-Qaeda teria sido decorrente desse transbordamento
na guerra civil da Síria: as ordens de al-Zawahiri era de que a al-Nusra deveria manter
a liderança da guerra contra o governo de Bashar al-Assad, mas a penetração do EI
atrapalhavam seus planos. A dissolução de alianças foi anunciado no início do 2014.
Ver quanto a isso: Al-Qaeda disavows any ties with radical Islamist ISIS group in Syria,
Iraq, The Washington Post, 3 fev. 2014. Disponível em:
https://www.washingtonpost.com/world/middle_east/al-qaeda-disavows-any-ties-
with-radical-islamist-isis-group-in-syria-iraq/2014/02/03/2c9afc3a-8cef-11e3-98ab-
fe5228217bd1_story.html. Acesso abr. 2016.
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contra o próprio Estado que havia constituído no Iraque.50 Com esse domínio de
áreas na Síria, o grupo se denomina agora ad-Dawlat al-Islāmiyah fī al-ʿIrāq wa
sh-Shām (Estado Islâmico no Iraque e no Levante), ou ISIS, como o define a sigla
em inglês (Islamic State of Iraq and Syria).
Em janeiro de 2014, mais uma escalada vitoriosa dos jihadistas do ISIS: a
cidade de Fallujah é tomada depois de uma década da grande batalha que chamou
a atenção do mundo. Nesse momento se reconhece internacionalmente a ameaça
assumida pelo Estado Islâmico. Cinco meses depois, com a ocupação da cidade
de Mossul pelos militantes, um arsenal militar expressivo, assim como as reservas
do Banco Central iraquiano, agora estavam sob controle do grupo terrorista que
há poucos anos parecia fadado à extinção.51 Com isso, uma considerável fração do
Iraque, incluindo as fronteiras com a Síria, assim como uma parte do território
norte deste país, se tornavam área de controle do Estado Islâmico. Nesse mesmo
mês, numa espécie de apresentação ao mundo, al-Baghdadi aparece em público
e se autodeclara o “califa” do Estado Islâmico, perdendo agora a denominação os
acréscimos geográficos (ad-Dawlat al-Islāmiyah), porque, sendo refundado o
Califado, todos os islâmicos a ele deveriam se sujeitar, sem a necessidade de
vínculo “nacional”, como prega a tradição.
Esse passo importante, e que simbolicamente teve uma repercussão
explosiva em todo o mundo, marca mais uma diferença clara com as práticas da
Al-Qaeda: embora suas pretensões finais, como a de todo grupo fundamentalista
islâmico, fosse a refundação do Califado, o grupo de Bin Laden nunca teve como
tática ou mesmo estratégia plasmar uma estrutural estatal. O ISIS não apenas
perseguiu isso desde sua reformulação, em meados da década anterior, como, ao
anunciar a sua concretização em 2014, podia agora elevar-se acima de todas as
outras milícias, células terroristas e grupos jihadistas islâmicos e demonstrar seu

50 O vice-presidente norte-americano, Joe Biden, acabou confirmando essa informação


ao apontar em uma conferência, em 2014, que seus aliados no Oriente Médio
(particularmente a Arábia Saudita, Turquia e Emirados Árabes) estavam financiando
grupos como a al-Qaeda e al-Nusra para derrubarem Assad. Ao ser interrogado sobre a
própria atitude norte-americana de armarem grupos “moderados” na Síria, Biden
concluiu que “os Estados Unidos descobriram não haver nenhum centro moderado na
Síria, porque os moderados são compostos de comerciantes, não de soldados” (Patrick
Cockburn, A Origem do Estado Islâmico, cit., p. 39-40). Em nenhum momento o
desabafo pessoal de Biden significou o fim do apoio dos EUA à insurgência síria.
51 Eric Fottorino (org.), Quem é o Estado Islâmico? Compreendendo o Novo Terrorismo.

Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2016, p. 122.


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sucesso: “a Al-Qaeda é uma organização e nós somos um Estado”, definiu um


militante em entrevista ao jornal The New York Times.52

Como Estado, a complexidade de suas fontes de sustentação se tornaram


evidentes. Exploração de poços e refinarias de petróleo nos territórios capturados
(óleo vendido no mercado negro internacional), impostos sobre as áreas
ocupadas, financiamento ocidental via células fantasmas (principalmente na
Síria), obscuro patrocínio do governo turco (devido ao conflito com os curdos)53
e recursos provenientes de países árabes que sustentam a cruzada takfirista. Tudo
isso explica como o Estado Islâmico pôde conseguir se erguer em meio a uma
guerra de múltiplas frentes: ataque aos curdos e a minorias religiosas (yazidis),
confronto com as milícias xiitas apoiadas pelo Irã, conflito com as forças
americanas e iraquianas, participação na guerra civil Síria.
A forma nova de operação do terrorismo também começou a ficar mais
evidente. Mesmo antes do anúncio de al-Baghdadi, mas agora sobretudo com o
Califado servindo de referência, uma parte dos sunitas de todo o mundo passaram
a enxergar aí uma guinada na história de conquista, submissão e profanação do
mundo islâmico pelo Ocidente. Com os novos meios de comunicação, os
exemplos de violência contra os apóstatas serviam tanto para provocar a repulsa
e a rejeição da chamada opinião pública internacional, como para cultivar o
submundo cultural dos muçulmanos empobrecidos e humilhados das periferias
do mundo ocidental. Quatro fenômenos se tornaram significativos pelas
tortuosas vias da conexão global através de computadores.
Em primeiro lugar, o recrutamento de noivas islâmicas ou não-islâmicas (logo
convertidas) para os combatentes do Califado. Vivendo em regiões de combate
onde restaram poucas mulheres devido ao êxodo da população civil ou
simplesmente porque a poligamia é estimulada como sinal de status e liderança
para a comunidade, milhares de mulheres em vários países foram contatadas por
meios eletrônicos ou representantes e enviadas aos territórios do Califado para
casamento. Em capitais importantes do Ocidente, representantes do grupo
atuavam cuidadosamente contornando a imagem negativa do ISIS em

52 Loretta Napoleoni, A Fênix Islamita, cit., p. 100.


53 Patrick Cockburn, A Origem do Estado Islâmico, cit., p. 76-77, 113, 189-191.
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comunidades islâmicas54 e mesmo casamentos foram selados através de skype


por imãs do Califado,55 um sinal do ecletismo de práticas que dificilmente
caracterizam um movimento “pré-moderno” ou “medieval”, como apontado pelos
comentaristas ocidentais.
Outro fenômeno importante foram as levas de combatentes
“internacionalistas” que afluíram para o Califado. Graças à repercussão
midiática, ao foco particularizado nas redes sociais e às conexões diretas,
milhares de jihadistas de várias nacionalidades engrossaram as fileiras do ISIS
não apenas pelos motivos religiosos mais profundos, mas também porque
conseguiam aí contornar tanto econômica quanto subjetivamente a situação de
rejeitados pela economia de mercado. A fragilidade socioeconômica dos
jihadistas, recrutados na maioria das vezes na periferia das cidades da Europa ou
Estados Unidos, ou em países empobrecidos do Terceiro Mundo56, é flagrante
demonstração da falta de laços entre esses indivíduos e suas sociedades de
origem, que por isso a abandonam em nome do Islã:

“Mas o que levou milhares de muçulmanos do Ocidente a


juntarem-se às redes terroristas jihadistas? Um estudo do
Instituto de Defesa da Constituição, [que] analisou os currículos
de cerca de 400 islamistas que se deslocaram da Alemanha para
a "Guerra Santa", chega à conclusão de que os muçulmanos que
se juntaram aos jihadistas eram em grande parte marginalizados.
Apenas 12 por cento destes guerreiros religiosos tinham um

54 Veja sobre isso o documentário ISIS British Women, dir. Poppy Begum (Inglaterra,
2015). Recrutadoras do ISIS trabalhavam em Londres e realizavam constantes
encontros onde discutiam a importância religiosa do Califado. O caso mais famoso das
“noivas do EI” é o de uma cantora britânica de punk rock, Sally Jones, que conheceu
um jihadista on-line e com ele se casou (Junaid Hussain, ISIS Recruiter. Reported
Killed in Airstrike, The New York Times, 27 ago. 2015. Disponível em:
http://www.nytimes.com/2015/08/28/world/middleeast/junaid-hussain-islamic-
state-recruiter-killed.html?_r=0. Acesso abr. 2016).
55 Anna Erelle, Na pele de uma jihadista: a história real de uma jornalista recrutada

pelo Estado Islâmico. São Paulo: Paralela, 2015, p. 117.


56 Segundo informações coletadas pela CIA, o ISIS possuía entre 20.000 a 31.500

combatentes. Além disso, 15 mil estrangeiros foram combater na guerra civil da Síria,
2.000 deles ocidentais. Nem todos, evidentemente, vão se juntar ao Estado Islâmico
(ISIS can 'muster' between 20,000 and 31,500 fighters, CIA says, CNN, 12 set. 2014.
Disponível em: http://edition.cnn.com/2014/09/11/world/meast/isis-syria-iraq/.
Acesso abr. 2016). Com o aparato de propaganda construído pelo grupo, é provável que
a maior parte integre as suas forças de combate: EI chega a divulgar mensagens em
treze línguas diferentes (Eric Fottorino (org.), Quem é o Estado Islâmico?, cit., p. 95).
Um vídeo de 2014 mostrava jihadistas de diversos países queimando seus passaportes,
demonstrando com isso a eliminação de qualquer vínculo com sua vida anterior e
nacionalidade (Patrick Cockburn, A Origem do Estado Islâmico, cit., p. 83).
[-] www.sinaldemenos.org Ano 9, n°12, vol. 2, 2018 129

emprego regular, a esmagadora maioria dos quais no setor de


baixos salários. Apenas seis por cento tinham terminado um
curso profissional e dois por cento uma licenciatura. Cerca de um
terço desses islamistas já antes tinha entrado em conflito com a
lei, principalmente em conexão com a pequena criminalidade
típica de gueto. Na sua maioria os que deixaram o país eram
membros da camada mais baixa, que levavam uma vida em
condições precárias nas margens da legalidade nos guetos
informais de estrangeiros na RFA – até caírem no meio salafista.
É significativo que apenas em 23 por cento dos casos os pais
desses guerreiros religiosos eram praticantes de um Islão
fundamentalista.”57

O terceiro processo marcante nos últimos anos, este desencadeado pela


fundação do Califado, foi a declaração de fidelidade emitida por bárbaros grupos
terroristas em regiões longínquas. O nigeriano Boko Haram, o filipino Abu
Sayyaf, o somaliano Jahba East, o líbio Brigada Battar e mesmo o chamado
Emirado Islâmico do Afeganistão, mais conhecido como Taleban – todos
declararam lealdade ao califa al-Baghdadi. Com domínios territoriais nos países
em que atuam, o Estado Islâmico passou a considerar essas respectivas áreas de
seus subordinados como “províncias” do Califado.
A lista de “vassalos” poderia continuar por vários países: Egito, Iêmen,
Paquistão, Tunísia, Bósnia etc.,58 entretanto, aqui começa a se dissolver o limite
entre grupos organizados com enraizamento territorial e pequenas células
imiscuídas no meio de comunidades islâmicas ou mesmo terroristas “lobos
solitários” que aderiram ao fatwa do califa. E esse é o quarto fenômeno
significativo que resulta do grande impacto mundial da refundação do Califado.
Em todos os lados há um terreno social fértil para o ímpeto individual de
responder e se vingar violentamente de um processo de modernização fracassado.
Movimentos nacionalistas de extrema-direita, renascimento fascista e
neonazismo, assim como o fundamentalismo cristão buscam desesperadamente
um alvo para projetar o ódio e descarregar as frustações produzidas pela
economia de mercado. A forma própria como os islâmicos radicais, excluídos pelo

57 Thomasz Konicz, “Barbárie Globalizada: Uma tentativa de entender o fenómeno do


"Estado Islâmico"”. Disponível em: http://www.obeco-
online.org/tomasz_konicz2.htm. Acesso out. 2016.
58 “From Syria to Bosnia: Isis and its affiliates around the world”, The Guardian, 3 jul.

2015. Disponível em: https://www.theguardian.com/world/2015/jul/03/isis-and-


affiliates-around-the-world. Acesso abr. 2016.
[-] www.sinaldemenos.org Ano 9, n°12, vol. 2, 2018 130

colapso da modernização, se apresentam em sociedades onde não são maioria, e


por isso não podem se organizar em milícias sem despertar suspeitas, é a do
terrorismo free-lancer: aceitando um chamado de sacrífico contra os apóstatas,
eles se lançam contra as multidões em locais públicos, bares, boates e praias. A
proliferação desses atentados individualizados ou em minúsculos grupos
(França, Canadá, Austrália, EUA) revela a estranha compatibilidade entre um
Estado — cuja materialização territorial é bem definida e sistematicamente
explorada — com a capacidade de difusão de suicidas capilarizados em terras
estrangeiras. Ou seja, o ISIS é uma inédita combinação de um Estado que
empreende guerras no sentido mais convencional, grupos sistematicamente
preparados para promover ações guerrilheiras e ao mesmo tempo pequenas
células e indivíduos praticando terrorismo.
Esse último aspecto revela a identidade de fundo entre a regressão social,
violência islâmica e a barbárie pós-moderna da sociedade ocidental: a adesão de
“nacionais” em países ocidentais ao extermínio e autoextermínio indica que não
é preciso o contexto social do Oriente Médio para criar potenciais homens-bomba
e atiradores de ruas. A forma social capitalista cria, por todas as partes onde
falham os mecanismos básicos de socialização, o terrorista e o amoque, não
importando tanto a sua cultura.59 Essa dimensão aparece apenas como a
justificativa simbólica para a desforra diante da sistemática rejeição realizada por
uma sociedade em decomposição. Aliás, diferente de outros momentos de crise
na história moderna, em que a cultura serviu de fundamento para uma crítica
social e de problematização dos próprios invólucros destrutivos que esta
sociedade assumia, o papel das formas e conteúdos culturais numa sociedade em
crise estrutural torna-se regressivo — serve como base para a identificação étnica,
nacional ou religiosa que legitima ainda mais a retaliação mútua. O ISIS
arregimentou essas forças como nenhum outro grupo ou Estado.
Se não basta toda a história de violência na relação do Ocidente com o
Oriente Médio para demonstrar os fundamentos comuns dessa barbárie, é no
semelhante modo de se ater a uma identidade cultural que encontramos
novamente esses vínculos. É possível apontar no aprofundamento da crise

59Robert Kurz, “A pulsão de morte da concorrência: assassinos amoques e suicidas


como sujeitos da crise”. Disponível em: http://www.obeco-online.org/rkurz100.htm.
Acesso abr. 2016.
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econômica mundial a tendência, no Ocidente, do agrilhoamento a uma


identidade nacional ou racial contra aqueles que são as causas de infortúnios
sociais ou que podem representar esse papel por meio de projeções ideológicas.
Também no Oriente Médio isso ocorre, mas aí o vínculo identitário imediato não
é a nacionalidade, sempre frágil ou completamente desintegrada com o colapso
do pan-arabismo. O laço imediato que oferece uma tênue segurança e, muitas
vezes, apenas vingança, é a identidade religiosa de xiita, sunita etc. Com o
Califado, esses últimos encontram agora um objetivo e um estandarte que
preenche o vácuo social, uma conquista concreta que remete ao “poder
sobrenatural e impregnado de nostalgia por uma fase áurea perdida”.60 A longa
história de conflitos no Iraque, até a ascensão do Estado Islâmico, demonstra
como o fiasco de uma tentativa de construção nacional (e também do pan-
arabismo) acabou despertando forças incontroláveis e destrutivas que exploram
as divisões sociais até à violência inaudita.

60 Loretta Napoleoni, A Fênix Islamita, cit., p. 74.


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Direito, democracia e a política como


torção do simbólico

Diogo Mariano Carvalho de Oliveira1

Prolegômenos metodológicos

Pretendemos aqui abordar uma perspectiva diferente no enfrentamento


do fenômeno jurídico. Entendemos que há uma leitura que pode ser feita do
Direito que se dá por meio de uma dialética materialista. A dialética materialista
é antes de tudo um método, e por meio dela pretendemos que a análise feita do
objeto em questão considere tanto os aspectos objetivos e materiais quanto os
elementos subjetivos e espirituais, observando principalmente a força
determinante do objeto.

A dialética não tem autonomia quanto ao objeto porque não


impõe ao objeto as determinações do sujeito, mas, pelo contrário,
propõe curvar o sujeito às determinações do objeto. O método
dialético não é, assim, um mero “instrumento do intelecto”, algo
de que se mune o sujeito cognoscente e ao qual necessariamente
o objeto deverá “encaixar-se”. Não é o sujeito que “dobra” o
objeto por meio do método, mas o objeto que determina o
próprio método pelo qual é conhecido, portanto também o
sujeito que busca conhecê-lo.2

O que se promove com a dialética é uma descentralização do sujeito


enquanto sujeito cognoscente, enquanto sujeito centralizado como significador
da cadeia de movimentos. Não é mais o homem que engendra seu método e
captura o objeto através do conhecer. Ao contrário, o objeto exige seu próprio
método para que possa ser capturado nas teias do conhecimento; é o objeto que
determina qual a teoria adequada para a obtenção do conhecimento sobre ele.

1 Mestrando no Programa de Pós-Graduação em Ciências Jurídicas da Universidade


Estadual do Norte do Paraná (UENP). Militante do Círculo de Estudos da Ideia e da
Ideologia – CEII. Para sugestões, dúvidas e críticas: diogo.carvalho92@hotmail.com.
2 KASHIURA JR., Celso Naoto. Crítica da igualdade jurídica – contribuição ao

pensamento jurídico marxista. São Paulo: Quartier Latin, 2009, p. 33.


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Althusser é quem chama atenção para essa mudança do paradigma filosófico a


partir da obra marxiana:

Ao rejeitar a essência do homem como fundamento teórico, Marx


(...) expulsa as categorias filosóficas sujeito, empirismo, essência
ideal etc. de todos os domínios em que elas reinavam. Não só da
economia política (rejeição do mito do homo economicus, ou
seja, do indivíduo com faculdades e necessidades definidas, na
condição de sujeito da economia clássica); não só da história
(rejeição do atomismo social e do idealismo político-ético); não
só da moral (rejeição da ideia moral kantiana); mas também da
própria filosofia: visto que o materialismo de Marx exclui o
empirismo do sujeito (e seu inverso: o sujeito transcendental) e
o idealismo do conceito (e seu inverso: o empirismo do
conceito).3

Mas é somente por possuir condições de negar esses conceitos que a


revolução teórica da obra de Marx é possível. O que Marx faz efetivamente é
fundar um novo conjunto de problemas, novos modos sistemáticos de questionar
o mundo, novas bases e um novo método. Essa novidade encontra-se no
materialismo histórico-dialético, através do qual Marx propõe não apenas uma
nova abordagem da história das sociedades, mas também deixa implícita uma
“filosofia” nova, com infinitas implicações; uma “filosofia da práxis”. Ao
substituir o antigo par essência-humana/indivíduos por conceitos novos como
relação de produção e forças produtivas, Marx propõe uma nova concepção da
“filosofia”. Os postulados do materialismo anterior a Marx, do empirismo
idealista do sujeito e do empirismo idealista da essência são substituídos por um
materialismo histórico-dialético da práxis; uma teoria que abarca os diversos e
peculiares níveis da prática humana – científica, econômica, ideológica, política,
etc. – e suas articulações desencadeadas em meio às específicas inter-relações da
sociedade humana.4
A metodologia dialética persiste, portanto, numa análise material da
vida. E essa materialidade pressupõe a compreensão do conhecimento como a
captura do conceito do objeto de conhecimento enquanto engendrado em um

3 ALTHUSSER, Louis. Por Marx. Trad. Maria Leonor F. R. Loureiro. Rev. Márcio
Bilharinho Naves, Celso Naoto Kashiura Jr. Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2015,
p. 189.
4 Ibidem, p. 190.
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dado momento das contradições e determinações da totalidade. Portanto, o que


pretendemos pelo método dialético marxista é:

(...) analisar o objeto sem um plano metodológico já pronto, mas,


ao inverso, encontrar o plano metodológico no próprio objeto.
Trata-se de buscar desvendar a estrutura interna do objeto e, a
partir disto, fazer coincidir com ela a estrutura da teoria. Isto, por
si só, já não é simples – menos simples ainda ao levar-se em
consideração um necessário fato complexificador: se o objeto
dado ao conhecimento é social, tem-se como sujeito e como
objeto da relação de conhecimento, simultaneamente, a
sociedade. O sujeito do conhecimento nunca é, afinal, o indivíduo
isolado, mas sempre a sociedade. A produção do conhecimento
não é uma atividade individual, atividade de uma razão que se
encontraria plena em cada indivíduo, mas uma atividade social –
o conhecimento é todo produzido por homens em sociedade.
Sujeito e objeto não são reciprocamente exteriores, portanto o
objeto não se submete inocentemente ao sujeito – a sociedade,
que é sujeito e objeto ao mesmo tempo, não se apresenta clara e
docilmente, não se deixa penetrar pelo conhecimento de
imediato. Muito pelo contrário, a sociedade se apresenta como o
que não é e exige, para ser conhecida autenticamente, uma série
de mediações.5

Mas como o objeto está inserido numa totalidade concreta, uma realidade
complexa que determina a maneira pelo qual o objeto é pensado, ele sofre as
determinações da estrutura que lhe sustém e do momento onde existe. Uma
existência concreta, mas que apenas é percebida pelo sujeito por meio do
pensamento: um concreto pensado. Mas esse concreto pensado apenas pode
surgir no pensamento por meio da abstração do concreto; ele é o resultado dessa
operação dialética. Essa abstração parte inicialmente da captura da aparência
(Scheinen) do objeto, já que ele não emerge, como destacamos com Kashiura Jr.,
como conceito (Begriff) efetivo, mas apenas como um “brilho” do que é, por uma
certeza sensível daquilo que pensamos ser.

Apreender o abstrato para chegar ao concreto, apreender a


aparência para chegar à essência: os desvios da dialética, o
caminho tortuoso do pensamento que apreende a realidade
contraditória, pode, é certo, parecer “ilógico”. Não se trata, de
qualquer maneira, de uma simples questão de lógica. O caminho
do pensamento linear que se inicia pela totalidade abstrata pode
ser até mais “lógico” – a “lógica”, no entanto, existe apenas no
intelecto do sujeito, não no objeto. Já o pensamento que ascende
do abstrato ao concreto, da parte ao todo, é apto a reconstruir no

5 KASHIURA JR., op. cit., 2009, p. 34, 35.


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pensamento a estrutura do objeto. É o caminho ditado pelo


próprio objeto. A sucessão em que os elementos são
apresentados, na série de mediações que conduz à totalidade, não
é, portanto, acidental ou arbitrária, não é aleatória ou meramente
conveniente. É uma ordem necessária, posto que determinada
pela estrutura interna do objeto.6

Para compreender o concreto e, por conseguinte, a totalidade concreta, é


preciso que nos coloquemos diante da tarefa inicial de abstrairmos o objeto. E
para fazermos isso conforme ao método dialético devemos partir da apreensão da
parte sem perder a percepção do todo, já que o objeto é engendrado por um todo
complexo estruturado. Ele está sobredeterminado por uma série de
determinações e contradições que o fazem o que ele é. E para entender o objeto e
o caminho de sua estrutura interna impõe-se partir de suas determinações mais
simples.

Estado constitucional e democracia

Dessarte, entendemos que a democracia deve ser compreendida como


um regime político submetido e engendrado pela configuração social presente. A
democracia nos aparece, atualmente, como um princípio fundante do Estado e da
sociedade moderna, consagrando-se como base da sedimentação político-social.
Não apenas isso, a democracia é um amálgama positivado juridicamente de uma
série de direitos e garantias fundamentais dos quais é condição de possibilidade
de exercício e fundamento legitimante, e sobre a qual está assentada a
autodeterminação de um povo:

A democracia como autogoverno do povo: um regime onde cada


cidadão pode, cada um por sua vez, comandar e ser comandado,
como recita a famosa definição aristotélica; a democracia como
uma forma de governo em que o cidadão intervém diretamente
no processo de decisão política (um tipo de democracia que os
“modernos” chamarão “direta”; a democracia como triunfo dos
cidadãos e de sua liberdade de palavra e ação política.7

6Ibidem, p. 39, 40.


7 COSTA, Pietro. Soberania, representação, democracia: ensaios de história do
pensamento jurídico. Curitiba: Juruá, 2010, p. 212.
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Nesse sentido, o Estado como se apresenta para nós hoje é um Estado


estruturado jurídico e politicamente como um Estado Constitucional
Democrático de Direito. Ao menos formalmente, o Estado constitui-se como
órgão responsável pela garantia e defesa do regime democrático, conciliando de
um lado o poder soberano exercido pelas instituições do Estado e de outro as
garantias, direitos e mecanismos individuais que têm como finalidade assegurar
a realização da liberdade e da igualdade de cada um dos cidadãos que compõem
o corpo político do povo. Em suma, o Estado se configura como uma democracia
constitucional:

A democracia constitucional é aquela que representa essa “alma


única” existente entre soberania popular e direitos
fundamentais, entre liberdades positivas e liberdades negativas,
entre igualdade formal e igualdade material, enfim, entre
liberdade e igualdade. Mais precisamente, a democracia
constitucional registra-se como sendo o regime político
essencialmente comprometido com a dignidade da pessoa
humana, encarando esta enquanto marco cultural comum e
integralizador da comunidade jurídico-política que caracteriza o
Estado Democrático de Direito.8

O Estado de Direito Constitucional, conforme a concepção kelseniana, ao


conciliar numa síntese a democracia – e sua lógica majoritária – com a proteção
dos direitos fundamentais previstos na Constituição, parece permitir a superação,
ao menos à primeira vista, dos impasses da democracia tradicional em relação à
tutela eficaz dos direitos e garantias individuais, já que não apenas a atividade
administrativa estatal, mas também a própria atividade legislativa
desempenhada pelos órgãos do Estado passa a estar sujeita ao controle dos
órgãos do judiciário.9

Tendo em vista que a proteção da liberdade por meio dos direitos


fundamentais é, na verdade, proteção juridicamente mediada,
isto é por meio do Direito, pode-se afirmar com segurança, na
esteira do que leciona a melhor doutrina, que a Constituição (e,
neste sentido, o Estado Constitucional), na medida em que
pressupõe uma atuação juridicamente programada e controlada
dos órgãos estatais, constitui condição de existência das
liberdades fundamentais, de tal sorte que os direitos

8 BIELSCHOWSKY, Raoni Macedo. Democracia constitucional. São Paulo: Saraiva,


2013, p. 93, 94.
9 COSTA, Pietro, op. cit., 2010, p. 253.
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fundamentais somente poderão aspirar à eficácia no âmbito de


um autêntico Estado constitucional.10

Essa aspiração à eficácia é fundamental não apenas em um Estado


Constitucional, mas principalmente em um Estado Constitucional Democrático,
através do qual a guarida dos direitos de liberdade e igualdade se constituem não
apenas como direito dos cidadãos de uma comunidade democrática, mas também
como dever indesviável do Estado, já que é apenas por meio da democracia que
se torna possível exigir do cidadão uma participação consciente na partilha das
funções estatais; em contrapartida, cabe ao Estado assegurar todas as condições
necessárias para que essa participação democrática no funcionamento e na
manutenção do órgão estatal se desenvolva de forma livre, igualitária e justa. Por
conseguinte, a democracia, como fundamento do Estado moderno, é situada não
apenas como base do edifício jurídico-político social, e tampouco somente como
regime político através do qual o Estado se relaciona com seus súditos, mas
efetivamente como uma pilastra que sustenta a possibilidade e a potência
eficacial das garantias e direitos fundamentais, sendo estes últimos, por sua vez,
o fundamento primeiro do regime democrático.

Com efeito, verifica-se que os direitos fundamentais podem ser


considerados simultaneamente pressuposto, garantia e
instrumento do princípio democrático da autodeterminação do
povo por intermédio de cada indivíduo, mediante o
reconhecimento do direito de igualdade (perante a lei e de
oportunidades), de um espaço de liberdade real, bem como por
meio da outorga do direito à participação (com liberdade e
igualdade), na conformação da comunidade e do processo
político, de tal sorte que a positivação e a garantia do efetivo
exercício de direitos políticos (no sentido de direitos de
participação e conformação do status político) podem ser
considerados o fundamento funcional da ordem democrática e,
neste sentido, parâmetro de sua legitimidade.11

A democracia, em sua forma, se apresenta assim como elemento


essencial e imanente para a efetiva realização dos direitos e garantias
fundamentais. Trata-se, sob o aspecto subjetivo, de um instrumento jurídico-

10 SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais: uma teoria geral dos
direitos fundamentais na perspectiva constitucional. 11. ed. rev. atual. Porto Alegre:
Livraria do Advogado Editora: 2012, p. 59.
11 Ibidem, p. 61.
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político imprescindível para a garantia desses direitos e garantias e, sob o aspecto


objetivo, de um regime político estabelecido legalmente e mantido pelo Estado,
através do qual se apresenta supostamente possível a justa relação entre os
cidadãos e o Estado. Entendemos, nesse sentido, em razão da importância da
democracia, e da qual depende a efetiva existência dos direitos à liberdade e à
igualdade, que ele pode ser considerado, a despeito de posicionamentos
contrários e de ausência de previsão legal, um direito da personalidade, ou seja,
um poder jurídico inerente à realização da pessoa humana considerada
juridicamente.

Liberdade, igualdade, forma jurídica e forma política

Contudo, precisamos compreender em que sentido pode-se pensar a


democracia sob a dialética. Para tanto, temos de retomar a dialética marxiana,
buscando capturar o todo conceitual a partir do seu objeto nuclear, o elemento
mais simples do problema. É por essa razão que Marx não parte da sociedade
capitalista para entender os seus processos e fluxos constitutivos. Pelo contrário,
Marx parte da categoria mais simples e fundamental do modo de produção
capitalista para entender sua totalidade: a mercadoria. E ao tratar do Direito,
Evgeny Pasukanis faz o mesmo, partindo da categoria mais simples e
fundamental do Direito: o sujeito de direito. Segundo ele: “toda relação jurídica é
uma relação entre sujeitos. O sujeito é o átomo da teoria jurídica, seu elemento
mais simples, indecomponível”.12
O sujeito de direito é o elemento nuclear da teoria jurídica, e é por meio
da apreensão de seu conceito (Begriff) que se torna possível compreender o que
ele efetivamente é. Tal conceituação é apenas possível se o objeto é capturado
dialeticamente. É justamente o que Pasukanis percebe:

A análise da forma sujeito, em Marx, decorre imediatamente da


análise da forma mercadoria. A sociedade capitalista é antes de
tudo uma sociedade de proprietários de mercadorias. Isto
significa que as relações sociais dos homens no processo de
produção possuem uma forma coisificada nos produtos do
trabalho que se apresentam, uns em relação aos outros como
valores. A mercadoria é um objeto no qual a diversidade concreta

12 PASUKANIS, Evgeny Bronislanovich. A teoria geral do direito e o marxismo. Trad.


Paulo Bessa. Rio de Janeiro: Renovar, 1989, p. 81.
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das propriedades torna-se, simplesmente, o invólucro coisificado


da propriedade abstrata do valor, que se exprime como
capacidade de ser trocada em uma proporção determinada em
relação a outras mercadorias. Esta propriedade se exprime com
uma qualidade inerente às próprias coisas, em virtude de um tipo
de lei natural que age independente dos homens, de maneira
indiferente às suas vontades.13

É possível antever porque o Direito atribui ao sujeito jurídico dois


direitos básicos inerentes: 1) liberdade, pois deve trocar suas mercadorias
voluntariamente – incluindo aqui sua própria força de trabalho, ou seja, aliena
seu tempo de vida; 2) igualdade, pois se relaciona com outros sujeitos numa
relação de equivalência, assim como as mercadorias relacionam-se entre si, isto
é, apenas enquanto possuidores de mercadorias que trocam equivalente por
equivalente. Pontos que passaremos a demonstrar mais demoradamente a seguir.
Esta digressão, de fins propedêuticos, nos conduz à proposição de que o
Direito deve ser entendido como uma forma específica da sociedade capitalista.
Isso quer dizer que apenas é possível falar de Direito na modernidade. Trata-se
de um elemento engendrado e engendrador da totalidade capitalista, tanto efeito
quanto causa de sua reprodução. Se o conceito, entendemos, apenas é possível
pela captura de um momento finito do devir, o Direito apenas é apreensível
enquanto ser-aí; ser determinado em certa espacialidade e temporalidade. Ele
deve ser captado como resultado de diferentes determinações que interagem e
acumulam-se dentro de uma forma de organização social específica.

(...) cada formação social possui um conjunto de estruturas que


possuem diferentes níveis (ou instâncias), com pesos e
temporalidades desiguais. As formações sociais expressam esse
todo-complexo no qual a sua unidade se dá por uma estrutura
dominante, e tem como princípio uma determinação em última
instância da estrutura econômica. Assim sendo, há uma
multiversidade de determinações (embora o econômico seja o
determinante em última instância) com uma estrutura
dominante, já que expressa internamente nos seus níveis a
contradição dominante, havendo alterações de dominação
quando há deslocamento dessa contradição dominante para
outra estrutura. Portanto, as contradições atuam de forma
sobredeterminante, ou sobredeterminada.14

13 Ibidem , p. 84.
14 MOTTA, Luiz Eduardo. A favor de Althusser: revolução e ruptura na teoria marxista.
1. ed. Rio de Janeiro: GRAMA; FAPERJ, 2014, p. 52, 53.
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Nesse sentido, o Direito como aquilo que é existe apenas como resultado
de contradições de um dado complexo de determinações onde há uma
sobredeterminação do econômico. E a modernidade é esse todo complexo que
marca suas notas distintivas; um bloco histórico que é inaugurado a partir da
acumulação primitiva do capital – a subsunção do trabalho ao capital.

Marx identifica, na gênese do modo de produção capitalista, uma


fase inicial que ele denomina de “acumulação primitiva” ou
“acumulação originária”, e que vem a ser, fundamentalmente, o
processo de separação do trabalhador direto dos meios de
produção. É essa separação que constitui as relações de produção
capitalistas que, como Marx explica, não são relações
intersubjetivas, nem são apenas relações entre classes, mas são
relações entre os agentes da produção e os meios de produção,
portanto, são relações entre classes mediadas pelos meios de
produção.15

Ora, no vol. I d’O Capital, Marx já havia mostrado como esse processo de
acumulação primitiva do capital insere a liberdade na sociabilidade humana,
entendida sob uma perspectiva dúplice: por um lado, há uma espoliação do
trabalho e das condições de vida do homem campestre e, por outro, a inserção do
homem enquanto mercadoria implicada na possibilidade de disposição de si
mesmo enquanto força de trabalho.16
A compreensão do fenômeno jurídico, assim entendemos, depende de sua
análise através do materialismo histórico e dialético. Portanto, como já
destacado, o Direito somente pode ser apreendido se também engendrarmos seu
entorno, capturando a totalidade através da dialética e compreendendo o limite
negativo que delimita as determinações e contradições colidentes dentro de um
intervalo espacial finito, isto é, captando a “realidade como um todo estruturado,
dialético, no qual ou do qual um fato qualquer (classe de fatos, conjuntos de fatos)
pode vir a ser racionalmente compreendido”17.Nesse sentido, a totalidade
moderna se mostra uma totalidade eminentemente capitalista,
sobredeterminada pela lógica do Capital, que define, configura e reproduz suas

15 NAVES, Márcio Bilharinho. A questão do Direito em Marx. São Paulo: Outras


Expressões; Dobra Universitário, 2014, p. 44.
16 Ibidem, p. 46.
17 KOSIK, Karel. Dialética do concreto. 7. ed. Tradução de Célia Neves e Alderico Toríbio.

São Paulo: Editora Paz e Terra, 1995, p.35.


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estruturas, dentre as quais, encontra-se o Direito. Desse modo, o que


pretendemos postular é que:

Há uma relação necessária entre direito e capitalismo. O direito


não é um conjunto de técnicas neutras, nem tampouco é a
manifestação de ideais elevados ou pretensas dignidades
humanas. A questão jurídica não paira, sobranceira ou
imaculada, por sobre a exploração do capital. Naquilo que tem de
fundamental e estrutural, o direito se apresenta como forma
social reflexa e derivada de relações sociais específicas. Só é
possível compreender o direito dentro do quadro da sociedade
capitalista. Assim sendo, o direito é histórico. E tal historicidade
do fenômeno jurídico é dupla: tanto seus institutos (seu conteúdo
ou sua quantidade) são variáveis em razão de dinâmicas sociais
múltiplas, como, em especial, sua forma é social e insignemente
histórica, guardando com o capitalismo particular e inexorável
conexão.18

Mas isso quer dizer que a liberdade e igualdade dos sujeitos de direito –
que aparecem na sociedade capitalista enquanto trocadores de mercadorias –
“garantidas” pelo Direito são apenas imaginárias? São apenas atribuições
institucionais resultantes da forma social? Liberdade e igualdade não existem
realmente, e na verdade nossa existência é tão oca quanto o Vazio de Boötes 19?
Sim, e não. O fato de a liberdade e a igualdade, na sociabilidade capitalista, não
existirem de modo efetivo (Wirklich), mas enquanto atribuição imaginária, não
retira a sua possibilidade de reverberar efeitos sobre o real. Na verdade, o
imaginário pode ser tanto ou até mais real que o concreto. Ora, a modernidade
não é um mundo colonizado por relações imaginárias? Uma caótica inversão
entre real e imaginário que cria uma zona de indeterminação entre o que é um e
o que é outro, o que é imanente e o que é ilusório; não é isso o fetichismo do
fenômeno econômico e jurídico?

18 MASCARO, Alysson Leandro. Direito, capitalismo e estado: da leitura marxista do


direito in: KASHIURA JR. Celso Naoto; AKAMINE JR., Oswaldo; MELLO, Tarso de
(orgs.). Para a crítica do direito: reflexões sobre teorias e práticas jurídicas. 1. ed. São
Paulo: Outras Expressões; Editorial Dobra, 2015, p. 45, 46.
19 O Vazio de Boötes é uma região do espaço bastante curiosa descoberta em 1981 que

está localizada nas contiguidades da galáxia de Boötes. Os vazios do universo – do qual


este é apenas um deles – são lugares que possuem poucas ou quase nenhuma galáxia
em suas circunscrições. Por não haver muitos corpos celestes, a maior parte desse vazio
não reflete qualquer luz. Grande parte do que podemos ver nesses espaços são,
portanto, apenas infinita escuridão. Ou seja, na verdade não vemos coisa alguma. O
imaginário não é também um vazio que existe pela sua própria inexistência? (Ver mais
em: http://asd.gsfc.nasa.gov/blueshift/index.php/2013/07/30/jasons-blog-next-
stop-voids)
[-] www.sinaldemenos.org Ano 9, n°12, vol. 2, 2018 142

O fetichismo da norma e da pessoa, unidos doravante sob o


vocábulo único de direito, faz esquecer que a circulação, a troca
e as relações entre pessoas são na realidade relações entre
coisas, entre objetos, que são exatamente os mesmos da
produção e da circulação capitalistas. E, de facto, no mundo do
direito tudo parece passar-se entre pessoas: as que mandam e as
que obedecem, as que possuem, as que trocam, as que dão, etc.
Tudo parece ser objeto de decisão, de vontade, numa palavra, de
Razão. Jamais aparece a densidade de relações que não são
queridas, de coisas às quais os homens estariam ligados, de
estruturas constrangedoras mas invisíveis. (...) O sistema
jurídico da sociedade capitalista caracteriza-se por uma
generalização da forma abstracta da norma e da pessoa
jurídicas. Essa generalização permite representar a unidade
social de maneira ao mesmo tempo real e imaginária.20

As relações sociais e econômicas do capitalismo existem, realmente, de


acordo com o tipo de organização que está implicada pelo capital. Mas também
existem as relações jurídicas que expressam e reproduzem essas relações. Por
esse motivo, as relações jurídicas não são produto exclusivo do imaginário; elas
de fato existem, contém uma manifesta materialidade, tão real como a polícia, a
justiça, a administração, ou seja, os aparelhos de Estado ao qual estão ligadas.
Contudo, elas encontram-se simultaneamente encobertas por todo um
imaginário jurídico. Estamos convencidos de que a fonte do direito é o homem e
de que podemos nos submeter ou resignar a um sistema normativo do qual ele
mesmo é o autor; estamos convictos de que este imaginário do qual emana o
sujeito de direito e a norma como regra imperativa é efetivamente real. Esses
aspectos nos parecem necessários e lógicos para que as relações sejam
organizadas; mas isso nos impede de ver que elas já estão organizadas “noutro
lado”. Quando o Direito se realiza, ele não postula um dever ser, mas somente
confirma aquilo que já é. Mas isso se torna imperceptível para nós, pois
acreditamos que a norma é um imperativo categórico primeiro, fonte de valor por
si mesma, assim como se dá com a mercadoria. Atribuímos uma qualidade à
norma jurídica que lhe parece imanente, a imperatividade. Contudo, e aí é que
reside o problema, essa atribuição não emana da norma, mas do tipo de relação
social real da qual essa norma é expressão. É aqui que surge o processo de
fetichização. A norma jurídica não cria a obrigação, mas a realiza no momento da

20MIALLE, Michel. Introdução crítica ao Direito. Trad. Ana Prata. 3. ed. Lisboa:
Editorial Estampa, 2005, p. 94, 95.
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efetivação da relação jurídica, assim como a mercadoria não cria valor, mas
apenas o realiza no momento da troca.21

[...] a “gênese” (genezis) da forma do direito se encontra na


relação de troca; a forma jurídica é o “reflexo inevitável”
(neizbejnymotprajeniem) da relação dos proprietários de
mercadorias entre si; o princípio da subjetividade jurídica
“decorre com absoluta inevitabilidade” (vytekaiut s
absoliutnoineizbejnost’iu) das condições da economia mercantil-
monetária; esta economia mercantil é a “condição prévia
fundamental” (osnovnoipredposylkoi), o “momento
fundamental e determinante”
(osnovnymopredeliaschimmomentom) do direito; a forma
jurídica é “gerada” (porojdaet) pela forma mercantil; a relação
econômica de troca “deve existir” (doljnobyt’) para que “surja”
(vozniklo) a relação jurídica; a relação econômica é a “fonte”
(istotchnikom) da relação jurídica. Todas essas expressões
denotam evidente afirmação do caráter derivado do direito, e de
sua específica determinação pelo processo de trocas mercantis.
É, portanto, a esfera da circulação das mercadorias que “produz”
as diversas figuras do direito, como uma decorrência necessária
de seu próprio movimento22.

Nessa esteira, vale destacar célebre parágrafo presente no vol. I d’O


Capital, por meio do qual Marx demonstra ter percebido, já naquela época, a
relação inerente das relações de troca com as relações jurídicas:

A esfera de circulação ou da troca de mercadorias, em cujos


limites se move a compra e a venda da força de trabalho, é, de
fato, um verdadeiro Éden dos direitos inatos do homem. Ela é o
reino exclusivo da liberdade, da igualdade, da propriedade e de
Bentham. Liberdade, pois os compradores e vendedores de uma
mercadoria, por exemplo, da força de trabalho, são movidos
apenas por seu livre arbítrio. Eles contratam como pessoas livres,
dotadas dos mesmos direitos. O contrato é o resultado, em que
suas vontades recebem uma expressão legal comum a ambas as
partes. Igualdade, pois eles se relacionam um com o outro apenas
como possuidores de mercadorias e trocam equivalente por
equivalente. Propriedade, pois cada um dispõe apenas do que é
seu. Bentham, pois cada um olha somente para si mesmo23.

21 MIALLE, Michel, op. cit., 2005, p. 95.


22 NAVES, Márcio Bilharinho. Marxismo e Direito: um estudo sobre Pachukanis. São
Paulo: Boitempo: 2008, p. 53, 54.
23 MARX, Karl. O capital: crítica da economia política. Livro I: o processo de produção

do capital. Tradução de Rubens Enderle. São Paulo: Boitempo, 2013, p. 250, 251.
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O Direito, portanto, deriva diretamente da configuração das relações


sociais. E essas relações sociais estão conformadas pela própria organização da
sociabilidade capitalista; as relações sociais, que são também e principalmente
relações jurídicas, são, em última instância, relações de troca. Essas relações
existem justamente para que o circuito de troca de mercadorias possa ser
operado. Existem justamente porque a forma de sociabilidade da totalidade
capitalista é a troca de mercadorias. Essa é a forma social do Capital, uma forma
que depende e apenas existe através da troca de mercadorias. Mercadorias que
não possuem vontade própria, que não podem ser deslocadas por força própria
no circuito de trocas. Por essa razão é que elas não prescindem do elemento
humano. As trocas mercantis somente se realizam por meio da mediação pelo
elemento humano, através da vontade do sujeito:

As mercadorias não podem ir por si mesmas ao mercado e trocar-


se umas pelas outras. Temos, portanto, de nos voltar para os seus
guardiões, os possuidores de mercadorias. Elas são coisas e, por
isso, não podem impor resistência ao homem. Se não se mostram
solícitas, ele pode recorrer à violência; em outras palavras, pode
tomá-las à força. Para relacionar essas coisas umas com as outras
como mercadorias, seus guardiões têm de estabelecer relações
uns com os outros como pessoas cuja vontade reside nessas
coisas e agir de modo tal que um só pode se apropriar da
mercadoria e alienar a sua própria mercadoria em concordância
com a vontade do outro, portanto, por meio de um ato de vontade
comum a ambos. Eles têm, portanto, de se reconhecer
mutuamente como proprietários privados. Essa relação jurídica,
cuja forma é o contrato, seja ela legalmente desenvolvida ou não,
é uma relação volitiva, na qual se reflete a relação econômica. [...]
Aqui, as pessoas existem umas para as outras apenas como
representantes da mercadoria, e, por conseguinte, como
possuidoras de mercadorias24.

A forma jurídica e a forma social do Capital são duas faces de uma mesma
moeda que existe em razão de uma lógica simbólica específica e que engendra
uma forma de organização social. Uma sociabilidade que depende do Direito para
que possa ser reproduzida e que então encontra sua realização nuclear em duas
categorias fundamentais: a mercadoria e o sujeito de direito; elementos

24 Ibidem, p. 159, 160.


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fundantes, respectivamente, da relação social e da relação jurídica. Nas palavras


de Kashiura Jr:

O sujeito de direito não é, portanto, senão o “outro lado” da


mercadoria – “outro lado” que é, sem dúvida, determinado pela
equivalência mercantil, mas sem o qual o processo de troca
mesmo não pode completar-se. Essa vinculação da forma sujeito
de direito à forma da relação de troca mercantil permite ainda
deduzir os seus atributos fundamentais. (...) Se o sujeito de
direito é, na relação de troca, o “outro lado” da mercadoria, a
igualdade jurídica se apresenta como o “outro lado” da lei do
valor. É a relação de equivalência entre as mercadorias, na
medida do valor que carregam, que exige a igualdade entre os
sujeitos portadores de mercadorias. Quero dizer, é a exigência de
que na troca seja mantida a relação de igualdade entre as
quantidades de valor que as mercadorias que se confrontam
carregam que conduz à equivalência qualitativa, expressa
juridicamente, entre os portadores de mercadoria. Ao
reconhecerem-se como juridicamente iguais, os agentes da troca
são compelidos a manter a relação de equivalência valorativa
entre suas mercadorias: um não toma a mercadoria do outro, não
a obtém por violência direta, mas apenas ao ceder a sua própria
mercadoria, ou seja, apenas ao reconhecer no outro um portador
de certa quantidade de valor equivalente de valor
consubstanciada na própria mercadoria. São ambos compelidos
a reconhecer ao outro o exato mesmo “direito que têm
reconhecido entre si: o “direito” à mercadoria alheia em troca da
mercadoria própria.25

Nas relações de troca, cada um dos sujeitos envolvidos cede a sua própria
mercadoria e adquire a mercadoria do outro por meio de um consentimento
recíproco. Cada um dos sujeitos de direito que se contrapõem nesse circuito de
relações mercantis manifesta sua vontade de forma livre – conditio sine qua non
da troca – de adquirir ou alienar as mercadorias que estão circulando no circuito
de trocas. Não há e nem pode haver entre eles qualquer tipo de domínio,
dependência ou hierarquia. Eles se apresentam iguais na forma e, portanto,
devem também apresentar-se como igualmente livres na relação que estabelecem
entre si26.

25 KASHIURA JR., Celso Naoto. Sujeito de direito e capitalismo. 1. ed. São Paulo: Outras
Expressões; Dobra Universitário, 2014, p. 166-168, 169.
26Ibidem, p. 169.
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Essa é a forma jurídica do capitalismo. Os sujeitos devem se pressupor


livres e iguais para que possam reproduzir o circuito de trocas. A circulação de
mercadorias somente se torna realizável sob essas condições. O sujeito de direito
não é livre e igual aos seus pares pela existência de uma suposta origem natural
ou fundamentação ontológica. As condições de liberdade e igualdade são
atribuídas ao sujeito enquanto premissas da reprodução da sociabilidade
capitalista. Essas condições nascem dela e estão voltadas para ela para cumprir o
único fim do “sujeito autômato”, o Capital: produzir valor.

Muito diversamente do que supõe a teoria jurídica desenvolvida


no interior da ideologia burguesa, a personalidade jurídica não
encontra os atributos da igualdade e da liberdade no interior da
“natureza” do homem. O sujeito de direito não é igual e livre por
conta de uma verdade transcendente ou por uma dádiva do
“espírito”. A igualdade e a liberdade são determinadas por um
processo social e histórico: os agentes da troca se apresentam
como iguais e livres, em termos jurídicos, cujo movimento que
constitui a esfera da circulação mercantil, assim determina.27

Somente numa sociedade onde impera o princípio da divisão do trabalho,


ou seja, numa sociedade onde o trabalho individual se torna trabalho social
abstrato através da mediação de uma equivalência geral, é que se torna factível o
nascimento da forma jurídica. A introdução da operação jurídica – que converte
a relação social num acordo de vontades equivalentes – é o que viabiliza a
circulação da troca de mercadorias. Pasukanis nos mostra, ao estabelecer o liame
entre a forma mercadoria e a forma jurídica, que a segunda é uma forma que
irradia essa equivalência na relação social, a “primeira ideia puramente jurídica”.
A mercadoria só realiza o seu caráter social por meio da troca; é a forma social
que reveste o produto resultante de trabalhos individuais independentes um do
outro e permite sua troca e circulação. Para que o circuito de trocas mercantis se
efetive é necessário que o processo do valor de troca detenha um equivalente
geral, uma medida-padrão que enseje a verificação do quanto de trabalho
abstrato está comprimido na mercadoria. Por isso o Direito está intrinsecamente
conectado à existência de uma sociabilidade que pressupõe a interposição de um

27 Ibidem, p. 170.
[-] www.sinaldemenos.org Ano 9, n°12, vol. 2, 2018 147

equivalente geral que permite transformar em trabalho social múltiplos trabalhos


privados independentes.28
Entretanto, vale ressaltar que o Direito é uma superestrutura articulada
pelo Estado, organizada tecnicamente por meio do poder estatal. Isso significa
então que há não apenas uma relação intrínseca entre a forma jurídica e a forma
social, mas também entre a forma jurídica e a forma política. São elementos que
se comunicam, que se autodeterminam, relacionam-se entre si um confluindo no
outro:

Há um nexo íntimo entre forma política e forma jurídica, mas não


porque ambas sejam iguais ou equivalentes, e sim porque remanescem
da mesma fonte. Além disso, apoiam-se mutuamente, conformando-se.
Pelo mesmo processo de derivação, a partir das formas sociais
mercantis capitalistas, originam-se a forma jurídica e a forma política
estatal. Ambas remontam a uma mesa e própria lógica de reprodução
econômica, capitalista. Ao mesmo tempo, são pilares estruturais desse
todo social que atuam em mútua implicação. As formas políticas e
jurídica não são dois monumentos que agem separadamente. Eles se
implicam. Na especificidade de cada qual, constituem, ao mesmo
tempo, termos conjuntos. O núcleo da forma jurídica reside no
complexo que envolve o sujeito de direito, com seus correlatos do
direito subjetivo, do dever e da obrigação – atrelados, necessariamente,
à vontade autônoma e à igualdade formal no contrato como seus
corolários. Por sua vez, o núcleo da forma política capitalista reside num
poder separado dos agentes econômicos direitos, que se faz presente
por meio da reprodução social a partir de um aparato específico, o
Estado, que é o elemento necessário de constituição e garantia da
própria dinâmica da mercadoria e da relação entre capital e trabalho. 29

Há, portanto, uma relação inexorável entre essas três formas. Uma forma
social – a própria sociabilidade capitalista fundada por e fundante da troca de
mercadorias – a forma jurídica – que tem por objeto o sujeito de direito enquanto
livre e igual (equivalente) – e a forma política – o Estado moderno. Essas três
formas básicas são responsáveis por manter a dinâmica do Capital em
movimento, permitindo sua manutenção, reprodução e desenvolvimento, mesmo
diante de certas fissuras ou descontinuidades. As formas podem sofrer fraturas,
dobraduras, distorções, serem realocadas, transformadas, adaptadas. Podem
sofrer qualquer tipo de alteração. Elas continuarão reproduzindo a lógica da
estrutura simbólica do Capital. É essa lógica que dá a configuração das formas no
devir de seus deslocamentos; é apenas por meio da ruptura com essa lógica que

28NAVES, Márcio Bilharinho, op. cit., 2008, p. 57, 58.


29MASCARO, Alysson Leandro. Estado e forma política. São Paulo: Boitempo, 2013, p.
39.
[-] www.sinaldemenos.org Ano 9, n°12, vol. 2, 2018 148

se viabilizará uma ruptura com as formas. As formas permitem penetração e


reconfiguração, mas não diretamente sua destruição. Sua dissolução depende
somente da obliteração de seu próprio fundamento: a sociabilidade capitalista.
Por isso essas três formas são essenciais: elas garantem a reprodução e a
manutenção dessa sociabilidade e a configuram ao mesmo tempo em que são por
ela reconfiguradas, implicando uma relação de tensão entre as forças ativas do
Capital e forças reativas que resistem a ele, mas que, em última instância – pelo
menos até o presente momento – não resultam numa reação ao cerne constitutivo
dessa estrutura, mas apenas produz cisões e suturas que mantém a
reprodutibilidade do simbólico capitalista.
Por conseguinte, o Direito parece incapaz de romper com a reprodução
da circulação mercantil. Pelo contrário, ele mostra-se, em alguma medida,
responsável justamente pela sua continuidade, e, portanto, parte do que assegura
o modo de organização da forma política. Trata-se de formas dessemelhantes,
mas que operam de modo congênere, funcionando ambas – a forma jurídica e a
forma política – analogamente através da técnica jurídica:

A imbricação recíproca entre forma política estatal e forma jurídica faz


com que no nível de sua operacionalização e de seu funcionamento,
ambas sejam agrupadas. É a técnica jurídica que cimenta tal
aproximação. No campo das técnicas – não das formas -, o direito e o
Estado estabelecem as maiores pontes entre si. A forma jurídica, que
resulta estruturalmente de relação social específica da circulação
mercantil, passa a ser talhada, nos seus contornos, mediante técnicas
normativas estatais. Ao mesmo tempo, o Estado, sendo forma política
apartada da miríade dos indivíduos em antagonismo social e tendo aí
sua existência estrutural, se reconhecerá, imediatamente, a partir do
talhe das estipulações jurídicas. Nesse sentido, embora as formas
políticas estatal e jurídica sejam forjadas estruturalmente a partir das
relações capitalistas, o imediato de seus corpos opera a partir de uma
técnica aproximada, num processo contínuo de perfazimento. Se no que
tange à forma, política e direito são duas estruturas insignes, na
operacionalização técnica se agrupam.30

Direito e Estado são duas estruturas que se sobrepõem por meio de um


tecnicismo operacional, mas que na verdade são resultantes de uma forma social
específica complexa e estruturada pelas determinações de seu modo de
organização. Isto é, a forma jurídica – o Direito – e a forma política – o Estado –
são estruturas “estruturadas-estruturantes”, engendradas por uma forma de
sociabilidade caracterizada pela troca de mercadorias e pela valorização do valor.

30 Ibidem, p. 43.
[-] www.sinaldemenos.org Ano 9, n°12, vol. 2, 2018 149

Isso quer dizer que ambas as formas possuem uma configuração direcionada à
manutenção, em maior ou menor grau, dessa sociabilidade, pela qual estão
sobredeterminadas.
Ora, se ambos estão sobredeterminados pelo regime corrente de
sociabilidade, isto é, por um modo de produção capitalista que se sedimenta como
determinação oposta ao Direito e ao Estado, engendrando-os numa única
totalidade, então é forçoso dizer que a própria democracia, enquanto fundamento
e princípio político legitimador do Estado, está submetida à lógica do valor
imprimida pela estrutura simbólica reproduzida pelo capitalismo. Dessarte,
como podemos entender a democracia então?

A DEMOCRACIA E OS SEM-PARCELA

A democracia aparece pela primeira vez nas Cidades-estados da Grécia


Antiga, encontrando seu ápice de formação na cidade de Atenas. Aqui, a
democracia é o governo dos cidadãos, que exercem a participação política na
assembleia diretamente, sem qualquer tipo de representante ou mediação. Trata-
se, pois, de um regime político no qual o papel do soberano está encarnado na
figura do corpo coletivo de cidadãos. São os próprios cidadãos, que usufruem da
Pólis, os responsáveis pela administração e organização da Cidade. Nas Pólis, esse
corpo político é formado pelo povo:

Segundo suas raízes gregas, a palavra democracia designa o


poder do povo (demos, kratos). Corresponde a uma noção
surgida precisamente na Grécia antiga, a partir do século VI
antes da nossa era, em Mileto, Megara, Samos e Atenas. Mas as
coisas não são tão evidentes como parecem, pois as palavras – e,
muito particularmente no domínio jurídico-político, as palavras
“povo” e “poder” – estão envoltas em penumbra. Por isso, o olhar
lançado sobre as instituições é mais eloquente que o inventário
das idéias e das palavras.31

Há uma obscuridade sobre as palavras “povo” e “poder”, pois é bastante


difícil encontrar na Grécia antiga uma noção e um fundamento precisos do que
vem a ser ambos. O povo não possuía a mesma delimitação com a qual se entende

31 GOYARD-FABRE, Simone. O que é democracia?: a genealogia filosófica de uma


grande aventura humana. Tradução de Claudia Berliner. São Paulo: Martins Fontes,
2003, p. 9.
[-] www.sinaldemenos.org Ano 9, n°12, vol. 2, 2018 150

hoje o termo, assim como a legitimidade do poder, diluída entre os cidadãos, era
de difícil apreensão, já que o próprio exercício do poder ocorria de maneira
difusa, muitas vezes escapando de um controle preciso de seus desdobramentos.
Não à toa a democracia ateniense guarda em si o germe de sua própria
degradação em razão de suas limitações práticas.
A disposição da repartição dos poderes dos cidadãos, aos poucos, vai se
revelando problemática, na medida em que a liberdade e a igualdade distribuídas
aos cidadãos revela as dimensões de homens dominados pelas paixões e pelos
interesses individuais onde a realização da vontade do corpo coletivo torna-se
cada vez mais difícil. Platão, antecipando – como veremos mais a frente – as
críticas modernas à democracia, revela-nos o cerne do problema do ideal
democrático:

[...] a democracia só pode ser pensada dentro de uma hierarquia


normativa e sob os signos evidentes da corrupção e do
relativismo por meio dos quais o tempo e a experiência
adulteram e destroem a perfeição das idéias de Constituição e
Política. Em suma, a democracia é uma constituição ruim,
associada a esse tipo ruim de homem que, de mísera virtude e
parca inteligência, está sedento por aquilo que crê ser sua
liberdade e a igualdade de todos. A democracia adota realmente
a figura do que Políbio chamará mais tarde de “oclocracia”
(ochlokratia): é o governo de um povo que, antes de ser demos,
é ao mesmo tempo multidão (plethos) e turba (ochlos). Enquanto
tal, arrastada pelo turbilhão da multiplicidade, está voltada à
instabilidade: a Cidade-Estado democrática não pode ser a bela
unidade de uma Constituição estável. Com a liberdade
degenerando em ilegalidade, ela sucumbe à tirania sempre
ameaçada pela desrazão.32

Mas, para entender como a democracia moderna surge, uma retomada


acrítica do passado não é adequada. É preciso percebê-la como resultado de um
duplo móbil. A crítica ao terror stalinista (campanha de perseguições políticas,
perseguições e execuções ocorridas entre 1936 e 1939, após a morte de Lênin)
como dedução do terror revolucionário francês (momento em que o governo
revolucionário da facção da Montanha que integra o partido jacobino promoveu
a suspensão das garantias civis, perseguindo e assassinando oposicionistas) foi
utilizada como argumento da denúncia da democracia liberal; a democracia do
terror, radical e igualitária, sacrifica os direitos individuais em favor da fúria cega

32 Ibidem, p. 30.
[-] www.sinaldemenos.org Ano 9, n°12, vol. 2, 2018 151

das multidões e da religião da comunidade. Essa proposição parece justamente


conduzir-nos a uma reinauguração da democracia liberal e pragmática, livrando-
nos do terror da democracia terrorista e de seus fantasmas revolucionários.
Contudo, essa crítica, posta dessa forma simples, ignora o fundo duplo contido
na crítica ao Terror. Desde o início a crítica liberal apelante aos rigores totalitários
da igualdade radical subordina-se ao princípio de que o pecado da revolução não
era seu coletivismo, mas, inversamente, seu individualismo. Essa crítica,
inaugurada pelos teóricos da contrarrevolução surgida após a Revolução
Francesa, e retomada pelos socialistas utópicos no início do século XIX e pela
jovem ciência sociológica, enunciam essa leitura através do entendimento de que
a revolução foi uma consequência do Iluminismo e de seu princípio fundante, o
protestantismo, que contemplava o individualismo isolado, ao invés de elevar
crenças e estruturas coletivas. A revolução protestante atomizou os indivíduos,
dissolvendo o laço social. O Terror surge justamente como consequência da
vontade de eliminar essa dissolução e recriar o laço social; um esforço de dar
corpo imaginário a uma sociedade destruída33:

O duplo móbil da revolução [- o século das Luzes e o


protestantismo -] permite compreender a formação do
antidemocratismo contemporâneo. Permite compreender a
inversão do discurso sobre a democracia consecutiva ao
desmoronamento do império soviético. De um lado, a queda
desse império foi saudada, por um período bastante breve, como
a vitória da democracia sobre o totalitarismo, a vitória das
liberdades individuais sobre a opressão do Estado, simbolizada
por aqueles direitos humanos reivindicados pelos dissidentes
soviéticos ou pelos operários poloneses. Esses direitos “formais”
foram o primeiro alvo da crítica marxista, e o desmoronamento
dos regimes construídos sobre a pretensão de promover uma
“democracia real” parecia ser a revanche. Mas, por trás da
saudação obrigatória aos vitoriosos direitos humanos e à
democracia recuperada, o que acontecia era o inverso. Uma vez
que o conceito de totalitarismo não tinha mais uso, a oposição de
uma boa democracia dos direitos humanos e das liberdades
individuais à má democracia igualitária e coletivista também se
tornou obsoleta. A crítica dos direito humanos recuperou
imediatamente todos os seus direitos. Podia-se enunciar à
maneira de Hannah Arendt: os direitos humanos são uma ilusão,
porque são os direitos do homem nu, desprovido de direitos. São
os direito ilusórios dos homens que foram expulsos de suas casas,
de sua terra e de qualquer cidadania por regimes tirânicos.

33RANCIÈRE, Jacques. O ódio à democracia. Tradução de Mariana Echalar. 1. ed. São


Paulo: Boitempo, 2014, p. 24, 25.
[-] www.sinaldemenos.org Ano 9, n°12, vol. 2, 2018 152

Conhecemos a simpatia que essa análise tem angariado em


tempos recentes. De um lado, dá um apoio oportuno às
campanhas humanitárias e libertadores de Estados que, em
nome da democracia militante e militar, defendem os direitos
desses sem-direitos. De outro, inspirou a análise de Giorgio
Agamben, que transforma o “estado de exceção” no conteúdo real
de nossa democracia. Mas essa crítica também pode se enunciar
à maneira daquele marxismo que a queda do império soviético e
o enfraquecimento dos movimentos de emancipação no ocidente
disponibilizavam de novo para qualquer uso: os direitos do
homem são os direitos dos indivíduos egoístas da sociedade
burguesa.34

Retornamos, então, ao campo da crítica marxista do Direito. Todavia,


agora em outros termos. O homem egoísta que ressurge no seio da sociedade
burguesa após a derrocada dos movimentos de emancipação social do século XX
– principalmente depois da queda do Muro de Berlim, do enfraquecimento do
Partidos Comunistas, do fim do regime soviético e da vitória da
Weltaunschauung liberal – revela-se nos tempos modernos sob a face de Janus.
Se, por um lado, o sujeito de direito é o homem livre, igual, ao qual deve ser
resguardada a dignidade humana e o direito à participação, ainda que mediante
representação, nas decisões do Estado, por outro, ele se apresenta como o
consumidor narcísico, tomado pelas impulsos de sua clivagem narcísica que
sempre o conduzem ao reconhecimento de suas demandas individuais em
detrimento de qualquer demanda coletiva; o homem cujas demandas de gozo pela
satisfação do desejo encontram sua realização no consumo.

A questão é saber quem são esses indivíduos egoístas. Marx


entendia que eram os detentores dos meios de produção, ou seja,
a classe dominante, da qual o Estado dos direitos humanos era o
instrumento. A sabedoria contemporânea vê as coisas de outro
modo. E, de fato, basta uma série de ínfimos deslocamentos para
dar aos indivíduos egoístas uma feição completamente diferente.
Em primeiro lugar, substituamos “indivíduos egoístas” por
“consumidores ávidos”, o que não deverá causar estranheza.
Identifiquemos esses consumidores ávidos a uma espécie social
história, o “homem democrático”. Lembremos por fim que a
democracia é o regime da igualdade e podemos concluir: os
indivíduos egoístas são os homens democráticos. E a
generalização das relações mercantis, cujo emblema são os
direitos do homem, não é nada mais que a realização da exigência
febril de igualdade que atormenta os indivíduos democráticos e
arruína a busca do bem comum encarnada no Estado.35

34 Ibidem, p. 27-29.
35 Ibidem, p. 28.
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Isto nos conduz à conclusão de que um Direito e uma política orientados


à reprodução de uma lógica de consumo, ou seja, de uma lógica essencialmente
atrelada à manutenção da ordem simbólica do capital, jamais serão capazes de
promover uma liberdade e uma igualdade efetiva (Wirklich), já que a própria
efetivação dessa liberdade e dessa igualdade desaguam fatalmente na busca pela
realização isolada de cada sujeito atomizado que participa do “pacto social”. A
única forma de alcançar a realização dessas potencialidades humanas é a ruptura
com essas formas, isto é, interromper a atual ordem simbólica imposta pelo
grande outro – o Capital – e enclaustrar o fetichismo do capitalismo nos
recônditos do passado da história.
Mas como fazê-lo? Rancière nos deixa entrever uma possibilidade na
política. A política moderna, sob a ótica desse filósofo, implica em pensar uma
redistribuição do espaço e dos modos de ver e de utilizar os espaços. Trata-se,
mais propriamente, de alterar completamente as coordenadas de qualquer tipo
de reivindicação social. Uma reivindicação que não depende e nem pretende se
subjugar às determinações e limitações das regras do Leviatã-juiz.
Tais reivindicações, que se submetem à avaliação e aprovação do julgo da
lei, não integram, como entende Rancière, o campo da política, mas o campo da
“polícia”.

A distribuição dos lugares e funções que define uma ordem


policial depende tanto da suposta espontaneidade das relações
sociais quanto da rigidez das funções de Estado. A polícia é, na
sua essência, a lei, geralmente implícita, que define a parcela ou
a ausência de parcela das partes. Mas, para definir isso, é preciso
antes definir a configuração do sensível na qual se inscrevem
umas e outras. A polícia é assim, antes de mais nada, uma ordem
dos corpos que define as divisões entre os modos do fazer, os
modos de ser e os modos do dizer, que faz que tais corpos sejam
designados por seu nome para tal lugar e tal tarefa; é uma ordem
do visível e do dizível que faz com que essa atividade seja visível
e outra não o seja, que essa palavra seja entendida como discurso
e outra como ruído.36

A ordem policial é propriamente a configuração de um estado de coisas


onde os lugares, os modos de uso, de fazer, os corpos, os discursos e os regimes

36RANCIÈRE, J. O desentendimento – política e filosofia. Tradução de Ângela Leite


Lopes. São Paulo: Editora 34, 1996, p. 42.
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de visibilidade declaram e fixam a inexistência da parcela dos sem parcelas.


Podemos entender, brevemente, os sem-parcela como os indivíduos destituídos
de si mesmos, isto é, que não encontram na ordem policial o acesso às condições
para a realização de si, não detêm acesso à sua parcela, nem mesmo por meio de
representação, dentro desses regimes de visibilidades, de usos, de fazeres e de
distribuição de lugares. O apelo dos sem-parcela não é discurso, é ruído. É
somente através da política – signo que ganha, aqui, um sentido conceitual
próprio – que Rancière encontra espaço para a transformação desses regimes
através da redistribuição e configuração de justas parcelas. Assim ele nos
apresenta uma noção diversa de concepções mais usuais de política, geralmente
compreendida sinteticamente como o processo de organização de poderes, de
composição de fundamentos de legitimação das instituições estatais e
distribuição de funções – o que ele chama propriamente, como descrito
anteriormente, de polícia:

Proponho agora reservar o nome de política a uma atividade bem


determinada e antagônica à primeira [a polícia]: a que rompe a
configuração sensível na qual se definem as parcelas e as partes
ou sua ausência a partir de um pressuposto que por definição não
tem cabimento ali: a de uma parcela dos sem-parcela. Essa
ruptura se manifesta por uma série de atos que reconfiguram o
espaço onde as partes, as parcelas e as ausências de parcela se
definiam. A atividade política é a que desloca um corpo do lugar
que lhe era designado ou muda a destinação de um lugar; ela faz
ver o que não cabia ser visto, faz ouvir um discurso ali onde só
tinha lugar o barulho, faz ouvir como discurso o que só era ouvido
como barulho. (...) Espetacular ou não, a atividade política é
sempre um modo de manifestação que desfaz as divisões
sensíveis da ordem policial ao atualizar uma pressuposição que
lhe é heterogênea por princípio, a de uma parcela dos sem-
parcela que manifesta ela mesma, em última instancia, a pura
contingência da ordem, a igualdade de qualquer ser falante com
qualquer outro ser falante. Existe política quando existe um lugar
e formas para o encontro entre esses dois processos
heterogêneos. O primeiro é o processo policial no sentido que o
tentamos definir. O segundo é o processo da igualdade.
Entendamos provisoriamente sob esse termo o conjunto aberto
das práticas guiadas pela suposição da igualdade de qualquer ser
falante com qualquer outro ser falante e pela preocupação de
averiguar essa igualdade.37

37 Ibidem, p. 42.
[-] www.sinaldemenos.org Ano 9, n°12, vol. 2, 2018 155

O que Rancière propõe não é a institucionalização jurídica ou legal de


uma igualdade, mas sim uma suposição, dependente de constante verificação e
afirmação, da igualdade de todo ser falante, isto é, de todos aqueles que compõem
a parcela do campo político-social, inclusive e principalmente os sem-parcela. A
política, mais precisamente, implica num ato de torção do simbólico e de
disrrupção da ordem social, cindindo, retalhando e reconstruindo os regimes de
visibilidade e de contagem das parcelas das múltiplas singularidades, sob outros
signos e sob outros sentidos, de modo a garantir efetivamente a justa distribuição
das parcelas e a composição de uma unidade arquetípica como princípio de
realização humana.

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A Categoria Trabalho na (re-) interpretação da


Teoria do Valor e na Luta de Classes

Thiago Canettieri1

INTRODUÇÃO

Parto de uma hipótese, mas também uma necessidade: refazer o estatuto


da crítica marxiana, esforço empreendido em várias direções por vários autores.
Como um dos possíveis pontos de partida para isso, pode-se assumir a postura de
Moishe Postone (2014) para quem os processos materiais e concretos da vida
social estão dominados, sobretudo, pela forma social abstrata do valor. Dessa
forma, uma crítica da forma histórica do capitalismo deve partir de uma
(re)interpretação da teoria do valor, diferente da que foi proposta pelo marxismo
tradicional.
Toda uma tradição do pensamento marxista radical derivada da nova
crítica do valor que trabalham numa concepção não-ontológica da categoria
trabalho do pensamento de Marx (2011; 2010), encontrando embasamentos
sobretudo nos escritos do Grundrisse e dos Manuscritos. Para esses autores, com
o desenvolvimento das forças produtivas do capitalismo que confronta trabalho
morto com o trabalho vivo numa linha tendencial de aumentar a composição
orgânica do capital, precisando cada vez menos do trabalho vivo, única fonte
possível do processo de valorização do valor o que levaria a uma queda tendencial
da taxa de lucro. Segundo esses autores o desenvolvimento tecnológico que o
capitalismo necessita seria sua própria abolição e, portanto, uma sociedade sem
capital seria, necessariamente, uma sociedade também sem trabalho.
A linha interpretativa deste viés me parece mais interessante como
estatuto filosófico do que de base empírica. Interpretações deste tipo parecem
não levar em consideração a continuidade do trabalho de maneira extensiva e
intensiva, principalmente nos países subdesenvolvidos. Todavia, assumir uma

1 Doutorando do Programa de Geografia da UFMG, email:


thiago.canettieri@gmail.com.
[-] www.sinaldemenos.org Ano 9, n°12, vol. 2, 2018 158

postura direcionada na “abolição do trabalho” implica em reconhecer o trabalho


como um duplo processo de exploração e de dominação.
É exatamente o trabalho abstrato (MARX, 2013) que parece ser o que
sustenta o capitalismo, aquele responsável pela formação da mercadoria, mas,
também, da vida como mercadoria – afinal, o próprio trabalho é transformado
em mercadoria. O fundamental é entender que Marx não estava apenas
“completando” a análise dos economistas clássicos, introduzindo um pressuposto
que faltava à teoria geral do trabalho humano como fonte de toda riqueza. Pelo
contrário, ao invés de pressupor que o homem tem essa ou aquela capacidade,
essa ou aquela essência, Marx estava querendo demonstrar que esse caráter
homogêneo que o trabalho imprime em seus produtos é historicamente
condicionado pelo sistema de produção e circulação de mercadorias. Ou seja, é só
no modo de produção capitalista que o trabalho adquire esse duplo caráter — e,
apesar de pouco comentado, isso vale não só para o trabalho abstrato, mas
também para o trabalho concreto, que só pode ser reduzido a esse aspecto
puramente funcional, de transformação do que é múltiplo e indeterminado em
algo que tem uma finalidade determinada, uma vez contraposto a essa dimensão
abstrata e indiferente que constitui sua “segunda natureza”.
Portanto, não foi à toa que Marx (2013), antes de explicar as estruturas do
capitalismo, se preocupou em identificar a relação social básica desta sociedade:
a mercadoria, que materializa o trabalho abstrato e permite a realização do
capital. E uma crítica da sociedade produtora de mercadorias (e, por extensão, da
sociedade que produz a vida como mercadoria) não diz respeito apenas a sua
injustiça distribuição, mas, sobretudo, é a crítica a seu modo de produção.

A QUESTÃO DO TRABALHO NO CAPITALISMO


A reflexão levada a cabo pelo grupo Krisis (2003) aponta para uma crítica
radical do capitalismo, e que se fez necessária a partir da falência da experiência
socialista na segunda metade do século XX. Para os autores, a crítica de Marx não
se reduz à uma queixa sobre a distribuição desigual da riqueza socialmente
produzida por uma classe em detrimento da outra. O foco deve ser dado,
sobretudo, a forma de relação social imanente que estrutura a sociedade
capitalista, ou, como preferia chamar Robert Kurz (1993), sociedade produtora
de mercadorias.
[-] www.sinaldemenos.org Ano 9, n°12, vol. 2, 2018 159

Para tanto, os autores resgatam a crítica marxiana sobre o fetichismo da


mercadoria para entender a organização da sociedade e é, portanto, a partir dos
desenvolvimentos de Marx (2013) que chegam a entender o trabalho abstrato
como sendo ‘coisificado’ no valor. Assim, “trabalho e capital são os dois lados da
mesma moeda” (KRISIS, 2003, s/p.).
Assim, a alienação no capitalismo não está fundamentada no fato de uma
classe não produtiva se apropriar do excedente produzido pelos trabalhadores, a
mais-valia, mas sim no trabalho no capitalismo que se realiza como forma de
mediação social para o mundo das mercadorias, em que se vende força-de-
trabalho para comprar outras mercadorias, sendo todas elas equiparadas no nível
mais abstrato e, portanto, reduzida de toda particularidade ao nível fundamental
para a realização da acumulação. É através das mercadorias que a vida objetiva
se realiza, seja satisfazendo as necessidades, seja entrando em contato com outros
indivíduos. O trabalho se torna a forma de mediação social sendo essa uma
característica histórica (e não ontológica).
Nesse sentido, talvez seja necessário (re-)situar a crítica do capital. Capital
e trabalho são a tensão dialética dentro do capitalismo e, talvez, dentro do
movimento dialético não se deve pressupor a supressão de um termo e a elevação
do outro como condição de síntese (o que parece ser feito por um certo marxismo
que tenta encontrar a possibilidade de um 'trabalho bom'). Tampouco não se deve
procurar uma conciliação entre capital e trabalho (o que representaria, como diria
Adorno (2009), uma conciliação forçada). É necessário a superação radical e,
sobretudo, isso implica que, dessa contradição emerja um outro termo, um
termo, de fato, novo.
Essa leitura da teoria crítica de Marx concentra-se em sua concepção da
centralidade do trabalho para a vida social, a qual é geralmente considerada como
estando situada no núcleo de sua teoria. O argumento é que o significado da
categoria trabalho em suas obras maduras é diferente do que tradicionalmente
tem sido apresentado: ela é historicamente específica, ao invés de trans-histórica
- como diria a interpretação de Lukács (2010). Na crítica madura de Marx, a
noção de que o trabalho constitui o mundo social, e é a fonte de toda a riqueza,
não se refere à sociedade em geral, mas especificamente à sociedade moderna ou
capitalista (POSTONE, 2014). Além do mais, e isto é crucial, a análise de Marx
não se refere ao trabalho como ele é concebido em geral e trans-historicamente –
[-] www.sinaldemenos.org Ano 9, n°12, vol. 2, 2018 160

uma atividade social direcionada para um objetivo que estabelece a


intermediação entre o homem e a natureza, criando produtos específicos a fim de
satisfazer determinadas necessidades humanas – mas atribui-lhe um papel
peculiar que desempenha na sociedade capitalista (POSTONE, 2014; SAFATLE,
2015).
O caráter historicamente específico deste trabalho está intrinsecamente
relacionado à forma de interdependência social, característica da sociedade
capitalista. Ele constitui uma forma de mediação social, historicamente específica
e quase objetiva que, no quadro analítico de Marx, serve como o fundamento
social decisivo das características básicas da modernidade.
É esta reconsideração do significado do conceito de trabalho em Marx que
fornece a base para reinterpretar a análise do capitalismo. Ela introduz
considerações de temporalidade e situa a crítica à produção no centro da análise
de Marx, e lança o fundamento para uma análise da moderna sociedade
capitalista como uma sociedade dinamicamente regulada, estruturada por uma
forma historicamente específica de mediação social que, embora socialmente
constituída, possui um caráter abstrato, impessoal e quase objetivo. Esta forma
de mediação é estruturada por uma forma de prática social historicamente
determinada (o trabalho no capitalismo) e por estruturas, no lugar das ações das
pessoas, de suas visões do mundo e de suas competências e talentos. Tal
abordagem reformula a questão da relação entre cultura e vida material,
transformando-a em uma relação entre uma forma de mediação social
historicamente específica e formas de “objetividade” e de “subjetividade” sociais.
Dessa forma, o argumento desenvolvido pelo Krisis/Exist se refere à uma
crítica a “positivação do trabalhador e à glorificação da classe trabalhadora”
(CUNHA, 2009, p.85) que é derivada desse marxismo tradicional. No Manifesto
Contra o Trabalho, o Grupo Krisis (2003) afirma:

O clássico movimento dos trabalhadores, que viveu a sua


ascensão somente muito tempo depois do declínio das antigas
revoltas sociais, não lutou mais contra a impertinência do
trabalho, mas desenvolveu uma verdadeira hiperidentificação
com o aparentemente inevitável. [...] Em vez de criticar
radicalmente a transformação de energia em dinheiro como um
fim em si irracional, ele mesmo assumiu o ‘ponto de vista do
trabalho’ e compreendeu a valorização como um fato positivo e
neutro”.
[-] www.sinaldemenos.org Ano 9, n°12, vol. 2, 2018 161

O TRABALHO NA TEORIA DO VALOR

Com isso, chego a ideia de revisitar a teoria do valor marxiana a partir da


mudança interpretativa da categoria trabalho. Como o próprio Marx (2011)
afirma, "O trabalho é a fonte de toda a riqueza". O capitalismo é a apropriação
indevida dessa riqueza. Será que a crítica potente está orientada apenas para uma
redistribuição da riqueza ou deve estar, de maneira mais profunda, em direção ao
pressuposto da riqueza: o trabalho. No processo de trabalho abstrato sempre
ocorrerá a expropriação, tanto econômica de mais-valia; como também a
expropriação psíquica do afeto do estranhamento. Nesse sentido é que vai se
sustentar, segundo Safatle (2015), o fetichismo da mercadoria e a alienação
sendo, portanto, ligadas a realização do trabalho.
A dominação no trabalho não está ligada apenas à impossibilidade de os
produtores imediatos disporem de sua própria produção e dos produtos por eles
gerados. Não se trata apenas de uma questão de apropriação e dominação
consciente, através da “cooperação histórico-universal dos indivíduos”
(SAFATLE, 2015). É por isso que essa abordagem toca no problema referente a
produção do valor no capitalismo, como forma de riqueza e de determinação dos
objetos, acaba permanecendo como o centro da estrutura de dominação abstrata
(POSTONE, 2014; SAFATLE, 2015).
Assim, como lembra Safatle (2015), Postone (2014), Kurz (1999), não faz
sentido de falar do trabalho como categoria de contraposição ao capitalismo, já
que ele estaria organicamente vinculado às estruturas disciplinares de formação
da natureza utilitária das relações próprias à individualidade liberal e seus
direitos de propriedade, expressando apenas amplos processos de reificação. Vale
deixar claro o que quero dizer: a estrutura de dominação do capitalismo passa,
necessariamente, pela ordem do trabalho. E mais, o metabolismo do capital só é
possível através da efetivação do trabalho como forma de criar mais-valor. É,
portanto, nesse sentido que as interpretações se sustentam derivada da própria
colocação de Marx (2011, p.58):

Logo que o trabalho, na sua forma imediata, deixa de ser a grande


fonte de riqueza, o tempo de trabalho deixa necessariamente de
ser a respectiva medida, e, portanto, deixa de ser o valor de troca
[-] www.sinaldemenos.org Ano 9, n°12, vol. 2, 2018 162

[a medida] do valor de uso. […]. Em consequência, a produção


fundada no valor de troca desmoronasse e o próprio processo
imediato de produção material despojasse da sua forma
mesquinha e contraditória.

O TRABALHO NA LUTA DE CLASSES

Derivada da renovação crítica oferecida pelo giro epistemológico dado a


categoria trabalho na obra marxiana, alguns autores, principalmente aqueles
ligados ao Krisis como Kurz (1997) e Jappe (2006) relativizam a ideia de luta de
classes. Para eles, como aponta Cunha (2009), a luta de classes tradicional, foi
muitas vezes, interpretada como uma luta a partir do ponto de vista do trabalho
e que, portanto, ao final significa um eterno retorno a lógica da valorização do
valor, pois o mecanismo dessa valorização, o trabalho, não era questionado. A
seguir, uma passagem de Kurz (1997, p.57-58) ilustra essa interpretação:

A antiga luta de classes em torno de salários, condições de


trabalho, reformas sociais, etc., pressupunha não apenas o
sistema de produção de mercadorias, mas também sua
capacidade social objectiva de reprodução. Mesmo a ameaça
implícita da alternativa ao sistema, calcada no socialismo de
Estado, estava longe de transcender as categorias da moderna
produção de mercadorias. Agora se torna cada vez mais claro que
o fim do sonho representado pelo socialismo de Estado caminha
de mãos dadas com o fim da capacidade de reprodução social de
todos os sistemas produtores de mercadorias, inclusive em sua
variante ocidental. O protesto sindical torna-se assim
duplamente indigno de fé. (KURZ, 1997, p.57)

Todavia, como demonstrou Cunha (2009), o elemento da luta de classes continua


presente no Grupo Krisis e suas formulações, mesmo que de forma reprimida.
Essa interpretação é fundamental para permanecer fiel à frase de Marx e Engels
(2007) que a luta de classes é o motor de toda história. Mas, para situar a luta de
classe nesse contexto é necessário um giro também na sua concepção e que
implica, sobretudo, um giro nas suas estratégias. Significa, portanto, em
incorporar as críticas em relação a essa nova interpretação da obra marxiana no
contexto da luta de classes.
O principal desenvolvimento que interessa é que, como aponta Postone
(2014) a luta de classes não é mais, necessariamente, uma luta contra o capital.
[-] www.sinaldemenos.org Ano 9, n°12, vol. 2, 2018 163

Mas é, exatamente, uma luta contra ser classe trabalhadora, contra o trabalho –
o mecanismo de valorização do capital. Assim, a luta de classes se mantém como
a expressão objetiva da contradição do capitalismo entre capital e trabalho que,
em se perpetua a partir de sua tensão da unidade na contradição. É a luta de
classes o momento fundamental dessa contradição que realiza o capitalismo.
Dessa forma, não é possível uma crítica radical do capitalismo sem que leve a
dimensão da superação do capitalismo (BONEFELD, 2012).
A luta de classes ou, mais especificamente, a luta do ‘proletariado’ tem o
sentido crítico e negativo. Por isso é preciso recuperar o proletariado como a
classe que se realiza como não-classe no movimento dialético de sua consciência
(SAFATLE, 2015). Essa perspectiva parece já ter seus germes na obra de Lukács
(2003, p.80): “O proletariado apenas realiza seu projeto a partir de seu próprio
aniquilamento e transcendência, criando uma sociedade sem classes através da
conclusão bem-sucedida de sua própria luta (de classe)”.
O proletariado é, portanto, esse “negativo em marcha nesta sociedade, que
sofre do dano absoluto de estar posto à margem da vida e que, portanto, traz a
revolução” (CUNHA, 2009, p. 86).

A ABOLIÇÃO DO TRABALHO

Se o capitalismo se sustenta fundamentalmente a partir do trabalho como


fonte de valorização do valor e que o projeto revolucionário passa, sobretudo, no
caráter negativo da luta do proletariado, então o processo revolucionário significa
a abolição do trabalho. Barrot e Martin (1972) deixam claro que o proletariado
não deve ser interpretado como a afirmação da classe trabalhadora, mas, ao
contrário, a classe crítica do trabalho. Assim, é preciso abandonar todas as teorias
que, de algum modo, se veem as voltas em glorificar e exaltar o proletariado e a
classe trabalhadora positivamente. Barrot e Martin (1972) falam que essa
interpretação é “contrarrevolucionária”.
Ao contrário da interpretação do marxismo tradicional, encontramos nas
próprias obras de Marx (2010; 2011; 2013) e em sua parceria com Engels (2007;
2009) elementos fundamentais para a crítica do trabalho.
Como aparece na Ideologia Alemã, o trabalho está ligado à uma dimensão
predicativa, e a centralidade da crítica desenvolvida é a dimensão anti-
[-] www.sinaldemenos.org Ano 9, n°12, vol. 2, 2018 164

predicativa2 da relação comunista. O comunismo, como descreve os autores, é


antes de mais nada o fim da divisão do trabalho:

Na realidade, tão logo o trabalho começa a ser dividido, cada um


tem um círculo exclusivo de atividade, que lhe é imposto, do qual
não pode sair; ele é caçador, pescador ou pastou ou crítico, e deve
permanecer nele, se não quiser perder o seu meio de vida -
enquanto na sociedade comunista onde cada um não tem um
círculo exclusivo de atividade, mas pode se cultivar no ramo que
quiser, a sociedade rege a produção geral e faz com que me seja
possível através disso fazer isto hoje, aquilo amanhã, caçar
depois do almoço, tocar bois de tarde, criticar depois do jantar,
conforme eu tenha vontade, sem jamais me tornar caçador,
pescador ou crítico (MARX; ENGELS, 2007, p.76).

A partir disso, Fausto (1987) desenvolve seu argumento usando as próprias obras
de Marx e Engels. Para o autor, se o comunismo representa assim o fim da divisão
do trabalho, o fim da divisão do trabalho é ao mesmo tempo a supressão do
trabalho. Esse movimento é importante, tanto no que se refere ao conteúdo, como
no que se refere à forma. Trata-se de abolir o trabalho e não de estabelecer o
"trabalho livre":

Assim, enquanto os servos em fuga só queriam desenvolver


livremente e fazer valer sua condição de vida já existente, e, por
isso, em última instância só chegaram ao trabalho livre, os
proletários, para se fazerem valer pessoalmente devem suprimir
sua própria condição de existência até aqui, o trabalho (MARX;
ENGELS, 2007, p.77).

Já na obra O Manifesto Comunista, Marx e Engels (2009, p.89) salientam que os


proletários “só sobrevivem se encontram trabalho, e só encontram trabalho se
este incrementa capital” o mesmo elemento está presente no desenvolvimento
dos Grundrisse em que Marx (2011, p.390) afirma: “trabalho só é realmente
trabalho se for trabalho útil para os outros e só é útil para ele se for trabalho geral
abstrato”.

Mas, mais do que a valorização do capital, é inegável que, na obra de Marx


(2010, 2011, 2013) o trabalho aparece como uma forma de dominação e de
restrição da liberdade, já que "o trabalho não produz só mercadorias; produz-se

2 Ver SAFATLE (2015)


[-] www.sinaldemenos.org Ano 9, n°12, vol. 2, 2018 165

a si mesmo e ao trabalhador enquanto mercadoria" (MARX, 2010, p.57). E que


completa:

O trabalhador, portanto, só se sente em si fora do trabalho; no


trabalho sente-se fora de si. Só está à sua vontade quando não
trabalha, quando trabalha não está no seu domínio. Assim, o seu
trabalho não é voluntário, mas imposto; é trabalho forçado. Não
constitui a satisfação de uma necessidade, mas apenas um meio
de satisfazer outras necessidades. A estranheza do trabalho
ressalta claramente do facto de se fugir dele como da peste, logo
que não exista nenhuma coerção material ou de outro tipo.
(MARX, 2010, p.118)

Essa linha interpretativa significa reestruturar o eixo interpretativo e de


ação política derivado do marxismo. Como aponta vários autores como Safatle
(2015), Postone (2014), Kurz (1993) e Fausto (1987), a pressuposição privilegiada
em Marx não é a satisfação das necessidades, nem mesmo a distribuição das
riquezas, mas exatamente a liberdade da autodeterminação. Marx (apud
FAUSTO, 1987, p.108) afirma: “Só na comunidade com outros, tem cada
indivíduo o meio de cultivar suas capacidades por todo lado; só na comunidade a
liberdade pessoal será assim possível”. A liberdade, complementa Fausto (1987),
se contrapõe à situação em que os indivíduos são oprimidos pela sua própria
atividade parcelada e alienada. Por isso o comunismo, como reino da liberdade,
só pode ser a negação de uma situação histórica erigida pelo trabalho. Por isso
também Marx (A propósito do livro de Friedrich List, O Sistema Nacional da
Economia Política, 1845 apud KRISIS, 2003, s.p) afirma:

O ‘trabalho’ é, na sua essência, a atividade não-livre, in-humana,


a-social, determinada pela propriedade privada e criadora da
propriedade privada. A superação da propriedade privada só se
tornará, pois, realidade, quando for concebida como superação
do ‘trabalho’.

Assumir essa postura significa estar preparado para juntar uma


epistemologia da categoria trabalho com um processo político de superação do
capitalismo. Como apontam os autores dessa corrente, um dos problemas da
URSS em seu processo de construção do socialismo foi, exatamente, ‘manter’ o
proletariado e, não colocar em prática a abolição da classe trabalhadora ao abolir
o trabalho. O socialismo não deveria caminhar no sentido da 'afirmação-positiva'
[-] www.sinaldemenos.org Ano 9, n°12, vol. 2, 2018 166

do proletariado, dos trabalhadores enquanto classe, mas exatamente no seu


oposto, na extinção das classes e na autoabolição do proletariado. Um modelo
econômico como mantido na URSS, segundo esses autores, não resolveu o
problema do trabalho abstrato, do fetichismo da mercadoria e, quiçá até da
alienação. Existem implicações políticas diretas da forma que se interpreta a
epistemologia. O ponto da ação política anticapitalista é, portanto, em negar o
predicativo do trabalho e negar o trabalho como fundamento do valor e da
riqueza. Assim, a luta que se deriva disso não é se unir "como classe
trabalhadora", mas, exatamente se unir "contra ser classe trabalhadora"
(HOLLOWAY, 2004), no sentido de uma “não-identidade”.

Com isso, me parece fundamental manter-se fiel com o programa que


Marx e Engels (2007, p.42) esboçaram logo no início d’A Ideologia Alemã:

[...] a revolução comunista volta-se contra a forma da atividade


existente até então, suprime o trabalho e supera a dominação de
todas as classes ao superar as próprias classes.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Neste artigo pretendi apresentar, mesmo que em linhas gerais, uma


reinterpretação da categoria trabalho na obra marxiana e no pensamento
marxista, a partir das duas teorias centrais, do valor e da luta de classes. A partir
dos autores selecionados, argumentei que a saída para a superação do capitalismo
deve caminhar necessariamente na abolição do trabalho já que representa uma
forma de objetivação que pressupõem uma certa racionalidade abstrata voltada
para a geração de riqueza.

Assim, sustenta-se aqui a ideia de trabalho como não sendo ontológica,


mas ao contrário, social e historicamente determinada. Assim, o que esses autores
defendem é que foi somente na sociedade moderna que o trabalho se tornou uma
“abstração” “verdadeira na prática”, ou seja, uma abstração real. Essa forma de
trabalho é, segundo Marx (2011, p.58), “o produto de relações históricas e têm
sua plena validade só para essas relações e no interior delas”. Assim, é preciso
separar uma certa tentativa de ontologização (como Cunha (2009) coloca aparece
em alguns momentos da obra de Marx), de uma crítica determinada e negativa
do capitalismo.
[-] www.sinaldemenos.org Ano 9, n°12, vol. 2, 2018 167

Significa, portanto, um retorno radical (no sentido de estar direcionado as


raízes) à crítica de Marx sobre a sociedade capitalista-moderna que refere-se à
real mistificação da forma como tal da mercadoria e do dinheiro, 'na' qual toda a
modernidade, a par de seus conflitos imanentes, se expõe, impõe e desenvolve.

Assim, a contradição fundamental do capitalismo encontrado nessa


interpretação (POSTONE, 2014; JAPPE, 2006; KURZ; 1997; LUKÁCS, 2003)
está no interior da própria esfera da produção (e não entre a apropriação privada
de uma produção socializada). Ela se volta para o processo imediato de produção,
a realização do trabalho e a estrutura de relações sociais constituídas. O
argumento decisivo consiste na explicação da reificação – concebida como forma
constitutiva, regra universal de objetividade à qual a racionalização subordina-se
– como algo não monolítico. Lukács (2003) sustenta que a disseminação da
reificação não é completa, sendo perpassada por brechas que possibilitam a sua
superação, facultando a passagem ao socialismo.3

Como explica Marx (2011), a superação do capitalismo envolveria,


portanto, a superação da figura do “mero trabalhador” para se tornar o “indivíduo
social produtor” – ou seja, aquele que incorpora conhecimento e potencial
humanos inicialmente desenvolvidos numa forma alienada. Sobre isso, explica
Postone (2014, p.49): “Superar a alienação resulta não na reapropriação de uma
essência que existiu antes, mas na apropriação do que foi constituído de forma
alienada”.

Por isso a necessidade de retomar o projeto político de abolir o trabalho.


Na maior parte das línguas europeias, o conceito «trabalho» refere-se
originariamente apenas à atividade do homem sem autodeterminação, do
indivíduo dependente, do servo ou escravo. No espaço linguístico alemão,
«Arbeit» significava o trabalho servil de uma criança órfã ou abandonada, e por
isso caída na servidão. No latim, «laborare» significava algo como «cambalear
sob uma carga pesada», e em sentido geral designava o sofrimento e o vexame do
escravo. As palavras «trabalho», «travail», «trabajo», etc., derivam do latim

3 Embora percursora com a obra História e Consciência de Classe de Lukács, essa


corrente, conhecida como crítica do valor teve maior disseminação junto aos teóricos
alemães, em especial aqueles vinculados ao Grupo KRISIS.
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«tripalium», uma espécie de equipamento utilizado para torturar e castigar


escravos e outros indivíduos destituídos de liberdade. E mais, talvez seja essa a
sádica ironia da dimensão que evocada nos portões de entrada de Auschwitz: O
trabalho liberta.

Assim, vale repetir a última frase do manifesto do Grupo Krisis:

“Proletários de todo o mundo, acabem com isso!”

REFERÊNCIAS

ADORNO, T. Dialética Negativa. Rio de Janeiro: Zahar, 2009.


BARROT, J.; MARTIN, F. Eclipse e reemergência do movimento
comunista, 1972. Disponível em:
<www.geocities.com/autonomiabvr/eclieree.html> Acessado em: 10 de março
de 2016.
BONEFELD, W. “Negative Dialectics in Miserable Times: Notes on Adorno and
Social Praxis”. Journal of Classical Sociology, v.12, no.1, p.120–134, 2012.
CUNHA, D. “Penúltimos combates: a luta de classes como desejo reprimido no
Krisis/Exit”. Sinal de Menos, ano 1, n.1, p. 80-93, 2009.
FAUSTO, R. Marx - lógica e política: Investigações para uma reconstituição
do sentido da dialética. São Paulo: Brasiliense, 1987.
HOLLOWAY, J. Clase y clasificación. In: HOLLOWAY, J. (org.) Clase = lucha.
Buenos Aires: Herramienta, 2004.
JAPPE, A. As aventuras da mercadoria: por uma nova crítica do valor.
Lisboa: Antígona, 2006.
KRISIS, G. Manifesto Contra o Trabalho. São Paulo: Conrad, 2003.
KURZ, R. “Dominação sem sujeito”. Krisis, n.13, 1993.
KURZ, R. Os últimos combates. Petrópolis: Vozes, 1997.
LUKÁCS, G. História e Consciência de Classe. São Paulo: Martins Fontes,
2003.
LUKÁCS, G. Ontologia do Ser Social I. São Paulo: Boitempo Editorial, 2012.
MARX, K. Grundrisse. São Paulo: Boitempo, 2011.
[-] www.sinaldemenos.org Ano 9, n°12, vol. 2, 2018 169

MARX, K. Manuscritos econômicos-filosóficos. São Paulo: Boitempo,


2010.
MARX, K. O Capital, livro I. São Paulo: Boitempo Editorial, 2013.
MARX, K. O Capital, livro II. São Paulo: Boitempo Editorial, 2014.
MARX, K.; ENGELS, F. O Manifesto Comunista. São Paulo: Boitempo, 2009.
MARX, K.; ENGELS, F. A Ideologia Alemã. São Paulo: Boitempo Editorial,
2007.
POSTONE, M. Tempo, Trabalho e Dominação Social. São Paulo: Boitempo,
2014.
SAFATLE, V. “O trabalho do impróprio e os afetos da flexibilização”. Veritas,
Porto Alegre, v.60, n.1, p.12-49, 2015.
[-] www.sinaldemenos.org Ano 9, n°12, vol. 2, 2018 170

Especulação sobre a luta de classes

Danilo Augusto de O. Costa

Talvez um dos pontos mais polêmicos em torno dos processos da luta


emancipatória se dê em torno da luta de classes. Os marxistas mais ortodoxos,
herdeiros do movimento operário, empreendem críticas veementes a um
conjunto de movimentos descentralizados, ditos pós-modernos, que se
mobilizam em torno de questões que não tangem ao trabalho. E os movimentos
ligados à classe trabalhadora que passam a incorporar as reivindicações de tais
movimentos só o fazem de modo secundário, na medida em que o núcleo duro
em torno do qual orientam suas lutas se dá pelas questões que tangem ao trabalho
como predicado capaz de unificar as lutas descentralizadas. Frequentemente, os
partidos de esquerda, os sindicatos, ou os pequenos coletivos “classistas”
apreendem a luta de classes a partir de uma positivação da oposição entre capital
e trabalho. Ou seja, a contradição imanente entre capital e trabalho se torna uma
oposição extrínseca e exclusiva, na qual os interesses da classe trabalhadora
acabam por ser colocados como reflexo do ser objetivo do trabalhador oposto em
si ao capital. Assim, ao invés de se lutar pelo fim do trabalho alienado e produtor
de valor, se luta pela criação de mais empregos, por salários “justos”, redução da
jornada, redistribuição do valor produzido, ou, nos casos revolucionários, pela
construção de um Estado Proletário com uma economia planejada em “prol” do
trabalhador. A luta de classes, assim, é concebida como a forma da afirmação de
interesses antagônico de dois polos que, entretanto, são intrínsecos ao processo
narcísico de auto valorização do valor e que, portanto, não existem um sem o
outro: o interesse do trabalhador e o interesse do capitalista. Ao conceber a luta
de tal forma, adiou-se para outros tempos a emancipação do trabalhador em
relação à própria peste: o trabalho.
É recorrente, desse modo, percebermos que o sujeito que os partidos
socialistas visam representar e que é tomado como sujeito político por excelência
é aquele sociologicamente identificado com o trabalhador assalariado e, mais
frequentemente, com o trabalhador de fábrica, alienados do produto e do valor
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produzido. Os interesses da classe operária tornam-se, assim, a revelação da


vontade do agente de emancipação do homem em geral. E o interesse dos
capitalistas seria o interesse subjetivo pela exploração. Isso não se dá sem
ambiguidade. Há aqueles que, para não caírem no purismo sociológico do caráter
revolucionário do operário ou do trabalhador assalariado, apontam para o caráter
de construto da subjetividade política, transformando a oposição meramente
objetiva em uma oposição subjetiva ligada a organização em classe dos operários,
ou seja, às experiências de cooperação, resistência e exploração que são
partilhadas. Os partidos e sindicatos teriam a função, nesse sentido, de dar uma
estrutura subjetiva - que não é meramente uma atualização de um interesse de
classe virtualizado como na abordagem essencialista - para o ser objetivo do polo
explorado do antagonismo, bem como um programa de emancipação ligado, no
caso do movimento socialista revolucionário, à tomada do aparelho de Estado.
Nesse caso, haveria uma dissociação entre as relações de produção e a exploração
a ela intrínseca e a construção simbólica e material da classe ligada às formas de
organização política dos operários (sindicatos e partidos). Dessa perspectiva,
seria possível falar dos operários após a classe operária, dando uma ênfase ao
papel da linguagem enquanto forma de estruturação da realidade, de modo que o
falar a si mesmo como classe trabalhadora e de ser interpelado pelas entidades
de classe é fundamental na análise daquilo que se entende por classe operária4.
Assim, ora se fala de uma classe trabalhadora extremamente ampla, abarcando
todos aqueles que são submetidos ao jugo formal do trabalho alienado; ora
particular, ligada ao trabalhador produtor de mercadorias e/ou organizado em
entidades de classe por eles construídas a partir de uma experiência partilhada
de luta.
A despeito de tais considerações sobre o objetivismo e o subjetivismo, o
movimento da máquina capitalista com suas contradições é, por aqueles que dão
um primado a classe trabalhadora como sujeito político, concebido como

4 Tenho em vista o artigo de Beaud e Pialoux, filiados à sociologia de Pierre Bourdieu e


apoiados em historiados como E.P. Thompson. Na palavra deles, “para esses autores,
os grupos sociais não são substancializados como nas análises marxistas: são, ao
contrário, pensados e analisados como uma realidade sociohistórica, produzida no
tempo, notadamente por um trabalho simbólico e político de representação (por isso,
pode-se dizer que esses grupos foram ‘construídos’)” (Beaud, S., Pialoux, M., 2005,
p.44).
[-] www.sinaldemenos.org Ano 9, n°12, vol. 2, 2018 172

determinado por sujeitos com interesses exclusivos e bem definidos 5. E nisso se


perde o caráter metafísico-físico do processo de valorização do valor. Processo no
interior do qual o trabalhador e o capitalista não passam de máscaras, momentos
fenomênicos da realização do fim auto referencial do Capital, servos de uma
mesma engrenagem que foram produzidos em condições históricas
determinadas. O capitalismo surge da conjunção entre dois termos diferenciais:
dinheiro e força de trabalho abstrato como mercadoria, que só pôde ocorrer dada
certas circunstâncias. O capital, visto desse prisma, é um sujeito automático
(Marx, 1996, p.274) sem um conteúdo próprio e em relação ao qual as figuras
concretas são apenas momentos que se volatizam, isto é, elas são resultados de
um tornar-se concreto do Capital, mas que se encerra sempre na abstração do
Deus-dinheiro. Esse caráter automático do Capital é fruto do fetichismo
intrínseco ao modo de vida capitalista. E tal ilusão-concreta, que é o fetichismo,
atinge todos independentemente da “consciência”. Nesse sentido, o próprio
trabalho abstrato capaz de ser quantificado e representado pelo equivalente geral
que é o dinheiro está inserido numa relação fetichista que é o Capital, assumindo
a forma-mercadoria.
Nessa forma de vida – o capitalismo, o Capital é o único sujeito e um
sujeito abstrato que submete tudo ao seu fim, suga todas as forças vivas a fim de
animar o trabalho morto inicialmente empregado na forma monetária. Ou seja,
tanto o trabalhador quanto o capitalista são produtos de categorias abstratas
pertencentes ao Capital. É levando isso em consideração que podemos
compreender que o trabalho no capitalismo em circunstância alguma tem como
fim a satisfação das necessidades concretas daquele que o encarna, mas serve
como meio à acumulação incessantemente ampliada de uma soma já existente de
trabalho objetivado (valor) e encarnado no dinheiro como forma de expressão.
Em razão desse movimento real aparente, o valor vai cada vez mais se
autonomizar e desprender-se do trabalho vivo, que é cada vez mais tomado como
custo para cumprir as exigências de rentabilidade de uma produção cada vez mais
racionalizada devido à relação íntima entre Capital e desenvolvimento científico.

5 Ou seja, ora a luta de classes como motor histórico é definida por interesses objetivos
refletidos nas entidades de classe, ora subjetivos, não tendo uma mera relação reflexiva
com as determinações objetivas, que determinaria também o próprio interesse da
classe, necessitando apenas de sua concepção consciente.
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Detenhamo-nos um pouco nesse ponto. O capital não é apenas dinheiro,


mas é um dinheiro que, ao ser aplicado, posto em circulação, se valoriza – daí a
expressão sujeito automático. Resumidamente, Marx diz que o valor para se
valorizar precisa ser mediado por uma mercadoria peculiar: a força de trabalho.
Essa mercadoria, ao ser consumida, produzirá valor (mercadorias com trabalho
morto inscrito), ou melhor, um mais-valor em relação aquele inicialmente
aplicado em sua compra - salário. Nesse sentido, é o trabalho produtor de
mercadorias a substância do valor acrescido. A esse processo ele dá a fórmula D
– M – D’. Isso, claro, do ponto de vista do Capital, que para se valorizar precisa
espoliar o produto do trabalhador, ou seja, se apropriar de trabalho não pago a
partir da dissociação do trabalhador de seus meios de produção (o sujeito
duplamente livre, que só tem sua força de trabalho pra vender). O salário, nesse
contexto, é apenas um meio para garantir a produção e reprodução (as
necessidade historicamente determinadas) da força de trabalho: “O trabalho não
produz apenas mercadorias, produz-se também a si mesmo e ao trabalhador
como um mercadoria, e justamente com a mesma proporção com que produz
bens.” (Marx, S.D., p. 159).
Trata-se aqui de afirmar que em um dado momento o dinheiro tentará
realizar esse processo de forma abreviada, ou seja, dinheiro que gerará
diretamente dinheiro: é o caso do capital portador de juros, que é capaz de se
valorizar sem a mediação do processo produtivo real, isto é, sem a produção de
mercadorias a partir do consumo rentável da força de trabalho – conjunto das
faculdades física e espirituais.
Assim, voltando, nesse movimento fetichista o capital não é tomado como
produto das relações de produção, mas pressuposto de toda produção,
responsável por organizar o tempo, o espaço, a distribuição das forças de
produção e dos agentes de produção, e por apropriar do excedente que é
produzido. Tudo parece ser produzido pelo Capital como um Grande Sujeito,
como capital-Deus. Mas essa aparência tem um efeito de realidade, pois ela
estrutura concretamente as relações sociais em todos os níveis: ela produz e
reproduz a divisão entre trabalho material e intelectual; entre o público e o
privado; trabalho produtivo e improdutivo; trabalho assalariado e o desemprego
etc. Assim, todos continuarão vendendo sua força de trabalho por uma quantia
de dinheiro que representa seu valor e escamoteia a exploração. O dinheiro
[-] www.sinaldemenos.org Ano 9, n°12, vol. 2, 2018 174

continuará sendo um equivalente geral com uma propriedade misteriosa que


permite a ele ser trocado por qualquer outra coisa com valor proporcional,
desconsiderando suas qualidades sensíveis. E o Capital continuará sendo essa
substância automovente e, em relação à qual, trabalhadores, capitalistas,
banqueiros, comerciantes etc. são apenas suas personificações, matérias pré-
formadas que encarnam os fluxos abstratos – quantificáveis - desencadeados pelo
capital: de força de trabalho e de dinheiro.
Daí que o Capital não é só uma coisa- valor enquanto trabalho objetivado
– mas também um conjunto de relações que ao ser reproduzido aumenta a soma
de trabalho objetivado. É uma coisa animada, isto é, tornada sujeito e que
submete o concreto ao abstrato, o que dá ao abstrato um caráter objetivo. O
caráter real da abstração tanto do valor quanto do trabalho fica expresso por Marx
ao analisar a forma geral do valor e a revelação por meio dela o caráter de síntese
social do trabalho abstrato e do valor na sociedade produtora de mercadorias. Ou
seja, o trabalho abstrato não é fruto de uma mera “abstração” ou “generalização”,
mas de uma abstração social que consiste na redução do concreto ao abstrato
como condição de socialização. Assim, a esfera da circulação e da troca, que na
verdade é a esfera em que se realiza o ciclo de valorização, mostra de forma mais
explícita o caráter social da abstração na medida em que nela os sujeitos se
relacionam a partir da forma-mercadoria, isto é, como portadores de produtos
com valor e, portanto, como produtos de um trabalho cujo caráter social consiste
na sua natureza indiferenciada.

Assim, o trabalho objetivado no valor das mercadorias não se


representa apenas de um modo negativo, como trabalho em que
todas as formas concretas e propriedades úteis dos trabalhos reais
são abstraídas. Sua própria natureza positiva é expressamente
ressaltada. Ele é a redução de todos os trabalhos reais à sua
característica comum de trabalho humano, ao dispêndio de força
de trabalho do homem (Marx, 1996, p. 194).

Desse modo, é como se de relações sociais conjugadas em uma dada


circunstância histórica se desprendesse uma forma social autonomizada como
dimensão de registro dessas relações e que passa a reproduzi-las, como um a
priori da socialização, de forma inconsciente e automática como se fosse ela
mesma a causa disso tudo e não os homens em suas relações. Ou seja, um
processo de inversão próprio das operações ideológicas, de alienação e fetichistas,
[-] www.sinaldemenos.org Ano 9, n°12, vol. 2, 2018 175

na qual condicionantes viram condicionados. Mas esse como se não é mera ilusão,
uma falsa consciência que teria como condição de sua superação o
“esclarecimento” dos sujeitos enganados acerca das normatividades sociais reais.
Há no próprio capitalismo um cinismo que neutraliza toda consciência a respeito
do seu funcionamento porque a inversão é a da própria realidade, da sua
dinâmica, de modo que posso ser consciente de que o valor de um dado produto
não pertence a ele, mas é produzido a partir de relações de produção sociais e
mesmo assim agir de forma reificada, submetido ao movimento das mercadorias
no interior de um processo de valorização.6 Assim, os servos de tal máquina
engatada serão tão mais eficientes para esse processo (o de reprodução do modo
de produção social capitalista) quanto menos perguntarem pelo sentido das suas
atividades funcionais, sejam os capitalistas e os gestores que levam as massas à
miséria no interior da sociedade da abundância, sejam os trabalhadores, que têm
aquilo que produz espoliado e, em decorrência do desenvolvimento das forças
produtivas e do aumento da produtividade, seu trabalho dispensável para a
valorização do valor, que se dá cada vez mais em níveis celestes, sem a mediação
da força viva, que entretanto, é sua substância.
Além disso, ao focar no trabalhador com traços sociológicos distintos
enquanto sujeito da emancipação social (o trabalhador industrial, ou o
trabalhador assalariado de carteira assinada, ou sindicalizado etc.) realiza-se, por
um lado, uma solidariedade com um campo referencial restrito, desconsiderando
outras formas de exploração ou de dominação, como os tipos de dominação que
são historicamente e estruturalmente correlatas ao posto formal de trabalho,
como a atividade feminina reputada ao domínio íntimo da vida doméstica,
integrando-se ainda as duplas ou triplas jornadas marcadas igualmente pela
dissociação hierárquica própria das relações de gênero expressas nos tipos de
postos ocupados e na diferença de salário. Ou ainda aquelas que incidem sobre
as pessoas que sequer conseguem achar trabalho em decorrência do desemprego
estrutural, restando formas ilegais de inserção no mercado; órgãos assistenciais;

6 Deleuze identifica o capitalismo com a idade do cinismo, mas um cinismo


acompanhado de uma estranha devoção: o cinismo é a imanência física do campo
social, as relações reais de extorsão de sobretrabalho, e a devoção é a manutenção
mistificada desse campo: o culto das mercadorias, do dinheiro, do Capital e do Estado).
Ver Deleuze, 1976, p. 286.
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entidades filantrópicas e/ou religiosas, que também não deixam de ser situações
marcadas por relações de gênero e raciais.7
Por outro lado, ofusca o caráter generalizado que o trabalho (improdutivo)
vem assumindo e a sua (des)apreensão enquanto tal.8 É o caso da ideologia do
empreendedorismo e da disseminação crescente do trabalho como prestação de
serviço. Nesses regimes de trabalho tenta-se eliminar a separação entre tempo
livre e tempo útil, por um conjunto de mecanismos discursivos e não-discursivos.
A vida toda parece tornar-se uma espécie de trabalho subsumida à racionalidade
contábil. É a mobilidade total de um trabalhar a si mesmo. Essa totalização do
trabalho, que escapa ao posto formal do trabalho assalariado, produz uma
desclassificação, na medida em que os sujeitos não sendo submetidos às ordens
de um patrão na medida em que se subjetivam pelo regime do empreendedorismo
e não contam com o invólucro dos sindicatos e partidos ligados a classe
trabalhadora, não veem a si mesmos como trabalhadores ou classe trabalhadora.9

7 Aliás, vale arriscar que outro traço da desregulação do trabalho e da financeirização da


economia é o aumento dos empregos e atividades clandestinas, que não são
imediatamente perseguidas ou reprimidas, mas geridas. As atividades ilegais possuem
uma funcionalidade ou um caráter positivo de modo que sua gestão se torna até mesmo
rentável a partir de extorsões que se dão na forma de negociações da ilegalidade, da
tolerância e permissão pelos agentes da lei dessas atividades realizadas.
8 Há quem argumente que a valorização do operário chão-de-fábrica como sujeito

político decorre da posição estratégica ou funcional que ele ocupa no interior do modo
de produção capitalista, já que apenas ele produziria mais-valia de fato ou excedente a
ser apropriado. Ou há ainda aqueles que para recuperar a centralidade do trabalhador
como sujeito político intentam mostrar como os ditos trabalhadores improdutivos na
verdade produzem mais-valia e, assim, se recupera a negatividade política de tais
sujeitos pela sua simples condição. O problema é que parece existir sempre nessa
valorização do trabalhador um subproletariado, um lumpem marcado pelo déficit
político, residindo no último nível dos pretendentes à participação no atributo
“Político”, cujo outro nome é “trabalhador produtivo”. Assim, há um método de divisão
que, em última instância, faz a separação entre o puro e o impuro, do verdadeiro ator
da emancipação do homem em geral e do falso, daquele que não está à altura de tal
protagonismo histórico. Daí que certas lutas são muitas vezes tomadas como
secundárias frente a luta entre capital-trabalho.
9 A criação de mecanismos a fim de realizar uma desclassificação é de longa data.

Margareth Rago, ao reconstituir a luta operária no início do séc. XX influenciada pelo


anarcossindicalismo, mostra como os industriais e o governo, principalmente por meio
do saber médico e seus agentes sanitaristas, criavam mecanismos de controle da classe
operária tanto na fábrica como fora dela. Esses mecanismos que visavam desmantelar
a luta de classes estavam ligados, assim, a uma reformulação da educação, das relações
familiares (imposição do modelo nucelar burguês), e da própria subjetividade. “A
transformação da aparência interna e externa da fábrica visava à transformação da
subjetividade do trabalhador, do mesmo modo que uma casa limpa e confortável,
mesmo que pequena, deveria despertar o desejo de intimidade no operário,
reconfortado pelo aconchego do lar. Além disso, uma nova finalidade era atribuída à
elevação da produtividade do trabalho: o enriquecimento da nação, a criação da
[-] www.sinaldemenos.org Ano 9, n°12, vol. 2, 2018 177

Um exemplo que evidencia esse processo é o caso das revendedoras de


cosméticos para empresas como Natura e Avon a partir do Sistema de Vendas
Diretas. Milhões de revendedoras que não veem o que fazem como trabalho e não
veem a si mesmas como pertencentes a uma classe trabalhadora. 10 Esse regime
de trabalho - que, aliás, é o regime da atividade historicamente
feminina/doméstica: flexível, sempre disponível, sem fronteira clara entre tempo
produtivo e tempo livre etc. -subsumi toda a vida à racionalidade produtivista ou
empresarial. Isso é intensificado com o aumento das concessões de créditos e do
desmonte do Estado Social11, que fazem com que saúde, educação, vida familiar e
previdência se tornem um negócio, setores em que se investe e administra. Assim,
o registro da solidariedade se encurta no mesmo passo que a desigualdade cresce
a ponto de expelir cada vez mais uma parcela da população de todo emprego
possível, forçando tal parcela a se virar, como num darwinismo social, no
ideológico “empreendedorismo de si”, como os ambulantes dos metrôs ou os
catadores de lata.

abundância social e não mais o mero ideal de satisfação do interesse individualista do


patrão tradicional”. (Rago, 1985, p. 60)
10 Ver Abílio, 2011.
11 Acredito que nesse ponto vale mais uma digressão. Estado Social, no Brasil, começa a

se consolidar com o nacional-desenvolvimentismo de Vargas, na década de 30. É um


momento que data o reconhecimento da nossa questão social como uma questão do
Estado a ser tratada a partir de mecanismos equalizadores em decorrência do problema
que a pobreza passava a figurar diante das aspirações de um desenvolvimento nacional.
Antes desse período, a questão social, isto é, a massa de pobres que subia a superfície
social e protestava, era, nas palavras do presidente Washington Luís, “um caso de
polícia” e a repressão às greves confirmava a acepção. Ao se colocar a pobreza como um
obstáculo ao desenvolvimento nacional e que deveria, portanto, ser combatido pela
intervenção do Estado, soterrando o liberalismo produtor de desigualdades e da luta de
classes, começou a consolidar-se isso que se chama de um Estado Social. À esse projeto
de Estado era indispensável uma valorização do trabalhador nacional como fonte de
produção da riqueza nacional. Essa valorização do trabalhador colocava, além disso, o
trabalhador como cidadão, isto é, o cidadão brasileiro passava a ser por excelência o
trabalhador. Assim, ter um trabalho regulado era sinônimo de ser cidadão e, portanto,
de ter acesso a um conjunto de direitos inscritos nesse status. Isso se objetiva a partir
da criação paulatina de uma legislação trabalhista (sistematizada, posteriormente, com
a CLT, mas não sem antes perseguir e desmobilizar os recalcitrantes do movimento
operário, que era o objetivo de toda essa engenharia de governo, como a Organização
Internacional do Trabalho havia adiantado ao colocar os avanços sociais no campo
trabalhista como forma de conter a Revolução) e de órgãos relativos às questões do
trabalho. Conjuntamente a esse ideário de uma sociedade estruturada em torno do
trabalho e do trabalhador, produzia-se como seu outro – o não-sujeito de direito - o
vagabundo, que deveria ser reprimido, sendo, inclusive, criminalizado pela lei
antivadiagem de 1941. Sobre isso ver Kazumi, 1981, e Gomes, 1999.
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E isso num contexto em que o trabalho, paradoxalmente, se torna cada vez


menos relevante do ponto de vista total da produção de mais-valia, já que a
acumulação do dinheiro agora se dá em níveis ficcionais: Não D –M – D’, mas D
– D’, em que o dinheiro tomado de empréstimo não é “empregado para o efetivo
consumo empresarial de trabalho abstrato” (Kurz, 2002, p. 2).
A predominância da valorização fictícia decorre da tendência constante do
capital de deslocar seus limites imanentes, adiando seu fim para reproduzir-se
em escalas sempre ampliadas de acumulação.12 Ao exigir um aumento constante
da produtividade a partir do desenvolvimento das forças produtivas (tecnologias
que reduzam o tempo socialmente necessário para produzir uma mercadoria) e
de métodos científicos organização da produção, e ao exigir uma produção
sempre ampliada de mercadorias, o capitalismo começa a se deparar com seus
próprios limites: o aumento social da produtividade implica que é socialmente
necessário menos trabalho por produto, o que, por sua vez, implica desemprego.
E a exigência de produzir sempre mais mercadorias para aumentar o lucro produz
crise de superprodução. O capital para contornar isso recorre a algumas
estratégias como colonizar externa e internamente e criar novos mercados
capazes de consumir produtivamente seus produtos a partir da criação de mais
postos de trabalho de modo que o ciclo de reprodução do capital se feche num
nível ampliado: trabalhadores produzem mercadorias que serão consumidas por
outros trabalhadores produtores de mercadorias, de modo que o que os
trabalhadores consomem com seus salários (custos) pode ser recuperado em um
outro ciclo de acumulação.
Contudo, apesar desse mecanismo de compensação, o desenvolvimento de
tecnologias aumenta o capital necessário para começar a produzir num dado nível
social de produtividade. Nesse contexto, o crédito passa a desempenhar um papel
cada vez mais relevante, financiando os empreendimentos a partir do
adiantamento de um valor que ainda não foi produzido pelo consumo de força de
trabalho. Mas, por outro lado, a capacidade de absorção produtiva das
mercadorias diminui concomitantemente a diminuição do trabalho produtivo, já
que a produção se automatiza com o desenvolvimento de novas tecnologias que
substituem a força de trabalho, consumando a tendência estrutural de

12Apartir daqui irei me apoiar em Kurz, 2002, para tentar explicar a predominância do
capital fictício.
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predominância do trabalho objetivado sobre o trabalho vivo. Isso implica que em


um dado momento o consumo das mercadorias industriais deve ser cada vez mais
sustentado também com crédito: é o caso dos EUA em relação aos produtos da
Ásia Oriental, o que explica um déficit estrutural (que se estende por todo o globo)
na sua balança de pagamentos; e o mesmo vale para o Brasil, que a partir da
década de 80 resume seu papel na divisão internacional do trabalho à exportação
de commodities e de títulos (lucros de transnacionais e dívida pública).13
É a partir da análise histórica dos deslocamentos dos limites internos do
capitalismo e dos mecanismos de compensação para contornar tais limites
imanentes que podemos compreender, portanto, a participação crescente do
crédito no conjunto da reprodução capitalista. O crédito passa a não só subsidiar
os investimentos privados devido ao alto custo de empreender em um dado nível
social de produtividade, mas também o próprio consumo e os empreendimentos
estatais. O cerne da crise é que aquilo que se financia cada vez mais com crédito
é de partida improdutivo do ponto de vista geral da acumulação: sejam os
empreendimentos estatais (ligados à infraestruturas, às reproduções da força de
trabalho – o que alguns chamam de segundo salário, como escola, saúde,
segurança etc. – em resumo, tudo aquilo que é considerado do ponto de vista
empresarial como “despesas gerais”), sejam as atividades tecnicamente
necessárias, porém improdutivas, de uma empresa que busca cada vez mais

13 Paulani aponta para o fato que no Brasil a capacidade de formar capital fixo diminui
ao passo que se exporta cada vez mais capital na forma de lucro de transnacionais ou
de pagamento de juros da dívida. Assim, parece, se não estiver interpretando de forma
extremamente equivocada, que todo o nosso ajuste do Estado para se legitimar ao
capital internacionalizado e fictício implica, em última instância, o desmantelamento
da própria capacidade de produzir capital – a redução dos custos para realizar as
exigências de valorização por juros do capital, exigência está blindada em Lei em 2000
(Lei de responsabilidade fiscal), mantendo a nossa “credibilidade” frente aos
investidores estrangeiros. O déficit estrutural das transações correntes (fluxo de capital
que entra e sai) e a desindustrialização a ela ligada decorre, então, de toda essa
reformulação política econômica (pagamento da dívida, redução de custos,
privatização, desregulação do fluxo de capital etc) em prol da valorização do Capital em
sua forma fictícia e de curto-prazo (Paulani, 2012). Aliás, o pagamento dos juros, como
a Auditoria Cidadã da Dívida Pública mostra, se dá por “rolagem da dívida”, ou seja,
quando está próximo do vencimento das nossas obrigações com a dívida, o Tesouro
recorre ao mercado financeiro para contrair crédito para pagar a dívida, mas esse
crédito vem com juros mais alto. Assim, a rolagem passa a funcionar não como mera
troca de credor, mas como forma de se aumentar a dívida e o lucro dos bancos, pagando
a dívida por endividamento e pressionando a manutenção das altas taxas de juros.
[-] www.sinaldemenos.org Ano 9, n°12, vol. 2, 2018 180

terceirizá-las como forma de redução dos custos, ou a própria produção industrial


de mercadorias consagrando aquilo que Kurz chama de fábricas fantasmas.14
Do início do século XX até o final da década de 70 a extensão do trabalho
improdutivo produzido pelo desenvolvimento das forças produtivas era visto
apenas como um problema secundário. Essa percepção não problemática da
extensão tendencial das atividades improdutivas decorria da convergência
histórica entre aumento do nível de produtividade social - produzida pela
passagem das máquinas a vapor alimentadas a carvão para os motores de
combustão alimentar a petróleo e pela racionalização fordista da produção – e a
expansão do trabalho produtivo, que se ampliou com a criação de novos setores

14Kurz recupera a distinção de Marx entre trabalho produtivo e improdutivo. O trabalho


produtivo seria aquele que cria realmente mais-valia, então ele seria
“substancialmente” trabalho abstrato. Enquanto o trabalho improdutivo seria aquele
que é apenas formalmente trabalho abstrato produtor de valor. O argumento dele vai
no sentido de mostrar que existe um aumento estrutural do trabalho improdutivo. O
trabalho produtivo não se confunde com o trabalho de fábrica. O critério ao qual Kurz
recorre para determinar a natureza improdutiva ou produtiva do trabalho é a teoria da
circulação que deve levar em conta a reprodução do Capital em seu “conjunto”. De
acordo com essa teoria é necessário que haja uma identidade entre consumo produtivo
e trabalho produtivo. Ou seja, aquilo que se produz de mais-valia deve ser consumido
por um trabalhador que está igualmente inserido num processo direto de produção de
mais-valia. Se uma dada mercadoria é consumida por um trabalhador improdutivo, o
consumo não realiza mais valia, porque o salário gasto não vai ser recuperado na
produção de mais-valia, é pura despesa do ponto de vista da valorização. Grande parte
dos gastos do Estado com infraestrutura para subsidiar os processo de acumulação são
dessa natureza. No caso dos processos de terceirização - por exemplo, a terceirização
da logística ou limpeza, que aparecem para uma empresa particular como “despesas
gerais”, mas que são indispensáveis - o que Kurz argumenta é que a empresa que presta
tal serviço não produz mais-valia, mas administra um fluxo de capital a partir da
racionalidade empresarial (o que implica trabalho precário) na prestação de um dado
serviço que torna possível a sua apropriação, na forma de lucro, de uma parte da mais-
valia produzida. Ou seja, não há produção de mais-valia, mas uma redistribuição da
mais-valia já existente e em circulação, que apropriada pelas empresas terceirizadas a
partir do fornecimento de serviços com trabalhos mal remunerados. Do ponto de vista
“conjunto” do Capital, ou seja, da mais-valia global, a externalização de custo via
terceirização, nesse sentido, continua sendo custo, isto é, trabalho improdutivo. O
índice da crise estrutural é a reprodução de toda circulação, que faz coincidir trabalho
e consumo produtivo, por crédito ou por um capital que não encontra lastro na
produção real. A autonomização do capital frente ao trabalho ao assumir a forma lógica
D-D’ implica uma destruição real da capacidade aquisitiva da força de trabalho daquilo
que é produzido, o que só pode ser compensado pela forma de crédito (consumo
improdutivo), o que explica, me parece, ao menos em parte, que frente ao
desmantelamento de uma política econômica nacional direcionada para a produção do
“pleno emprego” a partir do investimento na formação de capital produtivo (via,
principalmente, industrialização etc), se tente compensar esse processo via concessão
de crédito e política de transferência direta de renda, “incluindo” as pessoas pelo
consumo. A produção industrial e o consumo de tal produção ao ser sustentada por
crédito se torna puro simulacro, daí a expressão fábrica fantasma.
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de produção e de novas necessidades de massas, que foram, por sua vez,


possibilitados pelas novas tecnologias : como a produção de rádio, TV, ou de
produtos antes reservados às camadas superiores da sociedade, como o carro.
Essa expansão conjunta da produtividade com a expansão real do lucro,
decorrente da expansão da massa absoluta de força de trabalho, mascarou a
desproporção estrutural, só momentaneamente compensada no curso histórico
de expansão do Capital, entre produção cada vez mais
racionalizada/automatizada e força viva de trabalho, que tem como seu análogo
estrutural a desproporção entre dinheiro e trabalho produtivo.
Assim, a racionalização fordista da produção empresarial no início do
século XX possibilitada pelo desenvolvimento de novas tecnologias a partir da
aplicação das ciências implicou uma dependência cada vez maior do capital
industrial em relação ao crédito, hipotecando, desse modo, seu futuro lucro para
o pagamento real dos juros. O crédito, nesse contexto, compreendia um lastro no
processo real de valorização geral do Capital, que era possibilitado por essa
conjunção histórica acima descrita. Esse lastro só permanece com a condição que
o modo de produção capitalista continue se expandindo, como foi o caso no início
do século XX. Contudo, no último terço do século XX o que se manifesta é uma
valorização do capital creditício que se mantém ora num nível de simulacro, como
se as empresas que contraíssem empréstimos estivessem encabeçando um
processo real de valorização do Capital, ora em níveis explicitamente celestes a
partir da especulação na bolsa de valores. Concomitante a essa dependência do
capital industrial em relação ao crédito, produziu-se a dependência do Estado em
relação ao crédito para subvencionar o processo de acumulação do Capital. No
início os Estados conseguiam cobrir suas despesas gerais principalmente por
meio de seus fundos formados a partir dos tributos, isto é, cobrir aquelas
atividades improdutivas, que, no entanto, estão inscritas no seio do processo
produtivo. 15

15 Daíque a explicação de Deleuze em relação ao papel do Estado no capitalismo,


retomando o mesmo binômio do improdutivo-produtivo, vem a calhar: “O papel do
Estado a esse respeito, na axiomática capitalista, aparece ainda melhor porque o que
ele absorve não se tira da mais-valia das empresas, mas se acrescenta, aproximando a
economia capitalista de seu pleno rendimento em limites dados, e alargando, por sua
vez, esses limites, sobretudo em uma ordem de despesas militares que não fazem
nenhuma concorrência à empresa privada, ao contrário (só a guerra conseguiu aquilo
em que o New-Deal tinha falhado). O Estado, sua polícia e seu exército formam uma
gigantesca empresa de antiprodução, mas no seio da própria produção, e
[-] www.sinaldemenos.org Ano 9, n°12, vol. 2, 2018 182

No contexto das duas Guerras do início do século, as despesas gerais


concerniam principalmente ao âmbito militar, mas também passaram a abranger
cada vez mais o campo dos direitos e das infraestruturas (como a construção de
avenidas, usinas, saneamento básico etc) constituindo aquilo que se
convencionou chamar, no pós-guerra, de “Estado Social”, isto é, um Estado que
para além da sua função policialesca, garante um conjunto direitos sociais a partir
da promoção tendencialmente universais de serviços públicos, como educação,
saúde, e previdência. Mas, assim como o Capital industrial para conseguir se
valorizar não pode por si arcar com todo esse campo improdutivo e como sua
racionalização implica o aumento também das “despesas gerais”, o Estado por si
só já não podia arcar com a mediação desses custos para a reprodução do Capital
conforme seus critérios, sendo necessário recorrer ao crédito. Ao tornar-se
estruturalmente dependente do crédito, realiza-se aquilo que Kurz identificou
como uma inversão da relação Estado e sociedade:” já não é a sociedade que nutre
o Estado, para que este cuide dos “assuntos gerais”, mas pelo contrário é o Estado
que deve alimentar a sociedade com o “capital fictício”, para que esta possa
manter-se na sua forma tornada obsoleta de sistema produtor de mercadorias”
(Kurz, 2002, p. 11).
Vemos, assim, que a sociedade vai cada vez mais dependendo do crédito
para sua reprodução, e tal dependência decorre da própria contradição em
processo que é o Capital, isto é, da contradição entre dinheiro e trabalho; capital
fixo e capital variável. A crise que essa dependência geral implica foi se apresentar
de forma mais clara apenas com a terceira revolução industrial, pois a partir dela,
pela primeira vez, “há mais trabalho eliminado pela racionalização do que aquele
que pode ser reabsorvido pela expansão dos mercados “(Kurz, 2003, p. 16). O
limite do fordismo ficou patente com a crise da dívida nos anos 70, como foi o
caso do Brasil, que teve sua modernização - sempre incompleta quando tomava-

condicionando-a.” (Deleuze, 1979, p.298). No capitalismo, portanto, o Estado perde sua


figura central e transcendente de ordenamento do corpo social, de modo a determiná-
lo de cima a baixo. Ele, enquanto máquina, “não determina mais um sistema social, ele
é determinado pelo sistema social ao qual se incorpora no jogo de suas junções. Em
resumo, ele não deixa de ser artificial, mas se torna concreto, ‘tende à concretização’,
ao mesmo tempo em que se subordina às forças dominantes” (Deleuze, 1979, p. 280).
A função do Estado passa a ser a de regularização, codificação dos fluxos de capital, de
conhecimento, pessoas, de repressão dos inconformados etc. Em suma, ele
territorializa a desterritorialização produzida pelo Capital para garantir o próprio
processo de acumulação.
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se os países europeus como modelo - financiada por créditos interrompida,


convertendo-se numa praça de especulação financeira e num refém da dívida
paga ad infinitum em detrimento do Estado Social.16 Esse limite produz, por um
lado, um desemprego massivo de uma força de trabalho que não servirá mais de
exército de reserva a ser absorvida futuramente. Por outro, aqueles que
permanecem empregados são submetidos a exigências de trabalho e eficácia cada
vez mais desumanas (sejam os trabalhadores “efetivos”, sejam os “terceirizados”
ou informais); com garantias trabalhistas, quando não ausente, mínimas; com
salários baixos que demanda trabalhos suplementares, bicos etc, ou ainda
intermitências entre emprego e desemprego.
E apesar do que alguns sugerem como saída: reivindicar a
autodeterminação dos Estados-nacionais, a estatização, o desenvolvimento
autônomo, a retomada da industrialização etc, esse processo é irreversível. Essas
saídas parecem pressupor que o capitalismo pode se renovar eternamente a partir
das crises, ou retomar as fases de ascensão modernizante. O que Kurz parece
indicar a partir da teoria da crise e do valor é que o capitalismo assumiu um nível
social tal de produtividade que não há como retornar aos seus estágios anteriores
de acumulação real. Só se exterminar toda riqueza social.

16Ver Paulani, 2005. Leda mostra como na década de 70 houve não um novo boom de
desenvolvimento, como FHC parecia sugerir, relacionando “economia do setor público,
as empresas monopolistas internacionais e o setor capitalista moderno local”, mas uma
industrialização impulsionada pela necessidade de valorização do capital no centro do
sistema. Assim, na década de 70, o Brasil se tornou uma plataforma de valorização do
capital produtivo externo excedente. Isso explica a atuação massiva de multinacionais
na produção brasileira e na produção de outros países periféricos. Essa industrialização
pouco tinha a contribuir para o “desenvolvimento Nacional”, já que o grosso do lucro
produzido era vertido para as matrizes das multinacionais ou ainda preso ao
pagamento de juros de um capital financeiro em via de se autonomizar. O que o artigo
parece sugerir é que o “desenvolvimentismo” fenomênico do período da ditadura – o
dito milagre econômico - se inseria, na verdade, num movimento de transformação
desses países periféricos em plataformas de valorização do capital financeiro e da
respectiva consumação da “servidão financeira voluntária” a partir da aplicação do
receituário neoliberal – realizando o que ela chama de “sentido da industrialização”. A
ditadura desponta, nesse contexto, como um véu que cobriu esse processo de
reconfiguração do corpo social brasileiro (estrutura administrativa, política, social etc)
de modo a torná-lo adaptado às exigências de valorização fictícia do Capital. A partir da
década de 80, já sobre a dominação direta do capital financeiro – isto é, sem a
simulação no processo produtivo - o Brasil passa, por um lado, a formar cada vez menos
capital (produzir mercadoria), e por outro um crescimento acelerado de capital que é
exportado (dividendo, pagamento de dívida externas etc). Compreender o
“desenvolvimentismo” fenomênico, portanto, requer compreender o processo global do
Capital.
[-] www.sinaldemenos.org Ano 9, n°12, vol. 2, 2018 184

Nesse momento histórico, abrindo um parêntese, se revela, junto à


decomposição do capitalismo, a relação intima entre a lógica capitalista e a
concepção teleológica e progressista da história compartilhada tanto pela
esquerda quanto pela direita. A falta17 intrínseca à noção de
“subdesenvolvimento”, que à esquerda da periferia se dava num registro crítico,
continha em si, em latência, o encontro marcado com o desenvolvimento,
consumando o nivelamento entre centro e periferia. Ou seja, a concretização da
liberdade se dava no registro do par progresso-regresso; desenvolvido-
subdesenvolvido. O predicado desenvolvido ou moderno marcaria, nesse
sentido, a plena realização do nosso destino na medida em que engatássemos um
processo de desenvolvimento autônomo, nos livrando da marca da dependência
que caracteriza uma colônia, herança amarga que deveríamos nos livrar e que
emperrava a missão civilizatória do progressismo capitalista das forças
produtivas. O motor de tal Razão Histórica, para a tradição crítica da esquerda,
seria a contradição entre forças produtivas e relações de produção, que, apesar de
toda violência e exploração subjacente, tinha algo de civilizatório ou de uma
espécie de emancipação negativa, já que fornecia aos desterritorializados a
experiência da contingência das relações sociais até então estratificadas, antes de
darem de cara com as novas formas de servidão.
Verifica-se que a realização de toda a modernização capitalista ascendente,
orientada pela realização do pleno emprego, do desenvolvimento das forças
produtivas, foi dar em seu inverso: um capitalismo que gere sua própria crise,
recorrendo a ações que se assemelham aquelas da acumulação primitiva:
expulsando pessoas de suas casas com fogo, pilhando etc- se esgota a própria
esquerda modernizante/progressista. Nesse sentido, vale ressaltar que a causa da
crise não é o capital financeiro ou fictício, os banqueiros egoístas ou este e aquele
político ou grupo político que adota o “modo de regulação” monetarista, estes são
apenas resultado e expressão da fuga pra frente do Capital em seu processo
constante de valorização.

17 Afalta não só explicava as nossas barbaridades locais – falta de uma burguesia


moderna e capaz de encabeçar uma revolução; falta de uma proletarização ampla, que
constituiria os homens livres; ou de uma classe média pouco radicalizada etc. - mas era
o motor de nossa história: era necessário suprir a lacuna, buscar realizar aquilo que
falta ao estado de coisas atuais. A falta, assim, tinha uma certa “negatividade” na
medida em que nos indicava um além da realidade atualizada, um telos.
[-] www.sinaldemenos.org Ano 9, n°12, vol. 2, 2018 185

Fechando o parêntese sobre os devotos do progresso. Se o diagnóstico


apoiado na teoria da crise e do valor se sustenta, depreende-se que a organização
da vida em torno do trabalho adquire feições cada vez mais políticas, ou melhor,
de polícia, já que do ponto de vista da produção real de valor se tornou supérfluo.
Cada vez mais o trabalho vivo é dispensado e sofre o processo de precarização, ao
mesmo tempo em que se exige o trabalho como direito de se viver a vida. Mas
cabe a pergunta: e quem não conseguir trabalhar? O que acontece com a massa
de desempregados que não são mais exército de reserva, mas força viva tornada
supérflua/descartável e que não vai ser absorvida, devido ao estágio da produção
e reprodução da sociedade capitalista? No atual momento de totalização do
trabalho e da monetização do ser intensificada pelo aumento do fornecimento de
crédito e desmonte do Estado social, será imputado a cada um o fracasso em ser
incluso na sociedade do trabalho18. “Não soube empreender. Não aproveitou as
oportunidades dadas”. Os efeitos desse darwinismo social só podem ser uma
acentuação da exploração, desigualdade e da desclassificação (no sentido do
desmantelamento induzido das organizações e solidariedade entre os explorados)
promovida pela generalização da concorrência dos sujeitos entre si em torno da
conquista do trabalho como fim em si: “só quero poder trabalhar, não importa
qual seja o trabalho ou as condições de trabalho”. Não deve ser por mera
coincidência que no atual momento de desintegração social, catalisado pelo
desmoronamento dos serviços públicos fornecido pelo Estado a partir da
aplicação do receituário neoliberal, cresça concomitantemente o seu flanco
punitivo que coexiste com assistência social seletiva, compondo um diagrama que
mobiliza um conjunto de figuras sociais e instituições pacificadoras. Esse
diagrama comporta desde conselho tutelar, instituições ligadas ao saberes psi
(psiquiatria, psicologia, psicanálise), programas sociais de “prevenção” contra o
crime e a violência até militarização dos espaços urbanos, assassinato e
encarceramento em massa.

18 Creio que não há ninguém realmente “excluído” da sociedade e, no nosso caso, da


sociedade capitalista. O desemprego ou a condição de proletário “virtual”, isto é, de um
sujeito abstrato, monetário, mas que não encontra quem compre sua força de trabalho,
é produzida pelo próprio capitalismo e produzido cada vez mais em massa. Não há
sociedade que não organize seu “fora”. Assim, as figuras da alteridade são produzidas
pelas estruturas de socialização.
[-] www.sinaldemenos.org Ano 9, n°12, vol. 2, 2018 186

Ou seja, as relações de forças que perpassam o atual campo social


compõem uma formação de poder autonomizada, ou “molar”, que seleciona19
(por via do cadastro, de tipificações que torna possível intervenções localizadas),
em última instância, quem vive e quem morre e que vai para além do Estado,
incluindo as organizações não governamentais ou sociais (o chamado “terceiro
setor”), que não deixam de serem irrigadas com fundos públicos para realizar a
gestão da população e de sua miséria.20 Uma formação de poder, portanto, que
tenta produzir e gerir um consenso social que impeça dissensos.
Esfreguemos os olhos para o que significa a irrelevância econômica
crescente do trabalho e a ideologia predominante da criatividade, do
empreendedorismo, do trabalho em grupo, que não sai da boca dos gestores e que
se dissemina pelo corpo social a partir de um conjunto de instituições ligadas aos
programas de inclusão e desenvolvimento social financiados por organizações
transnacionais (BID, Banco Mundial etc.). Se o que importa é o nível social de
produtividade e a capacidade imaginativa das pessoas, suas produções locais,
culturais, semióticas - e que não podem ter sua produção calculada a partir do
parâmetro do tempo, sendo necessários outros mecanismos, como produção por
meta, o que não deixa de causar menos problemas imensuráveis do ponto de vista
subjetivo - fica evidente o caráter diretamente “político, cultural, social” que o
capitalismo assume (o que uma pessoa que trabalha no campo da cultura produz;

19Utilizo essa concepção de uma formação de poder de natureza seletiva recorrendo à


Deleuze em sua distinção entre dois polos de investimento libidinal: um paranoico
reacionário e um esquizoide revolucionário. O primeiro se definiria por esses conjuntos
molares, gerais, estatísticos, que esmagam, de cima pra baixo, as singularidades,
selecionando-as e regularizando aqueles que eles retêm em códigos ou axiomática. É
uma formação de poder que captura os fluxos das relações sociais, os desejos sempre
sociais e os subordinam aos interesses e metas exteriores, que separam o desejo de sua
capacidade produtiva e subordina essa capacidade às estruturas que se autonomizaram
em relação aos seus elementos produtivos. Ver Deleuze, 1976, p. 465-66.
20 Sobre isso, ver o recente trabalho do Centro de Defesa da Rua, em que se tenta

sistematizar a distribuição do dinheiro para ONG’s responsáveis por administrar e


prestar serviços à população em situação de rua – uma terceirização da assistência
social. A primeira conclusão, dado o montante de dinheiro gasto e a precariedade tanto
do serviço prestado quanto das condições do trabalhador social, é o grande negócio que
se tornou administrar a assistência voltada para a população de rua. Assim, cria-se uma
situação de mercado (a população de rua transformada em negócio) em que as ONG’s
concorrem para gerir de forma rentável e abocanhar a maior parte do fluxo monetário
em posse do Estado e destinado a esse setor de serviços. Disponível em:
https://centrodarua.com/blog/post.php?id=24. Esse mesmo processo vem ocorrendo
na educação pública, com as universidades e escolas que operam como empresas em
situação de mercado.
[-] www.sinaldemenos.org Ano 9, n°12, vol. 2, 2018 187

ou um estudante universitário que pesquisa e escreve artigos para cumprir metas


das agências de fomento?). Me parece que não se trata de mobilizar um dispêndio
produtor de mais-valia real, capaz de ter seu valor reconstituído a partir do tempo
social enquanto padrão de medida. Tais regimes de produção e instituições
formadoras e reprodutoras de “cidadãos-empreendedores” parecem ter um
caráter de produção de consenso popular, de apaziguamento - num contexto em
que os conflitos se multiplicam - e que torna aceitável, inclusive, a operação do
Estado e do Capital em certos espaços de “riscos”, no linguajar dos gestores,
produzindo “situações de mercado” – uma favela pacificada se torna propícia
para a visita de turistas, para a especulação imobiliária, para a realização de
megaeventos, atuação de ONG’s que realizam a “gestão” da questão social.
Mas, talvez, se trate de dizer que o Capital desde sempre é mais que uma
operação de lucro, sendo também uma operação de poder hegemônico por
despossessão que dá as condições para que o movimento fetichista de valorização
do Capital se mantenha. Mas há algo no que diz respeito à dimensão
diagramática, isto é, do conjunto de relações de forças ou de poder, que muda no
atual momento do capitalismo e que implica curto-circuitos no sistema que
partem de pontos subestimados pelos marxistas ortodoxos. Alguns indigestos
chegam a falar em termos de “mais-valia” de poder, semiótica, social extraídas
por equipamentos coletivos cuja função é produzir e reproduzir uma força de
trabalho de natureza complexa, na medida em que está ligada a fatores
qualitativos (culturas locais, formação escolar, capacidade de imaginar,
marcando um trabalho diferente daquele da fábrica). Esses equipamentos
coletivos (ONG’S, Organizações sociais, centros e núcleos de toda espécie) que se
multiplicam, buscam realizar a cidadania - antes vinculada a um universalismo a
ser alcançado pela expansão dos serviços públicos entendidos como direitos - pela
inclusão no mercado a partir de ações “gerencial-solidárias” que focalizam as
pessoas e realizam um tratamento tutelar e com uma abordagem claramente
compensatória, isto é, de redução dos efeitos da miséria a partir da “prestação de
serviços” sociais a um dado público-alvo. Feltran e Telles tratam esse flanco
mercadológico como uma linha de força ela mesma múltipla, se diferenciando
em suas atualizações ou concretizações, que compõem o diagrama acima
mencionado. Mas identificam uma outra linha que é o flanco militar, ligado às
operações de limpeza, reintegração, pacificação, contra-insurgência, ele mesmo,
[-] www.sinaldemenos.org Ano 9, n°12, vol. 2, 2018 188

portanto, múltiplo, implicando em agenciamentos concretos diferentes. E há uma


continuidade entre essas duas linhas: prisões cada vez mais privatizadas que
fornecem trabalho aos detentos e que propagam isso como uma espécie de
programa social inclusivo; usuários de crack que são internados
compulsoriamente ou alçados por cadastro a um programa social de
transferência de renda condicionada que tem seus graus de coerção. Essas duas
linhas andam juntas: para aqueles que não são alçados a tais programas o que
resta é a repressão direta.21 A relação assistência-punição não é apenas
contingente, mas parece constituir toda uma estratégia de governo da população
sob a égide do combate à violência.
Essa composição heterogênea constitui um dispositivo da violência22, que
tem como objetivo não ajudar os sujeitos vulneráveis a partir de políticas
assistenciais, mas garantir a integridade do corpo social em relação aos “corpos
estranhos”, aos “indivíduos perigosos” que ameaçam a segurança da sociedade
pela sua simples existência, ou seja, sujeitos que são virtualmente criminosos. A
atualização desse dispositivo em relação a tais sujeitos se dá conforme o modo
como sua “periculosidade” é codificada, o que implica processos de interpelações
tão diversas quanto o regime causal dos casos com o qual se lida: se ele será
interpelado conforme o recorte da droga, da ausência de moradia, ou do delito, o
que implica uma variação na dosagem de proteção social ou repressão, punição
e, quando o outro polo não é cogitado, extermínio.
Diante disso, alguns apontaram para o fato de que o conflito hoje se situa
não no âmbito do trabalho, ou seja, um conflito entre trabalhadores e capitalistas,

21 Para um resumido balanço do programa Braços Abertos na esteira das operações


higienistas e militares realizadas na “cracolândia” – Operação Limpa em 2005;
Operação Centro Legal em 2009; Operação Sufoco em 2012 – ver Telles, 2015. Fica
explícito a relação que aqui se tenta esboçar entre assistencialismo e punitivismo:
Seguindo a lógica de muitas outras políticas sociais recentes, propõe-se
condicionalidades para o acesso ao “direito”: aos que não as aceitam, a repressão vem
a galope. Não por coincidência, foi sob este segundo grupo que recaiu a repressão
policial desproporcional, da última semana. [...] Além disso, convém notar que o
discurso de recuperação do usuário aumentou simultaneamente a guerra e a
criminalização do “traficante” – o que só retroalimenta o ciclo vicioso de
encarceramento em massa. (Telles, 2015).
22 Termo empregado por Feltran recorrendo a Foucault. Trata-se, para ele, de eliminar a

mesma hipótese que Foucault pretendia ao formular o conceito de dispositivo da


sexualidade: nunca a violência e os sujeitos que a encarnam do ponto de vista da ordem
foram tão tematizados e nunca se apostou tanto no encarceramento daqueles que são
tomados como seus atores: homens jovens, pretos e favelados.
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mas na oposição entre cidadão de bem, trabalhadores e o bandido, o drogado, o


vagabundo, enfim, entre os “integrados” e os que ameaçam a coesão social, os
abjetos, alteridade radical do corpo social. Esse indivíduo perigoso é produzido,
materializado por um conjunto de mecanismos que subjetivam, racializam,
atribuem gênero e territorializam a violência urbana. Assim, esse diagrama
abstrato que se atualiza a partir da constituição de agenciamentos concretos, se
atualiza, por um lado, a partir de um regime discursivo sobre a violência urbana
e suas figuras – um ser-linguagem da violência urbana – e, por outro, um regime
de visibilidade – o ser-luz – que dão formas as relações de forças materiais, um
corpo (matéria) específico para assistir (função) e encarcerar; um território
determinado para intervir e pacificar.23 A pobreza é, assim, criminalizada,
territorializada e racializada, enquanto, outrora, era vista como marca do atraso
a ser superado por um processo de desenvolvimento capaz de integrar o pobre
pela geração massiva de emprego e promoção de direitos universais. É como se
chegasse ao consenso de que uma parcela da população não poderá ser integrada
e subsumida a homogeneidade de um Estado-Nação coeso, pois ela o ameaça e
por ameaçar deve ser combatida a partir da sofisticação de dispositivos
preventivos para a manutenção do próprio Estado Democrático de Direito, o que
justifica, pela necessidade ou ameaça, a suspensão dos próprios direitos
constitucionais para parcelas da população e a tomada de medidas de exceção que
inclui os outsider da fronteira do Estado Penal de Direito, excluindo-os.
Ou seja, a relação que o Estado de Direito estabelece com os território de
pobreza se dá a partir da sua exclusão do próprio Estado de Direito e de sua
determinação como ameaças desse Estado, como “foras-da-lei”, o que atesta os
discursos que constrói a pobreza criminalizada, territorializada e racializada
como “não-integradas” e as operações militares de pacificação ou de
“requalificação urbana” como “recuperação de territórios”. Portanto, parece que
a nossa questão social volta a ser um caso de “polícia” ou de “segurança pública”
no contexto de crise absoluta da acumulação e do desmonte do Estado Social que

23 Os
agenciamento encarnam uma mesma dinâmica de relações de forças que fazem com
que eles se assemelhem, assim como no diagrama disciplinar se assemelham a escola,
o quartel, a fábrica e a prisão. O binômio matéria e forma não se identifica com o de
função e matéria. Nesse diagrama descrito tanto a função quanto a matéria adquirem
formas concretas mantendo uma mesma racionalidade que é aquela assistencial-
punitivista.
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servia de colchão social da exploração, sendo o paternalismo funcional ao


punitivismo crescente uma forma de assumir a permanência da miséria e a sua
gestão mitigadora como única coisa a ser feita e que, em decorrência da sua
profundidade, não deixa de aparecer como “emancipatória” ou “revolucionária”.
Parece, assim, que apontar como alternativa a criação de mais emprego,
de um novo desenvolvimentismo que nos permita retomar o processo de
formação nacional (e quem não tem a tal identidade nacional que garante a
prosperidade do pleno emprego que se dane), é colocar como solução não só algo
que se esgotou e que não voltará, mas, além disso, é apontar como solução um
produto da máquina capitalista: o trabalho. A máquina capitalista que tudo
desterritorializa/destrói a fim de saciar a insaciável sede por autovalorização
produziu o trabalho abstrato como fonte de uma riqueza igualmente abstrata –
medida em tempo de trabalho. E tal trabalho abstrato é em sua origem histórica
masculino, branco e ocidental com tendências universalistas (Kurz, 2003, p. 12).
Como atestam os processos de assimilação dos povos originários “preguiçosos”
pelo trabalho abstrato ligado igualmente a uma identidade nacional abstrata.
Ao invés de afirmar o trabalho como essência do homem, isto é, de
ontologizar o trabalho, confundindo-o com todo e qualquer tipo de atividade, com
a própria relação metabolística com a natureza, deveríamos, ao contrário, criticá-
lo enquanto uma categoria histórica e princípio de socialização.24 Grande parte
da esquerda ainda reproduz um certo éthos do trabalho, e um certo ódio à

24 Nessarelação metabolística, a própria distinção entre homem-natureza é desfeita, pois


nessa relação “homem e natureza não são como dois termos, um face ao outro, mesmo
tomados numa relação de causação, de compreensão ou de expressão (causa-efeito,
sujeito-objeto etc.), mas uma só e mesma realidade essencial do produtor e do
produto”. (Deleuze, 1976, p. 19). Assim, não se trata de ontologizar o trabalho como
essência do homem, mas de recuperar um processo de produção estrangulado por uma
sociedade autodestrutiva, que além de enclausurar a terra e a força viva das pessoas na
forma-mercadoria, enclausura agora o saber por meio de patentes. Esse processo de
produção, em que Deleuze identifica o próprio desejo como princípio imanente –
produção de desejo como produção da própria realidade – não é o do trabalho, de uma
atividade produtora de valor, nem de produção para a satisfação das nossas
necessidades enquanto espécie humana – mas de um processo no qual o homem não
se situa mais como “rei da criação, mas como aquele que é tocado pela vida profunda
de todas as formas ou de todos os gêneros, que é encarregado das estrelas e dos animais,
e que não cessa de ligar uma máquina-órgão em uma máquina-energia, uma árvore no
seu corpo, um seio na boca, o sol no cu: eterno encarregado das máquinas do universo.”
(Ibidem, Loc. cit.). Processo que o capitalismo nega constantemente ao submeter o
processo vital, ou, para falar com o autor, a produção do desejo, que é sempre social, ao
automovimento narcísico do Deus-dinheiro, que inscreve a falta no interior da
sociedade, falta só passível de ser suprida no mercado.
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“preguiça”, escamoteado em larga medida por uma crítica da mais-valia tomada


como resultado não de um modo de produção, mas do interesse egoísta do
capitalista, da dominação externa dos que não-trabalham sobre os que
trabalham. Assim, a transformação passa a ser fundamentalmente distributiva:
de dar a cada trabalhador sua justa cota-parte na produção. Sendo que a força
produtiva social torna possível organizar a sociedade a partir de outros critérios,
outros agenciamentos, outro modo de produção que possibilitaria a emancipação
em relação ao próprio trabalho enquanto princípio e a dedicação da sociedade a
outras atividades.
Mas a crítica à saída desenvolvimentista à exploração capitalista pode ser
feita ainda por outra via do que a das determinações históricas do trabalho
abstrato e de sua natureza coercitiva, seja ele produtivo ou não. Esta ainda pode
ser feita a partir do diagnóstico segundo o qual a passagem do capitalismo para
seu momento de acumulação flexível é, dito de outro modo, a passagem de uma
sociedade de integração de massas para uma ordem de seleção e apartheid, que,
diga-se de passagem, no Brasil não é novidade. Essa passagem coloca em questão
a antiga luta de classes, formulada na luta de interesses entre capital e trabalho.
Pois se tem, por um lado, uma desclassificação e precarização crescente do
trabalho, que reforça, ao tirar o suporte simbólico e material que as entidades de
classes forneciam, o “empreendedorismo” de si a qual grande parte da população
é lançada. Por outro, a relação trabalho e capital se revela não como oposições de
entidades realmente separadas, mas como categorias imanentes ao capitalismo,
na medida em que não há capital sem consumo da mercadoria força de trabalho.
A desintegração da dita sociedade salarial, estruturada em torno do trabalho, é
índice da crise do próprio processo cego e narcísico de valorização do valor, que
tenta se manter degradando sua substância vital. Esgota-se, nesse sentido, o
horizonte linear e ascendente de uma luta política nos termos do marxismo
tradicional.
Esse quadro parece implicar, entretanto, uma outra política, ou, ao menos,
a morte de um tipo de política: a burguesa. Aquela política que se dá em relação
ao Estado. O princípio de tal política foi a igualdade, que valia - com a exceção da
esfera de produção - da esfera da circulação (o reino dos direitos naturais) ao
Parlamento por via da conquista do status universal de Cidadão que dava acesso
ao jogo político parlamentar, ou por meio da conquista do próprio aparelho do
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Estado. O movimento histórico da classe trabalhadora, que se decreta o fim,


tratou de universalizar tal princípio por meio da luta política, na forma histórica
definida.25 O diagnóstico precariamente traçado, se não é de todo equivocado, nos
permite vislumbrar a perda de força do movimento operário, principalmente a
partir da década de 80, decorrente, de um lado, de um processo de
desclassificação, por outro de sua luta defensiva por manter certas proteções
sociais que para partes da população nunca chegou e que para outras já deixa de
chegar.26 Mas, concomitante a esse processo, vemos ganhar a cena movimentos
decorrente da multiplicidade de tensões sociais e de um mal-estar que, apesar de
existente, não possuía, antes desses movimentos, um espaço coletivo para se
exteriorizar. Esses movimentos não possuem a dimensão simbólica e material
que estruturava os trabalhadores enquanto classe. São movimentos que surgem
ligados ao direito à cidade, ao direito a terra, ao racismo, ao feminismo, a luta não
só pela educação, mas pela possibilidade de se decidir de baixo o que será feito na
educação, etc. E a esquerda clássica apresenta dificuldade, principalmente devido

25 Podemos dizer que houve duas formas de explicitação do limite da luta bipolar de
classes. A primeira foi com a Revolução Russa, na qual a vanguarda da consciência
(Partido Bolchevique) ao tomar o Estado consolidou um Capitalismo de Estado, no qual
a burocracia valia pela burguesia como “grande-ausente”. O Partido revolucionário foi
incapaz de abolir as categorias bases do capitalismo, mantendo o fetiche do trabalho
abstrato produtor de valor (o que revela o caráter afirmativo da concepção de “classe
trabalhadora” que se tinha, já que antes buscou conservá-la do que aboli-la). A outra
forma foi a assimilação da classe trabalhadora a partir do seu reconhecimento enquanto
sujeito de direito nos Estados capitalistas ocidentais – no nosso caso, começou com o
governo Vargas. Talvez uma primeira implicação a se tirar dessa consideração é que
não basta afirmar no nível da representação ou da “consciência de classe” um interesse
revolucionário ou progressista, pois este pode se realizar de modo reacionário,
conservando todo tipo de estruturas tradicionais de dominação, como o Estado, a
prisão etc. A outra é que a tomada do Estado se apresenta como uma má alternativa. A
simples estatização dos meios de produção não nos emancipa dos fundamentos do
capitalismo, mas transforma, no máximo, o Estado em um grande proprietário,
realizando aquilo que Marx chamou de “comunismo grosseiro” no qual o Estado se
torna o único proprietário enquanto a sociedade civil se transforma em uma massa
despossuída. Além disso, a tomada do Estado proposta pela esquerda marxista-
leninista nada mais é que um desdobramento da própria estrutura organizativa de seus
partidos, no interior da qual se reproduz todo tipo de divisão: entre trabalho intelectual
e material; dirigentes e dirigidos etc. São partidos que já possuem a feição de um
aparelho de Estado e que antecipam a organização social por vir: hierarquizada.
26 Beaud e Pialoux, analisam esse processo de desclassificação na França e a eclosão de

rebeliões urbanas por parte de filhos de imigrantes que sofrem racismo e são relegados,
tanto eles quanto seus pais, à condição de “subclasse” ou “subproletariados”. A
explicação, indo além de um viés puramente econômico, mostra como a reformulação
da relação entre família e educação contribui para esse processo de desclassificação na
medida em que desvalorizou a cultura política operária constituída durante o século
XX.
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a sua devoção à forma-partido, de compor com esses movimentos. Dado isso, a


questão é se a emancipação já não se apresenta mais com a forma que apresentou
historicamente, como fruto da organização em classe, com interesses definidos a
ser reconhecidos pelo Estado ou encarnado na forma-partido (ligada à tomada
daquele), mas fruto da organização autônoma de uma força contraprodutiva dos
explorados e oprimidos capaz de destituir a sociedade organizada em torno do
princípio autotélico do Capital, dando vazão para uma produção social baseada
não na racionalidade abstrata da troca de equivalentes e na lei do valor, mas
sensível, ecológica, livre de qualquer tipo de opressão, feita a partir da auto-
organização e auto-gestão. Portanto, não se trata de uma autogestão à lá
anarcossindicalismo, que visava, apesar de seu ímpeto antissistêmico, a
conquista da regulação do mercado de trabalho e da produção de uma forma
autônoma, é necessário fazer a crítica das categorias base do capitalismo
(trabalho, valor, dinheiro, Estado) de forma a não reafirmarmos mais elas.
Trata-se, assim, de saber como agenciar o mal-estar social de modo a
encaminhar um processo de emancipação (sem classe, mas que dissolva todas as
classes) em relação ao capitalismo. Com efeito, a luta torna-se não entre classes
com interesses definidos a ser reconhecidos ou representados, mas entre os
serventes da máquina e os que a fazem explodir ou fazem explodir as
engrenagens. (Deleuze, 1976 p. 324).

BIBLIOGRAFIA

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revendedoras de cosméticos. In: CONGRESSO LUSO AFRO BRASILEIRO
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Imago editora LTDA, 1976.
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para o conflito social contemporâneo. In: Caderno CRH, Salvador, v. 27,
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Trad. Artur Morão. Lisboa: Edições 70. S.D.
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reflexão sobre a situação atual à luz da história”. In: Boletim de Economia
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13. RAGO, M. Do cabaré ao lar: A Utopia da Cidade Disciplinar e a
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sobre a situação na ‘cracolândia’. Publicado em 2015. Disponível em:
http://www.namargem.ufscar.br/bracos-abertos-e-sufoco-sobre-a-
situacao-na-cracolandia/
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Cruz e Sousa: a contraluz do Iluminismo


Poesia, abstração e história de um malogro nacional

Cláudio R. Duarte

“Mas hoje o Diabo, já senil, já fóssil,


Da sua criação desiludido,
Perdida a antiga ingenuidade dócil,
Chora um pranto noturno de Vencido”.
(Cruz e Sousa, “Flor do Diabo”)

Uma guerra social vista à contraluz

Quem buscar entender o significado de Cruz e Sousa (1861-1898) para o


seu tempo e o nosso precisará limpar bem os óculos e ter a paciência de ler e
comparar textos em poesia e prosa muito ricos e variados, embora também se
apresentem como irregulares e desiguais. A “potência verbal”1 que o define de
maneira singular na Literatura Brasileira não raro desmorona no “vazio
verbalismo”, nas “escórias retóricas”, na adjetivação carregada, ora “tautológica”,
ora “avessa à índole léxica das palavras”2.

No entanto, o resultado compensa o esforço, desvelando um grande


escritor do XIX ainda hoje mal compreendido e subestimado. Foi ele talvez o
primeiro a transfigurar em grande lírica – como pretendemos aqui meramente
apontar – a condição social negativa vivida pelos excluídos da ex-colônia
escravista e da República recém-naufragada.

A metáfora militar que ecoa no título de seu primeiro livro de poemas –


Broqueis (um escudo de madeira ou ferro com uma broca, isto é, uma saliência
cônica no centro, para permitir desviar setas que o atingem) – põe a obra na linha

1 Antonio CANDIDO & José Aderaldo CASTELLO, Presença da literatura brasileira –


II. Romantismo, Realismo, Parnasianismo, Simbolismo. 3ª ed. revista. São Paulo:
Difusão Europeia do Livro, 1968, p. 297.
2 Tais são as críticas insuspeitas elaboradas pelo fiel amigo, Nestor VITOR em seu ensaio

“Cruz e Sousa (1896)” apud Andrade MURICI. “A crítica simbolista” in: A literatura
no Brasil – Era realista/Era de transição. (Dir. Afrânio Coutinho). 4ª ed. revista e
ampliada. São Paulo: Global, 1997, p. 523.
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da defesa dos “povos condenados”, “desesperados” e “aflitos”, fazendo as cidades


aparecerem como uma

Torva Babel das lágrimas, dos gritos,


Dos soluços, dos ais, dos longos brados,
A Dor galgou os mundos ignorados,
Os mais remotos, vagos infinitos.3

Gritos que ecoam e constantemente sobem para a luz de um céu linguístico


sublimado, que os acolhe e ilumina do alto daquela “Torre de Ouro” em Broqueis,
onde “se desfraldam bandeiras sob sóis de céus imensos broqueladas”; mas
bandeiras que não podem representar o triunfo, ou o “Amor, nas Glórias vãs
arrebatadas”, pois

São pavilhões das hostes fugitivas,


Das guerras acres, sanguinárias, vivas,
Da luta que os Espíritos ufana.

Estandartes heroicos, palpitantes,


Vendo em marcha passar aniquilantes
As torvas catapultas do Nirvana! 4

O que tal torre broquelada pelos sois ilumina e nos permite ver passar lá
embaixo são as figuras metafóricas de uma guerra social já perdida, ou a
aniquilação iminente dos corpos, a paralisia e a morte coletiva (“As torvas
catapultas do Nirvana!”). É pois essa morte social simbólica que ganha luz no
Farol desta poética da dor – a dor daqueles gritos que sobem,

Seres virginais que vêm da Terra,


Ensanguentados da tremenda guerra,
Embebedados do sinistro vinho.5

Como se intui até aqui, Cruz e Sousa cumpre sua poética, delineada desde
seus primeiros livros maduros, torneando versos que geralmente apagam seus
contornos sociais, diluindo suas raízes históricas, abstraindo-as por meio de um
intenso trabalho com a forma. Uma poética da luz – ou antes, de uma contraluz

3 João da CRUZ E SOUSA. “A Dor” in: Broqueis [1893]. Obra Completa, Vol. 1 – Poesia.
(Org. e estudo Lauro Junkes). Jaraguá do Sul: Avenida, 2008, p. 396. Disponível em:
http://fcc.sc.gov.br/cruzesousa/cruzesousa_vol1_poesia.pdf (Acesso em 18.02.2018).
4 Idem, “Torre de Ouro” in: Broqueis, op. cit., p. 395.
5 Idem, “Caminho da Glória” in: Últimos sonetos [1905], op. cit., p. 520.
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negativa que ilumina a guerra e a catástrofe social que o nosso iluminismo


tropical encobria e segregava. Um tema que atravessa toda sua arte poética,
tornando interessante até mesmo aqueles que à primeira vista parecem apenas
sublimações idealistas e ingênuas, como em

A PERFEIÇÃO

A perfeição é a celeste ciência


(...)
Noss’alma fica da clarividência
(...)
Noss’alma fica como o ser que às lutas
As mãos conserva limpas, impolutas,
Sem as manchas do sangue mau da guerra.

A Perfeição é a alma estar sonhando


Em soluços, soluços, soluçando
As agonias que encontrou na Terra!6

Ora, é justamente aqui – nessa operação de abstração, através da


revelação da face opaca e da transfiguração formal dos fundamentos sociais –
que reside grande parte dos segredos e dos significados desta obra.

Se for assim, então, aquilo que geralmente é reconhecido como o


sentimento predominante ou os temas principais de sua obra – o drama da
exclusão social, a consciência torturada pela dor, a alienação e o preconceito, o
emparedamento do indivíduo, a angústia diante da privação real, da doença e da
morte, a fuga em direção à natureza e à sublimação artística – precisam ser lidos
numa chave histórico-social totalmente diferente que a de uma poesia metafísica,
espiritualista e esteticista – tal como se costuma identificá-la com o
“Decandentismo” e o “Simbolismo” europeus7. No Manifesto Decadentista
francês, a decadência de “religião, costumes, justiça” ou da “civilização” é
assumida como um ponto de vista escapista quase positivo, senão apologético: “a

6 Idem, “A perfeição” in: Últimos sonetos [1905], op. cit., p. 523.


7 Segundo Anna BALAKIAN, há três traços que permanecem constantes no estilo
simbolista: “a ambiguidade da comunicação indireta, a associação com a música e o
espírito ‘decadente’”. O primeiro traço, que determina a opacidade e o hermetismo da
poesia, passa pelo uso de símbolos naturais, míticos e de fusões entre o abstrato e o
concreto. Com o tempo, porém, alguns desses símbolos foram se fixando e se tornando
meras metáforas convencionais que perderam sua ambivalência e multiplicidade de
significados. Ao cabo, o refúgio na paisagem imaginária e atemporal da mitologia
degrada o verso, terminando numa nova forma de abstração neoclássica (O
simbolismo. São Paulo: Perspectiva, 2007, p. 81-5).
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decadência política nos deixa frios. (...) Nós nos absteremos de política como de
uma coisa idealmente infecta e abjetamente desprezível”. 8 A poesia simbolista
assume-se como “inimiga do ensino, da declamação, da falsa sensibilidade, da
descrição objetiva”, buscando “vestir a Ideia de uma forma sensível”, mas sai
purificada, indefinida, inteiramente abstraída de qualquer referente social: “o
caráter essencial da arte simbólica consiste em não ir jamais até à concepção da
Ideia em si”.9

A guerra social representada por Cruz e Sousa cruza estes estilos da


vanguarda europeia esteticista, mas neles não pode se deter. O poeta tem diante
de si um chão prático e político inteiramente outro. Estes estilos convertem-se
assim em momentos suspensos e aparentes da forma histórico-substancial de sua
poesia, cujo sentido amiúde explode as marcas literárias dessa suposta filiação.

A derrota do Abolicionismo – o Spleen do Idéal nacional

A primeira fase de Cruz e Sousa é marcada por influências românticas,


positivistas e naturalistas (Hugo, Zola, irmãos Goncourt, Spencer, Haeckel) 10,
bem como pela poesia condoreira e da chamada “nova geração” baudelaireana de
1870 (Luís Delfino, Carvalho Jr., Teófilo Dias, Fontoura Xavier), com suas tintas

8 Anatole BAJU, “Aos leitores!” (Le décadent littéraire et artistique, nº1, 10 de abril de
1886) in: Gilberto M. Teles, Vanguarda europeia e modernismo brasileiro. Rio de
Janeiro: Record, 1987, p. 57.
9 Jean MORÉAS, “O Simbolismo” [Le Figaro, nº de 18 de setembro de 1886] in: Teles,

op. cit., p. 63-4.


10 Cf. João da CRUZ E SOUSA, Obra completa, Vol. 2 – Prosa. (Org. e estudo Lauro

Junkes). Jaraguá do Sul: Avenida, 2008, p. 49, 54, 70, 74, 76, 80. Com a economia e a
precisão que lhes são características, Antonio Candido assim descreve o percurso de
Cruz e Sousa, em traços que agora farão maior sentido para o leitor desavisado: “A
formação de Cruz e Sousa foi naturalista, em ciência e em estética. Já ia pelos trinta
anos quando se voltou para o Simbolismo, de que seria o verdadeiro fundador e um dos
dois principais representantes entre nós. Por isso a sua obra guardou sempre na forma
a impregnação parnasiana e, na ideia, o pessimismo e o materialismo dos realistas. Mas
daí veio talvez a sua originalidade, ao combiná-los com as musicalidades e as
imprecisões vagamente espiritualistas do Simbolismo. Para essa mistura, vinha
predisposto graças às maiores influências que sofreu, e que o marcaram para sempre:
a de Baudelaire e a de Antero de Quental. Ao primeiro, deve não apenas o domínio do
poema em prosa, mas certo satanismo, o senso dos contrastes e as correspondências, o
gosto pela forma lapidar. Ao segundo, deve o pendor pela poesia filosófica, o culto da
noite, a tensão meditativa e a predileção pelo soneto” (CANDIDO e CASTELLO, op. cit.,
p. 297).
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eróticas, satanistas, republicanas e mesmo socialistas11. Dos versos provincianos


de meados da década de 1880 (projetadas para o livro Cambiantes), poderíamos
destacar como um bom exemplo dessas tendências este soneto “filosófico”, com
claras tintas republicanas e quase socialistas:

À REVOLTA
(A Cassiano César)

O século é de revolta – do alto transformismo,


De Darwin, de Littré, de Spencer, de Laffite –
Quem fala, quem dá leis é o rubro niilismo
Que traz como divisa a bala-dinamite!...

Se é força, se é preciso erguer-se um evangelho,


Mais reto, que instrua – estético – mais novo
Esmaguem-se do trono os dogmas de um Velho
E lance-se outro sangue aos músculos do povo!...

O vício azinhavrado e os cérebros raquíticos,


É pô-los ao olhar dos sérios analíticos,
Na ampla, social e esplêndida vitrine!...

À frente!... – Trabalhar à luz da ideia nova!...


– Pois bem! Seja a ideia, quem lance o vício à cova,
– Pois bem! – Seja a ideia, quem gere e quem fulmine!...12

A retórica didática e ouriçada, de base cientificista, ainda sem os requintes do


poeta maduro, denuncia, no entanto, um escritor que sabe qual o seu lugar
político nesse país de instituições anacrônicas. A meta era a república popular, as
liberdades civis, vindas na esteira da campanha abolicionista. Assim, pode-se ler
em versos de “Auréola Equatorial” a presença da mesma luz crítica anteriormente
presenciada nos poemas da maturidade:

Que o facho – Abolição – rasgando as nuvens graves


De raios e bulcões – triunfa nos litígios! 13

11 Para uma boa caracterização da nova geração de 1870, cf. J. M. Machado de ASSIS, “A
nova geração” (in: Obra Completa, v. 3. Rio de Janeiro: Aguilar, 1959); Antonio
CANDIDO, Formação da literatura brasileira, vol. 2. (Belo Horizonte, Itatiaia: 2000)
e Idem, “Os primeiros baudelairianos” in:__. A educação pela noite e outros ensaios.
São Paulo: Ática, 1989.
12 CRUZ E SOUSA, “À revolta” in: O livro derradeiro – Cambiantes, Obra completa, Vol.

1 – Poesia, op. cit., p. 69.


13 Idem, “Auréola Equatorial” in: O livro derradeiro - Outros sonetos, op. cit., p. 85.
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Em um poema ainda mais explícito nesse sentido e escrito com melhor


arte, o autor sabe que luta contra uma classe de proprietários que se outorgam
privilégios e direitos naturais legitimando-se “à luz” (grifo do original) de uma
ideia de razão completamente oca, que é mera “pose bestial” (idem) –:

ESCRAVOCRATAS

Oh! trânsfugas do bem que sob o manto régio


Manhosos, agachados – bem como um crocodilo,
Viveis sensualmente à luz dum privilégio
Na pose bestial dum cágado tranquilo.

Eu rio-me de vós e cravo-vos as setas


Ardentes do olhar – formando uma vergasta
Dos raios mil do sol, das iras dos poetas,
E vibro-vos à espinha – enquanto o grande basta

O basta gigantesco, imenso, extraordinário –


Da branca consciência – o rútilo sacrário
No tímpano do ouvido – audaz me não soar.

Eu quero em rude verso altivo adamastórico,


Vermelho, colossal, d’estrépito, gongórico,
Castrar-vos como um touro – ouvindo-vos urrar!14

À contraluz dessa arte corrosiva revelam-se a ferocidade e o obscurantismo


da classe dominante. O motivo da luz da razão não tem nada a ver com qualquer
preferência pela cor branca, ou a vontade de ser aceito no mundo dos brancos.
Num de seus textos em prosa mais explícitos, “O Abolicionismo”, publicado em
junho de 1887, a mesma metáfora da luz contra o escravismo é articulada:

A ação que o Abolicionismo tem tomado nesta capital é


profundamente significativa. Nem podia ser menos franca e menos
sincera a adesão de todos a esta ideia soberana, à vista dos
protestos da razão humana, do patriotismo e do caráter nacional
ante tão bárbara e absurda instituição – a do escravismo.

A onda negra dos escravocratas tem de ceder lugar à onda branca,


à onda de luz que vem descendo, descendo, como catadupa de sol,
dos altos cumes da ideia, preparando a pátria para uma
organização futura mais real e menos vergonhosa. Porque é
preciso saber-se, em antes de se ter uma razão errada das coisas,
que o Abolicionismo não discute pessoas, não discute indivíduos

14 Idem, “Escravocratas” in: O livro derradeiro, Cambiantes, op. cit., p. 67.


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nem interesses; discute princípios, discute coletividade, discute


fins gerais. 15

E para além da ideologia moral e nacionalista, a crítica se desenvolve num


plano ético e político, histórico e sociológico:

Não vai unicamente pôr-se a favor do escravo pela sua posição


tristemente humilde e acobardada pelos grandes e pelos maus,
mas também pelas causas morais que o seu individualismo traz à
sociedade brasileira, atrasando-a e conspurcando-a.

Não se liberta o escravo por pose, por chiquismo, para que pareça
a gente brasileira elegante e graciosa ante as nações disciplinadas
e cultas. Não se compreendendo, nem se adaptando ao meio
humanista a palavra escravo, não se adapta nem se compreende da
mesma forma a palavra senhor.

Tanto tem esta de absurda, de inconveniente, de criminosa, como


aquela.

Se a humanidade do passado por uma falsa compreensão dos


direitos lógicos e naturais, considerou que podia apoderar-se de
um indivíduo qualquer e escraviza-lo, compete-nos a nós, a nós
que somos um povo em via de formação, sem orientação e sem
caráter particular de ordem social, compete-nos a nós, dizíamos,
fazer desaparecer esse erro, esse absurdo, esse crime. 16

Então é este o verdadeiro solo de onde emerge inicialmente a sua obra: a


luta antiescravista, o prelúdio possível de uma república democrático-popular,
vista da perspectiva histórica da formação social brasileira. Sabemos como este
projeto malogrou rapidamente após a Abolição e os primeiros anos da
República17. E livros como Broqueis e Faróis traduzem esteticamente esse
processo social ruinoso experimentado de maneira inteiramente lúcida, na
década de 1890. Conforme estas coordenadas históricas foram sendo
desvendadas, a apreciação estética de Cruz e Sousa infletiu num sentido

15 Idem, “O Abolicionismo” in: Dispersos. Obra completa, Vol. 2 – Prosa, op. cit., p. 276,
grifo nosso. Disponível em:
http://fcc.sc.gov.br/cruzesousa/cruzesousa_vol2_prosa.pdf (Acesso em 18.02.2018).
16 Idem, ibidem.
17 Sobre o período histórico de transição do Império à República, que leva das novas

ideias de 1870 à campanha abolicionista até a queda da Monarquia, destacam-se os


livros de Emília Viotti da COSTA, Da Senzala à Colônia. São Paulo: Ed. Unesp, 2010;
Idem, Da Monarquia à República. São Paulo: Brasiliense, 1985; Nicolau SEVCENKO,
Literatura como missão: tensões sociais e criação cultural na Primeira República. São
Paulo: Brasiliense, 1983; Maria Tereza Chaves de MELLO, A República consentida. São
Paulo: Ed. FGV, 2011.
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materialista muito superior à recepção anterior, feita por nomes como Nestor
Vitor, Andrade Muricy e Roger Bastide.18 A decadência de ideais, a exclusão, a
informidade do país, a dor pessoal e coletiva da desintegração e da alienação não
são aqui, de maneira alguma, ideologias esteticistas ou visões individualistas do
mundo. Antes, permitem fazer a passagem sistemática do campo material para a
imanência literária. Vale relembrar, ainda, que é nessa década que Cruz e Sousa
enfrenta pessoalmente as barreiras para sua integração social e profissional no
Rio de Janeiro, terminando a vida como um humilde arquivista, amargando
ultrajes, sofrendo com a miséria, o racismo, a loucura da esposa e a tuberculose
nos últimos meses de vida. Contidos nessa experiência individual há então muitos
índices sociais que apontam para uma República excludente e autoritária que ao
triunfar enterra as antigas promessas do Abolicionismo, embora o processo que
o engendrou – aqui a fonte maior das dualidades “dialéticas” pressupostas em
sua obra – tenha trazido consigo também a possibilidade da razão crítica, do novo
momento artístico após 1870, em que iriam despontar grandes nomes como
Machado de Assis, Aluísio de Azevedo, Raul Pompeia, Euclides da Cunha e... Cruz
e Sousa.

A maneira que Cruz e Souza lidou esteticamente com esse processo social
sombrio é o segredo da permanência de sua obra. Pura engenhosidade. Tratava-
se de filtrar o conteúdo negativo referido numa poética que não refletisse
diretamente, à maneira altiva e orgulhosa do romantismo condoreiro, o
abandono dos negros e pobres em geral à pobre sorte, no início da República –
criando uma poética que expusesse esse fracasso junto ao triunfo de uma
sociedade do dinheiro, cada vez mais reificada e abstrata (principalmente após os
anos de loucura especulativa do Encilhamento), capaz de tornar invisível, através
de seus processos objetivos e discursos ideológicos, aquela massa amorfa e
excluída, contornando ainda as armadilhas coisificantes do naturalismo e do
cientificismo reinantes. Entre nós, Machado de Assis foi quem chegou numa

18Cf. principalmente o estudo de Ivone Daré RABELLO inicialmente registrado em sua


tese de doutorado, mais tarde retomada em Entre o inefável e o infando: ensaio.
Florianópolis, FCC, 1999, e ampliado em: Um canto à margem – uma leitura da
poética de Cruz e Sousa. São Paulo: Nankin/Edusp, 2006. Para uma análise da
recepção crítica da obra de Cruz e Sousa, ver a tese de doutorado de Juan M.
CAPOBIANCO, “O leitor de Cruz e Sousa: um estudo comparado das recepções críticas
de sua obra”. Rio de Janeiro: UFF, 2016.
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solução completa nesse sentido formulado, principalmente nos romances que


tematizam as consequências da modernização fracassada, como Quincas Borba
(1886-91), Dom Casmurro (1900) e Esaú e Jacob (1904)19. Mas muito dessa
solução podia ser encontrada também na geração de escritores europeus do pós-
junho de 1848 – como Baudelaire, Heine, Herzen e Flaubert –, quando
defrontaram-se com o malogro da revolução europeia e a permanência
autoritária do Segundo Império napoleônico20. Daí a forte afinidade eletiva do
segundo Machado e do segundo Cruz e Sousa com a estética de Les Fleurs du Mal.

Como em Baudelaire, há em sua obra poética uma unidade conflitiva entre


matéria histórica negativa (“Spleen”) e uma forma que se pretende clara, culta,
precisa, embora também um tanto fixa (a forma-soneto), universal e abstrata
(“Idéal”), sem poder se desprender de um eu-lírico todo corporal, um corpo
mimético, socialmente enraizado, desejoso, sofredor. A metafísica e o esteticismo
continuam a respirar na superfície de sua poesia, mas não raro como expressão
exata do campo do inimigo a vencer: as forças da abstração e da alienação social,
suportadas pelo dinheiro, o poder e a religião. Forças que era necessário
dissolver, como aquela figura do crucifixo esculpida em vil metal, que se desfaz
em carne, sangue, barro e luxúria, no início de Broqueis:

CRISTO DE BRONZE

Ó Cristos de ouro, de marfim, de prata,


Cristos ideais, serenos, luminosos,
Ensanguentados Cristos dolorosos
Cuja cabeça a Dor e a Luz retrata.

Ó Cristos de altivez intemerata,


Ó Cristos de metais estrepitosos
Que gritam como os tigres venenosos
Do desejo carnal que enerva e mata.

19 As referências básicas aqui continuam sendo os livros de Roberto SCHWARZ (Um


mestre na periferia do capitalismo – Machado de Assis. São Paulo: Duas Cidades,
1990; Idem, Ao vencedor as batatas. São Paulo: Ed. 34, 2000) e de John GLEDSON
(Machado de Assis: ficção e história. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1986). Remeto
também o leitor interessado nesse raciocínio às minhas duas teses de doutorado, com
análises da prosa de Machado de Assis: Cláudio R. DUARTE, “Literatura, Geografia e
Modernização social. (Espaço, alienação e morte na literatura moderna)”. São Paulo:
DG-FFLCH-USP, 2011; Idem, “Nada em cima de invisível – Esaú e Jacob, de Machado
de Assis. (As aventuras do dinheiro na transição do Império à República)”. DTLLC-
FFLCH/USP, 2017.
20 Dolf OEHLER, O velho mundo desce aos infernos – Auto-análise da modernidade após

o trauma de Junho de 1848 em Paris. São Paulo: Companhia das Letras, 1999; Idem,
Terrenos vulcânicos. São Paulo: Cosac Naify, 2004.
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Cristos de pedra, de madeira e barro...


Ó Cristo humano, estético, bizarro,
Amortalhado nas fatais injúrias...

Na rija cruz aspérrima pregado


Canta o Cristo de bronze do Pecado,
Ri o Cristo de bronze das luxúrias!...21

Esta configuração bifronte – abstrata e ao mesmo tempo corrosiva de sua


própria abstração – responsável pelo que há sempre de vaporoso, difuso mas
não menos carnal; ou de reticente e musical, apenas sugerido, mas também
tangível, doloroso e extremamente sensível em sua poesia – só ganha maior
determinação ou força de significação, assim, quando retomamos as coordenadas
históricas sedimentadas nesta sua escrita corrosiva. Que nem sempre isso evita
as recaídas no falso esteticismo, não lhe tira seus méritos.

Se voltarmos agora ao estoque de classificações produzidas sobre o poeta,


perceberemos melhor agora os disparates: espiritualismo cristão misturado ao
cientificismo, idealismo simbolista e pathos decadente, “angústia metafísica”,
“desejo inconsciente de mudar de cor”, “aristocratização ariana”, “obsessão pela
brancura”, entre outros. Passados cento e vinte anos, o grande obstáculo para
uma leitura de Cruz e Sousa é, ainda, o preconceito – e hoje menos o de cor do
que o criado por capotes teóricos axiomáticos sem nexo desse tipo. Na realidade,
sua obra imerge nesse arsenal de formas etéreas importadas, misturadas ao clima
aristocrático da burguesia fin de siècle, para deles extrair a experiência do
estranhamento, o que faz de sua obra algo sempre muito peculiar, difícil de
apreciar e determinar sem o auxílio das coordenadas materiais que acima
traçamos. Ele passa além e transcende tanto o frio engajamento esteticista quanto
o engajamento político mais direto. Como estamos tentando sugerir, isso se dá de
uma forma que ilumina o próprio foco de luz esclarecido e esteticista através do
contraste com seus objetos iluminados, vistos por ângulos incomuns, reunindo
de modo ambíguo um alto ideal estético e uma matéria negativa, esplinética, no
limite, violenta e irracional. O contraste surge a toda linha. De um lado luz,
espírito, perfeição formal; de outro, dor, miséria, morte. Poemas aparentemente
religiosos convertem-se em sacrílegos; poemas sobre a natureza invertem-se na

21 Idem, “Cristo de Bronze” in: Broqueis, op. cit., p. 391.


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focalização do artifício e do monstruoso; poemas com temas esquisitos como a


flor da lua, o poeta-clown irônico, agônico e derrotado, a beleza morta, a confusão
e a interversão constantes do amor ideal e carnal, da razão e do sonho, da lucidez
e da alucinação, do mal e da afirmação da vida etc. Sirva-nos de exemplo o último
terceto de “Regenerada”, que, da mulher casta e refeita pela religião termina em
algo como

Mas no teu vulto ideal e penitente


Parece haver todo o calor veemente
Da febre antiga de gentis Pecados.22

– “Pecados” socialmente alegóricos em que, no passado, havia certa promessa de


felicidade, de verdadeira vida, de amor carnal, lugar em que o “ideal” encontra a
verdadeira fonte de regeneração. Assim, engolfar tais temáticas aparentemente
ingênuas e espiritualistas no mar das forças eróticas e sociais, em perpétuo
conflito, é uma exigência que ele próprio não cansa de repetir em muitos de seus
versos – se tivermos ouvidos para a tensão difusa que os emoldura:

Aplica o ouvido à correnteza fria


Dos golfões da matéria
E recorda de que lama sombria
É composta a miséria.23

Uma sociedade de emparedados

No plano pessoal, esse canto da alienação e da derrota atinge sua expressão


estética mais alta, talvez, em alguns momentos de seu célebre poema em prosa:
“O emparedado”.24 Ele inicia-se à luz de uma noite soturna, relembrando o
percurso de esperanças e ilusões do poeta:

Ah! Noite! feiticeira Noite! ó Noite misericordiosa, coroada no trono das


Constelações pela tiara de prata e diamantes do Luar, Tu, que ressuscitas
dos sepulcros solenes do Passado tantas Esperanças, tantas Ilusões,
tantas e tamanhas Saudades, ó Noite! Melancólica! Soturna! Voz triste,
recordativamente triste, de tudo o que está morto, acabado, perdido nas
correntes eternas dos abismos bramantes do Nada, ó Noite meditativa!

22 Idem, “Regenerada” in: Broqueis, op. cit., p. 410.


23 Idem, “Recorda” in: Faróis (1900), op. cit., p. 426.
24 Idem, “Emparedado” in: Evocações (1898), Obra completa – Prosa, vol. 2, op. cit., p.

609-632.
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Aqui, o poeta toma plena distância da ideologia cientificista que no passado


pareceu estar a seu lado:

Eu trazia, como cadáveres que me andassem funambulescamente


amarrados às costas, um inquietante e interminável apodrecimento, todos
os empirismos preconceituosos e não sei quanta camada morta, quanta
raça d’África curiosa e desolada que a Fisiologia nulificara para sempre
com o riso haeckeliano e papai!

No final do texto, surge o pleno desabafo de um exilado e emparedado, atacando


conservadores e progressistas (supostamente à esquerda):

Não! Não! Não! Não transporás os pórticos milenários da vasta edificação


do Mundo, porque atrás de ti e adiante de ti não sei quantas gerações
foram acumulando, acumulando pedra sobre pedra, pedra sobre pedra,
que para aí estás agora o verdadeiro emparedado de uma raça.

Se caminhares para a direita baterás e esbarrarás, ansioso, aflito, numa


parede horrendamente incomensurável de Egoísmos e Preconceitos! Se
caminhares para a esquerda, outra parede, de Ciências e Críticas, mais alta
do que a primeira, te mergulhará profundamente no espanto! Se
caminhares para a frente, ainda nova parede, feita de Despeitos e
Impotências, tremenda, de granito, broncamente se elevará ao alto!
Se caminhares, enfim, para trás, ah! ainda, uma derradeira parede,
fechando tudo, fechando tudo – horrível! – parede de Imbecilidade e
Ignorância, te deixará num frio espasmo de terror absoluto...

E mais pedras, mais pedras se sobreporão às pedras já acumuladas, mais


pedras, mais pedras... Pedras destas odiosas, caricatas e fatigantes
Civilizações e Sociedades... Mais pedras, mais pedras! E as estranhas
paredes hão de subir – longas, negras, terríficas! Hão de subir, subir, subir
mudas, silenciosas, até as Estrelas, deixando-te para sempre
perdidamente alucinado e emparedado dentro do teu Sonho...

Lírica de combate

Num plano mais abertamente social, o tema de “Emparedado” ressurge em


nova chave no famoso “Litania dos pobres”, confirmando o traço histórico de sua
lírica de combate. Nada de reduzir o pobre à miséria e à impotência, mas antes
buscar a oposição dialética a todo clichê a seu respeito. Da inércia resultante de
uma luta social perdida, os pobres movem-se de posição em posição ao longo
desse extenso poema no caminho de recuperar sua história:

LITANIA DOS POBRES

Os miseráveis, os rotos
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São as flores dos esgotos.

São espectros implacáveis


Os rotos, os miseráveis.

(...)
Ó pobres! Soluços feitos
Dos pecados imperfeitos!

Arrancadas amarguras
Do fundo das sepulturas.

Após longa transição, um ponto zero é atingido, através da morte (nesse


“fundo das sepulturas”); mas o poema retoma o movimento em seguida, levando
do externo para o interno, da memória objetiva para a subjetiva:

Imagens dos deletérios,


Imponderáveis mistérios.

Bandeiras rotas, sem nome,


Das barricadas da fome.

Bandeiras estraçalhadas
Das sangrentas barricadas.

Fantasmas vãos, sibilinos


Da caverna dos Destinos!

Ó pobres! o vosso bando


É tremendo, é formidando!

Ele já marcha crescendo,


O vosso bando tremendo...

(...)
E de tal forma já cresce
O bando, que em vós parece.

Ó Pobres de ocultas chagas


Lá das mais longínquas plagas!

Parece que em vós há sonho


E o vosso bando é risonho.
(...)

Subvertendo a estrutura cultual da litania, na origem caracterizada pela


lamentação monótona e fastidiosa, aqui o conteúdo integral da experiência da
miséria converte-se em seu outro, fazendo renascer o sonho social da ruptura:

E a languidez fugitiva
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De alguma esperança viva.

Que trazeis magos aspeitos


E o vosso bando é de eleitos.

Que vestes a pompa ardente


Do velho Sonho dolente.

Que por entre os estertores


Sois uns belos sonhadores.25

Distante do formalismo vazio, portanto, suas melhores peças recordam a


tensão entre a palavra artística refinada, soerguida do chão da vida social e das
antigas lutas, e o fundo opaco e abismal dessa experiência histórica em vias de
esquecimento. É o que então seremos capazes de ler num dos primeiros poemas
de Broqueis, que como é de praxe nunca é associado ao declínio da esperança
transformadora do Abolicionismo e dos ideais republicanos:

CLAMANDO...

Bárbaros vãos, dementes e terríveis


Bonzos tremendos de ferrenho aspeto,
Ah! deste ser todo o clarão secreto
Jamais pôde inflamar-vos, Impassíveis!

Tantas guerras bizarras e incoercíveis


No tempo e tanto, tanto imenso afeto,
São para vós menos que um verme e inseto
Na corrente vital pouco sensíveis.

No entanto nessas guerras mais bizarras


De sol, clarins e rútilas fanfarras,
Nessas radiantes e profundas guerras...

As minhas carnes se dilaceraram


E vão, das Ilusões que flamejaram,
Com o próprio sangue fecundando as terras...26

– a insensibilidade dos “bonzos” contrasta com as carnes dilaceradas e as grandes


“Ilusões” flamejantes daqueles que deram o sangue nas contendas sociais, mas
que, tornadas poesia, agora fecundam as terras. Novamente vem pressuposta a
rememoração da experiência coletiva falhada. A partir disso, podemos notar
como sua arte toma tanto a direção da sublimação do esteticismo, para subvertê-

25 Idem, “Litania dos pobres” in: Faróis, op. cit., p. 485-8. Para uma análise completa
deste poema, cf. RABELLO, Um canto à margem, op. cit., p. 258 e ss.
26 Idem, “Clamando” in: Broqueis, op. cit., p. 391.
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lo por dentro com conteúdos impuros, como a direção oposta, descendo ao fundo
do abismo dos esquecidos. Ainda mais explícito nesse sentido é o conteúdo
publicado postumamente nestas estrofes selecionadas de um poema que, por seu
teor, faz lembrar muito a sua primeira fase poética:

CANÇÃO NEGRA

Ó boca em tromba retorcida


Cuspindo injúrias para o Céu,
Aberta e pútrida ferida
Em tudo pondo igual labéu.

Ó boca em chamas, boca em chamas,


Da mais sinistra e negra voz,
Que clamas, clamas, clamas, clamas
Num cataclismo estranho, atroz.
(...)
Ó bocas de uivos e pedradas,
Visão histérica do Mal,
Cortando como mil facadas
Dum golpe só, transcendental.

Sublime boca sem pecado,


Cuspindo embora a lama e o pus,
Tudo a deixar transfigurado,
O lodo a transformar em luz.

Boca de ventos inclementes


De universais revoluções,
Alevantando as hostes quentes,
Os sanguinários batalhões.

Abençoada a canção velha


Que os lábios teus cantam assim
(...)
Tudo precisa um ferro em brasa
Para este mundo transformar...
Nos teus Anátemas põe asa
E vai no mundo praguejar!

Ó boca ideal de rudes trovas,


Do mais sangrento resplendor,
Vai reflorir todas as covas,
O facho a erguer da luz do Amor.

Nas vãs misérias deste mundo


Dos exorcismos cospe o fel...
Que as tuas pragas rasguem fundo
O coração desta Babel.

Mendigo estranho! Em toda a parte


Vai com teus gritos, com teus ais,
Como o simbólico estandarte
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Das tredas convulsões mortais!

Resume todos esses travos


Que a terra fazem languescer.
Das mãos e pés arranca os cravos
Das cruzes mil de cada Ser.

A terra é mãe! – mas ébria e louca


Tem germens bons e germens vis...
Bendita seja a negra boca
Que tão malditas coisas diz!27

Eis a “boca injuriosa” do poeta identificado com sua raça e com os subordinados
em geral; voz mensageira de “universais revoluções” que conclama à
transformação com o “ferro em brasa”, para arrancar “os cravos/ Das cruzes mil
de cada Ser”; os significantes do movimento histórico-ideológico dos excluídos
não poderia ser melhor significada, nesses versos tecnicamente límpidos feito de
rimas alternadas, algo devedores de “Abel e Caïn”, de Baudelaire. Salvo engano,
eles dividem-se alternando-se em estrofes negativas e positivas: a imprecação
contra os donos da vida, seguida pela autoidentidade de quem busca transfigurar
o real pela arte.

Contrariando novamente o Céu das elites, é essa mesma experiência tensa


que se apresenta no famoso poema de abertura de Broqueis – “Antífona” – quase
sempre lido em pura chave simbolista, como pura reflexão metapoética:

ANTÍFONA

Ó Formas alvas, brancas, Formas claras


De luares, de neves, de neblinas!...
Ó Formas vagas, fluidas, cristalinas...
Incensos dos turíbulos das aras...

Formas do Amor, constelarmente puras,


De Virgens e de Santas vaporosas...
Brilhos errantes, mádidas frescuras
E dolências de lírios e de rosas...

Indefiníveis músicas supremas,


Harmonias da Cor e do Perfume...
Horas do Ocaso, trêmulas, extremas,
Requiem do Sol que a Dor da Luz resume...

Visões, salmos e cânticos serenos,


Surdinas de órgãos flébeis, soluçantes...
Dormências de volúpicos venenos

27 Idem, “Canção negra” in: Farois, op. cit., p. 494-5, grifos nossos.
[-] www.sinaldemenos.org Ano 9, n°12, vol. 2, 2018 211

Sutis e suaves, mórbidos, radiantes...

Infinitos espíritos dispersos,


Inefáveis, edênicos, aéreos,
Fecundai o Mistério destes versos
Com a chama ideal de todos os mistérios.

Do Sonho as mais azuis diafaneidades


Que fuljam, que na Estrofe se levantem
E as emoções, todas as castidades
Da alma do Verso, pelos versos cantem.

Que o pólen de ouro dos mais finos astros


Fecunde e inflame a rima clara e ardente...
Que brilhe a correção dos alabastros
Sonoramente, luminosamente.

Forças originais, essência, graça


De carnes de mulher, delicadezas...
Todo esse eflúvio que por ondas passa
Do Éter nas róseas e áureas correntezas...

Até aqui a peça parece ressaltar apenas as qualidades positivas de uma “Forma”
pura a ser construída, toda ela feita de vocábulos nobres e musicais, de visões
excelsas e evocações sinestésicas inebriantes – o que não raro foi confundido com
o simples desejo de embranquecer do poeta negro, como que se ele mendigasse
reconhecimento e permissão para entrar no mundo de homens brancos e ricos
através do uso de seus signos de pertença, feito ele próprio de ouro, cristais finos,
virgens angélicas e muito incenso sufocante de uma atmosfera pseudorreligiosa
– e que já vimos ser destroçada nos poemas subsequentes de Broqueis. A
sequência dessa Antífona, contudo, ironiza essa atmosfera, fazendo lembrar-nos
do movimento negativo anteriormente analisado em “Cristo de Bronze” e
“Regenerada”; e assim o poema cujo título parecia querer celebrar uma espécie
de “canção litúrgica”, reverte-se violentamente no seu contrário, parecendo
ensaiar a futura dissolução desse mundo petrificado, em claro confronto com a
face obscena e “medonha” do “tropel cabalístico da Morte”, oculta sob tais signos
de pertencimento de classe:

Cristais diluídos de clarões alacres,


Desejos, vibrações, ânsias, alentos,
Fulvas vitórias, triunfamentos acres,
Os mais estranhos estremecimentos...

Flores negras do tédio e flores vagas


De amores vãos, tantálicos, doentios...
Fundas vermelhidões de velhas chagas
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Em sangue, abertas, escorrendo em rios...

Tudo! vivo e nervoso e quente e forte,


Nos turbilhões quiméricos do Sonho,
Passe, cantando, ante o perfil medonho
E o tropel cabalístico da Morte...28

É como se a contraluz jogada pelo poeta sobre a Fôrma clara que desce
nobremente das primeiras estrofes, como que musicalmente orquestradas para
embaçar, prender e encafuar o conteúdo de todo o livro, iluminasse a verdadeira
face oculta e obscena desse mundo de formas alvas, brancas, claras, de vapor ou
azul celeste etc. – de um mundo simbólico revelado, em suma, como falsamente
harmonioso através do contraste com o que resta no final, literalmente posto no
fundo negativo do poema: aí reluz álacre e opaca a realidade das flores vagas e
incertas, os amores malogrados, jorrando em feridas sangrentas: “as fundas
vermelhidões de velhas chagas/ Em sangue, abertas, escorrendo em rios...”,
enfim, tudo o que finalmente parece “vivo e nervoso e quente e forte”, o
verdadeiro motor de sua lírica, mas que só pode ser expresso no mundo da arte
como visões de um sonho ou de um pesadelo que confina com a Morte social
alegorizada.

Caput mortuum

A guerra é portanto uma guerra de morte. Não, o poeta não acredita que
possa vencer a batalha perdida no curso alienado da História – e o poema de
fechamento de Broqueis faz-nos recordar, ao tratar apenas de si como sujeito
lírico, esta derrota social, transfigurando-a em uma...

TORTURA ETERNA

Impotência cruel, ó vã tortura!


Ó Força inútil, ansiedade humana!
Ó círculos dantescos da loucura!
Ó luta, ó luta secular, insana!

Que tu não possas, Alma soberana,


Perpetuamente refulgir na Altura,
Na Aleluia da Luz, na clara Hosana
Do Sol, cantar, imortalmente pura.

28Idem, “Antífona” in: Broqueis, op. cit., p. 386-7 (no original, o poema é apresentado
em itálico por ser um poema de abertura).
[-] www.sinaldemenos.org Ano 9, n°12, vol. 2, 2018 213

Que tu não possas, Sentimento ardente,


Viver, vibrar nos brilhos do ar fremente,
Por entre as chamas, os clarões supernos.

Ó Sons intraduzíveis, Formas, Cores!...


Ah! que eu não possa eternizar as dores
Nos bronzes e nos mármores eternos!29

Nessa luta secular, insana e dantesca pela forma e pela formação social,
tornadas impossíveis, não se trata de exprimir nenhum conteúdo simbólico
positivo, mas somente de tentar conquistar certa expressão inteligível (feita de ar
e luz, sol, bronze ou mármore) para uma “Alma soberana” “eternizar as dores”
individuais e coletivas, muitas vezes abrigada no fundo ou nos versos mais
herméticos e obscuros de seus poemas. Sua luz é inexoravelmente sombria e
triste, e vem como que de trás, na contraluz, deixando a coisa mais sugerida do
que declarada. É por isso que esse eu-lírico melancólico e autocorrosivo
identifica-se diversas vezes à figura noturna da Lua, cuja luz cai “entre os marfins
e as pratas diluídas /Dos lânguidos clarões tristes e enfermos” 30 sobre corpos
níveos e gelados de “sombras gentis de mortas/ em grandes procissões”31. Ele já
sabe de antemão que só lhe resta cristalizar a “dor profunda mais dilacerada”,
enquanto a própria luz lunar – o ponto de iluminação e visão desse eu poético –
é ela mesma “a suprema Dor cristalizada!...”32.

Em tais poemas, assim, a negatividade se radicaliza, afetando a própria luz


do ideal. A Dor cristalizada na Lua, um astro iluminado indiretamente pelo sol,
ilumina apenas a dor e a morte enfileirada de corpos em procissões; e será esta
mesma luz dolorosa que, no penúltimo soneto de Broqueis, comparecerá
iluminando os ares ermos e solitários, nos quais apenas

(...)
Há dor, há luto, há convulsões, venenos...

Estranhas sensações maravilhosas


Percorrem pelos cálices das rosas,
Sensações sepulcrais de larvas frias...

Como que ocultas áspides flexíveis

29 Idem, “Tortura eterna” in: Broqueis, op. cit., p. 420.


30 Idem, “Lua” in: Broqueis, op. cit., p. 399.
31 Ibidem.
32 Ibidem.
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Mordem da Luz os germens invisíveis


Com o tóxico das cóleras sombrias... 33.

A supremacia da realidade morta transtorna a noção da arte e da própria


realidade, que se decompõem em “larvas frias”, “áspides (=serpentes) flexíveis” e
ocultas, “germens invisíveis” da putrefação – prefigurando aquele “processo de
aniquilação” que Adorno anteviu na redução do mundo objetivo ao seu caput
mortuum34. Lança-se a suspeita sobre todo o vivo – o fogo-fátuo dessas “almas
vãs, galvanizadas / de emoção, de pureza, de bondade” – que em verdade
estariam mortas por dentro:

É que no fundo, na secreta essência,


Essas almas de triste decadência
São lama sempre e sempre serão lama.35

Mas aqui, então, a visão melancólica a respeito da “formação supressiva”36 ou da


deformação histórica do país não se petrifica na contemplação da pura
impotência da rigidez cadavérica. “A morte é a coisa mais terrível”, dizia Hegel,
“e suster o que está morto requer a força máxima. A beleza sem-força detesta o
entendimento porque lhe cobra o que não tem condições de cumprir. Porém não

33 Ibidem, “Luz Dolorosa...”, op. cit., p. 420. Os temas noturnos atravessam toda a obra.
Assim, sobre algumas de suas melhores peças sobre o tema, Ivone Rabello comenta:
“(...) ‘Flores da Lua’ parece prestar-se a uma espécie de glosa poética do movimento da
razão. (...) Esse halo de luz – tão fundamental na obra de Cruz e Sousa e que em ‘Flores
da Lua’ propicia o acesso ao conhecimento visionário, é aqui [em “Luar de lágrimas”]
símbolo do que, simultaneamente, revela o mundo sidéreo e desvenda o que está bem
abaixo dele, inóspito e desértico. Sonho, mas de angústia.” (RABELLO, Entre o inefável
e o infando, op. cit., p. 23 e 58). Tal é o “luar lutuoso”, “luar de mortos e de mortas”
deste último poema.
34 “Mesmo quando a realidade encontra admissão precisamente onde ela parece recalcar

o que outrora o sujeito poético realizava, isso não se coaduna com aquela realidade.
A sua desproporção em relação ao sujeito enfraquecido, que a torna absolutamente
incomensurável à experiência, desrealiza-a com razão. O excesso de realidade é a sua
decadência; ao destruir o sujeito, mata-se a si mesma. Esta transição constitui o
elemento artístico em toda a anti-arte. É levada por Beckett até à aniquilação evidente
da realidade. Quanto mais total é a sociedade, tanto mais ela se reduz a um sistema
unívoco, tanto mais as obras, que armazenam a experiência deste processo, se
transformam no seu Outro. Se um dia se precisar de um conceito de abstração tão vago
como for possível, ele assinalará então a regressão do mundo objetivo justamente onde
nada restará a não ser o seu caput mortuum. A arte nova é tão abstrata como as relações
dos homens se tornaram em verdade” (Theodor W. ADORNO, Teoria estética. Lisboa:
Ed.70, 1993, p. 44).
35 CRUZ E SOUSA, “Fogos-fátuos” in: Últimos sonetos, op. cit., p. 539.
36 Para usar um conceito de José Antonio PASTA JR., “Formação supressiva –

Constantes estruturais do romance brasileiro”. São Paulo: FFLCH-USP, 2011 (teses de


livre-docência).
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é a vida que se atemoriza ante a morte e se conserva intacta da devastação, mas é


a vida que suporta a morte e nela se conserva, que é a vida do espírito”37. Pois esta
poesia inclui sempre um eu-lírico distanciado, capaz de refletir e dar vazão ao
ódio contido, tornando-se riso sacrílego de um “Rebelado”:

Ri tua face um riso acerbo e doente,


Que fere, ao mesmo tempo que contrista...
Riso de ateu e riso de budista
Gelado no Nirvana impenitente.

Flor de sangue, talvez, e flor dolente


De uma paixão espiritual de artista,
Flor de Pecado sentimentalista
Sangrando em riso desdenhosamente.

Da alma sombria de tranquilo asceta


Bebeste, entanto, a morbidez secreta
Que a febre das insânias adormece.

Mas no teu lábio convulsivo e mudo


Mesmo até riem, com desdéns de tudo,
As sílabas simbólicas da Prece!38

É portanto este mundo sociossimbólico, resguardado por uma aura


religiosa, que será feito em migalhas. O motivo da “flor de sangue”, ao mesmo
tempo paixão vívida e dolente, sangra num riso irônico, sintetizando essa
capacidade poética de inverter o negativo em crítica de todo o existente.

Um mundo feroz à contraluz: o último andar das elites, o subsolo


infernal dos dominados

É grande, pois, essa imaginação poética – e muita história vai sendo


prensada nas malhas desses textos incomuns de Broqueis. Se por um lado o
trabalho com a forma abstrai e quase invisibiliza a referência histórica de base, a
ponto de quase nada sobrar de seu impulso original — tal é, enfim, o modo de
mimetizar o processo ideológico e socioeconômico de abstração e subsunção de
todo material ao domínio do capital nesse país de oligarcas escravocratas e
banqueiros incontrastados por qualquer poder popular – por outro lado, ele

37 Georg W. F. HEGEL, Fenomenologia do espírito, Parte I. Petrópolis: Vozes, 1999, p.


38.
38 CRUZ E SOUSA, “Rebelado” in: Broqueis, op. cit., p. 412.
[-] www.sinaldemenos.org Ano 9, n°12, vol. 2, 2018 216

sobressalta muitas vezes o material mais bruto e pungente de maneira não-


sublimada, estilhançando de vez o que parecia ser feito de ouro, cristal e névoa,
significantes escusos para o poder real do dinheiro. Traço que lindamente então
vai perfurando o tecido fino do simbolismo e do parnasianismo da época. É assim
um mundo podre e ruinoso que vem nomeado desde o alto do poema, sem
subterfúgios, como por exemplo em

CONDENAÇÃO FATAL

Ó mundo, que és o exílio dos exílios,


Um monturo de fezes putrefato,
Onde o ser mais gentil, mais timorato
Dos seres vis circula nos concílios.

Onde de almas em pálidos idílios


O lânguido perfume mais ingrato
Magoa tudo e é triste, como o tato
De um cego embalde levantando os cílios.

Mundo de peste, de sangrenta fúria


E de flores leprosas da luxúria,
De flores negras, infernais, medonhas.

Oh! como são sinistramente feios


Teus aspectos de fera, os teus meneios
Pantéricos, ó Mundo, que não sonhas!39

Estética de um bruto desvelamento que apresenta o “decadente” provindo


de cima, dos “concílios” religiosos e dos “idílios” burgueses, o verdadeiro “exílio
dos exílios” (em relação ao mundo miserável e separado dos de baixo) – o mundo
degradado das elites, em suma, exercendo sua dominação ferina (de “aspectos
ferinos” e “pantéricos”) sobre o produto social – tal é a estética do choque
aprendida na fonte de Baudelaire, e não simplesmente macaqueada da ideologia
decadentista fin de siècle.

Num poema extraordinário de Faróis, é o andar dos de baixo que é


estilhaçado para se revelar como um inferno do trabalho, herdeiro da antiga
escravidão. É o que temos nos 45 dísticos de “Pandemonium”40, que vale citar por
completo. O texto principia com a estranha visão de um perfil fantasmagórico que
passa “noite e dia”:

39 Idem, “Condenação fatal” in: Últimos sonetos, op. cit., p. 549.


40 Idem, “Pandemonium” in: Faróis, op. cit., p. 434-7.
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PANDEMONIUM
(A Maurício Jubim)
Em fundo de tristeza e de agonia
O teu perfil passa-me noite e dia.

Aflito, aflito, amargamente aflito,


Num gesto estranho que parece um grito.

E ondula e ondula e palpitando vaga,


Como profunda, como velha chaga.

E paira sobre ergástulos e abismos


Que abrem as bocas cheias de exorcismos.

Com os olhos vesgos, a flutuar d’esguelha,


Segue-te atrás uma visão vermelha.

Uma visão gerada do teu sangue


Quando no Horror te debateste exangue.

Uma visão que é tua sombra pura


rodando na mais trágica tortura.

A sombra dos supremos sofrimentos


Que te abalaram como negros ventos.

Como será revelado mais adiante, trata-se do perfil de alguém próximo ao poeta,
D. Carolina, uma ex-escrava alforriada. A figura vermelho-infernal, nascida do
próprio sangue dessa mãe, como resultante do grande Horror do cativeiro, passa
então a persegui-la como uma verdadeira associação pandemoníaca:

E a sombra as tuas voltas acompanha


Sangrenta, horrível, assombrosa, estranha.

E o teu perfil no vácuo perpassando


Vê rubros caracteres flamejando.

Vê rubros caracteres singulares


De todos os festins de Baltazares.

Por toda a parte escrito em fogo eterno:


Inferno! Inferno! Inferno! Inferno! Inferno!

E os emissários espectrais das mortes


Abrindo as grandes asas flamifortes...

E o teu perfil oscila, treme, ondula,


Pelos abismos eternais circula...

Circula e vai gemendo e vai gemendo


E suspirando outro suspiro horrendo.
[-] www.sinaldemenos.org Ano 9, n°12, vol. 2, 2018 218

E a sombra rubra que te vai seguindo


Também parece ir soluçando e rindo.

Ir soluçando, de um soluço cavo


Que dos venenos traz o torvo travo.

Ir soluçando e rindo entre vorazes


Satanismos diabólicos, mordazes.

Nesse momento de confusão, o eu-lírico já não sabe distinguir se esta cena é


realidade ou sonho, presente ou passado, imanência ou transcendência da vida:

E eu já nem sei se é realidade ou sonho


Do teu perfil o divagar medonho.

Não sei se é sonho ou realidade todo


Esse acordar de chamas e de lodo.

Tal é a poeira extrema confundida


Da morte a raios de ouro de outra Vida.

Tais são as convulsões do último arranco


Presas a um sonho celestial e branco.

Tais são os vagos círculos inquietos


Dos teus giros de lágrimas secretos.

Em dísticos verdadeiramente emocionantes, reconhece então a mãe por meio dos


círculos rotineiros do trabalho extenuante, da boca amordaçada, de um olhar
amargurado:

Mas, de repente, eis que te reconheço,


Sinto da tua vida o amargo preço.

Eis que te reconheço escravizada,


Divina Mãe, na Dor acorrentada.

Que reconheço a tua boca presa


Pela mordaça de uma sede acesa.

Presa, fechada pela atroz mordaça


Dos fundos desesperos da Desgraça.

Eis que lembro os teus olhos visionários


Cheios do fel de bárbaros Calvários.

A mãe parece abrir as asas para ganhar outro mundo de Luz, de modo utópico e
ambíguo, imanente-transcendente:
[-] www.sinaldemenos.org Ano 9, n°12, vol. 2, 2018 219

E o teu perfil asas abrir parece


Para outra Luz onde ninguém padece...

Com doçuras feéricas e meigas


De Satãs juvenis, ao luar, nas veigas.

E o teu perfil forma um saudoso vulto


Como de Santa sem altar, sem culto.

Forma um vulto saudoso e peregrino


De força que voltou ao seu destino.

Força que retorna à vida, sem prestação de culto, num mundo humano, ainda
assim ambíguo, aéreo e impalpável:

De ser humano que sofrendo tanto


Purificou-se nos Azuis do Encanto.

Subiu, subiu e mergulhou sozinho,


Desamparado, no letal caminho.

Que lá chegou transfigurado e aéreo,


Com os aromas das flores do Mistério.

Que lá chegou e as mortas portas mudas


Fez abalar de imprecações agudas...

E vai e vai o teu perfil ansioso,


De ondulações fantásticas, brumoso.

E vai perdido e vai perdido, errante,


Trêmulo, triste, vaporoso, ondeante.

Vai suspirando, num suspiro vivo


Que palpita nas sombras incisivo...

Nenhum “anjo” ou “luz divina” a guia para o céu burguês, e este seu suspiro é
sinal de respiração ofegante, sinal da perseguição e do trauma inolvidável por que
passou – e que faz lembrar uma verdadeira condição social:

Um suspiro profundo, tão profundo


Que arrasta em si toda a paixão do mundo.

Suspiro de martírio, de ansiedade,


De alívio, de mistério, de saudade.

Suspiro imenso, aterrador e que erra


Por tudo e tudo eternamente aterra...
[-] www.sinaldemenos.org Ano 9, n°12, vol. 2, 2018 220

O Terror é ainda atual, e forma agora um conjunto de espíritos errantes de


“condenados corações revoltos”:

O pandemonium de suspiros soltos


Dos condenados corações revoltos.

Suspiro dos suspiros ansiados


Que rasgam peitos de dilacerados.

E o poema conclui negativamente, com a não-transcendência dessa alma morta,


quando ela passa a divagar às margens de um “rio morto”, numa funesta sugestão
dos rios do inferno:

E mudo e pasmo e compungido e absorto,


Vendo o teu lento e doloroso giro,

Fico a cismar qual é o rio morto


Onde vai divagar esse suspiro.

A revelação do fundo tenebroso do escravismo e a destruição do consolo


metafísico fazem de “Pandemonium” um dos melhores poemas de Cruz e Sousa.

Num outro poema póstumo - “Marche aux flambeaux”41 –, peça longa e


intensamente trabalhada, Cruz e Sousa ataca a questão de classe jogando luz no
andar superior, ocupado pelos vencedores. Esta sociedade pandemoníaca de ex-
torturadores e sádicos gozadores de corpos escravos é jogada à contraluz
revelando-se alegoricamente como uma associação criminosa de “panteras”,
“chacais” e todo um zoológico em marcha, com simples tochas em punho. A parte
I do poema coloca o existente sob a potente luz do Sol.

Rompe na aurora o sol que a terra esbofeteia


Com látegos de chama, iriando o pó e a areia,
(...)

Na parte II, a razão cientificista é desvelada em seus efeitos deletérios e


obscurantistas –

Filósofos titãs, filósofos insanos


Que destes turbilhões, que destes oceanos
De lutas e paixões, de sonho e pensamentos
Espalhastes no mundo aos clamorosos ventos

41 Idem, “Marche aux flambeaux” in: Dispersas, Obra completa, vol. 1- Poesia, op. cit.,
297-302.
[-] www.sinaldemenos.org Ano 9, n°12, vol. 2, 2018 221

A Ciência fatal, talvez como um veneno, (...)

Vós que sois no Saber os monges da existência (...)


Não sabeis, entretanto, apóstolos sombrios,
Como à luz da Ciência os homens estão frios,
Como tudo ficou num doloroso caos
E os seres que eram bons, rudes, egoístas, maus.

Em vão! em vão! em vão! os vossos largos crânios


Lutaram pelo Bem dos Bens contemporâneos!
(...)
Por isso vão passar perante a turbamulta
Como abrupta avalanche, enorme catapulta,
Numa marche aux flambeaux, os famulentos vícios
Que cavaram no globo horrendos precipícios,
Os vícios imortais, que infestam tribos, greis,
Povos e gerações, seitas, templos e reis
E que são como a lava obscura da cratera
Que subterraneamente em tudo se invetera.

Na parte III do poema, a classe dominante aparece então reduzida a


animais enfileirados nesta estranha marcha. O poema torna-se francamente
bizarro:

Lobos, tigres, chacais, camelos, elefantes,


Hipopótamos, ursos e rinocerontes,
Leopardos e leões, panteras acirrantes,
Hienas do furor, membrudos mastodontes,
Tredas feras do mal, soturnos dromedários,
Serpentes colossais que rastejais na treva,
Monstros, monstros cruéis, medonhos, sanguinários,
(...)
Gafentos histriões, ridículos da moda,
Que fingis entender Berlim, Londres, Paris,
Mas nos altos salões, por entre a fina roda,
Meteis sordidamente o dedo no nariz;
Brasonados truões, inúteis como eunuco,
Que as pompas ostentais de aurífero nababo
Mas apenas valeis como um limão sem suco,
Tendes rabo no corpo e dentro d’alma rabo;
Nobres de papelão, milionários vândalos
De ventre confortado e rosto rubicundo,
Que no torvo cancã, no cancã dos escândalos
Sois o horrendo espantalho, a ignomínia do mundo;
Ó deuses do milhão, ó deuses da barriga,
Que sentindo a aguilhada intensa da luxúria
Buscais a mais em flor e linda rapariga
Para então vos fartar na luxuriante fúria;
Gamenhos de toilette e convicções de lama
Onde tudo afinal se atola e se chafurda,
Que do clube e do esporte sintetizais a faina
Mas tendes para o Bem a fibra sempre surda;
Palhaços, clowns senis, hediondos borrachos
[-] www.sinaldemenos.org Ano 9, n°12, vol. 2, 2018 222

Que aos trambolhões urrais afora no universo,


Desdenhando de tudo e até rindo dos fachos,
Do clarão do saber em toda a parte imerso;
(...)
Os vícios, as paixões, os crimes, ódios e erros,
Na marcha, de roldão, caminham fraternais
Com bandidos, vilões, burgueses rombos, perros
E focas e mastins, macacos e chacais.
Aos sobressaltos vão como visões, fantasmas
Bichos de toda a casta, anões de chapéu alto,
Deixando em convulsão todas as almas pasmas
E o globo num tremendo e fundo sobressalto.
E nas praças, ao sol, confundem-se os bramidos,
Os uivos com a expressão humana misturados,
Através do sussurro e bruscos alaridos
Das chacotas bestiais, dos risos trovejados.

Mas a marcha segue sob a luz de “um dia secular, um dia de legenda”:

E segue e segue e segue, afora, légua a légua


Essa marche aux flambeaux, ciclópica, estupenda
Caminha atravessando um longo sol sem trégua,
Um dia secular, um dia de legenda;
Caminha atravessando um sol de foco aberto,
Por um dia fatal, interminável, mudo,
O dia do remorso, aterrador, incerto
Que em todo o coração crava um punhal agudo.
Mas eu quero assim mesmo, eu quero-vos assim,
Em marcha tropical, à crua e ardente luz
Que vos seja uma febre indômita, sem fim,
Um cautério de fogo a vos queimar o pus
Venéreo da Moral, carbonizando-o até
Para que nunca mais se sinta dele a origem
Nem volte, como sempre, então, a ser o que é,
Deixando-vos no mundo inteiramente virgem;

Eu quero-vos assim, de fachos apagados,


Apagados, ao alto, os joviais flambeaux,
Que os tereis de acender nos campos ignorados
Que de sóis de Vingança a Eternidade arou.
E depois de vagar às sátiras de todos,
Na evidência da luz, numa perpétua aurora;
De caminhar ao sol, por tremedais, por lodos,
No tédio do sarcasmo, o tédio que a devora,
Essa Marcha afinal penetrará aos urros,
Titânica, sinistra e bêbada, irrisória,
Num caos de pontapés, coices, vaias e murros,
Na eterna bacanal ridícula da História.

Deixemos a conclusão a cargo de Ivone Daré Rabello:

“O poeta-deus encena na lírica a língua irada do sujeito histórico. Sem


travas, anuncia o dia em que o desfile de horrores terá fim para entrar na
matéria do nada. Advirá a ruína dos tempos, sem eternidade. A violência
[-] www.sinaldemenos.org Ano 9, n°12, vol. 2, 2018 223

da alegoria escatológica projeta para céus e terra a compreensão das


forças históricas que ali se absolutizam como universais. Na invectiva e no
jorro, o poeta-deus enuncia sua vingança contra os donos do mundo,
mesmo sabendo que o discurso não é a história e que essa história é nada.

A poética que aqui se mostra com a fúria possível apenas aos exaltados e
aos excluídos, é a outra face da poesia do sublime e do horror sublime.

Contra os demônios – nomeados com toda a clareza no poema que ficou


tanto tempo escondido – Cruz e Sousa teve de aprender a construir sua
obra que, figurando o indizível, urdia na forma os símbolos de sua leitura
do mundo. No inefável e no infando, na chave lírica da grande poesia, sua
obra revela o que, naquele Brasil de final de século se queria à força
esconder.”42

Misticismo espiritualista? Decadentismo? Fuga nefelibata? Formalismo


esteticista? Jogando à contraluz os resultados práticos do iluminismo nos
trópicos, o poeta negro sempre localizou a mistificação e a barbárie no
formalismo dessas feras burguesas que se tinham como verdadeiros cidadãos,
civilizados e esclarecidos.

(São Paulo, verão de 2017/2018)

42RABELLO, Um canto à margem, op. cit., “Tentativa de Conclusão: O mundo dos


chacais”.
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Ce cauchemar qui n'en finit pas.


Comment le néoliberalisme défait la démocratie

Resenha comentada do novo livro de

Christian Laval e Pierre Dardot1

Frederico Lyra de Carvalho2

“O pesadelo que não acaba. Como o neoliberalismo desfaz a democracia”


é o quinto livro3 da parceria entre o filósofo Pierre Dardot e o sociólogo Christian
Laval. Porém, mesmo podendo considerá-lo como um livro na linha dos
anteriores, desta vez, ao invés de um “livro teórico”, os autores nos apresentam
um “livro de intervenção” com o sabor da urgência do tempo presente. Neste livro
eles discutem as faces que o neoliberalismo toma e o por quê de ele ter, após ter
sido dado como morto, se fortalecido e saído mais radical após a crise de 2008.
Além disso, abordam os problemas da esquerda e algumas saídas para ela.
Mesmo que pareça às vezes moralizante e concentrado na análise da crise
europeia, o livro oferece pistas e ideias para entender o que acontece na América
Latina, particularmente no Brasil.

Os autores iniciam o livro observando que é com “uma aceleração da saída


da democracia que estamos lidando4”. Esta saída se apresenta sob forma de dois

1 Dardot, Pierre; Laval, Christian. Ce cauchemar qui n'en finit pas. Comment le
néoliberalisme défait la démocratie. Paris: La Découverte, 2016.
2 Doutorando em Filosofia da Arte em Lille. Agradeço à revisão de texto feita por Patrícia
Ferreira Lemos.
3 Os anteriores são: Sauver Marx? (Empire, multitude, travail immatériel) (com El
Mouhoub Mouhoud), La Découverte, 2007; La nouvelle raison du monde. (Essai sur la
société néoliberale), La Découverte, 2009, (com uma versão em português publicada
em 2016 pela editora Boitempo); Marx, prénom Karl, Gallimard, 2012 e Commun.
(Essai sur la révolution au XXI siècle), La Découverte, 2014.
4 Dardot, Pierre; Laval, Christian, Ce cauchemar qui n'en finit pas, op. cit., p. 7.
[-] www.sinaldemenos.org Ano 9, n°12, vol. 2, 2018 225

aspectos complementares: o econômico e o securitário5, isto é, políticas que


articulam estreitamente o Estado (e seu governo) e as oligarquias. Na sequência
os autores observam que há uma sutil, porém concreta, diferença entre o que
autores como Montesquieu e Rousseau ressaltavam da segurança que o Estado
deve oferecer ao aparelho securitário no qual este se transformou. Se o primeiro
se identifica à liberdade política (não sendo porém uma liberdade), o segundo
implica apenas regulamento do Estado. Não por acaso, no neoliberalismo temos
o triunfo desta outra forma política. Neoliberalismo este que os autores não
entendem apenas como um modelo econômico, mas como uma racionalidade6
capaz de acomodar as mais diversas ideologias – da laicidade francesa ao
islamismo do ISIS, passando pelos pentecostais brasileiros – pois, ao mesmo
tempo que promove novas “guerras identitárias”, possibilita a ascensão de novos
nacionalismos. Este sistema também padroniza os lugares e bens de consumo.
Esta racionalidade tem como mote a disciplina e insegurança da população, além
da fragmentação e mesmo desativação da democracia. Que tudo funcione
“perfeitamente” como uma empresa “sob os princípios da concorrência e da
performance7” é a meta desta racionalidade.

Porém, o principal motivo para a existência deste livro é o que se passou


após a crise de 2008, numa tentativa de responder à questão de como foi possível
o neoliberalismo não só sobreviver, mas se tornar mais forte após essa crise. O
sinal mais flagrante, para os autores, é o fechamento do sistema, em que mesmo
políticas socialdemocratas parecem não ser mais possíveis, ou pior, são
intoleráveis e onde a alternância entre partidos de esquerda e direita, no mundo
todo, não faz mais praticamente nenhuma diferença. Desta forma, se este não é o
“sistema do partido único, é certamente aquele da razão política única8”. Na
sequência, os autores observam que esta situação abre a portas para uma
catástrofe política que pode tomar uma forma neofascista, tamanho o
descompasso e ressentimento entre as camadas de baixo e as oligarquias. A crise
se tornou meio de governo e é dela que o neoliberalismo se alimenta e se torna

5 É interessante a observação do pioneirismo da França, país natal dos autores, em tal


aspecto do neoliberalismo com a implementação da lei de Segurança e Liberdade
colocada em vigor em 1981 e elaborada por Alain Peyrefitte.
6 Ver: La nouvelle raison du monde. (Essai sur la société néoliberale), op. cit.
7 Dardot, Pierre; Laval, Christian, Ce cauchemar qui n'en finit pas, op. cit., p. 11.
8 Idem, p. 12.
[-] www.sinaldemenos.org Ano 9, n°12, vol. 2, 2018 226

mais forte. Frente a tal situação Laval e Dardot criticam as velhas fórmulas das
esquerdas para a análise desta nova razão sistêmica ao mesmo tempo em que
enxergam nas práticas o que eles chamam de “comum”9.

Os autores fazem questão de lembrar que, ao contrário do que tem se


propagado como lugar comum, a saber, que a democracia seria a “gestão
pacificada dos conflitos pelo consenso10”, esta seria na realidade “o poder
conquistado por uma parte da cidade (republica) em uma guerra contra o
inimigo oligarco11”. Tendo Aristóteles como suporte teórico, eles descrevem a
democracia como sendo o regime em que a massa de pobres (e não uma maioria
ou totalidade dos cidadão) exerceria o poder e ela está em direta oposição ao
sistema oligárquico, onde o poder é detido por uma minoria de ricos. A
democracia seria então o governo dos pobres para os pobres. O neoliberalismo,
por outro lado, é um modo de governo de uma elite, oligárquica, e,
consequentemente, voltado para os ricos.

“A crise alimenta a crise em uma espiral sem fim12”. Desta forma o sistema
se alimenta dessa crise que abrange todas da dimensões da realidade, não apenas
o econômico. Não podemos reduzir o sistema nem à ideologia, nem à econômica,
“é a realidade social, ela mesma que se tornou neoliberal13”. O que antes era uma
“sociedade do risco”, passa a ser “sociedade disciplinada pelo risco14”. Os autores
vão mais além, afirmando que, em última análise, o sistema se autoboicota, pois
o agravamento das desigualdades, aumento da precariedade e acumulação
improdutiva seriam exatamente os obstáculos que bloqueariam qualquer
possibilidade de novo crescimento e absorção do desemprego. Lemas repetidos
quase que como uma oração em um país como a França, onde a repetição
desenfreada dos motes “moins de chômage et plus de croissance 15” por todos os
atores políticos e econômicos parecem ser um sinal de duas profecias impossíveis
de se realizar, um anúncio do fim dos tempos. Em tal sistema, qualquer obstáculo

9 Desenvolvido no livro anterior da dupla: Commun, op. cit.


10 Dardot, Pierre; Laval, Christian, Ce cauchemar qui n'en finit pas, op. cit., p. 22.
11 Idem, Ibid.
12 Ibidem, p. 29.
13 Ibidem, p. 40.
14 Ibidem, p. 38.
15 “Menos desemprego e mais crescimento”.
[-] www.sinaldemenos.org Ano 9, n°12, vol. 2, 2018 227

se apresenta como uma oportunidade e, sob o discurso de que seria um suicídio


para o emprego e o crescimento, quaisquer medidas são tomadas.

Partindo da França (mas poderia ser o Brasil...), Laval e Dardot falam de


uma “coalizão de grupos diferentes” no seio do neoliberalismo. São grupos que
reúnem uma oligarquia antes dispersa que reforça o sistema. Uma nova
aristocracia que reúne: políticos, grupos sociais (como pesquisadores e
economistas), potências econômicas (banqueiros, empresários) e meio
midiáticos. Não são, como outros pregam, atores anônimos ligados no piloto
automático dos computadores conectados em rede. Atores que “não são todos
políticos stricto sensu, mas [que] exercem todos uma função política sem a qual
não poderíamos nos dar conta da atual radicalização neoliberal16”. Eles
possuiriam três características gerais: autoprodução, corrupção sistêmica e
inscrição simultânea nacional e internacional. Além de três elementos funcionais
gerais: coerência das políticas neoliberais, profissionalização da política e
maquiagem da realidade. A profissionalização da política, por exemplo, coloca em
cheque a democracia representativa, facilitando a corrupção e, em última
instância, desmoralizando a política enquanto tal, fechando as portas da
população para outras saídas. Os autores alertam que a França é um país muito
mais integrado e diretamente controlado pelas empresas e setores privados do
que imaginamos no Brasil. Grosso modo, são as mesmas pessoas que estão
envolvidas na esfera das finanças públicas e na das finanças privadas, ao ponto
da quase naturalização desta relação.

O sistema de baseia na supremacia das leis privadas em detrimento do


direito público e, paradoxalmente, é o Estado, teoricamente o guardião do que é
público, que assegura esta supremacia do privado sobre o público. Assim sendo,
ao Estado também passa a valer este mesmo direito privado, como se ele, por sua
vez, fosse uma entidade privada. E como o nosso dia a dia comprova, o que antes
era público, há um bom tempo é privado. Esta forma de direito privado, não
prevista na separação dos poderes constitucional de alguém como Montesquieu,
não deve ser confundida com o direito liberal da propriedade ou como direito
fundamental. Aqui as leis deixam de ser meios de governo e passam a ser limites,
além de significar “a limitação da vontade do povo pelas regras do direito

16 Ibidem, p. 181.
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privado17”. Os autores observam que mesmo alguém como Jacques Rancière, em


O Ódio à Democracia, não percebe este deslocamento do direito público para a
prevalência única do direito privado. Nesta nova forma, na aparência de um
governo em que as leis governam sozinhas, vai estar disfarçada o corpo de juízes
e experts com a missão de gerir este direito privado para a minoria oligárquica.
Por mais paradoxal que possa parecer, tal ordem exige um Estado forte, capaz de
proteger, a todo custo, a “livre concorrência”, “liberdade de contratos” e
“propriedade privada”, fundamentos desta economia de mercado. A separação
dos poderes ganha um equivalente econômico na figura do banco central
independente, medida que garante ao sistema a não concentração de poderes no
Estado na gestão das finanças públicas. Os direitos do capital se sobrepõem aos
da população, retirando destas quaisquer garantias e serviços públicos básicos.
Uma chantagem é introduzida na forma de “a bolsa ou a vida”, obtendo, em
última análise, um poder sobre toda uma população: “a dívida é uma arma de
guerra política das mais eficazes18”. Aqui os autores lançam uma pergunta: “Por
que instaurar uma ditadura militar se podemos obter a mesma coisa através dos
mercados?19”

O Neoliberalismo é uma lógica disciplinar e de governabilidade onde todos


entram em concorrência com todos – inclusive em esferas onde não haveria
concorrência a priori. Ele não é apenas uma outra lógica de acumulação, mas
uma forma social, assim “devemos falar de uma sociedade neoliberal, e não penas
uma política neoliberal ou de uma economia neoliberal20”. Todo indivíduo se
torna um capital humano, aqui há uma inversão, pois no lugar em que antes era
mercadoria (trabalho) passa a haver o próprio sujeito. “O trabalhador é assim ele
mesmo o seu próprio capital pois ele mesmo é a fonte da sua renda21”. Nesta lógica
do manager empresarial, um atleta e um banqueiro estão mais próximos que
aparentam. Além disso, na transposição contínua dos anteriores limites do
capital, os autores observam que a biosfera está passando do estado de
mercadoria para o de ativo financeiro. Segundo os autores, essa sociedade tem
como ponto chave um imaginário: o imaginário empresarial. Hoje em dia “a

17 Ibidem, p. 57.
18 Ibidem, p. 170.
19 Ibidem, p. 174.
20 Ibidem, p. 83.
21 Ibidem, p. 101.
[-] www.sinaldemenos.org Ano 9, n°12, vol. 2, 2018 229

relação de cada cidadão com sua própria vida é análogo à relação de cada
empresário com sua empresa22”. Face a esse imaginário a tarefa das esquerdas é
a de criar um outro imaginário alternativo.

Dardot e Laval clamam que devemos deixar de pensar o neoliberalismo


exclusivamente de maneira negativa e passar a analisá-lo como um “modo de
poder positivo e original23”. Aqui o intervencionismo do governo toma uma nova
face. Este sistema é inseparável da mundialização, esta, por sua vez, conduzida
sobretudo pelas multinacionais, vanguarda da fragmentação da produção. Este
“sistema disciplinar da concorrência24” toma uma nova forma no mercado, pois
deslocando a concorrência para uma escala mundial, as possibilidades de escolha
do consumidor são restringidas. Com o deslocamento da concorrência à escala
global não é mais o consumidor, como no liberalismo clássico, que detêm a última
palavra. Todavia, seria “ótimo” se essa concorrência ficasse restrita a esta esfera,
mas ela agora se estende a todas as esferas da sociedade, dos assalariados às
instituições políticas; ou seja: toda a sociedade, instituições e indivíduos passam
a estar em concorrência com elas mesmas e em escala internacional. Não por
acaso, as regras da concorrência foram criadas pelos próprios atores dos
processos que, na sua aplicação cotidiana, contribuem para reforçá-las, sendo
subjetivados por elas.

Os credores privados detêm o controle do financiamento dos Estados e a


gerem de acordo com seu “humor”, sendo que qualquer risco tomado, em
contrapartida, vai ser absorvido pelos Estados, que por outro lado têm medo
destes mesmos especuladores, que estes “percam a confiança necessária” para o
investimento que os primeiros precisam. Há uma corrupção sistêmica sob as asas
dos Estados. Uma proteção aos fraudulentos, com vias abertas para os cada vez
mais importantes paraísos fiscais. Concentram as análises no sistema financeiro,
nas bolhas que este produz e na fuga para os paraísos fiscais que nunca foram tão
fortes. Temos um desmantelamento progressivo do imposto, que termina por
proporcionar um lucro duplo aos detentores do capital: primeiramente não
pagando e, em seguida, emprestando ao Estado o mesmo dinheiro que não foi

22 Ibidem, p. 96-97.
23 Ibidem, p. 71.
24 Ibidem, p. 72.
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pago sob a forma de imposto. As grandes empresas são atores políticos por
inteiro. Desta forma, o neoliberalismo pode ser entendido como uma economia
política a serviço da dominação da sociedade e da economia pelas grandes
empresas, com destaque para os megabancos. Recentemente, como lembrado
pelos autores, Manuel Valls, primeiro ministro francês, pregou o “amor pelas
empresas”. Temos então uma nova figura subjetiva que passou do amor ao Rei ou
a Deus na Idade Média, para o amor pela Pátria, e agora ao amor pelas Empresas.
Não por acaso a competitividade empresarial é mote para todas as esferas da vida
social.

Os autores alertam que não podemos menosprezar o quão esse modelo


deve à modelização e matematização da economia estudada nas universidades.
Estes se ampararam nos meios de comunicação e difusão, segundo Laval e
Dardot, por uma razão simples e banal: eles “dizem o que os seus comandatários
dos meios de serviços desejam ler e entender25”. Eles modelam a realidade de
forma midiática. Estes últimos, para fechar o ciclo, são geralmente dominados
por banqueiros ou grande empresários. Porém, os autores chamam a atenção
para a estrutura e o meio social que estes economistas, políticos e jornalistas
formam, levando a sustentação do sistema para dimensões que vão além das
financeiras.

Economistas e jornalistas, sobretudo, conseguiram colocar a culpa da crise


no Estado. Os governos são disciplinados pelo mercado e qualquer tentativa de
tomar uma “má decisão” é seguida de ameaças dos “mercados”. Por outro lado,
na análise de Laval e Dordot, o poder das agências de regulação seria uma
concessão dos estados para poder demonstrar a sua impotência frente ao sistema.
Como lembrado pelos autores, Rawi Abdelal observou que agora é o capital, e não
as populações, que deve ser protegido pelo Estado. Segundo os autores, o que se
passou em 2015 na Grécia seria um dos melhores exemplos de tais ações. Os
autores, sobretudo, observam que o caso grego não pode ser isolado da crise
europeia, nem tampouco da mundial.

O exemplo grego com a rendição do Syriza em julho 2015 seria o principal


exemplo do que os autores chamam de governo através da dívida, na qual esta,

25 Ibidem, p. 207.
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muito mais que uma questão puramente econômica, passa a ser um modo de
impor do exterior as formas com que governos vão atuar. Travestido de lição de
moral (com acusações escabrosas ao povo grego), a realidade é que a “nova
governança europeia” introduziu um modelo inédito de “soberania” sob
vigilância permanente. Trata-se de punir e disciplinar aqueles que ousarem
imaginar algo fora – evidentemente com ajuda das oligarquias locais. As medidas
tomadas contra a Grécia foram sobretudo políticas. Às autoridades nacionais
restou colocar em marcha as decisões vindas da famosa “Troika”, não estando
descartado o governo direto do país por esta última. Em se tratando de garantir
as “boas direções” a serem tomadas, “todos os meios são bons”, mesmo a parca
democracia liberal deve ser esvaziada no mundo da economia. Por outro lado,
após enumerar as dezenas de iniciativas populares já existentes na Grécia e que o
Syriza poderia ter organizado, eles concluem “que um governo verdadeiramente
comprometido com a soberania popular deveria ousar governar contra o Estado
existente, e mais precisamente contra tudo no qual o Estado participa da
dominação oligárquica26”. Frente aos limites apresentados pelo Syriza (e também
o Podemos espanhol), os autores não hesitam em afirmar que é a forma partido
ela mesmo que está em xeque, pois “esta forma define uma instituição específica
que engaja uma certa ideia de atividade política27”. Forma cujo conteúdo está
estreitamente ligado ao Estado-nação surgido no século XIX. Além disso, por
estar vinculado às eleições, facilita a profissionalização da política e, pela
necessidade da representatividade, cria uma oligarquia partidária.

Há uma guerra contínua contra todos os inimigos do capital, e este desfaz


a democracia destituindo toda a sua substância e tornando-a mera formalidade
normativa, esvaziando qualquer, mesmo que apenas simbólica, soberania
popular. O exercício do poder se torna abertamente uma guerra de classes, que
por sua vez tem como objetivo imediato o de desarticular as capacidades coletivas
das populações. Se mesmo a democracia representativa passa a ser vista como
uma excentricidade, que dirá a democracia direta. Além disto, os autores chamam
a atenção para o caráter neofascista e identitário que este mundo tem tomado,

A mundialização neoliberal, longe de parir um mundo pacificado pelo


comércio, como queria o evangelho pacificado dos seus pregadores, é o

26 Ibidem, p. 238.
27 Ibidem, p. 232-233.
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terreno de uma sangrenta confrontação de identidades que faz parecer os


“fundamentalismos” religioso e mercantil como duas versões
complementares da reação pós-moderna28.

Eles anteveem a possibilidade de novos desastres, mas alertam para o risco da


fascinação pelo pior.

Uma observação importante é o papel, sobretudo na França, das


“esquerdas” na implementação de tal racionalidade neoliberal. Aí, segundo os
autores, estaria a explicação de sua derrocada em todo o mundo. Parte da
responsabilidade é desta “esquerda governamental”, ela não pode posar de vítima
da situação atual. E eles vão ainda mais longe, afirmando que “se as políticas de
austeridade puderam facilmente se impor na Europa a 'socialdemocracia'
europeia é a primeira responsável29”. De uma certa forma, esta última zela tanto
pelas premissas neoliberais quanto as direitas. O que resta é uma mera
alternância nominal entre esquerda e direita. E, queiram ou não, os efeitos disto
recaem sobre todas as esquerdas, e isto causa a desmobilização das forças
anteriormente articuladas. O que há é uma “completa pane de imaginário 30” que
coloca em risco a existência mesmo das esquerdas. Os atores enfatizam mais de
uma vez o caráter coletivo da imaginação. Sem este elemento não haverá futuro
para esquerda. Pois, a mera reação ao existente, forma política na qual estaria
restrita a esquerda atual, termina por alimentar o neoliberalismo. Em última
análise, ele até mesmo celebra tais reações, que demonstram, no contrapé das
intenções originais, uma capacidade de adaptação à concorrência. A reação está
prevista no sistema neoliberal, não importa de onde ela venha, mesmo que da
esquerda. Este limite reativo teria sido uma das causas da paralisia das esquerdas
e sua incapacidade de propor algo concreto após a crise de 2008.

Além disso, eles alertam também que as esquerdas devem perceber que a
situação atual não é a do fim do Estado, mas de um reordenamento deste, de um
esvaziamento democrático. Todos os princípios estão sendo contrabalançados
para a competitividade e a segurança. Faz-se necessário a compreensão do papel

28 Ibidem, p. 215-216.
29 Ibidem, p. 217.
30 Ibidem, p. 219.
[-] www.sinaldemenos.org Ano 9, n°12, vol. 2, 2018 233

ativo do Estado “que se tornou um ator neoliberal por completo31”. Desta forma,
os autores descartam qualquer possibilidade de volta a um velho Estado de bem-
estar restaurado.

Os autores propõem uma invenção e experimentação de novas formas de


vida opostas à neoliberal. Não haveria mais nada a esperar de partidos e
aparelhos interessados no reconhecimento do Estado. Tais ações inventivas,
porém, devem vir de baixo. Não se pode dissociar a forma do conteúdo, o que
coloca automaticamente em xeque a representação política. Tudo isso deve ser
experimentado, não há experts em novas formas de vida – o que reenviaria
automaticamente à lógica neoliberal das expertises. Por outro lado, “o que
importa é menos reabilitar a experiência comum que dar todo o lugar à
experiência do comum32”. Eles enfatizam que o engajamento nesta luta visa à
retomada da iniciativa na guerra de classes. A única vantagem atual estaria na
distância do mundo real que o bloco oligárquico mantém, pois há uma distância
muito grande entre eles e o restante da sociedade. Gerindo a totalidade do mundo
de uma forma circular e com um certo automatismo, além de um completo
desconhecimento e desprezo pelo que se passa nas outras esferas sociais, eles não
conseguiram perceber as movimentações coléricas do que estão em baixo e a sua
falta de legitimidade na pretensa direção da sociedade.

Por fim, para Laval e Dardot, o problema da esquerda se apresenta de duas


formas: primeiramente como unificar pautas dispersas e em seguida como
articular as lutas em escala internacional – escala na qual as oligarquias estão
organizadas. Por fim, há uma surpreendente lembrança de que podemos e ainda
temos muito a aprender com a Internacional de 1864. Os autores propõem quase
que uma recriação desta. Urge a criação de um bloco democrático internacional
articulado, com pesos iguais, nos níveis locais, nacionais e internacionais. Bloco
com uma única regra mínima: uma rotatividade dos cargos, que permitiria que
cada cidadão seja, ao mesmo tempo, governante e governado. Talvez seja pouco,
mas ao mesmo tempo, seria um recomeço.

31 Ibidem, p. 223.
32 Ibidem, p. 226.
[-] www.sinaldemenos.org Ano 9, n°12, vol. 2, 2018 234

SINAL de MENOS

ISSN 1984-8730

Contribuições:
Edição:

Cláudio R. Duarte (São Paulo) A revista aceita contribuições e


comentários críticos, que serão
Daniel Cunha (Binghamton) avaliados quanto ao conteúdo, o
estilo e a adequação à linha
Felipe Drago (Porto Alegre) editorial. Os artigos devem ser
enviados para
Joelton Nascimento (Cuiabá) dcunha77@outlook.com.

Raphael F. Alvarenga (Leuven)

Rodrigo C. Castro (São Paulo)

Capa desta edição: Felipe Drago,


inspirada em desenho do “Proyecto
Cabra”:
https://www.youtube.com/watch?v=pHAD
ZkWzsGQ.

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