.~. " .
66 POR QUE BILLINGTQN SOJ)l\lNIVEU
volta quando'J;ubitamente TIsquantum caiu d';cnte. Ele morreu cm poucos
dias, as suas esperanças cm ruínas. Na década seguinte, d"'''l1as de milhares
de europeus ,viriam para Massachusetts. Massasoit guiou o seu povo sob as J'
ondas de assentamentos, e o pacto que assinara com Plymo\itb durou mais de
cinqüenta anos. Foi somcl1te em 1675 que um de seus filhos, irritado por ser .
empurrado de um lado para outro pelas leis coloniais, lançou o que talvez te­
nha sido um ataque inevitável. Agruparam-se índios de 12 nações. O conflito, .
brutal e melancólico, dilacerou a Nova Inglaterra.
Os europeus venceram. Os historiadores atribuem parte da vitória à re­
cusa dos índios de igualarem a tática européia de massact'd.t povoados inteiros.
Outra razão para o triunfu dos recém-chegados foi que, naquela altura dos
acontecimentos, eles já estavam em maior número do que os nativos. Grupos
como os narrAgatlsett, que foram poupados da epidemia em 1616, foram es­
magados por uma epidemia de varíola cm 1633. De um terço à metade dos ÍI1­
dios remanescentes na Nova Inglaterra morl'l'u. O Povo da Primeira Luz podia
evitar ou adotar a tecnologia européia, mas não tinha escolha quando se tratava
de doenças européias. & suas sociedades foram destruídas por armas que seus
oponentes não podiam controlar, e que sequer sabiam que possuíam.
1'i '"
~
'* 3. ~
Na Terra dos Qyatro Qyadrantes
"COMO UMA PORRETADA BEM
NO MEIO DOS OLHOS"
No começo dos anos 1960, Henry F. Dobyns, um jovem antropólogo que
trabalhava num projeto de apoio rural no Peru, .enviou assistentes a depósitos
de registros antigos em todo o país. O próprio Dobyns viajou para a catedral
central em Lima. Ao entrar na nave, os visitantes passavam por uma capela na
ala direita que continha o corpo mumincado de Francisco Pi7.arro, o romântico
sanguinário que conquistou o Peru no século XVI. Ou melhor, eles passavam
por uma capela onde acreditava-se estar o corpo mumilicado do conquistador;
os restos verdadeiros apareceram anos depois, escondidos em duas caixas de
metal sob o altar principal. Dobyns não estava visitando a catedral como turis­
ta; ele desceu às fundações da estrutura - frias, tímidas, mal iluminadas - para
examinar registros de nascimento e óbito que ali eram mantidos.
Dobyns fàzia parte de urna equipe de pesquisa dirigida por seu orientador
no doutorado, AIlan R. Holmberg, da Universidade de Comell, o Holmberg a
quem atribui c inde!icadamentc denominei o Erro de Holmbcrg. Holmberg
convencido Comell a deixá-lo allIg3f uma velha propriedade colonial no Peru
rural (a Carnegie Corporation, organITação de caridade apesar do nome, proveu
os fundos). A propriedade incluía todo um povoado, cujos habitantes, em sua
maioria índios, eram mceiros. "Na verdade, era uma forma de servidão", disse-me
Dobyns. "Os aldeãos eram pobres de partir o coração." Holmbcrg planejava testar
estratégias para aumentar a renda desses camponeses. Como a posse da terra era
uma questão contenciosa no Peru, ele tinha pedido a Dobyl1s para contratar o alu­
guei e aprender mais sobre a história da propriedade. Com seus ajudantes, Dobyns
visitou uma dúzia de arqtÜvos, incluindo aqueles na catedral.

6' NA tERRA DOS QUATRO QUAURí\Nl'HS
Dobyns andava enfiado em arquivos há mai~ de uma década, com resul­
rados que ele achava intriganres. A Sll;l primeira incursão no passado ocorrera
em 1953, quando estava visitando seus pais cm Phoenix, Arixona, durante
um feriado escolar. Um amigo, Paul I L Ezell, lhe pediu uma ajuda com a sua
tese de doutorado. A tese versava sobre a adoção da cultura espanhola pelos
índios pima, que ocupavam uma reserva de cel;i:a de 150 mil hectares ao sul
de Phoenix. Grande pane dos registros da era colonial da região sobreviveu
na cidade mexicana de Altar, no estado fronteiriço de Sonora. Ezell queria
examinar esses arquivos e convidou Dobyns para o acompanhar. Num certo
fim de semana, os dois homens percorreram de carro a distância entre Phoe­
nix e Nogales, na fronteira. De Nogales, eles foram para o sul, para o oeste, e
subiram as montanhas, amiúde em estradas de terra, até Altar.
Então apareceu um amontoado de pequenas casas cercando uma dúzia
de pequenas lojas, era Altar, disse Dobyns, "o fim do mundo". As mulheres
locais ainda seguiam o costume de cobrir a cabeça com xales. Visitantes grin­
gos, em pequeno número, costumavam ser exploradores atraldos por rumores
sobre minas de ouro perdidas nas montanha.,.
Depois de surpreender o padre da paróquia com seu interesse pelos ar­
quivos, os dois jovens arrastaram até a igreja o seu principal insttumento de
pesquisa: uma copiadora portátil Contura, ancestral da fotocopiadora Xerox,
que exigia abastecimento de produros químicos que deviam ser misturados
antes de cada uso. A máquina sobrecarregou a infra-estrutura tecnológica de
Altar, que só tinha energia elétrÍca durante seis horas por dia. Sob uma luz va­
cilante, os dois homens examinaram minuciosamente livros de séculos de ida­
de, as páginas belamente preservadas pela atmosfera seca do deserto ..Dobyns
ficou impressionado com a disparidade entre o grande número de enterros
registrado.s na paróquia e o número muito menor de batismos. Quase todos
os óbitos tinham ocorrido por doenças trazidas pelos europeus. Os espanhóis
chegaram, e então os índios começaram a morrer. Aquilo me aringiu, disse-me
ele, "como uma porretada bem no meio dos o.lho.s".
Inicialmente, ele nada fez a propósito da sua o.bservação. A demografia
histórica não era bem o seu campo. Seis anos mais tarde, em 1959, ele pes­
quisou outros arquivos cm Hermosilla, enco.ntrando a mesma disparidade.
Naquela altura, quase já havia terminado o. seu do.uto.rado em Comel/, tendo
sido. selecionado para o projeto de Holmberg. A escolha fota quase fortuita:
Dobyns nunca tinha estado no Peru.
O Peru, aprendeu Dobyns, era um dos mananciais culturais do. mundo,
um lugar tão importante para a saga humana quanro o Crescente Fértil. Con­
tudo, raramente a importância da área foi apreciada fora dos Andes, em pane
'1';'( 9'
1491- Nova<; sobre antes de Colombo ... '6,
pelo.làto de os espanhóis terem devasrado tão complçrameJife a <inlcira inka, e.
em pane porque os próprios inkll, esper.mçoso.s do poder SOp,fIr as bt"asas da sua
própria imporrância, ocultaram ativamente as glórias das culturas anreriore~ a.
eles. Incrivelmente, a primeira história integral da queda do império inka só será
publicada mais de trezentos anos depois dos acontecimentos nela regiStrados: de
William H. Prescott, History oithe ai
Crmquest Peru [História da conqui,ta do
Peru] foi publicada em 1847. As cadências tonitruantes de Prescott contihuam
II ser um prazer de leitura, apesar da crença firmemente afirmada do autor, típica
do seu tempo, na inferio.ridade mo.tal dos nativos. Mas o livro não tl"'e stlcessu­
rcs. Mais de um século depois, quando Dobyns foi para Lima, o relato dç Pres­
çott amtinuava a ser o único completo existente. (Uma boa história, Canquest
~fthe Incas [Conquista dos incas], de John Hemming, foi publicada em 1970.
Porém, ela tampouco teve sucessores, ape"ar da riqueza das'novas informaçõe".)
"Os inka foram amplamente ignorados porque o continente da América do Sul
foí amplamente ignorado", explicou-me Patricia Lyon, antropóloga no Insti­
tuto de Estudos Andinos, em Berkeley; Califurnia. Até o fim do colonialismo,
sugeriu ela, os pesquisadores tendiam a trabalhar nas possessões dos seus pró­
prios países. "Os britânicos estavam na África, juntamente com os alemães e os
tranceses. Os holandeses estavam na Asia, e não. havia ninguém na América do
Sul", porque a maior parte das suas nações era independente. Os poucos pesqui­
sadores que examinaram as sociedades andinas foram freqüentemente desviados
por lutas ideológicas. Os inka praticavam uma forma de planejamento central, o
'lue envolveu os estudiosos num ronftonto estéril, à moda da Guetra Fria, para.
,..ber se na verdade eles seriam socialisras avant I4lettre numa utopia comunal
ou precursores medonhos da RtlSSia stalinista.
Considerando a inexistência de investigações anteriores, pode ter sido
inevitável que, ao rastrear nascimentos e mortes ~m Lima, Dobyns estivesse
marcando um novo campo. Ele reuniu todos ,:,,, livros sobre a deMografia
peruana que pôde enrontrar. Lançou mão do. seu próprio. 'dinheiro 'para pagar·
o.s assistentes do projeto de ComeU para explcíiarem arqHivos da catedral, o
arquivo nacional do Peru e o. arquivo municipal de LIma. Registrando len­
tamente os números da mortalidade e da natalidade, Dobyns co.ntinuou a
impressionar-se com o que estava des'co.brindo. Co.mo qualquet estudio.so., ele
finalmente escreveu um migo sobre o que tinha aprendido. Na época cm que
o seu artigo foi publicado, em 1963, ele havia compreendido que suas desco­
bertas tinham aplicaçõc, muiro além do Peru.
Os inka e os wampanoag eram tão diferentes quanto os turc,?s e os sue­
cos. Mas Dobyns descobriu, com efeito, que a,· sua,. distintas batalhas conrra
a Espanha e a Inglaterra seguiam lIIn mesmo modelo biocu/tural, modelo este
6' NA TERRA DOS QUATRO QUAOl\I\t<lTES
Dobrns andava enfiado em arquivos há mais' de wna década, com resul­
tados que ele achava intrigantes. A sua primciJ;a incursão no passado ocorrera
em 1953, quando estava visitando seus pais em Phoenix, Arizona, durante
um feriado escolar. Um amigo, Paul H. Ezell, lhe pediu uma ajuda com a sua
tese de doutorado. A tese versava sobre a adoção da cultura espanhola pelos
índios pima, que ocupavam uma reserva de cerca de J 50 mil hectares ao sul
de Phoenix. Grande parte dos registros da era colonial da região sobreviveu
na cidade mexicana de Altar, no estado fronteiriço de Sonora. Ezell queria
examinar esses arquivos e convidou Dobros para o acompanhar. Num certo
!im de semana, os dois homens percorreram de carro a distância entre Phoe­
nix e Nogales, na fronteira. De Nogales, eles foranl para o sul, para o oeste, e
subiram as montanhas, amiúde em estradas de terra, até Altar.
Então apareceu um amontoado de pequenas (:asas cercando uma dúzia
de pequenas lojas, era Altar, disse Dobrns, "o fim do mundo". & mulheres
locais ainda seguiam o costume de cobrir a cabeça com xales. Visitantes grin­
gos, em p....queno número, costumavam ser exploradores atraídos por rumores
sobre minas de ouro perdidas nas montanhas.
Depois de surpreender o padre da par6quia com seu interesse pelos ar­
quivos, os dois jovens arrastaram até a igreja o seu principal instrumento de
pesquisa: uma copiadora portátil Contuta, ancestral da fotocopiadora Xerox,
que exigia al,asrecimento de produtos químicos que deviam ser misturados
antes de cada uso. A máquina sobrecarregou a infra-estrutura tecnol6gica de
Altar, que s6 tinha energia elétrica durante seis horas por dia. Sob uma luz va­
cilame, os dois homens examinaram minucÍosanlcnte livros de séculos de ida­
de, as páginas belamente preservadas pela atmosfera seca do deserto.' Dobrns
ficou impressionado com a disparidade entre o grande nÚmero de enterros
registrados na .paroquia e o número muito menor de batismos. Quase todos
os (,bitos tinham ocorrido por doenças trazidas pelos europeus. Os espanh6is
chegaram, e cntão os índios começaranl a morrer. Aquilo me atingiu, disse-me
ele, "como uma porretada bem no meio dos olhos".
Inicialmente, ele nada fez a prop6sito da sua observação. A demografia
histórica não era bem o seu campo. Seis anos mais t.1Ide, em 1959, ele pes­
quisou outros arquivos em Hermosilla, encontrando a mesma disparidade.
Naquela altura, quase já havia terminado o seu doutorado em Cornell, tendo
sido selecionado para o projeto de Holmberg. A escolha fura quase fortuita:
Dobrns nunca tinha estado no Peru.
O Peru, aprendeu Dobyns, era um dos mananciais culturais do mlmdo,
um lugar tão importante para a saga humana quanto o Crescente FéttiJ. Con­
tudo, raramente a imporcincia da área foi apreciada fora dos Andes, em parte
1491- Novas sohrc as Am6ricas antes de ColombO"'«' .69
pelo fino de os espanh6is terem devástado tão completanlen'te aúutura inka, e.
cm parte porque os pr6prios inka, esperançosos de poder soprar as brasas da: sua
pr6pria importância, ocultaram ativamente as glórias das culturas anteriores a
eles. Incrivelmente, a primeira hist6ria integral da queda do império inka s6 será
publicada mais de trezentos anos depois dos acontecimentos nela registrados: de
Willianl H. Prescott, Hirtary if the Conquest ofP.em [História da conquista do
Perul foi publicada em 1847. & cadências tonittuantcs de Prcscort continuam
:I ser um prazer de leitura, apesar da crença firmemente afirmada do autor, típica
do Seu tempo, na inferioridade moral dos narivos. Mas o livro não teve suceSSQ­
I'es. Mais de um século depois, quando Dobros foi para Lima, o relato de Pres­
cott continuava a ser o {mico completo existente. (Uma boa história, COrlquest
flfthe [ncas [Conquista dos incas], de John Hemming, foi publicada em 1970.
Porém, ela tampouco teve sucessores, apesar da riqueza das novas infurmações.)
"Os itlka f'()fam amplamente ignorados porque o contiuente da América do Sul
lói amplamente ignorado", explicou-me Patrícia Lron, antropóloga no Insti­
tuto de Estudos Andinos, em Berkeley, Calif6rnia. Até o fim: do colonialismo,
sugeriu ela', os pesquisadores tendiam a trabalhar nas possessflcs dos seus pr6­
prios paises. "Os btitilnicos estavam na África, juntamente com os.alemães os e
franceses. Os holandeses estavam na Asia, e não havia ninguém na América do
, porque a maior parte das suas era independente. Os poucos pesÍjui­
~'adores que examinaram as socíedades andinas fOI:'"m rreqüentemente desviados
por lutas ideol6gicas. Os irlka praticavam uma forma de planejamento central, o ,
'Iue envolveu os estudiosos num confronto à moda da Guerra Fria, para.·
saber se na verdade eles seriam socialisras avant la lettrr núma utopia comunal
ou precursores medonhos da Rússia sralinisra. '
Considerando a inexistência de investigações anteriores, jJ~de ter sido
inevitável que, ao rastreaI nascimentos e mortes ~ Lima, Dobyns estivesse
marcando um novo campo. 'Ele reuniu todos os livros sobre a d~ografia
. peruana que pôde encontrar. Lançou mão do seI! próprio dinheiro para pagar
os assistentes do projeto de Corne1l para explorarem arquivos da catedral, ()
arquivo nacional do Peru e o arquivo municipal de Lima. Registrando lcn­
tanlente os números da morl:'alidad e e da naralidade, Dobyns continuou a
impressionar-se com o que estava descobrindo. Como qualquer estudioso, ele
finalmente escreveu um artigo sobre o que tinha aprendido. Na época em que
o seu artigo foi publicado, em 1963, ele havia compreendido que suas desco­
bertas tinham aplicações muito além do Peru. r
Os ;nka e os watnpanoag eranl tão difereÀtes quanto os turcos e os sue­
cos. Mas Dooyns descobriu, com deito, que as suas, distintas batalhas contra
a Espanha e a Inglaterra seguiam um mesmo ~odelo biocultural, modelo este
 " ~

1° NA TERRA DOS QUATRO QUADRANTES 1491- Novas revelações sobre as Américas antes de <.hlom,b6' ... J'

,que explicava o fato, de ourro modo desconcertante, de que todas a~ culturas

. índias, grandes ou pequenas, tenham finalment.e sucumbido ii Europa. (Nao

•
deveria ter havido algumas exceções?) E então, refletindo rerrospectivamente a
partir da sua narrativa-mestre, ele propõs uma nova maneira de pensar sobre,
as sociedades americanas nalÍvas, maneira esta que transfurmou não apenas a.
nossa compreensão da vída antcs da chegada de Colombo, mas o quadro que
fàzíamos dos próprios continentes.

TAWANTINSUYU OCEANO
PAciFICO
Em 1491, os inka governavam o maior império da Terta. Malor do que a di­
nastia Ming na China, maior do que a Rússia em expansão de [van o Grande,
maior do que Songhay no SabeI ou do que o poderoso Grande Zimbábue nos
plarôs da África Ocidental, malor do que a Tríplice Aliança (como o império
asreca é mals precisamente conhecido), maior do que muitíssimos Estados
europeus, o domínio inka se estendia, surpreendentemente, sobre 32' de lati­
tude - como se um único poder exercesse domínio desde São Petersburgo até
o Cairo. O império abrangia todo tipo imaginável de terreno, desde a floresta
tropical ao norte da Amazônia até os de,ertos da costa peruana, os picos de
6 mil metros de altitude dos Andes de permeio. "Se potencial imperial fosse
medido em termos de adaprabílidade arnbienral", escreveu o historiador de
()xíUrd Felipe Femández-Armesto, "os inka seriam os mais impressionantcs REDE DE ESTRADAS JNKA
consrrutores de impérios da sua época." ~-- OS QUATRO QUADRANTES (SUYUS)
O objetivo inka era integrar a infinidade de diferentes grupos existentes 1. ChinçhaytuJu
2. Kflnrúuyu
na parte ocidenral da América do Sul - alguns tão ricos quanto os próprios
J,AnmuJu
inka, alguns pobres e desorganizados, todos fàlando línguas diferentes - numa 4. Qollasuyu
mesma estrutura burocrática sob controle direto do imperador. A unidade não
seria meramente política: os inka' queriam amalgamar as religiões, a economia e
as artes da região. Seus métodos eram audaciosos, brotai_ e eficientes: eles remo­ TAWANHNSUYU

víam populações inteiras das suas regiócs natais; deslocavam-nas para diferentes
pontos do maior sistema rodoviário do planeta, uma malha de vías públicas com
calçamento de pedras, alcançando Ullla extensão toral de 40 mil quilômertOS\' c
as obrigavam a trabalhar com outros grupos, usando somente a língua inka, o
tuna simi, cm fàzendas estatais e projetos de construção extensivos e distantes.*
Pata monitorar este empreendimento ciclópico, os inka desenvolveram Ullla
• o runa simi (qulchull; para os espanhQis) é a lingua de 1odv.s OSI1()tnes inka, inclusive "inkd'. ·Eu uso a
(Qma.ni:la~o runa simi padrão, o que significa que não emprego o "inca" espanhol.
A Terra dos Q;Iarro Quadranres, 1527 ele.
forma de escrita diferente de todas 2._ outras, seqüências de cordas e nós que
formavam um código binário remi niscente das linguagens computacionals de
hoje (ver Apêndice B, "Nós eloqüentes"). Os inka foram tão bem-sucedidos em
remodelar seu domínio, segundo o falecido Jóhn H. Rowe, eminente arqueólo­
go da Uni~ersidade da Califórnia em BerkeÍey, que a história andina "começa,
não com as gúerras de independência [sul-americanas], m2.s com o gênio orga­
nizador de Pachakuti [fundador do império] no século XV'.
 L:;

7' NA TERR/\ nos QUATRO QUADRANTES 1491 Novasrevelaçõcs sobre as Améric;ls antes de Colombo \ "" 7J

o Peru das terras altas é tão extraordinário quanto os próprios ínka. É A verticalidade ajudou as sociedades andinas a sobreviverem, mas ram­
o único lugar da Terra, escreveu o antropólogo de Comell John Murra, "em hém as levou a permanecerem pequenas. Como as monranhaS'impedissem a
que milhões [de pessoas] insistem, contra toda lógica aparente, em viver a· comunicação norte-sul, foi muito mais fácil organizar o fluxn de mercadorias
3 mil, ou mesmo 4 nul metros acima 110 nivel do mar. Em nenhuma OUtra e serviços no sentido leste·oeste. Como resulrado, 'durante a maior parte da
parte do mundo as pessoas viveram por tanros milhares de anos em circuns­ sua história a região fi,i uma confusão de culturas de pequena e m(-dia escalas,
tâncias tão ostensivamente vulneráveis". Em nenhum outro lugar da Terra as isoladas de tudo exceto dosvizínhos imediaros. Três v=, contudo, culruras
pessoas, vivendo em tais altitudes em locais em que a maioria dos cultivos surgiram para dominar os Andes, unindo grupos anreriormente separados' sob
não frutificará, em que rerremotos e deslizamentos de terra são freqüentes, uma bandeira comum. O primeiro período de hegemonia f"i o de Chavín, ~
em que extremos climáticos são a oorma -, criaram repetidamente civiliza­ 'Iual, de 700 a.c. à aurora da Era Cristã, conrrolou a costa cenrral do Petu e as
çóes duradouras e recnologicamente avançadas. Inusiradamente elevada, a montanhas adjacentes. O segundo, que começou após o declínio de 'Chavín,
pátria dos inka tanlbém era singularmente escarpada, com encostas a mais foi um tempo de duas grandes potências: o império recnologicamente pro.fi"
de 65" da.horizontal. (A rua mais íngreme de São Francisco, famosa por dente do Wari, que dominou o litoral previamenre sob Chavin; e Tiwanaku,
suas colinas quase intrafegáveis, tem 31,5° de inclinação.) E o torrão inka t'Otn centro no lago Titicaca, o grande lago montanhês da fronteira Peru-Bolí­
era inusiradamente estreito; a disrãncia da costa do Pacifico até os cumes via. (Discuti brevemente acima os wari e os tiwanaku, e rerornarei a eles-- e ao
montanhosos é, na maioria dos lugares, de menos de 120 quilõmetros e, em I'éstante da imensa tradição pré-incaica - posteriormenre.) Depois do colapso
muitos casos, de menos de 50 quilõmetros. Os ecologistas postulam que as dos wari e dos tiwanaku ao final do primeiro mílênio, os Andes cindiram-se
ptimeiras sociedades hunlanas de grande escala tendem a surgir, como for­
mula Jared Diamond da Universidade da Califórnia em Los Angeles, onde a
geografia proveu "uma ampla gama de altitudes e topografias no perímetro
de uma curta distância". O Cresceme Fértil, onde as montanhas da parte
ocidenral do Irã e o mar Morto, o lugar mais baixo da Terra, encerram o
sistema fluvial do Tigre e do Eufrates, é um lugar deste tipo. O outro é o
Peru. Na curta trave"isia das montanhas até o oceano, os vjajaIltes Cruzam
vinte dos 34 principais tipos de ambiente do mundo.
Fara sobreviver nessa miscelânea íngreme e estreita de ecossistemas,
as comunidades andinas enviavam representantes ou colônias para vive­
rem encosra abaixo ou acima, em lugares que dispusessem de recursos
indisponíveis em casa. Peixe e moluscos do oceano; feijões, abóbora e
algodão dos vales fluviais costeiros; milho índio, batatas e o grão andino
quinoa dos conrrafortes do maciço; lhamas e alpacas para produzir lã e
carne nos cumes - cada área tinha algo para contribuir. A população dos
povoados-satélites fazia intercâmbio de produtos com o centro, enviando
feijão montanha acima e recebendo carne seca de lhama em troca, co~­
servando ao mesmo tempo a sua cidadania de uma párria que raramente
viam. Ao combinar os frulOs de vários ecossistemas, as culruras andinas
não só usufruíram uma vida melhor do que a que poderiam ter arranca­
do de um único lugar, como também distribuíram o risco freqüente de
o Peru das tcn~s altaS, capturado nest<+ imagem da ruf03: inka de Wifiay Wayna pdo fUl6.·
catástrofes naturais na área. Murra inventou um nome pará esre modo de grelO andino Martin Chambi (1891-1973), é O único lugar da Tecra onde pessoas vivendu
exisrência: "arquipélagos verticais". em altitudes tão hoscis repetidas vezes criaram sociedades materialmente sofisticadas.
 74 NA TEARA nos QUATRO QUADRANTES
em fragmentos sociopolíticos e, com uma exceção maior, assim permanece-1
ram por mais de três séculos. Então vieram os inka.
O império inka, o maior Estado jamais visto nos Andes, foi também o'
.. de vida mais curta. C..omcçou no século XV e mal durou uma centena de
antes de ser esmagado pela Espanha. '
Como conquistadores, os inka foram inverossímeis. Em 1350, des ainda
eram uma parte sem impórliíncia da cena polltica nos Andes centrais,
recém integt'«dos. Numa das narrativas orais t!::gisrradas pelo je~uita espanhol,
Bernabé Cobo, os inka teriam se originado de lima ·F.unília de quatro irmãod
e quatro irmãs, que deixaram o lago Titicaca e vagaram até chegarem ao
que se tomaria a futura capital ;nka, Qosqo. C..obo, que lamentava aos sus­
piros a "ex:trema Ígnorância e barbárie" dos índios, descartava histórias
tipo como "ridículas". Não obstante, a investigação arqueológica as sustenta,,'
OS inka parecem ter de faro emigrado de Qosqo, talvez do lago Titicaca,
volta de 1200 d.e.
A narratíva colonial que mais se aproxima daquela das fontes indígenas
é a de Juan de Beranzos, um cidadão comum espanhol que se casou com . T mundo"), e proclamou que as F.unllias inka dominantes eram descendentes do
princesa inka e tomou-sé o mais desracado tradutor do governo colonial.
seado cm enttc.'Vistas com seus parentes por afinidade, Rctanzos estimou
quando os inka apareceram na região de Qosqo, "mais & duzent<>s" pequenos!
grupos já estavam lá. A própria Qosqo, onde se estabeleceram, era uma
"com cerca de trinta pequenas casas de palha".
A evidência arqueológica sugere que os inka acumularam poder gradual~1
mente. O ponto crítico dos seus de.stinos ocorreu quando, de algum modo,
ficaram inimigos de um outro grupo, o Chanka, que finalmente os atacou.
pouco notável disputa provinciana teve conseqüências graves.
Segundo uma cronologia amplamente citada pelo clérigo Miguel \..-anellO I
Ralboa, do. século XV1, a ofensiva chanka ocorreu em 1438. O líder inka
época era Wiraqocha Inka.* "Um valente príncipe", segundo C..obo, Wirao",:
eha Inka tinha, mesmo quando ainda jovem, uma natureza "belicosà', e
que depois de assumir o trono "iria conquistar metade do mundo". Talvez o
7.(.'SSe, mas fugiu do ataque ehanka com três dos seus quatrn irmãos, inclusive
seu sucessor designado, Inka Urqon. Um filho mais novo, Inka Cusi Yupifukif'
recusou-se a fugir. Em vez disso, lutou contra os chanka com tal bravura
(segundo a lenda) as próprias pedra, se levantaram para juntarem-se à
,., O soberano tinha o druJo de "Inka" - de er..
Qhapaq Yupanici (sigoificando aproximadameme "Venerado Magnânimo"),
disso, as elites tinham o costUme de mudar seuS nomes ao longo das suas vIdas. JUslIIl, cada !nU
por vários nomes, cada um dO!I auais nade incluir '1nka"'.
um tipo de irmão adotivo. Marchando para o vale com milhares de soldados,
1491 Novas revelações sobre as Amérlcas antes de Co1ombo .7<
lnka Yupanki venceu a batalha, capturando muitos líderes ehanka: Depois, ele
. O~ esíi,!ou em celebração - Pizarro viu Os troféus em exibição. P6rém, primeiro ..
Yupanki apresentou os prisioneiros a seu pai, para que Wiraqocha Inka pudesse
realizar o ritual de vitória de limpar os seus pés em seus corpos.
Temendo que Inka Yupanki estivesse convencido demais das suas capaci­
dades, Wltaqoeha Inka escolheu aquele momento para lembrar ao filho mais
novo o seu status subordinado. A honra de limpar os pés, proclamou ek na
verdade pertence ao próxitno Inka: Inka Urqon. "Ao que", escreveu Betamos,
"Inka Yupanki respondeu que suplicava ao pai que pisasse nos prisioneiros,
não tinha conquistado a vitória para que mulheres como Inka Urqon e
JeUS outros irmãos pisassem neles." Uma acalorada"discussão levou a um im­
passe. Num gesto shakespeariano, Wiraqocha Inka decidiu resolver a questão
IlíIsassinando o seu filho mais novo. (Foi um "impulso louco", explicou mais
tarde um dos generais de Wiraqoeha.) Inka Yupanki foi avisado e o plano
fracassou. O humilhado Wiraqocha Inka foi para o ex1lio, enquanto Inka
Yupanki retornou a Qosqo em triunfo, rebatízou-se Paehalmti ("agitador do
. HOI. E então saiu conquistando tudo o que a vista alcançasse.
Ei, espere um minuto!, o leitor pode estar dizendo. Esta história familiar é
tno melodramática que parece razoável questionar se tcalqente aconteceu. Afi­
naI, todos os relatOs escritos conhecidos sobre os inka foram produzidos após a
conquista, um século ou mais depois dã ascensão de Pachakuti. E eles diferem
" Ims dos outros, algumas vezes dramaticamente, refletindo os Vieses e a ignorân­
cill dos autores e a manipulação da história por seus informantes, para projetar
lima luz favorável sobre as suas linhagens familiares. Por essas razões, alguns
estudiosos descartam essas crÓnicas inteiramente. Já Outros observam que tan­
to os inka como os espanhóis tinham uma longa tradição de manter registros.
Geralmente, os seus cronistas parecem ter tido consciência do seu papel como
,. testemunhas e tentado cumprir o esperado. As suas versões de acontecimentos
concordanl amplamente entre si. Resulta que a maioria dos estudiosos usa ju­
diciosamente os registros coloniais, como estou tentando fazer aqui.
Depois de assumir as rédeas do r:~tado, Pachakuti passou os 25 anos
8cguintes expandindo O império a partir das terras alras da pane central do
Peru até o lago Titícaca e além. Seus métodos eram mais sutis e econômicos
no que diz respeitO à fOrça direta do que poder-se-ia imaginar, conforme
exemplificado pela lentaencampação do vale costeiro de Chineha. Por volta
de 1450, Pachakuti enviou um exército para CJúneha, sob o comando de
76 NA TERRA DOS QUAT1\O QUADl\AN1'ES 14~fl Novas revelações sobre as Américas antes de Colombo 11l

Qhapaq Yupanki informou a temerOSa pequena nobreza local que não cxérciros, derrubavam os velhos governantes e anexavam a terra. Nos impérios
absolutamente nada de Chincha. "Ele disse que era o filho do sol", segundo hegemónicos, os assuntos internos das áreas conquistadas pelimanecem nas
o relato de dois espanh6is que investigaram a hist6ria do vale na década mãos dos seus governantes originais, que se tornam vassalos. Impérios territo­
155.0. "E que tinha vindo p'ara o bem deles e de todos, e que não queria dais são estritamente controlados, mas de manutenção cara; impérios hegemó­
prata deles, nem o ouro e nem as filhà~." Longe de tomar a rerra ii. força, na nicos são de manutenção barata, porque os governantes originais a<;sumem os
verdade o general inka lhes daria "tudo o que estava trazendo". E praticamen" custos de administração, no entanto, o vínculo trouxo entre mestre 'e vassalo
te soterrou a liderança ehineha com objetos de valor. Em troca da sua genero-;] ~srimula a rebelião. Todo Estado marcado pela conquisra é uma mistura de àm­
sidade, o general 56 pedia um pequeno reconhecimento, preferivelmente (,os, mas todos os impérios amcricanos nativos penderam para o hegemónico.
a forma de uma grande casa de onde os inka pudessem conduzit seus assun; Sem cavalos, os soldados índios viajavam inevitavelmente mais devagar do que
tos, e um grupo de serviçais para cozinhar, limpar e fazer o necessário os soldados europeus ou a,iáticos. Se brigadas ficassem comprometidas como
o posto avançado. E quando Qhapaq Yupanki partiu, pediu a Chincha Ocupantes, não podiam scr rapidamente destacadas para novas rarefas. Resulta
continuasse a expressar a sua gratidão enviando artesãos e bens para Qosqo. que os ;nka eram quase que obrigados a cooptar os governantes locais, em vez
Uma década mais tarde, Pachakuti enviou um outro exército para o de se deslocarem. E faziam·no com uma ponta de vingança.
este comandado por seu filho e herdeiro, Thupa Inka Yupanki ("Inka Pachakuti entregou o comando dos militares ao seu filho Thupa Inka
Honrado"). Thupa Inka se aproximou da liderança local e apresentou muitas' em 1463, e voltou a sua atenção à total reconstruç~ de Qosqo ao estilo im­
idéias inspiradas para a melhoria do vale, todas as quais foram gratament.e: perial, tornando-se, no processo, um dos maiores ~ planejadores urbanos da
endossadas. Seguindo o modelo in~ os líderes locais reentraram toda a hist6ria. Embora se inspirasse nas tradições estéticas andinas, Paehakuti pós a
pulação, rlivirlindo as funúlias pot sexo e idade em coones, cada uma sua pr6pria marca na arre e na arquiretura inka. Ao passo que as construções
o seu pr6prio lider, o qual se reportava ao grupo maior sq,>uint.e.
Suméria e da Assíria eram cobertas de mosaicos brilhantes e esplênrlidos
ordenado para o povo saber quem estava no controle", escreveram os paares~
murais illlStrados, o estilo ;nka era mais severo, abstrato, despojado de for­
esparthóis. Thupa Inka delegou rarefdS à população mobilizada, ahrir estradas
mas geométricas na vcrdade, espantosamenre contempor:ineo. (Segundo o
para ligar Chincha a outras áreas controladas pelos in~ construir um novo
crítico peruano César Paternos to, grandes pintores do sé~ulo XX, como Josef
palácio par. o In~ e cuidar dos campos destinados aos inka. Thupa Inka apa­
Albers, Barnett Newman e Mark Rothko, foram inspirados pela arte inka.)
rentemente deixou a tegião a cargo de seU irmão, q ue seguiu administrando
No coração da nova Qosqo, estava a praça de Awkaypata, de 195 por
a sua gratidão.
150 metros, quase inteiramente atapetada de areia branca trazida do Pacífico
A visita seguinte veio da parte do neto de Pachakuti, provavelmente e limpa diariamente com ancinho pelo exército de servidores da cidade. Vilas
década de 1490. Com ele, vieram exigências crescentes de terras e serviços - o e templos monumentais cercavam o espaço em três lados, suas paredes feitas
verniz de reciprocidade estava começando a embaçar. Naquela altura, os com enormes blocos de pedra tão precisamente encaixados que Pedro, primo
eh. tinham poucas alternativas além de submeterem-se. Eles estavam cercados Inais novo de Pizarro que acompanhava o conquistador como pajem, relatou
por satrapias ;nka; a sua economia estava totalmente amarrada à máquina "que era impossível inserir a ponta de um alfincte entre as juntas". Em toda a
imperial; eles tinham centenas ou milhates de pessoas cumprindo ordens do, extensão das fachadas, estendiam-se chapas enormes de ouro polido. Quan­
império. A elite ehincha, temerosa de opor-se ao exército inka, sempte prefe­ do o sol alpino enchia a Awkaypata"com·o seu ousado plano horizontal de
riu a submissão à coragem, e foi recompensada com posições privilcgiacbs c nreia branca e as folhas oblíquas de ouro, o espaço sc tornava um anfiteatro
governo colonial. Mas o seu domínio tinha cessado de existir como entidade.; de exaltação da luz. .
independente. . No grande esquema de Pachakuti, Awkaypata era o centro do império
Em 1976, Edward N. Luttwak, então no Centro de Estudos Estratégicos..; - e do cosmos. A partiJ;, da grande praça irradiavam-se quatro estradas que
e Internacionais, cm Washington, D.C., publicou um livro curto, provocativo,,; dcmaocavam os quatro serores assimétricos em que se dividia o império, Ta­
sobre a Roma imperial, no qual fazia uma distinção entre impérios territoriais wantinsuyu, a "Terra dos QuarrO' Quadrantes". Para os inka, os quadrantes
e hegem6nicos. Os do primeiro tipo ocupavam diretamente territórios com seUS ecoavam a ordem celestial. A Via Láctea, um vasto rio celestial na cosmologia
,8 NA 'ThRRA DOS QUATRO QUADRANTE/)
A alvenaria inka maravilhou 0$ conquistadores, que não conseguiam entender como eles
haviam montado aquelas enormes pedras sem argamassa e sem animais de tiro. E as cons­
truções eram surpreendentemenre duráveis - o explorador estadunider:t.<;{; Híram Bingham
futografOu a cidadela de Machu Picchu em 1913, encontrando-a em quase perfeitas condi­
ções. apesar de séculos de incúria.
<mdina, cruza os céus peruanos num ~ngulo de cerca de 28° em relação à
órbita da Terra. Durante seis meses, a corrente de estrelas inclina-se no céu,
por assim dizer, de nordeste a sudeste; nos outros seis meses, ela se inclina de
sudeste a nordeste. A transição corresponde, grosso modo, à transição entre
estações seca e úmida - ocasião cm que a Via Láctea liberta as águas vivifican­
tes para Pacha Mama, a Mãe Terra - e divide os céus em quatro quadrantes.
Refletindo este padrão, Awkaypata era o eixo do universo.
Não apenas isto, Qosqo era o centro de um segundo modelo espiritual. ;
Irradiando-se a partir de Awkaypata, estendiHe uma teia de aranha bêbada;
de 41 linhas tortas espiritualmente poderosas, conhecidas como zeq'e, que
gavam as criaturas sagradas da paisagem: fontes, tumbas, cavernas, santuários,-­
campos, pedras. Existiam cerca de quatrocentos destes wak'a (santuários, mais'
ou menos) em torno de Qosqo - a paisagem em volta da capital era carregada
de força telúrica. (A zeqetambém desempenhava um papel no calendário inka,
que aparentemente consistia em 41 semanas de oiro clias.) A rede de _ •
e zet/e era tão complexamente intcr-relacionada, escreveu Terence D'Altroy,::
arqueólogo da Columbia University, "que muitos estucliosos de outro modo
diligentes viram-se reduzidos a coçar a própria cabeça e a confiar no parecer de -\
outrem". Cada wak'a tinha o seu próprio significado, status relativo, afiliação
social, e conjunto de usos cerimoniais. Cria-se que uma grande pedra fora da
J 49 t - Novas revelações sobre as Américas antes de Colombo :19
cidade fosse o corpo petrificado de um dos irmãos inka originais; exércitos
inka a carregavam amiúde com eles, vestida em finos trajes, comp uma espécie
de talismã de boa sorte. Para manter O controle sobre a florescente abundância
de santuários e linhas, observou Cobo, o império "t;inha mais de mil homens
na cidade de Qosqo, cuja única atividade era lembrar dess~ coisas"_
Pachalruti fez mais do que apenas reconfigurar a capital; ele delineou
ns instituições que caractcri7""ram o próprio Tawantínsuyu_ Durante séculos,
os habitantes dos povoados tinham passado parte do seu tempo trabalhando
em equipes para projetos comunitários. Alternativamente intimidando e in­
duzindo, Pachalruti expandiu além de qualquer reconhecimento a obrigação
de serviço. Em Tawantinsuyu, decretou ele, toda terra e toda propriedade
pertenciam ao Estado (com efeito, ao próprio lnka). Assim, os campone­
Ses tinham de trabalhar periodicamente para o império como agricultores,
pastores, tecelãos, pedreiros, artesãos, mineiros ou soldados. Ef''' freqüente
equipes passarem meses longe de casa. Enquanto estavam na estrada, o Es­
lado as alimentava, vestia e alojava tudo com bens fornecidos por outras
equipes de trabalho. Conscritos construíam barragens, terraços e canais de
irtigação; eles cultivavam safras nas terras do Estado, criavam gado cm pas­
los do Estado e faziam vasos, vasilhas e panelas em fábricas do Esrado, es­
tocando-os às centenas em almoxarifados do Estado; eles pavimentavam as
estradas e forneciàm os mensageiros e lhamas que através delas transporta­
vam mensagens e bens. Entendendo ditatorialmente a verticalidade anclina,
" poder supremo despachava pessoas e materiais para dentro e pata fora de
todas as frinchas andínas.
E o futo de este sistema funcionar sem clinheíro certamente não era a
sua característica menos surpreendente. É verdade, a ausência de moeda não
surpreendeu os invasores espanhóis grande parte da Europa não usou di-
Em volta da capital inka de Qosqo
(a moderna Cuzco) havia mais
de quatrocentos wak't4 lugares na
paisagem carregados de poder es~
piriruaI. Muitos deles eram pedras,
nlgumas talhadas em elaboradas
rcpresenta.çõe~, ta1v~ das áreas sobre
:IS quais ~las exerciam influência..
,o • NA 1'ellRA DOS QUATRO QUADRAN'l'ES 14-91 - Novas revelações sohrc as Américas ante'-'> de Colombo
"
nheiro até o século XVIII. Mas os inka sequer tinham mercados. Economistas.;
teriam vaticinado que uma tal economia sem mercado socialismo vertical,]

chamaram-na - teria engendrado graves ineficiências. Elas certamente ocorre-'

raro, mas foram erros de excedente, não de carência. Os invasores espanhóis:
ficaram perplexos ao encontrar os depósitos transbordantes de tecidos e outros'
suprimentos intocados. Para os inka, porém, cofres cheios até a borda signífi-c
cavam prestigio e fartura; tudo fazia parte do plano. E o mais importante,
wantinsuyu "empreendeu erradicar a fome", observou o romancista peruano;;
Mario Vargas Uosa. Embora não fosse dos inka, ele concedeu que "somente'
um muito pequeno número de impérios em todo o mundo logrou alcançar; OG'EANO
este feito'} .
Quando o Tawantinsuyu absorvia uma área nova, os inka forçosamen-~
PAciFICO
te importavam colonizadores de outras áreas distantes, freqüentemente .
grande número, dando-lhes tertas. Os recém-chegados eram estimulados
manter a sua própria indumentária e os seus próprios háhitos, em vez de inte- .
grarem-se na população hospedei ta. Para comunicarem-se, ambos os grupos
eram forçados a usar o runa simi, a lingua dos seus conquistadores. Em suma; .,
implementar tal prática acarretava tensões políticas que os inka manipulavam
para controlar ambos os grupos. No longo prazo, isto erodiria (se bem-sucedi­
do) as distinções entre aB cul turas e /()rjaria uma nova nação homogênea com a
marca do Tawantinsuyu. Cinco séculos mais tarde, o rearranjo de populações
tornou-se a marca registrada infame de Stalin e de Mao. Porém, a escala em "
143S-1463 Pachakud
que os inka moveram as peças sobre o tabuleiro étnico teria excitado a ima",i- '
nação de ambos. Incrivelmente, em muitos lugares os estrangeiros eram • 1463-1471 Pachuuti e ThupaInlw
maior número do que os nativos. É possível que choques étnicos pudessem;
finalmente vir a causar a implosão de Tawantinsuyu, ao estilo da Iugoslávia, . • 14n-1493 lnup:t1nl\a
Porém, se Pizarro não tivesse interrompido, os inka poderiam ter criado uma
• 1493 -152·; Wayna
cultura monolítica tão duradoura quanto a China.

l'AWAN'rIN$UYU

Exparuão do império inka, 1438-1527 d.e.

A LITEIRA DOURADA DOS INKA
Como Pizarro conseguiu? Cedo ou tarde, todos os que estudam os infla se
zem esta pergunta. Henry Dobyns também se questionou. O império eta
populoso, rico e bem organizado quanto qualquer outro lia história. Nenhll
outro, porém, caiu diante de uma força tão pequena:, Pizarro só tinha 1
homens e 62 cavalos. Os pesquisadores sempre se perguntaram se o colapso
inka encerta uma lição histórica fundamental. A resposta é sim, mas ela só foi '
compreendida recentemente.
É sabido que a ilScensão e a queda furam de uma rapidez de mar o fôlego,
mas a cronoJogia exata da sua trajetória é objeto disputas. A maioria dos pesqulsadOres
considera o relato de Miguel Cahello &liboa aproxitnad.amente <.."Otrera, Ele é a fome do mapa
autua., embora o leitor deva precaver--se de encará~lo c.orno exalo ou universalmente aceiw.
A h istótÍa básica do império era bem conhecida na época, e Dobyns
começou pela leitura de velbos relatos coloniais. Segundo a cronologia de Ca·
belIo Balboa:Pachalcuti morrel1<pacificamente cm 1471. O seu filho, Thupa
Inka;experiente comandante militar. tomou então a "coroa" imperial- uma
 c>;:,

8, NA TERRA DOS QUATRO QUADRANTES 1491- Novas revelações sobre as Améric;as antes de Colombu· '3

trança multicolorida enrolada em volta da cabeça como uma faixa, da qual

pendia uma borla com franjas vermelhas sobre a testa. Carregado numa li­
teira de ouro - o lnka não andava em público -, Thupa Inka aparecia em tal
majestade, segundo o viajante Pedro Sarmiento de Gamboa, que "as pessoas
saíam das estradas por onde ele tinha de-passar e, subindo nas encostas de am­
bos os lados, [o] cultuavam e adoravam, puxando suas sobrancelhas e cílios".
Subordinados recolhiam e armazenavam todos os objetos em que ele tocava,
restos de comida inclusive, para garantir que nenhuma pessoa inferior pudesse'
profanar esses objetos com o seu toque. O chão era sujo demais para receber
a saliva de um Inka, e assim ele sempre cuspia na mão de um cortesão. O
cortesão limpava o cuspo com um tecido especial e o guardava sob custódia.
Uma vez por ano, tudo que havia sido tocado pelo lnka - roupas, lixo, roupa
de cama, saliva - era queimado cerimonialmente.
Thupa Inka inaugurou o costume inka de casar com a irmã. Na verdade,
Thupa Inka pode ter se casado com duas das suas irmãs. A prática é genetica­
mente insalubre, mas logicamente coerente. Somente parentes próximos do
lnka eram vistos como puros o bastante para produzir seu herdeiro. À medida
que os lnka cresciam em grandeza, mais pureza era exigida. Finalmente; só
uma irmã estaria à altura. As irmãs-esposas do lnka o acompanhavam em
suas incursões militares, juntamente com as poucas centenas ou milhares de
esposas subordinadas. A escala maciça desses arranjos domésticos parece não
ter impedido o progresso imperial. Na ocasião da sua morte em 1493, Thupa
Inka tinha enviado seus exércitos a lugares tão distantes quanto o Equador e Wayna Qhapaq, Washkar,
o Décimo Primeiro Inka o Décimo Segundq Inka
o Chile, dobrando outra vez o tamanho de Tawantinsuyu. Em termos de área
conquistada durante o seu período de vida, ele teria a estatura de Alexandre o
Em 1615, os escritor inka Felipe Guamán Poma de Ayala deu de preseme ao rei Felipe II
Grande e de Gengis Khan. da Espanha a obra da sua vida, uma história extensiva da sociedade inka, com quatrocemos
A morte de Thupa Inka desencadeou uma luta pela franja real. O Ta­ desenhos. Ele cinha esperanças de que o rei a utilizasse para aprender mais sobre os seus
wantinsuyu não tinha regras sucessórias estritas. Em vez disso, o lnka esco­ novos súdiros. Se Fellpe jamais viu os manuscritos, não se sabe, mas o trabalho de Poma
de Ayala - um dos poucos relatos não europew da vida inka - é agora uma fonte doura
lhia o filho que considerava o melhor qualificado. Thupa Inka tinha mais de
fundamemal. Embora os retratos aqui apresentados não tenham sido feitos ao vivo, eles nos
sessenta filhos de todas as suas esposas, segundo Sarmiento de Gamboa, de dão indicações sobre como os inkaviam e se recordavam dos seus lidetes.
modo que tinha muitas escolhas. Infelizmente, parece que Thupa Inka havia
escolhido um filho, mas mudou de idéia em seu leito de morte, escolhendo
outro. Formaram-se facções em torno de cada um dos filhos, o que 4:vou a irmãos para evitar futuros problemas familiares. Depois, como o pai, ele se
uma escaramuça. O primeito filho foi banido ou morto e o segundo tomou casou com a i.t;-mã.
o nome de Wayna Qhapaq e tornou-se lnka. Como o novo lnka ainda fosse Wayna Qhapaq não era um aventureiro militar como seu pai. Inicialmen­
um adolescente (seu nome significa "Jovem Magnànimo"), dois dos seus tios te, ele parece ter visto o seu papel principalmente como df consolidação, em vez
atuaram como regentes. Um tio tentou usurpar o poder, mas foi morto pelo de conquista, talvez porque Tawantinsuyu estivesse se aproximando dos limites
outro. Finalmente, o lnka ganhou idade bastante para assumir o controle. geográficos da governabilidade -.a comunicação através da longa espinha dor­
Entre os seus primeiros atos oficiais estava matar dois dos seus próprios sal no"rte-sul do império estendera-se ao limite. Boa parte do tempo de Wayna
 ,
84 Nh TF.I\.IU nos QUI\TJW QUA1?RANTES
Qhapaq era dedicado à organização dos projetos de obras públicas do império ..
Freqüentemente, essas obras eram mais políticas do que práticas. Como
inka acreditavam que o ócio fumemava a rebelião, rdatou o viajante espan
Pedro Cieza de Léon, ordenava que as brigadas de trabalho desempregadas'
"movessem montanhas de uin lugar paxa o outro" sem nenhuma razão prática.
Cieza de León chegou a ver, certa vez, três diferentes estradas estendendo-se.
entre as duas mesmas cidades, cada uma construída por um Inka.
A consolidação foi completada cm 1520. Wayna Qhapaq marchou então
para o Equador à frente de um exército, pretendendo expandir o império
o norte. Tratava-se de uma viagem de retomo: ele nascera ao sul do Equauor
durante uma das campanhas de seu pai. Ele próprio levou consigo um dos seus;l
filhos adolescentes, Ataualpa. Como relarou Cobo, quando Wayna Qhapaq'
chegou ao seu local de nascimento, a cidade hoje chamada Cuenca, "ordenou:
a construção de um palácio magnifico para si". Wayna Qhapaq gostou
do seu novo quadrante que ficou, enquanto Ataualpa e seus generais seguiram .
adiante para subjugar umas poucas provincias mais.
Eles não tiveram sucesso. Os povos das /lo restas equatoriais não pertenciam .'
ao sistema cultural anruno e não estavam interessados em aderir. Eles lutaram.:
ferozmente. Pego numa armadilha, Ataualpa foi furçado a bater em retirada. j
Encolerizado por essa derrota, escreveu ('Á>bo, Wayna Qhapaq "se preparou tão
rapidamente quanto possível para ir em pessoa vingar aquela desgraça". Ele saiu
do seu aprazível palácio e, 11 entrada, repreendeu Ataualpa publicamente.
segunda ofensiva, o exército avançou sob o comando pessoal do lnka. Levando
porretes, lanças, ateos, fundas e machados de cobre, brilhantes cm seus mantos
de plumas e peitorais de prata, os rostos pintados com motivos aterradores, o.
exército inka mergulhou nas /lorestas da costa serentrional. Eles cantavam e:':
gritavam em unissono enquanto lutavam. O desfecho da batalha oscilou de um .
lado para outro, até que um contra-ataque súbito arrancou Wayna Qhapaq da
sua liteira - uma humílhação. Quase capturado pelos inimigos, ele fui obrigado
a andar como um plebeu ao retomar ao seu palácio. O exército inka se reagru­
pou e reromolL. Depois de uma prolongada luta, subjugou os inimigos.
Gostando mais do clima quente equatoriano do que daquele da enregela­
da Qosqo, Wayna Qhapaq postergou o seu retomo triun&! em seis ano;>. Usan­
do roupas sedos"" e folgadas de lã de morcego-vampiro, ele vagueava em tomo ;'
do seu palácio éom uma tigela de vinho de palma ou de chicha, uma bebida"
doce c turva semelhante a cerveja, /eita de milho índio prensado. "Quando
seus capitães e chefes índios lhe perguntaram como nunca ficava embriagado,
apesar de beber tanto", telatou Pedro, primo e pajem de Pizarro, "contam eles
que de respondeu que bebia para os pobres, aos quais muitos de sustentava."
1491 Novas revelações sobre as Arncricas antes de Colombo
~
"
Em 1525, Wayna Qhapaq ficou subitamente doente e mórreu em sc'u
retiro equatoriano. Mais uma vez a sucessão foi contestada e sangrenta. Os
deraIhes são obscuros, mas parece que, em seu leito de mort" o Inka pa­
rece ter ignorado Ataualpa, que não tinha se distinguido, e designado um
de nome Ninan K'uychi como herdeiro. Infelizmente, Ninan K'uychi
morreu da mesma doença, pouco antes do pai. A escolha seguinte do Inka
. um filho de 19 anos que havia permanecido em Qosqo. Como de COStu­
me, sumos sacerdotes submeteram a escolha a adivinhações. Souberam que
este filho teria um destino terrivelmente infeliz. O sacerdote que relataria
" desventurado resultado a Wayna Qhapaq o encontrou morto. Em conse­
o qiiência, permitiu-se que os nobres da corte escolhessem o imperador. Eles
chegaram a um acordo em tomo do nome do adolescente que fora a escolha
final do lnka.
A principal qualificação do adolescente para o posto era que sua mãe era
l!'mãde Wayna Qhapaq. Não obstante, ele não teve dúvida sohre a possibilida­
de coroar-se imediatamente - sequer esperou para saber se Wayna Qhapaq
tcda deixado quaisquer instruçóesou últimos desejos. O novo lnka tomou o
nome de Washkar Inka ("Inka da Corrente de Ouro"). Araualpa permaneceu
no Equador, aparentemente por não ser capaz de mostrar a cara depois de ter
lido repreendido pelo pai, mas presumivelmente também porque sabia que a
expectativa de vida dos irmãos lnka tendia a ser diminuta.
. Nesse ínterim, o corpo mumificado de Wayna Qhapaq fi,i vestido em
finas roupas e transportado de volta a Qosqo numa liteira de ouro ornada de
plumas. Ao longo do caminho, os testamenteiros do imperador morto, quatro
llobres de alta posição, urdiram depor e matar Washkar, instalando um outro
filho em seu lugar. Algo levantou as suspeitas de Washkar quando o grupo se
aproximava de Qosqo talvez a descoberta de que Ataualpa tinha ficado no
Equador com a maior parte do exército inka, talvez um aviso de um tio fiel
"lue os conspiradores tenham buscado cooptar. Depois de reali'l.ar um gran­
de funeral para seu pai, Washkar ordenou aos testamenteiros encontrarem-se
com ele, tun de cada vez, o que deu ocasião de prendê-los. Seguiram-se tortura
e execução. .
O complô foi frustrado, Washkar seguiu adiante, eliminando quaisquer
objcç.ões remanescentes à sua sucessão. Como Wayna Qhapaq não tinha real­
mente se casado com a mãe de Washkar - a união foi devidamente incestuosa
mas não.devidamente ll'gitimada -, o novo lnka exigiu que a mãé· participasse
de uma cerimônia de cisament',' ex post fleto com a múmia do pai. Mesmo
para 0.5 Andes: aquele era um passo incomum. Washkar ainda consolidou as
suas credenciais de governante casando-se com a itmã. Segundo o relato acri­
86 NA TERRA DOS QUATRO QUADRANTES
monioso de Cabello Balboa, a mãe de Washkar, que aparentemente desejava
casar-se com o irmão morto, fez objeção aos planos do /ilho de casar-Se com a
/ilha dela. A cerimônia s6 teve lugar depois de "muitos pedidos e súplicas".
A guerra civil era provavelmente inevitável. Instigada por corresãos e ge­
nerais conspirativos, a relação entre Ataualpa e Washkar consumiu vários
oscilando numa valência emocional que ia da suspeita dissimulada à hostilida­
de aberta. Washkar, em Qosqo, tinha a máquina do Estado à sua disposição;
além disso, sua pretensão à franja imperial era geralmente aceita. Ataualpa, no
:E'juador, tinha um exército testado pela guerra e os melhores generais, mas a '
sua reivindicação ao trono era mais fraca (sua mãe era apenas prima de seu pai"
não irmã). A guerra perdurou mais de três anos nwn verdadeiro vaivém através
dos Andes, c fui cspctacularmente brutal. As forças de Washkar conseguiram ai
vantagem inicial, invadindo o Equador e de fato prendendo Ataualpa, que qua­
se teve uma orelha cortada no processo. Numa seqüência digna de Hollywood,
uma das esposas de Ataualp. tena supostamente contrabandeado um tipo de
alavanca para dentro da prisâo improvisada no campo de batalha (os guardas
embriagados permitiram a visita conjugal). Ataualpa conseguiu abrir caminho
e fugiu para o Equador, reuniu seu exército e empurrou os inimigos para o suL
Num platô perto do que hoje é a fronteira Peru-Equador, as forças setentrionais:
lideradas por Ataualpa destroçaram o exército de Washkar. Uma década mais';
tarde, Cieza de Le6n viu o campo de batalha e, dos escombros e restos desenter~ ,í
rados, avaliou que o número de morros pode ter chegado a 16 mil. Os vitoriosos.:
capturaram c decapitaram o principal general de Washkar. Ataualpd engastou
uma tigela na parte alta do crânio, inseriu um bico por entre os dentes, e usou o .
conjunto como taça para beher a sua
Com a dinâmica da guerra virando-se contra ele, Washkar deixou Qosqo
para comandar o seu pr6prio exército. Ataualpa enviou suas forças à frente
para encontrá-lo. Depois de uma horrível batalha (Ciez.a de Le6n estima em'
35 mil o número de mottos), Washkar foi capturado numa emboscada no
verão de 1532. Os generais de Ataualpa levaram o lnka como prisioneiro para i
Qosqo e executaram as suas esposas, filhos e demais parentes na frente dele. '
Enquanto isso, a cavalgada triunfal de Ataualpa, talvez de até 80 mil solda­
dos, passeava lentamente para Qosqo. Em outubro ou novembro de'lS32,
os vitoriosos pararam fora dos muros da pequena cidade de Cajamarca, onde
souberam que pessoas pálidas e peludas sentadas em enormes animais tinham
desembarcado na costa.
Não importa quantas vezes o que aconteceu em seguida foi recontado, não
perdeu a capacidade de chocar: como o curioso Ataualpa decidiu esperar a che­
gada do grupo de estrangeiros; como Pizarro, pois era ele, convenceu Ataualpa a
1491 - Novas revelações .~obl"e (I{! Amérú:as ante; de Colombo 8,
visitar os espanh6is na praça central de Cajamarca, 'lu";, 'era cercada em três lados
por edifícios compridos e vazios (aparentemente a cidade fora eVacuada por causa
da guerra); como o futuro imperador chegou a Cajamarca em 16 de novembro
de 1532 em sua liteira dourada adornada de plwllas, precedido pór um esqua­
drão de libré que varria o chão e seguido por 6 mil soldados, quase todos portan­
Jo apenas armas ornamentais, de parada; como PÍ7.arro escondeu os seus cavalos
C canhões dentro dos edifícios em torno da praça da cidade, onde 168 espanhóis
esperaram o lnka cam tanto medo, anotou Pedro Pizarro, que muitos "se molha­
I'iIm de terror sem perceber"; COmO um sacerdote espanhol pre.sentcou Araualpa
eOm tUll breviário cristão marcado pela viagem; o qual o Inka, para quem aquilo
rcalmente nada significava, jogou impacientemente de lado, dando aos espanhóis
um prerexto legal para um ataque (profanação da S;.grada Escritura); como os
espanh6is, disparando canhões, envergando armaduras e montados em cavalos,
~uisas que os índios jamais tinham visto, assaltaram a praça repenrinamente;
cumo os índios /icaram em tal pânico diante da fumaça e do fuga e do aço e dos
Animais em carga que, tentando fugir, centenas pisotearam-se até a morte ("eles
lilrmavam montes e sufOcavam um o outro", escreveu um conquistador); como
Os espanhóis tiraram vantagem do desarmamento dos índios para matar quase
IOdos OS restantes; como as tropas nativas recuperadas da sua surpresa inicial se
Qgruparam desesperadamente em torno de A1:.malpa, Sllstentando a sua liteira em
gCUS ombros mesmo depois de as espadas espanholas terem cortado as suas mãos;
como Pizarro arrancou pessoalmente o futuro imperador da liteira, empurrou-Q
Iltravés de p.i.lhas de corpos e jogou-o no que seria a sua prisão.
Pi1m:ro exultou menos com a vitória do que se pode imaginar. Homem
• 'Iue se fez por esforço próprio, /ilho iletrado, ilegítimo e tejeitado de um capi­
tão do exército, ele ardia com sonhos de riqueza c glória cavalheiresca, apesar
da fortuna que já tinha amealhado nas colônias espanholas. Após o desem­
barque no Peru, ele compreendeu que sua diminuta força estava entrando
'na goela de um poderoso império. Mesmo após o seu surpreendente triunfo
. Cm Cajamarca, ele continuou dilacerado enrte o medo e a ambição. Ataual­
, pa, por sua vez., observou o poder do ouro e da prata inka de obscurecer o
espírito europeu.' Metais preciosos não eram valorizados da mesma maneira
Por CatlSj. da .sua obsessão pelo ouro, Q~ conquistadores s50 arnldde descartados çorno . . ávidos por ouro". Na
verdade, uarava-se menos de avidez por ouro do que de avidez pOr StatuS, Como I1ernán Cortês, que conquis­
tem o M-éxico, Pízarco nasceu nas ftanjas inferiores da nobreza. e especava. com seus feitOs, gaJlhar j (lU lo!>, po.~'tos
e pensões da Coma e.'If1anhola. Para Qbttt tais favores reais, suas expedições dnham de trazer algum ~torno pata
~! I'ei, Dada a dificuLdade e os custos de ttarulpqcrc, metais preciosos "não perecíveis, dlvisíveis e compactos",
{'omo observa o hisroriador Mat:thew Restall- eram qU:1SC o único bem que eles podiam embarcaI para a Euro­
1'11, Assim, o ou.cQ C a l)nlt~ inka reprt'J;enta.varn pttrtl O~ esptlnhóis a perspectiva inebriante de as.t:t:!nsão social,

88 NA TERRA DUS QUATRO QUADRANTES
no Tawantinsuyu, pois não havia moeda. Para O governante inka, o fascínio
dos estrangeiros pelo ouro evidentemente representou a sua melhor chance
de manipular a situação a seu favor. Ele ofereceu encher uma sala de 7 por 5
metros de objetos de ouro e duas sal..s equivalentes de prata em troca da .
sua liberdade. Pimrro logo concordou.com o plano.
Ataualpa, ainda no comando do império, ordenou aos seus generais des­
pojarem Qosqo de todo o seu ouro e sua prata. Sem viver na cidade desde a
infância, ele tinha pouco vínculo com da. Ele também disse aos seus homen;
para matarem Washkar, que eles ainda mantinham como prisioneiro; todos os
principais partidários deWashkar; e como já estavam com a mão na massa, to­
dos os irmãos sobreviventes de Ataualpa. Terminada a sua humilhante prisão,
Ataualpa parece ter acreditado, o terreno estaria limpo para o seu domínio.
Entre dezembro de 1532 e maio de 1533, caravanas de objetos preciosos
- jóias, esculturas refinadas, ornamentos arquitetónicos dirigiram-se em dorso
de lhamas a Cajamarca. Enquanto ouro e prata enchiam lentamente as salas,
todo o Tawantinsuyu parecia petrificado. É como se alguém entrasse no Kremlin
em 1950 e mantivesse Stalin sob a mira de uma arma, deixando a nação, ac0s­
tumada a obedecer ao tirano, totalmente desnorteada. Nesse Jnterim, os expec- .
tantes espanhóis, apesar do seu sucesso sem precedentes, ficavam cada vez mais
temerosos e desconfiados. Quando Ataualpa cumpriu a sua parte da barganha e o
resgate foi inteiramente pago, Pizarro fundiu rudo em lingotes e despachou para
a Espanha. Os conquistadores não cumpriram a sua parte do acordo. Em wz
libertar Ataualpa, eles o garrotearam. Depois, marcharam para Qosqo.
Quase que de uma só cajadada, apenas lG8 homens desfucharam um
golpe devastador no maior império da Terra. Com certeza, em parte alguma a
sua vitória estava nem perto de completa: batalhas enormes e sangrentas os
pecavam. Mesmo depois de os conquiStadores tomarem Qosqo, o império
reagrupou no interior, onde resistiu aos espanhóis por outros quarenta anos.
Contudo, a escala do triunfo de Pizarro em Cajamarca não pode ser negada.
Ele havia despachado uma força cinqUenta vezes maior do que a sua, recebido
o maior resgate jamais visto, e vencido !lma tradição culrural que havia perdu­
rado por cinco milênios - rudo isto sem sofrer sequer uma baixa.
,;
SOLO VIRGEM
Eu fiz U(lla pequena trapaça. A história inka acima é como os estudiosos con­
temporâneos a entendem. Eles discordam sobre que fatores sociais enfatizar .
e que peso atribuir a cada crónica espanhola individual, mas parece que não
:'j,'
14-91 - Novas revelações sobre as Américas antes de Colombb < 8,
há disputa séria sobre o plano geral. O mesmo n![o é verdade,sobre a minha
versão da conquista de Pizarro. Eu apresentei mais ólí menos,o relato corrente
quando Dobyns chegou ao Peru. Mas em suas leituras, ele descobriu uma
lacuna nesta versão dos aconrecimentos - um fator tão crítico que mudou
drasticamente a visão de Dobyus da América nativa.
Por que os ínka perderam? A resposta usual é que Pimrro tinha duas van­
tagens: aço (espadas e armaduras, espingardas e canhões) e cavalos. Os indios
lIão tinham armas de aço e nem anÍm.ais de montaria (as Ihamai são pequenas
demais para carregar um homem adulto). Eles tampouco conheciam a roda e o
arcobotante. Com tecnologia tão inferior, os tawantinsuyu não tinham nenhu­
ma chance. "O que [os ínka] podiam fazer contra aquele arsenal?", perguntou
John Hemming, o historiador da conquista. "Eles ainda lutavam na Idade do
Bronze," Os inkacontinuaram lutando após a morte de Ataualpa. Mas embora
chegassem a superar os europeus em número à razão de cem para um, eles sem­
pre perdiam. "Nenhum montante de heroísmo ou disciplina do exército inkd',
escreveu Hemming, "poderia igualar a superioridade militar dos espanhóis."
Porém, assim como as armas não determinaram o resultado do conflito
na Nova Inglaterra, o aço não foí o fator decisivo no Peru. É verdade, os antro­
pólogos há muito admiram-se de as sociedades andinas não terem produzido
aço. O ferro é abundante nas montanhas, mas os inka só raramente usavam
metal para algo útil. No final da década de 1960, Heather Lechtman, arqueó­
loga do Centro de Pesquisas de Materiais em Atqu~ologia e Etnologia do
MIT, h'tlgeriu a "um eminente esrudioso da pré-história andina que déssemos
uma olhada séria e cuidadosa na metalurgia andina. Ele respondeu: "Mas
não há nenhuma." Mesmo assim, Lechrrnan insistiu em pesquisar o assunto.
Ela descobriu que a metalurgia inka era, na verdade, tão refinada quanto a
metalurgia européia, mas tinha objetivos tão diferentes que os especialistas
acadêmicos sequer a reconheceram como tal.
Segundo l.echrrnan, os europeus buscavam otimizar "a dureza, a durabi­
lidade, a resistência e o corte dos metais". Os ínka, em contraste, valorizavam
"a plasticidade, a maleabilidade e a resistênciá'. Os europeus usavam o metal
pata fazer ferramenta,. As sociedades andinas o usavam principalmente como
slrnholo de riqueza, poder e afiliação comunitária. Os metalurgi'ta5 europeus
tendiam a criar objetos de metal despejando ligas fundidas dentro de moldes.
Tais fundições não eram desconhecidas pelos inka, mas as sociedades andinas
claramente preferiam nplhar o metal cm folhas finas, formar folhas em volta de
moldes, e soldar o resultado. Os resultados eram notáveis para qualquer padrão
- um delicado husto analisado por Lechrrnan tinha menos de 3 centímetros de
altum mas era feiro com 22 folhas separadas de ouro, esmeradamente unidas.

,o NA TERRA DOS QUA1'RO QUADRANTES
Se uma jóia ou o ornamento de um edifício devia proclamar o status do
seu proprietário, como os inka desejavam, então tinha de brilhar. Assim, os
reluzentes ouro e prata etam preferíveis ao baço ferro. Como o ouro e a prata
são demasiado flexíveis para manter seu formato, os metalurgistas andinos os
misturavam com outros metais, geralm@nte o cobre. Isto reforçava o metal
mas lhe dava uma feia coloração róseo-acobreada. Para criar a superfície dou­
rada luzidia, os ourives inka aqueciam a liga de cobre e ouro, o que aumenta a
taxa em que os átomos de cobre à superfície combinam-se com os átomos de
oxigênio no ar - fazendo o metal corroer-se mais rápido. Então, eles golpea­
vam o metal com malhos, fazendo soltar-se a fina camada de corrosão externa.
Repetindo este processo muitas vezes, eles removiam os átomos de cobre da
superfície do metal, criando um verniz de ouro quase puro. No fim das con­
tas, os inka acabavam com fortes folhas de metal que brilhavam ao sol.
As culturas andinas faziam ferramentas, é claro. Mas em vez de fazê-las
de aço, preferiam as fibras. A escolha é menos estranha do que pode parecer. A
engenharia mecinica depende de duas forças principais: compressão e tensão.
Ambas são empregadas na tecnologia européia, mas a primeira é mais comum
- o arcobotante é um exemplo clássico de compressão. Em contraste, o modo
inka era a tensão. "O que mantém a tfama dos têxteis é a tensão"," disse-me
William Conklin, do Museu do Têxtil em Washington, D: C. "E eles explora­
vam esta tensão com imaginação e precisão extraordinárias".
Na tecnosfera dos Andes, explicou Lechtman, "as pessoas resolviam pro­
blemas de engenharia manipulando fibras", e não criando e montando objetos
sólidos de madeira ou metal. Para fazer barcos, as culturas andinas teciam juncos
em vez de corrar árvores em forma de tábuas e pregá-las formando um conjunto.
Embora menores que as grandes naus européias, as embarcações inka não eram
feitas para navegar em poças; o primeiro encontro de europeus com o Tawantin­
suyu foi com um barco inka que navegava perto do equador, a 300 milhas do seu
porto de origem, sob uma carga de velas de fino algodão. Ele tinha uma tripula­
ção de vinte membros e era fàcilmente do tamanho de uma caravela espanhola.
Celebremente, os inka usavam cabos de 30 centímetros de diâmetro para cons­
truir pontes suspensas através de gargantas nas montanhas. Como a Europa não
tinha pontes sem suportes por baixo, inicialmente elas aterrorizaram os homens
de Pizarro. Depois, um conquistador garantiu aos seus conterrineos que podiam
cruzar aquelas invenções inka "sem ficar em perigo".
Os têxteis andinos eram tecidos com grande precisão - as roupas da
elite podiam ter uma trama de 180 fios por centímetro - e estruturados em
camadas elaboradas. Os soldados usavam armaduras de pano acolchoado mo­
delado que eram quase tão eficientes em proteger o corpo quanto a armadura
, ...:..
<'o
1491- Novas revelações ~obre as Américas antes de Colombo'
"
?
européia, e muito mais leves. Depois de experimentá-las,. os cOnquistadores
livraram-se dos seus peitorais e capacetes e passaram a vestir-se como a infan­
taria inka quando lutavam.
Ainda que os soldados andinos carregassem arcos, lanças, clavas e por­
retes, a sua arma mais temível, a funda, era feita de tecido. A funda é u~a
pequena bolsa de tecido ligada a duas correias.' O atirador põe uma pedra
ou um projétil de metal na bolsa, pega as cordas pela extremidade livre, gira
por sobte a cabeça umas poucas vezes e solta uma -das correias no momento
apropriado, fazendo o arremesso. Um perito podia lançar tima pedra, escre­
veu o aventureiro espanhol Alonso Entiquez de Guzmán, "com tanta força
que podia matar um cavalo ... Eu vi uma pedra, assim lançada de uma funda,
partir em dois pedaços uma espada na mão de um homem a trinta passos de
distância". (Fazendo experiências com uma funda estilo andino de 1,50 metro
e uma pedra do tamanho de um ovo em meu jardim, eu fui capaz, segundo os
meUs cálculos aproximados, de lançar a pedra a mais de 160 quil6metros por
hora. Minha mira, porém, foi terríveL)
Numa inovação assustadora, os inka aqueciam pedras nas fogueiras dos
seUS acampamentos até ficarem incandescentes, as envolviam em algodão em­
bebido em piche, e as arremessavam contra seus alvos. O algodão pegava fogo
em pleno ar. Num súbito e intenso ataque, choviam misseis incendiários. Du­
rante um contra-ataque em maio de 1536, um exército inka usou esses misseis
para incendiar e destruir a Qosqo ocupada pelos espanh6is. Impossibilitados
de saírem, os espanhóis se esconderam em abrigos sob uma barragem impla­
cável de semanas de pedras em chama. Em vez de retirarem-se, os espanhóis,
tão bravos quanto eram gananciosos, lutaram até o fim. Num último contra­
ataque desesperado, os europeus arrancaram a vitória.
Os cavalos foram mais decisivos do que o aço para a vitória de Pizarro. O
maior animal nos Andes no tempo dos inka eta a lhama, que tipicamente pesa
. cerca de 130 quilos. Quatro vezes mais pesados, os cavalos representavam uma
profunda e terrivel novidade. Acrescente-se a isto o choque de observar seres
humanos de algum modo montados em seus dorsos como figuras meio bestiais
de um pesadelo, e será possível imaginar o desalento provocado pela cavalaria
de Pizarro. A infantaria inka teve não só de superar a sua estupefação inicial,
mas seus líderes tiveram que reinventar as suas tácicas militares no meio de uma
invasão. Tropas montadas eram capazes de se deslocar em velocidades jamais
observadas no Tawantip.suyu. "Mesmo quando os indios estabeleciam postos
avançados", observou Hemming, "a cavalaria espanhola podia ultrapassar as
senti!J.elas quê corriam de volta para avisar do perigo." Em confronto após con­
fronto, "os temido""s cavalos se mostraram invendveis". Cavalos, porém, não são
9' NA TERRA DOS QUATl\.O QUAOl\.ANl'ES
Os conquisrndores fiariam
poUCO das íngremes estradas
inú porque tinham sido
projetadas para as paras seguras
das lhamas, em vez de para
cavalos. Mas elas et<lm muito
bem c:onstruícla<; esta estrada,
fotografada n. déc,<L, de 1990.
dwou mais de quinhentos anos
sem qualquer manutenção.
inerentemente invenciveis; os inka simplesmente não descobriram com rapidez
bastante onde tinham uma vantagem: nas suas estradas.
Estradas ao estilo europeu, projetadas tendo em mente cavalos e carros,
têm o nivelamento como vittude; para subir uma colina, usam o ziguezague
para tornar o caminho tão horizontal quanto possíveL As estradas inka, em
contraste, supunham o uso das lhamas. As lhamas preferem o frio das grandes
alritudes e, à diferença dos cavalos, sobem e descem degraus prontamente.
Resulta que as estcidas inka evitavam o fundo dos vales e usavam longas es­
cadarias para subir colinas íngremes dírctamcnte - brutais para os casdls dos
cavalos, como amiúde queixaram-se os conquistadores. Atravessando os con­
trafortes de Cajamarca, o irmão mais novo de Francisco Pizarro, Hernando,
lamentou que o caminho, uma perteita estrada inka, fOsse "tão ruim" que os
espanh6is "não podiam usar cavalos ... nem mesmo com destreza'. Em vez dis­
so, os conquistadores tinham que desmontar e conduzir os seus relutantes ani­
mais pelos degraus. Neste ponto eles eram vulneráveis. O dia já ia avançado
1491- Novas revelaçõ~ .~obre a.~ Américas anteR de Colombo-1 93
quando os soldados inka aprenderanl a esperar: no alto e. empurrar: matacães
sobre seus inimigos, matando alguns dos animais e assustancdo outros, fuzert­
do-os fugir. Os homens que ficavam para trás podiam ser ahatidos sem pressa.
Essas emboscadas custaram a vida de muitos soldados e cavalos espanh6is.
De fato, cavalos conferem uma vanragem em terreno planoc Mesmo nas
planícies, porém, os inka podiam. ter vencido. Soldados a pé venceram fre­
qüentemente por grande margem tropas montadas. Na batalha de Marato­
na em 490 a.c., interior em número e em armadüras, a infantaria ateniense
destruiu a cavalaria do imperador persa Dario r. Mais de 6 mil pérsa.s morre­
ram; os gregos perderam menos de dU7.entos homens. Inicialmente, a situação
pareceu tão lúgubre que, antes da batalha, Atenas enviou uma mensagem a
Esparta, sua rival odiada, pedindo ajuda. Na maratona original, o mensageiro
correu mais de 160 quilômerros em dois dias para entregar sua mensagem.
Quando os reforços espartanos chegaram, já não havia mais nada para ver,
elOCeto cadáveres persas.
As perdas inka não foram predeterminadas. Seus militares eram estorva­
dos por um culto à personalidade em torno dos seus generais deificados, o que
significava tanto que seus líderes não eram fucilmente suhstituídos quando
morros ou capturados, quanto, por outro lado, que a inovação nas patentes
interiores não era estimulada ..E o exército nunca aprendeu a agrupar suas tro­
pas em formações cerradas, como fizeram os gregos em Maratona, formando
massas humanas que literalmente podem confrontar sem temor uma cavala­
ria. Não obstante, na época do sitio de Qosqo, os inka tinham desenvolvido
uma eferiva rática anticavalaria: bolas. As bolas inka consistia em três pedras
amarradas em cxten5ÓeS de tendão de lhama. Os soldados as arremessavam, as
pedras girando. contra os cavalos em carga. As armas se entoscavam nas paras
dos animais, derrubando-os, para depois serem morros por salvas de projéreis
de funda. Tivessem as bolas ocorrido em assaltos em massa coordenados em
vez de serem usadas por s~Idados isolados quando achavam oportuno, Pizarro
podia hem ter encontrado um rival à altura.
Se não toi a tecnologia nem a cavalaria, o que derrotou os inkdl Como eu
disse, uma parte da culpa deve acumular-se sohre a centralização excessiva da es­
trutura inkade comando, um problema que afligiu exércitos cm todos os tempos.
Porém, outra parte da resposta, muito maior do que esta primeira, foi dada pela
primeira vez com firmeza por Henry Dobyns. Durante as suas leil:ll!llS extracurrÍ­
culares no Peru, ele en~ontrou uma passagem de Pedro Cier.a de León, O viajante
espanhol que observou a existência de três estradas entre duas mesmas cidades.
Attehatado pela primeira exihição das presas de guerra inka na Espanha, Cieza de
Le6n cn17ara o A'tIântico ainda adolescente e passara 15 anos no Peru, na Bo!fvia.

94 NA TERRA DOS QUA'rRO QUADRANTES
no Equador c na Colômbia, viajando, lutando e tomando notas para o que se
tomaria uma pesquisa maciça de três vohunes sobre a região. Somente a primeira
parte foi publicada cm vida, mas os historiadores do séCltlo XX "l1contraranl e
publicaram a maior parte do r"''''nte. Dobyns descobriu algo em Cieza de León
que náo fura mencionado na bistória de Presam, no volume smitbsoniano oficial
Handbook ofSouth American lndúms [Manual dos indios sul-americanos], e nem
em nenhluna das descríções-padtán do Tawantinsuyu. Segundo Cieza de León,
Way:lla Qhapaq, pai de Ataualpa, morreu quando "eclodiu urna grande epidemia
de varíola [em 1524 ou 1525], tão severa que houve mais de 200 mil mortes, pois
a doença se espalhou para todas as partes do reino".
A varíola não matou apenas Way:na Qhapaq, mas o seu filho e sncessor
designado - e seu irmão, seu tio e sua esposa-irmã. Os principais generais
e grande parte da oficialidade morreram, escreveu o cronista inka Santa­
cruz Pachacuti Yamqui Salcamay:bua, "com seUs rostos coberros de feridas".
O mesmo aconteceu com OS dois regenres deixados em Qosqo por Way:·
na Qhapaq para administrar o império. Depois que o moribundo Wayna
Qhapaq trancou-se para que ninguém pudesse ver o seu rosto pustulento,
relatou Salcamayhua, ele foi visitado por uma terrível visão noturna. Em seu
sonho, "milhões e milhões de homens" o cercavam. O inka perguntou quem
eles eram. "Somos as almas dos perdidos", respondeu-lhe a multidão. Todos
"morreriam da , todos e cada nm deles.
A história é provavelmente ap6ctifa, mas não a sua importância. A va­
riola tem um período de incubação de cerca de 12 dias, durante os quais
os conraminados, que podem não saber que estão doentes, podem infectar
todos com qnem se encontrarem. CÁlm suas bO:lB estradas e grandes movi­
mentos populacionais, o Tawantinsuy:u estava perfeiramente posicionado para
disseminar uma epidemia de gtande porte. A varíola se irradiou pelo impé­
rio como tinta a espalhar-se sobre papel. Milhões de pessoas experimentaram
simultaneamente os seus sintomas: febre alta, vómito, dores fortes, erupções
pustulentas por todo o corpo. Incapaz de contar as perdas, o jesuíta Martín de
Murúa disse que o preço foi de "infinitos milhares".
Acredita-se que o vírus da varíola tenha evoluído de um vírns animal que
causa a variola bovina; de nm vírus hoje extinto causador da varíola eqüina; ou
talvez, mais provavelmente, do vírus da varíola do camelo, que afera () camelo,
como sugere o nome. As pessoas que sobrevivem à doença tornam-se imnnes.
Europa, o vírus era uma presença tão constante que a maioria dos adultos
era imune. Como o Hemisfério Ocidental não tinha vacas, cavalos ou came­
los, a variola não teve chances de nele evoluir. Os Índios nunca tinham sido
expOStOS à doença - eram, no jargão epidemiológico, "solo virgem" .
1491 Novas revelações sobre as Arnericits antes de Colombo '-
"
As taxas de mortalidade da varíola em solo virgem são difkeis de estabe~
leeer, poi, os objetos de pesquisa mais potenciais foram vacinados no século
passado. Porém, um estudo de 7 mil casos de varíola em não vacinados na
India meridional no começo dos anos 1960 descobriu que a doença matou
43% das suas vítimas. Observando a extrema vulnerabilidade das populações
andinas eles sequer sabiam da necessidade de colocar as vítimas em quaren­
tena, como faziam os europeus -, Dobyns projetou uma hip6rese de" que a
população do império "pode ter sido reduzida à metade durmte a epidemia".
Em cerca de três anos, isto quet dizer, pelo menOs uma pessoa em duas terá
morrido no Tawantinsu)'U.
Os custos bummos e sociais estão além de qualquer medida. Traumas
tão esmagadores dilaceram os laços qne mmtêm a cultura integrada. A epi­
demia que assolou Atenas em 430 a.c., relatou Tucídides, envolveu a cidade
num "alto grau de ilegalidade". As pessoas "perderam o respeito por tudo, o
sagrado e o profano". Aderiram a seitas extáticas e permitiram que refugia­
dos doentes prof.l.l1assem os grandes templos, onde morriam desassistidos.
Mil anos depois, a Peste Negra abalou as fundações da Europa. A rebelião
de Martinho Lutero contra Roma foi uma neta da peste, bem como o ami­
semitismo moderno. Os campos dos proprietários de terra foram esvaziados
pela morte, forçando-os ou bem a aumentarem a carga de trabalho dos cam"
poneses ou entáo a pagarem mais para atrair outra mão-de-obra. Ambas as
soluções levaram a inquietações sociais: a jaqueria (Frmça, 1358), a revolta
de Ciompi (Florença, 1378), a revolta dos camponeses (Inglaterra, 1381),
a rebelião catalã (Espmha, 1395), e dúzias de breves irrupçães nos Estados
alemães. Será necessário explicitar que sociedades atoladas no caos fratticida
são vulneráveis à conquista? Para emprestar um ttopo do historiador A1fred
Crosby, se Gengis Khan tivesse chegado junto com a Peste Negra, este livro
não seria escrito numa língua européia.
Quanto ao Tawancidsu)'U, a varlola acabou com Wayna Qhapaq e sua
corte, o que levou a uma guerra civil com os sobreviventes disputando o espó­
lio. Os soldados que morreram na batalha entre Ataualpa e Washkar foram tão
vítimas da varíola quanro os que morreram por causa do vírus.
A ferocidade da guerra civil foi exacerbada pelo impacto da epidemia
sobre uma instimição peculiarmente andina: as múmias reais. Os membros
das sociedades andinas viam a si mesmos como pertencentes a linhagens fumi­
Iiares. (Os europeus ~bém o faziam, mM a linhagem era mais impottante
nos Andes; a comparação cultural pop pode ser O senhor dos anéis, romance em
qne. os persónagens se aptesentam como "X, filho de Y' ou "A, da linhagem
B".) Linhagens reais, chamadas panoqa, eram especiais. Cada novo imperador

,6 NA TERRA DOS QUATRO QUADP.ANTJ1S
nascia numa panaqa, claro, mas CfíaV{l uma nova quando tomava a franja. A
esta nova panaqa pertenciam o imperador e suas esposas e filhos, juntamente
com os seus serviçais e conselheiros. Quando o lnka morria, a sua panaqa
mumificava o seu corpo. Como acreditava-se que o lnka fosse uma divindade
imortal, a sua mumifi~o era tratada, com uma cerra lógica, como se ele
ainda e.mvesse vivo. Logo depois de chegar a Qosqo, o companheiro dc Pi­
:z:arro, Miguel de E<tere, viu uma verdadeira parada de imperadores defuntos.
Eles eram trazidos para fora em liteiras, "sentados em seus tronos e cercados
por pajens e mulheres com espanta-moscas nas mãos, servindo-os com tanto
respeito quanto se estivessem vivos".
Como as múmias reais não eram consideradas mortas, seus sucessores
obviamente não podiam herdar a sua riqueza. Cada panaqa do lnka retinha
todas as suas possessões para sempre, inclusive seus palácios, residências e
santuários; todas as suas roupas remanescentes, utensílios de mesa, aparas
de unhas e pedaços de cabelo; e o imposto das terras que ele houvesse
conquistado. Em conseqüência, conforme compreendeu Pedro Pizarro, "a
maior parte do povo, do tesouro, das despesas e dos vícios [de Tawan­
tinsuyu] estavam sob o controle dos mortos". As múmias falavam através
de mulheres mcdiúnicas que representavam os cortesãos sobreviventes da
panaqa ou os seus descendentes. Com quase uma dúzia de imperadores
imortais trocando empurrões para encontrar posição, a sociedade inka de
alto nível era caracterizada por opulentas intrigas políticas, de uma escala
que teria feito a delícia dos Médici. Emblematicamente, Wayna Qhapaq
não pôde construir a sua própria vila em Awkaypata- seus ancestrais mor­
tos-vivos tinham usado todo o espaço disponível. A sociedade inka tinha
um sério problema: múmias.
Depois que a varíola varreu grande parte da elite política, cada panaqa
tentou ocupar o vácuo, atiçando as paixões da guerra civil. Diferentes mú­
mias de épocas diferentes apoiavam diferentes pretendentes ao trono itlka.
Depois da vitória de Ataualpa, a sua panaqa tirou a múmia de Thupa Inka
do seu palácio e queimou-a fora de Qosqo - queimou-a viva, por assim
dizer. E depois Ataualpa instruiu seus homens a tomarem o ouro para o seu
resgate de tantas possessões quanto possível de outra panaqa inimiga1' a da
múmia de Pachacuti.
A panaqa de Washkar manteve a 'guerra civil mesmo após a sua morte
(ou, melhor, da sua não-morte). Enquanto Ataualpa estava na prisão, a pa­
naqa de Washkar enviou um dos seus irmãos mais novos, Thupa Wallpa, a
Cajamarca. Num encontro sub-reptício com Pi:z:arro, Thupa Wallpa procla­
mou que era ele o herdeiro legítimo de Wasbkar. Pizarro o escondeu cm seus
.'" .
1491-- Novasrevelações sohre á8Amé:tica,~ mte.s de Colomh? . ~ 97
próprios domínios. Pouco depois, o senhor de Cajamarca, que .havia apoiado
Washkar na guerra civil, disse aos espanhóis que o exército deAtaualpa estava
cm marcha, com dezenas de milhares de homens. Seus generais planejavam
atacar Pizarro, disse ele, e libertar o imperador. Ataualpa negou a acusação,
honestamente. ,Pizarro, contudo, ordenou que ele fl)Sse amarrado. Alguf!S .;­
panhóis mais simpáticos a Ataualpa pediram para investigar. Pouco depois
que eles salram, dois itlka correram a Pizarro, afirmando que tinham iJ,càbado
de fugir das tropas invasoras. Pizarro convocou às pressas um'tribunal militar,
que logo sentenciou o Inka à morte - sendo a teoria, evidentemente, de que
o exército que se aproximava não atacaria se o seu líder estivesse morto. A ex­
pedição espanhola retomou tarde demais para relatar que não havia nenhum
exército inka em movimento. Thupa Wallpa saiu do esconderijo onde estava
e recebeu a franja como novo !nka.
Segundo John Rowe, arqueólogo de Berkeley, a execução resultou de
uma conspiração entre Pizarro, Thupa Wallpa e o senhor de CAjamarca.
Livtando-se de Ataualpa e usando Thupa Wallpa, argumentou Rowe, Pi­
zarro "tinha trocado um refém contrariado por um amigo e aliado", Na
verdade, Thupa WaUpa jurou abertamente obediência à Espanha. Para
ele, o juramento era um pequeno preço a pagar; ficando do lado de Pi­
=ro, a panaqa de Washkar "que tinha perdido tudo, 'teve outra chance".
Evidentemente, o novo Inka esperava retornar com Pizarro para Qosqo,
onde poderia ser capaz de conduzir o Estado. Depois disso, talvez pudesse
destruir os espanhóis.
A caminho de Qosqo, Pizarro encontrou a sua primeira resistência
importante perto da cidade fluvial de Hatun Xauxa, que fora conquistada
pelo exército de Ataualpa durante a guerra civil. A mesma força tinha re­
tornado ao local para combater os espanhóis. Mas o plano de exército do
Inka de queimar a cidade e impedir que os invasores atravessassem o rio foi
• frustrado pelo populacho nativo xauxa e wanka, que há muito se ressentia
do império. Eles não só combateram o Inka, como seguíram o velho adá­
gio segundo o qual o inimigo d6 meu inimig~ é meu amigo, e forneceram
suprimentos a Pizarro.
Depois da batalha, Thupa Wallpa morreu subitamente tão rápido que
muitos espanhóis suspeitaranl que tivesse sido envenenado. O principal sus­
peito foi Challcochima, um dos generais de Amualpa, que pi:z:arro havia cap­
turado cm Cajam.rca !" trouxera em sua expedição a Qosqo. Challcochima
pode não ter matado Thupa Wallpa, mas certamente usou a sua morte para
conv~ncer Pizarro de que o prÓ!!:imo Inka devia ser um dos filhos de Ataual­
pa, e não alguém 'associado a Washkar. Nesse ínterim, a parlaqa de Washka.r
 1491 -- Novas TIwelações sobre as Américas antes de. Colombo ~ 99
98 NA TIfRRA DOS QUATRO QUliDRAN'l'f:S

enviou um ourro irmão, Manqo Infa. Ele prometeu que se fosse escolhido
para suceder Thupa Wallpa, FMia o mesmo juramento de obediência à Espa­
nha. Em tf(}{;a, pediu a Pi2arro para matar Challcochima. Pizarro concordou
e queimou Challcochima publicamente, na maior pra~-a da cidade seguinte a
que chegaram. Depois, seguiram viagem até Qosqo.
Para Dobyns, a moral da história estava clara. Os inka, escreveu ele em
seu anigo de 1963, não foram derrotados pelo aço e pelos cavalos, mas pela
doença e o facciosismo. E nisto ele estaVa ecoando,", conclusões tiradas sé­
culos antes por Pedro Pizarro. Se Wayna Qhapaq estivesse "vivo quando os
espanhóis entraram na sua terra ~ observou o conquistador, ((para nós teria
sido impossível ganhar... E do mesmo modo, se a terra não estivesse dividida
pelas guerras [civis induzidas pela variola], nós não teríamos sido capazes de
entrar e conquistar a terra".
As paJ.avras de Pizarro, compreendeu Dobyns, aplicavam-se além do
Tawantinsuyu. Ele estudou os registro, de geografia tanto no Peru como
no sul do Arizona. Em amhos os lugares, como na Nova Inglaterra, a do­
ença epidêmica chegou antes dos primeiros colonizadores bem-sucedidos.
Quando os europeus chegaram de verdade, as culturas alquebradas e frag­
mentadas não puderam unir-se para resistir à incursão. Em v~'Z disso, de­
terminado grupo, acreditando que estava prestes a perder a luta pelo poder,
aliava-se aos invasores para melhorar a sua posição. A aliança freqüente­
mente foi bem-sucedida, no senlido de que o grupo obtinha a vantagem
desejada. Mas em geral o seu sucesso era temporário, a cultura como um
todo sempre perdendo.
Entre os séculos XVI e XVIII, este padrão ocorreu reiteradamente nas
Américas. Trata-se de uma espécie de narrativa-mestra da história pós-con­
tato. Na verdade, os europeus perderam rotineiramente nas oportunidades
em que não puderam tirar partido da doença e da fragmentação política.
Embora as sociedades anilinas tenham sido golpeadas pela doença e pela exploração econ6~
Os conquistadores tentaram tomar a Flórida uma meia dúzia de vezes entre mlca desde a chegada dos europeus. a trJ:dição indígena permaneceu forte o bastante para
1510 e 1560 - e fracassaram a cada Vez, Em 1532, o rei João III de Portu­ que este vendedor de chicha de Cuzco. Íorografado por~Charllhl em 1921) não parece.,..e
g-.ll dividiu a costa do Brasil em 14 capitanias e enviou colonizadores para extraordinário nos dias doswa.
cada uma delas. Em 1550, somente dois assentamentos sohreviviam. Os
franceses mal conseguiam sustentar postos comerciais em St. Lawrence, e 1990 foi apenas a mais recente batalha de uma guerra colonial episódica que
sequer tentaram plantar a sua handeira na Nova Inglaterra pré-epidêmica. começou no século XVI.
Os microrganismos eutopeus foram lentus em penetrar na península"\:le Yu­ Tudo isso foi importante, matéria das discussões de historiadores e das
catán, onde a m-aioria das comunidades políticas organizadas maias eram dissertações de doutorado, mas Dohyns estava pensando em algo mais. Se Pi­
demasiado pequenas para interagirem prontamente, umas contra as outras. zarro ficou impressionádo com o tamanho do Tawantinsuyu depois da epide­
Em conseqüência, a Espanha nunca subjugou verdadeiramente os maias. mia e guerra terríveis, quantas pessoas hão de ter vivido lá, para começar? Além
A rebelião zapatista que convulsionou o México meridional na década de dissO, qual era a população do Hemisfério Ocidental em 14911

,cc NA TltR1tA DOS QUA1'l\O QUAVltANI'ES
UMA PROGRESSÃO ARITMETlCA
Wayna Qhapaq morreu na primeira epidemia de varíola. O vírus atingiu o
'Jàwantinsuyu outras vezes cm 1533, 1535, 1558 e 1565. A cada vez> as con­
seqüências foram além da imaginação da nossa afortunada era. "Eles morriam
em grande número> às centenas", le!:f1brou-se uma testemunha ocular do surro
de 1565. "Povoados eram despovoados. CAdáveres juncavam os campos ou se
amontoavam nas casas e cabanas ... Os campos deixaram de ser cultivados; os
rebanhos fOram abandonados [eJo preço do alimento subiu tanto que muitas
pessoas o consideravam além do seu alcance. Eles escaparam da doença infa­
me, mas apenas para perderem-se pela fOme." Além disso, o 'Iawantinsuyu foi
invadido por outras pestilências européias, às quais os índios eram igualmente
suscetíveis. TifO (provavelmente) em 1546, ínfluenza em 1558 Qumamcnte
com a varíola), difteria em 1614, sarampo em 1618 todas despedaçando os
restos da cultura inka. Tomadas em conjunro, pensava DobyllS, as epidemias
devem ter matado nove entre dez h:alJitantes do Tawantinsuyu.
Dobyns não foi o primeiro a chegar a esta hortível conclusão. Mas ele foi o
primeiro a juntá-la com o fato de a visita da varíola ter-se dado antes de qualquer
pessoa na América do Sul ter sequer visto um europeu. A fonte mais provável
do vims, compreendeu Dobyns, fOi o Catibe. Há registros do surgimento da va­
ríolana ilha de Hispaniolaem novembro e dezembro de 1518. A doença marou
um terço da população nativa antes de viajar para Porto Rico e para Cuba. Os
espanhóis, expostos ao vírus na ínfllncia, em sua maioria eram imunes. Durante
a conquista do México por Hemán Cortés, uma expedição conduzida por Pán­
filo de Narváez desembarcou em 23 de abril de 1520, perto do que hoje é Ve­
racruz. Segundo vários relatos espanhóis, a força incluía um escravo africano de
nome Francisco Egu/a ou Baguía, que estava com varíola. OUltOS relatos dizem
que os transmissores foram Os índios cubanos que Narváez tinha trazido como
auxiliares. Em todo caso, alguém trouxe o vírus - e infectou o hemisfério.
A doença correu até Tenochtitlán, ptincipal cidade dos mexica (astecas),
onde devastou a metrópole e depois o restante do império. A partir de lá,
Dobyns descobriu, os relatos coloniais mostram a variola jogando amareli­
nha através da América Central rumo ao Panamá. Naquele ponto, ela estava
apenas a uns poucos quilómetros da fronteira inka. Aparentemenre, o vims
cromu o fOsso, com conseqüências catastróficas. ' ..
E Dobyns seguiu adiante. Ao chegarem ao Hemisfério Ocidental, argu­
mentou ele, os micróbios se disseminaram, a parrir das costas antes visitada,
pelos europeus, para as áreas povoadas do interior, que nunca tinham visto uma
pessoa branca. Os escritores coloniais sabiam que a doença lavrou o solo virgem
..... :-­
1491 .- Novas revelações sobre as Américas antes de Colombo <
'0'
das Américas um número incontável de ve7.cs no século XVI. Mas o que não
sabiam, e não podiani tet sabido, é que,' das áreas limitadas ,que eles visitavam,
a epidemia disparou sua., medonhas flechas para todos os,cantos do hemisfério,
semeando a destmição em lugares que janlais apareceram no registro histórico
europeu. Conseqüentemente, os primeiros brancos a e:çplorar muitas partes
das Américas teriam encontrado lugares quejd estavam despovoados.
Resulta, disse DobJllS, que todas as estimativas coloniais de população
eram demasiado baixaB. Muitas delas, compiladas logo depois de epidemias,
teriam apresentado nadires populacionais, não aproximações dos números pré­
contato. A partir de lIDS poucos incidentes em que os totais de antes e depois são
conhecidos com relativa certeza, Dobyns calculou que, nos primeiros 130 anos
de contato, cerca de 95% da população das Américas morreu. Para estimar os
números nativos antes de Colombo, é preciso multiplicar os números do cellSO
da época por um fator de vinte ou mais. Os resultados obtidos por este procedi­
mento fOram, pelos padrões hist6ricos, surpreendentemente altos.
Os historiadores sempre se perguntaram quantos índios viviam nas Amé­
ticas antes do contato. "Debatida desde a tentativa de censo parcial de Co­
lombo em Hispaniola em l496", escreveu Denevan, o geógrafu do Beni, "a
questão continua sendo uma das grandes indagações da histÓria." O minimo
que se pode dizer sobre os números dos primeiros pesquisadores é que foram
infOrmalmente apurados. "A maioria não era sequer estimativa grosseira", dis­
se-me Denevan. "Nenhuma estimativa estava envolvida» O primeiro cálculo
aproximado mais cuidadoso da população indígena SÓ foi publicado em 1928.
James MoonC)l ilustre etnógrafo da Smithsonia Institution, passou pente-fino
em escritos coloniais e documentos governamentais e concluiu que, em 149l, a
América do Norte tinha 1,15 milhão de habitantes. Alfi:ed L. Kroeber, renama­
do antropÓlogo de Berkeley, desenvolveu o trabalho de Mooney nos anos 1930.
Kroeber reduziu a conta ainda mais, para 900 mil almas - urna densidade pOptl­
. lacional de menos de unia pessoa para cada 16 quilômetros quadrados. Apenas
8 milhões e 400 mil índios viveram em todo o hemisferio, sugerin Kroeber.
Reconhecendo que sua estimativa continent:..t não levava em considerd.ção
as variações regionais, Kroeber estimulou futuros estudiosos a procurarem c ana­
lisarem "evidências documentais marcadamente localizadas". Como sabemos>
alguns dos seus colegas de Berkeley já estavam fuzendo essas análises. O geógrafo
Carl Sauer publicou a primeira estimativa modema da população pré-colom­
biana do noroesre do México em 1935. Enquanto isso, o fisiologista Sherburne
E Cook investigou as cónseqüências de doenças na mesma área. Em meados da
década de 1950, Cook juntou mrças com Woodtow W. Borah, historiador em
BerJreley. Numa série de publicações que se estendeu até os anos 1970, os dois

'0' NA T1:RRA DOS QUATllO QUAOTlANTF$
homens examinaram detalhadamente os recenseamentos e registtos financeiros
e de terra coloniais. Os seus resultados deixaram Kroeher apreensivo. Quando
Colombo desembarcou, concluiram Cook e Borah, s6 o planalto central mexica­
no tinha uma população de 25,2 milhões de habitantes, Em contraste, Portugal
eb:"panha somadas tinham menos de 1O milhões de hahitantes, A parte central
do México, díssetam eles, era o lugar mais densamente pOV1Yado do planeta, com
mais de duas vezes a população por qÜilômetro quadrado da China ou da Índia.
"Não obstante, historiadores e antrop6logos não pareciam estar prestan­
do muita atenção" em Cook e Borah, escreveu Dohyns. Anos mais tarde, O
seu trabalho, associado com os de Denevan, Crosby e Willíam H. McNeill,
finalmente os fez perceber. Baseado no trabalho ddes e no seu próprio, Do­
byns argumentou que a popuiação índia em 1491 situava-se entre 90 e 112
milhões de habitantes. Outra maneira de dizê-lo é que, quando Colombo fez
a travessia, havia mais gente vivendo nas Américas do que na Europa.
Segundo uma estimativa de 1999 das Nações Unidas, a população da
Terra no começo do século XVI setia de cerca de 500 milhões de pessoas.
Se Dobyns estiver cerro, a doença reclamou as vidas de 80 a 100 milhões de
índios no primeiro terço do século À'VIL Todos esses números são, no melhor
dos casos t aproximações rústicas, ma.."i a.."i sUas implicações são muito claras; a
epidemia terá matado cerca de um em cada cinco habitantes do planeta. Se­
gundo W. George Lavell, ge6grafo da Queen's University, de Ontário, foi "a
maior destruição de vidas da história humana"
Dobyns publicou as suas conclus6es na revista Current Anthropology
[Antropologia atual] em 1966. Elas engendraram réplicas, conferências, até
mesmo livros inteiros. (Denevan organizou um: The Native PopulatiQn the ui
Americas in 1492 [A população nativa das Améticas em 1492].) "Eu sempre
me senti culpado em relação ao impacto do meu anigo na CurrentAnthropolo­
gy", disse-me Dobyns, "pois pensava, e continuo pensando, que Cook, Borah
e Sauer já tinham dito isso, já tinham publicado, mas as pessoas não estavam
escutando. Para &lar a verdade, cu continuo perplexo com a reação. Talvez
fosse a época nos anos 1960, as pessoas estavam preparadas para ouvir."
Para ouvir e atacar. As projeções populacionais de Dobyns furam ra­
pidanleme consideradas como politicamente motivadas - autoflagelação de
liheral branco com sentimento de culpa ou, pior, um empurrão para ínflacio­
nat as cobranças ao imperialismo pela massa antiamericana. "Não há,dúvida
quanto a isso, havia pessoas que queriam números mais altos", contou-me
Shepard Krech III, antrop61ogo na Brown. Essas pessoas, disse ele, vibraram
quando Dobyns revisitou o tema num livro de 1983, Theír Number Become
Thinned [O número deles diminuiu], e revisou as estimativas para cima.
- .,.:"'",,;
1491 -Novas revelações sobre asAméric~ antes de Colombo < '03
Talvez O critico mais veemente tenha sido David Henigi:, bibli6grafo
de estudos africanos e do Oriente Pr6ximo na Universidade de Wisconsin,
cujo livro, Numbers from Nowhere [Números de lugar nenhum], puhlicado
em 1998, é um marco da literatura da d'ifamação da demografia. "Suspeito
em 1966, não é menos suspeito hoje em dia", as,im Henige acusou o trabalho
de Dobyns. "Na verdade, até pior." Henige entrou por acaso num seminário
sobre demografia índia dado por Dencvan em 1{)76. Ele teve um "momento
epífuno" quando leu que Cook e Borah tinham "descoberto" a existência de 8
milhões de pessoas em Hispaniola. Será possível inventar milhões de pessoas?,
perguntou-se. "Podemos entender, do registro histórico, que houve despovoa­
metltO e movimento de pessoas em função de guerra., e doenças", disse-me ele.
"Mas as quantidades, quem há de saber? Quando a gente começa a quantificar
coisas desse tipo .- aplicando números elevados como 95% - acaha dhendo
o que não deveria dizer. O número implica um nível de conhecimento que é
impossível."
Os ativistas índios rejeitam esta 16gica. "A gente sempre ouve os brancos
tentando minimizar o tamanho das populações abodgines que seus ancestrais
pessoalmente deslocaram", segundo Lenore Stiffarm, etnóloga da Universida­
de de Saskatchewan. Na opinião dela, descartar o impacto das doenças é sim­
plesmente uma maneira de reduzir a população original das Américas. "Oh,
havia umas poucas pessoas lá, e as doenças mataram algumas delas, então
quando n6s chegamos, elas já tinham quase todas morrido." Quanto menor o
número de índios, disse ela, mais fácil é considerar o continente vazio e, por­
tanto, pronto para ser arrebatado. "É perfeitamente aceitável ir para uma terra
desocupada", disse-me Stiffarm. "Para uma terra com uns poucos 'selvagens',
é a opção que vem logo depois."
Quando H enige escreveu Numbers frorn Nowhere, a disputa sohre a po­
pulação pré-colombiana já havia consumido florestas inteiras de papel - s6
. a hiografia dele lem noventa páginas. Quatro décadas depois da publicação
do artigo de Dohyns, seus colegas "ainda estãoJutando para sair da cratera
que seu ensaio abriu na antropologia", segundo James WIlson, autor de Their
Earth Shal! \%ep [Sua terra há de chorar], Uma hist6ria dos povos indígenas
norte-americanos após a conquista. A disputa não dá sinais de arrefecer-se.
Em parte, isto se deve ao fascínio inerente do tema. Mas também ê devido à
compreensão crescente do quanto está em jogo.