You are on page 1of 17

As sensibilidades jurídicas dos ativistas da luta antirracista e a Lei Caó

(7716/89)

Rosiane Rodrigues de Almeida 1

Resumo: O objetivo deste artigo é o de propor uma reflexão acerca das práticas do Estado diante
da utilização e aplicação da Lei 7716/89 (Lei Caó) – específica para casos de discriminação racial
e religiosa, consideramos as sensibilidades jurídicas relativas às demandas por reconhecimento de
direitos capitaneadas pelos ativistas do Movimento Negro carioca. Em certa medida, verificamos
que a luta antirracista tem se desdobrado no enfrentamento à intolerância religiosa perpetrada às
religiões afro-brasileiras, junto ao aparato estatal (que envolve a Polícia Civil, o Ministério Público
e o Judiciário). A pesquisa etnográfica concentrou-se na mobilização de dois interlocutores que
veem no enfrentamento ao racismo o propósito de legitimar suas demandas por garantias de
direitos frente aos casos de vitimização por intolerância religiosa.

Palavras-chave: sensibilidades jurídicas; Lei 77169/89 (Caó); Movimento Negro

O objetivo deste trabalho é o de refletir acerca das sensibilidades jurídicas relativas às demandas
por reconhecimento de direitos dos ativistas do Movimento Negro 2 carioca que, em certa medida,
tem se desdobrado no enfrentamento à intolerância religiosa3 perpetrada às religiões afro-
brasileiras4, junto ao aparato estatal (que envolve a Polícia Civil, o Ministério Público e o
Judiciário). O fato de ter graduação em Comunicação Social e, posteriormente, realizado o
mestrado em Antropologia, fez com que meu interesse de pesquisa fosse orientado para outras
demandas e não para as ações judiciais que envolvem crimes de racismo e intolerância religiosa.
1
Bolsista Capes, doutoranda do Programa de Pós-graduação em Antropologia da Universidade Federal Fluminense,
com pesquisa em andamento circunscrita à linha de pesquisa ‘Cultura Jurídica, Segurança Pública e Conflitos
Sociais’. Pesquisadora do Instituto Nacional de Estudos Comparados de Administração Institucional de Conflitos
(INCT-INeAC) e Núcleo Fluminense de Estudos e Pesquisas (NUFEP-UFF).
2
“Utilizo o termo movimento negro, não com intuito de substantivá-lo, mas como categoria política de autoafirmação
(inclusive da cor de seus membros), conforme acessada pelos interlocutores. Entendo o movimento social negro como
uma reação popular à incriminação do Estado aos indivíduos não-brancos, que se constitui, na atualidade, por uma
miríade de instituições que se autointitulam como entidades/instituições negras por terem em sua especificidade a luta
antirracista, em suas várias formas e objetivos”, Almeida, 2014:
3
“trata-se de uma agressão objetiva a direitos que não pode ser adequadamente traduzida em evidências materiais; e,
sempre implica em uma desvalorização ou negação da identidade de outro” (Cardoso de Oliveira, 2008:136). Neste
sentido, a categoria intolerância religiosa por sua característica englobante e polissêmica diz respeito e pode ser
acessada como categoria reativa e de acusação, acionada por qualquer adepto de segmento religioso (ou não) ao sentir-
se agredido ou desvalorizado em sua identidade religiosa.
4
“as religiões afro-brasileiras compõem um diversificado conjunto de credos, alguns de caráter local, outros já
revestidos da característica de religião universal, que podem ser encontrados por todo o Brasil, e até mesmo em outros
países, especialmente Argentina e Uruguai. Mas trata-se, contudo, de um grupo minoritário no universo das religiões
no Brasil”, (Prandi, 2007:7-30)
1
Tanto que o objeto da pesquisa que tenho desenvolvido para o doutorado tem objetivo de mapear
como os adeptos dessas religiões têm apresentado suas demandas por garantias de direitos no
espaço público. No entanto, chama atenção a controvérsia5 percebida nas falas dos ativistas da luta
antirracista e dos religiosos que são vítimas de intolerância, no que se referem as suas demandas
judiciais por garantia de direitos. Mesmo que alguns interlocutores entendam o ato de “entrar com
ação na justiça” como uma tentativa de criminalização dos acusados e forma “de provocar o
Judiciário a se pronunciar sobre os temas”, não são raros os relatos do descrédito e desqualificação
do aparato estatal para administração de conflitos raciais (Monteiro, 2004) e étnico-religiosos,
conforme demonstrados nas etnografias desenvolvidas por Miranda (2010), Boniolo (2011), Pinto
(2011) e Rangel (2013). Os dados etnográficos que passarei a descrever corroboram as pesquisas
que o antecederam e informam que alguns interlocutores sequer consideram essas instituições
como locais possíveis para a garantia de seus direitos. Aliás, alguns deles além de não acionar
esses mecanismos, desencorajam as vítimas a fazê-lo, uma vez que utilizam de outros dispositivos
para tentar administrar os conflitos.

Desde 2009 estou envolvida com as pesquisas realizadas pelo Núcleo Fluminense de Estudos e
Pesquisas (NUFEP-UFF) relativas às etnografias sobre a administração de conflitos que envolvem
a categoria intolerância religiosa (Miranda, 2010; Goulart, 2010; Boniolo, 2011; Miranda et all,
2011; Rangel, 2012;) na cidade do Rio de Janeiro. Essas pesquisas tiveram o objetivo de analisar
como as demandas por reconhecimento de direitos dos adeptos das religiões afro são apresentadas
e tratadas pelo aparato estatal. Em 2012, me tornei pesquisadora do Instituto Nacional de Estudos
Comparados de Administração Institucional de Conflitos (INCT-INeAC). Ao realizar minha
investigação do mestrado, entre início de 2013 e meados de 2014, tive como lócus de pesquisa o
Conselho Municipal de Defesa dos Direitos do Negro (Comdedine-Rio) – órgão formado por 27
instituições do Movimento Negro carioca, ligado à Secretaria de Governo da Prefeitura do Rio de
Janeiro. Meu intuito foi o de mapear, a partir do olhar dos ativistas, como os afro-religiosos, que
militam no Movimento Negro, dialogam com as instâncias governamentais, sobretudo junto aos
órgãos de Igualdade Racial. A pesquisa concentrou-se na mobilização desses interlocutores nos
espaços da luta antirracista com intuito de legitimar suas demandas por garantias de direitos frente
à intolerância/liberdade religiosa (Miranda, 2010). Em vários momentos foi possível perceber que
as discussões relativas ao enfrentamento à intolerância religiosa perpetrada às religiões afro eram

5
Utilizo o entendimento de controvérsia conforme proposto por Montero: “uma forma de ‘incerteza compartilhada’,
ou seja, uma série de ‘situações nas quais os atores estão de acordo de que discordam entre si’ (...) trata-se de
compreender como um conjunto de fatos é reunido em um debate público, quais os processos de tradução que
transformam o sentido da linguagem ordinária em um problema social” (Montero, 2012:178).

2
subsumidas pelo discurso racial de alguns ativistas (Almeida, 2014), apesar da demanda comum
de que todos os crimes que envolvessem discriminação fossem tipificados pela Lei 7716/89.

Da contravenção ao crime: racismo e intolerância religiosa


Foi a partir da redemocratização do país, com a promulgação da Constituição de 1988, conhecida
como Constituição Cidadã, que a construção deste dispositivo legal que criminaliza o racismo e,
posteriormente, passou a contemplar a intolerância religiosa tomou corpo:

“A Lei 7.716/1989, conhecida como Lei Caó 6, substituiu a Lei Nº 1.390/ 1951, denominada
Lei Afonso Arinos, que enquadrava atos resultantes de preconceito de raça ou de cor como
contravenção. Em sua primeira versão, a Lei Caó determinava no Art.1: “Serão punidos, na
forma desta Lei, os crimes resultantes de preconceitos de raça ou de cor”. Em 1990 essa lei
foi alterada, com o acréscimo do Art. 206, em redação dada pela Lei 8.081, cuja finalidade
era estabelecer “os crimes e as penas aplicáveis aos atos discriminatórios ou de preconceito
de raça, cor, religião, etnia ou procedência nacional, praticados pelos meios de
comunicação ou por publicação de qualquer natureza”. Em 1997, a Lei 9.459, ou Lei Paim 7
acrescentou as categorias “etnia, religião ou procedência nacional” ao artigo primeiro da
Lei Caó e também somou ao Artigo 140 do Código Penal o parágrafo 3º, agravando a pena
para a injúria que implicasse em uso de elementos “referentes à raça, cor, etnia, religião ou
origem”. Uma rápida análise das mudanças introduzidas na Lei Caó mostra o alargamento
de seu campo, pela inclusão do termo “discriminação”, ao lado de “preconceito”, e das
categorias “etnia, religião, ou procedência nacional”, ao lado de “raça e cor”. Essas
mudanças refletem os interesses de outros atores sociais em garantir o reconhecimento
social, no momento da redemocratização política do Brasil após a ditadura militar,
paralelamente aos grupos organizados do Movimento Negro, cujas demandas influenciaram
diretamente na inclusão do inciso XLII no Art. 5º da Constituição de 1988 e na própria Lei
Caó, em sua primeira versão" (Lima et all, 2011: 2).

Pode-se dizer que a primeira vez em que esta legislação - que fez com que o racismo, em plano
nacional, alçasse o status de crime e abarcasse a intolerância religiosa no mesmo tipo penal -
passou a ser utilizada deu-se no caso do falecimento de Mãe Gilda - vítima de um infarto
fulminante após ter sua foto publicada no jornal Folha Universal (edição 276/2000) - que
condenou a Igreja Universal do Reino de Deus (IURD) a indenizar a família da vítima. Também

6
Caó é o apelido do ex-deputado Carlos Alberto de Oliveira, do PDT-RJ, que integrou a Assembleia Nacional
Constituinte de 1988. O jornalista foi autor do inciso 42, do Artigo 5º, que tipificou o racismo como crime
inafiançável e imprescritível. O item foi aprovado em separado e contou com mais votos que toda a Constituição. Até
então, o racismo era uma contravenção, como constava da Lei Afonso Arinos, de 1951. (Pinto, 2011:22)
7
Refere-se ao senador Paulo Paim, do PT-RS, que em 1997 cumpria seu segundo mandato como deputado federal. .
3
podemos considerar que os efeitos da aplicação da Lei Caó transbordaram para o campo político já
que foi a partir desta decisão judicial que o Governo Federal promulgou a Lei 11.635/07,
instituindo o Dia Nacional de Combate à Intolerância Religiosa. Sobre o episódio, Silva (2007)
relata pormenorizadamente os desdobramentos do caso:

“(...) mãe Gilda (Gildásia dos Santos e Santos), do Axé Abassá de Ogum, em Itapuã, Bahia,
que em 1992 participou em Brasília de um protesto contra o governo Collor, tendo sido
fotografada pela revista Veja ao lado de um despacho. Posteriormente, essa imagem foi
usada numa edição de 1999 da Folha Universal (publicação da Iurd) ao lado da manchete
“Macumbeiros Charlatões Lesam a Bolsa e a Vida dos Clientes – O Mercado da Enganação
Cresce no Brasil, mas o Procon Está de Olho”. Este fato e a invasão de seu terreiro por
membros da Igreja Deus é Amor, que tentaram “exorcizá-la”, levaram a mãe de santo a
decidir pela ação judicial contra seus agressores e difamadores. Mãe Gilda faleceu em
seguida, aos 65 anos, de um infarto fulminante, em consequência, segundo sua família,
desses acontecimentos, que a abalaram profundamente.
Em 2004, a Justiça condenou a Igreja Universal e sua gráfica a indenizar a família da
ialorixá em 1,372 milhões de Reais pelo uso indevido de sua imagem (um Real por cada
exemplar do jornal publicado com a matéria)” (Silva, 2007:21).

Ainda conforme Silva (2007), antes do Governo Federal promulgar a Lei 11635/07, a Câmara
Municipal de Salvador já havia declarado o dia 21 de janeiro como o Dia Municipal de Combate à
Intolerância Religiosa. Por certo que o uso de um mesmo tipo penal que abarca crimes de condutas
tão distintas (racismo e intolerância religiosa) já torna a discussão sobre a legislação algo
interessante, não só para o antropólogo, mas para os operadores do Direito. Neste sentido,
pretendo apresentar uma reflexão acerca das afetividades (Cefaï, 2009) dos advogados ativistas do
Movimento Negro que militam para que as demandas cheguem (ou não) ao judiciário, uma vez
que a ambiguidade referente à aplicação da Lei Caó já foi observada por Lima, que nos informa
que na atualidade,

“a imbricação entre discriminação religiosa e racismo não é mais evidente (...) Assim,
quando a nova versão da Lei Caó – originalmente criada para combater o preconceito racial
– passa a incluir a discriminação religiosa, é criado um campo ambíguo, que dá ampla
margem para interpretações pessoais por parte dos agentes do Estado que tratam dos
conflitos abrangidos por ela" (Lima et all, 2011:9-10).

Entre as sensibilidades jurídicas e o sentimento de justiça

4
A bibliografia da Antropologia Jurídica, além de extensa, tem sua fundação nos problemas para
fins de aplicação transcultural (Cardoso de Oliveira, 2004) do Direito, o que lhe garante uma
perspectiva comparada desde seu primórdio (Geertz, 1989; Cardoso de Oliveira, 1992, 2004; Kant
de Lima, 2010; Simião, 2011). Para fins deste artigo, que busca acionar a dimensão entre as
distintas expectativas de tratamento (Simião, 2011) dos operadores do Direito frente às aplicações
da Lei 7716/89, partimos das análises de Geertz (1989) sobre a tradição jurídica anglo-americana
que tem seu contraponto comparativo considerando sensos de justiça particulares, com argumentos
que se fundamentam a partir das variedades dos sensos de justiça islâmica, malaia e índica. Assim,
ao comparar a aplicação do Direito em situações típico-ideais, este autor considera que o Direito
compreende significados sociais e expressa formas de pensar diferenciadas, demandando sentidos
de justiça que estão para além da norma.

No intuito de desenvolver as nossas análises sobre as sensibilidades jurídicas, dialogando com


pesquisadores brasileiros, sem perder a dimensão comparativa da disciplina, Cardoso de Oliveira
(2004) afirma que o modelo proposto por Geertz não permite uma compreensão abrangente das
‘sensibilidades jurídicas’ não só por limitar os objetivos da comparação à tradução cultural de
modelos típico-ideais, mas por entender que a dimensão analítica do contexto específico em que
ocorrem as tomadas de decisões, pode apresentar situações que oferecem maior possibilidade de
negociação que outras. Para Cardoso de Oliveira, “qualquer que seja a rigidez de definições
normativas particulares, no âmbito da dimensão contextual das situações típico-ideais há sempre
algum espaço para o debate no nível da dimensão contextual do caso específico” (2004, 34-5).

Pesquisador com extensa produção bibliográfica na Antropologia Jurídica, Kant de Lima


desenvolve análises, há mais de 30 anos, entre os sistemas jurídicos brasileiro e estadunidense,
considerando o desenvolvimento dos conjuntos de pensamento acionados nos modelos dos
tribunais ‘ocidentais’. Diante dos limites deste trabalho, parto de suas reflexões sobre o tratamento
variado que os crimes contra a pessoa recebem no Código Penal brasileiro, contidos no artigo
“Sensibilidades jurídicas, saber e poder: bases culturais de alguns aspectos do direito brasileiro em
uma perspectiva comparada” (2009). Nesta publicação, Kant de Lima desenvolve sua análise
contrapondo as diferentes formas de julgamento sobre os crimes contra a vida. Neste caso, o autor,
ao discutir modelos que operam com ideias de igualdade opostas 8, verifica que no sistema jurídico

8
Refere-se aos "modelos jurídicos para a sociedade (Geertz, 1989) – ideais e normativos, portanto – a que chamei de
paralelepípedo e pirâmide. No paralelepípedo, onde o topo é igual à base, a sociedade era composta de indivíduos
portadores de interesses diferentes, mas iguais em direitos, fato que os coloca em oposição e conflitos permanentes. A
desigualdade de status, assim, se dava em termos das escolhas melhores ou piores que os indivíduos faziam entre as
opções disponíveis no elenco daquelas publicamente dadas. As regras eram sempre vistas como de origem e
5
brasileiro há certa “necessidade de ter procedimentos distintos para quando o conflito é entre
iguais, ou entre desiguais, como parece ser o caso dos procedimentos judiciais prescritos para
julgar os casos de homicídio e latrocínio” (2009:42).

Mesmo com este breve e resumido levantamento bibliográfico é possível considerar que a análise
transcultural dos sistemas jurídicos demonstra que as sensibilidades jurídicas que se colocam em
disputa não se sintam plenamente contempladas na realização da ‘Justiça’. Outro ponto
fundamental para analisar o caso brasileiro, é que devemos considerar a operação de
procedimentos distintos que vigem diante das desigualdades sociais. No que tange ao objeto do
nosso trabalho, a divulgação de um estudo de abril de 2014, feito pelo Laboratório de Análises
Econômicas, Sociais e Estatísticas das Relações Raciais (Laeser), da Universidade Federal do Rio
de Janeiro (UFRJ) se mostra bastante reveladora. Os pesquisadores analisaram julgamentos em
segunda instância de crimes de racismo e injúria racial nos tribunais de todo os estados brasileiros,
entre 2007 e 2008 e constatou que 70% das 148 ações impetradas na época acabaram sendo
vencidas pelos réus. Segundo informações da Revista Raça Brasil9, que entrevistou o presidente da
OAB/SP á época, há outra explicação acerca do senso comum de que este resultado se justificaria
uma vez que a Justiça não contempla os mais pobres. A reportagem também revela outra questão:
a de que os tribunais tendem a ter um entendimento legal mais ‘brando’, ao optarem por tipificar
os crimes de racismo a partir da Injúria Racial, desconsiderando a Lei 7716/89, o que também se
aplicaria, segundo os interlocutores, aos crimes de intolerância religiosa:

“No âmbito legal, a dificuldade estaria no fato de que o crime de racismo ainda tem suas
particularidades, à medida que o texto da Lei qualifica o ato em variações importantes: de
um lado o racismo propriamente dito, inafiançável e imprescritível, segundo a Constituição
de 1988, e, do outro, a injúria racial. Baseada na legislação, a doutrina penal considera
"injúria racial" a ofensa de conteúdo discriminatório proferida contra uma pessoa em
particular. Já o crime de racismo é considerado a ofensa geral à determinada raça, cor,
etnia, religião ou origem, agredindo um número indeterminado de pessoas. No primeiro
caso, prevê-se pena de reclusão de um a três anos e multa ou o chamado serviço social para
o réu. No segundo, não há fiança, a pena é de um a cinco anos de reclusão, dependendo do
entendimento penal. A diferença no enquadramento apoia-se em questões "semânticas" e
linguísticas envolvidas na ofensa. O que pressupõe que não há limites para sua

legitimidade localizada, limitadas a um universo definido. Tinham interpretação literal e aplicavam-se universalmente,
de maneira uniforme, a todos. No caso da pirâmide, a base é maior que o topo. A sociedade é composta de segmentos
desiguais e complementares que devem se ajustar harmonicamente. As regras são sempre gerais para toda a pirâmide,
mas como se destinam a segmentos desiguais em direitos e interesses, devem ser aplicadas particularizadamente
através de sua interpretação por uma autoridade" (Kant de Lima, 2009:42)
9
Edição 188/2014. Ver: http://racabrasil.uol.com.br/cultura-gente/156/artigo224060-1.asp/
6
interpretação subjetiva. "O trabalho do advogado é lutar para que o entendimento do
conteúdo da denúncia seja correto, para um julgamento proporcional ao dano causado", diz
o presidente da OAB/SP” [grifos meus]

Diante dos dados divulgados Laeser/UFRJ e da fala do presidente da OAB/SP, podemos pensar
que, assim como os crimes contra a vida, que tem uma legislação diferenciada para os
procedimentos tanto do homicídio como do latrocínio, os crimes abarcados pela Lei 7716/89
também possuem procedimentos distintos. No entanto, se no primeiro caso, é a proteção à
propriedade o que faz a diferença na execução do procedimento e no uso dos tipos penais (Kant,
2009), no segundo, são as interpretações subjetivas ilimitadas sobre os fatos o que está no centro
desta diferença. Neste sentido, conforme aponta Simião, o “desafio no caso brasileiro, parece estar
em construir uma escuta adequada dos demandantes, capaz de incorporar suas próprias
interpretações dos acontecimentos” (2011:16). Também ao que parece este não é o único dado que
a reportagem nos informa: para os crimes que envolvem racismo e/ou intolerância religiosa é
preciso que o advogado lute “para que o entendimento do conteúdo da denúncia seja correto”. Esta
fala nos leva a pensar que o advogado que demanda pro garantia de direitos das vítimas não apenas
milite no Direito, mas que esteja engajado - o que, de acordo com a sociologia pragmática,
significa acionar uma afetividade que

“faz com que haja experiência, tanto perceptiva quanto cognitiva ou moral. [...] tem uma
dimensão de afeição e paixão coletiva. Mais do que serem propulsados em direção a um
ponto estratégico, os membros que se engajam são afetados por situações em que
contribuem para definir e dominar” (Cefaï, 2009: 31).

Este entendimento propõe não só que o Direito “incorpora o traço das lutas anteriores (...) e
articula os campos da experiência, configurando uma identidade dos atores e os engajamentos em
determinadas intrigas” (Cefaï, 2011:17), assim como pensar a atuação dos advogados que se
engajam nas ações que visam criminalizar o racismo e/ou a intolerância religiosa considerando os
sentidos de justiça, a partir dos “quadros de injustiça”, que são

“articulados por atores comuns para qualificar problemas sociais como inadmissíveis e
intoleráveis; para determinar responsáveis ou culpados e fazer deles o alvo de ataques; para
clamar pela constituição de um coletivo capaz de demandar a reparação; e para acionar as
instituições suscetíveis de restaurar uma ordem aceitável das coisas [essas] perspectivas que
não se fecham no foro íntimo de sujeitos solipsistas 10, mas que remetem diretamente ao
horizonte de um senso comum e que visam intencionalmente certos estados do mundo. O

10
Segundo o Dicionário Online de Português: modo de vida ou hábitos de quem vive na solidão.
7
“senso de injustiça” se expressa em descrições portadoras de um sentido ético, cívico ou
político, que atravessa seus atores” (Cefaï, 2011:6-7)

Este aspecto demonstra que esses advogados atuam no interesse de promover uma visão no meio
jurídico de que, tanto o racismo anti-negro quanto a discriminação aos adeptos da religião afro,
fazem parte, segundo a gramática política dos ativistas, de uma realidade social que tem suas
origens na conformação escravocrata da sociedade brasileira. Segundo um dos interlocutores, este
ponto é o que tem sido um dos maiores entraves para a aplicabilidade da Lei Caó

“Sou advogado há mais de 30 anos... entrei no Movimento Negro há mais de 20...


neste meio tempo, exerci cargos no governo, movi um sem número de ações, mas a
nossa Justiça não entende que há racismo, mesmo com a Lei Caó tendo mais de 20
anos... quando falamos em agressões contra a Umbanda e o Candomblé, então... os
promotores, os juízes nem se dão ao trabalho... o povo do candomblé é invisível
para a Justiça e está pela sua própria sorte. Este quadro é desanimador... não sei se
quero mais continuar fazendo isso [militando no movimento negro].

O aparato governamental, assim como o arcabouço legal de garantia de direitos aos negros e afro-
religiosos, é amplo e está intimamente relacionado às políticas públicas de identidade11. Ainda
segundo este interlocutor - que não vê problema que um mesmo tipo penal sirva para abarcar
crimes de natureza tão diversa como o racismo e a intolerância religiosa – ele considera que,
“ainda que Lei Caó seja uma legislação ‘específica’, que prevê o crime de racismo e de
discriminação religiosa como inafiançáveis e imprescritíveis, a Justiça tem grande resistência em
aplicá-la”. Para ele, a discriminação religiosa e o racismo são aspectos arraigados e naturalizados
na sociedade brasileira e, por isso, não encontram acolhidas entre os operadores do direito, uma
vez que “eles sequer conhecem esta legislação e ainda possuem uma crença ‘inabalável’ na
vigência dos mitos da democracia racial e religiosa no país, mesmo que digamos o justo
contrário”. Este interlocutor acredita que “é preciso reconfigurar outra compreensão de mundo
para os operadores que recebem as demandas dessas vítimas”, uma vez que o racismo anti-negro e
a intolerância religiosa contra as religiões afro-brasileiras têm se constituído como problemas
públicos12 na atualidade

Outro ponto que chama atenção é que, ainda que alguns casos de intolerância religiosa sejam
11
Ver Guimarães, 2001 e 2006.
12
“Para um problema qualquer ser considerado à condição de problema público, faz-se necessário que ele extrapole a
esfera privada e seja institucionalmente definido como tal”, (Silva, 2008:43).
8
englobados pela Lei Caó, não se tem notícias sobre quais são os índices relativos aos seus
julgamentos. No entanto, os interlocutores afirmam que, mesmo que as ações por intolerância
religiosa cheguem ao aparato estatal, tipificadas pela Lei Caó, não são poucos os casos em que o
entendimento do julgador muda a tipificação penal para outros crimes mais brandos como agressão
e briga de vizinhos. Este dado corrobora o demonstrado por Boniolo (2011), Pinto (2011) e Rangel
(2013) de que na maioria dos casos a discriminação religiosa acaba sendo tipificada, considerando
apenas a dimensão física da agressão, como também informa que, mesmo que a ação seja
demandada com tipificação na Lei Caó, é possível que o julgador mude para outra tipificação. Ou
seja, a dimensão do insulto moral das agressões por intolerância religiosa, que chega aos tribunais,
acaba não se constituindo como problema ou não são consideradas pelo julgador necessariamente
uma ofensa e pode, em certos contextos, ser até mesmo um dever de quem a realiza (Simião,
2006).

Neste cenário podemos pensar que se as discussões acerca das sensibilidades jurídicas envolvem
as múltiplas relações entre os julgadores e aqueles que demandam por reconhecimento de direitos,
entendendo que o engajamento dos advogados, que precisam lidar com essas várias dinâmicas de
sensibilidades para demandarem ações com base na Lei Caó, exige um sentido de justiça que
articula o racismo e a discriminação religiosa na passagem do distúrbio afetivo e moral à denúncia
e ao protesto público, conformando um discurso crítico, “elaborado em termos técnicos, jurídicos
ou políticos, que somente é sustentável se baseado em sentimentos e sensações de indignação que
têm a densidade da Lebenswelt, ou seja, do ‘mundo da vida’” (Cefaï, 2011:8). Ora, se sabemos que
as decisões judiciais produzem efeitos sociais muito além das dimensões jurídicas, não deveríamos
observar como os efeitos dos julgamentos acerca dos crimes abarcados pela Lei Caó têm sido
interpretados por esses advogados que se engajaram na luta antirracista? Na medida em que a
maioria dos julgamentos não criminaliza os réus, é possível perceber uma mudança de atitude no
uso da legislação ou na demanda que considera o aparato estatal por esses advogados?

Se a gente não resolver, quem vai?


Enquanto realizei a etnografia no Comdedine-Rio, visitei instituições membros em várias
localidades da cidade do Rio de Janeiro para entrevistar seus diretores no intuito de saber o motivo
das queixas por intolerância religiosa não chegarem ao Conselho que, naquele momento, não
tratava de nenhuma queixa deste tipo de crime. Um dos interlocutores, sacerdote afro e dirigente
de uma das instituições que compõem o Conselho, contou durante entrevista que recebia vários
religiosos afro com queixas de discriminação religiosa, mas possuía um jeito informal de
administrar esses conflitos

9
“(...) A grande maioria das vítimas é negra. São pessoas dos terreiros próximos, gente
humilde que ou não conhece seus direitos ou não têm como pagar um advogado. E todo
mundo sabe que isso [uma ação judicial] pode levar anos... Normalmente, as
discriminações acontecem nas escolas e em hospitais... o que é que faço: como sou bacharel
em Direito, vou até lá e converso com a pessoa responsável. Falo da Lei, digo que
discriminação é crime... vou numa boa, sem intimidar ninguém... e explico que praticar
intolerância religiosa e racismo tem pena pesada... como a maioria do pessoal aqui conhece
o meu trabalho, sabe que eu sou sério e me respeita, essas visitas costumam funcionar e
resolvem o problema”

Este interlocutor explicou que não orienta as vítimas a procurar uma delegacia e nem demandem
na Justiça: “porque as pessoas que são vítimas trabalham e têm suas vidas e não têm tempo de
ficar duas, três horas esperando para fazer um registro de ocorrência ou esperarem atendimento na
Defensoria Pública”. Para ele, a demora no atendimento (das delegacias), as despesas com
advogado e a morosidade das ações judiciais não são os únicos motivos que faz com ele
desencoraje as vítimas a procurar o aparato estatal.

“Acho que, no caso das escolas e outras instituições públicas, se as pessoas vissem
resultado, se a Lei 7716/89 fosse cumprida, elas iriam, sim, prestar queixa [na polícia] e
exigir reparação [judicial]. Mas, todo mundo sabe que isso não dá em nada, porque nem o
racismo nem a intolerância religiosa recebem o tratamento legal devido. O máximo que
acontece, quando acontece, é o réu pagar uma cesta básica... Então, elas [as vítimas] vêm
procurar ajuda na minha instituição porque sabem que eu vou tentar ajudar de alguma
forma. Se a gente não resolver, quem vai?”

No momento em que realizei a entrevista, associei a fala deste interlocutor às pesquisas que já
haviam sido realizadas e demonstravam que as queixas por intolerância religiosa eram
invisibilizadas, pois possuíam uma forma tangenciada de chegarem às instâncias estatais. A
especificidade desses casos, que majoritariamente se dão em relações de proximidade (entre
parentes e vizinhos, principalmente) faz com que o aparato estatal não considere as motivações da
discriminação, que é sobre o que trata a Lei Caó. Neste sentido, o aparato estatal não entende o
aspecto do insulto moral “que implica em uma desvalorização ou negação da identidade de outro”
(Cardoso de Oliveira, 2008:136) como a motivação das agressões. No entanto, só agora, com o
distanciamento no tempo, foi possível refletir acerca das diferentes afetividades suscitadas na fala
deste interlocutor diante da expectativa de tratamento em relação ao aparato estatal. De certa
maneira, seu depoimento não trata de buscar de uma negociação prévia, na tentativa de evitar a

10
relação problemática e conflituosa que configura o vínculo social das partes envolvidas nos
processos judiciais com o sistema judiciário (Aragon, 2013), tão comum no meio jurídico. Diante
do estabelecimento de um modelo informal para a administração destes conflitos, podemos
considerar que este interlocutor sequer considera o aparato estatal como instância legítima de
garantia de direitos, uma vez que as demandas ou não recebem o tratamento legal adequado ou
‘não dão em nada’.

Demanda nacional por direitos


Enquanto realizava a pesquisa no Comdedine-Rio, observando como se dão suas demandas
localizadas na cidade do Rio de Janeiro, percebi a formação de outro grupo de afro-religiosos 13
que tentava criar uma mobilização de dimensão nacional. Após a defesa da dissertação, passei a
acompanhar de perto as suas atividades e me mantive no campo por pouco mais de um ano. Este
grupo de religiosos (também ativistas do Movimento Negro) criou o Movimento ‘Ocupa Brasília’,
motivado por uma decisão da Justiça Federal no Rio de Janeiro que afirmava que o Candomblé e a
Umbanda não eram religiões14. Naquele momento, os membros tinham o objetivo de chamar
atenção do Governo Federal, com intuito de pressionar as esferas estatais para que a legislação que
protege seus adeptos fosse devidamente aplicada.

No dia 10 de junho de 2014, o Movimento reuniu centenas de religiosos que ocuparam a Praça dos
Três Poderes com faixas e cartazes, e o auditório da Câmara dos Deputados, além de realizar
audiências em alguns ministérios e secretarias ligadas à Presidência da República. Neste mesmo
dia, durante encontro com o então ministro da Justiça, o Movimento propôs a criação de um Grupo
de Trabalho que reunisse religiosos do Candomblé e da Umbanda de nove estados do país. O
objetivo, segundo eles, era o de construir uma agenda nacional de reivindicações por Segurança
Pública e um diálogo mais próximo com o Ministério Público Federal, frente ao que eles
identificavam como “um aumento considerável das invasões e incêndios ocorridos em terreiros,
agressões verbais e físicas e assassinatos de sacerdotes em todo território nacional”. Houve,
naquele momento o interesse do então ministro da Justiça15. Durante os três encontros dois quais
participei, houve o comprometimento do MJ e da Senasp em recomendar que todos os casos que
envolvessem discriminação religiosa fossem tipificados considerando a Lei 7716/89, a exemplo do

13
O termo afro-religioso é uma forma criada pela pesquisadora como categoria de hetero-definição para classificar
genericamente os adeptos das religiões afro-brasileiras, mais notadamente os da Umbanda e do Candomblé.
14
Ver http://www1.folha.uol.com.br/poder/2014/05/1455758-umbanda-e-candomble-nao-sao-religioes-diz-juiz-
federal.shtml
15
O ministro da Justiça chegou a receber esta delegação de religiosos por mais de uma vez, sendo que o grupo também
se reuniu algumas vezes com a secretária Nacional de Segurança Pública.
11
que já havia sido feito pela Secretaria de Segurança do Estado do Rio de Janeiro 16. Durante esses
encontros, houve o compromisso de elaboração de um curso à distância para alguns dos
operadores da Segurança Pública (Guarda Municipal, Polícia Militar e Polícia Civil) sobre as
especificidades da legislação que protege as minorias étnicas e religiosas. Porém, essas tratativas
culminaram apenas na portaria publicada no DOU, em 29/12/2009, que criou Grupo de Trabalho
de Enfrentamento à Violência Religiosa e nomeou seus membros como voluntários. Depois deste
ato administrativo, o GT não voltou a se reunir com nenhum representante do MJ, apesar dos
inúmeros e-mails e telefonemas solicitando as datas dos encontros com as respectivas autoridades.

Modos diferentes, demandas comuns


De acordo com os dados produzidos na etnografia do Comdedine-Rio e considerando a observação
participante desenvolvida no GT do MJ, ficou evidente que se há uma demanda comum entre os
seus ativistas, pode-se dizer que é a devida tipificação dos crimes que envolvem intolerância
religiosa com base na Lei 7716/89. Segundo os interlocutores, é a ignorância em relação às
práticas das religiões afro o que geraria a incompreensão relativa às especificidades nas quais se
dão os fatos (Boniolo, 2011; Rangel, 2012; Pinto, 2013) e o que minimiza e inviabiliza suas
demandas por garantia de direitos. Ou seja, para os interlocutores, a tipificação que visa tratar os
atos de discriminação racial e étnico-religiosa não mais como contravenção e sim como crimes -
inafiançáveis e imprescritíveis - faz parte de uma gramática política para reivindicação e
reconhecimento de direitos dos negros e adeptos das religiões afro-brasileiras, mesmo que a
legislação possa ser acionada por qualquer grupo étnico ou religioso.

“Não há falta de leis, mas de atitudes”


O Movimento Ocupa Brasília mantinha sua consultoria jurídica na cidade do Rio de Janeiro. Por
isso, durante o tempo em que acompanhei suas atividades, o campo empírico fez com que me
aproximasse de um interlocutor que demandava e/ou orientava as ações judiciais do grupo.
Advogado e professor de Direito Constitucional por vários anos, pessoa de fala fácil e de grande
estatura, este interlocutor contou que tem atuado, nos últimos 20 anos, acompanhando e propondo
ações judiciais que envolvem racismo e intolerância religiosa em vários estados do país. Na
verdade, ele é um dos mais conhecidos advogados do Movimento Negro carioca por sua atuação

16
Recomendação nº 057 de 13/06/2008, publicada no Boletim da Polícia Civil em 19/06/2008: "No uso de suas
atribuições legais e considerando o último incidente veiculado na Imprensa de ataque ao Centro Espírita Cruz de
Oxalá, no Catete, Zona Sul deste Estado;
RECOMENDA aos Delegados de Polícia que seja observado o teor do art. 20 da Lei nº 7.716, de 05 de janeiro de
1989 - LEI CAÓ, em homenagem ao princípio da especialidade, notadamente em relação aos casos em que houver
ataque a cultos religiosos de todo o gênero, bem como impedimento ou perturbação relativo aos mesmos".

12
gratuita em causas consideradas ‘perdidas’. “Vim parar neste GT porque sou religioso de matriz
africana e tenho um conhecimento desta legislação que é bastante específica”. Segundo ele, apenas
os advogados que são ativistas do Movimento Negro “conhecem o arcabouço legal que criminaliza
o racismo e a intolerância religiosa, uma vez que esta legislação não tem seu aprofundamento
previsto em disciplinas durante a formação dos bacharéis em Direito”. Foi durante uma das
reuniões realizadas na sede do MJ, na qual ele passou a arrolar para os assessores do ministro da
Justiça todos os tratados internacionais pactuados pelo Estado brasileiro, assim como todas as leis
e dispositivos legais que visam à garantia de direitos de minorias étnicas e religiosas, que
perguntei o que ele achava da prática de orientar as vítimas a administrarem informalmente esses
conflitos:

“Também não acredito que a Justiça trate esses casos com a devida gravidade que eles
possuem. Os operadores não entendem e nem querem entender sobre o que essas ações
tratam. Por outro lado, a gente sabe que as leis estão aí e que o judiciário precisa ser
provocado... mas, mesmo quando ele é provocado, não atua. Quando é para defender preto
e candomblecista, eles simplesmente não aplicam a Lei. Sabemos que na maioria dos casos,
nada acontece”

O depoimento deste interlocutor nos leva a entender que, entre demandar ações que visam
provocar o judiciário e a resolução informal dos casos que envolvem intolerância religiosa, está o
dilema entre a ideia de utilização da legislação como uma arma de luta e um quadro de referência,
frente ao ‘realismo’ das decisões judiciais (Cefaï, 2011), que congregam um cenário de
desinteresse do aparato estatal na aplicação da Lei Caó. Este desinteresse pode ser pensado,
conforme a tese de Mota (2009) porque há, entre os juristas brasileiros, uma frequente confusão
entre a ideia de desigualdade jurídica e a de diferença. Este autor, ao analisar as demandas por
garantia de direitos nos cenários francês e brasileiro, considera que por aqui, nem no contexto legal
somos formalmente iguais,

“porque na sensibilidade jurídica brasileira a relação entre os segmentos desigualmente


constituídos se estabelece a partir de uma noção de complementaridade (DaMatta, 1979).
Os atores relacionam-se complementarmente no interior de um sistema totalizante. Nesse
contexto, a ordem hierárquica excludente é concebida como natural, tendo em vista que
cada parte desigual e complementar à outra é essencial à estrutura do todo, mas todas têm
um lugar previamente estabelecido (Kant de Lima, Mota, e Pires, 2005). Ou seja, no Brasil,
como na máxima de Ruy Barbosa, a regra da igualdade não consiste senão em quinhorar
desigualmente aos desiguais, na medida em que se desigualam” (Mota, 2009:276-7).
13
Desta forma, não deveria ser de espantar que as soluções informais dos conflitos que envolvem
racismo e discriminação religiosa se mostrem mais eficientes do que as decisões judiciais,
conforme apontadas pela etnografia e que esta informalidade esteja em acordo com os sentidos de
justiça dos interlocutores. Neste campo, em que a informalidade jurídica na administração de
conflitos se mostra mais eficaz do que as demandas que consideram o aparato estatal, precisamos
atentar que o caso brasileiro, no que se refere às diferentes sensibilidades jurídicas, "alerta para a
necessidade de se evitar a caracterização de formas de justiça local ou alternativas como
essencialmente mais 'conciliatórias' ou 'restaurativas'" (Simião, 2011:16) do que as que demandam
por universalização de garantias de direitos.

Algumas considerações
Este artigo teve o objetivo de analisar como as demandas por reconhecimento de direitos dos
adeptos das religiões afro são apresentadas e tratadas pelo aparato estatal, considerando as
afetividades dos advogados-militantes do Movimento Negro. Neste caso, diante da complexidade
jurídica e antropológica das questões, fazer considerações é muito mais apontar reflexões do que
propriamente sugerir caminhos. Há ainda muito a perguntar e pouco a responder. Penso que um
dos pontos centrais da problemática apresentada se dá pela naturalização dos ativistas que
consideram um mesmo tipo penal para abarcar crimes de natureza tão diversa como o racismo e a
intolerância religiosa, como é o caso da Lei Caó. Apesar de entender que a intolerância religiosa
sofrida pelos afrorreligiosos tem como seu fundamento primeiro o racismo vigente e estruturante
da sociedade brasileira, sendo este mesmo racismo a motivação para os atos discriminatórios,
percebo como uma questão passível de aprofundamento, a utilização de um mesmo tipo penal que
abarque esses dois fenômenos. Esta percepção se dá por entender a complexidade com que o
racismo se apresenta no contexto brasileiro, uma vez que a perseguição perpetrada à Umbanda e
ao Candomblé vem incrementando as desigualdades raciais no país, assim como mexendo no
tabuleiro das relações raciais nos últimos 20 anos com o avanço das igrejas neopentecostais.
Outro ponto que penso como fundamental para o aprofundamento das análises é que devemos
considerar a operação de procedimentos estatais distintos que vigem diante das desigualdades
sociais. Sabendo que a Justiça brasileira, assim como o Estado, tem como prática tratar diferença e
desigualdade como palavras sinônimas, não caberia perguntar se o fato de não termos notícias
sobre quais são os índices relativos aos julgamentos realizados nos casos de discriminação
religiosa não seria a evidência do desinteresse e desimportância desses crimes para seus
operadores? Ou seja, esta não seria mais uma lei pensada e formulada para ‘inglês ver’, cuja
efetiva aplicação está fora dos interesses do Estado?
14
O trabalho etnográfico também tentou apontar para a administração informal dos conflitos pelos
advogados-militantes do Movimento Negro que atendem as vítimas de discriminação religiosa
como mais efetiva do que a utilização do aparato estatal. Estamos diante de uma realidade que
utiliza o conhecimento da legislação como meio para resolver conflitos de proximidade, mas
desconsidera o acesso ao aparato estatal (ações judiciais, queixas na delegacia, etc.) e vê no
diálogo com o perpetrador da agressão uma forma mais eficaz de sanar o conflito. Podemos
apontar esta prática, ainda pouco observada, como uma forma original dos afrorreligiosos diante
do desleixo com que suas demandas são tratadas e recebidas pelo Estado. No entanto, ainda não
sabemos o que esperar quando os casos administrados informalmente pelas partes envolvidas não
resultarem em soluções viáveis ou não estiverem a contento das vítimas. Uma vez que as partes
vitimizadas já não consideram os meios estatais como forma efetiva para solução dos conflitos que
envolvem discriminação religiosa, o que poderá acontecer no caso da informalidade na
administração dos conflitos também não gerar resultados? Só o tempo nos dirá.

Referências Bibliográficas:

ALMEIDA, Rosiane R. Quem foi que falou em igualdade? Rio de Janeiro: Autografia, 2014.

ARAGON, Luiza. Entre a casa e a política: uma etnografia das controvérsias na ladeira Sacopã.
Dissertação apresentada ao Programa de Pós Graduação em Antropologia da Universidade Federal
Fluminense como requisito parcial para obtenção do grau de mestre. Niterói, 2013

BONIOLO, Roberta Machado. Da “feijoada” à prisão: o registro de ocorrência na


criminalização da “intolerância religiosa” na região metropolitana do Rio de Janeiro.
(Monografia de conclusão de curso em Ciências Sociais). Niterói: UFF, 2011.

CARDOSO DE OLIVEIRA, Luis Roberto. Comparação e Interpretação na Antropologia Jurídica. Anuário


Antropológico/89 Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1992

________________________________ Honra, dignidade e reciprocidade.In: Martins, P. H. & Nunes, B. F


(orgs.) A nova ordem social: perspectivas da solidariedade contemporânea. Brasília: Editora Paralelo 15,
pp. 122-135, 2004.

________________________________. Existe violência sem agressão moral? Revista Brasileira de


Ciências Sociais - vol. 23 no 136. 67, 2008.

________________________________. A dimensão simbólica dos direitos e a análise de conflitos. Revista


de Antropologia, v. 53 nº 2. São Paulo, USP, 2010.

CEFAÏ, Daniel. Como nos mobilizamos: A contribuição de uma abordagem pragmatista para a sociologia
da ação coletiva. Dilemas: Revista de Estudos de Conflito e Controle Social, n. 4, v. 2. Rio de Janeiro:
NECVU/IFCS-UFRJ, Abr-Jun.2009, pp. 11-48.

CEFAÏ, Daniel. Como uma associação nasce para o público: vínculos locais e arena pública em torno da
associação La Bellevilleuse, em Paris. In: Daniel Cefaï, Marco Antônio da Silva Mello, Felipe Berocan

15
Veiga, Fábio Reis Mota (org.), Arenas públicas. Por uma etnografia da vida associativa, Niterói, EdUFF:
2011

GEERTZ, Clifford [1989]. A Interpretação das Culturas. São Paulo: Ed: LTC, 2008

GOULART, Julie Barrozo. Entre a (in)tolerância e a liberdade religiosa: a Comissão de Combate


à Intolerância Religiosa, suas reivindicações e estratégias de inserção no espaço público
fluminense. Monografia de conclusão de curso em Ciências Sociais, Universidade Federal
Fluminense. UFF, Niterói, 2010.

GUIMARÃES, Antonio Sérgio A. Democracia Racial – o ideal, o pacto e mito. Novos Estudos nº
67, CEBRAP, pp. 147-162. Novembro, 2001.
____________________. Depois da Democracia Racial. Tempo Social, Revista de Sociologia da
USP, v. 18, n. 2, pp. 269-287. São Paulo: EDUSP, 2006.

KANT DE LIMA, Roberto. Sensibilidades Jurídicas, Saber e Poder: bases culturais de alguns aspectos do
direito brasileiro em uma perspectiva comparada. Anuário Antropológico/2009 - 2, 2010: 25-51

______________________ Polícia, Justiça e Sociedade no Brasil: uma abordagem comparativa dos


modelos de administração de conflitos no espaço público. Revista de Sociologia e Política nº 13: 23-38 nov.
1999

LIMA, Lana Lage da Gama et all. Administração institucional de conflitos envolvendo discriminação
étnica, racial e religiosa em Campos dos Goytacazes. XI Congresso Luso Afro Brasileiro de Ciências
Sociais. Bahia: UFBA, 2011.

MIRANDA, Ana Paula Mendes de. Entre o público e o privado, considerações sobre a (in) criminação da
intolerância religiosa no Rio de Janeiro. Anuário Antropológico/2009 - 2, 2010: 125-152.

___________________. “Combate à intolerância ou defesa da liberdade religiosa: paradigmas em conflito


na construção de uma política pública de enfrentamento ao crime de discriminação étnico-racial-
religiosa”. 33º Encontro Anual da ANPOCS. São Paulo, 2011.

______________________. “Se está nos autos, está no mundo: a intolerância religiosa e os limites de
aceitação de identidades públicas”. No prelo.

MIRANDA, Ana Paula Mendes de; MOTA, Fabio Reis; PINTO, Paulo Gabriel Hilu. Relatório sobre a
Comissão de Combate à Intolerância Religiosa: balanço de dois anos de atividade. Rio de Janeiro, 2010.

MOTA, Fábio Reis. Cidadãos à parte ou cidadãos em toda parte? Demandas de direitos e reconhecimento
no Brasil e na França. Tese de doutoramento apresentada no Programa de Pós-graduação em Antropologia
da UFF. Niterói, 2009.

MONTERO, Paula. Controvérsias religiosas e esfera pública: repensando as religiões como


discurso. Religião e Sociedade 32(1): 167-183, 2012.

MONTEIRO, Fabiano Dias. Retratos em branco e preto, retratos sem nenhuma cor: a experiência do
Disque-Racismo da Secretaria de Segurança Pública do Estado do Rio de Janeiro. Dissertação de
Mestrado Programa de Pós-Graduação de Sociologia e Antropologia do Instituto de Filosofia e Ciências
Sociais da Universidade Federal do Rio de Janeiro. RJ, 2003.

PINTO, Vinícius Cruz. Picuinha de vizinho ou problema cultural? Uma análise dos sentidos de
justiça referente aos casos de “intolerância religiosa. Trabalho de Conclusão de Curso.
Graduação em Ciências Sociais pela UFF, Niterói, 2011

16
PRANDI, Reginaldo. O Brasil com axé: candomblé e umbanda no mercado religioso. Estudos
Avançados, vol.18, n.52, 2004,

__________________ . As religiões afro-brasileiras nas ciências sociais: uma conferência, uma


bibliografia. Revista Brasileira de Informação Bibliográfica em Ciências Sociais. BIB-ANPOCS,
São Paulo, nº 63, pp. 7-30, 2007.

RANGEL, Victor Cesar Torres de Mello. Nem tudo é mediável: a invisibilidade dos conflitos
religiosos e as formas de administração de conflitos (mediação e conciliação) no Rio de Janeiro.
Dissertação de mestrado em Antropologia, Universidade Federal Fluminense. Niterói: UFF, 2013.

SILVA, Vagner Gonçalves da. Neopentecostalismo e religiões afro-brasileiras: Significados do


ataque aos símbolos da herança religiosa africana no Brasil contemporâneo. Mana vol.13 no.1.
Rio de Janeiro, Apr. 2007.

SIMIÃO, Daniel. Representando corpo e violência: a invenção da violência doméstica em Timor


leste. Revista Brasileira de Ciências Sociais, 22(60). São Paulo, 2006.

_______________Sensibilidade jurídica e diversidade cultural: dilemas timorenses em perspectiva


comparada. In: SILVA, Kelly C.; SOUSA, Lúcio. Ita maun Alin: o livro do irmão mais novo. Lisboa:
Edições Colibri. 2011 (no prelo).

17

You might also like