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Por Fábio Zuker

Na noite do dia 19 de setembro, judeus de todo o mundo celebravam o fim do jejum de Yom
Kipur, o Dia do Perdão, data mais importante do calendário litúrgico judaico. No jantar da
minha família, que não é exatamente uma família religiosa, mas frequenta anualmente alguma
sinagoga aleatória nesta data, a minha octogenária avó Frida levantou um debate sobre pessoas
próximas a ela que declararam seu voto em Bolsonaro. Entre essas pessoas estão parentes meus
cujo avô paterno é um sobrevivente de Auschwitz.

Em tom melancólico, minha avó reclamava na mesa que já não se sentia com a destreza
necessária ao debate político, embora tenha se mostrado veementemente contrária à escolha
desses parentes bolsonaristas. Ela escutava atenta a mim, à minha mãe, ao meu pai e irmão,
todos anti-bolsonaros convictos e cada um com sua escolha pessoal quanto aos candidatos à
presidência (que vai de Álvaro Dias a Fernando Haddad). Escutava como quem assiste a um
debate, buscando argumentos para se posicionar. Esse texto é uma tentativa de organizar para a
minha avó Frida alguns pensamentos acerca do que acredito ser a ressonância de um anseio,
senão uma lógica, totalitária na engenharia política que dá corpo e vigorosidade à candidatura
de Jair Bolsonaro à Presidência da República brasileira.

Existem episódios suficientes envolvendo judeus e o capitão reformado do exército que


justifiquem uma reflexão ampla acerca dessas relações. De um certo modo, parece haver uma
expectativa, por parte da sociedade brasileira “progressista”, de que os judeus, por terem vivido
durante séculos a violência e o genocídio oriundos das formas de ódio contra minorias na
Europa, se posicionassem contrários à candidatura de Bolsonaro. Talvez o primeiro
esclarecimento que deva ser feito é que, diferente da Igreja Católica, o judaísmo não se organiza
hierarquicamente, respondendo a uma lógica una. Inexiste, portanto, uma posição “da”
comunidade judaica, quanto à escolha política de seus membros, sendo ela absolutamente
individual, e que usualmente oscila entre centro, centro-esquerda e centro-direita. A própria
história do judaísmo é marcada pela pluralidade de interpretações e controvérsias a respeito
dos textos sagrados; e até incentivada. Nenhum rabino, de nenhuma vertente, pode almejar
representar a totalidade de opiniões sobre temas religiosos, o que vale também para temas
sociais.

Ainda assim, a recepção que recebeu o candidato Jair Bolsonaro no clube A Hebraica do Rio de
Janeiro, em abril de 2017, associou-o à imagem dos judeus como um todo. Especialmente diante
do conteúdo das falas proferidas pelo candidato nessa ocasião, utilizando-se de linguagem
pejorativa para referir-se a quilombolas (“Eu fui num quilombo. O afrodescendente mais leve lá
pesava sete arrobas. Nem pra procriador ele serve mais” — guardem essa frase) e ameaçando
indígenas e seus modos de vida (“não vai ter um centímetro demarcado para reserva indígena
ou quilombola”). Tais falas renderam ao deputado a abertura de uma investigação criminal por
parte da Procuradoria Geral da República sob a suspeita de crime de racismo, que o STF
arquivou no dia 11/09, ao rejeitar a abertura do processo por 3 votos a 2. Bolsonaro tornou, de
alguma forma, indissociável a sua imagem com a daqueles judeus que lhe escutavam.

O infame episódio rende até hoje. Em meados de setembro, com os ânimos eleitorais se
acirrando diante da alta de Bolsonaro após o atentado que sofreu em Juiz de Fora (MG), uma
corrente de internet surgiu, propondo a realização de um exercício: substituir as frases em que
Bolsonaro vocifera palavras de ódio contra gays, negros e indígenas por judeus. A ideia é que
com essa substituição se tornasse mais evidente a violência e racismo dessas falas, gerando
resultados como: “os judeus querem se passar por vítimas, querem superpoderes. Qualquer
judeu que morre no Brasil, logo a mídia está dizendo que é antissemitismo” (na frase o termo
originalmente utilizado é “homossexuais”, substituído por “judeus”, e “homofobia”, substituído
por “antissemitismo”); ou mesmo “não [corro o] risco de ter uma nora judia porque meus filhos
foram bem educados” (substituindo “negra” por “judia”) — guardem essa frase também. As
famigeradas frases de Jair Bolsonaro na Hebraica também foram utilizadas no exercício.

Circula na internet fotos em que Bolsonaro posa ao lado de Marco Antônio Santos vestido de
Hitler, um neonazista assumido e que reivindica ser professor. Marco Antônio ganhou
notoriedade ao comparecer em 2015 em uma audiência na Câmara Municipal do Rio de Janeiro
e gerar tumulto — foi proibido de se pronunciar no dia, em que se debatia os limites do
posicionamento político de professores em sala de aula. Outro material que circula pelas redes é
o vídeo de Jair Bolsonaro participando de um “teste da verdade” pelo programa televisivo
CQC. Quando questionado se admira a figura de Adolf Hitler, Bolsonaro gagueja, e responde
pausadamente que não chega a admirá-lo, mas que reconhece que ele foi um grande general na
defesa do seu povo. Ora, o grande feito militar de Hitler, frente àqueles que ele definia como
inimigos do povo alemão, foi o extermínio sistemático de 6 milhões de judeus como política de
Estado.

Também nas primeiras semanas de setembro, outro caso, desta vez envolvendo uma postagem
da Embaixada da Alemanha explicando o nazismo em português, moveu as redes sociais,
recebendo inclusive cobertura jornalística internacional. Um grupo de internautas, muitos
simpatizantes a Bolsonaro, questionaram a postagem da embaixada, alegando que tratava-se de
uma perspectiva enviesada por considerar o Nazismo de extrema-direita. Para eles, o Nazismo
seria uma tendência política de esquerda, já que o partido se chamava Partido Nacional-
Socialista dos Trabalhadores Alemães. Kai Michael Kenkel, professor de ciência política alemã
da PUC-Rio comentou sobre o caso para a mídia brasileira: “nunca tinha visto essa discussão
sobre o nazismo ser de esquerda na Alemanha”, afirma o professor, que continua: “lá é muito
simples: trata-se de extrema direita e pronto. Essa discussão sobre ser de esquerda ou direita
parece existir só no Brasil”. Além de questionarem que o nazismo era de esquerda, muitas
postagens tinham cunho revisionista, e afirmavam que o genocídio de 6 milhões de judeus eram
uma farsa, fruto do lobby judaico.

Neste mesmo mês, judeus de diversas posições políticas criaram a página de facebook “Judeus
Contra Bolsonaro”, que com mais de 7mil pessoas traz como imagem de capa dizeres
antifascistas em italiano: “Il fascismo non passerá” (O fascismo não passará, em português).

Judeus que defendem Bolsonaro têm realizar malabarismos teóricos para justificar o seu apoio
ao candidato, tentando minimizar essas associações com o nazismo, sejam as criadas pelo
próprio deputado, por seus seguidores ou por seus críticos . Além de terem no mesmo barco
pró-Bolsonaro a nada agradável companhia de neonazistas que exaltam as propostas do ex-
capitão do exército.

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Evidentemente, é uma grosseria sem tamanho afirmar que Bolsonaro seja nazista. Tout court.
Mas por que o imaginário nazista é reivindicado pelos críticos de Bolsonaro? Seriam apenas
delírios e forças de expressão? Ou o pequeno número de neonazistas que aderiram à campanha
do candidato, assim como determinados discursos de seus eleitores possuem, efetivamente, algo
a nos dizer sobre os posicionamentos pessoais de Bolsonaro? Permitam-me adentrar esse
perigoso nevoeiro com uma pequena digressão histórica.

Uma das obras de referência no estudo do nazifascismo europeu é o trabalho da filósofa judia
Hannah Arendt. Em As Origens do Totalitarismo, Arendt propõe um exercício de interpretação
do totalitarismo nazista a partir de suas origens no colonialismo e no antissemitismo. No último
capítulo do livro, aquele propriamente dedicado ao fenômeno totalitarista, a filósofa elenca uma
série de características que definem a experiência totalitária. Entre elas, uma me parece
reverberar na discussão iniciada acima: o desmerecimento da realidade em nome de uma lógica
coesa, existente apenas em um plano ideal sem correspondência com o mundo vivido. Ou seja, o
mundo tal como o experimentamos, repleto de contradições e heterogeneidade, é submetido a
uma organização lógica, um processo de purificação que pouco tem a ver com a vida cotidiana.
Entretanto, esse mundo imaginário é capaz de criar uma realidade autônoma, coesa e perfeita.

Diante desta segunda realidade, puramente mental, o mundo da experiência sensível pode — e
este é o traço característico do nazifascismo — ser submetido a uma transformação forçada e
violenta. Se para Hitler o problema da Alemanha era a mistura entre judeus e alemães, a
infiltração de judeus em todos os âmbitos da sociedade alemã, degenerando-a, suas propostas
políticas começavam e terminavam com a questão judaica. Não por acaso a questão
reprodutiva, do contato entre judeus e alemães, está na base de seus discursos, e uma das
primeiras leis do Führer foi a proibição dos casamentos mistos.

A temática do degenerado é central para o pensamento nazista, que se propõe a missão estética
de embelezar o mundo. Como? A partir da extirpação da diferença, de todos aqueles que eram
considerados uma ameaça à supremacia da raça ariana, a começar por pessoas com
dificuldades motoras, malformações, problemas cognitivos, estendendo-se a judeus, ciganos e
homossexuais. Nos planos de Hitler, a violência e a guerra tinha um potencial criador e
estabilizador do mundo, que lhe garantiria a coerência mentalmente produzida, permitiriam-
lhe modificar o mundo e a natureza humana, resguardando ao povo alemão seu grandioso
destino.

Talvez um dos motivos de Bolsonaro reacender o imaginário acerca do nazismo esteja,


justamente, na temática do degenerado e da degeneração da sociedade. As frases do candidato
que pedi para o leitor guardar em mente logo acima trazem como pano de fundo uma reflexão a
respeito da procriação, e reverbera o cerne do debate racista sobre a mistura de raças e seu
fundo supostamente genético: os perigos das misturas entre negros com brancos, judeus com
não-judeus. As falas de Bolsonaro acerca da esterilização dos pobres como forma de conter a
explosão demográfica que assola o planeta correlaciona, de maneira ainda mais evidente, temas
caros ao pensamento nazifascista, para os quais a crise da modernidade se confundia com o
esquerdismo e o aumento da população degenerada que destruiria a raça ariana; os “homens de
bem” de seu tempo.
O discurso do candidato se centra em pautas morais, esvaziando os seus conteúdos e debates ao
redor dos temas, neutralizando-as. Sexualidade, quotas, questões étnico-raciais, acesso à
educação e cultura, direitos indígenas, preservação ambiental. Tudo aquilo que difere do
padrão normativo homem-hétero-branco-cristão é considerados um desvio, e portanto
ideológico, sem razão de ser. Não se entra no debate, mas criam-se pressupostos que
inviabilizam uma discussão séria sobre os temas.

No plano da segurança, sua proposta mais consistente é armar a população “de bem”. O
deputado já chegou a falar que acredita que apenas uma guerra civil salvaria o país. Aqui está a
crença no poder criador da violência, um dos elementos que define o totalitarismo. Bolsonaro
acredita que o problema da criminalidade urbana se resolve dando um ultimato para bandidos
se entregarem, senão metralharia favelas como a Rocinha. Não leva em consideração que em
nenhum lugar do mundo a guerra ao crime pelas vias das forças de segurança gerou resultados
positivos — e todos os países que adotaram medidas educacionais e culturais para lidar com a
violência observaram transformações significativas. Não leva tampouco em consideração a
morte dos policiais que se envolverão nas operações, nem de civis inocentes.

Assusta a concepção de humano que subjaz à lógica de suas propostas. Um ser humano frágil,
sujeito à manipulações perversas por ideologias que sequestram sua verdadeira natureza, e que
apenas um homem forte, como ele, poderia restituir. Um ser humano como uma massa amorfa a
ser defendido com força de projetos que lhe degenerariam, que o fariam perder sua integridade.
Essa visão abstrata de ser humano é explorada no eleitor brasileiro, cativado por um discurso
voltado ao cultivo de sentimentos mais imediatos e aos impulsos impensados, relacionado a uma
forma de desejo existente em nossa sociedade, marcada pelo ímpeto de resolução imediatista,
muitas vezes pela força.

Como chegamos até esse ponto? Como é possível que cerca de um terço do eleitorado brasileiro
apoie, ativamente, um candidato cujas propostas concentram-se majoritariamente em pautas
vazias de significado concreto e no uso da violência, sem nenhum debate consistente sobre
governo, Estado, pobreza, saúde, segurança educação e economia? A que desgaste foi submetido
o sistema político brasileiro, a permitir que tal radicalismo emerja como viável?

Essa resposta excede o objeto deste pequeno ensaio, mas o caminho, seguramente, deve levar em
consideração o desgaste do sistema político nacional, a crise econômica, os escândalos de
corrupção de todos os grande partidos da república, os erros do Partido dos Trabalhadores e o
clima de instabilidade política criado pela oposição para tomar o poder à força, a reação à
mudanças nas formas de comportamento moral. Também no plano internacional a democracia
vem sendo colocada em cheque, tanto à esquerda quanto à direita: de Putin na Rússia à Maduro
na Venezuela, de Viktor Orban na Hungria ao aumento da extrema direita na França (com o
clã Le Pen) e na Alemanha (com o AfD). Sem falar na evidente reverberação dos discursos de
ódio do próprio presidente dos Estados Unidos, Donald Trump.

Sobre a relação com a comunidade judaica, minha interpretação é que Bolsonaro explorou a
relação criada no clube A Hebraica para tentar se mostrar menos outsider. Tentou, e de certo
modo conseguiu, aproximar-se da ideia de que uma minoria, que no Brasil é associada a uma
estabilidade financeira, profissional e intelectual, lhe abriu as portas. Soube surfar nessa onda,
com viagens a Israel e admiração pelo país sionista, o que agrada a muitos judeus brasileiros,
filhos e netos de sobreviventes de perseguições antissemitas. De certo modo, as falas de
Bolsonaro reverberam no discurso conservador israelense: o militarismo, a violência, a negação
da humanidade do outro (em Israel, os palestinos, no Brasil, as populações negras e
indígenas) — que não são consenso entre os judeus, mas sim uma política de Estado de um
governo.

Hoje em dia é comum pensar que judeus no Brasil são de direita. Trabalhei na Casa do Povo,
um dos principais espaços culturais de São Paulo, instituição fundada e mantida por judeus de
esquerda, e que abriga atividades com o Movimento Passe Livre, população Trans, imigrantes
bolivianos entre outras. Além do fato da página “Judeus Contra Bolsonaro” ter 7.947 membros
no facebook, enquanto “Comunidade Judaica Brasil” possui 7.426 (dados de 01/10/2018).

Jair Bolsonaro não precisa ganhar as eleições para Presidente da República para gerar danos
ao processo democrático. Sua presença fez o debate pender, necessariamente, para um polo
mais à direita do que aquele que usualmente marca a corrida presidencial brasileira. Ocupou o
espaço antipetista anteriormente resguardado ao PSDB. Tornou falas de ódio e insultos à
minorias menos reprováveis. Esvaziou o debate sério e urgente sobre segurança pública, em
nome de posições espetaculares e pouco efetivas. Deslegitima o próprio processo eleitoral, ao
questionar a confiança que se podem ter nas urnas.

Nada indica que a onda de instabilidade democrática gerada por movimentos populistas,
presidentes com tendências autocratas e processos ditatoriais tenderá a acabar em breve. Um
dos pontos que o debate político precisará incorporar de mais essa experiência de crise da
democracia é a abertura para uma reflexão: em que medida a democracia deve tolerar a
dispersão de conteúdos anti-democráticos.

Existe um paradoxo saudável à democracia no que diz respeito à liberdade. Esse paradoxo
consiste no fato de que ninguém é (ou ao menos não deveria ser) livre para proferir discursos
que ameacem a liberdade do outro. Trata-se de um paradoxo constitutivo da experiência
democrática. Não existe totalitarismo parcial, pois a sua razão de ser é total: um governo em
que terror e violência estão na base da gestão da política. É, entretanto, na negação do paradoxo
da liberdade que o totalitarismo reside enquanto projeto.

Espero, avó, ter conseguido esmiuçar um pouco do que tentei te dizer na quebra do jejum de
Yom Kipur, no dia do perdão, na quarta-feira a noite. Judeus também são uma minoria, e
devem se lembrar desse passado, pois os ataques à minoria marca a história de nossa família, e
das famílias de nossos amigos. Judaísmo é a memória do que aconteceu com os judeus no
passado. Uma memória para sempre atualizada, criticamente, no presente.

Ps: no dia em que termino a revisão desse texto, a página “Judeus Contra Bolsonaro” é atacada
com dizeres antissemitas.

Fábio Zuker é escritor de não-ficção, jornalista e antropólogo

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