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ARCADISMO EM PORTUGAL - BREVE ANTOLOGIA

1. Filinto Elísio
Arte Poética Portuguesa
(Epístola)
Lede, que é tempo, os clássicos honrados;
Herdai seus bens, herdai essas conquistas,
Que em reinos dos romanos e dos gregos
Com indefeso estudo conseguiram.
Vereis então que garbo, que facúndia
Orna o verso gentil quanto sem eles
É delambido e peco o pobre verso.
Lede, que é grã cegueira esse descuido,
Antes bruteza! Mal se ganha o prêmio
Do alto saber, sem ímproba fadiga.
O meditado estudo aço é, que rijo
Fere do nosso engenho a aguda escarpa;
E os pensamentos de sutil arrojo
Faíscas são brilhantes, que ressaltam
Do batido fuzil aporfiado.
Se ousamos escrever, destas centelhas,
Ordenadas com próvido artifício,
Se compõe formosíssimo luzeiro
Ou astro, que nos rudes olhos fere
Do vulgo, e que a prudentes muito agrada.

Sonetos
1

Já vem a Primavera desfraldando


Pelos ares as roupas perfumadas,
E os rios vão, nas águas jaspeadas,
Os frondíferos troncos retratando.

Vão-se as neves dos montes debruçando


Em tortuosas serpes argentadas;
Pelas veigas, o gado, alcatifadas,
A esmeraldina felpa vai tosando.

Riem-se os céus, revestem-se as campinas;


E a Natureza as melindrosas cores
Esmera na pintura das boninas.

Ah! Se assim como brotam novas flores,


Se remoça todo o orbe... das ruínas
Dos zelos renascessem meus amores!
2

Estende o manto; estende, ó noite escura,


Enluta de horror feio o alegre prado;
Molda-o bem co pesar de um desgraçado,
A quem nem feições lembram da ventura.

Nubla as estrelas, Céu, que esta amargura


Em que se agora ceva o meu cuidado,
Gostará de ver tudo assim trajado
Da negra cor da minha desventura.

Ronquem roucos trovões, rasguem-se os ares,


Rebente o mar em vão noucos rochedos,
Solte-se o Céu em grossas lanças de água.

Consolar-me só podem já pesares;


Quero nutrir-me de arriscados medos,
Quero saciar da mágoa a minha mágoa.

2. Marquesa de Alorna (Leonor de Almeida Portugal Lorena e Lencastre)

Dizendo-me uma pessoa que eu nunca havia de ser feliz


Esperanças de um vão contentamento,
Por meu mal tantos anos conservadas,
É tempo de perder-vos, já que ousadas
Abusaste de um longo sofrimento.

Fugi; cá ficará meu pensamento


Meditando nas horas malogradas,
E das tristes, presentes e passadas,
Farei para as futuras argumento.

Já não me iludirá um doce engano,


Que trocarei ligeiras fantasias
Em pesadas razões do desengano.

E tu, sacra Virtude, que anuncias,


A quem te logra, o gosto soberano,
Vem dominar o resto dos meus dias.
Petição à melancolia para que se acabem certos dias de festa

Tu, Deusa tutelar da solidão,


Amável sombra, oh melancolia,
Aproxima-te, rouba-me a alegria
Que turba a suavidade ao coração.

Não prives o meu peito, Ninfa, não,


Da tua triste e doce companhia,
Que suspira por ti um e outro dia
Quem de amar-te só faz consolação.

E não pode a que vive suspirante


Viver entre o tumulto muito espaço,
Sem que faça o seu mal mais penetrante.

Atende, oh Ninfa, o rogo que te faço:


Não demores mais tempo o doce instante,
Os dias tristes, que eu tão triste passo.

Soneto

Eu cantarei um dia da tristeza


Por uns termos tão ternos e saudosos,
Que deixem aos alegres invejosos
De chorarem o mal que lhes não pesa.

Abrandarei das penhas a dureza,


Exalando suspiros tão queixosos,
Que jamais os rochedos cavernosos
Os repitam da mesma natureza.
Serras, penhascos, troncos, arvoredos,
Ave, fonte, montanha, flor, corrente,
Comigo hão-de chorar de amor enredos.

Mas ah! que adoro uma alma que não sente!


Guarda, Amor, os teus pérfidos segredos,
Que eu derramo os meus ais inutilmente.
3. Manuel Maria Barbosa Du Bocage

Auto-Retrato

Magro, de olhos azuis, carão moreno,


Bem servido de pés, médio na altura,
Triste de cara, o mesmo de figura,
Nariz alto no meio, e não pequeno.

Incapaz de assistir num só terreno,


Mais propenso ao furor do que à ternura,
Bebendo em níveas mãos por taça escura
De zelos infernais letal veneno.

Devoto incensador de mil deidades,


(Digo de moças mil) num só momento.
Inimigo de hipócritas, e frades.

Eis Bocage, em quem luz algum talento;


Saíram dele mesmo estas verdades
Num dia, em que se achou cagando ao vento.

*******
Nariz, nariz, e nariz,
Nariz, que nunca se acaba;
Nariz, que se ele desaba,
Fará o mundo infeliz;
Nariz, que Newton não quis
Descrever-lhe a diagonal;
Nariz de massa infernal,
Que, se o cálculo não erra,
Posto entre o Sol e a Terra,
Faria eclipse total!
*******
Soneto de todas as putas
Não lamentes, ó Nize, o teu estado;
Puta tem sido muita gente boa;
Putíssimas fidalgas tem Lisboa,
Milhões de vezes putas têm reinado;

Dido foi puta, e puta de um soldado;


Cleópatra por puta alcançou a coroa;
Tu, Lucrécia, com toda a tua proa,
O teu cono não passa por honrado;

Essa da Rússia imperatriz famosa,


Que ainda há pouco morreu (diz a Gazeta)
Entre mil piças expirou vaidosa;

Todas no mundo dão a sua greta;


Não fiques pois, ó Nise, duvidosa,
Que isso de virgo e honra é tudo peta.
Soneto

Olha, Marília, as flautas dos pastores,


Que bom que soam, como estão cadentes!
Olha o Tejo a sorrir-te! Olha não sentes
Os Zéfiros brincar por entre as flores ?

Vê como ali, beijando-se os Amores


Incitam nossos ósculos ardentes!
Ei-las de planta em planta as inocentes,
As vagas borboletas de mil cores!

Naquele arbusto o rouxinol suspira,


Ora nas folhas a abelhinha para,
Ora nos ares sussurrando gira:

Que alegre campo! que manhã tão clara!


Mas ah! Tudo o que vês, se eu te não vira,
Mais tristeza que a morte me causara.

Sonetos

Incultas produções da mocidade


Exponho a vossos olhos, ó leitores:
Vede-as com mágoa, vede-as com piedade,
Que elas buscam piedade, e não louvores:

Ponderai da fortuna a variedade


Nos meus suspiros, lágrimas e amores;
Notai dos males seus a imensidade,
A curta duração de seus favores:

E, se entre versos mil de sentimento


Encontrardes alguns, cuja aparência
Indique festival contentamento,

Crede, ó mortais, que foram com violência


Escritos pela mão do Fingimento,
Cantados pela voz da Dependência.
Sobre estas duras, cavernosas fragas,
Que o marinho furor vai carcomendo,
Me estão negras paixões n'alma fervendo
Como fervem no pego as crespas vagas:

Razão feroz, o coração me indagas,


De meus erros a sombra esclarecendo,
E vás nele (ai de mim!) palpando e vendo
De agudas ânsias venenosas chagas:

Cego a meus males, surdo a teu reclamo,


Mil objetos de horror coa ideia eu corro,
Solto gemidos, lágrimas derramo:

Razão, de que me serve o teu socorro?


Mandas-me não amar, eu ardo, eu amo:
Dizes-me que sossegue, eu peno, eu morro.

*******
Ânsias terríveis, íntimos tormentos,
Negras imagens, hórridas lembranças,
Amargosas, mortais desconfianças,
Deixai-me sossegar alguns momentos:

Sofrei que logre os vãos contentamentos


Que sonham minhas doidas esperanças;
A posse de alvo rosto e louras tranças,
Onde presos estão meus pensamentos:

Deixar-me confiar na formosura,


Crueis! Deixai-me crer num doce engano,
Blasonar de fantástica ventura.

Que mais mal me quereis, que maior dano


Do que vagar nas trevas da loucura,
Aborrecendo a luz do desengano?

*******

Meu ser evaporei na lida insana


Do tropel de paixões, que me arrastava:
Ah! Cego eu cria, ah! mísero eu sonhava
Em mim quase imortal a essência humana:

De que inúmeros sóis a mente ufana


Existência falaz me não dourava!
Mas eis sucumbe a Natureza escrava
Ao mal, que a vida em sua origem dana.

Prazeres, sócios meus e meus tirano!


Esta alma, que sedenta em si não coube,
No abismo vos sumiu dos desenganos.
Deus, oh Deus!... Quando a morte à luz me roube
Ganhe um momento o que perderam anos,
Saiba morrer o que viver não soube.

*******

Já Bocage não sou!... À cova escura


Meu estro vai parar desfeito em vento...
Eu aos céus ultrajei! O meu tormento
Leve me torne sempre a terra dura:

Conheço agora já quão vã figura


Em prosa e verso fiz meu louco intento;
Musa... Tivera algum merecimento
Se um raio da razão seguisse pura!

Eu me arrependo; a língua quase fria


Brade em alto pregão à mocidade,
Que atrás do som fantástico corria:

Outro Aretino fui... A santidade


Manchei!... Oh! Se me creste, gente ímpia,
Rasga meus versos, crê na eternidade!

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