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MULTIVERSO

Thelma – magia e sexo em Aleister Crowley


POR: DELL FREIRE 08 JULHO, 2018

O jornal sensacionalista Sunday Express descreveu o mago


Aleister Crowley como “o homem mais maligno do
mundo” e também como “um homem que gostaríamos de
esganar”. W. Somerset Maugham escreveu um livro não muito
elogioso, conhecido como O Mágico (1908), baseado em sua
personalidade, logo após ser apresentado a ele por um amigo em
comum. Além disso, o governo italiano de Benito Mussolini
expulsou Crowley da Itália logo após o incidente que resultou na
morte do seu discípulo Raoul Loveday na chamada Abadia de
Thelema; a viúva de Loveday, Betty May, culpou Crowley pela
morte de seu marido, que teria sido obrigado a consumir sangue
animal contaminado, causando um estardalhaço do qual o Sunday
Express aproveitou-se. Porém, no laudo consta morte por febre
entérica, contraída por beber água contaminada na montanha.
Crowley nunca foi condenado por nenhum tipo de crime contra a
vida de pessoas. Nem contra a de Loveday.
Em um momento em que o preconceito e o conservadorismo
encontram-se em ebulição, querendo retomar a força de outrora,
é interessante observar Aleister Crowley não apenas como um
lunático, mas sim como alguém que pagou o preço por sua
liberdade, por suas experiências mágicas, enteógenas e sexuais.
Sobre esse último dado, é importante lembrar também que
manter relações homossexuais era considerado um crime na
Inglaterra e no País de Gales até 1967, na Escócia até 1980 e na
Irlanda do Norte até 1982. Talvez o jornal Sunday Express tenha
enxergado perversidade e malignidade nas práticas sexuais de
Aleister Crowley (1875-1947), que se relacionava igualmente com
mulheres e com homens.

Em vários níveis de conhecimento, uma revisão a respeito de


Crowley é necessária. A partir dessa revisão pode-se
compreender a importância de seus ensinamentos para a
revolução sexual dos anos 1960 e 1970. Talvez, num certo
sentido, Aleister Crowley foi Queer antes da Teoria Queer, teoria
que rechaça as identidades binárias, assume a identidade como
algo fluído e variado, e abraça todo tipo de sexualidade
marginalizada. O termo Queer, inicialmente pejorativo e usado
como forma de agressão, foi apoderado pelo movimento
homossexual e convertido em algo positivo; como diria a teórica
Judith Butler, uma renovação completa do vocábulo.
Curiosamente, a mesma renovação que Crowley fez ao adotar o
epíteto de A Besta. Reza uma das tradições, em torno da origem
do apelido pelo qual Crowley adotaria para toda sua vida, de que
essa seria a forma pejorativa pela qual sua mãe, extremamente
religiosa, o tratava desde a infância: A Besta. Seus pais eram
parte dos “Irmãos Exclusivos”, uma facção conservadora da
denominação cristã chamada de “Irmãos de Plymouth”. Seu pai
era um pastor devoto dessa seita, leitor constante da Bíblia; sua
relação com o seu pai era boa, mas com sua mãe não era das
melhores. Assim, assumir para si o que antes era um termo
pejorativo, foi um gesto determinante na vida de Aleister Crowley.
Estabelecendo uma doutrina mágica para a descoberta da
Verdadeira Vontade através da Lei de Thelema, também
conhecida como a Lei do Faz o que Tu Queres, Aleister Crowley
influenciou uma série de artistas e pensadores do Século XX.
David Bowie encarnou uma persona chamada The Thin White
Duke para a composição do álbum Station to Station(1976).
Este alter-ego retrata um homem com problemas, que canta
músicas românticas, mas é totalmente insensível em termos de
sentimentos. Duke tinha cabelo loiro platinado e geralmente
vestia-se com camisa branca, calças pretas e colete. Era um
personagem totalmente calcado numa interpretação dos trabalhos
de Crowley e, não por acaso, faz parte da época mais polêmica
do cantor.
Outra associação que não é muito lembrada em torno da
importância de Crowley para a Revolução Sexual é o fato de que
o popular autor e pesquisador norte-americano Alfred Kinsey,
considerado um dos pais da sexologia, era um simpatizante e
seguidor de Aleister Crowley. Em 1948, Alfred Kinsey criou uma
escala para medir a sexualidade humana, enfatizando a
diversidade. Ainda que sua pesquisa também tenha sido alvo de
críticas pela falta de apuro científico, Kinsey foi um pioneiro,
revolucionando os estudos sobre sexo e relacionando a fluidez ao
seu debate. Kinsey também foi grande amigo de Kenneth Anger,
cineasta referência para diretores como Martin Scorsese e David
Lynch e um famoso mago integrante de sociedades secretas
ligadas à Aleister Crowley. Vemos aqui uma foto de Kinsey (à
esquerda) e Anger (à direita) posando na já citada Abadia de
Thelema.
Nesse sentido, o filme Thelma(2017) de Joachim Trier, mostra-
se relevante ao trabalhar uma história de formação de uma jovem
adolescente e a descoberta de suas vontades. A personagem
principal, Thelma, é solitária, passando pelo primeiro ano de sua
graduação e vivendo em um apartamento pouco mobiliado. Sem
amigos e distante dos pais, Thelma em determinado momento
começa a sentir uma força desconhecida, poderes sobrenaturais
surgindo, no exato momento em que seus olhos observam pela
primeira vez a colega chamada Anja. A forma como Trier trabalha
os poderes de Thelma assemelham-se a certo toque
contemporâneo oriundo das histórias de super-heróis, o que torna
tudo muito agradavelmente pop. Joachim Trier, dessa forma,
distancia completamente a sua narrativa dos filmes mais
ambiciosos esteticamente do seu primo Lars Von Trier. Joachim
faz questão de dizer em entrevistas que não tem muito contato
com seu primo mais conhecido.
Thelma não sabe o que há de errado com ela. Como nas antigas
gravuras de bruxas, as cobras negras e os melros viajam perto de
Thelma e às vezes em seu corpo. Como nas transcrições dos
julgamentos de bruxas, as emoções de uma jovem podem
literalmente matar, e os ataques de Thelma, como os chamados
episódios convulsivos de possessão satânica, acabam não sendo o
que parecem. Acabam sendo expressão de um desejo, de uma
Vontade Queer. Curiosamente, Thelma, uma variação da palavra
grega Thelema (que significa Vontade), também foi criada por
pais extremamente religiosos, assim como Aleister Crowley.
Joachim Trier alinhou perfeitamente os poderes sobrenaturais de
Thelma com a descoberta Queer (particularmente a de uma
jovem mulher) de maneiras inesperadas. É particularmente
interessante que seja um homem que, utilizando-se de empatia,
faça um filme sobre uma mulher jovem e bonita que não tem
vergonha das forças que seu próprio corpo e sua mente podem
desencadear.

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