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Atas das Conferências: Expressão Múltipla – Teoria e

Prática do Desenho

Coordenação: Luísa Arruda

Conselho científico: Artur Ramos (FBAUL); José Maria Lopes (FAUP); Fábio Pereira Cerdera (UFRRJ);
Luísa Arruda (FBAUL).

Organização: Aline Basso, Alexandre Guedes e Vinícius Queiroz Gomes

Capa: Alexandre Guedes

Composição e paginação: Aline Basso e Vinícius Queiroz Gomes

ISBN: 978-989-8771-98-8

Universidade de Lisboa, Faculdade de Belas-Artes, Centro de Investigação e Estudos em Belas-Artes


(CIEBA).

Lisboa, maio de 2018.


Índice
Apresentação
Luísa D’Orey Capucho Arruda
__________________________________________________________________________02

Colecção da FBAUL: memórias em desenho da antiga Academia de Belas-Artes de


Lisboa.
Alberto Faria
__________________________________________________________________________10
Metodologia de criação para ilustração de livros: um estudo sobre a constituição da
imagem narrativa
Alexandre Linhares Guedes
__________________________________________________________________________20
O único traço de pincel e o pensamento sobre o desenho no ocidente: reflexões sobre o
traço
Aline Basso
__________________________________________________________________________40

Na Minha Cama com Durer


Armando Jorge Caseirão
__________________________________________________________________________65

Arte e Ciência: o desenho como meio e o corpo como tema


Beatriz Manteigas
__________________________________________________________________________79
A práxis enunciativa nos desenhos para uma pintura mural para a igreja Nossa Senhora
dos Navegantes, no Rio de Janeiro
Fábio Cerdera
__________________________________________________________________________95

A dimensão auto etnográfica do projeto Dicionários de Artista


Filipa Pontes
_________________________________________________________________________117

As criaturas fantásticas na nossa sociedade: passado e presente


Inês Garcia
_________________________________________________________________________145

O livro ilustrado e o livro de artista: intersecções experimentais a partir do método


Oubapo.
Klaus Reis
_________________________________________________________________________158
A Academia de Viena e o desenho de mestres austríacos que vieram para Portugal
Luís Augusto Fernandes Lyster Franco
_________________________________________________________________________197

As três cruzes – a forma, o conteúdo plástico e o semântico.


Marcelo Duprat Pereira
_________________________________________________________________________217

Um caso especial: o conhecimento da atitude do esquisso considerando os desenhos


produzidos por indivíduos com a síndrome Savant.
Miguel Bandeira Duarte
_________________________________________________________________________230

Espaços da cor nas fases de um processo


Natacha Antão Moutinho
_________________________________________________________________________237

Similitudes - Da ocultação ao scraping surrealista de Cruzeiro Seixas


Pedro Miguel Domingos Jorge de Oliveira
_________________________________________________________________________248

Ilustração do livro infantil, uma multiplicidade de linguagens


Teresa Salinas Calado
_________________________________________________________________________281

O desenho na azulejaria de padrão: um estudo da forma


Tônia Matosinhos
_________________________________________________________________________290

Notas sobre o desenho, perspetiva e composição, nos murais realizados em Lisboa


entre os anos 1930 e 1960.
Vinícius Queiroz Gomes
_________________________________________________________________________302

Classificações do livro ágrafo e a sua leitura


Salmo Dansa
_________________________________________________________________________329

Cartaz Exposição Em Linha


Alexandre linhares Guedes
_________________________________________________________________________353

Texto de apresentação da Exposição Em Linha


Juan Gonçalves
_________________________________________________________________________354
1
Universidade de Lisboa Faculdade de Belas Artes
Doutoramento em Belas Artes/Desenho
Expressão Múltipla. Teoria e prática do Desenho
Colóquio/Exposição Em Linha

Apresentação
Luisa Arruda

Depois de realizados os colóquios On portrait, Roupa de


Artista e Pintura Mural em Portugal e no Brasil , onde
estiveram integrados alunos do Doutoramento em
Desenho, sentimos a necessidade de alargar este tipo de
participação à maioria dos Doutorandos garantindo a
integração numa linha de investigação do CIEBA: Teoria,
História e Prática do Desenho, entrecruzando duas áreas
disciplinares: o Desenho e as Ciências da Arte (Francisco
de Holanda).

O Encontro/Colóquio sobre desenho Expressão Múltipla e


a Exposição Em Linha resultaram deste ponto de partida.
Formou-se um grupo de trabalho ou Comissão
Coordenadora entre três Doutorandos (Aline Basso,
Alexandre Guedes e Vinícius Gomes) e eu própria. A
comissão científica foi constituída por dois Professores da
Faculdade de Belas Artes (Luisa Arruda e Artur Ramos),

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um Professor da Universidade do Porto (José Maria
Lopes) e um Professor da Universidade Federal Rural do
Rio de Janeiro (Fábio Cerdera). Pretendeu-se avaliar os
resumos das comunicações sob processo double blind
peer rewiew de modo a avaliar e afinar a qualidade dos
trabalhos. Ao contrário a participação na exposição Em
Linha foi aberta aos palestrantes e membros da comissão
científica sem nenhum regime de obrigatoriedade.

Sendo a maioria dos presentes Professores universitários


da área do desenho, realçamos a ligação da investigação
ao ensino do desenho a partir da prática artística de cada
artista-professor. Diferentes metodologias foram
expostas (Fábio Cerdera, Jorge Caseirão, Teresa Calado,
Alexandre Guedes, Klaus Reis, Vinícius Gomes e Inês
Garcia).

Teresa Calado revelou a multiplicidade possível de


linguagens na ilustração de livros infantis, entre as
linguagens do desenho por computador e o esboço
criativo, enquanto Alexandre Guedes desenvolveu uma
convincente metodologia de criação de imagens narrativas
para a ilustração de livros, baseada na sua larga
experiência como ilustrador e como Professor de História
de Arte antes de ser professor de ilustração. Expôs a
metodologia recorrendo a desenhos seus, metodologia
que se reflectiu também no seu trabalho na exposição.
Ambos apresentaram os seus próprios processos criativos

3
refletindo sobre caminhos de criação no âmbito da
ilustração.

De facto, o interesse pela ilustração como modo de


expressão pelo desenho, mais do que o debate sobre as
suas relações com o texto, é central nos actuais projectos
de investigação. À procura de um método Klaus Reis
junta-se ao grupo francês OuBaPo encontrando na sua
própria produção respostas experimentais que
ultrapassam a ilustração para se afirmarem como imagens
de uma narrativa artística independente.

Mais próxima da BD e de outras formas de


entretenimento para as massas, Inês Garcia interessa-se
pela investigação sobre criaturas fantásticas no mundo
artístico ocidental, tentando encontrar modelos que
sirvam eficazmente a sua produção narrativa em
desenho, extrapolando esta investigação para o ensino.
Algum estudo empírico da anatomia humana e animal
também é usado como forma de composição imagética.

Ainda sob o signo do desenho Académico, mas com


alguma influência do modernismo, a visita do Prof Fábio
Cerdera, coordenador da área de Desenho da
Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro, trouxe o
exemplo de uma pintura mural para uma Igreja
inaugurada recentemente em que colaborou. O desenho
proposto na exposição dá conta da importância do
trabalho preparatório para essa mesma obra enquanto,

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na sua comunicação, abordou uma leitura semiótica da
imagem. Na mesma perspectiva Vinícius Gomes, também
professor na mesma instituição, viaja pela pintura mural
em Portugal no período modernista, e, consciente dos
constrangimentos impostos à obra plástica pela ditadura,
procura resgatar a qualidade e profissionalismo de muitos
dos criadores, qualidade que passa sempre pelo domínio
do desenho.

Armando Caseirão, Prof. de desenho na Faculdade de


Arquitectura, trouxe-nos um exercício de desenho
abordado pelo próprio artista e exposto na mostra
colectiva. Trata-se de um ritual quase diário de observação
de almofadas e camas desfeitas e da (im) provável visão
de um rasto dos corpos, inspirado pelo desenho de
Albrecht Durer, six studies of pillows. Discute-se uma
metodologia de representação-observação e ao mesmo
tempo uma forma de abordar temas da obra artística que
passa pela cópia criativa, e pelos encontros ou revisitação
de outras obras de arte.

Questionando formas de grafismo não ocidental e ao


encontro da pintura Chinesa, Aline Basso estuda manuais
os chineses e as relações entre a filosofia, a ética e a
estética desta pintura que encara como uma pintura que
afirma formas superiores de grafismo. Trata-se, de certo
modo, de uma busca metafísica para a sua própria
produção artística que passa também por uma visão do
mundo e do comportamento humano. Um dos resultados

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deste estudo aponta a meditação como meio importante
para desencadear o processo do desenho e como tal
podendo ser usado como metodologia de ensino-
aprendizagem. Os seus desenhos bordados reflectem a
restrição auto-imposta pela pintora, num despojamento
de grande efeito estético.

Miguel Bandeira Duarte e Natacha Antão refletiram sobre


perspetivas relacionadas com os seus temas de
Doutoramento. Miguel Bandeira Duarte questiona a
capacidade de representação e a memória fotográfica nos
indivíduos portadores do Síndrome Savant, revelando
desenhos produzidos por crianças sem esta característica
e crianças Savant. As capacidades de representação pelo
desenho de esquisso constituem ainda mistério sobre o
funcionamento do cérebro humano, abrindo portas a
novas investigações (esta investigação acabou por não
fazer parte do texto de doutoramento e assim surge com
ineditismo neste colóquio).

Estudar a cor no desenho tem sido o propósito de Natacha


Antão, o que constitui um projecto inovador e da maior
complexidade, abordado cientificamente e com um foco
na sua prática individual que usa como laboratório para
testar as suas teses, como revelou neste colóquio,
alargando a experiência ao ensino do Desenho.

O projecto de investigação de Filipa Pontes que intitulou


Dicionários De Artista convoca uma profunda reflexão

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conceptual e um método de trabalho que a artista replica
em diferentes viagens e que vai sendo modificado. Trata-
se de trabalho artístico absolutamente independente de
qualquer tipo de constrangimentos, mas que se afirma no
âmbito de uma investigação doutoral pela via do rigor
teórico-conceptual.

Num polo oposto, Beatriz Manteigas, interessada pelo


desenho figurativo e ainda em fase inicial do seu o
processo de investigação questiona a figuração
contemporânea tentando encontrar oposição entre
abstracção e figuração. Curiosamente a pintura/colagem
que expôs parece responder à questão inicialmente
proposta pela integração de processos figurativos e
informais no seu trabalho plástico.

Referimos ainda comunicações sobre história do desenho,


projectos de investigação pós-graduada. Na sua Premiada
Dissertação de Mestrado, Alberto Faria estudou,
organizou e publicou na Web a colecção Académica de
Desenho Antigo da FBAUL, trazendo a este fórum as
metodologias de investigação na base do seu trabalho.
Também sobre a Academia, Luís Lyster Franco apresentou
o impressivo trabalho gráfico de

Adolf Hausmann, abordando questões sobre a Academia


de Viena, no século XIX que passou pela comparação e
interpretação de desenhos académicos de Hausmann
com desenhos da mesma natureza e de datas
semelhantes de Gustav Klimt.

7
A colagem inventada por Braque e Picasso, uma técnica de
desenho, representa a viragem da arte nas vanguardas do
século XX. Pedro Oliveira discute este tema, revelando
aspectos menos debatidos na arte portuguesa, sobretudo
na figura de Cruzeiro Seixas e os seus scrapbooks, um
modo de expressão notável, entrecruzando a arte a vida.

À margem dos temas em debate foi proposta uma leitura


sobre a azulejaria de fachada no Brasil em confronto com
a congénere nas cidades portuguesas por Tônia
Matosinhos, investigadora da Universidade do Rio de
Janeiro que se agregou ao projecto, não só por estar entre
nós no tempo do colóquio, mas porque tinha já havido
uma colaboração comigo para a sua investigação de
Mestrado justamente obre azulejaria fachada no Brasil.
Sem relação directa com o Desenho, deve afirmar-se que
a azulejaria de fachada vive dos fundamentos da
geometria plana na sua forma mais dinâmica e,
paralelamente, da representação figurativa em artes
decorativas.

De facto, o Colóquio Expressão Múltipla despertou vivo


interesse por parte de outros Doutorandos do Rio de
Janeiro não ligados à FBAUL. Embora não presentes
enviaram temas relacionados com a sua investigação e
que, pela sua qualidade, publicamos, nestas actas.
Marcelo Duprat Pereira, Professor da Escola de Belas
Artes da Universidade Federal do Rio de Janeiro e
Doutorando em Pintura pela FBAUL envia-nos um texto
em que aborda uma gravura: As três cruzes de Rembrant

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(exemplar no Museu de Belas Artes do Rio de Janeiro)
desconstruindo formalmente a imagem em confronto com
a interpretação da sua iconografia. Por seu lado, José
Salmo Dansa de Alencar, Doutorando, em Design pelo
Departamento de Arte e Design da Pontífice Universidade
Católica aborda um tema que muito interessa à área da
ilustração: o livro ágrafo (sem palavras) entre a ilustração
para o livro infantil e o livro de artista, um texto importante
pelos exemplos analisados e bibliografia apresentada.

Luisa Arruda

Estoril, Dezembro 2017

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COLECÇÃO DA FBAUL: MEMÓRIAS EM DESENHO DA ANTIGA ACADEMIA DE BELAS-
ARTES DE LISBOA

Alberto Faria
Investigador membro do CIEBA – FBA-UL

Resumo

A Faculdade de Belas Artes da Universidade de Lisboa é herdeira da antiga Academia de


Belas Artes de Lisboa, fundada em 1836. Possui colecções de pintura, escultura, gravura,
litografia e desenho, associadas na sua maioria ao contexto do ensino das Belas-Artes.
A Colecção de desenho antigo da FBAUL, que é parte do vasto património artístico da
Faculdade, é um arquivo que documenta de forma sectorial, a disciplina, os métodos e modelos
seguidos na Aula de Desenho da antiga Academia; a produção didáctica de professores e a
prestação académica de alguns artistas enquanto pensionários/bolseiros nas academias e
ateliers, em Paris e Roma. Podendo ser representativa da cátedra de desenho da antiga
academia das Belas Artes de Lisboa e de alguma forma, do desenho académico português do
século XIX.

Abstract

The artistic heritage of the Faculty of Fine Arts of the University of Lisbon, heiress of the
former Academy of Fine Arts of Lisbon founded in 1836, comprises collections of paintings,
sculptures, prints and drawings, mostly related to the process of learning and teaching at the
Academy.
The Collection of old drawings that we propose to address is an archive and visual
reference which enables us to acknowledge the methods and models followed in the past by
the Academy in the classes of drawing, but also works done by professors for theirs students
and drawings of Portuguese artists in the academies of Paris and Rome.

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1. A COLECÇÃO DE DESENHO ANTIGO DA FBAUL

A Colecção de desenho antigo é parte integrante do vasto património artístico da


Faculdade de Belas-Artes da Universidade de Lisboa (FBAUL), constituído por obras em pintura,
escultura (Bernardo, 2013), desenho, gravura (Madeira, 2005) e os legados: Casa Ventura Terra
e Lagoa Henriques (Pereira, pp. 165-170, 2011).
Trata-se de uma colecção universitária, em parte semelhante ao de muitas outras
colecções existente em Escolas de Belas-Artes na Europai. Reúne mais de um milhar de
desenhos, datados entre 1830 e 1935, cuja origem coincide com a criação da Academia das
Belas-Artes de Lisboa, fundada por decreto de 25 de Outubro de 1836, de que a actual FBAUL
é herdeira.
É uma colecção que se encontra inventariada e estudada (Faria, 2008; 2011).
Acondicionada em reserva própria na Faculdade, esta colecção foi parcialmente exposta em
1975 ([Calado], 1975), e de acordo com uma visão renovada e documentada, em 2010 (Arruda,
2010). Desde 2011, o conhecimento desta colecção alargou-se a uma comunidade mais vasta,
com a sua disponibilização on-line através do museu virtual da FBAUL
(http://museuvirtual.belasartes.ulisboa.pt/)ii.
As obras da Colecção procedem maioritariamente de duas instituições de ensino
artístico da capital: Aula Pública de Desenho (1781-1836) e Academia/Escola de Belas Artes de
Lisboa. Da primeira instituição constam desenhos datados entre 1830 e 1836, realizados na aula
de desenho de arquitectura civil, que versam sobretudo o estudo das Cinco Ordens de
Arquitectura segundo o tratado da Regola delli cinque ordini d’Architettura [1562] de Giacomo
Barozzi Vignola (1507-1573); da segunda instituição, especímenes datados entre 1836 e 1935,
correspondentes na sua maioria a trabalhos de alunos (e discentes do sexo feminino) dos quais
alguns se vieram a destacar como artistas de renome no panorama artístico português da
segunda metade do século XIX e inícios de XX, casos dos pintores Tomás da Anunciação (1818-
1897), Miguel Ângelo Lupi (1826-1883), Columbano Bordalo Pinheiro (1857-1929); do escultor
Vítor Bastos (1830-1894) ou do arquitecto José Luís Monteiro (1949-1942), entre outros.
Estas obras referem-se essencialmente a desenhos premiados no contexto dos
concursos e exames anuais das diferentes cadeiras da Aula de Desenho – desenho de
arquitectura; desenho de cópia a partir de estampa; desenho de ornato, desenho do Antigo ou

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de estátua; desenho de anatomia; desenho do modelo vivo: nu, panejamentos e cabeça – sendo
possível tomar conhecimento dos temas, modelos e exercícios executados nestas aulas.

Na classe de desenho de arquitectura, as lições retiradas da tratadística italiana e francesa


dos séculos XVI, XVII, XVIII e XIX, em particular, a Regola de Vignola, marcaram uma
constante nesta classe de desenho que todos os alunos da Academia tinham de frequentar.
No estudo a partir da cópia de estampa, os alunos aprendiam em primeiro lugar o desenho de
contorno para em seguida passarem à representação em claro-escuro. As gravuras e estampas
de obras de mestres do Renascimento e do Barroco, como Rafael (1483-1520), Guido Reni
(1575-1642), Charles Le Brun (1619-1690), entre outros, serviam como modelos para os alunos
copiarem. Em relação ao desenho do ornato, os discípulos da Academia dedicavam-se a
desenhar baixos-relevos e pormenores arquitectónicos. Na classe de desenho do antigo ou de
estátua, eram estudados e desenhados pormenores de torsos e figuras em vulto pleno de
modelos de gesso da estatuária clássica: Antinoo, Vénus de Milo, Laocoonte, Gladiador e o
Discóbolo (Figura 1).

Figura 1 – Augusto Valeriano da Paixão Gameiro (?-?),


Gladiador Borghese, 116,9 x 91,5cm, lápis negro s/ papel,
1871. Faculdade de Belas Artes da Universidade de Lisboa,
FBAUL/335/DA. Fotografia de Alberto Faria.

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O estudo da anatomia era feito a partir de modelos anatómicos de esqueletos, e da
estátua do esfolado – L’Ecorché, de Jean Antoine Houdon (1741-1828). Esta aprendizagem tinha
como fim servir o desenho do modelo vivo ou do nu – etapa final de aprendizagem e “parte
essencial da Escola Académica” (Academia Nacional de Belas Artes, Artigo 62º, 1843).
Procurando estabelecer um paralelo com o estudo do Antigo, nas aulas de desenho do nu, o
modelo assumia por vezes a atitude corporal das estátuas clássicas, o que vem demonstrar a
importância dos exemplos da estatuária clássica nesta classe de estudo (Figura 2).

Figura 2 - José Vital Branco Malhoa (1855-1933),


Modelo Anatómico – Esfolado, 73,5 x 55cm, lápis
negro s/ papel, 1869-70. Faculdade de Belas Artes
da Universidade de Lisboa. FBAUL/449/DA.
Fotografia de Alberto Faria.

Inscrito noutro sector da colecção encontram-se os desenhos provenientes de remessas


feitas pelos pensionistas/bolseiros à Academia, como forma de comprovarem a sua prestação
nos ateliers ou academias frequentadas no estrangeiro, para desta forma justificarem a
continuidade das suas pensões. São exemplo os desenhos da autoria de José Simões de Almeida
(tio) (1844-1926), António José Nunes Júnior (1840-1905), Adolfo de Sousa Rodrigues (1867-
1908), Ernesto Condeixa (1858-1939), Adriano de Sousa Lopes (1879-1944), Veloso Salgado,
executados por estes artistas nas academias e ateliers por eles frequentadas em Paris e Roma.
São obras que documentam o método do desenho praticado em outras instituições de ensino
artístico europeias da época. E cujos ensinamentos foram transmitidos

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mais tarde aos alunos da Academia, quando estes artistas e antigos pensionários assumiram o
cargo de professores, como é o caso de Veloso Salgado ou Simões de Almeida (tio) (Figura 3).
Ainda dentro deste grupo de desenhos, há que destacar um desenho de modelo vivo (Inv n.º

338) da autoria do escultor portuense António Soares dos Reis (1847-1889), pensionário pela
Academia de Belas Artes do Porto e colega de Simões de Almeida em Paris. O desenho do
escultor portuense foi provavelmente cedido ou trocado com outra(s) obra(s) de Simões de
Almeida, em sinal da amizade mantida entre os dois escultores, tendo sido posteriormente
oferecido, em 1906 por este último à Escola de Belas Artes de Lisboa.

Figura 3 – José Simões de Almeida Júnior, Académia de Nu


Masculino, 59,4 x 44,5cm, grafite e carvão e esfuminho s/ papel,
30/12/1870. Faculdade de Belas Artes da Universidade de Lisboa.
Fotografia de Alberto Faria.

A maioria das obras premiadas nos concursos e as obras remetidas pelos pensionistas
eram apresentadas nas exposições anuais e trienais Academia/Escola, com o intuito de serem
divulgados os resultados do ensino. Abertas aos alunos da instituição e ao público em geral,
estas exposições serviram, por um lado, para motivar e sensibilizar as gerações mais novas de
alunos; por outro, instruir o público, que afluía a estes certames. A Academia cumpria assim um
dos seus desígnios estatutários, que era o “[…] de promover a civilização geral dos Portugueses,
diffundindo por todas as classes o gosto do Bello […]”iii. Algumas das obras eram

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emolduradas e exibidas nas salas de aula ou arquivadas em pastas, possivelmente para serem
utilizadas como exemplos de estudo para os discípulos conhecerem a forma correcta de
representar os modelos que lhes eram dados a estudar nas aulas de desenho. Podendo por isso
ser considerada uma colecção, que esteve no passado ao serviço do ensino.

Noutro grupo da coleção estão algumas provas de admissão ao professorado. Refira-se


como exemplo, dois desenhos da autoria dos escultores Francisco Franco (1855-1955) e
Leopoldo de Almeida (1898-1976) que foram apresentadas, em 1934 no concurso de admissão
ao professorado da cadeira de Desenho do Antigo e do Modelo Vivo da Escola de Belas Artes de
Lisboa; ou o desenho de João Cristino da Silva (Inv. nº 385), executado no contexto do concurso
de admissão ao professorado da cadeira de Desenho anexa à Faculdade de Matemática da
Universidade de Coimbra (Figuras 4 e 5).

Figura 4 – Leopoldo Neves de Almeida, O Infante Dom Henrique


Contemplando, em Sagres, num Terraço da sua Vila, a Vastidão do
Mar, 155,7 x 125,3cm, grafite s/ papel, 21/08/1934-24/09/1934.
Faculdade de Belas Artes da Universidade de Lisboa.
FBAUL/356/DA. Fotografia de Alberto Faria.

15
Figura 5 – Francisco Franco, O Infante Dom Henrique Contemplando, em
Sagres, num Terraço da sua Vila, a Vastidão do Mar, 152 x 150cm, grafite
s/ papel, 21/08/1934-24/09/1934. Faculdade de Belas Artes da
Universidade de Lisboa. FBAUL/357/DA. Fotografia de Alberto Faria.

A produção de suportes didácticos por elementos docentes encontra-se representada na Colecção


através de dois originais destinados a um Compêndio de Perspectiva e Projecção de Sombras, da
autoria do professor e arquitecto, José da Costa Sequeira (1800-1872), que este realizou por volta
da década de 50 e que deixou incompleto (Inv. nºs: 461 e 464).

Fora do contexto académico, mas realizados por antigos alunos e artistas ao serviço da
Academia, a colecção possui três projectos da autoria dos arquitectos João Pedro Monteiro
(1826-1853) e Valentim José Correia (1822-1900) e do artista agregado Joaquim J. Boaventura
Alves, para o concurso público aberto, em 1842 para a edificação de um monumento em
memória ao Duque de Bragança (Inv. nºs: 376, 376.1, 438, 377). São obras que constituem um
documento visual raro da presença nacional neste concurso, onde foram apresentados vários
projectos, de que a imprensa da época apenas menciona os nomes dos candidatos estrangeiros
(Faria, 2011, p. 300) – Pierre‑Joseph Pézerat (1801-1872), Achilles Rambois (1808-1879,
Giuseppe Cinatti (c.1810-1882) e Fortunato Lodi (1805-1882) (Figura 6).

16
Figura 6 – João Pedro Monteiro, Alçado do Monumento em Memória de Sua
Majestade Imperial o Sr. Duque de Bragança Dador e Restaurador da Carta
Constitucional, e da Liberdade da Nação Portuguesa, 104,2 x 71,5cm, grafite,
tinta preta e aguarela s/ papel, 16/11/1842-31/12/1842. Faculdade de Belas
Artes da Universidade de Lisboa. FBAUL/376/DA. Fotografia de José Viriato.

A colecção desenho antigo da FBAUL seria originalmente parte de um espólio mais


vasto, não só em número, mas também em género, que a Academia das Belas-Artes de Lisboa,
instalada no convento de S. Francisco foi reunindo desde a sua fundação no contexto da sua
actividade didáctico-pedagógica, mas que se foi-se dividindo pelas diversas instituições
museológicas, culturais e de ensino que se estabeleceram no cenóbio franciscano (Faria, 2008;
2011).
Foi formada a partir de desenhos resultantes de exames/provas, classificadas com
mérito pelo sistema de ensino da antiga academia, tendo algumas destas obras servido como
exemplo para instruir as diferentes gerações de alunos da antiga Academia. Constitui, na
actualidade, a memória da expressão académica do desenho que foi ensinado e praticado na
antiga academia das belas artes de Lisboa, sendo de alguma forma representativa do desenho
académico português do século XIX.

17
Referências bibliográficas

Academia Nacional de Belas Artes. Estatutos da Academia das Bellas Artes de Lisboa.
Lisboa:
Na Imprensa Nacional, 1843.

Arruda, Luísa (coord); Faria, Alberto (textos) (2010). Desenho antigo: na colecção da
Faculdade
de Belas-Artes da Universidade de Lisboa. Lisboa: Faculdade de Belas Artes. [Catálogo
da exposição Desenho antigo: na colecção da Faculdade de Belas-Artes da Universidade
de Lisboa, patente na Galeria de Exposições da FBAUL entre 16 de jun. - 16 de Jul. 2010].

Arruda, Luísa; Faria, Alberto (2011). Museu Virtual da FBAUL. (Conferência apresentada
no âmbito do Projecto Conversas à Volta da Mesa, organizado pela Biblioteca da FBA-
UL, julho de 2011). Disponível em http://hdl.handle.net/10451/4280.

Bernardo, José Viriato (2013). A colecção de escultura da Faculdade de Belas Artes: a


formação do gosto e o ensino do desenho. (Tese de Doutoramento. Orient. Prof. Doutora
Luísa Capucho Arruda). Disponível em http://hdl.handle.net/10451/10797.

[Calado, M.ª Margarida T. B. e Calado, Maria Marques] (1975). Desenhos dos Séculos XIX
e XX – Escola Superior de Belas‑Artes de Lisboa. Lisboa: Escola Superior de Belas‑Artes
de Lisboa. [Catálogo da exposição – Desenhos dos Séculos XIX e XX – Escola Superior de
Belas‑Artes de Lisboa – que esteve patente na ESBAL entre 27 de outubro e 9 de
Novembro de 1975].

Calado, Margarida (2000). O Convento de S. Francisco da Cidade. Subsídios


para uma Monografia. Biblioteca d’Artes, n.º 1. [Lisboa]: Faculdade de Belas-
Artes.

Faria, Alberto Cláudio Rodrigues (2008). A Colecção de Desenho Antigo da Faculdade


de Belas-Artes de Lisboa (1830-1935): tradição, formação e gosto. (Dissertação de
mestrado. Orient. Prof. Doutora Luísa D’Orey Capucho, de Arruda). Disponível em
http://hdl.handle.net/10451/7883.

Faria, Alberto (2011). A colecção de desenho antigo da Faculdade de Belas-Artes


de Lisboa (1830-1935) : tradição, formação e gosto. [Lisboa]: Fim de Século.

18
Madeira, Maria Teresa (2005). A colecção de gravura antiga da Faculdade de Belas
Artes da Universidade de Lisboa. (Dissertação de mestrado. Orient. Prof. Doutora Luísa
Capucho Arruda). Universidade de Lisboa, Faculdade de Belas-Artes de Lisboa, Lisboa,
Portugal.

Pereira, Fernando António Baptista (2011). O património artístico da Faculdade de


Belas-Artes: o edifício e as suas memórias, as colecções, o arquivo, os legados, um
projecto de museu. In: Lourenço, Marta; Neto, Maria João (coord.), Património da
Universidade de Lisboa: ciência e arte. Lisboa, pp. 157-172.

http://museuvirtual.belasartes.ulisboa.pt/ [2017.11.21; 12h].

Notas

i
Podemos referir como exemplos as colecções das seguintes instituições: École nationale supérieure
des beaux-Arts (Paris), Accademia di belle arti di Brera (Milão) ou a Academy of fine arts Vienna. Em
Portugal, o exemplo mais próximo, embora com as suas diferenças, é o da colecção do Museu da
Faculdade de Belas-Artes da Universidade de Porto (http://museu.fba.up.pt/).
ii
A 1ª versão do Museu Virtual da FBAUL data de 2011, que inaugurou, com a disponibilização on-line da
colecção de desenho antigo. Actualmente existe uma 2ª versão, que passou a integrar a colecção de
gravura antiga da Faculdade. Sobre a 1ª versão do museu virtual vd. Arruda, Luísa; Faria, Alberto (2011).
Museu Virtual da FBAUL. (Conferência apresentada no âmbito do Projecto Conversas à Volta da Mesa,
organizado pela Biblioteca da FBAUL, Julho de 2011). Disponível em http://hdl.handle.net/10451/4280.

iii
Estatutos da Academia de Belas Artes de Lisboa. In: Diário do Governo, n.º 257, de 29 de Outubro de
1836.

19
METODOLOGIA DE CRIAÇÃO PARA ILUSTRAÇÃO DE LIVROS:
UM ESTUDO SOBRE A CONSTITUIÇÃO DA IMAGEM NARRATIVA

CREATION METHODOLOGY FOR BOOK ILLUSTRATION:


A STUDY ON THE CONSTITUTION OF THE NARRATIVE IMAGE

Alexandre Linhares GUEDES1


Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro
profalexlg@gmail.com

Resumo

Neste artigo abordaremos o processo de criação da imagem narrativa para fins editoriais, estruturado
na metodologia de investigação que vem sendo desenvolvida no doutoramento em Desenho na
Faculdade de Belas Artes da Universidade de Lisboa (FBAUL). Assim, apresentaremos o
procedimento relativo à geração do livro de imagens “A Menina, o Riacho e o Príncipe”. Esse projeto
de pesquisa é determinado pelo seguinte princípio: a mudança do atual paradigma que estabelece a
leitura prévia do texto e, em sequência, a realização das imagens. Essa alteração visa ampliar, – a
partir de experimentos fundamentados na análise de obras de arte e ilustrações –, o raio de
abrangência visual na produção de uma história sem palavras.

Palavras-chave: Análise. Ilustração. Processo.

Abstract

In this article we will discuss the process of creating the narrative image for editorial purposes,
structured in the research methodology that has been developed in the PhD in Drawing at the Faculty
of Fine Arts, University of Lisboa (FBAUL). Thus, we will present the procedure related to the
generation of the book of images "The Girl, the River and the Prince". This research project is
determined by the following principle: the change of the current paradigm that establishes the previous
reading of the text and, in sequence, the realization of the images. This amendment seeks to extend -
from experiments based on the analysis of works of art and illustrations - the radius of visual
comprehension in the production of a story without words.

Keywords: Analysis, Illustration, Process.

1
Doutorando em Desenho pela Faculdade de Belas Artes da Universidade de Lisboa; Bolsista da CAPES – Brasil.

20
No artigo trataremos da constituição da imagem narrativa, enquanto metodologia de
criação, a partir de um estudo da forma para fins editorias. A pesquisa refere-se a elaboração
do livro de imagem a “A Menina, o Riacho e o Príncipe” no qual a geração da história, produto
de um procedimento eminentemente visual, utiliza como ponto de partida a publicação “A
Menina do Narizinho Arrebitado”2. Segundo essas premissas, executamos na primeira fase do
projeto uma série de análises que objetivam a absorção de aspectos plásticos e imaginativos
contidos na obra de artistas situados entre o século XVI e início do século XXI. A inspeção
visa estabelecer uma ponte entre a tradição e a modernidade, através de um recorte no qual o
desenho apresente protagonismo, ou seja, em que as imagens tenham um caráter mais gráfico.
Para tanto, fundamentamos a concepção do projeto de pesquisa dividido em dois momentos:
levantamento iconográfico e análise da imagem. O desdobramento dessa investigação resultou
em um conjunto de experiências narrativas, de caráter abstrato, estruturadas por princípios
compositivos relacionados ao cinema, que vêm sendo utilizados por artistas na ilustração de
livros. Essa etapa da pesquisa é compreendida como “o livro de imagem antes do livro de
imagem” e reforça a ideia de que independente da existência de um argumento literário, a
construção de uma história sem palavras é favorecida quando o processo de criação é
completamente visual. Contudo, no que se refere as análises, por serem extensas, iremos
restringir nossa abordagem apenas aos aspectos teóricos que são utilizados como mecanismo
de reflexão para o trabalho desenvolvido.

Levantamento Iconográfico

O levantamento iconográfico tem por finalidade a constituição de um referencial


plástico e imaginativo, a partir do qual realizamos estudos de composição (cópias) e análises
dos respectivos conteúdos visuais. A escolha dos artistas e das obras decorre da afinidade visual
estabelecida no decurso de nossa jornada artística e acadêmica (1986-2017). Levando-se em
consideração esta prerrogativa, iniciamos o procedimento de investigação determinando o
espaço de tempo com que iríamos trabalhar.
Procuramos definir neste momento qual seria o alcance da pesquisa e partimos da
seguinte premissa: acessar a produção de épocas distintas, com o intuito de absorver conteúdo
visual diversificado para a formação de um repertório abrangente. Com isto, pretendemos
ampliar nosso leque de possibilidades criativas que visa a elaboração do livro de imagem “A

2
“A Menina do Narizinho Arrebitado” é o primeiro livro escrito para crianças e jovens no Brasil. A publicação, datada de
1920, é de autoria do escritor e editor Monteiro Lobato (1882-1948), com ilustrações de Voltolino – pseudônimo de Lemmo
Lemmi (1884-1926).

21
Menina, o Riacho e o Príncipe”. Isso não significa um condicionamento do trabalho às
referências que serão estudadas, uma vez que o processo de criação é dinâmico e estará sempre
sujeito a variações.
Para alcançarmos o objetivo traçado, entendíamos que seria preciso delimitar um
período histórico e optamos por marcar nosso território entre os séculos XVI e início do século
XXI. Entretanto, como se tratavam de mais de quinhentos anos de produção artística, fora
necessário estabelecer um recorte, para o qual instauramos alguns critérios: o primeiro é
relativo ao acesso às fontes visuais disponíveis para consulta in loco, pois a internet só nos
serviria enquanto fonte de pesquisa preliminar; o segundo aspecto relaciona-se ao nosso
interesse pela linha. Isso implica na maneira como percebemos sua presença e variações
gráficas na imagem considerando fatores, tais como: sobreposição; silhueta; figura e fundo;
escala; claro-escuro; preenchimento de cor com áreas chapadas; variação tonal; ritmo;
equilíbrio etc.
Em termos imaginativos levamos em conta, no conjunto das composições observadas,
elementos figurativos que nos parecessem estranhos, ambíguos e inverossímeis. Em um
universo de setenta e oito artistas, selecionamos cinco e uma obra de cada referência para
análise teórico-prática. As imagens são as seguintes: “Senhora com um Chapéu” (Dulcineia),
1982, de Albín Brunovský (1935-1997); “São Cristovão”, 1511, de Albrecht Dürer (1471-
1528); “Cinderela”, na seguinte passagem: “Cinderela deixa de ser uma serviçal e recebe sua
carruagem para ir ao baile instituído pelo Rei, em que seu filho, o príncipe, escolherá uma
esposa dentre todas as moças do reino para casar-se”, 1919, de Arthur Rackham (1867-1939);
“Alexandrino e o Pássaro de Fogo”, 1962, de Gilvan Samico3 (1928-2013); e “Sem Título”,
1920, de J. Carlos4 (1884-1950).

3
Gilvan José Meira Lins Samico (Recife, Pernambuco, 1928-2013). Gravador, pintor, desenhista, professor. Sua produção é
marcada pela recuperação do romanceiro popular nordestino, por meio da literatura de cordel e pela utilização criativa da
xilogravura. Com a apresentação de uma nova temática, introduz uma simplificação formal em seus trabalhos, reduzindo o
uso da cor e das texturas. Enciclopédia Itaú Cultural. Gilvan Samico. Enciclopédia Itaú Cultural online. [Online]. Fev. 2017,
1º parágrafo. Disponível: http://enciclopedia.itaucultural.org.br/pessoa10514/gilvan-samico [3 fev. 2017].
4
José Carlos de Brito Cunha (Rio de Janeiro RJ 1884 - idem 1950). Chargista, caricaturista, desenhista, pintor, ilustrador.
[…] Sua vida artística inicia-se em 1902 na revista Tagarela. Em mais de 40 anos, J. Carlos conta com uma produção
estimada em 100 mil desenhos. Realiza trabalhos no campo da publicidade, ilustrações de livros, decoração, cenário para
peças de teatro, escultura e programação visual. O motivo por excelência das charges de J. Carlos é o carioca, seus hábitos e
seu entorno. Enciclopédia Itaú Cultural online. [Online]. Fev. 2017, 7 parágrafos. Disponível: http://
enciclopedia.itaucultural.org.br/pessoa10405/j-carlos [3 fev. 2017].

22
Análise da Imagem

Nossa investigação enfatiza a importância da análise relativa as obras de arte. Este


fundamento nos leva ao estudo da composição e de seus aspectos estruturais, cujas caracterís-
ticas são tratadas a partir de duas perspectivas complementares: a primeira, relativa aos
procedimentos artísticos estabelecidos pelo pintor suíço Johannes Itten (1888-1967), em L’
Étude des Oeuvres d’ Art; e a segunda, através de princípios estabelecidos por Aby Warburg,
historiador da arte alemão, na obra Atlas Mnemosyne. Outros artistas e teóricos também
consubstanciam essa abordagem e estão presentes no curso de nossa argumentação.
As análises das obras de arte fazem parte de um esforço empreendido por Itten ao longo
de sua trajetória no intuito de compreender as estruturas criativas, ou seja, as leis que regem a
arte. Suas inspeções visuais trazem diversas contribuições à medida em que cada época carrega
consigo uma diversidade de possibilidades compositivas. Neste sentido, a pesquisa
empreendida a partir do levantamento iconográfico visa, em caráter teórico-prático, um
entendimento das questões que envolvem a produção visual.

– Estudos de Composição

Segundo Johannes Itten (1888-1967), artista e pedagogo suíço, a “visão interior” é um


passo em direção ao processo formador das obras de arte. Daí sua convicção de que o sentido
da visão retém um papel primordial, pois através da observação penetra-se na natureza das
obras. Trata-se da tentativa de apreendê-las em sua essência a partir de um procedimento que
esteja estruturado por uma experiência perceptiva. Neste sentido, “Contemplar um quadro
significa olhá-lo bastante tempo, até o vermos bem, até que ele aja em nós e que ele aja sobre
nós, a ponto de que nada dele se possa retirar, nem acrescentar. [...] Aprender a ver é a tarefa
em que devemos nos fixar.” (1990, p. 121).
Podemos depreender através do pensamento expresso por Itten, que a apreensão da
imagem artística está relacionada a uma vivência do olhar: uma tomada de consciên¬cia
relativa à obra cuja experiência seja reveladora, trazendo consigo as evidências de um
conhecimento que não encontra-se restrito à primeira impressão. “O sentido e o conteúdo das
grandes obras é testemunhar a essência espiritual e mística do mundo.” (id. p.45) A busca por
esse aprendizado é o vetor pelo qual procuramos conduzir os estudos de composição propostos.
Entretanto, gostaríamos de salientar também um aspecto comum a todas as análises e que fora
percebido no decurso de cada investigação: a presença de uma herança visual ou algo que

23
também poderíamos denominar como memória artística. Um conjunto de referências que
atuam no sentido de consubstanciar as composições e servem de plataforma para a perpetuação
de um saber que reside nas obras. Segundo o historiador alemão Aby Warburg (1866- 1929),
três sistemas ligam as imagens entre si através do tempo:

[...] em primeiro lugar, os cósmicos [...] pela astronomia e pela evolução das ideias acerca de sua
influência na história e nos comportamentos humanos; em segundo lugar, o sistema terrestre de viagem
das imagens; e em terceiro lugar o sistema que podemos chamar de social, quer dizer, como as imagens
se transmitem igualmente através de uma memória hereditária ou colocando de outra maneira, como o
ordenamento social atua como um dos meios mais frequentes para facilitar a transmissão. (2010, p. 141)

Os princípios estabelecidos por Warburg para transmissão de imagens e, em particular


o que denomina como sistema social, sublinha a transferência do conhecimento artístico como
um fator de hereditariedade cultural, ou seja, algo que não está restrito a determinado período,
mas que é comum a todas as épocas. Uma ideia que remonta ao pensamento de Santo Agostinho
(354 d.C.- 430 d.C.) quando aponta para a compreensão do tempo como uma categoria que não
está sujeita a divisões e quanto a isso, dizia: “o que existe é o presente do passado, o presente
do presente e o presente do futuro.” (CCBB, p. 9, 1995) Esta noção de simultaneidade histórica
foi aquela com a qual nos defrontamos frequentemente na jornada relativa a cada inspeção
visual, reforçando a ideia de que “não há passado ou futuro na arte”. (Chipp, 1996, p. 268) “[...]
todas as imagens são as mesmas em diferentes planos.” (Ibid)
Para o historiador da arte alemão, o “processo de transmissão de formas não deve ser
pensado como uma sucessão cronológica que [...] qualifica de ‘evolucionismo descritivo”,
(Warburg, Op. cit., p. 139) mas sim pelas “[...] relações instintivas, que unem a psique humana
com uma matéria que se estratifica (se ordena) de maneira acronológica.” (Ibid) Isto reforça
nossa percepção, pois denota a existência de uma correlação de identidade entre as obras,
afinidade que revela a presença de uma índole compositiva, notabilizada por sua autonomia
formal.
O processo que envolve a transmissão de saberes visuais através dos tempos e que se
configura, entendemos assim, enquanto fator cultural é denominado por Warburg como
“viagem das imagens” (Id. p. 141). Este percurso pode ser considerado como uma sonoridade
que ecoa a partir de oscilações distintas desde a Antiguidade até os nossos dias. Dessa forma,
a memória coletiva torna-se o veículo de hereditariedade que reverbera consciente ou
inconscientemente na produção artística. Assim, objetivamos reforçar o diálogo existente entre

24
a modernidade e a tradição segundo um “raciocínio perceptual”5. Sendo descartado por nós,
nesta tônica, qualquer asserção ao termo evolução, pois entendemos os avanços alcançados
como o resultado de uma variação da capacidade de absorção e adaptação cognitiva atemporal
ou como nomina Warburg, “acronológica”. Vejamos o que Pablo Picasso (1881-1973) pensa
sobre isto:

Se uma obra de arte não pode viver sempre no presente, ela não deve ser absolutamente considerada. A
arte dos gregos, dos egípcios, dos grandes pintores que viveram em outros tempos, não é uma arte do
passado, talvez esteja mais viva hoje do que nunca. A arte não evolui por si mesma; as ideias das pessoas
se modificam e, com elas o seu modo de expressão. [...] Variação não significa evolução. (Chipp, Op.
cit., p. 268-9)

A linha de pensamento expressa pelo pintor catalão salienta que arte não tem um caráter
darwiniano, mas que funciona como uma caixa de ressonância sujeita a mutações. Segundo
essa acepção, o passado não deve ser descartado e nem muito menos percebido a partir de um
caráter evolucionista. Ao defendermos este ponto de vista, centrado na simultaneidade
histórica, não estamos propondo um retorno ao Renascimento ou qualquer coisa do gênero,
mas uma compreensão daquilo que dá sedimento e por conseguinte, segundo nossa perspectiva,
estrutura a criação artística. Por isso, ressaltamos em nossa investigação o diálogo existente
entre a gravura de Albín Brunovský (1935- 1997), Albrecht Dürer (1471-1528), Arthur
Rackham (1867-1939), Gilvan Samico (1928-2013) e J. Carlos (1884-1950) com a tradição,
sendo esse princípio compreendido, como já fora dito anteriormente, pelo prisma do raciocínio
perceptual. Atitude que é reflexo de uma compreensão fundamentada na metodologia visual de
Itten, cuja ideia primordial foi a de resgatar uma consciência artística ligada à tradição pictórica
na qual, segundo ele, residem conhecimentos sobre os aspectos formais da imagem:

Seria muito revelador examinar e representar com que abstração os antigos mestres pintaram seus
quadros. Quem não vê, nos quadros de Leonardo da Vinci, de Piero Della Francesca, de Rembrandt e de
muitos outros senão o objeto e seu conteúdo simbólico, perde dele a força ativa e a beleza. Esta força e
esta beleza são engendradas pelos contrastes de linhas, de formas, de proporções e de texturas, pela
oposição preto-branco e as numerosas nuances possíveis de cinza, pelo claro-escuro das cores, contraste
quente-frio, ou seja, um material imenso que está à disposição do pintor [...]. (Op. cit., p. 26)

5
“Por ‘raciocínio perceptual’ entendo o trabalho criativo que inclui a utilização de relação entre qualidades sensíveis tais
como o tamanho, o movimento, o espaço, a forma ou a cor. Albert Eisnstein qualificou em certa ocasião o seu pensamento de
‘interação combinatória’ de ‘certos signos e imagens mais ou menos claros’ [...]. Estas operações eram umas vezes
aparentemente muito conscientes e outras não, pois Einstein assegurava a seguir que a ‘plena consciência é um caso limite que
nunca pode atingir-se por completo’. Do mesmo modo, um artista elabora suas composições pictóricas essencialmente através
do raciocínio perceptual, guiado por processos que têm lugar abaixo do nível da consciência.” (Arnheim, 1997, p.285)

25
Para o artista e pedagogo suíço, esta tomada de consciência permite ao observador
atento uma apreensão totalizante do objeto artístico e seu eventual desdobramento analítico,
possibilitando a elaboração de um repertório plástico que será comum, segundo nosso
entendimento, a qualquer meio de expressão visual. No decurso de sua prática docente e
artística Itten visa apreender as forças vitais emanantes dos quadros, assim como as qualidades
expressivas das formas isoladas ou dos conjuntos de formas. Neste sentido, procura demonstrar
como o ensino do olhar construído de maneira lógica pode se somar à apreensão sensível das
obras para, por exemplo, escalonar os contrastes fundamentais característicos e representá-los
de maneira elementar. Significa efetuar a experiência desses efeitos essenciais como portadores
de forças expressivas: “Para compreender as formas e seu valor expressivo, é preciso aprender
a linguagem dessas formas.” (Id., p. 121) Tal princípio só é possível quando realizamos uma
reflexão crítica de que “desenvolver o olho do espírito, a visão interior, a clarividência, o
conhecimento da real natureza das coisas através de suas formas enganadoras, é uma nobre
finalidade.” (id., p. 39) Suas considerações sublinham a pertinência de uma abordagem da obra
instrumentalizada pela visão e chancelada por uma vivência dos mecanismos que regem a
produção da imagem. A absorção e o reconhecimento dessas qualidades compositivas também
encontram-se no centro da investigação teórica do professor e pintor Nelson Macedo,
abrangendo a dinâmica do olhar e suas reverberações em relação ao objeto artístico.

A apreensão não conduz a uma resultante fixa, mas se mantém como experiência do movimento ou ação
cognitiva diante da obra: é no contato visual com a forma configurada que se dá o entendimento, como
vivência de sua ordenação interna. O sentido artístico é uma potência indeterminada e se renova a cada
contato com a obra. (2000, p. 52)

O pensamento expresso anteriormente ecoa nas palavras do teórico alemão Rudolf


Arnheim: “Nada que um artista põe em seu trabalho pode ser negligenciado impunemente pelo
observador.” (1998, Introdução) Ao concluirmos esse estágio da pesquisa chegamos à seguinte
conclusão: por mais “óbvio” que possa parecer, pretendemos apenas atestar o resultado de um
experimento que teve o objetivo de suscitar uma ideia sobre os procedimentos relacionados à
concepção da imagem artística. Propósito que também teve por finalidade a ampliação de nosso
conhecimento plástico e imaginativo.

Talvez me digam que seria de se esperar de um pintor outras perspectivas sobre a pintura, e que em suma
só apresentei lugares-comuns. A isso respondo que não existem verdades novas. O papel do artista, assim

26
como o do cientista, consiste em aprender as verdades correntes que lhe foram constantemente repetidas,
mas que para ele assumiram um caráter de novidade e se tornarão suas no dia em que ele perceber o
sentido mais profundo delas. Se os engenheiros aeronáuticos tivessem de apresentar suas pesquisas,
explicar como puderam sair da terra e se lançar no espaço, dariam- nos simplesmente a confirmação de
princípios de física muito elementares, que outros inventores negligenciaram. Um artista sempre ganha
ao aprender sobre si mesmo, e eu me felicito por ter aprendido qual era meu ponto fraco. (Matisse, 2007,
p. 49)

Realizar estudos de composição sobre o ponto de vista da produção constituiu-se em


um grande aprendizado, reforçando a importância desse tipo de iniciativa. Fica claro, portanto,
que “[...] o conhecimento dos meios de criação e de suas leis não representa um fim em si
mesmo, mas tem apenas um caráter instrumental que permite alcançar o objetivo de um
autodesenvolvimento criativo.” (Wick, 1989, p. 155) Por isto, cada passo dado no procedimen-
to relativo às investigações empreendidas, trouxe ganhos que ainda não sabemos como irão
reverberar em nosso processo de criação. A dinâmica que envolve essa natureza não está sujeita
a premonições e acreditamos que, nesse particular, resida o mistério da criação. “Finalmente,
foi uma lição salutar a descoberta de que a visão não é um registro mecânico de elementos,
mas sim a apreensão de padrões estruturais significativos.” (Arnheim, Op. cit., Introdução)

O Livro de Imagem antes do Livro de Imagem

Nesta etapa do trabalho, tratamos dos aspectos visuais relativos à concepção de um


livro de imagem. Realizamos essa investigação a partir de uma conduta artísitica que tem por
objetivo uma pesquisa do processo de criação. Entretanto, nossa proposta não se restringe ao
modelo adotado no estágio anterior do projeto, pois amplia o alcance dessa iniciativa através
de uma diversificação de procedimentos. Isto significa dizer que intensificamos a ideia, –
segundo princípios estabelecidos na origem da pesquisa –, de que a imagem é a força motriz
da própria imagem. Assim, iniciamos o desenvolvimento de livretos, estritamente visuais, antes
do contato com o texto de Monteiro Lobato e as ilustrações de Voltolino em “A Menina do
Narizinho Arrebitado”, matriz literária que será utilizada para a geração do picture book a “A
Menina, o Riacho e o Príncipe. Tendo por objetivo essa finalidade, exploramos dois estudos de
caso relacionados a produção editorial e o resultado das análises efetuadas no primeiro capítulo,
a partir de experiências que envolvem a elaboração de composições narrativas abstratas. Esse
movimento pretende aprofundar a capacitação plástica e narrativa da proposição inicial, para

27
na sequência, – considerando a publicação que serve como referência ao trabalho –, conceber
uma nova história caracterizada figurativamente.

• Dois estudos de caso: Dawn (Alvorecer) e Outono

Com o intuito de ampliarmos o conhecimento relativo a elaboração de uma narrativa


não-verbal, examinamos duas possibilidades que fazem menção a um mesmo tipo de matriz
visual: o cinema. Segundo Maria Nikolajeva (1952) e Carole Scott (?), a sétima arte é uma
referência bastante utilizada na ambientação de livros ilustrados ou livros de imagem, e sobre
isso, fazem a seguinte consideração:

[...] ao contrário do teatro, mas semelhantes ao filme, os livros ilustrados podem fazer uso de uma
diversidade de soluções de imagem na descrição do cenário, por exemplo, com planos panorâmicos (em
especial nas páginas introdutórias), planos gerais, planos médios, closes ou cenas múltiplas (isto é, duas
ou mais locações diferentes na mesma página dupla). (2011, p. 87)

É por intermédio desses recursos compositivos que percebemos a estratégia de


construção narrativa empreendida por Uri Shulevitz (1935) em Dawn (Alvorecer) e André
Letria (1973) em Outono. Essas publicações são eminentemente visuais e exploram, em termos
cinematográficos, abordagens distintas na estruturação do livro de imagem. Entretanto, em
ambas as situações podemos verificar um sistema ordenado que interliga todos os elementos,
mesmo quando esses se diferenciam, na constituição de uma história. Para Serguei Eisenstein
(1898-1948), esse sentido de organização é produto de uma articulação formal, que visa
sustentar a criação artística.

“[...] em uma obra de arte orgânica, os elementos que sustentam a obra como um todo perpassam todos
os aspectos que a compõem. [...] a qualidade orgânica pode ser definida pelo fato de que a obra como um
todo é governada por determinada lei de estrutura e todas as suas partes são subordinadas a esta lei. Os
estetas alemães etiquetaram isto: qualidade orgânica de uma ordem geral”. (2002, p. 148-149)

A natureza desse princípio está presente naquilo que notabiliza a composição das obras
em questão, salientando em cada conjunto de imagens a orientação estética da narrativa. Esse
pressuposto aponta para o tipo de abordagem, tomada por empréstimo ao cinema, que os
respectivos livros ostentam em seus arranjos visuais.
Shulevitz em Alvorecer tira partido de uma estratégia fílmica que está relacionada a
montagem a partir de cortes sucessivos, crescentes ou decrescentes, de planos que ditam a

28
alternância de sequências visuais e distinguem a ação em dois segmentos: movimento
permanente (propiciado pela aproximação e pelo distanciamento do foco de interesse;
deslocamento da câmera) e movimento intermitente (ocorre no interior da cenas em períodos
de tempo distintos). A correlação desses ritmos facultam a narrativa uma dinâmica que,
guardadas as devidas proporções, em sua plasticidade assemelha-se ao cinema mudo. Podemos
explicar isso pela objetividade com que a história é exposta em seu desencadeamento, o que
contribui para uma percepção orgânica de um contexto ordenado cenograficamente. Neste
sentido, entendemos que a configuração de Alvorecer resulta de uma proposição que visa
favorecer a interpretação e por conseguinte, a leitura de imagens que precedem de palavras,
pois o texto aqui é meramente acessório. Assim, a composição levada a termo por meio de
determinados artifícios relativos ao cinema – como a simulação de movimento sugerido pelo
tipo de sequência estabelecida –, revela o quanto esse procedimento é útil. “Um livro de
imagens está mais próximo do teatro e do cinema, [...] em particular, do que a outros tipos de
livros. É um tipo único de livro.” (Shulevitz, 1997, p. 16)
Com base no estudo realizado, estruturamos duas composições nas quais trabalhamos
a partir da diferenciação entre plano geral, intermediário e close-up na forma de storyboard
(esboço sequencial). Nosso objetivo com essa proposição foi o de vivenciar na prática os
fundamentos aprendidos pela observação de Alvorecer.
Quanto a Letria, na obra Outono, tivemos novamente a oportunidade de explorar
conceitos visuais, de caráter narrativo, relacionados ao cinema. Porém, segundo outra
perspectiva compositiva: o plano-sequência.

“André Bazin, co-fundador da lendária revista Cahiers du Cinéma, definia o plano-sequência como a
filmagem de uma ação contínua com longo período de duração, no qual a câmera realiza um movimento
sequencial, sem ocorrência de cortes e em apenas um take. Ele defendia a ideia de que este recurso dava
mais realismo ao cinema, evitando a ruptura da realidade, que acontece normalmente através das
montagens de takes em uma película.”6

Partindo dessa premissa o autor simula um plano-sequência, como seria no cinema,


através de um formato de livro que se desdobra em várias sequências visuais e pode ser
percebido horizontalmente, enquanto um plano contínuo. Isso é muito interessante, pois indica
no todo de que maneira os elementos contidos em cada quadro reagem a dinâmica de espaço-
tempo estabelecida por Letria. Não há diversificação de planos ou cortes e tudo se dá de forma

6
Cinéfilos. Plano Sequência. Cinéfilos. [Online]. Ago. 2013, 1 parágrafo. Disponível: http://cinefilosjornalismojunior.com.
br/a-tecnica-do-plano-sequencia/ [19 ago. 2011].

29
ininterrupta, mesmo quando somos obrigados pela força das limitações que o meio impõe, a
nos dirigir para verso do livro. Assim, compreendemos que a dinâmica da publicação é
estruturada para dar protagonismo ao movimento, dimensionando a narrativa como expressão
artística.

• Narrativa abstrata: experimentos visuais

A pesquisa realizada a partir das narrativas visuais de Shulevitz e Letria foram


demasiado importantes, pois somadas as análises realizadas na primeira fase do projeto,
ampliaram o espectro de possibilidades a serem exploradas no trabalho. Entretanto, ainda não
tínhamos a ideia de como transformar os resultados alcançados até então, em algo que
apontasse para uma expansão de nossa metodologia de criação. Estávamos diante de um
impasse, ou seja, um daqueles momentos no qual acontece uma espécie de estagnação, onde
tudo parece estar envolto em brumas. Porém, ao termos uma conversa informal sobre o projeto
com a arquiteta brasileira Katya Verônica Linhares C. Branco (1961), ela, por considerar que
a proposta tinha algo haver com livros de artista, nos apresenta a produção do pintor iraquiano
Dia Azzawi (1939). O contato com a obra de Azzawi, pela multiplicidade plástica de seus
livros, sinaliza para uma possível resposta ao dilema. Em paralelo a descoberta do pintor
iraquiano, também buscávamos um referência teórica que tratasse de procedimentos,
compositivos, relacionados a elaboração de imagens voltadas para a ilustração de livros. Após
um período de tentativas infrutíferas, chegamos a publicação Picture This: How Pictures Work
(Imagine Isso: Como as Imagens Funcionam), da ilustradora norte-americana Molly Bang
(1943). Nesse livro a autora discorre de maneira didática sobre sua concepção para Red Riding
Hood (Chapeuzinho Vermelho), no qual, através de configurações oriundas de uma série de
recortes e colagens, gera signos visuais reconhecíveis como o lobo, a árvore, a floresta... Dessa
articulação quase aleatória, porém que obedece a uma ordem empírica de construção, nascem
as ilustrações. Arnheim aborda o princípio metodológico de Bang, segundo a seguinte
perspectiva:

O que é. . . tão especial e impressionante sobre o estilo do seu livro é que ele usa formas geométricas não
como geometria […], mas inteiramente como expressão dinâmica. Estamos falando de um jogo de forças
visuais dramáticas, ao apresentar características como tamanho ou direção ou contraste, como […] ações
[…]. Isso torna sua história muita viva em cada página. Dá a todas as suas configurações um vigor que
[…] as torna numa espécie de essência elementar. . . . É o que resta de "Red Riding Hood" quando

30
estraímos a beleza e deixamos que as sensações experimentadas gerem uma confiança na aparência direta
e pura. (Apud Bang, 2016, p. xiii)

Os fundamentos que norteiam a concepção visual da ilustradora norte-americana, na


percepção de Arnheim e o livros de Azzawi, para nós, constituem-se no elo de ligação que
faltava para a ampliação do processo de criação em curso. Assim, estabelecemos uma conexão
relativa as recentes descobertas e a pesquisa em desenvolvimento, partindo da seguinte
premissa: elaborar um conjunto de composições, de caráter abstrato, na qual relacionássemos
os ensinamentos narrativos investigados, com as estruturas gráficas derivadas de análises feitas
a partir das obras de Brunovský, Dürer e J. Carlos. Dessa interseção surgem a “Composição
Narrativa Abstrata Nº 1, 2 e 3”. Os títulos fazem referência as pinturas elaboradas pelo artista
russo Wassily Kandinsky (1866-1944), no período (1911-1914) em que fez parte do grupo Der
Blaue Reiter (“O cavaleiro Azul”). A deferência não é gratuita, pois o procedimento adotado
por Kandinsky em sua investigação artística, a época, guardadas as devidas proporções,
assemelha-se aos experimentos decorrentes das aspirações que orientam nosso projeto.

Podemos dar por certo que a pintura não esteve sempre tão abandonada nesse plano quanto está hoje, que
certos conhecimentos teóricos existiam, e isso não apenas no que diz respeito às questões puramente
técnicas, mas porque um certo tratado de composição podia ser ensinado – e foi ensinado – ao principiante
e porque alguns conhecimentos, relativos aos elementos pictóricos, à sua essência e a seu emprego pelo
artista eram coisas conhecidas7. (2001, p. 11)

A pesquisa empreendida através das análises, nos leva, não por acaso, a uma vivência
daquilo que é próprio à imagem: a essência dos elementos que constituem a forma. Origem do
pensamento visual que dirige-se, segundo os princípios já estabelecidos, para uma
experimentação induzida a partir de estruturas visuais subjacentes, cujo fim é tornar possível o
surgimento de uma nova composição. “Essa palavra age em mim como uma prece.” (Philppe
Sers, Apud KANDISNKY, 2001, p. XXVII)

Meu objetivo é desenvolver no homem o sentimento da essência das coisas, e isso pela contemplação da
matéria, fazendo reviver os sentimentos que encontraram forma nas obras de arte, relação entre
sentimento e forma [...]. É no movimento que me parece jazer toda a vida vivente, tudo o que existe [...].
Então surge a questão concernente à maneira pela qual a forma nasce do movimento. Se pudermos

7
Por exemplo, o emprego na composição dos três planos originais como base de construção do quadro. Ainda recentemente
tomavam-se por base nas academias de arte algumas dessas noções; talvez a mesma coisa aconteça hoje.

31
resolvê-la, podemos também dar forma às essências. Pois a essência vem fundamentalmente do
movimento. (Itten, 1990, pag. 40)

Conforme Kandisnky, Itten procura chegar ao âmago de uma síntese formal que seja
orientada pela ação de sentir (absorção de conteúdo visual) e ressentir (sentir novamente) as
imagens, como produto de uma vivência plástica e imaginativa da forma. Com base nessa
tônica e na apreensão do modus operandi de Shulevitz, Letria, Azzawi e Bang, iniciamos o
desenvolvimento relativo a “Composição Narrativa Abstrata Nº 1, 2 e 3”. Este ensaio tem por
objetivo expandir nossa perspectiva teórico-prática em relação aos princípios que constituem
um livro de imagem.

“Os livros de imagens são ‘escritos’ com imagens tanto quanto aqueles que são escritos com palavras.
[…] Ao contar uma história visualmente, ao invés de descrevê-la verbalmente, o livro ilustrado torna-se
uma experiência dramática: imediata, vívida, em movimento. Um livro de imagens está mais próximo do
teatro e do cinema, em filmes mudos, em particular, do que a outros tipos de livros. É um tipo único de
livro”. (Shulevitz, 1997, p. 16)

A experiência proposta provém de estruturas de claro-ecuro, que ressignificadas passam


a figurar como cenários; e de formas como a elipse, o retângulo, o círculo, o paralelogramo e
o triângulo retângulo que são extraídos de estruturas lineares, caracterizando o que poderíamos
chamar de personagens. Cada narrativa é constituída de uma única base cenográfica
dimensionada, no storyboard8 (esboço sequencial ou caminho de ferro) a partir de arranjos
visuais decorrentes de ampliações, rebatimentos, inversões, segmentações de natureza
horizontal-vertical e repetições, dos elementos geométricos, que estabelecem conexões para o
desencadeamento de uma sequencialidade visual. Como as estruturas e seus derivados são
distintos, as composições apresentam um conjunto diversificado de histórias não-figurativas,
nas quais também utilizamos cores complementares, em dois dos três estudos realizados, para
realçar as diferenças presentes nas narrativas.
Ao apresentarmos o produto de nossa pesquisa ao professor Pedro Saraiva (1952),
catedrático em Desenho da Faculdade de Belas Artes da Universidade de Lisboa (FBAUL), –

8 Os storyboards são utilizados para o planejamento visual das cenas [...]. Eles consistem em uma seqüência de quadros, no
formato no qual [...] as imagens [...] são desenhadas [...] da forma como imaginadas [...], incluindo o ângulo [...], a iluminação
desejada, etc. Cada um desses desenhos pode ser acompanhado ainda de anotações sobre a cena, tais como a descrição da
ação, do movimento, [...], ou qualquer outra informação que se julgar importante. Os storyboards são, de uma certa forma,
uma etapa intermediária entre o roteiro [...] e sua realização na prática. [...] são particularmente importantes no planejamento
de filmes de animação, já que eles possibilitam uma primeira aproximação das artes a serem [...]. Nesse sentido, eles podem
ser considerados como uma versão prévia do filme no formato de uma história em quadrinhos. Associação Brasileira de
Cinematografia online. [online]. Dez. 2017, 4 parágrafos. Disponível: http://www.abcine.org.br/ servicos/?
id=158&/storyboard [7 dez. 2017].

32
orientador do projeto de investigação –, tivemos a indicação de uma referência iconográfica
que se somaria as demais e expandiria nossa percepção quanto ao trabalho: Katsumi Komagata
(1953).
O ilustrador japonês trabalha na concepção de suas imagens com recorte e colagem,
assim como Bang em “Chapeuzinho Vermelho”, diferenciando-se apenas pela utilização de
uma gama mais variada de papéis coloridos e em algumas imagens que tendem a
tridimensionalidade. Levando-se em consideração o que é relativo ao uso da cor e a ideia de
algo que não tivesse somente um caráter planar, compreendemos porque Saraiva sugeriu a
observação de Komagata: precisávamos dar uma outra dimensão ao conjunto de narrativas
elaboradas, acrescentando a esse bloco a ideia de livro, ou seja, de objeto, como parte integrante
de uma lógica visual relacionada à ilustração. Segundo Shulevitz, “Somente através da
compreensão da estrutura do livro – incluindo sua estrutura mecânica – e como funciona, você
pode fazer um bom livro.” (1997, p. 11) Neste sentido, tivemos uma tomada de consciência
que potencializa os objetivos traçados, tornando indissociáveis a relação entre ilustração e
design para o desenvolvimento do projeto.
O designer italiano Bruno Munari (1907-1998), aborda a relação entre design e
ilustração, referindo-se ao livro, como algo que deva ser tratado através de um diálogo que
favoreça a comunicação visual. Para tanto, é preciso que o projeto envolva uma ordenação do
pensamento formal na qual tenhamos uma percepção do “livro como objeto”. (1981, p. 220)

O papel é usado como suporte do texto e das ilustrações e não como “comunicante” de alguma coisa. Se
quisermos por à prova as possibilidades de comunicação visual dos materiais com que é feito um livro
devemos experimentar todos os tipos de papel, todos os tipos de formato; com encadernações diferentes,
recortes, sequências de formas (de folhas), com papéis de diferentes matérias, coma as suas cores naturais
e as suas texturas. (Id., p. 221)

Munari ao sugerir a adoção desse princípio está nos falando sobre uma lógica de
construção, – denominada “experimentação criativa” (Id., p. 222) –, que favoreça a apreensão
do livro como um objeto de comunicação visual. Esse fundamento é latente na produção de
Komagata e tangencia a obra de Azzawi, pois em ambas as situações o que prevalece é o
conjunto. Poderíamos definir esse todo visual como a “dialética dos opostos entre as várias
partes que compõem o objeto livro” (Oliveira, 2008, p. 57). Partindo desse pressuposto,
precisamos considerar um fator importante: o ritmo.

33
[...], o ritmo deve ser entendido como um amálgama, um resultado do atrito visual entre formas e espaços
opostos. Também deve ser compreendido que ele não está circunscrito unicamente à sua atuação em uma
ilustração. O verdadeiro sentido do ritmo aqui proposto está na concepção de montagem geral, na
justaposição de elementos antagônicos ao longo de todo livro. Uma ilustração se relaciona com a
seguinte, e assim por diante.
O livro é uma arquitetura móvel. A sucessão de elementos que o constitui poderia até ser denominada
expressão cinética do livro. Essa sinestesia gráfica, essa inter-relação dinâmica de todas as partes, do
início ao fim, é o objetivo e o significado mais amplo de ritmo na arte de ilustrar [...] criar um eixo, uma
linha aglutinadora entre elementos díspares.
Portanto, o ritmo é um gênero de montagem que nos aproxima da montagem ou edição cinematográficas.
(2008, p. 58)

Esta percepção acerca do ritmo e de sua intrínseca relação com a estruturação gráfica
do livro, em termos de concepção, nos remete aos estudos de caso relativos a Shulevitz e Letria;
e ao conceito no qual Munari estabelece a comunhão entre design e ilustração, como fator
constitutivo da comunicação visual para fins editoriais. Assim, no que concerne a esse tipo de
abordagem, procuramos alicerçar a transformação das narrativas em livretos, no quais todos os
aspectos envolvidos nesse processo fossem tratados de forma correlata.
Começamos pela adequação do storyboard, de cada narrativa abstrata, a um formato
que possibilitasse o domínio físico do procedimento. Por isso, optamos em trabalhar com uma
dimensão que não ultrapassasse, no caso do livreto aberto, 17 cm x 10,7 cm. Outro fator
importante nessa fase de elaboração foi a adoção da cartolina para o desenvolvimento das peças
gráficas, utilizando tal superfície como matéria prima na “experimentação acerca das
possibilidades visuais e tácteis do livro como objeto” (Munari, 1981, p. 228). Neste sentido, o
suporte passa a ser estratégico enquanto agente comunicante de um ritmo e de uma plástica,
peculiares, nas histórias não-figurativas.

se um papel é transparente comunica a transparência, se é áspero comunica aspereza. […] cada papel
comunica a sua qualidade. E isso é já uma razão para ser usado como comunicante: trata-se então de
relacionar este conhecimento com os outros que vão resultar da experimentação”. (Id., p. 223)

A apropriação desse material, manipulado segundo os artifícios utilizados por Bang em


seu procedimento e tratado por Munari em sua concepção teórica, deságua no que é conhecido
como “pré-livros” (Id., p. 228). Em nosso caso específico, o termo funciona para nomear o
ensaio que é produto de nossas futuras pretensões, ou seja, a geração do livro de imagem “A

34
Menina, o Riacho e o Príncipe”. Imbuídos desse intuito, demos continuidade ao
desenvolvimento da “Composião Narrativa Abstrata Nº 1, 2 e 3, na forma de livretos.
Na medida em que avançamos na construção das ilustrações através da montagem dos
cadernos para os livretos, observamos algo que havia passado ao largo de nossa consciência no
storyboard de cada proposta: as histórias poderiam começar ou terminar segundo uma lógica
não ortodoxa de imagem sequencial. Para Munari, essa flexibilização da dinâmica narrativa se
enquadra em uma tipologia editorial denominada, por ele, como “livro ilegível” (Id., p. 226).
Nesse caso, especificamente, o livro pode ser utilizado “abrindo as páginas ao acaso,
começando onde se quiser, andar para a frente e para trás, para compor e decompor todas as
possíveis combinações […]” (Ibid., p. 226). Essa constatação foi mais um indício de como
estávamos circunscritos ao caráter intangível do processo de criação, que também é inerente a
outros meios de expressão. Dessa maneira, a energia gerada pelo acúmulo de experiências
visuais reverberam através de um “raciocínio perceptual”, desde a sua origem, no
desenvolvimento do projeto de investigação.
A consequência desses ensaios, considerando os princípios elencados até aqui,
redundam em três peças gráficas até certo ponto homogêneas. A identidade que caracteriza o
conjunto é percebida no formato, na utilização de um mesmo suporte, pela presença de áreas
brancas na parte externa e interna dos livretos e na dimensão do letreiro em cada sobrecapa.
Porém, precisamos destacar que em alguns aspectos os arranjos visuais, – apesar de serem
sempre dispostos segundo artifícios de construção cinematográfica –, são um pouco diferentes
como poderemos observar na descrição de cada composição.
Na “Composição Narrativa Abstrata Nº 1”, exploramos a estrutura de claro-escuro
extraída de análise relativa a obra “Senhora com um Chapéu” (Dulcineia), 1982, de Albín
Brunovský, para assinalar os cenários e as personagens, que são uma elipse e um retângulo.
Utilizamos cartolina branca e preta na confecção das ilustrações, compondo as imagens a partir
de áreas cheias e vazias, considerando intervalos de tempo em que o suporte, no caso o papel,
assume protagonismo no curso da narrativa. A adoção desse princípio gera uma pausa e traz
um arejamento visual que da vitalidade à história pela ausência de sonoridade, ou seja, pelo
silêncio que toma de assalto algumas páginas. Nestes interstícios, as personagens são
totalmente segregadas e suscitam um mistério sugestionado pela economia de elementos. Com
relação a ordenação compositiva da estrutura editorial, obedece uma caracterização pré-textual
(folhas de guarda, falso rosto e frontispício) e textual (narrativa visual), na qual o enredo se
estabelece a partir do verso da folha de rosto com um retângulo preto e termina ou começa com
o uma elipse, pois a narrativa pode ser lida da frente para trás ou vice-versa. Isso acaba

35
operando como mais estímulo perceptivo, porque possibilita uma “composição rítmica espaço-
temporal” (Id., p. 226) que sugestiona interpretações variadas da história.

Quando se mostra uma ação – o que está acontecendo – você evita as dificuldades que podem surgir na
tentativa de mostrar ideias gerais, como “progresso”, “paz” ou “paciência”. O desenvolvimento de uma
sequência de imagens deve procurar alcançar um nível de clareza tão absoluto, tanto quanto um sinal de
estrada que pode ser apreendido instantaneamente. A compreensão da comunicação também é importante
porque a atenção do leitor depende disso. (Shulevitz, 1997, p.18)

A “Composição Narrativa Abstrata Nº 2”, também está alicerçada a partir de elementos


pré-textuais e textuais, porém um aspecto marca de maneira distinta esse ensaio gráfico: o uso
da cor. Apesar de mantermos a oposição preto e branco, introduzimos nessa equação o uso de
cores complementares através do contraste quente-frio, que é manifesto pelo laranja e uma
tonalidade de azul mais fechado. Ao tirarmos partido desse fator em conformidade com as
estruturas de claro-escuro e linear resultantes da análise da gravura “São Cristovão”, 1511, de
Albrecht Dürer, obtivemos um intenso contraste rítmico entre as partes que constituem a
história. O roteiro gira em torno de uma perseguição protagonizada pelo paralelogramo e pelo
círculo, que mudam de cor quando um está perto de se aproximar do outro. A cenografia é
ordenada a partir de uma disposição formal na qual utilizamos as personagens sobrepostas a
dois ou três planos sucessivos como figura-fundo. O caráter quase planimétrico das
composições é quebrado, por vezes, pela presença de retículas de ponto uniforme e
transparências criadas com acetato rígido. Ao folhearmos as páginas nas quais o material está
presente, conseguimos dar tridimensionalidade as superfícies por intermédio de seu caráter
translúcido, produzindo ambiguidades plásticas na sequencialidade de cada contexto
específico. Esta percepção de espacialidade fica ainda mais visível, quando dispomos na parte
central da narrativa duas áreas recortadas e rebatidas na vertical, relativas a estrutura de claro-
escuro, entre as quais figura o acetato. O uso desse recurso só foi possível em função da
passagem de um meio específico de representação, no caso o storyboard, para a dimensão do
livro. Nesse percurso a reverberação inconsciente de referências como Komagata e Azzawi,
em associação com a dinâmica processual de Bang e os princípios de Munari, não são apenas
uma mera coincidência. Na verdade, são uma tomada de consciência, produto de uma ação
conjunta que agrega o ver, o fazer e o pensar, na esfera do “raciocínio perceptual”.

Páginas iguais comunicam um efeito de monotonia, páginas de diferentes formatos são mais
comunicativas. Se os formatos forem organizados de modo crescente, decrescente, em diagonal ou

36
ritmados, pode obter-se uma informação visual rítmica, dado que o voltar da página é uma ação que se
realiza no tempo e portanto participa do ritmo visual-temporal. Se além disso usarmos também papéis de
duas cores: alternando uma folha de papel branco e uma folha de papel preto (ou vermelho) o efeito
rítimico será acentuado”. (Munari, 1981, p.224)

Em nosso último ensaio, denominado de “Composição Narraiva Abstrata Nº 3,


exploramos a estrutura linear e de claro-escuro da ilustração “Sem Título”, 1920, de J. Carlos,
para a elaboração da narrativa. Para tanto, utilizamos por mais uma vez o branco, o preto e um
par de cores complementares que são o verde e o vermelho. Entretanto, diferentemente das
duas primeiras proposições, os elementos pré-textuais foram retirados e abriram espaço para
construção de uma história que se inicia no verso da primeira capa. Tiramos partido dessa
solução, pois era nosso desejo experimentar uma nova disposição narrativa que, guardadas as
devidas proporções, funciona-se como um plano sequência. Imbuídos desse intuito, retomamos
por algumas vezes os estudos realizados a partir do livros Alvorecer, de Shulevitz e “Outono”,
de Letria; incluindo nesse horizonte a obra do cineasta alemão Friedrich Wilhelm Murnau
(1888-1931). Selecionamos os filmes “Aurora”9 (1927), no qual trabalha com imagem contínua
em várias cenas; e a “Última Gargalhada”10 (1924), em que dispensa a utilização da palavra
para auxiliar na compreensão da história. Com isso, procuramos estabelecer uma relação de
maior proximidade com o cinema e sua diversidade de possibilidades compositivas.

O movimento, tal como é realmente visto […], baseia-se nos seguintes fatores: 1) os movimentos dos
objetos, vivos ou mortos […]; 2) o efeito da perspectiva e da distância da câmera ao objeto; 3) o efeito
da câmera móvel; 4) a síntese das cenas individuais realizada pela montagem, numa composição total do
movimento; 5) a interação dos movimentos colocados em sequência pela montagem. (Arnheim, 1989, p.
145-146)

Levando em consideração esses princípios, também adaptados por Shulevitz e Letria


para a ilustração de livros, procuramos agregar valor ao que já havia sido estabelecido no
storyboard. Assim, dando continuidade ao processo, percebemos a presença de um fator que é
comum as outras proposições, mas ganha relevo nesse ensaio por conta de uma maior
aproximação com o cinema: a montagem. Segundo Arnheim, esse artifício “é a operação que

9
Apresentamos um fragmento do filme “Aurora”, com duração de 15 minutos e 7 segundos, no qual pode-se observar como
Murnau trabalha em sua composição cinematográfica com o recurso do plano sequência. https://www.youtube.com/watch?v=
QjEpgophKQI&t=142s.
10
Separamos uma parte do filme “A Última Gargalhada”, com duração de 4 minutos e 5 segundos, para exemplificar a partir
de um conjunto de cenas, como Murnau cria uma narrativa sem o auxílio de palavras, ou seja, de um texto que funcione como
complemento para as imagens. https://www.youtube.com/watch?v=ReudP33pwHM.

37
consiste em ligar planos e situações que ocorrem em tempos e espaços diferentes.” (Id. , p. 73-
74). Esta dimensão do movimento desvela o papel significativo que a montagem pode exercer
na constituição de imagens, cuja ação é desencadeada pela transposição de páginas, como algo
equivalente aos frames de um filme. Dessa forma, estabelecemos a presença ininterrupta de um
triângulo retângulo associado a linhas não contínuas (tracejado), episodicamente intervalados
por cenários no percurso da história. Também ganham destaque no enredo o contraste
acentuado de cores, texturas e do círculo que inscreve em sua área uma configuração
anamórfica. Apesar da presença esporádica desse elemento geométrico no contexto, podemos
considerá-lo estratégico. Isso porque caracteriza a conexão entre o miolo do livreto e a imagem
que anuncia a história na parte frontal da sobrecapa. O triângulo retângulo que aparece
praticamente em todas as partes acaba por ter um papel secundário, pois figura na parte de trás
do envólucro. Todavia, essa distribuição é proposital e visa despertar um sentido exploratório
da composição narrativa abstrata a partir de suas qualidades subjacentes, ou seja, daquilo que
a consubstancia plástica e imaginativamente. “A comunicação só é possível através de um grau
de novidade num contexto familiar.” (John R. Pierce, Apud Shulevitz, 1997, p. 18).
As experiências realizadas no âmbito desse projeto de investigação, enquanto
metodologia de criação, refletem a ideia de que a imagem é o agente indutor da própria imagem.
Neste sentido, tivemos por finalidade desenvolver processos alternativos de concepção visual
para fins editoriais, ampliando o produto derivado de nossas escolhas para a elaboração do livro
de imagen “A Menina, o Riacho e o Príncipe”.

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38
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trado em Ciência da Arte).

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Cosac Naify.

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para Crianças e Jovens. Rio de Janeiro: Nova Fronteira.

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Ediciones Akal.

WICK, R. (1989). Pedagogia da Bauhaus. São Paulo: Martins Fontes.

39
O ÚNICO TRAÇO DE PINCEL E O PENSAMENTO SOBRE O DESENHO NO
OCIDENTE: REFLEXÕES SOBRE O TRAÇO

Aline Teresinha Basso


Universidade Federal do Ceará - UFC
Faculdade de Belas Artes - Universidade de Lisboa

Resumo

A reflexão aqui proposta deriva de minha investigação de doutoramento, em que me debruço sobre alguns manuais
clássicos de pintura chineses em busca de conexões com a prática do desenho contemporâneo e ocidental. A
pintura chinesa tradicional, além de contemplativa, é essencialmente gráfica e muito se aproxima daquilo que
concebemos hoje por desenho. Uma das principais bases estruturantes no que diz respeito à sua materialidade é o
traço. É também o traço uma das preocupações que vem ocupando as minhas investigações artísticas. Portanto,
discuto a teoria, a materialidade, o processo, a gestualidade e o caráter ativo e impermanente do traço. Procuro
pensá-lo não apenas como uma escrita do pensamento, mas como uma ação transformadora da superfície do papel,
que produz ficções e ressignifica o vazio que constitui uma página em branco.

Abstract

The reflection proposed here derives from my PhD research, in which I dwell on some classic chinese painting
manuals in search of connections with the practice of contemporary and western drawing. Traditional chinese
painting, in addition to being contemplative, is essentially graphic and very close to what we conceive today by
drawing. One of the main structuring bases with respect to its materiality is the trace. It is also the trace one of the
issues that has been occupying my artistic investigations. Therefore, I discuss the theory, the materiality, the
process, the gesturality, and the active and impermanent character of the trace. I try to think of it not only as
a writing of thought, but as a transforming action on the surface of the paper, which produces fictions and re-
signifies the void of a blank page.

O traço como ato de construção da linha


Iniciamos estas reflexões a partir de uma imagem facilmente encontrada nas buscas de
internet, que certamente foi editada por algum anônimo. Na imagem, um desenho de Picasso
pertencente à sua fase "Picasso em uma linha só". Parece uma linha dançante e sinuosa que
configura a representação de um cavalo. Sobre ele encontramos uma frase já bastante
conhecida, atribuída a Paul Klee: "Desenhar é levar uma linha para passear".
São muitos os passeios possíveis, e muitos os panoramas de observação e análise
quando o assunto é o traço, ou a linha. Compreender as sutilezas que caracterizam diferenças
entre traço e linha pode nos indicar uma direção. Assim, damos início à nossa trajetória
refletindo sobre estes elementos, suas similaridades e suas diferenças, a fim de estabelecermos
uma base teórica para a nossa discussão. Neste primeiro momento, tratamos do traço enquanto
teoria.
Em seguida, baseados nos princípios da pintura chinesa, desenvolvemos uma discussão
relacionada ao traço enquanto ação e processo. São abordados conceitos vitais à arte chinesa
tais como contemplação, gesto enquanto movimento e impermanência, que servem como

40
parâmetros para nossa reflexão sobre o ocidente. Como suporte à discussão utilizamos as
"Anotações sobre pintura do monge Abóbora Amarga", um manual clássico de pintura chinesa
escrito pelo monge Shitao e publicado aproximadamente em 1710. Além de ser um dos tratados
mais importantes já escritos na China, é um texto que versa tanto sobre a prática quanto sobre
a teoria envolvida no ato da pintura.
Por fim, abordamos o momento seguinte ao gesto, seu resultado. Ou seja, o traço
enquanto materialidade, enquanto linha marcada no suporte, enquanto vestígio da ação.
Partindo do princípio de que um simples traço pode alterar sutilmente ou drasticamente a
superfície do papel, refletimos sobre a linha que ressignifica o suporte, dando a ele uma nova
narrativa.
Nossa escolha pela pintura chinesa, que é essencialmente contemplativa, deve-se ao
fato de que ela apresenta um forte caráter gráfico e seus princípios podem facilmente ser
relacionados e aplicados ao desenho. As figuras 1 a 3 são alguns exemplos em que podemos
perceber a relação do traço na arte chinesa.

Figura 1: Pintura de Liang Kai (1140-1210) – Li Bai in Stroll


Fonte: http://www.comuseum.com/painting/masters/liang-kai/

Na primeira pintura (figura 1), poucos e precisos traços definem uma figura expressiva
e inquietante. Na segunda pintura (figura 2), vemos uma paisagem sintética composta
unicamente por linhas, que é um tipo bastante comum na imagética tradicional chinesa. A
terceira pintura (figura 3), um conjunto com bambus, rochas e orquídeas construídos com

41
pinceladas rápidas e controladas, representa alguns dos elementos pictóricos mais importantes
para os chineses. Mesmo quando as pinturas recebem manchas, o que é bastante comum seja
em aguadas de tinta preta, seja em cores, o traço é em geral a componente mais marcante.

Figura 2: Pintura de Zhao Mengfu (1254-1322)


Fonte: http://www.comuseum.com/product/zhao-mengfu-twin-pines-level-distance/

Figura 3: Pintura de Zheng Xie (1693-1765)


Fonte: http://www.comuseum.com/product/zheng-xie-bamboo-rocks-and-secluded-orchids/

Para Ribeiro & Araújo (1995, p.88), "os traços são os fios do desenho, as linhas que
tecem e compõem a imagem que se quer mostrar. [...]. O percurso do ponto, o trajecto do lápis
e da mão, eis a essência do traço". Na língua portuguesa as distinções entre traço e linha
suscitam muitas dúvidas. Ao lermos textos sobre desenho é comum encontrarmos o uso das
duas expressões que, em geral indicam a mesma ideia.
Portanto, tentar estabelecer as diferenças entre os conceitos encaminha-nos em direção
a algumas subjetividades. Recorrer a definições semânticas acaba por se tornar uma tarefa
bastante enfadonha e como não pretendemos nos apegar a esse tipo de definição, os dicionários
serão deixados em segundo plano, sendo-nos úteis apenas a título de esclarecimentos gerais.

42
Desta forma, achamos mais profícuo o embasamento nas teorias da arte e do desenho e nos
escritos de artistas.
Em uma breve consulta a qualquer dicionário de língua portuguesa11 pode-se perceber
as similitudes entre os conceitos de traço e linha. De forma geral, um é utilizado para explicar
o outro, e vice-versa. Contudo, algumas sutilezas podem ser apreendidas: o traço carrega uma
conotação mais ativa, ou seja, indica ou sugere uma ação. A linha, por sua vez, possui uma
conotação um pouco mais material do que o traço. É uma presença, sendo mais facilmente
aplicada para indicar o resultado de uma ação de riscar. Enquanto a palavra traço possui poucos
significados, em sua maioria relacionados ao ato de desenhar, a palavra linha possui uma gama
enorme de possibilidades semânticas sendo poucas delas relacionadas ao desenho. Assim,
apesar das discretas variações semânticas, no fundo não há uma especificidade que diferencie
uma coisa da outra, ao menos na língua portuguesa.
Portanto, nesta discussão a palavra traço é utilizada preferencialmente indicando a ação
de desenhar, de riscar o papel. O traço como gesto que gera uma materialidade. A palavra linha
é utilizada preferencialmente indicando o resultado do ato de traçar, ou seja, o desenho, o risco
feito. Porém, tenhamos em vista que os sentidos são inevitavelmente alternantes. Em função
dos autores consultados e de suas reflexões, os conceitos podem se cruzar, o que não indica um
lapso de nossa parte ou um erro de definição do autor em questão.

O traço é, ao mesmo tempo, a síntese do movimento e o seu resultado, o gesto e a marca deixada pelo
gesto, a causa e o efeito. O acto de traçar ou o traçado como marca, são equivalentes, em termos
gráficos, a um acto de reconhecimento que se traduz em termos declarativos. Marcar o espaço ou a
folha, traçar a linha, é confirmar uma presença, estabelecer uma identificação, que é dupla, pois indica
de quem é o traço e descreve o que é o traçado.
O traço é sempre um limite, entre o desenhador e o desenho, entre a figura e o fundo, entre a luz e a
sombra. Do traço surge a linha, invenção genial que permitiu fixar o contorno das formas, que permitiu
restringir os objectos ao que eles não são. (Ribeiro & Araújo, 1995, p.88)

Como materialização do traço, temos então a linha, este objeto tão simples e ao mesmo
tempo portador de tamanha complexidade. Mostra-se um ser mutante, adaptável a inúmeras
situações. Ela tanto pode ser reta, direta e objetiva, quanto pode ser sinuosa e complexa. Pode
desenhar os vazios, as saudades, o caos. Ela é a essência de qualquer desenho, a base de
qualquer representação. Basta "um conjunto de linhas sobre um papel" (Rodrigues, 2003, p.9)

11Para o presente estudo utilizamos como referência dois dicionários: Dicionário Priberam da Língua
Portuguesa, 2008-2013, https://www.priberam.pt/dlpo/tra%C3%A7o [consultado em 08-11-2017]; e
Dicionário infopédia da Língua Portuguesa com Acordo Ortográfico. Porto: Porto Editora, 2003-
2017, https://www.infopedia.pt/dicionarios/lingua-portuguesa/traço [consultado em 08-11-2017].

43
para se construir um desenho. Para Rodrigues, a linha é a memória do gesto, seu vestígio, e por
isso também é uma cicatriz desse gesto sobre o papel.
Ingres costumava dizer que "o desenho não se encontra fora do traço, está dentro dele..."
(Valéry, 2012, p.55). Valéry, em seu livro Degas Dança Desenho (2012, p.59), diz ainda que
Ingres aconselhara a Degas que fizesse muitas linhas, para que pudesse aprender a desenhar tal
como o mestre. Todo desenho começa com uma linha. E ainda que no caso do desenho ela
esteja fisicamente estática, uma das suas características é, paradoxalmente, o movimento.
Para Kandinsky (1970, p.61), a linha "é o rasto do ponto em movimento, portanto seu
produto". Por nascer do movimento de um ponto ela configura-se em um elemento dinâmico.
Se adentrarmos nos conceitos da geometria, temos ainda a afirmação de que a linha representa
a trajetória de um ponto no espaço. Paul Klee, em seu Pedagogical Sketchbook (1972), parece
concordar com a ideia da linha como movimento. Nesse manual didático, ele desenvolve a
teoria a partir dos tipos de movimentos que a linha circunscreve.
A linha representa, ainda, um duplo movimento: o do traço com o lápis e o do olho.
Paul Valéry sugere que "o olho deve encontrar, por seu movimento sobre o que vê, os caminhos
do lápis sobre o papel" (Valéry, 2012, p.80). Assim, o traço completa-se através do olhar. O
olho participa do traço não apenas na observação do objeto a desenhar, mas também de várias
outras maneiras na observação do objeto traçado no desenho:

A maneira que o olho participa em olhar linhas em desenhos também deve ser considerada.
1_ Uma linha de peso e espessura consistentes é forte e dinâmica em tensão, mas tende a planificar
qualquer ilusão 3-D pretendida. Não prende a atenção do olho, e quando olhando, o olho corre através
dele rapidamente. É principalmente conceitual.
2_Uma linha quebrada oferece uma desaceleração hesitante do olho
3_Uma linha bamboleante pode oferecer um toque de interesse emocional, e intriga e retarda o olhar.
4 Uma mudança de peso e espessura pode ajudar a criar uma ilusão de forma e volume, e pode oferecer
interesse e variedade.
5_Mais de uma linha pode dar ao olho uma oportunidade de participar no desenho.
O olho está envolvido na tentativa de decifrar a imagem, e investiga para selecionar qual desses
contornos/linhas é o pretendido.(Maslen & Southern, 2011, p.36)12

12 Livre tradução do original: "The way the eye participates in looking at lines in drawings has also to be
considered.
1_A line of consistent weight and thickness is strong and dynamic in tension but tends to flatten any
intended 3-D illusion. It does not hold the eye's attention, and when looking, the eye speeds along it very
quickly. It is in the main conceptual.
2_A broken line offers a stuttered slowing down of the eye.
3_A wobbly line might offer a touch of emotional interest, and intrigues and slows the eye down.
4_A change of weight and thickness may help to create an illusion of form and volume, and can offer interest
and variety.
5_More than one line can give the eye an opportunity to participate in the drawing.
The eye is engaged in trying to decipher the image, and searches to select which one of these contours/lines
is the intended one."

44
Por outro lado, se há um movimento do lápis, há um gesto que o define e o direciona.
Enquanto há gesto, há ritmo e sentimento, e de acordo com Roger Fry (2009, p.71), a linha
configura-se como o “primeiro elemento emocional do desenho”. Para o autor, “o primeiro
elemento é o ritmo da linha com que as formas são delineadas. A linha desenhada é o registo
de um gesto e esse gesto é modificado pelo sentimento do artista, que, por sua vez, nos é
comunicado de um modo directo”.
Assim como no Ocidente, também no Oriente o traço (ou a linha) mostra-se
fundamental na estruturação do pensamento artístico. Na pintura chinesa, uma das grandes
preocupações é o traço do pincel. Não há muito dito sobre o desenho em especial, mas a
qualidade da linha – como resultado do traço do pincel – é um dos parâmetros para um bom
trabalho:

Antes de tudo deve-se notar que pintura e desenho diferenciam-se bem pouco entre si, sendo sempre
executados com o mesmo instrumento, ou seja, o pincel. Existem, porém, diferenças na maneira de usar
o pincel: a tinta pode ser aplicada com traços bem uniformes, num “traçado linear” (e nisto se avizinha
do nosso conceito de desenho), ou com sinais modulados em maiores variedades de tom, com “traçado
caligráfico” (que alcança efeitos que podem ser definidos mais especificamente como pictóricos).
Fazendo prevalecer ora um, ora outro desses valores técnicos, tanto o desenho quanto a pintura chinesa
assumem uma tal atmosfera característica, que a fazem parecer fora do tempo, por causa da dificuldade
de compará-la com o desenvolvimento da tradição ocidental. (Pignatti, 1982, p.11)

Há inúmeros tratados chineses dedicados a este estudo, sendo um dos mais conhecidos
o manual de pintura de Shitao, datado de aproximadamente 1710-20. O tratado de Shitao, que
tem por bases o taoísmo, o budismo chan (ou zen) e o confucionismo, se organiza a partir do
conceito de "Único Traço de Pincel" (Ryckmans, 2010, p.15), que pode ser definido em
diversos âmbitos: filosófico, ético, plástico e técnico. Este termo é de uma profundidade
conceitual praticamente impossível de traduzir no esfera deste texto. Contudo, devido à sua
abrangência, é possível desenvolvermos algumas reflexões interessantes e válidas ao estudo do
desenho.
Segundo Ryckmans (2010, p.29), "esse simples traço constitui a forma mais elementar
de que dispõe a linguagem plástica, e todas as outras formas, no fundo, não passam de variantes
e combinações mais ou menos complexas desse traço". Para o autor, "o traço de pincel não é
apenas o primeiro balbucio da linguagem pictórica, é também a sua palavra final: um só traço
de pincel é suficiente para revelar a mão de um mestre..." (p.31). Uma linha, se bem executada,
deixa de ser apenas uma linha e transcende as condições físicas de sua criação: torna-se uma
manifestação do Absoluto.

45
No tratado de Shitao, ele aponta algumas regras para a pintura que incluem tanto
questões técnicas quanto 'normas de conduta' para o artista. Para ele, todo traço parte de um
processo contemplativo em que a pintura torna-se quase uma meditação. Há que se ter plena
consciência do que se está a fazer e fazê-lo com o espírito. Cada traço é único e não admite
'consertos', pois representa um fluxo da energia vital do artista.
É interessante observarmos nesta perspectiva as pinturas do próprio Shitao. Elas
refletem tanto a técnica quanto o pensamento que ele registra em seu manual (figuras 4 a 7).
Apesar de parecerem muito diferentes umas das outras, elas possuem características em comum
que, segundo se supõe após a leitura do manual, as qualificam como boas pinturas. Os traços
são conscientes e vigorosos, mas não excessivos. Há um comedimento no preenchimento do
papel, que admite espaços em branco. Há, portanto, síntese e diálogo, em que os espaços não
desenhados dialogam com as linhas e manchas. Percebe-se que houve um processo de
observação profunda, de compreensão e imersão na natureza das coisas. As composições
revelam uma pureza plástica que não é de ingenuidade, mas de maturidade e superação.

Figura 4: Pintura de Shitao. Returning Home, Ca. 1695


Fonte: https://metmuseum.org/art/collection/search/49173

46
Figura 5: Pintura de Shitao. Bamboo in wind and rains, ca. 1694
Fonte: https://metmuseum.org/art/collection/search/49172

Figura 6: Pintura de Shitao. Da série Searching for immortals


Fonte: http://www.comuseum.com/painting/masters/shitao/

47
Figura 7: Pintura de Shitao. Da série Poetic feeling of Tao Yuanming
Fonte: http://www.comuseum.com/painting/masters/shitao/

Outra componente importante do traço, que se pode perceber tanto nas pinturas de
Shitao quanto praticamente em toda a pintura chinesa, é a gestualidade. É no momento do
gesto, do traçar a linha, que o espírito se manifesta. Através do movimento do pincel, a linha
traçada condensa a energia do artista e transmite sua essência. O resultado material de cada
traço deve conter uma verdade, trazer uma revelação. Cada traço deve materializar uma
transcendência.
Esta perspectiva do Único Traço de Pincel pode estender-se ao desenho. Pode ser válida
para desenhos com pincel, com lápis de grafite, canetas, gizes, linhas de bordado, ou qualquer
outro material com o qual se possa ferir uma superfície em busca de uma linha. De certa forma
algumas de suas nuances já são conhecidas e praticadas no ocidente. Muitas similaridades
podem ser encontradas entre os antigos manuais chineses e os manuais práticos de desenho
ocidentais, seja em âmbito teórico como em âmbito prático. Aliás, mesmo na tratadística
clássica sobre desenho ocidental existem cruzamentos interessantes a serem estudados.
Portanto, nas próximas linhas abordamos alguns dos conceitos de âmbito teórico do manual de
Shitao que podem contribuir com nossas reflexões teóricas e práticas sobre o traço.

48
O Único Traço de Pincel: contemplação, gesto, movimento, impermanência
O 'Único Traço de Pincel' não deve ser entendido de forma literal. Não significa que
um desenho feito a partir deste princípio seja necessariamente um desenho feito com uma única
linha. Ou vice-versa. Esse conceito, além de envolver uma abordagem técnica, é também
essencialmente filosófico e está mais relacionado à postura do artista do que a uma possível
materialidade literal.
De acordo com Ryckmans (2010, p.28), o conceito foi criado por Shitao e resume a
essência de todo o seu sistema pictórico. Em um nível técnico, sua definição é extremamente
simples: ele é "a forma obtida pelo pincel num movimento contínuo até uma interrupção"
(p.29). Ou ainda: "um segmento de linha feito de uma só vez, sem retomada, compreendido
entre um ataque e uma conclusão do pincel" (p.30). O Manual de Shitao é repleto de técnicas
de uso do pincel e da tinta, e contudo, não se perde na materialidade da pintura.
O autor reforça que tamanha simplicidade esconde uma elevada complexidade
filosófica e estética. Através desse traço de pincel o espírito se manifesta no fluxo dos
movimentos, em um ritmo controlado e consciente. Esse traço pode, inclusive, conter o Um,
na medida em que Shitao considera a pintura como "uma das formas de criação do Universo"
(Idem, 2010, p.33). É um paradoxo em que um simples e único traço exprime o absoluto.

[...] Shitao reduz a pintura à sua forma mais elementar e mais humilde: um simples traço de pincel. Mas
um simples traço de pincel é também o Único Traço de Pincel, medida universal da infinidade das
formas, denominador comum e chave de toda a criação. (Ryckmans, 2010, p.33)

Dessa forma, o Único Traço de Pincel torna-se a essência e a completude de qualquer


trabalho pictórico. O gesto, nesta perspectiva, envolve o movimento através de um controle
calmo, que permite o fluir. É uma espécie de controle que não limita: o controle do espírito do
artista, e não do traço. Envolve a contemplação através da atenção plena no momento presente.
Ou seja, atenção plena na ação a ser realizada com o pincel, o que dará ao traço o vigor e o
frescor necessários.
A Atenção Plena (ou Plena Atenção ou Atenção Vigilante), é um conceito budista que,
muito além de uma técnica meditativa é uma atitude de "estar consciente e atento a tudo quanto
faz, física e verbalmente, durante a rotina diária dos seus afazeres". Em "quaisquer atividades,
deve estar completamente consciente e atento ao acto que desenvolve no momento" (Rahula,
2005, p.139). Segundo Rahula, é uma entrega ao momento presente, à atividade que se está
desenvolvendo, sem preocupar-se com o passado nem com o futuro, sem julgamentos.

49
O mecanismo da observação está intimamente ligado ao da atenção plena, pois é a
atenção que vai guiar calmamente a observação. Na figura 8, por exemplo, é suposto que a
pintura tenha sido realizada em estado de atenção plena. Percebe-se com clareza que o nível de
detalhamento da árvore exigiu do artista uma observação atenta. Exigiu dele presença, atenção
e 'controle do espírito'. Não é uma representação em que o artista busca um realismo
fotográfico. As pinceladas são cheias de energia. Mesmo com partes inacabadas e indefinidas,
não temos dúvidas em relação a isto ser a representação de uma árvore.

Figura 8: Wu Boli (14th-15th), Dragon Pine, ca. 1400


Fonte: https://www.metmuseum.org/toah/works-of-art/1984.475.3/

Quando se pensa no desenho, podemos entender a atitude da atenção plena como um


abandonar-se inteiramente ao desenho, àquele único traço. Tornar-se o próprio traço. Libertar-
se da consciência de si próprio e mergulhar na consciência do desenho com energia, entusiasmo

50
e serenidade. É uma postura de contemplação permanente que favorece o mergulho na natureza
das coisas, inclusive do desenho. Os chineses não só realizaram, como também retrataram
muito bem essa atitude. As pinturas deixam entrever o envolvimento do artista com a
observação e muitas vezes, como na figura 9, representam cenas com indivíduos em
contemplação. Isso demonstra a importância deste ritual de mergulho na consciência.

Figura 9: Pintura de Ma Yuan (1190-1225). Viewing Plum Blossoms by Moonlight


Fonte: https://www.metmuseum.org/toah/works-of-art/1986.493.2/

Esta perspectiva da atenção plena chegou ao Ocidente principalmente através das


técnicas de Mindfulness. Além das inúmeras possibilidade, elas também vêm sendo aplicadas
ao desenho, a exemplo do manual de Wendy Ann Greenhalgh (2015), 'Mindfulness & the art
of drawing'. Nele a autora apresenta o conceito de Beginner's Mind, que pode ser entendido
como mente de principiante. Este conceito é uma das atitudes que fazem parte da Mindfulness
(ou atenção plena) e que a autora aplica ao desenho.
Para ela, esta postura mental/comportamental favorece a que estejamos atentos ao
processo: "A mente de principiante nos permite focar no processo, e a deixar de lado nossa
preocupação com o produto" (Greenhalgh, 2015,p.18, grifo da autora)13. Ela defende que ao
desenharmos devemos estar em atenção plena e completamente livres de julgamentos,
expectativas e ansiedades. Devemos procurar e explorar as qualidades de foco, absorção, fluxo
e o que ela denomina de simply being - que pode ser traduzido como 'estar simplesmente no

13Livre tradução do original: "Beginner's mind allows us to focus on the process, and to let go of our
preoccupation with a product".

51
momento presente', sem forçar nada, sem julgamentos, simplesmente deixando acontecer, fluir.
Assim, por exemplo, desenhar uma rocha (figura 10) pode ser uma incrível experiência
meditativa: a de estar simplesmente presente e em contemplação.

Figura 10: Pintura de Lan Ying (1585-1664), Red friend


Fonte: https://www.metmuseum.org/toah/works-of-art/1979.26/

Para compreendermos a importância da contemplação na pintura chinesa, François


Cheng narra algumas lendas relativas à pintura, dentre as quais a história contada pelo pintor
Guo Si, sobre o ritual de seu pai, Guo Xi:

"Quando ia pintar, costumava sentar-se perto de uma janela iluminada. Punha a mesa em ordem,
queimava incenso e posicionava cuidadosamente diante de si a tinta e os pincéis. Lavava as mãos, como
se fosse receber um hóspede distinto. Permanecia em silêncio por longo tempo para acalmar seu espírito
e concentrar seus pensamentos. Somente quando possuía a visão exata começava a pintar. Ele
frequentemente mencionava o pavor que tinha de sentar-se diante da sua obra com espírito distraído".
(Cheng, 2016, p.52)14

14 Livre tradução do original: "Cuando iba a pintar, solía sentarse cerca de una ventana
iluminnada. Ponía la mesa en orden, quemaba incienso y colocaba cuidadosamente ante
él la tinta y los pinceles. Se lavaba luego las manos, como para recibir a un distinguido
huésped. Permanecía silencioso largo rato, con el fin de calmar su ánimo y concentrar sus
pensamientos. Sólo cuando poseía la visión exacta comenzaba a pintar. Mencionaba a
menudo el pavor que le tenía a sentarse ante su obra con el ánimo distraído".

52
Cada traço, portanto, deve ser consciente e precedido de um momento em que o artista
se torna completamente consciente de si e de sua atividade. Cada gesto deve ser carregado com
a presença total do artista, sua plena atenção. Dessa forma o desenho se torna um processo
contemplativo em que há total envolvimento do artista e cujo resultado não deixa dúvidas a
esse respeito. É o que se percebe na pintura do próprio Guo Xi (figura 11).

Figura 11: Pintura de Guo Xi (1020-1090), Old Trees, Level Distance


Fonte: http://www.comuseum.com/painting/masters/guo-xi/

Compreender contemplação é também compreender gesto, que pode ser visto como o
movimento gerado pela contemplação. O conceito de gesto tem sido bastante discutido na arte
ocidental. Quando o utilizamos, não estamos nos referindo especificamente ao desenho gestual,
comumente praticado no ocidente. Este desenho, em geral um esboço feito para "estabelecer
unidade entre o desenho e o olhar" (Sale & Betti, 2004, p.40), é muitas vezes utilizado como
um processo de concentração, e muitas vezes acaba por desaparecer no desenho acabado. É um
desenho executado através da coordenação entre os olhos e a mão, de forma rápida e intuiva.
Uma expressão rápida daquilo que se vê ou daquilo que está no pensamento.
Contudo, "o gesto é mais do que ver e organizar, ele é um primeiro passo essencial. O
Gesto é uma metáfora da energia e da vitalidade tanto do artista quanto do tema" (Sale & Betti,
2004, p.42)15. Portanto, discutimos aqui o gesto na perspectiva daquela ação consciente,
coordenada e calma em que o desenhista traça cada linha contemplando sua unicidade e sua
relação com o conjunto. O gesto como o ato primeiro, como a energia em movimento. Tomás
Maia afirma que:

"[...] um gesto seria antes de mais aquilo que precede a diferença entre um conteúdo e uma forma. Um
gesto, essencialmente, dá forma a um sentido que emerge. A forma, então, não é aquilo que se adequa
(ou não) a um conteúdo que lhe precede, mas o que provém de um gesto ele mesmo atravessado por uma
força indivisível. Ao mesmo tempo, o gesto é o que antecede sempre a obra, e, mesmo na obra (dita)
acabada, é o que não cessa de a desfazer e refazer, impedindo que ela se feche sobre si mesma e rasure
o seu movimento perpétuo, originário". (Maia, 2014, p.62, grifos do autor)

15Livre tradução do original: " Gesture is more than seeing and organizing, it is an essential first step.
Gesture is a metaphor for the energy and vitality of both the artist and the subject ".

53
Para Dias (2015), o desenho "é um gesto (uma pulsão) que deixa uma marca no espaço
com a sua passagem temporal" (p.33), e "o fazer da obra seria uma acção, uma sucessão de
gestos lançados no tempo" (p.34). O autor faz ainda a conexão do gesto com o traço, quando
afirma que "o traçar é a viagem (história do gesto na matéria) disso que se vai pôr com evi-
dência em presença ao olhar, para sempre esconder algo em si mesmo" (p.38). Muitas vezes,
um pequeno conjunto de traços pode conter tamanha energia e vitalidade que os vestígios
deixados na superfície nos permitem até mesmo entrever a viagem dos gestos realizados.
Qualquer desenho será sempre uma história dos gestos no tempo (figura 12).

Figura 12: Pintura de Zhu Da (1626-1705), Fish and rocks


Fonte: https://www.metmuseum.org/toah/works-of-art/1989.363.137/

O gesto é, assim, uma potência, aquilo que gera o movimento, que constitui o fluxo e o
impulsiona. E esse movimento do traçar através do gesto, do trazer à matéria, é um movimento
impermanente pois não dura no tempo: é história. O que resta é seu vestígio material, o traço.
O gesto é, então, um propulsor da transitoriedade. "O gesto enquanto traça tem já rasto que é
passado imediato, do que advém de si, mas também é já suspensão, mesmo que no seio da
própria acção, porque já contém um estado de expectativa, e advir de si" (Dias, 2015, p.44).
Assim, todo traço (como ato de construção de uma linha) é transitório. É um movimento
inscrito na temporalidade e que só existe enquanto gesto.

54
Depois do traço: materialidade no desenho
Pensar a materialidade de um desenho envolve muitas variáveis: o suporte, o material,
o tipo de traço, o tipo de desenho, o tema, entre outros. Um papel em branco é um suporte
imaculado onde todas as possibilidades estão em aberto. Basta um único gesto e através de um
traço tudo se modifica. O papel perde sua pureza enquanto a linha imprime nele a sua presença.
Inúmeras análises sobre os tipos de linhas e suas qualidades já foram produzidas e estão
disponíveis em qualquer manual de desenho. Contudo, distinguir entre uma linha reta e uma
linha sinuosa, apontando suas possibilidades no campo da interpretação das imagens, é apenas
um lampejo do que a caracteriza como materialidade no desenho. Como resultado de um traço,
uma simples linha reta pode denotar tanto síntese quanto complexidade. O caráter do traço vai
dar a ela velocidade, lentidão, força, violência, sutileza ou qualquer outra possibilidade.
"Todas as variantes de traço têm em comum a escolha de materiais e o tipo de
intervenção que se faz. Ao falar de materiais referimo-nos, basicamente, ao suporte e ao meio
pictórico, enquanto a intervenção é a forma como essa matéria foi manipulada no suporte".
(Guasch & Asunción, 2006, p.12). O traço condensa em si as qualidades do papel, do lápis e
do tipo de linha que se traça. E o desenho, por sua vez, incorpora as características do traço,
mas também do vazio que se transforma através o gesto. Há uma alteração na superfície,
transformando sua passividade e a colocando em atividade. Através dos traços, também a
superfície assume sua materialidade.

Fazer uma marca ou traçar uma única linha sobre uma superfície imediatamente transforma essa
superfície, energiza sua neutralidade; as imposições gráficas transformam a real planicidade do fundo
em um espaço virtual, traduzem sua realidade material para a ficção da imaginação. Perturbando o
vazio, a marca ativa a superfície, revelando dimensões latentes em sua brancura sugestiva. Juntas,
marca e superfície participam de uma troca dialética de valores positivos e negativos, alterando as
relações objeto-fundo. Dividindo o espaço de seu campo, uma linha libera a carga alusiva ou geradora
da superfície [...]". (Rosand, 2002, p.1)16

O desenho, composto por linhas, manchas e fundo, sintetiza o jogo dos cheios e vazios,
em que os elementos buscam obstinadamente um equilíbrio perfeito entre o traço e o não-traço

16 Livretradução do original: "To make a mark or trace a single line upon a surface immediately transforms
that surface, energizes its neutrality; the graphic impositions turns the actual flatness of the ground into
virtual space, translates its material reality into the fiction of imagination. Disrupting the emptiness, the
mark activates the surface, disclosing dimensions latent in its suggestive blankness. Together, mark and
surface participate in a dialectic exchange of positive and negative values, shifting object-ground relations.
Dividing the space of its field, a line releases the allusive or generative charge of the surface [...]."

55
(figura13). O vazio assume sua forma, torna-se parte da composição. Perde sua inércia e torna-
se ativo.

Figura 13: Pintura de Chen Chun (1483-1544), Summer garden


Fonte: http://www.comuseum.com/painting/masters/chen-chun/summer-garden/

Na composição da pintura chinesa, os vazios são tão importantes e valorizados quanto


os traços (Cheng, 2016). Sua materialidade é vital para garantir a energia da pintura.
Praticamente todas as suas composições plásticas apresentam espaços intocados do papel, e
isso não se dá apenas por regras compositivas. Os chineses antigos consideravam a pintura
como um processo de construção de mundos, de realidades paralelas ao nosso mundo.
Para eles, o conceito de vazio possui uma extensão e uma importância inegáveis. É "um
elemento eminentemente dinâmico e ativo", e "constitui o lugar por excelência onde se operam
as transformações, onde o cheio pode alcançar a verdadeira plenitude"17 (Cheng, 2016, p.68).
O vazio, na pintura, "é o sinal dos sinais, que garante ao sistema pictórico sua eficácia e sua

17Livre tradução do original: "un elemento eminentemente dinámico y activo", e "costituye el lugar por
excelencia donde se operan las transformaciones, donde lo lleno puede alcanzar la verdadera plenitud".

56
unidade"18 (p.135). Possui, portanto, uma função ativa e é responsável por ativar também aquilo
que foi traçado. Na figura 14 temos uma pintura em que os vazios são substância pictórica.
Eles induzem nossa percepção a um sentimento de plenitude, como se ali naqueles espaços em
branco existisse algo. Ao mesmo tempo, esses mesmos vazios equilibram a composição,
ativando aquilo que foi desenhado no papel.

Figura 14: Pintura de Ma Yuan (1160-1225), Singing while dancing


Fonte: http://www.comuseum.com/?s=ma+yuan

Quando não se dá a devida consideração ao vazio em um desenho, corre-se o risco de


esvaziar sua essência: "Se uma linha cobrisse totalmente o seu fundo deixaria de ser desenho,
numa autofagia do desenho que, no preenchimento total da superfície, se tornava ele próprio
superfície, apagamento também dos tempos aferíveis ao olhar do desenho" (Dias, 2015, p.50).
Assim, o desenho é traço mas também é vazio.
Nas pinturas a seguir as áreas deixadas em branco também sugerem algum tipo de
materialidade. Na figura 15 o vazio induz à sensação de espacialidade, de profundidade. Não
há necessidade de se preencher todo o espaço com linhas, pois o que importa na composição
já lá está. O resto, que não foi desenhado, fica para a imaginação. Na figura 16 é suposto que
o vazio represente a água. O vazio, neste caso, possui uma função representativa de algo. Não

18Livre tradução do original: "es el signo de los signos, que le asegura al sistema pictórico su eficacia y su
unidad".

57
há o desenho da água, mas há uma sugestão dela a partir da composição. E isso basta para
equilibrar o conjunto.

Figura 15: Pintura de Li Zan (1306-1374), Wing among the trees on the riverbank
Fonte: https://www.metmuseum.org/toah/works-of-art/1989.363.39/

Figura 16: Pintura de Wu Zhen (1280–1354), Fisherman


Fonte: https://www.metmuseum.org/toah/works-of-art/1989.363.33/

Pensar a materialidade do desenho não envolve apenas questões sobre os materiais


utilizados, técnicas e composição. Se recorrermos aos conceitos filosóficos chineses, vemos
que também o espírito do artista participa ativamente do resultado final. É possível inclusive

58
reconhecer, através da pincelada, se o artista é desenvolto ou quem ele é. O artista está
invariavelmente impresso no seu desenho. Um simples traço envolve movimento, olhar,
gestualidade, tempo, materialidade, mas também revela aquele que desenha, desnuda-o ao
mundo. Uma mesma linha será traçada de maneiras diferentes, por diferentes desenhistas. E
ainda que um desenhista passe a vida repetindo o traçado de uma única linha, elas nunca serão
iguais.
Para Tanahashi (2006, p.11), a linha materializa o artista: "não se pode esconder nada
numa linha. Você está lá em qualquer linha que trace. E você permanecerá lá, mesmo quando
tiver ido para outro lugar". David Rosand, a propósito de um grupo de estudos de Madonnas
feitos por Rafael presentes na coleção do British Museum, afirma que "esses esboços registram
um processo de descoberta pessoal. Na própria linha da caneta reconhecemos tanto o estilo
como o artista" (Rosand, 2002, p.113)19.
Contudo, o revelar-se do artista em seu traço é um processo de maturidade. Exige
prática e empenho em encontrar seu estilo, em descobrir seus materiais, em soltar seu punho
(uma das regras na pintura chinesa). A técnica certamente há de conduzi-lo à destreza manual.
Mas não se pode deixar de lado o que Shitao define como pensamento (Ryckmans, 2010,
p.139), através da contemplação e da concentração. É o pensamento, como aglutinador das
energias espirituais, que há de conduzir o artista à maturidade de ambos: do próprio artista e
do seu traço. Quando o pensamento guia a prática, a técnica do artista se tornará solta e fluida,
e como afirma Tanahashi, ele estará em qualquer linha que trace.
É interessante apontarmos novamente que, além dos conceitos filosóficos, o manual é
repleto de discussões sobre a prática, inclusive com indicações de técnicas. Estas últimas não
se restringem à mecanicidade do manuseio dos materiais, mas englobam principalmente a
postura do artista, seu pensamento. São antecedidas por ele, permeadas por ele. Os conceitos
filosóficos e técnicos se intercalam e se interpenetram. Assim, a materialização do traço está
ligada diretamente ao pensamento e à capacidade do artista em realizar o que Ryckmans define
como "concentração interior":

O papel do pensamento é precisamente o de realizar essa concentração interior que, precedendo o


objeto, em seguida dispensará a mão de ter que tatear à sua procura através de uma matéria resistente
- ao contrário, ela encontrará o seu caminho de uma só vez e sem esforço, conhecendo o objeto por
antecipação graças à visão do espírito que precede o movimento da mão. (Ryckmans, 2010, p.140)

Livre tradução do original: "these sketches record a process of personal discovery. In the pen line itself
19

we recognize both the style and the artist ".

59
Nas figuras 17 e 18 vemos duas representações de água, pintadas por um dos mais
importantes artistas chineses, Ma Yuan, que viveu entre 1160 e 1225. São alguns dos estudos
das propriedades da água, de seu Álbum da Água. É possível notar nestes desenhos muitas das
características que já foram discutidas anteriormente, tais como o vazio, o gesto e a
contemplação. Mas acima disso, estes desenhos são resultado de um processo de grande
experiência em que o artista já domina o traço, a observação profunda através da concentração
interior e consegue imprimir sua energia nas pinceladas. Ele não tateia à procura das formas da
água, pois elas já estão impressas no espírito do artista. Ele só representa aquilo que é
fundamental, abrindo mão de detalhes desnecessários e preenchimentos supérfluos. Tudo o que
é necessário está ali no papel.

Figura 17: Ma Yuan (1160-1225) - Water album: Study of the properties of water
Fonte: http://www.faena.com/aleph/articles/a-study-on-the-properties-of-water-by-ma-yuan/

60
Figura 18: Ma Yuan (1160-1225) – Water album: Study of the properties of water
Fonte: http://www.faena.com/aleph/articles/a-study-on-the-properties-of-water-by-ma-yuan/

A concentração interior pode ser comparada ao que no ocidente denominamos


Observação, o primeiro e fundamental passo em qualquer desenho de modelo. O olhar que
permite ver a forma. É a observação que garante que possamos transmitir para o papel o caráter
de quem ou do que estamos desenhando, como é o caso das pinturas de Ma Yuan. Quando
conseguimos incorporar técnicas como a atenção plena à prática tradicional do desenho de
observação, avançamos mais rápido em direção à maturidade do traço. Estarmos sempre e
completamente presentes em tudo o que fizermos, certamente ficará impresso nas linhas que
desenharmos.

Considerações finais - ou iniciais


Sobre tudo o que foi dito até aqui, temos uma única certeza: ainda temos muito pela
frente, uma longa jornada para a compreensão de todos os conceitos que foram expostos nesta
breve reflexão. Este texto não é conclusivo, não encerra em si certezas absolutas. É, ao
contrário, um exercício do pensamento. Portanto, não há conclusões, mas sim considerações.
Que são finais, mas que nos apontam direções de grande interesse. Por isso mesmo,
consideramo-las iniciais, tais como a 'mente de principiante', que está sempre a aprender no
decorrer do processo.
Conforme já dissemos anteriormente, o conceito de Único Traço de Pincel não implica
que um desenho será feito em um único traço, literalmente. Mas sim que cada traço, cada ponto,
cada contato do material riscante com a superfície do papel será consciente e calmo. Cada traço

61
será materializado com atenção e com a observação cuidadosa no que diz respeito à
contemplação, à qualidade impermanente do ato de riscar um papel, ao gesto e aos seus
movimentos. A materialidade que se imprime no suporte resulta diretamente desse processo
que envolve o pensamento e a ação consciente.
Como podemos perceber, muito do pensamento de Shitao encontra reverberações na
prática e em especial no ensino do desenho hoje. Muitos manuais de técnicas ocidentais
ensinam a contemplação (através de técnicas de observação), a gestualidade e discutem o
caráter material do traço ou da linha. A maioria ensina a partir da tradição ocidental, o que faz
com que as abordagens a essas questões sejam distintas das orientais. Contudo, alguns fazem
referências diretas às técnicas chinesas tradicionais, em geral apontando de forma mais 'prática'
as técnicas chinesas que em geral possuem maior cunho filosófico.
Não temos a intenção, com este estudo, de diminuir a importância ou desprezar os
estudos ocidentais em desenho. Cada tratado e cada manual produzido ao longo da nossa
história do desenho possui seus méritos, participando direta ou indiretamente no
desenvolvimento da arte do desenho e na afirmação do desenho como arte. Contudo, o estudo
de outros tipos de teorias, que podem ser pouco ou muito diferentes das nossas, nos ajuda a
compreender, desmistificar e possivelmente incorporar técnicas, procedimentos e abordagens
que podem ser úteis tanto à nossa prática quanto, em especial, ao ensino. Afinal, desenhar é
criar mundos através de traços. E esta perspectiva encaixa-se bem em qualquer época histórica,
em qualquer cultura e em qualquer lugar do planeta.
Dessa forma, pensar o traço tem sido um desafio, visto que sua definição não é precisa,
bem como sua distinção daquilo que compreendemos por linha. Perceber a mecânica e a
filosofia que movem o traço, a partir do pensamento dos manuais chineses, pode nos conduzir
a uma nova percepção sobre o desenho realizado no ocidente. Os cruzamentos entre as práticas
ocidental e oriental do desenho são possíveis e já vem sendo realizados por artistas. Assim,
nossa busca é no sentido de estabelecer um pensamento e uma prática que reflitam esses
cruzamentos: sem negar nossa origem mas agregando outras possibilidades plásticas e
conceituais.
Nosso intuito com a reflexão desenvolvida foi propor o desenho como uma atividade
de imersão, de plenitude, em que o artista se coloca inteiramente envolvido com a dinâmica do
processo. Atento, consciente e em estado contemplativo. Em domínio de seu corpo, de sua
mente e espírito; tendo o lápis como uma extensão de seu próprio braço e o traço com uma
extensão de si mesmo. Vislumbramos o desenho como um processo em que coexistam

62
harmoniosamente o artista, o lápis e o papel, resultando em um desenho que materialize essa
energia através da gestualidade do artista.
Por fim, mesmo subvertendo algumas regras formais acadêmicas, encerramos estas
conclusões citando Shitao. Transcrevemos abaixo a tradução de um trecho que faz parte do
último capítulo das Anotações Sobre Pintura. Este fragmento, que compõe o texto final do
pensamento do monge, de certa forma também sintetiza nossas reflexões. Nele, Shitao aponta
algumas direções para se alcançar a qualidade da pintura, que certamente podem ser transpostas
para o desenho, tal como vimos ao longo deste texto:

O manuseio da tinta proporciona a formação técnica;


o domínio do pincel proporciona a vida;
as montanhas e os rios proporcionam as estruturas orgânicas;
as linhas e as "texturas" proporcionam a capacidade de transformar a pintura;
o Oceano proporciona o sentimento do Universo;
uma simples poça proporciona o sentimento do instantâneo;
o não agir proporciona a capacidade de agir;
o Único Traço de Pincel proporciona a infinidade dos traços de pincel;
a flexibilidade do punho proporciona a irresistível manifestação do talento.
(Ryckmans, 2010, p.161)

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64
Na Minha Cama com Durer

Armando Jorge Caseirao


Faculdade de Arquitectura

Resumo
Dei comigo a olhar para a minha cama desfeita, pela manhã... Os panejamentos e as almofadas produziam uma
série de ritmos, rugas, luz e sombras que remetia o meu imaginário para rios, montanhas e montes, paisagens
fantásticas, texturas em escalas variáveis, um mundo diferente todos os dias, produto de uma noite diferente
todas as noites. A plasticidade dos panos, assim como das almofadas, faz com que a cama enquanto fenómeno se
apresente como novidade dia após dia. No ritual matinal e quotidiano do acordar, por vezes ainda na penumbra,
leva ao deslumbramento perante o fenómeno do ritmo das pregas, das sombras das dobras e vincos dos
panejamentos e das suas texturas. Com um desenho rápido, registamos a ausência do corpo, registamos as marcas
por ele deixadas.

Abstract
In the morning, I found myself staring at my undone bed… The draperies and cushions produced a series of
rhythms, wrinkles, light and shadows that sent my imagination to rivers, mountains and hills, fantastic landscapes,
textures of varying scales, a different world every day, the result of a different night all nights. The plasticity of
the cloths as well as of the cushions makes the bed as a phenomenon to present itself as a novelty day after day.
Sometimes still in the gloom, the morning daily ritual of awakening leads to a dazzle before the phenomenon of
the rhythm of the folds, the shadows’ pleats and creases of the draperies and their textures. With a quick drawing
we register the absence of the body, we register the impressions left by it.

Na minha cama com Durer.

Palavras chave: Linha, observação, referente, repetição diferente, ritual.


Ponto de partida: Six studies of pillows, 1493, de Albrecht Durer

65
Existem três grandes famílias do desenho enquanto representação: o desenho tirado do
real, comodamente chamado de desenho à vista, o desenho do imaginário, onde cabe o desenho
projectual aquele que nos leva a desenhar o que passa pelas nossas cabeças ou simplesmente
as nossas ideias e, o desenho de memoria.
No presente caso existe um misto entre o desenho de observação, e de desenho de
memoria. Lembro-me de um exercício levado a cabo por John Baldessari (1931- ) aos seus
alunos na California, onde um estranho entra na sala de aula e sem saberem, os alunos terão
que o desenhar minutos mais tarde. Tal como um desenho robot usado pela policia. Na
realidade não se trata de um exercício de desenho habilidoso, mas sim de observação e de
atenção, de memoria e de registo.

66
Observar a minha cama desfeita pela manhã e, reparar na variedade e riqueza do
referente e de como ele proporciona um belo elemento disponível para ser desenhado. Um
perfeito exercício de repetição diferente, dada a plasticidade dos lençóis, e o seu desarrumo
perante a fricção involuntária e natural de um corpo a dormir. Os panejamentos e as almofadas
produzidos por uma marca a quente, deixam uma série de ritmos, rugas, luz e sombras que
remete o meu imaginário para rios, montanhas e montes, paisagens fantásticas, texturas em
varias escalas, um mundo diferente todos os dias, produto de uma noite diferente todas as
noites.

67
A observação de manchas é grande estímulo para a criatividade artística. Esse sentido
de ordem e de descoberta fora descrito por Leonardo da Vinci no seu Tratado da Pintura, onde
aconselha os pintores a olharem para as manchas de humidade das paredes e as manchas de
fumo e disposição das cinzas e assim descobrirem um universo insuspeito.20
Leonardo aconselha os seus leitores a “parar por vezes para ver nas manchas das
paredes, nas cinzas do fogo ou nas nuvens, na lama ou coisas semelhantes: se as considerares
com atenção encontrarás nelas ideias verdadeiramente maravilhosas”,21 assim o leitor possua
criatividade para tais leituras e construção de castelos de nuvens. No mesmo capítulo continua
Leonardo: “se observas uma parede atacada de manchas ou constituída de pedras de tipos
diferentes e, tens de imaginar uma cena qualquer, verás no dito muro paisagens variadas,

20 Leonardo da Vinci, Tratado de Pintura, Edicion preparada por Angel Gonzalez Garcia, Editora Nacional,
1980, Madrid, Cap. 493. pg. 364.
21 Leonardo da Vinci, Tratado de Pintura, Edicion preparada por Angel Gonzalez Garcia, Editora Nacional,

1980, Madrid, Cap. 493. pg. 364. Tradução do autor.

68
montanhas rios, rochedos árvores, planícies, vales extensos e diferentes agrupamentos de
colinas”.22 O leitor encontrará imagens à medida da sua imaginação e face às suas vivências.23
Do mesmo método «segundo Vasari, Piero di Cosimo ficava por vezes a “olhar
fixamente para uma parede onde pessoas doentes tivessem vomitado, e a partir dela conjurava
para si mesmo batalhas entre cavaleiros, e cidades estranhas e vastas paisagens nunca vistas.
Fazia o mesmo com as nuvens.”»24

O princípio foi aplicado por Alexander Cozens,25 (1717, 1786), que acrescentava que
“desenhar [...] é transferir formas ao acaso para o papel [...] fazer borrões é fazer manchas [...]

22 “Descobrirás igualmente combates e figuras de movimentos rápidos, estranhos esboços de rostos e trajes

exóticos e, uma infinidade de coisas que poderás transformar em formas diferenciadas e bem concebidas.”
in Leonardo da Vinci, Tratado de Pintura, Edicion preparada por Angel Gonzalez Garcia, Editora Nacional,
1980, Madrid, Cap. 493, pg. 364. Tradução do autor.
23 Ver: Ernst Hans Gombrich, Arte e Ilusão, Um estudo da psicologia da representação pictórica, Martins

Fontes, São Paulo 1995, em especial “A Participação do Observador”, III Parte VI Capitulo, “A Imagem das
Nuvens”, pg 193.
24 Ernst Kris e Otto Kurz, Lenda, Mito e Magia na Imagem do Artista, Colecção Dimensões, Ed. Presença,

Lisboa, 1988, pg 49.


25 Alexander Cozens nasceu na Rússia em 1717, e pensa-se que era filho de Pedro O Grande, tendo falecido

em Londres em 1786, conhecido como “The Blottingmaster of Eton”. Todos os mestres da aguarela inglesa

69
produzindo formas ao acaso [...] das quais a mente recebe sugestões. Desenhar é delinear ideias,
fazer borrões é sugeri-las.”26
Cozens foi um dos artistas que elaborou uma verdadeira teoria a partir das infinitas
potencialidades da mancha conhecida como “blot drawings”. Deixou-nos em 1786 o New
Method of Assisting the Invention of Landscapes, e que iria dar grande impulso à técnica da
aguarela, no entanto mal compreendido pelos seus contemporâneos. Cozens desenvolveu a
ideia original de promover a mancha de cor ou o borrão ocasional e aleatório, como um
principio inventivo pleno de fantasia criativa. Na sua técnica Cozens lançava sobre vários
papeis um sem numero de manchas e linhas de tinta-da-china em vários tons de cinzento, que
se sobreponham, puxadas a pincel ao acaso, após o que seleccionava configurações a partir das
quais elaborava fantásticas e requintadas ideias.

da geração seguinte tiraram proveito das suas experiências e ensinamentos, como John Constable, (1776-
1837), William Turner, (1775-1851) e o português Domingos Sequeira (1768-1837). Alexander Cozens
teve um filho, John Robert Cozens que foi classificado por Constable como “o maior génio que jamais
praticou a paisagem”.
26 Ernst Hans Gombrich, Arte e Ilusão, Um estudo da psicologia da representação pictórica”, Martins Fontes,

São Paulo, 1995, pg 195.

70
Face à nossa obra tomámos o registo gráfico enquanto pratica diária e quotidiana de
observação e metodologia. Praticámos uma repetição diferente, um ritual de registo do mesmo
referente, sempre o mesmo e, sempre diferente. Uma cama, duas almofadas, um lençol, por
vezes também um cobertor. Ou situações análogas ao longo dos meses, que produto da variação
da temperatura e da estação do ano leva a um registo sempre diferente mas segundo o mesmo
ritual.
A plasticidade dos panos, assim como das almofadas, faz com que a cama enquanto
fenómeno se apresente como novidade dia após dia. No ritual matinal e quotidiano do acordar,
por vezes ainda na penumbra, leva ao deslumbramento perante o fenómeno do ritmo da
topografia das pregas, das sombras das dobras e vincos dos panejamentos e das suas texturas.
Com um desenho rápido, registamos a ausência do corpo, registamos as marcas por ele
deixadas.
Esta prática de registo quase em método de diário gráfico remete-nos para o estudo de
Six studies of pillows, 1493, de Albrecht Durer. Ou vice-versa. Seis estudos de almofadas que
na realidade não são seis estudos de desenho mas sete, pois noutra página surge um outro

71
desenho de outra almofada, acompanhado de um retrato e de uma mão como que a contar pelos
dedos. Durer (1471-1528) nesta fase dispensaria apresentações;

Na maioria das artes, cada um de nós está em estados diferentes de conhecimento e


interpretação, pois a arte apresenta-se em vários níveis de percepção, dependendo das
capacidades de conhecimento e interpretação do leitor. Assim não será de estranhar que alguns
teóricos e observadores tenham visto e descoberto a face de Durer nas fronhas da almofada.
Deveríamos convocar também para este estudo Hans Brosamer, desenhador e gravador alemão
contemporâneo de Durer, nascido no final da década de 1490, provavelmente em Fulda, tendo
falecido em 1554. Por causa da pequena dimensão de suas estampas, ele está classificado entre
os chamados "Little Masters". Brosamer apresenta-se neste estudo com dois desenhos de
panejamentos deveras curiosos e bastante interessantes, pois no segundo pano de Brosamer
parece mesmo surgir uma face ou uma máscara.

72
A ausência do corpo, contrariada pela presença de espírito remete-nos exactamente para
a origem do desenho que nos surge no relato de Plínio o Velho na História Natural (cerca de
77-79 DC). Plínio tenta fazer o compêndio de varias informações no seu tempo nos Livros
XXXIV e XXXV, onde ele discute entre outos assuntos escultura e pintura.
No capítulo 5 do livro XXXV, ele escreve: "Não temos nenhum conhecimento certo
sobre o início da arte da pintura, nem esta indagação está sob nossa consideração. Os egípcios
afirmam que foi inventado entre si, seis mil anos antes de sua passagem para a Grécia; Um
vaidoso orgulho, é muito evidente. Quanto aos gregos, alguns dizem que foi inventado em
Sicyon, outros em Corinto; Mas todos concordam que ela se originou em traçar linhas ao redor
da sombra humana [... omnes umbra hominis lineis circumducta]. " Ou seja, nasce de uma linha
de contorno.
Mais à frente no capítulo 15, ele conta a famosa história de Butades ou Dibutades de
Corinto. "Foi através de sua filha que ele fez a descoberta; Que, estando profundamente
apaixonado por um jovem prestes a partir em uma longa jornada, traçou o perfil de seu rosto,
lançado sobre a parede pela luz da lâmpada [umbram ex facie eius ad lucernam em pariete
lineis circumscripsit] ".
Kora de Sicyon, filha de Butades de Sicyon, perdida de amores por um rapaz de
Corinto, onde morava, desenhou na parede o contorno da sua sombra, antes deste partir. Ficava
assim uma presença ausente do sujeito.

73
Deveriamos tambem aqui referir Johann Kaspar Lavater (1741-1801), filosofo, teologo
e pastor evengelico é considerado o pai da fisiognomia, a arte de conhecer a personalidade
atraves dos traços fisionomicos. Para tal escreveu o livro: Physiognomische Fragmente zur
Beförderung und der Menschenkenntnis Menschenliebe (1775-1778), cujo interesse assenta
sobretudo nas belissimas ilustrações e nas suas máquinas de tomar silhuetas.

O mesmo principio de contorno da figura surge na corte francesa no séc. XVIII,


associado a Étienne de Silhouette (1709-1767). O nome deste ministro das finanças de Loius
XV, Silhouette, ficara para sempre como uma patente do que em português se chama de
silhueta. E não se tenha a ideia que o ministro das finanças fazia quadros de contornos com o
interior a negro, com qualquer passatempo. Esses trabalhos de perfis negros eram trabalhos
baratos e de certa forma uma alternativa para aqueles que não tinham dinheiro para formas de
decoração mais dispendiosa, ou não pretendiam ter sinais exteriores de riqueza. Silhoutte foi
ministro das finanças de França por altura da Guerra dos Sete anos contra a Inglaterra e a sua
tarefa era conter o deficit. Assim tributou os ricos e os privilegiados e todos os sinais exteriores
de riqueza: portas, janelas quadros criados etc. A decoração barata, os perfis a negro, ganharam
o nome depreciativo do seu ministro.

74
Não nos preocupa aqui o que é o corpo. Todos temos um. Mais difícil seria falarmos de
Alma. Mas certamente a intensidade da relação do corpo com o exterior, em última instancia
de Deleuze, a intensidade com que um corpo deixa a sua marca numa almofada. Uma espécie
de pegada. Uma pegada por vezes ainda quente, por vezes ainda perfumada. Uma cama é
solidão, mas também pode ser companhia. Uma cama é descanso mas também pode ser batalha.
Uma cama é vida, mas também pode ser morte. No nosso caso a cama é repetição e ritual, tal
como nos revela Haftmann: ‘Certa manhã, quando eu fui ver Matisse, ele ainda estava na cama,
mas tinha a prancheta na sua frente e estava desenhando a mesma cabeça, com grande
concentração e gestos rápidos. Cada vez que terminava uma, ele largava a folha de papel no
chão ao lado da cama e, começava outra; assim ele foi ficando cercado por um monte de papel,
por todos os lados. Vendo a minha surpresa, ele riu-se e disse: "Eu sou como um dançarino ou
um patinador. Pratico todas as manhãs para que, quando chegar o momento, controle
completamente os meus saltos e piruetas". Werner Haftmann, Documenta III (1964).

75
A repetição surge com o homem a observar os ciclos da natureza e perante tal
observação da natureza a constatação da sua repetição, seja uma repetição diária, mensal ou
sazonal. Assim o sol nasce todos os dias, a lua tem os seus ciclos lunares,

crescente, decrescente, nova e cheia, o ano tem as suas estações, primavera, verão
outono e inverno, e com as estações do ano associam-se as sementeiras e as colheitas. Estas
são repetições cíclicas associadas à terra e à natureza, mas revestidas de grande importância de
sobrevivência para o homem. Acreditamos que com as sementeiras e as colheitas, tenha surgido
o sagrado, rico de repetições que constroem rituais.

76
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78
ARTE E CIÊNCIA: O DESENHO COMO MEIO E O CORPO COMO TEMA

Beatriz Manteigas
Faculdade de Belas-Artes da Universidade de Lisboa

Resumo
Desde as primeiras representações feitas pela mão humana Arte e Ciência caminham lado a lado. Esta
simbiose entre as áreas partiu sempre de um tema principal, o Corpo, e de uma linguagem, o Desenho, que se
apresenta inerente e necessário a qualquer criação artística e intrinsecamente ligado à formulação de questões e
hipóteses. Hoje, na era digital, o figurativo parece apresentar-se com uma nova pujança mas, ao contrário do que
acontecia até aqui, a representação da figura não se prende com a mera mimesis do corpo ou do retrato mas antes
com a finitude, impotência e simplicidade da natureza humana; na relação entre corpos (isto é, a vida em sociedade
e as preocupações a ela associadas); na relação do Homem com a nova realidade (digital, veloz, incansável).
Questiona-se a presença destas questões no desenho figurativo contemporâneo.

Abstract
From the earliest representations made by the human hand Art and Science have gone side by side. This
symbiosis between the two areas always started from a main theme, the body, and a language, drawing, inherent
and necessary to any artistic creation and intrinsically linked to the formulation of questions and hypotheses.
Today, in the digital age, the figurative seems to present itself with a new vigor but, contrary to what has been
happening till now, the representation of the figure is not limited to the mere mimesis of the body or portrait but
rather to the finitude, impotence and simplicity of the human nature; in the relationship between bodies (that is,
life in society and the concerns associated with it); in the relation of the Man with the new reality (digital, quick,
restless). One questions the presence of these issues in the contemporary figurative drawing.

A relação parece óbvia: - desde as primeiras representações feitas pela mão humana
Arte e Ciência caminham lado a lado. Em todas as antigas culturas, a Arte tinha como objetivo
último a mimesis (como definida na Antiga Grécia, a representação cuidada e fiel das formas
naturais) e, consequentemente, encontrava na Ciência as ferramentas necessárias para atingir
os seus objetivos, isto é, através do processo de questionamento, observação, comparação,
experiência e conclusão de factos, de forma a progressivamente conseguirem aproximar-se da
representação fidedigna do real. Esta necessidade de compreender para representar marca o
espírito destes artistas, aplicados investigadores que tornavam a divisão das áreas de artistas e
cientistas quase despropositada pelo facto de que, em qualquer um dos casos, as suas grandes
valências eram ora a capacidade de questionar, ora a capacidade de observação e formulação
de hipóteses, encontrando-se apenas distinção entre as áreas na antagónica importância que a
validade das hipóteses geradas tem numa ou outra área:

The scientist can either reveal or hide the fact which, supporting his new hypotesis, take
him nearer to the truth. If he has to fight, he can fight with his back to the evidence. But
for the artist the truth is variable. He deals only with the particular version, the

79
particular way of looking that he has selected. The artist has nothing to put his back
against – except his own decisions (Berger, 2015, p.12).

O maravilhoso Corpo Humano


A relação é clara e evidente e exemplos consecutivos de várias formas desta relação
podem facilmente narrar a história da Arte. Se nos habituámos a situar o atingir primeiro da
mimesis na Antiga Grécia, pelas impressionantes obras de Escultura, pecamos não fazendo
referência aos consecutivos estudos de anatomia anteriores ao século I (como o Cânone de
Policleto27, os estudos de C. Herophilo e Erasistratus28 e, mais tarde de Galeno29) e aos retratos
Fayum (do Egípto Romano), as primeiras pinturas de que se tem conhecimento que respeitam
os traços faciais do representado e até deformações ou doenças do mesmo. Na realidade, após
estas obras (cujas mais antigas datam do século I (Ferreira, 2010)), nenhumas outras pinturas
apresentam tanto cuidado na representação do real aliada a uma inquestionável mestria na
utilização dos materiais até ao Renascimento (decerto o mais famoso período em que a relação
Arte-Ciência é evidente). Em particular em Itália e na Flandres é inquestionável a separação
quase inexistente entre as áreas. As grandes figuras desse tempo, como Dürer, Da Vinci e
Vesalius, eram todos tanto luminosos cientistas como exímios pintores e desenhadores. De
Humani Corporis Fabrica (1543), de Vesalius, apesar de posterior aos estudos de Da Vinci, é
considerado o primeiro livro de anatomia e um dos mais importantes livros da cultura europeia
(derrubando o anterior pensamento medieval a nível do funcionamento do corpo humano
(Ritto, 2001, p.185)). Nele, uniam-se académicos e tratados de anatomia à observação, de
forma a encontrar o modelo genérico para a compreensão do corpo. Por outro lado, Leonardo
focava-se no pormenor, na característica particular que estudava cuidadosamente e transpunha
para o papel: o primeiro fez anatomia e o segundo fez Arte (Veloso, 2012, p.21). Dürer é
considerado o primeiro pintor obsecado pela representação da sua própria imagem, numa
dedicada interpretação e exaltação do eu representado (uma anti-tesis aos posteriores auto-
retratos de Rembrandt) (Berger, 2015, p.56), afirmando convicto que a Arte, sem conhecimento
científico, era uma mistura fortuita de imitação irreflectida, fantasia irracional e prática
cegamente aceite (Ritto, 2012, p.98). Consequentemente, o seu cuidado com as propoções, na
busca da beleza, tornaram-no uma importante referência na área científica da antropometria.

27 o primeiro tratado de anatomia de que temos conhecimento (Calado, 2012, p.110).


28 Médicos gregos do século II a.c, fundadores da Escola de Medicina de Alexandria e os primeiros a
fazerem dissecação de corpos humanos com finalidades científicas.
29 129-217d.c., médico e filósofo romano.

80
De facto, se pensarmos na distância que separa as pobres representações da Idade Média e as
iluminadas imagens do Renascimento, é impossível não reparar no paralelismo existente com
o que aconteceu no campo da Ciência durante os mesmos períodos: castrada na Idade Média
(em que qualquer estudo anatómico era proibido) e incentivada e cheia de pujança no
Renascimento. A divisão entre as áreas das Artes e das Ciências mantem-se ténue até ao século
XVIII. Já neste século conhecemos os estudos de Camper que, apesar de com fundamento
científico, ganham importância pelo desenho exemplar, representativo das questões expostas e
exercícios comparativos que levaram às suas conclusões. Por outro lado, pensemos nos estudos
de fisiognomia de Lavater (também séc. XVIII), focados no temperamento humano: mesmo
hoje, cientes da falta de validade científica relativa à então considerada Ciência da Fisiognomia,
é inquestionável o conhecimento trazido aos artistas que entenderam os estudos de Lavater
como verdadeiros manuais de variantes do corpo, ainda hoje pertinentes e consultados. De
qualquer forma, mesmo com a separação mais clara das áreas e a definição de um Desenho
Científico próprio para auxiliar a ilustração da Ciência (capaz de eliminar as ambiguidades da
linguagem onde a exatidão é prioridade (Marques, 2012, p.150)), a Arte mantem-se sempre
com um papel efetivo no evoluir do Mundo representando não só consecutivas correntes da
Era Moderna (e posteriormente da Era Contemporânea) que ultrapassaram o seu próprio tempo,
como, de forma mais ilustrativa, representando períodos marcantes da história, catástrofes e
epidemias ou peças da História da Humanidade que de outra forma ficariam perdidas para
sempre (como por exemplo The Ugly Duchess, 1513, de Quentin Matsys, que representa uma
duqueza que teria a doença de Paget; a Aula de Anatomia de Dr. Tulp de Rembrandt 1632,
comprovando o interesse dos artistas pelas Ciências do corpo ou a sífilis, na obra The Medical
Inspection de Toulouse Lautrec, 1894).
Estes exemplos (que poderiam ser outros e/ou muitos mais) comprovam e ilustram a
relação direta não só da Arte com a Ciência (a primeira trazendo soluções e hipóteses à segunda
e esta fundamento e respostas à primeira) como também comprovam a presença do Desenho
enquanto raiz e desígnio que interliga as ciências, as artes, e estas entre si (Quaresma, 2012,
p.142), mesmo não se esgotando o conceito de Desenho nas certezas que acompanham os
modelos de representação exata (Marques, 2012, p.107), e o Corpo (em particular Humano)
como a temática e desafio mais recorrentes: a forma mais representante desta mesma relação.

O registo da natureza através do traço é uma actividade inata e primordial (…)


enquanto as outras formas de arte variaram os seus propósitos o desenho de

81
observação continua a enfrentar os mesmos problemas e a tentar alcançar os mesmos
objectivos que são na sua génese a essencialidade formal (Ramos, 2010, p.451).

Como vimos, esta simbiose simples de compreender passa por duas enormes crises: a
primeira na Idade Média, em que curiosamente foram abandonadas tanto a prática do estudo
do corpo como a prática do desenho (resultante no congelamento da evolução científica e na
regressão nas capacidades representativas, levando a uma sensação de medo, escuridão e
ignorância); e a segunda no século XX em que os artistas se deparam com uma situação e
contexto em que os seus objetivos e forças motrizes já não os satisfazem.

O século XX
David Hockney, na sua obra Secret Knowledge fala-nos do surgimento da óptica e do
uso da câmara lúcida (que se aceita ter sido inventada no século XVIII) pelos pintores da época:
talvez o primeiro indicador de que a tecnologia, sempre em evolução, daria dores de cabeça
aos artistas num futuro próximo. Hockney utiliza esta ferramenta recorrentemente na sua obra
e assume a sua utilização ciente de que, no século em que vivemos, é viável utilizar qualquer
meio ao nosso alcance para atingir os objetivos propostos ou realizar as experiências que se
nos apresentem curiosas ou pertinentes. Em particular na pintura e no desenho, isto é válido
não só para a câmara lúcida como para a utilização da fotografia enquanto modelo ou parte
integrante da obra, da projecção ou da utilização e reprodução de qualquer outra imagem:
liberdade expressiva que aceitamos no pós tudo é Arte (Beuys, 2007, segundo Mesch &
Micheli): a dura conclusão a que chegamos no século XX.
Da mesma forma que um verdadeiro cientista aborrece-se com o conhecimento (Ridley,
2004, p.271), a frustação é uma das grandes coisas em arte, a satisfação é nada (Philip Guston,
s.d, como referido em Jacinto, 2012, p.123), e o século XX, um momento trincheira, é de grande
importância para a compreensão do tema aqui apresentado. A industrialização, representada
não só pela indústria propriamente dita (fábricas e objetos produzidos em massa) mas
principalmente pelas mudanças associadas à revolução industrial e respetivo avanço
tecnológico: a velocidade (tanto de produção como de vida), a reprodução em massa de
imagens associadas a produtos (tanto para identificar objetos como para a sua publicidade e a
alienação dessas imagens com um intuito consumista), o domínio da luz e da eletricidade, as
grandes guerras (e a relação do novo pensamento da sociedade capitalista face à guerra) e, por
fim, a fotografia (produção rápida e fácil, pela mão de qualquer indivíduo, de imagens de
perfeita mimesis). Neste momento, e mais do que nunca, os artistas sentiram a necessidade não

82
só de compreender o lugar da Arte como o seu intuito, pois foi também neste momento que
todas as premissas simples que davam valor à Arte (produção de um objeto único representando
algo ou alguém para a posteridade) puderam ser transferidas para outras soluções mais rápidas
e imensamente mais baratas.
A Arte viu o seu lugar, conquistado tantos séculos atrás, ameaçado pois os temas que
abordava e as imagens resultantes não conseguiam competir com as novas e tão entusiasmantes
descobertas. Naturalmente, os artistas compreenderam isto rapidamente e perceberam que a
sua posição teria de ser alterada: não bastava representar formas do Mundo natural pois era
agora mais entusiasmante e pertinente representar outras coisas relacionadas com os novos
estímulos da industrialização, novas ideias ou a nossa relação com estas novas coisas.
Gradualmente assistiu-se a inúmeros movimentos, correntes e experiências que, em conjunto,
formaram a chamada Arte Moderna e assim a Arte foi encontrando formas de se renovar de
forma a manter o seu lugar de destaque face às demais práticas. Estes movimentos não se
definiram pela forma como representam o Mundo natural como acontecia até então, mas antes
como representar este novo Mundo, cheio de novos e entusiasmantes estímulos,
crescentemente afastado do natural (o movimento e a luz motivaram o Futurismo, as realidades
distorcidas o Surrealismo, e por aí adiante). Em consequência, temas até aqui centrais, como a
representação do corpo e a sua prática, caíram em desuso e o corpo humano, até aqui olhado
como uma máquina complexa e perfeita, de inúmeras variantes entusiasmantes à prática
artística e à investigação, símbolo de toda a existência humana, mostrou-se pela primeira vez
banal, desinteressante, simples, imperfeito. De facto, como acontecera durante a Idade Média,
o século XX (principalmente até aos anos 80) caracteriza-se pelo desinteresse pela
representação da figura que, quando utilizada, surge como elemento acessório para trabalhar
as temáticas propostas pelo novo pensamento (facto não só comprovado pelos artistas que se
sagraram pilares do seu tempo bem como pelo próprio programa académico adaptado às novas
realidades na maior parte das academias ocidentais).

O entediante Corpo Humano


Resumindo, bluntly put, modernity hates the body. Even since Descartes, the body
appears disgusting; it is slow, thick, and mortal, embodying the limits of our ability to be
(Coulombe, 2012, 191). Mas a revolução industrial e consequentes descobertas não alteraram
apenas o imaginário dos artistas. Tão ou mais importante foi a descoberta de novos meios e
médios que começaram a apresentar-se mais consequentes para as temáticas que agora
entusiasmavam os artistas. Na busca da ruptura com o passado, procurando a libertação dos

83
signos deduzidos do modelo da morfologia natural buscava-se uma maior liberdade da
criatividade humana, livre de qualquer condicionante, princípio de autoridade (Argan, 1988,
p.105). Se as correntes artísticas do início do século XX enumeradas atrás se mantêm presas a
uma prática plástica (desenho, pintura ou escultura) a Arte renovou-se também em novas
formas de natureza efémera, como a performance e o happening e a Arte conceptual: perante
o novo Mundo, a Arte, enquanto objeto físico e material símbolo de riqueza, mostrou-se
obsoleta. Se mais do que nunca a sociedade procurava melhorar as suas condições de vida,
trabalho e educação a Arte não deveria ser diferente, tendo de se reinventar de modo a
responder a estas mudanças e a tornar-se participativa e efetiva na mudança. Nestes moldes,
surgem os “projetos” e as “investigações” em Arte onde estes termos, vindos da Ciência,
ganham novos contornos: não somos cientistas logo não usamos termos científicos (M.
Botelho, comunicação pessoal, maio 11, 2017). Note-se, no entanto, que estes projetos e
investigações em Arte aproximam-se muito mais da ideia científica de investigação do que com
a Arte in an old-fashioned sense, resultando nas obras a que nos habituámos na atualidade,
formadas principalmente pela ideia, pelo conceito (Sontag, 1961, p.229).
Após as alterações do século XX, a Arte não se questiona apenas quanto à sua definição
dentro das experiências plásticas como tem de se questionar quanto à sua definição dentro de
qualquer tipo de experiência. Esta mudança, despoletada pela revolução industrial, influenciou
de tal maneira a Arte que a levou a estender as suas áreas de atuação, técnicas e meios tornando-
se mais do que nunca indefinida e indefinível e consequentemente, talvez seja este o período
na História em que a relação Arte e Ciência é mais marcante pois a evolução da segunda, sob
a forma de Tecnologia, muda por completo o rumo da primeira.
Faça-se aqui uma nota para reforçar o facto de que até aqui nos limitámos a analisar a
evolução da Arte e das suas temáticas, meios e médios, anseios e prioridades, de uma forma
muito resumida, concluindo a deterioração da abordagem do corpo humano e possivelmente
consequente desinteresse pela prática do desenho (durante tantos anos exercício e prática
central às Artes Plásticas), sendo inquestionável que os grandes pilares na Arte do século XX
(e respetivos movimentos) pouco se prendem com a representação da figura. Deve também ser
referido que esta alteração foi feita em tempos e de modos diferentes em vários contextos. Se
a Arte alemã durante o III Reich se aproxima em muito do romantismo ao mesmo tempo que a
Bauhaus, em Munique, é seio das mais inovadoras correntes artísticas, outros sítios houve,
como a Rússia e países de leste, influenciados por regimes autoritários, em que a prática
artística se manteve (e mantém) principalmente figurativa, sendo o exercício de desenho pelo
natural central nas academias dedicadas não só às Artes Plásticas, mas também à Arquitetura.

84
Deve ser claro que qualquer afirmação aqui feita tem de ser entendida de forma generalizada e
sempre relativa à Arte ocidental.

Campo de batalha
O imenso sucesso da abstracção aclamado pela fervilhante crítica (especialmente
americana) levou, nos anos 50, a que esta parte do Modernismo ameaçasse apresentar-se como
o todo modernista, deixando na sombra inúmeras outras correntes, criando-se um verdadeiro
campo de batalha do século XX (Danto, 1995, 119), em que artistas e críticos defensores do
figurativo lutam pelo seu lugar, aparentemente negro, na Arte Moderna.
No entanto, negro ou não, é inquestionável que, e apesar de num plano claramente
secundário, o desenho e a figura não desapareceram. Sabe-se que Picasso, como provam obras
como Primeira comunhão (1985/86), dominava a representação do Mundo natural aos quinze
anos de idade (tanto em termos de desenho como de pintura) – capacidades apenas adquiridas
por um trabalho árduo e cuidado nesse sentido: conta-nos Almada Negreiros que, em entrevista,
Picasso é questionado quanto à primeira coisa que fazia ao pintar, à qual este responde - sentar-
se - mas, quando seguidamente é questionado se pintava sentado responde, com naturalidade -
Não, eu pinto de pé (A. Negreiros, 1934, como referido em Sabino, 2000, p.10).
Por outro lado, outros claramente abstratos, como Pollock, afirmavam sentir-se
continuamente assombrados pela falta da presença da figura nos seus trabalhos, como se essa
cultura enraizada na história da representação o chamasse e questionasse constantemente.
Enquanto que Kooning afirmava que para chegar ao abstrato são necessárias muitas coisas e
que a ideia inicial de que a abstração poderia tirar a Arte dela mesma caiu por terra rapidamente:
essas muitas coisas necessárias, seriam sempre “coisas da vida”, impedindo o artista de ser
totalmente livre do Mundo natural, pois a liberdade total faria o artista abandonar a prática e
juntar-se aos filósofos (Kooning, 1996, p. 565). De facto, apesar do desprendimento pela
prática do desenho de observação, devemos referir que grande parte dos artistas do século XX
continuaram a pelo menos, pontualmente, recorrer a ele, não como ferramenta para atingir os
seus objetivos finais, mas como exercício não só de compreender as suas possibilidades como
exercício de compreensão do legado da Arte.

Painters who deny themselves the representation of life and limit their language to
purely abstract forms, are depriving themselves of the possibility of provoking more
than na asthetic emotion (Freud, 1954, p.23).

85
E se mesmo estudando estes artistas que marcaram a vanguarda do século XX,
aparentemente afastados das formas tradicionais, encontramos o desenho e a figura, o que dizer
das Escolas que mantiveram viva, contra todos, a chama do figurativo?
Nos anos pós 60, a genealogia do minimalismo, levou artistas e críticos a manter uma
tendência céptica quanto ao realismo e ilusionismo, mantendo-se numa batalha entre o abstrato
e o figurativo que, em caso último, levou ao total abandono da pintura. Por outro lado, uma
outra trajetória seguiu o caminho traçado pela Pop Art, superrealismo e outras: uma linha
claramente negligenciada pela História em relação à primeira, e se nos anos 80 é crescente o
surgimento de movimentos figurativos, nos quais se incluem a Bad Painting (Estados Unidos),
o neo-expressionismo (Alemanha), a transvanguarda (Itália), a Figuração livre (França) e a
Geração 80 (?) – movimentos que surgem durante o auge e como resposta à performance e ao
happening (que, pensando bem, também não se focam no corpo?) – estes descendem
diretamente dos artistas parisienses do início do século, dos seus descendentes da Escola de
Londres e, por fim, da Pop Art (o movimento figurativo mais marcante da primeira metade do
século XX). Simplificando, estes movimentos eram resultado da vontade de regressar à pintura
tradicional, a acrílico e óleo, sobre papel ou tela, mediante pincéis e materiais riscadores e,
consequentemente, vontade/necessidade de regressar à representação de figuras, de forma mais
ou menos fiel do Mundo real. Francis Bacon, um claro pilar e primeiro exemplo desta mudança,
no auge da sua carreira ainda no início da segunda metade do século XX, é claramente
figurativo, está especialmente preocupado em representar a natureza humana, frágil e
imperfeita.
Hal Foster diz-nos que a Pop fora abordada teoricamente de duas formas antagónicas
principais, como referencial ou simulacral - tema trabalhado por Roland Barthes, Michel
Foucault ou Jean Baudrillard – mas que talvez esta possa na realidade ser ambas, como um
realismo traumático (Foster, 1996, p.128).

For many in contemporary culture truth resides in the traumatic or abject subject, in
the diseased or damaged body. (…) If there is a subject of history for the cult of
abjection at all, it is not the Worker, the Woman, or the Person of Color, but the
Corpse (Foster, 1996, p. 166).

Na cultura popular o trauma é o evento que garante o tema e assim este resolve dois
imperativos contraditórios da cultura atual: a análise desconstrutiva e a política da identidade.
Como expõe Leo Steinberg, em Other Criteria (1968), passámos de um modelo vertical de

86
imagem-como-janela para um modelo horizontal de imagem-como-texto, de um paradigma
“natural” de imagem emoldurada para um paradigma “cultural” em que a imagem assume o
papel de um network informal que marcava o pós-modernismo na Arte. This horizontal
expansion of artistic expression and cultural value is furthered, critically and not, in quasi-
anthropological art and cultural studies alike (Foster, 1996, p.202). Lawrence Alloway
acrescenta ainda que a Pop marcava o início da Arte em continuidade, e não numa pirâmide de
camadas congeladas (o mesmo momento que Danto identifica como o fim da Arte).
Despojos de guerra
Hoje, imersos numa realidade sem escuro e sem silêncio, em que somos bombardeados
por informação e imagens sem qualquer triagem, a prática da pintura e desenho figurativos,
bem como a representação anatómica e respetivo estudo, parecem ter voltado a ganhar relevo.
O que mudou? Cada um com o seu estilo e temáticas próprias, mais ou menos focados na
representação anatómica correta, os artistas figurativos contemporâneos utilizam o corpo
humano como símbolo central. Será isto um retorno melancólico às práticas do passado sem
peso para a evolução da História de Arte? Parece que não. Se no século passámos por um
período em que alguns valores, há muito respeitados e tomados como certos, começaram a
apresentar-se falíveis, duvidosos e até falsos para muitos, hoje será talvez nos valores “dos
selvagens”, como afirma Dubuffet, que encontramos a base ainda válida dos nossos valores:
instinto, paixão, humor, loucura, violência (Selz & Stiles, 2012, p.216).
Já em 1959 Paul Tillich afirmava que each period has its peculiar image of man, ciente
de que a alteração profunda que o Mundo da Arte tinha sofrido era resultado direto da nova
sociedade em que a imagem do homem era, consequetemente, diferente. Tillich questiona o
desaparecimento das formas orgânicas, da identidade e características próprias da figura na
Arte Moderna e, nos casos em que a figura desaparece por completo, pergunta mesmo o que
terá acontecido ao Homem e à realidade das nossas vidas, temendo que, por por este caminho,
o Homem se torne mais uma coisa, juntamente com as coisas que o próprio produz. Tillich
esclarece que perante esta nova sociedade não há senão duas posições possíveis do indivíduo:
a primeira será a indiferença quanto ao sentido da vida humana e simples preocupações
mundanas e a segunda o desespero, ansiedade e revolta contra a mesma situação. Faz um
paralelismo entre este primeiro grupo e a aceitação do desaparecimento da figura, prevalecendo
a forma da “coisa”, e o segundo com aqueles que, desesperadamente procuram resistir a este
perigo eminente. No entanto pertencendo claramente a este segundo grupo, e falando a partir
de uma exposição em que os artistas presentes partilham as mesmas preocupações, reconhece
a dificuldade de trazer de volta a figura à pintura quando, por uma questão de honestidade, é

87
impossível retomar simplesmente formas naturais e idealísticas ou avançar para um neo-
classicismo: They fight desperately over the image of man, and by producing shock and
fascination in the observer, they communicate their own concern for threatened and struggling
humanity (Selz, 1959, p.9-10).
Três anos mais tarde, Philip Pearlstein identificava dois inimigos na representação da
figura na Arte Contemporânea: o conceito da figura plana e o “roving point-of-view” (ponto
de vista errante), conceitos introduzidos no início do século XX quer pelo tipo de imagens que
se começaram a criar (longe da busca pela ilusão e organicidade), quer pela rapidez crescente
de produção de imagens, luz, movimento e velocidade. Segundo Pearlstein estes dois conceitos
mudaram radicalmente não só a forma como vemos as imagens como alteraram para sempre
os valores até aí considerados válidos para a indicação do que seria uma “pintura convincente”:
The game of painting can be meaningful only if one deals squarely with the rules imposed on
our sensibilities by our progenitors (Pearlstein, 1962, p.39). Talvez o artista que representa o
corpo através da sua observação cuidada, longe de qualquer intuíto que não o apreender e
compreender a natureza da forma, seja o único capaz de realmente ver o corpo humano na sua
planitude.
E não basta conhecer o passado e evolução da Arte. Sabemos que esta é sempre resultado
da sociedade em que se insere. Quer de forma direta quer de forma complexa e até antagónica,
a Arte surge de um indivíduo que encerra em si, como afirma Rosalind Krauss, toda a mess in
life que o envolve. Hoje, quando as grandes questões da humanidade deixaram de ser a
evolução da Ciência e da Tecnologia mas antes o Mundo que criámos através das primeiras,
parecemos preocupar-nos de novo connosco, com a nossa natureza, finitude e imperfeições. Se
pensarmos apenas em termos politico-sociais podemos facilmente concluir que, nos últimos
dez anos, as políticas e as grandes questões se prendem com estes temas: migrações, ambiente,
religião, fronteiras, super-potências, guerras, entre outros. Talvez da pior maneira, o Mundo
compreende agora que, seja qual for o tema em debate, por muito que as máquinas tenham
evoluído e por muito que o automatizemos, o Mundo tem apenas um controlador, causador e
vítima de todos os seus atos, imperfeito, finito, corruptível - o Homem – que hoje se divide
entre assumir-se semi-automático, alheio ao seu passado natural e assumindo a velocidade, as
linhas e indiferença das máquinas, ou naquele que, ciente da impossibilidade da própria
sobrevivência da espécie seguindo este percurso, luta em constante ansiedade com a tendência
do primeiro. Será neste segundo grupo de indivíduos, preocupados com a figura não só na obra
como na sociedade, que se incluem de modo geral os artistas figurativos contemporâneos e os

88
pontos em comum entre estes (que os distinguem dos seus antepassados) podem ser facilmente
enumerados:
- Utilização das técnicas, meios e médios tradicionais;
- Utilização do desenho como linguagem principal;
- Presença do desenho a partir do natural;
- Figura humana como tema e objeto central seja enquanto auto-representação,
representação do outro (que permite formar ideia do nosso próprio organismo corporal
(Albrecht, 1981, p.87)) ou coletivo;
- Conceito centrado na relação da figura com a sociedade ou a sua própria natureza:
relação homem-sociedade; relação indivíduo-coletivo; pertença/diferença; finitude,
impotência, simplicidade e imperfeição humana;
- Utilização da representação da figura humana não como objeto integrante do Mundo
Natural que, só por si, fora válido até ao século XIX, mas antes como pretexto para
questionar a relação da Homem com o Mundo.

Conclusão
Yet there are things that a drawing can convey that are beyond the reach of
photography and digital media – just as there is no subtitle for a handshake or a kiss
(Malbert, 2015, p. 27).

No momento em que o Homem e o artista parecem sentir necessidade de compreender a


sua relação com o Mundo retomam a prática do desenho e o pensamento a partir do corpo
humano, distantes das soluções figurativas do século XX antes próximos de primos longínquos,
de tempos em que o Homem se questionava ardentemente quanto ao funcionamento do Mundo:
they gaze on us, the Fayum portraits, like the missing of our own century (Berger, 2015, p.11).
Para a compreensão destas questões, o artista retoma a ferramenta que durante séculos lhe
permitiu estudar e compreender o Mundo Natural – o desenho – e, através dele, como é costume
e obrigação dos artistas, formula hipóteses e representa as questões de toda a sociedade em que
se insere. Conclui-se ainda que, apesar de por vezes na sombra, o desenho é inerente e
necessário a qualquer criação artística e está intrinsecamente ligado à formulação de questões
e hipóteses. A atual tendência figurativa da Arte relembra-nos que, mesmo na era digital e
avanços científicos, continuamos a ser humanos procurando significado para a vida,
conscientes da nossa finitude, enclausurados numa sociedade como observadores e observados.

89
Hoje, como no regresso do filho pródigo, volta a ser o próprio Homem o que mais motiva as
questões que fazem evoluir a Arte.
A cultura em que vivemos é talvez a mais claustrofóbica que alguma vez existiu; na cultura
da globalização, tal como no Inferno de Bosch, não há sinal de um “outro sítio” ou de uma
“outra maneira”. O dado é uma prisão. And faced with such reductionism, human intelligence
is reduced to greed (Berger, 2015, p.39).
Aceitamos que hoje tudo é Arte, e todos somos artistas (Beuys, 2007, segundo Mesch &
Micheli, p.189) ficando apenas espaço para um partir do vazio (Eco, 1986, p.229) numa
constante necessidade de defesa da Arte (Sontag, 2009, p.5). No entanto, na mesma altura em
que Beuys o concluía, vários artistas retomavam o corpo (que nos últimos anos havia sido visto
como uma máquina obsoleta) como tema e mesmo como meio.
A partir dos anos 80 sente-se um gradual regresso à figura através de vários movimentos
resultantes da necessidade de regressar à representação de forma mais ou menos fiel do Mundo
natural. No século XXI a sua pujança é inquestionável. Os artistas figurativos do final do século
XX e do século XXI cuja obra partilha vários pontos em comum, a nível prático e teórico, e
tendo cada um a sua linguagem pessoal, todos estes relembram que a Arte, enquanto matéria
da Humanidade, encontrará sempre pertinência na própria natureza humana. Ao contrário do
que acontecia até ao século XIX, hoje o artista não se dedica ao indivíduo singular, mas antes
a este perante a sociedade em que se insere, relembrando-nos da nossa natureza face ao Mundo
Contemporâneo e assumindo assim não necessariamente um papel ativista mas antes um papel
expositor.
No século XXI multiplicam-se as investigações e publicações dedicadas à Arte figurativa
e críticos e investigadores, que antes pareciam temer abordar estas temáticas, fazem-no agora
quase de forma compulsiva, quase temendo não chegar a tempo de falar do que hoje parece
urgente.
Se o conceptualismo (ambicionou colocar) decididamente a Arte fora do espaço e fora
do tempo, exclui-la, talvez para sempre, do mundo existente (Argan, 1988, p.119), os
predicados dos artistas figurativos contemporâneos são, nesse sentido, uma anti-tesis da Arte
Conceptual, procurando retomar o Mundo existente para a obra e o Homem para o Mundo. O
Desenho – a forma de expressão que melhor sintetiza a nossa relação com o Mundo (Saraiva,
2012, p. 95) (relação essa interativa, fundamentalmente ambígua, possível, aberta e
processual, da qual não se propõe uma definição última, mas cuja definição mais não é do que
a série sucessiva das definições parciais, operativas e hipotéticas (Eco, 1986, p.25), o ato de

90
agir a partir do visível ou do experienciado, ou da combinação de termos (Gantes, 2012, p.127),
é assumido de novo.
In the battle of painting the figure, to pry open the flat picture plane and control the
roving eye, the weapons must be chosen carefully and wielded skillfully. A human being,
a profound entity, is to be represented (Pearlstein, 1962, p.39).

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A PRÁXIS ENUNCIATIVA NOS DESENHOS PARA UMA PINTURA MURAL
PARA A IGREJA NOSSA SENHORA DOS NAVEGANTES, NO RIO DE JANEIRO

Fábio Cerdera
UFRRJ

Resumo
Este artigo tem como objeto de estudo desenhos preparatórios e referências artísticas para a pintura mural
intitulada “Aparição do Divino”, obra realizada no processo de pintura do afresco para a Igreja Nossa Senhora
dos Navegantes, localizada no Rio de Janeiro. A pintura em questão foi elaborada como trabalho de conclusão do
Curso “A Arte e a Técnica do Afresco” (COC/Fiocruz). Pretende-se neste trabalho, realizar uma breve análise de
seu processo de significação, desenvolvido a partir da convocação de elementos pertencentes a estudos
compositivos anteriores. A invocação destes enunciados plásticos elementares, tributários de uma práxis
enunciativa (Bertrand, 2000; Fontanille, 2008), retomam referências próprias e de outros artistas, as quais são
norteadas por uma poética material (Bachelard, 1997) que funda diretamente o conteúdo temático da obra.

Palavras-chave: pintura mural; afresco; práxis enunciativa.

Abstract
This article has preparatory drawings for a wall painting entitled “The Apparition Of The Divine Holy Spirit” as
a study. This work of art was realized through the fresco painting process for Nossa Senhora dos Navegantes
Church, located in Rio de Janeiro. This painting concerned was elaborated as a conclusion work “Art and The
Fresco Technique” (COC/Fiocruz). The intention of this article is to briefly analyze its significance process,
developed from the convocation of elements from previous compositional studies. This plastic elementary
utterance invocation, tributary from an enunciative praxis (Bertrand, 2000; Fontanille, 2008), resumes not only its
own but also other artists’ references, which are guided by a material poetry (Bachelard, 1997) that directly
establishes the work of art’s subject content.

Keywords: wall painting; fresco; enunciative práxis.

Introdução
No projeto elaborado para a composição mural intitulada “Aparição do Divino” no
processo do afresco para a metade superior do arco cruzeiro (próximo ao limite da cornija
que encima as janelas) da Igreja de Nossa Senhora dos Navegantes, na Paróquia de mesmo
nome, no bairro de Bonsucesso, Rio de Janeiro,30 é importante considerarmos dois aspectos
de sua genealogia: se por um lado, houve uma escolha pessoal pelo local, bem como uma
sugestão da própria instituição, que solicitou que se mantivesse a imagem do Divino Espírito
Santo, até então, uma pequena figura entalhada em madeira, que ocupava a parte central
inferior do arco – Figura 1 –, por outro lado, um repertório de desenhos que produzimos

30A pintura foi o trabalho de conclusão do curso “A Arte e a Técnica do Afresco - Projeto Mestres e Ofícios
da Construção Tradicional Brasileira”, promovido pela Casa de Oswaldo Cruz I/ Fiocruz/ Oficina Escola
de Manguinhos, realizado entre 2013 e 2016.

95
anteriormente a este projeto, e imagens artísticas as quais remontam à nossa própria
vivência como artista e pesquisador, participaram diretamente da confecção da pintura.

Figura 1. Arco Cruzeiro da Igreja Nossa Senhora dos Navegantes.

Propomos neste texto realizar uma breve análise de como o fluxo dessas referências
– um corpus composto notadamente pelos cartões preparatórios para o afresco e por outras
produções nossas e de outros artistas –, de ordem mais subjetiva, encadeiam-se às escolhas
técnicas e formais mais objetivas, necessárias à realização de um projeto dessa natureza, isto
é, um projeto para uma pintura mural. No que tange especificamente à teoria de apoio a
qual nos filiaremos, utilizaremos aqui o instrumental pertencente à semiótica de linha
francesa, especialmente o conceito de práxis enunciativa (Bertrand, 2000; Fontanille, 2008),
que, grosso modo, noutras palavras, relaciona-se com o que podemos chamar de uma
“consciência coletiva” (Stan, 1992, p. 30), um arquivo de referências, de enunciados
socialmente compartilhados, do qual fazemos uso quando enunciamos, no momento mesmo
do ato de enunciar um texto, esclarecendo que o sentido de texto é aqui ampliado para o
produto de qualquer processo como ato de significação.
Nesses termos, em última instância, analisaremos então como a produção da obra
pictórica mencionada acima, convoca diversos enunciados para atualizá-los, seja por uma
reiteração parcial, preservando alguns traços de sua presença material, seja por uma

96
transformação absoluta de sua estrutura em um processo de ressignificação mais radical.
Para tanto, propomos antes conceituar a pintura mural em termos gerais e apresentar alguns
traços temáticos e figurativos presentes no processo de criação para a pintura mural em
questão.

A pintura mural: projeto, tema abstrato e cobertura figurativa


A ideia inicial para o projeto para a execução do referido mural já nasce em
conformidade às intenções da instituição, bem como aos usos e às funções que, até aquele
momento, a porção superior do arco possuía. É importante ressaltar que esse
dado é essencial quando se pretende realizar uma pintura mural, seja em afresco ou em
qualquer outra técnica, tradicional ou não, justamente por ser esse tipo de obra um discurso
público, como bem disse em inúmeras oportunidades o grande pintor brasileiro e professor
Lydio Bandeira de Mello (1929) ao longo do curso “A Técnica e a Arte do Afresco”.
Nesse sentido, antes mesmo de iniciarmos nossa formação na Fiocruz e
conhecermos a igreja da Paróquia de Nossa Senhora dos Navegantes, já havíamos
manifestado interesse por esse tema a partir do contato, no ano de 2010, com um painel de
azulejos retratando a figura de Nossa Senhora dos Navegantes de Cascais e de uma escultura
também representando Nossa Senhora – Figura 2 e Figura 3.31

31O painel encontra-se em uma pousada em Paraty, cidade da zona costeira do Rio de Janeiro. A escultura
está na igreja de Nossa Senhora da Boa Viagem, localizada na Ilha da Boa Viagem, no Município de Niterói,
Rio de Janeiro.

97
Figura 2. Nossa Senhora dos Navegantes de Cascais. Azulejo.
Figura 3. Nossa Senhora. Escultura.
Fonte: Arquivo pessoal, 2010.

A partir daí surgiram dois estudos em desenho, projeto para um díptico – Figura 4 –
, assim como alguns anos depois, mais dois estudos em desenho para outras duas
composições – Figura 5 e Figura 6. Tal vínculo com essa temática se mostrou fundamental
na escolha do local para a realização do mural em afresco.

98
Figura 4. Projeto para Díptico. Grafite sobre papel. 40 x 29 cm. 2010.

Figura 5 e Figura 6. Estudos para Nossa Senhora dos Navegantes. Grafite sobre
papel. 20 x 29 cm. 2014.

No que diz respeito ainda à natureza da pintura mural, para a realização deste
projeto, levou-se em conta algumas características de cunho estético e estrutural elencadas
por Mayer que, a despeito de em parte se referirem a uma tendência da pintura mural a
partir do século XVIII, resumem bem a orientação que se buscou na elaboração e na
execução do projeto:

Deve ser absolutamente permanente [a pintura mural] . . . deve apresentar um acabamento fosco . . .
ter em conta que os espectadores a verão enquanto andam . . . um certo grau de pertinência com a
arquitetura e a função do lugar . . . manter a sensação de superfície bidimensional ou plana do
trabalho. (Mayer, 1996, p. 395 e 396).

Esses preceitos são compartilhados por outros autores, dos quais podemos citar aqui
o pintor Modesto Brocos (1852-1936), para quem a pintura mural deveria evitar criar um
buraco na parede (Brocos, 1933), e Jean Rudel, que expressa a sua opinião de uma forma
mais completa, como podemos observar no trecho que segue:

99
A pintura neste caso [aplicada a um muro ou a um objeto] deve conservar um sentido do funcional,
pela aliança estreita da sua própria magia e da realidade que ela completa. Deste modo uma
“perspectiva” em si mesma deve respeitar os dados “funcionais”, quer do da arquitetura, quer do lugar
e das necessidades harmônicas da superfície em que está criada (relação de tons). Numa palavra, não
deve “furar” nem o muro nem a superfície do objeto, independentemente de um propósito
arquitetural – a não ser que este o exija! (Rudel, 1975, p. 37).

A pintura mural não deve, portanto, conter as subjetividades inerentes a uma pintura
de cavalete, mas, antes, ter clareza na sua proposição, bem como, se possível, ser uma obra
de cunho pedagógico. Assim, é de praxe levar em conta as funções do edifício e os usos que
seus usuários habitualmente fazem deste que, no caso de uma igreja católica, recaem
invariavelmente sobre os conceitos e a iconografia que envolvem a doutrina e a liturgia
cristãs.
Sendo necessária a manutenção da imagem do Divino Espírito Santo e descartada a
hipótese de se realizar a imagem de Nossa Senhora dos Navegantes – recomendações da
instituição para a qual o mural seria realizado, pois já havia várias representações dessa
figura na igreja –, a partir do tema sugerido, propôs-se então desenvolver inicialmente para
a composição do projeto, o tema da Santíssima Trindade – Figura 7.

Figura 7. Projeto Mural Santíssima Trindade. Caseína sobre papel. 40 x 60 cm. 2015.

Contudo, percebeu-se que a figuração da Trindade poderia dividir a atenção do


espectador, enfraquecendo o foco almejado, o Espírito Santo. Assim, em uma segunda

100
composição, optou-se pela materialização do “Deus uno” (Atos, sem ano de publicação, 5:3;
João, sem ano de publicação, 5:20) condensado sobretudo nas figuras da pomba e da nuvem.
No lugar das figuras do Deus Pai e do Deus Filho, Jesus Cristo, nos lados esquerdo e direito,
respectivamente, passaram a figurar dois grupos de anjos – Figura 8.

Figura 8. Projeto Mural Aparição do divino. Caseína sobre madeira. 58 x 141 cm. Escala: 1:10. 2015.32

A pomba na tradição pictórica ocidental aparece como a representação usual do


Espírito Santo – o que se pode observaem inúmeras pinturas, como nos batismos de Piero
della Francesca (1415-1492) e de El Greco (1541-1614), por exemplo – Figura 9 e Figura 10
–, e que, em última análise, está de acordo com o que disse Mateus: “Batizado que foi Jesus,
saiu logo da água; eis que se abriram os céus, e veio o Espírito de Deus descer como pomba
e vir sobre ele” (Mateus, sem ano de publicação, 3:16). Daí também a importância do
Espírito Santo na conversão dos fiéis, fato que podemos observar nas palavras de Jesus ao
instruir os seus discípulos logo após a ressurreição: “Ide, pois, e fazei discípulos de todas as
nações, batizando-os em o nome do Pai e do Filho e do Espírito Santo” (Mateus, sem ano de
publicação, 28:19).

32As dimensões reais do espaço onde o mural foi realizado são: 14,00 m (comprimento médio do arco) x
5,50 m (77,00m2).

101
Figura 9. Piero della Francesca (déc. 1450). Batismo de Cristo. Têmpera
sobre madeira. 167 x 116 cm.
Fonte: De “Piero della Francesca” (p. 113) de R. Longhi, 2007.
Figura 10. El Greco (C.1600). Batismo de Cristo. Óleo sobre tela. 350 x
144 cm.
Fonte: De “El Greco” (p. 60) de P. Troutman, 1985.

Além da pomba, figura fundamental que concilia os universos celeste e terrestre,


outra figura importante que concretiza o Pai ainda de forma mais contundente, dada a sua
matéria de pouca densidade, rarefeita, é a nuvem e a natureza oscilante de sua luz,
também muito presente nas representações da Santíssima Trindade – como as de Rafael
Sanzio (1483-1520) e de José de Ribera (1591-1652), por exemplo – Figura 11 e Figura 12
respectivamente.

102
Figura 11. Rafael Sanzio (1509). A Disputa do Sacramento. Afresco. 500 cm × 770 cm.
Fonte: De “Michel-Ange et Raphaël au Vatican” (pp. 138-139) de G. Bernett, & C. Cecilia, 2012.
Figura 12. José de Ribera (1635-1636). A Santíssima Trindade. Óleo sobre tela.
Fonte: http://pt.wahooart.com/@@/9GER5M-Jusepe-De-Ribera-(Lo-Spagnoletto)-
Sant%C3%ADssima-Trindade.

Assim, a nuvem e sua luz constituem uma poderosa figura, ao revelar o Deus Pai por
meio de uma matéria misteriosa, vaporosa, enfim, bastante adequada à materialização da
ideia do Criador como algo que se conforma a diferentes espaços. No mural, essa tipologia
de figuras tem o papel de concretizar o Deus Pai, e o faz, podemos dizer, numa espécie de
hierarquia: (i) a luz, matéria mais rarefeita e meio, conector das outras duas figuras; (ii) a
nuvem, de materialidade fugidia; e (iii) a pomba, que o concretiza corporalmente.
Em todas essas figuras, não são as suas propriedades aéreas objetivas que foram
acionadas, muito menos são elas metáforas para o imaterial, mas antes, postulamos terem
elas o papel de encarnar a natureza da fluidez em seus discursos, no sentido mesmo que
Bachelard propõe, quando diz que “todos os seres aéreos sabem que é sua própria substância
que voa, naturalmente, sem esforço, sem movimento de asa” (Bachelard, 1990, p. 47). Essa
substância que materializa visualmente a aparição é que denominamos aqui de tema
abstrato, isto é, semioticamente, a parcela mais abstrata da superfície do discurso pictórico,
a qual recebe investimentos semânticos mais concretos em sua cobertura figurativa.

103
A práxis enunciativa no texto mural

Segundo Fontanille, a práxis enunciativa comporta quatro operações através das


quais os enunciados circulam, quais sejam, o devir dos modos de existência virtual, atual,
real e potencial:
a práxis enunciativa administra, entre outras coisas, o modo de existência das grandezas e dos
enunciados que compõem o discurso: ela os apreende no estágio virtual (enquanto entidades
pertencentes a um sistema), ela os atualiza (enquanto seres de linguagem e de discurso), ela os realiza
(enquanto expressões), ela os potencializa (enquanto produtos do uso) etc. Os modos de existência,
dos quais a práxis administra a distribuição e a variação, dizem respeito diretamente às relações entre
sistema e discurso, já que o sistema é por definição virtual. (Fontanille, 2007, p. 273).

A Figura 13 representa graficamente o sistema da práxis e as relações entre os seus


modos de existência. A sua visualização torna mais claro o processo de produção de
conhecimento, que, a rigor, sejam as grandezas e os enunciados que se utilizam em uma
quantidade maior de traços semânticos de um repertório largamente utilizado, sejam as
grandezas e os enunciados radicalmente novos, com uma densidade sêmica menor, tanto
num caso como noutro, todos percorrerão, de alguma forma, todo o esquema, do sistema ao
discurso e vice-versa. Isso significa que, em última instância, a práxis acaba por articular,
por conciliar grandes oposições ou dicotomias em arte, como, por exemplo, os termos
/cópia/ vs. /criação/, pois, adotando o conceito da práxis, nem o primeiro termo pode ser
uma transferência absoluta de grandezas virtuais presentes no sistema para realizá-los num
enunciado, nem o segundo termo pode ser uma invenção absoluta no âmbito das expressões,
mas, antes, há uma retroalimentação desses dois polos:

Figura 13. Representação gráfica do sistema da práxis


enunciativa.
Nota: De “Semiótica do discurso” (p. 273) de J. Fontanille,
2008.

104
Nesse sentido, as referências apresentadas como anteriores ao projeto para nossa
pintura mural – Figuras 4, 5 e 6 –, mas que estão diretamente relacionadas a ele, desde o
momento em que foram realizadas, tornaram-se potenciais enunciados plásticos que
imediatamente foram virtualizados em nossa memória interna como sistema capaz de
estocar esses enunciados para a sua posterior ressignificação através do uso.
No caso do discurso público e pedagógico que a pintura mural deve assumir num
grau maior ou menor, a convocação efetiva de outros textos pode trazer mais estabilidade
ao seu enunciado, e quanto mais estável e objetivo for esse, melhor cumprirá o seu papel
que, em certa medida, já é esperado por seu público enunciatário, aquele que frequenta o
espaço do edifício que abriga a obra. Dizemos que esse tipo de discurso, que prima pela
clareza e pelo que tem de semanticamente estável como texto, pois deve mais esclarecer e
menos problematizar como linguagem, é um discurso implicativo, aquele que “tem como
pivô o porque, ao passo que o discurso concessivo tem como pivô o embora” (Zilberberg,
2004, p. 18). Uma pintura mural para um prédio com funções tradicionais não deve,
portanto, reservar grandes surpresas ou enigmas insolúveis aos enunciatários de seu
discurso. O seu sucesso como narrativa de natureza objetiva e integrada ao espaço
arquitetônico deve, sempre que possível, estar claramente implicado a outros textos e
discursos de ampla circulação e, sendo assim, é lícito dizermos que a natureza da pintura
mural transcende o seu próprio plano e depende necessariamente dessa estabilidade sêmica.
Em nossa tese de doutorado33, num capítulo que versou sobre a práxis enunciativa,
cunhamos o conceito de paráfrase figurativa para designar a transformação do “discurso do
outro através da paráfrase de certos procedimentos figurativos que cercam o tema”, e o
conceito de estilizações plásticas para designar a transformação do “discurso do outro
através da estilização de certos procedimentos plásticos que envolvem a composição”
(Cerdera, 2012, p. 195), que pode incluir a adoção de um partido de composição como um

33Cf. Cerdera, F. (2012). Praxis enunciativa: interdiscursividade e criaçao plastica. In: F. Cerdera. O
horizonte da nação: uma análise semiótica da pintura histórica de Antônio Parreiras (Tese de doutorado)
(pp. 193-213). Instituto de Letras, Universidade Federal Fluminense, Niteroi, RJ, Brasil. Este capítulo da
tese foi publicado em 2012 na revista eletronica DezenoveVinte (www.dezenovevinte.net/).

105
todo. Ambos os procedimentos dizem respeito a formas de citação as quais pretendem
disseminar preferencialmente o conhecido e a estabilidade na apreensão de um texto visual,
desde uma semelhança icônica com uma quantidade de traços significativa, até a
convocação de poucos traços da referência de partida. Falamos aqui de uma escala de
figuratividade eminentemente visual à semelhança do que propõe Bertrand quando se
refere a textos verbovisuais:

a figuração deslizaria gradualmente da representação icônica (reproduzindo uma percepção sensível,


como a solenidade de um monumento, a familiaridade da carta da França ou a presença de um olhar) à
representação abstrata (sugerindo valores fundamentais, como o equilíbrio e a equidade da Justiça),
passando por tratamentos estilizados das alegorias e dos símbolos. (Bertrand, 2000, p. 132). 34

Esses procedimentos estão enraizados por toda a nossa composição mural, mas vamos
nos concentrar aqui naquelas manifestações que consideramos serem as mais significativas,
numa espécie de genealogia destas imagens, sobretudo no âmbito da figuratividade. Alguns
elementos formais e outros figurativos que compuseram o projeto fazem alusão direta ou
indiretamente à Nossa Senhora dos Navegantes, à qual a matriz é dedicada. Estes elementos
têm importância fundamental por se relacionarem diretamente à figura da água, que, por
sua qualidade amorfa e por isso também, uniforme, mas vital, é o “elemento mais constante
que simboliza com as forças humanas mais escondidas, mais simples, mais simplificantes”
(Bachelard, 1998, p. 6), elemento que, podemos dizer que, constitui-se como o meio,
condição sine qua non para todo e qualquer re-nascimento.
Logicamente, a água foi em nosso mural apenas sugerida por meio de alguns
elementos figurativos e de certas qualidades plásticas. Em síntese, tais elementos e
qualidades são os seguintes: (i) a figura do arco com a linha decorativa sinuosa em azul em
seu interior, que acompanha de forma parcialmente paralela o próprio arco cruzeiro, bem
como os arcos pertencentes ao teto da igreja, ao altar-mor e de seu pequeno vitral, e por
fim, ao nicho onde se encontra a imagem de Nossa Senhora dos Navegantes. Esses elementos
criam conjuntamente uma espécie de ressonância que ecoa por toda a extensão da nave da

34 “. . . la figuration glissait graduellement de la représentation iconique (reproduisant une perception


sensible, comme la solennité d’un monument, la familiarité de la carte de France ou la présence d’un regard)
à la représentation abstraite (suggérant des valeurs fondamentales, comme l’équilibre et l’équité de la
Justice), en passant par des traitements stylisés, des allégories et des symbols” (Tradução livre).

106
igreja, na qual está implicada uma dinâmica que perpassa a própria irradiação luminosa da
figura do Espírito Santo – Figura 14. Ao adotarmos esse dispositivo topológico na
composição, procuramos tirar partido das linhas da arquitetura e suscitar o movimento do
mar, presente no mural da parte inferior do arco e em várias outras referências na igreja;
(ii) numa escala bem menor, as pequenas figuras das âncoras e dos peixes que decoram a
vestimenta do anjo maior localizado à direita – Figura 15; (iii) a propriedade opaca, mas
luminosa da camada de argamassa de cal sobre o muro, de empastamentos de tinta a seco e
o uso de camadas transparentes, de velaturas de cor – Figura 16.

Figura 14. Dispositivo rítmico dos arcos do mural e da


arquitetura.

Figura 15. Anjo (detalhe). Pintura Mural Aparição do Divino. Afresco. 2016.
Figura 16. Anjo (detalhe). Pintura Mural Aparição do Divino. Afresco. 2016.

107
Se neste projeto tivemos como programa a aparição do Divino Espírito Santo, no que
tange a seu partido de composição, este foi inspirado estruturalmente e, em certa medida,
na simetria, na ortogonalidade e nos acentos de modelado e cromaticidade da produção
renascentista e deve o seu mote estrutural, guardadas logicamente as devidas proporções,
ao arco que relaciona as figuras do grupo central superior da “Trindade” do afresco de
Rafael35. Este seria um caso do que denominamos de estilização plástica, por que retoma
parte do discurso de Rafael através de sua estilização plástica, ressignificando-o e o elevando
a eixo estrutural do dispositivo topológico da composição do Espírito Santo como um todo.
Grosso modo, a composição foi pensada como um sistema de compensações “em
balança”, para citar as palavras do mestre Bandeira, sistema esse que contém várias
dinâmicas as quais se complementam. Em resumo, há dois grandes movimentos de leitura:
(i) a expansão que tem origem na parte superior e no centro e se direciona para as laterais
do arco cruzeiro, marcando a transição das luzes mais altas e quentes (materializando o fogo
e sua energia, qualidades do Divino na doutrina cristã) para as áreas de tons mais baixos e
frios nas extremidades laterais do arco. Essa dinâmica se inicia com um andamento mais
célere no centro, terminando por desacelerar-se nos grupos figurativos das laterais – Figura
17. É importante ressaltar que tal dinâmica põe em movimento o descortinar das nuvens na
cena, ou seja, figurativamente, anima a aparição do Deus Pai, que se faz através do eixo
vertical que associa a estrela, no limite superior, à pomba, e dessa em todas as direções;

Figura 17. 1º grande movimento compositivo.

35 Cf. a Figura 11 deste artigo.

108
(ii) o percurso que conduz o olhar do enunciatário através do arco, partindo do grupo à
esquerda, composto por linhas mais expansivas, centrífugas e em maior tensão –
semelhantes aos raios que partem da pomba –, ao grupo à direita, onde as linhas se
organizam em suas direções dentro de um fluxo contínuo, centrípeto, construindo uma
narrativa semelhante ao primeiro grande movimento: de uma expansão mais instável, para
uma contensão mais estabilizada – Figura 18.

Figura 18. 2º grande movimento compositivo.

Dessa forma, o tema do Divino trabalhado na composição, na verdade, subsume um


tema ainda mais abstrato do que o da aparição, qual seja, o tema da passagem da
impermanência do universo terrestre para o estado absoluto do universo celeste. Na Figura
19 podemos visualizar o resultado final da pintura realizada no muro da igreja, e se o
compararmos ao projeto em caseína, notaremos uma maior leveza como efeito final
alcançado pela adoção do processo em afresco, qualidade que se mostrou central para o
processo de significação do texto mural.

109
Figura 19. Pintura Mural Aparição do Divino. Afresco. 14,00 m (comprimento médio do arco) x
5,50 m (77,00m2). 2016.

A Tabela 1 propõe realizar uma síntese das principais homologações entre algumas
das categorias dos planos do conteúdo e do plano da expressão, explicitando determinadas
instâncias de significação que o texto mural se utiliza para materializar o acontecimento
da aparição do Divino.

Nota. A tabela resume algumas homologações entre categorias do plano do


conteúdo (da semântica discursiva) e do plano da expressão.

110
Nessa tabela, podemos notar que há uma hierarquia que entretece os planos e os
níveis de significação do texto dentro de um sistema que estabelece correlações entre as
grandezas sensíveis da expressão e a cobertura figurativa da semântica discursiva do
conteúdo, superfície do discurso pictural da ordem do inteligível. Da pomba às nuvens, o
enunciatário observador percorre um espaço que tem origem numa figura de materialidade
mais concreta chegando à outra de natureza mais abstrata. Essa transição, como já
observamos, faz-se através da grande área mais uniforme de cor amarela, o que implica
diretamente numa diferença de celeridade nesse percurso, pois, cumpre a grande área
amarela do interior do arco o seu papel temático de materializar a luz, responsável por
descortinar a figura principal do tema da aparição, o Espírito Santo.
Buscou-se na constituição da figura da pomba, uma configuração que fosse a mais
simples possível, digamos, quase hierática, proporcionando uma leitura sem ruídos, sem
nenhuma preocupação com escorços ilusionistas, o que poderia se esperar em função de ser
uma grande tradição do afresco a partir do século XVII. Nesse sentido, a pomba se apresenta
a partir de um ponto de vista superior, de cromaticidade mais fria sobre um fundo quente e
sem dissoluções tonais na relação figura/fundo – Figura 20 e Figura 21.

Figura 20. Pomba. Cartão Preparatório para a Pintura Mural Aparição do Divino. Carvão sobre
Papel. 97 cm x 97 cm. 2016.
Figura 21. Pomba. Aparição do Divino. Afresco. 97 cm x 97 cm. 2016.

O ponto de vista dessa figura foi evocado diretamente do Espírito Santo presente em
“A Disputa do Sacramento”, de Rafael36 – Figura 22. A paráfrase figurativa introduz a

36 Cf. a Figura 11 deste artigo.

111
subversão de alguns traços da figura de Rafael buscando imprimir mais dinâmica, dentre
eles, temos como os mais significativos, a orientação da direção das penas das asas e da cauda
que se encontram mais em diagonal e a contradição estabelecida na asa esquerda, que se
sobrepõe ao tronco da ave, provocando uma torção da sua posição frontal e que acaba por
condensar dois pontos de vista simultaneamente.

Figura 22. Espírito Santo. Detalhe de A


Disputa do Sacramento, Figura 11.

A análise de mais um cartão preparatório para uma figura da composição tem por
objetivo mostrar outro grau do que chamamos aqui de paráfrase figurativa: enquanto a
figura da pomba que representa o Espírito Santo chega a um estágio bem próximo do
icônico, que dentro de uma escala de figuratividade seria uma identidade máxima com
relação à referência de partida, por sua vez, a figura do grande anjo na parte direita da
composição se estrutura a partir da manutenção não de traços da configuração, mas pela
sugestão de uma situação postural em que há um contrapposto entre o torso e a cabeça, e
que evoca parcialmente muitas e diversificadas soluções na tradição artística, as quais nos
limitaremos aqui a dois exemplos – Figuras 23, 24, 25 e 26.

112
Figura 23. Anjo. Cartão Preparatório para Pintura Mural Aparição do Divino. Carvão sobre
papel. 194 cm x 194 cm. 2016.
Figura 24. Anjo. Pintura Mural Aparição do Divino. Afresco. 226 cm x 226 cm. 2016.
Figura 25. Correggio (1526). São João Batista. Estudo para um mural. Desenho.
Fonte: De “A História da Arte” (p. 258) de E. Gombrich, 1988.
Figura 26. Miguel Ângelo (1508-1512). O profeta Isaías. Afresco.
Fonte: De “Michel-Ange et Raphaël au Vatican” (p. 93) de G. Bernett, & C. Cecilia, 2012.

É importante ressaltar que diferentemente da paráfrase e da estilização analisadas


anteriormente, as quais poderíamos dizer, são citações quase diretas por que retomam
conscientemente outros discursos, nesse último caso, as associações com as imagens são
posteriores, o que demonstra que as referências que circulam nas instâncias da práxis podem
advir de combinações sintagmáticas, in praesentia, no caso do uso de referências realizadas,
seja de fontes como impressões ou filmes as quais podem ser dispostas numa cadeia linear,
ou de associações paradigmáticas, in absentia, como deste último desenho analisado, em que
a potencialização de enunciados e grandezas anteriores criou a competência necessária para
as atualizações e realizações em novos enunciados.
Se levarmos em conta a totalidade do arco cruzeiro e nesse, as duas composições
propostas, o afresco “Aparição do Divino”, na parte superior, e o afresco intitulado “Os
Pescadores do Evangelho”, realizado nas laterais inferiores do arco pelo artista Rafael
Bteshe37, observa-se algumas diferenças pertinentes que se complementam. Tais contrastes
não são obviamente fruto de uma simples coincidência, mas decorrente da articulação das
cenas ao longo do processo de criação e de execução dos murais. Nas pinturas dos
pescadores, as composições são atravessadas por grandes diagonais (concretizando a agitação

37 Nesses afrescos o pintor trabalhou o tema de Pedro pescador, sua família e os apóstolos.

113
do universo terrestre), assim como exibem figuras com uma acentuada compleição física e
estruturadas com uma paleta mais terrosa, características opostas ao mural do Espírito Santo
– Figura 27.

Figura 27. Pinturas Murais Aparição do Divino (Fábio Cerdera) e Os Pescadores


do Evangelho (Rafael Bteshe). Afresco. 14,00 m (comprimento médio do arco) x
11,50 m (161,00m2). 2016.

É válido ainda destacar que o sistema de oposições e compensações de ambos os


murais se completam e se conciliam, estabelecendo uma tensão produtiva entre expressão
e conteúdo, como organizado na Tabela 2.

114
Nota. A tabela resume um sistema de tendências de oposições semânticas
presentes entre as pinturas murais do arco cruzeiro da igreja Nossa Senhora
dos Navegantes, sistema esse que encerra uma homologação entre categorias
do plano do conteúdo e do plano da expressão.

No que diz respeito à oposição cromática especificamente, esta não é um dado


exclusivo desses trabalhos, já que podemos encontrar sistemas semelhantes na história da
pintura mural, haja vista, por exemplo, as pinturas realizadas por Eugène Delacroix para o
Palácio de Bourdon (Assembleia Nacional), em Paris:

Cada parede tem um friso retratando uma das ‘forças’ do estado – Justiça, Guerra, Indústria e
Agricultura – localizadas acima de dois paredões de grisaille amarelo azulado de 6 metros (18 pés)
representando personificações dos mares e dos rios da França. (Lee, 2015, p. 198).38

Nos frisos, acima dos grisailles, as cenas exibem policromias, o que propõe um
sistema onde há uma saturação cromática progressiva da parte inferior à superior, e que
automaticamente estabelece uma hierarquia do menos para o mais importante. Isso nos
permite dizer que, à semelhança dessas composições de Delacroix, o destaque à figura do
Espírito Santo nos afrescos da igreja Nossa Senhora dos Navegantes, termina por receber o
acento plástico correspondente à sua relevância no conjunto dos murais, se considerarmos

38 “Each wall had a frieze depicting one of the 'life forces' of the state - Justice, War, Industry and Agriculture
- set above two 6-metre (18-ft) high yellow and blue-tinted grisaille piers depicting personifications of the
seas and rivers of France” (Tradução livre).

115
a diferenciação tonal e de saturação cromática progressiva que correlaciona ambas as
pinturas do arco.

Considerações finais
Este artigo analisou de forma sucinta o processo de construção de sentido da pintura
mural “Aparição do Divino”, trabalho de conclusão de curso promovido pela Fiocruz/RJ e
elaborado na técnica do afresco. Através do conceito de práxis enunciativa e outros
instrumentos teóricos pertencentes à semiótica francesa, buscou-se demonstrar a
pertinência do trabalho realizado, no sentido mesmo de uma seleção de traços pertinentes
(Barthes, 2012) que foram analisados.
O agenciamento de outros textos no momento da produção é um dado inerente a
qualquer ato enunciativo e no caso de uma pintura mural, que no dizer dos pintores e da
teoria da arte é de natureza pública, esse dado se mostra ainda mais necessário, tendo em
vista que o discurso mural, numa técnica tradicional como o afresco, deve se estruturar em
função do caráter do edifício, que geralmente requer enunciados estáveis e claros, sem
grandes experimentações estéticas.
A práxis enunciativa nos auxiliou na reflexão a respeito do processo de criação e de
pesquisa na esfera da produção de uma imagem pictórica, processo que não difere muito de
qualquer produção no que concerne à articulação de uma abordagem imanente, isto é,
focada na estrutura do texto, com a transcendência inerente a qualquer ato de linguagem.
Enfim, em última análise, procurou-se evidenciar neste artigo que, sobretudo a pintura
mural deve levar em conta o que a semiótica chama de cena predicativa, quer dizer, as
práticas, os usos que envolvem o enunciado mural como um texto, para além de sua própria
integridade como objeto artístico.

Referências Bibliográficas e Iconográficas

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Bachelard, G. (1990). O ar e os sonhos: ensaio sobre a imaginação do movimento. São Paulo: Martins Fontes.

116
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Mateus (sem ano de publicação). Aparição de Jesus na Galiléia, e missão dos apóstolos. In: H. Dalbosco
(Coord.). Bíblia Sagrada (3:16). Rio de Janeiro: Gamma.

117
Mateus (sem ano de publicação). Aparição de Jesus na Galiléia, e missão dos apóstolos. In: H. Dalbosco
(Coord.). Bíblia Sagrada (28:19). Rio de Janeiro: Gamma.

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olhar à deriva: mídia, significação e cultura (pp. 1-20). São Paulo: Annablume.

118
“A DIMENSÃO AUTOETNOGRÁFICA DO PROJETO
DICIONÁRIOS.DE.ARTISTA”

Filipa Pontes
Doutoranda em Belas Artes
Faculdade de Belas Artes da Universidade de Lisboa

Resumo:
“DicionáriosDeArtista: a experiência do lugar. Autoetnografia no campo do desenho” é uma
investigação teórico-prática em curso, sobre as relações e intersecções entre processos autoetnográficos
e a prática do desenho contemporâneo. Propõe discutir o ‘desenho autoetnográfico’ como campo de
produção e investigação, problematizando o terreno de apropriações entre prática artística e experiência
etnográfica, desde uma perspectiva artística. Tendo como conceitos chave o desenho contemporâneo, o
site-specific, e a autoetnografia, a comunicação centra-se na apresentação e argumentação da dimensão
autoetnográfica do projeto DicionáriosDeArtista (o qual é o ponto de partida do programa de trabalho)
para partilhar um conjunto de referências, fundamentos e experiências que estão a ser desenvolvidos
dentro da investigação.

Abstract:
"ArtistDictionaries: The experience of the place. Autoethnography in the field of Drawing "is an
ongoing art based research, with focus on the relations and intersections between autoethnographic
processes and the practice of contemporary drawing. It proposes to discuss 'autoethnographic drawing'
as a field of production and research, problematizing the terrain of appropriations between artistic
practice and ethnographic experience, from an artistic perspective. Taking the contemporary drawing,
site-specific, and autoethnography as key concepts, the present communication focuses on the
presentation and argumentation of the autoethnographic dimension of the ArtistDictionaries project
(which is the starting point of the PhD program) to share a set of references, foundations and experiences
that are being developed within the research.

119
“A existência de inovação na arte do nosso tempo em que Foster insiste (...) passa por aqui: de
uma ‘arte para falar na arte’ para uma ‘arte para falar no mundo’; mas também a arte como
prática cultural que suspende a nossa relação quotidiana com o mundo, que pode contribuir
para percepções do mundo e das nossas vidas que se afastam do que é adquirido e consensual,
para explorar outras formas de o encarar, e de tentar mudá-lo” José António Fernandes Dias,
“O ‘novo’ na arte de hoje. Arte e construção da realidade”, Revista Marte 1, Março 2004, (pg.
05).

De dentro para fora


O meu primeiro contacto com o conceito de autoetnografia aconteceu em 2013, num
momento em que necessitei de refletir e questionar sobre a minha prática artística nos
últimos cinco anos, com o objetivo de escrever um artist statement. Neste exercício ficou
claro, que toda a minha trajetória artística estava relacionada com o interesse e curiosidade
inatos em questionar o mundo ao meu redor na tentativa de compreender a complexidade
das relações humanas na sua dimensão social, cultural e política. Talvez por isso enquanto
criança sempre escolhia relacionar-me com as pessoas fora da norma; na adolescência
devorava livros de literatura fantástica que propunham imaginar outros mundos; que desde
1999 tenho como companheiro diário a edição mensal portuguesa do Le Monde Diplomatique
aguçando a opinião crítica sobre a geopolítica mundial; e que, desde 2007 empreendo uma
existência nómada guiada pelo interesse em “experimentar-me” noutras culturas.
Em retrospectiva, a minha prática artística está vinculada a essa vontade de pesquisar,
questionar e repensar as diferenças culturais, inspirada e ao mesmo tempo promovida, pelas
relações interpessoais que permeiam o meu quotidiano.
Por outro lado, o desenho é o meu principal meio de expressão desde que me lembro de ser
gente. Recordo com 7 ou 8 anos vibrar com os diferentes formatos, cores e espessuras de
papéis que os meus pais traziam da gráfica, para que eu e minha irmã gémea déssemos asas
à imaginação através do desenho. No liceu, frequentei o curso de Arte e Design, e gostava de
passar horas a exercitar a auto(des)aprendizagem do desenho: escolhia imagens de revistas
ou jornais e primeiro tentava fazer um desenho rigoroso à vista, para depois reproduzi-lo
livremente sem olhar a imagem. Fascinava-me a distorção despreocupada, da imagem
produzida através da memória. Durante o percurso errático pela licenciatura em Design
Gráfico, substituía qualquer exercício digital pela ilustração feita à mão e a técnica da
serigrafia. Para solidificar esse interesse pelo desenho, frequentei o Curso de Ilustração para
a Infância no CITEN (em 2001) dirigido pelo João Catarino. Terminada a licenciatura decidi
deixar para trás o mundo do design para seguir pesquisando o desenho e a ilustração como

120
prática artística. Frequentei a pós-graduação em Ilustração Criativa (EINA) em 2007 em
Barcelona, e essa experiência deu-me novas ferramentas para usar o desenho como
linguagem para desenvolver graficamente posições criticas em relação ao mundo à minha
volta. Viver em Barcelona, colocou-me em contacto com várias realidades dentro da mesma
sociedade. A condição de imigrante deu-me uma dimensão distinta sobre o mundo
globalizado, expondo as incongruências da visão eurocêntrica em que somos educados. Pela
primeira vez, a esfera profissional, artística e pessoal era composta de gente vinda dos quatro
cantos do mundo, abrindo espaço para um questionamento constante e prolífico, sobre os
fundamentos que estruturavam a minha vida. Foi a partir desse contexto que comecei a
desenvolver o interesse em transformar a experiência pessoal quotidiana em desenhos,
misturando a realidade individual com a produção artística de forma criteriosa, tendo como
base a reflexão critica sobre o mundo ao meu redor.
Entre 2007 e 2011 (coincidindo com a minha vivência em Barcelona) desenvolvi um conjunto
de obras onde explorei essas premissas, perseguindo primeiro o interesse em melhorar o meu
entendimento sobre a diversidade cultural e a integração na cultura catalã, evoluindo depois
para uma vontade em “experimentar-me” em diferentes contextos culturais e sociais, e
traduzir essa prática em reflexões visuais. O projeto DicionáriosDeArtista, iniciado em 2010,
é a obra que mais evidencia, de forma consciente, o objectivo de pesquisar as diferenças,
contrastes e semelhanças culturais e a atividade humana em vários contextos, partindo da
experiência pessoal. Constitui-se por um conjunto de livros de artista, produzidos em diversos
lugares do mundo e mostram visualmente (através do desenho) um olhar crítico, criativo e
autorreflexivo sobre a dimensão pessoal, cultural, social e política da sociedade
contemporânea a partir das experiências vividas nesses lugares. É um projeto que continua
atualmente em desenvolvimento, acompanhando e alimentando o meu percurso nómada.
Em 2011 mudei-me para Maputo perseguindo a ideia de viver num país radicalmente
diferente de Espanha, quer cultural, histórica ou socialmente. Embora Moçambique tenha
afinidades com a cultura portuguesa, interessava-me aprender e apreender outras formas de
ver o mundo e de o viver.
Em 2013, DicionáriosDeArtista fazia parte da minha produção artística mais recente. Ao
indagar sobre possíveis referências e conceitos que pudessem iluminar teoricamente e
propor reflexões sobre o meu processo artístico (no sentido de escrever e atualizar o artist
statement, como é apontado no inicio do presente texto), comecei por identificar uma

121
proximidade com determinados temas e métodos da antropologia (principalmente a
antropologia cultural e social), o que me levou ao paradigma do “artista etnógrafo” proposto
por Hal Foster (1996). Este novo modelo de produção artística caraterizado pela passagem da
arte para o “campo expandido da cultura”, foi problematizado nos anos 90 do século 20 no
texto “O Artista Como Etnógrafo” (Foster, 1996), inaugurando o que chamou de “viragem
etnográfica da arte contemporânea”. Ao procurar aprofundar um pouco sobre etnografia e
tentando relacionar com o meu processo criativo vinculado ao universo pessoal, ao confronto
cultural e autorreflexão, sobressaiu o texto “Home and Away: Self-Reflexive
Auto/Ethnography” de Christiane Alsop (2002). Na introdução do artigo Aslop escreve: “I will
relate scientific approaches to the experience of being home versus being away with my
personal experiences of leaving my home- country (Germany) and immersing myself in
another culture (the United States) to open up various dimensions of meaning.” A proposta
de Alsop, vem revelar-me a figura do autoetnógrafo: um investigador que coloca o eu dentro
do contexto social, conectando o universo pessoal com o universo cultural. O texto vem
mostrar-se também profícuo no sentido de apontar diretrizes para pesquisar sobre o conceito
de autoetnografia, o seu contexto de aparecimento e desenvolvimento. As descobertas
consequentes, abriram para mim um mundo para novas pesquisas. O projeto
DicionáriosDeArtista passou a ter uma dimensão conceptual mais forte, influenciando
também o desenvolvimento prático da obra.
Em 2014, proponho-me o desafio de voltar a Portugal para ingressar no doutoramento em
Belas Artes na FBAUL, justamente para continuar a ampliar e aprofundar o estudo sobre a
apropriação de processos autoetnográficos dentro do campo da prática do desenho,
tomando como referência o processo de desenvolvimento de DicionáriosDeArtista.
Em outubro do mesmo ano, o projeto é integrado como parte do objecto de investigação
dentro do programa de doutoramento em Belas Artes (especialidade de Desenho) na FBAUL,
sob orientação do professor Américo Marcelino. Até ao momento o projeto é constituído
pelas seguintes obras: DicionáriosDeArtista:RioDeJaneiro (2010),
DicionáriosDeArtista:SalvadorDaBahia (2010), DicionáriosDeArtista:Bilbao (2010),
DicionáriosDeArtista:Maputo (2011/2014 DicionáriosDeArtista:Alte (2015),
DicionáriosDeArtista:CaldasDaRainha (2015/2016), DicionáriosDeArtista:Shanghai (2016),
atualmente está em processo a obra DicionáriosDeArtista:Alentejo e o próximo
DicionáriosDeArtista vai ser produzido na Noruega no principio de 2018. No contexto da

122
investigação o projeto foi organizado em três fases: a primeira, que designamos de
anteprojeto, englobando as obras realizadas durante a minha residência em Espanha, onde
estão integradas as obras produzidas no Brasil e em Bilbau. A segunda fase que contempla a
obra produzida durante a minha estadia em Moçambique, a qual se apresenta como a
principal referência para o programa de trabalho dentro do doutoramento, essencialmente
por traduzir um desenvolvimento do trabalho mais consistente onde é evidenciado o desenho
como processo de mediação cultural (ver Pratt 1999). E a terceira fase, relacionada com o
desenvolvimento prático e fundamentação teórica do projeto, onde estão integradas as obras
produzidas (e em processo) em Portugal e na China dentro do programa de trabalho do
doutoramento. Estas obras formam parte da pesquisa teórico-prática baseada na prática
artística (art based research) que estamos a desenvolver, a qual se centra na investigação
sobre as relações e intersecções entre processos autoetnográficos e a prática do desenho
contemporâneo, para propor e discutir o ‘desenho autoetnográfico’ como meio de produção
e investigação dentro do campo do desenho contemporâneo. Todas as fases de
DicionáriosDeArtista fazem parte de um processo conceptual, técnico e metodológico que
vem sendo desenvolvido, modificado e atualizado ao longo do tempo, acompanhando o
avanço do projeto.

DicionáriosDeArtista: presente, passado, futuro

“As a nomad with a serially monogamous passion for place, I often wonder if this
inconstancy constitutes hopeless fragmentation or hopeful integration”
Lucy Lippard, The Lure of the Local. Senses of Place in a Multicentered Society ,1997 (p.6)

DicionáriosDeArtista é um projeto que estou a desenvolver desde 2010 e parte da vontade


de transformar a experiência pessoal quotidiana em desenhos, num exercício que passa pelo
autoconhecimento e pelo desejo de melhor entender o mundo à minha volta. Interliga a
realidade individual com a produção artística, aproveitando conscientemente as experiências
diárias como motor para o desenvolvimento de um olhar critico sobre as diferenças e
contrastes culturais na sociedade contemporânea, analisadas a partir de diferentes pontos
geográficos. O projeto assume assim ser um arquivo visual que documenta as experiências
vividas em vários lugares do mundo, mostrando não só os contrastes entre as diferentes

123
culturas como também os pontos onde convergem, desde uma perspectiva autorreferencial.
A sua origem e desenvolvimento acompanham as grandes mudanças na minha vida nos
últimos 10 anos.
A ideia de transformar as reflexões da vida diária em desenhos, surge em 2007 coincidindo
com a minha saída de Portugal para Espanha.
Entre 2007 e 2011, realizei vários projetos artísticos, relacionados com a minha condição de
imigrante. Cabe destacar a obra de desenho PetitDiccionariVisualAutobiogràficCatalà
(Pequeno dicionário visual ilustrado de catalão) criada em 2008, que consistiu num exercício
de autoaprendizagem da língua catalã, utilizando a imaginação e a ficção para interpretar a
minha experiência na sociedade barcelonesa.
A obra é composta por 40 desenhos realizados a caneta e marcadores coloridos e ganhou
uma menção honrosa no Prémio de Arte Jovem de Mataró em 2009.

Vista geral da obra PetitDiccionariVisualAutobiogràficCatalà

No seguimento desta obra, surge em 2010 o projeto DicionáriosDeArtista.


Os primeiros livros de artista, foram realizados durante uma viagem de trabalho ao Brasil.
Nesse momento perseguia apenas a ideia de caraterizar o lugar desde um ponto de vista
pessoal.

124
No entanto a partir destas obras preliminares, ficou definido: o título e a sua configuração
como um projeto work in progress constituído como conjunto de obras semelhantes e criadas
em diferentes lugares; o suporte: caderno comprado localmente, com gramagem adequada
para o desenho e apresentando uma relação simbólica com o lugar; o formato livro e o
tamanho A5, unindo o espaço de produção e exibição, criando liberdade e independência
criativa; os materiais: canetas de feltro e gel, uma técnica que estava a explorar desde 2007,
iniciada a partir das experiências realizadas nas aulas de pós-graduação em Ilustração Criativa.
Por ser um material economicamente acessível, ter disponível um espectro de cores
diversificadas e vibrantes, e principalmente por serem

Página de DicionáriosDeArtista:RioDeJaneiro

portáteis; e também a técnica: desenho sobre papel, realizados diretamente nos cadernos.
Estas caraterísticas formam a base formal do projeto e mantêm-se (com algumas
atualizações) até ao momento presente. DicionáriosDeArtista:RioDeJaneiro foi produzido
entre 23 e 30 de junho de 2010 e DicionáriosDeArtista:SalvadorDaBahia entre 1 e 23 de julho
2010.

125
Os desenhos aparecem nos cadernos dispersos e misturados com frases, e os cadernos
apresentam muitas folhas em branco. Somente a partir da experiência em Salvador da Bahia
o nome do projeto passa a figurar na capa.

Página de DicionáriosDeArtista:SalvadorDaBahia

Uns meses depois, decidi viajar até Bilbau para continuar a desenvolver DicionáriosDeArtista.
Os nove dias que passei na capital do País Vasco (entre 30 de agosto e 3 de Setembro de 2010)
foram integralmente dedicados à realização da obra.
A partir da experiência em Bilbau senti a necessidade de criar alguma coerência no projeto e
decido definir um método para a realização das várias obras futuras. Foi assim criado um guia
de ações para a vivência no espaço e um guia conceptual com diretrizes para um olhar crítico
na forma de observação da realidade, permitindo potenciar uma aproximação com a cultura
local e ao mesmo tempo alimentar conceptualmente os desenhos. A escolha das ações
baseou-se em atividades quotidianas e pensadas para serem repetidas em diversos sítios do
mesmo lugar. A lista de ações compunha-se por: comprar um caderno numa papelaria local

126
(que seria a base para a criação do livro de artista), tomar um café numa pastelaria ou
cafetaria, fazer compras num supermercado ou mercearia, andar de transporte público,
visitar uma escola, comer num restaurante, assistir a um espetáculo local, fazer uma chamada
de um telefone público, enviar uma encomenda por correio postal, ler um jornal local, passar
uma noite sem dormir e deambular pelas ruas sem destino. As diretrizes propõem um foco
em questões sócio culturais com base nas dicotomias: população autóctone versus imigração,
tradição versus modernidade (globalização), espaço público versus espaço privado (família),
condicionalismos geográficos versus arquitetura, o profano versus o sagrado (religião),
estratégias de sobrevivência e relações de género. O guia conceptual e de ações funcionariam
simultaneamente como estímulos para alimentar conceptualmente o processo de tradução
da experiência em imagens. Estavam lançadas as sementes para a produção de um projeto
mais sólido.

Página de DicináriosDeArtista:Bilbao

127
Em 2011 decidi mudar-me para Maputo, perseguindo a ideia de experimentar viver numa
realidade e cultura completamente diferente do contexto europeu, prevendo já a realização
de um novo DicionáriosDeArtista. A obra DicionáriosDeArtista:Maputo foi produzida ao longo
de três anos (entre julho de 2011 e junho de 2014), acompanhando simbioticamente a minha
vida na capital moçambicana.
O novo livro de artista foi atualizado em relação à composição gráfica passando as imagens a
estarem organizadas em página dupla (vertical e horizontalmente) e introduzindo palavras
nas imagens para ilustrar a ideia apresentada. Nesta obra o processo de desenho foi pensado
com mais profundidade. Foi proposto usar o desenho de memória em vez do desenho de
observação, deixando um maior espaço para a análise e estudo do dia a dia em detalhe,
atento aos pormenores para captar as formas. Esta forma de trabalhar acabou potenciando
não só o olhar critico sobre a sociedade, como essa atenção ao novo contexto influenciou
também positivamente o processo de integração cultural. Os desenhos eram produzidos em
casa, misturando o observado com o experienciado através dos outros sentidos e
reinterpretado em imagens. A obra foi concluída ocupando todas as páginas do caderno e no
final integra um texto com a lista de ações e diretrizes conceptuais.

Página de DicionáriosDeArtista:Maputo

128
A relação entre desenho e integração cultural, mostrou-me uma nova forma de autorreflexão
e autoconhecimento influenciando a vontade de continuar e experimentar novos lugares.
Em 2014, voltou a acender-se a vontade de mudança. Juntando a dificuldade de permanecer
com legalidade em Moçambique, com a vontade de continuar a explorar caminho no campo
profissional e artístico, decido regressar temporariamente a Portugal (após sete anos de
experiência imigrante), para realizar o doutoramento em Belas Artes em Lisboa. Ao trazer o
projeto para dentro do programa de trabalho, este passa a integrar também fundamentos
teóricos como base para as alterações efectuadas nas obras que vão sendo realizadas e
tornando consciente a pesquisa sobre a relação entre desenho e autoetnografia.

Capas dos DicionáriosDeArtista realizados em Maputo, Caldas da Rainha e Xangai.

O desenvolvimento de DicionáriosDeArtista passa a estar centrado na ideia de definir


“experiência do lugar” e enquadra-la dentro da discussão sobre a caraterização do desenho
autoetnográfico como processo de pesquisa e investigação dentro do campo do desenho
contemporâneo. Dentro do contexto do programa de doutoramento,
DiconáriosDeArtista:Alte foi a primeira obra, a qual foi produzida durante o programa de
residências de artista da FBAUL-RésVés, entre 6 e 18 de Julho de 2015. A experiência em Alte,
produziu uma obra falhada, no entanto foi importante para estruturar o avanço do projeto.
As duas semanas em Alte mostraram-se insuficientes para que pudesse ser criada uma ligação
com a aldeia, e produzir um trabalho consistente. A obra ficou incompleta e a experiência

129
permitiu estabelecer ter como mínimo um mês de pesquisa de campo (vivência no lugar),
para poder ser produzido um novo DicionáriosDeArtista. A partir desta obra foi também
proposto incluir um tema para cada novo livro de artista, criando um foco para explorar o
lugar de forma mais objectiva e evidenciado o lado autorreferencial e autoetnográfico. Em
2016 decido mudar de residência. Deixo Lisboa para regressar a Caldas da Rainha, onde já
tinha vivido entre 1997 e 2005 quando estudei Design Gráfico na ESAD, esta é uma nova
oportunidade para produzir mais um DicionáriosDeArtista. A obra teve como foco investigar
sobre a identidade da cidade na atualidade, através da memória das experiências aí vividas
anteriormente, focado não só nas mudanças propostas pelo desenvolvimento da cidade, mas
também nas alterações da minha própria forma de o viver e observar. A obra tomou como
diretriz a frase “A Oeste nada de novo? Passados 10 anos regressei a Caldas da Rainha”. O
novo livro de artista apresentou também algumas actualizações no projeto. A gramagem do
papel passou a ser fina, para evidenciar a sua transparência, tornando a contaminação e
ruídos entre as páginas numa forma de criar continuidade entre as imagens, evidenciando a
fragilidade do trabalho. O facto dos desenhos serem realizados diretamente nas páginas do
caderno assume ser um processo irreversível que expõe os erros, criando uma relação
metafórica com a vida. Passou a incluir um texto manuscrito sobre a obra no final do caderno,
que é assumido como desenho, contextualizando a obra dentro do projeto
DicionáriosDeArtista, funcionando também como uma legenda integrada na obra. Outra
alteração importante foi a eliminação da palavra para ilustrar a imagem, criando uma maior
liberdade para as imagens comunicarem por si e entre si, sem referência textual,
possibilitando maior liberdade para gerar novas configurações sobre a realidade e tradução

130
das experiencias vividas no lugar. DicionáriosDeArtista:CaldasDaRainha, foi produzido sem
constrangimentos de tempo entre novembro de 2015 e abril de 2016.

Página de DicionáriosDeArtista:Alte

131
Página de DicionáriosDeArtista:CaldasDaRainha

A oportunidade para produzir um novo livro de artista, surge a partir de uma bolsa do Swatch
Art Peace Hotel para realização de uma residência internacional de artista (AIR) em Xangai.
Desta vez, voltaria e estar imersa numa experiência singular, sem referentes, experimentando
uma cultura desconhecida. A obra foi desenvolvida tendo como diretriz a frase “Xangai sem
internet móvel. Estratégias de sobrevivência na pós-modernidade” propondo refletir sobre as
diferenças sociais em termos de condições de vida e estratégias de sobrevivência, tomando a
minha própria condição como referência. Na cidade com maior densidade populacional do
mundo, onde a internet móvel é uma ferramenta essencial para o dia-a-dia
independentemente da classe social, eu estava privada desse mundo tecnológico e dessa
poderosa ferramenta de acessibilidade . Tive de criar as minhas própria estratégias de para
poder experienciar o lugar. O desenho foi aqui também um meio imprescindível de
comunicação com a população local. DicionáriosDeArtista:Shanghai foi produzido entre maio
e agosto de 2016. Pela primeira vez no projeto o livro de artista foi reproduzido, foram criadas
30 cópias numeradas e a obra circulou pela Art Book Fair em Xangai e em Pequim.
Neste momento já está em curso a obra DicionáriosDeArtista:Alentejo iniciada no final de

132
Janeiro de 2017. O livro de artista tem como frase diretriz: “O Eu antes de Mim” e centra-se
sobre Aljustrel a terra onde cresci e vivi até ao 17 anos e onde ainda vivem os meus pais.
Nesta obra estou a explorar a contradição que existe entre o Aljustrel onde cresci e o Alentejo
que vive dentro de mim, duas dimensões contraditórias do mesmo lugar. O trabalho de
campo está a ser realizado de forma intermitente, entre a residência em Caldas da Rainha e
as visitas familiares ao Alentejo.
O próximo DicionáriosDeArtista vai ser realizado em Alvik na Noruega, dentro do programa
de residência internacional de artista (AIR) Messen. Vai ser a primeira vez que irei passar o
inverno num país nórdico, sem Sol, vai ser “uma espécie de hibernação”. A obra vai ser
produzida entre janeiro e abril de 2018. O projeto está em contínuo processo de
desenvolvimento. Pelo facto de ter “nascido” como produção artística independente, e por
ser parte da forma como eu apreendo o mundo, DicionáriosDeArtista irá continuar para além
da conclusão do programa de doutoramento.

Página de DicionáriosDeArtista:Shanghai

133
Página de DicionáriosDeArtista:Alentejo

134
Auto-etno-grafia
O foco na autoetnografia, está relacionado com a relevância do self (o mundo pessoal e
individual), e com a integração da criatividade, memória e reflexão na perspectiva em que
pretendemos relacionar etnografia e desenho.
No texto “Desenho e Antropologia: recuperação histórica e momento atual”, Aina Azevedo
(2016) expõe o novo e crescente interesse na recuperação do desenho como ferramenta
etnográfica dentro da antropologia, não só como método de pesquisa mas também como
exposição de conhecimento.
A “viragem gráfica” (Ballard, 2013, citador por Azevedo, 2016) na antropologia traz
recentemente novas contribuições sobre a relação entre desenho e etnografia tendo como
principais referências as teorias dos antropólogos americanos Tim Ingold (2011, 2013) e
Michael Taussig (2009, 2001). Pioneiros na reflexão sobre o desenvolvimento do campo da
etnografia experimental e inspirados nos escritos do crítico de arte John Berger, vêm assumir
o desenho como processo fundamental para análise e interpretação da cultura e do
comportamento humano. Neste sentido importa evidenciar as propostas de Karina Kuschnir
(2012, 2013, 2016) sobre desenho etnográfico a partir da análise do movimento internacional
Urban Sketchers (Kuschnir, 2013); o trabalho de caráter pedagógico de Andrew Causey (2017)
sobre o desenho como método etnográfico; a homenagem ao caderno de campo no ensaio
de Haidy Geismar (2014); a tese de Elizabeth Hodson (2012) na qual a autora sugere pensar
uma antropologia com o desenho; a “antropologia gráfica” como estratégia de elicitação
proposta por Manuel João Ramos (2004, 2010) e também o ensaio sobre “desenho
antropológico” proposto por Philip Cabau (2016).
Estas propostas adquirem relevância para a nossa pesquisa principalmente porque
aprofundam a análise e reflexão sobre o ato de desenhar como forma de ver, explorar,
conhecer e investigar o mundo em detalhe, assumindo o desenho como “immensely powerful
tool of observation” (Ingold, 2011, p.222), o que Cabau (2016) chamou de “experiência
singular de observação” (p.35), a qual é uma das dimensões do desenho que nos interessa
evidenciar. Nesta mesma senda, Michael Taussig (2009) evoca John Berger para falar da
importância do tempo no desenho, o “acompanhamento do tempo” que faz com que “a line
drawn is importante not for what it records so much as what it leasds you on to see” (Taussig,
2009, p.270). Partindo da preposição de John Berger (2007, p.3) : “a drawing is an
autobiografhical record of one’s discovery of an event, seen, remembered, or imagined”,

135
Taussig (2009) expõe a ideia de que as imagens desenhadas têm o poder mágico de mostrar
não só o que se observa, mas também o invisível, o imaterial, o inexplicável e que pode vir a
ser. A esta dimensão do desenho ele chama de “simpathetic magic”. Observação detalhada
da sociedade e experiência vivida, tempo, e captação do mundo sensorial e invisível, são
aspectos do desenho que concorrem para a ideia que queremos desenvolver sobre o desenho
como processo de reflexão, para os quais os autores citados são um contributo importante.
Visto desde a perspectiva dos antropólogos o desenho é trazido novamente para a etnografia
principalmente por humanizar a experiência do observador participante, como estratégia de
elicitação e por prolongar o tempo no trabalho de campo favorecendo uma reflexão mais
ponderada sobre o universo estudado, e permitindo ver aspectos e detalhes que antes
passariam desapercebidos. No entanto é unicamente o desenho de observação que é aqui
tomado em conta. No capítulo “Drawing, Making, Writing”, da obra “Being Alive”, Tim Ingold
(2011) valoriza o desenho como um gesto que combina observação e descrição: “[drawing] it
combines observation and description in a single gestural movement, why has it been all but
forgotten in anthropology?” (pg.222).
Neste contexto o desenho é elogiado como testemunho, que é bem explícito no título do
ensaio de Michael Taussig “I swear I saw this” (Taussig, 2011), mas também nas perspectivas
dos outros autores citados, denotando a supressão da dimensão criativa do desenho, própria
do processo artístico. A este respeito , Andrew Causey que também se apresenta como
artista, no seu mais recente livro “Drawing as a Ethnographic Method” (2016) é claro quando
assume que “we are investigating ways to communicate with logic and order” (p.70), ou ainda
quando percepciona o desenho na arte apenas como realista:
“Your [the ethnographer’s] project is not the artist’s project, for you are simply trying to
improve your perception using line drawing to document the world you see around you.
Perfect rendering is not your goal, seeing is, and that should releive some of the pressure of
thinking that theres is something do to ‘properly’ here” (p.132)
Neste sentido, o desenho que interessa desenvolver pelos antropólogos, está mais vinculado
à ideia clássica de desenho como esboço e de desenho de observação ao vivo, para
“testemunhar o acontecimento e inscrever esse testemunho” como refere Cabau (2016,
p.46). Inclusive a proposta de Hodson em “The Drawing Lacuna: a Reconfuguration of
Ethnographic Enquiry Through Drawing-as-process” (2012), na qual é analisado o desenho
como processo artístico, a sua pesquisa é centrada na ideia do “antropologista-artista” em

136
oposição ao “artista-antropologista” proposto por Foster (1996), reiterando o olhar do
antropólogo para analisar o olhar do artista.
Esta crítica à abordagem etnográfica do desenho desde o campo da antropologia, não serve
para desvalorizar a investigação empreendida por antropólogos, mas sim para anunciar
algumas diferenças em relação à perspectiva artística no que se refere à relação entre
desenho e etnografia.
O desenho que propormos explorar incluí autorreflexão, criatividade e memória, numa
direção mais próxima da perspectiva fenomenológica de Alex Asthon (2014) sobre desenho
enquanto processo de conhecimento, não só do mundo mas de nós mesmos: “It questions
and investigates the possibilities of experience, ideas and memory through its ability to retain
and articulate traces of the past, the presente and imagine the future” (Ashton, 2014, p.46).
Ou ainda, na perspectiva da artista e investigadora, Lynn Imperatore (2016) sobre o desenho
como reorganização introspectiva da visão, incorporando elementos extravisuais que
permitem reconfigurar a experiência sensível e assumindo o desenho como fabricação, um
mundo inteiramente inventado assemelhando-se ao sonho por ser fantasioso, incompleto e
imaginado. Neste sentido uma perspectiva a partir da autoetnografia, tendo como base as
propostas de Mary Louise Pratt (1992,1994, 1999), mostrou-se mais próximo da direção que
queremos investigar, principalmente porque apresenta o desenho como forma expressiva e
interpretativa (ao contrário da representação objetiva e descritiva, que carateriza o desenho
ao vivo) para autorreflexão e mediação intercultural. Ao analisar o trabalho realizado em 1613
pelo indígena Guamán Poma “La primera nueva crónica y buen gobierno” (A primeira nova
crónica e bom governo), um manuscrito com mil e duzentas páginas (das quais quatrocentas
são desenhos) sobre as invasões espanholas no Perú, Pratt (1994) relaciona a autoetnografia
com a “arte das zonas de contacto” para expor as formas de expressão que emergem em
lugares onde as culturas se encontram, chocam e se prendem, apontando o uso de memórias
individuais, imaginação e humor (uma certa critica social) como estratégia de integração
cultural.

137
Páginas de La Primera nueva crónica y buen gobierno de Guamán Poma (1613)
Fonte: Pratt, M. L. (1994). Transculturation and authoethnography: Peru, 1615/1980. In Barker, F., Hulme, P.,
Iversen, M. (Eds.) Colonial Discurse/Postcolonial theory. New York: Manchester University Press.

O conceito desenvolvido por Pratt sobre as “contact zones” foi também usado para
caraterizar os géneros imprecisos, as apropriações e diferentes formas de tradução cultural e
social que emergem do cruzamento interdisciplinar entre arte e antropologia (Clifford, 2000;
Rutten, Dienderen and Soetaert, 2013), e relacionado com processos artísticos
autoetnográficos de artistas contemporâneos (Green, 2003) que iremos abordar mais a
diante.
A autoetnografia, segundo Ellis e Bochner (2000) é um tipo de escrita e pesquisa
autobiográfica, desenvolvida desde o final dos anos 90 do século 20, que pretende relacionar
o pessoal com o cultural, baseada na experiência pessoal contextualizada dentro da cultura,
e incorporando a subjetividade, a emoção e abertura a outros áreas de conhecimento
(principalmente a literatura e as artes). Deborah Reed-Danahay (1997) acrescenta ainda que
o trabalho de autoetnografia pode variar dependendo se é dado ênfase na esfera pessoal

138
(auto), na cultura (etno) ou no processo de pesquisa e tradução (grafia), no entanto será
sempre uma reflexão sobre as experiências pessoais em relação a um fenómeno social e/ou
cultural. Neste sentido, para além de produzir uma descrição e um olhar crítico sobre a
experiência pessoal, a autoetnografia é também uma prática cultural. Desenvolvida
principalmente como forma pós-moderna de investigação dentro das ciências sociais
relacionada com a escrita literária (Danahay 1997), distingue-se da etnografia por ter uma
vertente autobiográfica, como esclarecem Ruiz-Junco e Vidal-Ortiz (2011):
“Like ethnography, autoethnography produces a representation of the social, and in many of
its applications, it shares with ethnography the goal of illustrating the social; unlike
ethnography, in autoethnography the analysis of one person’s life, the evocation of emotions,
and even the person’s potencial connetion to members of a particular social groups all take
center stage.” (p.197)
No texto “ Authoethnography: An Overview” (2010) Carolyn Ellis, Tony Adams e Arthur
Bochner, assumem que a autoetnografia por ser parte etnografia e parte autobiografia, tem
vindo a ser criticada e recusada pelos padrões científicos dentro das ciências sociais e
humanas, acusada de ser insuficientemente rigorosa, teórica e analítica e por ser demasiado
estética, emocional e terapêutica. No entanto é apresentada pelos defensores desta nova
corrente da etnografia como um método de investigação que propõe romper com a
separação entre investigador e investigado, objectividade e subjetividade, processo e
produto, o “eu” e os “outros”, o pessoal e o político, juntando arte e ciência (Elligson and
Ellis, 2008; Ellis, Adams and Bochner, 2011).
É a partir dos pressupostos anteriormente apresentados, que assumimos que uma
abordagem autoetnográfica, como forma de pesquisa etnográfica que reivindica a
subjetividade, a autorreferencialidade a emoção (através da evocação dos sentidos) a
autorreflexão e a predisposição para a sensibilidade artística, está mais próxima da forma
como queremos propor explorar a apropriação das ferramentas da antropologia para
relacionar desenho e investigação da sociedade e da cultura, desde uma perspectiva artística.

A experiência do lugar
O projeto DicionáriosDeArtista tem como base a pesquisa in situ, tomando o lugar como
espaço e dimensão primordial da obra. É a partir das vivências quotidianas nos diversos
lugares, que é realizado um processo de reflexão e autorreflexão visual, sobre determinados

139
aspectos da sociedade e cultura local, interrelacionando o presente (as especificidades do
lugar), o passado (as vivências noutros lugares e a herança cultural) e o futuro (a imaginação
e reinterpretação do conjunto das experiências presentes e passadas).
No livro “The Lure of the Local. Senses of Place in a Multicentered Society” (1997), Lucy
Lippard analisa as diferentes representações de “sentido de lugar” dentro de um conjunto
propostas de arte contemporânea site-specific, definindo o lugar como paisagem vivida desde
dentro: “a lived-in landscape becomes a place” (p.7), para evidenciar a dimensão das trocas
culturais e sociais que caraterizam as especificidades dos lugares. No final do século 20, a arte
passou a ocupar o espaço longamente associado à antropologia, tornando-se um dos
principais locais de rastreamento e representação dos efeitos da diferença na vida
contemporânea (Marcus and Myers, 1995), dentro deste contexto, o site-specific artístico, foi
analisado e problematizado dentro da “viragem etnográfica da arte contemporânea” (Foster,
1996) por usar uma dimensão e uma abordagem etnográfica do site ( Dias, 2004), relacionada
com o envolvimento da arte no campo expandido da cultura (Foster 1996; Miwon Kwon,
1997; 2002). Estas discussões prendem-se com o questionamento sobre as zonas de fronteira
entre prática artística e experiência etnográfica, onde o fieldwork (trabalho de campo) um
método de pesquisa baseado na observação participante, proposto por Bronislaw Malinowski
em 1920 e desenvolvido e atualizado pelos antropólogos contemporâneos, aparece como o
principal ponto de encontro entre arte e antropologia, usado como espaço para conciliar
teoria e prática (Marcus and Myers, 1995; Foster, 1996; Schneider and Wright 2006, 2010,
2013; Rutten, Dienderen And Soetaert 2013; Ingold, 2013; Sansi, 2015; Schneider, 2017). No
entanto, como defende Roger Sansi (Sansi, 2015; Gibson 2013) a investigação etnográfica,
realizada pelos artistas através do trabalho de campo, difere da perspectiva antropológica,
principalmente porque não procura criar uma narrativa objetiva ou conclusão, assumido o
processo como um trabalho em aberto. Dentro deste contexto, toma pertinência o livro “
Site-Specificity: The Ethnographic Turn” (2000) editado por Alex Coles, o qual reúne um
conjunto de textos de antropólogos, historiadores e críticos de arte, curadores e artistas,
onde é discutida a apropriação artística da etnografia no site-specific e analisada a dimensão
etnográfica do percurso (ou obras específicas) de artistas contemporâneos. Particularmente
o texto “Scenes From a Group Show: Project Unité” (Green, 2000) escrito pela artista
americana Renée Green, toma pertinência por tratar-se de uma obra site-specific que usa a
autoetnografia como processo artístico, que a artista define como “a self-styled auto-

140
ethnography” (p. 116). A obra apresentada é um diário sobre a residência de artista realizada
em Firminy (França) em 1993, onde Renée Green vai apontando reflexões pessoais e íntimas,
sobre o espaço, sobre os outros e sobre a sua relação com ambos, através da exposição critica
e evocativa da sua vivência precária no lugar. O resultado da residência foi depois
apresentado numa instalação que reuniu textos, vídeo e vários objetos pessoais. A obra foi
considerada pela artista como trabalho em processo realizado a partir de um “fieldwork on
herself” (p.116). Também do mesmo livro (Coles 2000) o texto “The Art of Ethnography: The
Case of Sofia Calle” escrito por Susanne Kuchler (Kuchler, 2000) sobre várias obras da artista
Sofia Calle exemplifica a transformação da etnografia em obra de arte, mostrando a forma
criativa como os artistas de apropriam da etnografia, usando todas as fases do campo de
trabalho como prática artística. Sobre o processo de trabalho de Calle, a autora escreve:
“Here, the ethnographic is ‘found’ in situations which are born out of chance and yet become
the plataform for recollections whose documentation and installation turn the project in to a
artwork” (Kuchler, 2000, p.98). Entre as obras analisadas, destacamos a instalação Double
Game, onde Calle encarna a personagem Maria Turner do livro Leviathan escrito por Paul
Auster (a qual foi baseada na vida real de Sofia Calle), vivendo por uma semana dentro de
uma cabine telefónica em Tribeca (Manhattan), registando as conversas com os transeuntes,
partilhando refeições e gravando todo o processo de experiência nesse lugar. Por se tratar de
uma obra que se baseia na relação da artista com os outros e não apenas sobre a vida dos
outros, o processo de apropriação etnográfica é descrito por Kuchler como “self-styled
ethnographer of every day” (Kuchler, 2000, p.97), que para Roger Sansi (2015) é “to a certain
extent, an auto-ethnography, a reflection on Calle and her social person” (p.38), para designar
a interpretação pessoal e criativa que a artista faz no processo de tradução da experiência
cultural e social.
A autoetnografia em processos artísticos é caraterizada por Jade Gibson (2013) como uma
forma de ‘arquivamento do mundo’ representando uma “fragmentation and juxtapositions
of artist’s lived experiencies, in that they draw from and integrate apacial, social and cultural
contexts with a personal self-reflexivity that operates through the material, the viasual and
the emotional” (Gibson, 2013, p.548). Com base na análise de um corpo de obras de artistas
contemporâneos que desenvolveram autoetnografias visuais, Gibson identifica um conjunto
de características, a partir das quais importa ressaltar principalmente: que as obras são meios
de expressividade performativa; são geradas narrativas através do diálogo entre o artista e o

141
mundo externo; a subjetividade, a físicalidade e a emoção são interligadas com o contexto, a
experiência social, a memória e a vivência no lugar; envolve uma multi-dimensionalidade e
multiplicidade de lugares e espaços dentro da obra de arte. As produções artísticas dentro
deste contexto, evocam um conjunto de interrelações dentro da sociedade com o propósito
de gerar questionamento, mais do que encontrar e apresentar respostas (Gibson, 2013; Sansi
2015).
Os exemplos e contribuições que acabamos de enunciar, vêm ilustrar de que forma a
autoetnografia como processo artístico, relaciona etnografia, investigação pessoal e lugar
específico de maneira criativa, critica e autocritica, reiterando a abordagem autoetnográfica
que queremos trazer para caraterizar o projeto DicionáriosdeArtista. Em DicionáriosDeArtista
o uso do desenho como linguagem não está vinculado à descrição in situ ou representação
detalhada da realidade circundante, mas sim como processo de reflexão e interpretação
visual a partir das experiências vividas no lugar. As imagens são criadas a partir da memória,
e neste sentido os desenhos não são realizados no lugar, são antes interpretações criadas a
partir da ‘experiência do lugar’.
Nesta perspectiva a ‘experiência do lugar’ está relacionada com a tradução e reflexão visual
das vivências ocorridas em determinado espaço e contexto cultural, através de um processo
que envolve de forma consciente: o corpo no espaço (através dos sentidos); troca
interpessoal (relação com as pessoas); interpretação (visão subjetiva); referências culturais
anteriores (experiências noutros lugares e herança cultural); autorreflexão (análise critica
sobre a relação entre universo interior e universo exterior) e imaginação (processo de mistura
livre do real com o irreal, do material com o sensorial para reconfigurar visualmente essa
experiência).
Neste processo o desenho é usado como meio para interpretar um arquivo de memórias
sensoriais recolhidas durante o trabalho de campo. O trabalho de campo é aqui assumido
como experiência quotidiana, resgatando a ideia de misturar arte e vida, uma forma de
trabalhar o lugar etnográfico usada dentro do contexto artístico, que foi relacionado com a
autoetnografia por Sansi (2015): “in other words, one could say ‘non-events’, acts without
consequence, but which become meaningful precisely because they are recorded,
documented, through pictures (…)” (p. 37).
Em DicionáriosDeArtista os desenhos são, neste sentido o resultado de um exercício de
observação participante que convoca não só o sentido da visão (que está diretamente

142
relacionado com a prática do desenho de observação) mas também o paladar, o ouvido, o
tacto, o olfacto, a partir das experiências do dia a dia. Em vez de olhar, ver e observar para
desenhar, é pretendido explorar a ideia de usar todos os sentidos para experienciar um lugar
e depois através da memória, da reflexão e da imaginação traduzir a experiência vivida
através do desenho, “in order to see more deeply” (Causey, 2016, p.8).

Desenho Autoetnográfico
Tomando como referência a descrição de etnografia no contexto das apropriações da
etnografia no campo da arte, pelas palavras de James Clifford (2000) “It reflects a willingness
to look at common sense, everyday pratices – with extended, critical and self-critical
attention, with a curiosity about particularity and willingness to be decentered in acts of
translation” (p.56), e tendo como base a análise que apresentamos sobre a relação entre
desenho e etnografia, através da autoetnografia, confrontada no projeto
DicionáriosDeArtista, podemos sustentar que a dimensão autoetnográfica do mesmo, está
vinculada à ‘experiência do lugar’, pelo seu carácter de investigação etnográfica a partir das
experiências pessoais. A qual é realizada através de um processo de desenho que parte de
uma investigação pessoal in situ (no lugar) e assumidamente autorreferencial (auto) sobre
determinados aspectos da cultura e sociedade (etno), usando a memória a autorreflexão e a
criatividade, para registar (grafia) a interpretação das experiências vividas.
Relacionando o processo de desenvolvimento do projeto DicionáriosDeArtista com as
reflexões propostas ao longo do presente texto, permite também propor pensar a ideia de
‘desenho autoetnográfico’ como uma prática de desenho focada na tradução e resposta a
problemáticas culturais (e sociais), num lugar específico desde uma perspectiva
autorreferencial. DicionáriosDeArtista, neste contexto seria uma forma de fazer desenho
autoetnográfico.
O programa de trabalho “DicionáriosDeArtista: a experiência do lugar. Autoetnografia no
campo do desenho” é uma investigação que parte do estudo do processo artístico
desenvolvido em DicionáriosDeArtista para pesquisar sobre a relação entre desenho e
autoetnografia com o objetivo de refletir e questionar sobre que implicações e problemáticas
são desencadeadas ao desenvolver projetos de cariz etnográfico (através da autoetnografia)
dentro do campo da investigação e prática do desenho contemporâneo. Que características
específicas adquire o desenho nesta perspectiva (o que designamos de desenho

143
autoetnográfico)? Assumindo o desenho como campo de produção e investigação artística,
importa também investigar sobre a relevância que assumem estas questões dentro do
contexto das discussões atuais sobre o legado da viragem etnográfica na arte
contemporânea. E, a partir de um âmbito mais geral, pensando o desenho autoetnográfico
como forma de produção de conhecimento, pesquisar sobre que contribuições apresenta
para a investigação no campo das ciências sociais e humanas.

Referências Bibliográficas
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Antropologia 5 (2). Consultado a 6 de fevereiro, 2017. Disponível em: http://cadernosaa.revues.org/1096

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146
AS CRIATURAS FANTÁSTICAS NA NOSSA SOCIEDADE:
PASSADO E PRESENTE

Inês Garcia39 (ESELx/ FBAUL), Lisboa, Portugal


ineshenriques.garcia@gmail.com

Resumo
O tronco comum da nossa investigação prende-se com o estudo e compreensão das evoluções das criaturas
fantásticas no mundo ocidental. Esta temática pressupõe diversas componentes, nomeadamente relevâncias
históricas, científicas e artísticas que sofreram alterações ao longo das épocas. O universo fantástico sempre foi
um reflexo da civilização em que se insere e, hoje em dia, esta característica não apresenta exceções: é cada vez
mais evidente não só nas várias manifestações artísticas contemporâneas, como também nas grandes indústrias de
entretenimento como o cinema e os videojogos. Neste sentido, procura-se refletir sobre a pertinência e utilidade
das criaturas fantásticas na atualidade, dando destaque à importância do desenho aplicado ao universo fantástico
e à sua utilização pedagógica no ensino. O foco deste artigo é baseado na experiência enquanto docente tendo
como recurso a utilização das personagens fantásticas enquanto ferramenta pedagógica e motivacional.

Palavras-Chave: Criaturas fantásticas, desenho, educação, monstros

Abstract
Our investigation is centered in the field of study and comprehension of the fantastical creatus in the western
world. This subject touches many important elements such historical, scientifical and artistical references that
changed through time. The fantasy world has always been a mirror of the society in which it is created, and that
is still true today, and its presence is very important in the enterteinment business, like cinema and videogames.
With that being said, we have to think about the utiliy of the monsters nowadays, in arts, giving some highlight to
the importance of drawing applied to the fantastic theme and educational and motivational purposes. The main
focus of this article is based on my experience as a teacher using this fantastical theme as a motivational tool.

Key-words: fantastical creatures, drawing, education, monsters

39
Assistente convidada na Escola Superior de Educação do Instituto Politécnico de Lisboa (ESELx), Mestre em
Anatomia Artística pela Faculdade de Belas-Artes de Lisboa (FBAUL) Doutoranda na FBAUL, bolseira de
doutoramento FCT (Fundação para a Ciência e Tecnologia), membro do CIEBA (Centro de Investigação e
Estudos em Belas-Artes).

147
Introdução
O monstro fantástico sempre foi um reflexo da civilização em que está inserido e, atualmente,
esta característica não apresenta exceções: é cada vez mais evidente não só nas várias
manifestações artísticas contemporâneas (estando presente, em termos de temática, no upgrade
digital ao serviço das artes visuais) como também nas grandes indústrias de entretenimento
como o cinema e os videojogos.
Deste modo, dentro deste assunto existem subtemas específicos importantes que se relacionam
com a pertinência e utilidade dos monstros fantásticos na atualidade, tais como a importância
do desenho aplicado ao universo fantástico e a sua utilização pedagógica no ensino.
Uma vez que a nossa carreira profissional se situa na área da docência, lecionando as disciplinas
“O Fantástico na Arte I e II” e “Representação Digital”, na Licenciatura de Artes Visuais e
Tecnologias, na Escola Superior de Educação de Lisboa- Instituto Politécnico de Lisboa, o foco
deste artigo é baseado na experiência enquanto docente com a utilização das criaturas
fantásticas (e consequentemente, da fantasia) como ferramenta pedagógica e motivacional. E,
também, das eventuais contribuições que esta poderá trazer à educação em várias áreas,
nomeadamente nas artes visuais, em específico, do desenho e de ferramentas digitais a ele
associadas.

148
1. O surgimento do universo fantástico na História Ocidental: Breves notas

A fantasia advém da experiência acumulada pelo ser humano. Quanto mais fecunda for essa
experiência mais profícua será a fantasia transformando-se numa amplificação da experiência
humana. De entre todas as experiências e vivências do ser humano os conceitos espirituais,
religiosos e mitológicos adquirem um estatuto central na génese das suas preocupações, tendo
destaque desde as mais primevas representações visuais onde a fantasia surge acoplada. No
entanto, de acordo com o Professor David Wengrow, poderão existir outras explicações de
ordem biológica:

“Estudos experimentais demonstram que o processamento cognitivo de formas animais é altamente


sensível a relações parciais, de modo que uma total presença possa ser inferida de pistas visuais bastante
limitadas. Imagens de animais- mesmo quando estão misturadas, distorcidas ou incompletas- podem
ativar caminhos neuronais sintonizados com o reconhecimento e a diferenciação de seres vivos. Imagens
que ostensivamente combinam elementos de diferentes espécies- o que Barbara Stafford denomina de
‘composições compressas’ - atrai a atenção para estes processos mecânicos inconscientes, destacando
a habilidade da mente humana para compensar ausências no mundo visível, e a sua capacidade para
conjurar um todo orgânico de ‘partes individualistas, concorrentes e dividas’”. (Wengrow, 2014, p.29)

A presença da fantasia e de todo o universo que lhe é inerente tem uma origem comum à origem
do ser humano. Na arte paleolítica já é possível encontrar manifestações do foro fantástico que
enfatizavam o papel mágico dos animais e da natureza em detrimento de desejos de
sobrevivência e abundância. A criação de figuras híbridas dá azo aos rituais xamânicos40 (que
envolvem estados de consciência alterados41, onde os participantes se unem a espíritos
ancestrais em forma animal) atestando assim o facto de a fantasia surgir associada à religião,
tal como afirma o Professor Wengrow:

“Em qualquer ambiente cultural, muitas representações de entidades religiosas estão constantemente a
ser criadas e comunicadas. Contudo, apenas algumas têm o potencial para suportar simultaneamente
cenários imaginários e referências intuitivas. (…) Devido a estas características, tais premissas são,
provavelmente, mais facilmente adquiridas, memorizadas e transmitidas do que outras. Não deve ser
surpresa, que constituam os aspetos mais recorrentes dos sistemas religiosos.” ( Wengrow,2014,p.31)

40
O xamanismo engloba em primeira instância dois universos: o material e o espiritual que frequentemente se
interligam. O universo espiritual, (alucinatório) em junção com as pinturas rupestres ficava imbuído de
materialidade. Paralelamente, a realização das imagens não tinha lugar no mundo dos espíritos: cada imagem
avivava presenças ocultas. Existia assim, uma interação fecunda entre as imagens (pinturas) e as imagens mentais,
(do foro espiritual).
41
Em termos concretos, no xamanismo as experiências visuais, auditivas e somáticas originam perceções diversas
de uma realidade alternativa vivenciada por alguns indivíduos com “predisposição e sensibilidade”, os xamãs. Os
estados alterados de consciência são profundos e aparentemente inconscientes. Aliada a esta condição, encontra-
se a “imaginação guiada” que consiste numa forma de imaginação que anula a faculdade crítica e permite que as
emoções, fantasias e imagens surjam da consciência (Lewis-Williams,2005, p.137-138). É nestas fantasias e
imagens que o xamã adquire a sua experiência para “atravessar a viagem espiritual” (Lewis-Williams,2005, p.137-
138).

149
Figura 19 “O Feiticeiro” (The Sorcerer), gravura rupestre presente na Gruta Les Trois Frères, período
magdaleniano, cerca de 13,000 a.C

A partir desta premissa inicial, o domínio do fantástico (corporizado no formato das criaturas
fantásticas) será aplicado continuamente: as criaturas hibridas (feitas da junção entre diversos
animais) passam a adquirir propriedades mágicas, com poderes sobrenaturais e capazes de
semear uma parafernália de sentimentos, desde o respeito ao pavor. Deste modo, a fantasia
passa a alcançar uma vertente “credível”, no sentido em que, as criaturas fantásticas adquiriram
funções diversas: divindades, proteção ou mesmo de presenças aterradoras que incitavam à
obediência em detrimento de castigos funestos.
Durante o período clássico formaram-se as célebres lendas e mitos que posteriormente, se
perpetuaram no tempo sendo conhecidas até aos dias de hoje, sendo utilizadas em diferentes
campos tais como literatura e artes. A bizarria relativa ao aspeto dos monstros era por isso, alvo
de grande fascínio e curiosidade, mas cedo começou também a ser sinónimo de medo e maus
presságios: com a chegada da idade média e do consequente “período das trevas” imposto pela
igreja católica, o monstro ficou inerentemente associado ao pavor pelo desconhecido e como
castigo para os pecadores, simbolizando “a violação das leis, o perigo, a ameaça, o irracional e
o não dominável, sendo (…) uma projeção fantástica de todos e cada um destes conceitos,
acalmando as angústias que dominam os homens” (Eco, 2007, p.104).
Porém, com o paulatino progresso intelectual do período renascentista, a visão sociocultural,
científica e artística das criaturas fantásticas alterou-se deixando de ser consideradas como algo
a temer para receber uma perspetiva e explicação mais atentas do ponto de vista empírico,
como refere Lloret (2015):

“O salto de Aristóteles a Santo Isidoro transita desde o individual à série, constituindo-se uma nova
categoria dentro da espécie humana (…) A união produz-se precisamente no momento em que as raças
monstruosas perdem a sua função convencional e os monstros se organizam em livros de casos,
abandonando progressivamente as séries de prodígios fatais para se reunirem em tratados médicos 42”.

42
Tradução livre de Lloret, Marta Piñot (2015) Monstruos y Monstruosidades: Del Imaginario fantástico
medieval a los X-Men. Barcelona: Sans Soleil Ediciones, p.228.

150
Por conseguinte, até meados do séc. XVI o universo fantástico prolifera aliado ao real. Detalhes
e descrições de relatos maravilhosos eram constantes e alvo da maior atenção por parte das
populações. A propagação de descrições mirabolantes teve o seu auge durante o período
medieval, sendo as peças fulcrais dos bestiários e dos folhetos de cordel. Nestas peças surgiam
ilustrações de seres misteriosos que combinavam a história natural, lendas e descrições de
viagens misturando um teor alegórico. Para além de evidenciarem interpretações fabulosas dos
animais, os bestiários ofereciam ainda narrativas que abordavam a existência de seres bizarros.
Nesta época, a crença em seres fabulosos quase impossíveis de capturar tais como o unicórnio,
o dragão ou a sereia constituíam crenças sérias, alvo de um extenso estudo que contribuiu para
o que hoje se considera como período “pré-científico”. A possível existência destes seres
mágicos era encarada com veracidade e quase sempre associada ao desconhecido, a terras
incógnitas.
Com o avançar dos séculos as criaturas fantásticas, passaram também a ser vistas com uma
componente de entretenimento e de divertimento deixando para trás todas as conotações
exclusivamente negativas que acarretavam. Desta forma, o monstro, (enquanto ser e
representação da sua imagem), passou a ser encarado não apenas como uma corporização dos
medos, mas também como personagem de diversão e uma forma de ligação entre o real e o
mitológico em diversas áreas tais como a literatura, a música, as artes em geral.
Com o desenvolvimento do conhecimento cientifico, a crença em seres mágicos e na sua
veracidade foi sendo desacreditada. Porém, o fascínio pelo bizarro foi permanecendo até aos
dias de hoje. Seria de esperar que com um desenvolvimento tecnológico e científico massivo,
a sociedade deixasse de acreditar no fantástico, porém, tal não aconteceu: desde o final do séc.
XX que se tem vindo a registar um revivalismo de crenças pseudocientíficas que vão beber aos
primórdios medievais, como é o caso da astrologia, alquimia, esoterismo, cripto zoologia,
atividade paranormal, entre outras situações (Pandora,2007) que hoje adquirem enorme
projeção. Seria também previsível que tal desenvolvimento científico erradicasse qualquer tipo
de manifestação ficcional característica dos primórdios da nossa sociedade, «a tecnologia é tão
penetrante no nosso dia a dia que, na maior parte das vezes já não existe magia…A promessa
da ciência e tecnologia normalizou-se. A visão utópica que tínhamos não foi ultrapassada. A
magia viria de outro lado, e assim a encontrámos na fantasia» (Pandora,2007).
Deste modo, podemos constatar que qualquer período histórico possui os seus próprios
elementos fantásticos, pois constituem parte da sua identidade enquanto herança cultural. A
curiosidade relativa à bizarria de determinados seres compeliu o Homem a enveredar pela área
da investigação, parte vital do avanço do conhecimento científico há centenas de anos. Na
opinião da Professora Katherine Pandora, encontramo-nos, pois, perante «bestiários
modernos» que adquirem várias subdivisões: literatura, cinema e até videojogos subjugados à
temática do fantástico43. Estes novos universos fantásticos são cada vez mais populares,
recheados de monstros fantásticos parecendo ser a receita perfeita para o entretenimento e não
só.

2. Uma preferência pela temática da fantasia

“Os monstros sempre foram educativos. Desde os tempos antigos que as sociedades em todo o mundo
inventam monstros na arte, literatura, folclore e religião como forma de ensinar algo aos membros da

43
No caso da literatura poder-se-ão citar inúmeros exemplos, tais como os autores, Mary Shelley com Frankstein,
J.R.R. Tolkien com Senhor dos Anéis, H.P.Lovecraft com The Call of Cthulu. No âmbito do cinema a lista é
também muito extensa, destacando-se as adaptações cinematográficas dos autores anteriormente referidos e
também os diversos fimes de King Kong, Alice no País das Maravilhas, a Bela e o Monstro, Clash of Titans,
Labirinto do Fauno, Piratas das Caraíbas, Narnia, a saga Harry Potter entre outros. Finalmente na vasta lista de
videojogos destacaremos World of Warcraft, Starcraft, Diablo, Dungeons and Dragons, entre muitos outros.

151
sua comunidade. Por vezes, os monstros representam funções sobrenaturais ou mitológicas na
sociedade, servindo como portentos, como elementos pedagógicos ou como figuras centrais na
construção de uma sociedade de heróis. Os monstros também desempenharam funções sociológicas
incorporadas nos receios mais profundos das civilizações, personificando a diferença e reforçando os
limites culturais. (…) «produzem maravilhas e exigem justificações» assustam e instruem
simultaneamente” (Golub,2017, p.8).

A presença da fantasia no entretenimento tem vindo a ser cada vez mais preponderante
assumindo-se como um género com muitas ramificações, incluindo a ficção científica, o terror
e o humor. Este tipo de temática pela sua diversidade, apaixona um extenso público cativando
crianças e adultos. Em geral, os interesses são vastos compreendendo diversas áreas, das quais
destacamos como principais: a literatura (ficcional, lendas, mitologias e banda desenhada), as
artes visuais (pintura, escultura, ilustração, artes plásticas, etc.) e a multimédia, onde
acentuamos o cinema (que engloba todas as suas categorias, tendo uma especial tónica no
cinema de animação e nas séries televisivas) e os videojogos, onde cada vez mais adquire
projeção com uma extensa panóplia de opções e estilos:

“De uma forma ou de outra, nós aprendemos sempre com monstros, mas estamos a viver um momento
alto para a pedagogia a eles ligada. Atualmente, existe interesse nas possibilidades educacionais
inerentes aos monstros. No século XXI, os monstros tornaram-se simultaneamente sujeito de um estudo
formal através do qual se pode ensinar conhecimento útil”. (Golub,2017, p.9).

Tendo em conta esta tendência emergente, torna-se importante refletir sobre o fenómeno do
fantástico e quais as razões para que este seja apreciado por uma grande quantidade de
indivíduos (independentemente da faixa etária). Como tal, numa primeira instância, iremos
desdobrar este assunto enumerando três teses que consideramos serem fundamentais para este
interesse.
Comecemos por destacar a sua característica mais marcante: a diversidade. Como foi referido,
o fantástico é um género ficcional com imensas ramificações, podendo ir de temáticas e/ou
representações mais amistosas para precisamente o oposto, ou seja, mais violentas ou terríficas
agradando assim a um grande leque de gostos e interesses44; seguidamente, e em certa medida,
relacionada com a primeira característica, sublinhamos a sua capacidade de atrair a atenção
imediata do indivíduo através da diferença em termos de aspeto face ao que é considerado
normal. Esta característica específica encontra-se na génese da origem da fantasia, ou seja,
apesar da diversidade das criaturas fantásticas, existem lugares comuns em todas remetendo
para as grandes descrições, quando se trata de literatura, e representações visuais apelativas
reinando em ambas o detalhe (Lloret, 2015, p.14); finalmente, temos o fator emocional que
prende e cativa o indivíduo.
Como defende Thomas W. Malone, «a fantasia está mais propensa a satisfazer as necessidades
emocionais quando providencia personagens imaginárias com as quais o indivíduo se consegue
identificar» (Malone,1987, p.241), o que significa que a empatia com uma personagem
fantástica e o seu desempenho ao longo de um determinado enredo, é um fator fundamental
para que o indivíduo se identifique com as características e situações em que a personagem se
encontra. Para além disso, os sentimentos de admiração, apreciação e até carinho pelas

44
Apesar do fantástico se centrar em várias áreas ( a saber literatura, pintura, escultura, desenho, ilustração, banda-
desenhada, videojogos, ciência, entre outros), para ilustrar melhor esta característica de diversidade (que está
patente em todos os domínios) destacaremos apenas exemplos de filmes tais como: Monsters, Inc. da empresa
Pixar, Hotel Transylvania da Sony Pictures Animation, Minions de Illumination Entertainment e ParaNorman da
Laika Entertainment, como um exemplo de criaturas fantásticas afáveis e divertidas. Precisamente no seu oposto
temos Predator do diretor John McTiernan, Silent Hill do diretor Christophe Gan (adaptação para filme do
videojogo da empresa Konami com o mesmo nome) e Pan’s Labyrinth de Guillermo del Toro, como exemplos
terríficos e repletos de violência.

152
personagens são também fatores muito valorizados, fazendo com que a fantasia se torne mais
próxima à realidade.

3. Implicações da fantasia na motivação

Clarificados os motivos de interesse que as criaturas fantásticas provocam torna-se necessário


perceber o fator motivacional que incitam. Como é sabido, um estudante motivado apresenta
um determinado conjunto de características que o fazem, na maior parte das vezes, obter
sucesso: a ânsia pelo conhecimento, a interação com o professor (no sentido de aprofundar a
matéria a abordar) e o desempenho em termos de trabalho desenvolvido.
Infelizmente, a grande maioria dos alunos não apresenta estas características. No parecer do
Professor Sidónio Garcia, a maior parte dos problemas na educação deve-se à falta de
motivação dos estudantes: sabe-se que os perfis psicológicos dos alunos são diversos, pelo que
existe uma necessidade premente de auxiliar a formação do indivíduo como estudante para que
possa melhorar o seu rendimento académico e facilitar a sua entrada no mundo laboral. Esse
trabalho cabe em parte ao professor (Garcia, 2010, p.67), pois a motivação é a principal
condição que predispõe o estudante a aprender.
Porém, o que é a motivação? Como é que se pode utilizar o universo fantástico como
ferramenta motivacional em contexto educativo? A resposta a estas questões deverá ser
faseada, pelo que se procurará primeiramente, uma aproximação ao conceito de motivação:
“(…) um impulso interno gerado pelos seres humanos que determina com maior ou menor intensidade
e determinação os atos e as ações a desenvolver ou executar. É algo intrínseco, mas que pode ser
cultivado através das perceções que o individuo possui das influências do meio sociocultural, das
interações humanas e das emoções» (Garcia,2010, p.68).

De acordo com o Professor Victor Vroom (1932) a motivação para agir de determinada forma
depende da expectativa que se tem do resultado das ações e, consequentemente, do interesse
ou atração que esse resultado exerça no indivíduo (Garcia,2010, p.70). Acredita-se que o
esforço colocado numa atividade levará a um melhor desempenho e, se esse for recompensado,
criam-se as condições ideais para uma participação motivada.
Uma das características mais marcantes do ser humano (e de outras espécies) é a curiosidade,
capacidade inata responsável por todo o desenvolvimento físico e intelectual, bem como a
nossa sobrevivência enquanto espécie. Tirando partido desta particularidade, o psicólogo
Jerome Bruner (1915-2016) defende que quase todos os indivíduos têm um desejo
consequentemente inapto de aprender e por isso, a motivação intrínseca é um dos meios mais
importantes de aprendizagem, «a nossa curiosidade é proporcional à nossa cultura»
(Garcia,2010, p.72-86). Cientificamente, esta capacidade natural e inconsciente desenvolve-se
nos seres humanos através de um impulso nervoso que faz com que o organismo produza uma
ação, o que se traduz na exploração do universo e de tudo o que o rodeia, numa incessante
busca de informação.
Por conseguinte, por via da curiosidade e do empenho, quando se obtém o desejado. Atinge-se
uma autorrealização que para o homem, consiste num estado de pleno domínio e sabedoria
ideal, mas por vezes muito trabalhoso de conseguir. Aliada à autorrealização temos o fator
emocional (orgulho, satisfação, felicidade, prazer ou em casos contrários: vergonha,
humilhação, etc). Por sua vez, e associado à emoção, surgem as imagens e os sons que se
servem e exploram diversos graus emotivos, obtendo um forte impacto na motivação, mediante
o tipo de imagem e som, a nossa perceção ou emoção altera-se, no entanto, em qualquer caso,
a nossa atenção está sempre alerta: «Nunca houve uma forma de sociedade na história em que
se desse uma tal concentração de imagens, uma tal densidade de mensagens visuais. Podemos

153
fixar ou esquecer essas mensagens, mas captamo-las rapidamente e elas estimulam, ainda que
por instantes, a nossa imaginação» (Berger, 2005, p.139).
É com base nesta premissa que defendemos o poder das imagens e em como podem ser uteis
no domínio da motivação educacional. Como foi anteriormente referido, as capacidades de
sedução e de emoção ligam-se diretamente com o domínio visual independentemente da idade:
«Tal como os artistas adultos, as crianças produzem imagens por várias razões: para expressar
e comunicar as suas ideias e sentimentos, para treinar o controlo sobre o domínio pictórico e,
para se envolverem numa atividade que lhes proporcione prazer» (Cox, 2005, p.7). Uma vez
que as imagens captam a atenção de quem as vê, as suas mensagens são retidas facilmente e
até inconscientemente, assim é correto pensarmos que a sua utilização face ao suporte
meramente textual será muito superior, até no caso das crianças, como refere Vigotsky:

“(…) um dos melhores métodos pedagógicos consiste em atrair a atenção das crianças numa atividade
produtora, através da sua participação criativa. Esta síntese do trabalho artístico e produtor responde
ao interesse da criança (…). Toda a arte, ao cultivar métodos especiais de traduzir as suas imagens,
dispõe da sua própria tecnologia e da combinação das classes tecnológicas com os exercícios artísticos
sendo, possivelmente, a mais valia do pedagogo nessa idade”. (Vigotsky,2007,p.105)

Vejamos outra situação que bebe desta premissa: o caso defendido pelo professor Ġorġ Mallia
(1957) que argumenta a utilização da banda desenhada, vulgo bd, em sala de aula face ao
tradicional manual escolar. Na sua opinião, a bd desempenha um excelente material educativo,
pois pode aumentar a compreensão, juntamente com a motivação e interesse demonstrados em
determinada temática. (Mallia, 2007, p.3) Os estudantes envolvidos na experiência de Mallia
mostraram-se satisfeitos com a novidade (comprovando o poder atrativo do meio). Ao proceder
à leitura da banda desenhada ficaram embrenhados e interessados o que fez o professor concluir
que a retenção de informação era significativamente superior, face a um tratamento tradicional,
comprovando que «o médium da banda desenhada tem na sua natureza as ferramentas
necessárias ao conhecimento (…). Esta pesquisa comprova que a banda desenhada contém em
si um grande potencial de ferramenta afetiva e cognitiva que pode ser utilizada no ensino para
fins motivacionais e de retenção de conhecimento.» (Mallia,2007, p.6-7).
Em paralelo, a utilização do fantástico em contexto educativo segue os mesmos moldes
defendidos por Mallia. Como foi já referido, uma das três principais características do
fantástico é precisamente a sedução através de imagens. As criaturas fantásticas são por
definição, imagens apelativas ao olhar o que permite ao professor captar a atenção dos alunos
para uma determinada temática através de um mote que apreciam e com o qual se identificam,
fomentando a condição inata da curiosidade humana e canalizando-a para a aprendizagem.

4. Utilização da fantasia no desenho

O recurso à utilização do fantástico é válido em várias áreas de conhecimento. Nas artes visuais,
o mote fantástico poderá ser dado como temática passível de ser trabalhada em desenho, pintura
ou até mesmo tridimensionalmente, com escultura ou escultura 3d, no sentido de expandir os
horizontes do aluno. Porém, nesta situação, destacaremos o desenho como elemento basilar por
ser:

“(…) um meio de criar para o mundo do visível, não apenas do tirado pelo natural, enquanto tal, mas
acrescentando tudo quanto esse natural necessita e não possui. (….) A criação de anatomias fantásticas
concebe seres para lhes atribuir vida, criaturas com potencialidades e características singulares que
poderão coabitar em mundos onde as suas morfologias melhor se adaptem, num ambiente propício.”
(Marques,2012, p.51)

154
Apesar de na atualidade existir um grande pluralismo de expressões, experimentações e
grandes liberdades, existem fatores que não devem ser ignorados na aprendizagem do desenho
de observação, tais como a qualidade técnica, o rigor anatómico e a capacidade de observação
presentes no trabalho artístico. Um exercício de observação do real ou até mesmo de
representação de figura humana, é uma tarefa muito exigente, carecendo de elevada
concentração, observação, rigor e motivação. Embora a maior parte dos alunos expresse agrado
pela temática, são comuns sentimentos de ansiedade, impaciência, preocupação e até
competitividade excessiva traduzindo-se por vezes, em resultados pouco conseguidos e em
consequente desmotivação, precisamente pelo medo que os alunos sentem de falhar.
Contudo, aliando a estes exercícios o mote fantástico, é visível o agrado e satisfação dos
estudantes pois podem colocar em prática todos os elementos exigidos (qualidade gráfica,
observação, rigor anatómico e perspetiva) desenvolvendo assim a criatividade de uma forma
menos restritiva e atenuando os receios anteriores. A ilustradora científica Diana Marques em
paralelo com esta situação, defende precisamente um equilibro entre o conhecimento científico
e a arte, pois para criar algo é necessário ter bases sólidas:

“A ciência e a arte são combinadas no mesmo contexto recorrentemente por oferecerem perspectivas
distintas: por um lado a razão e o conhecimento objectivo, que empregam a observação e
experimentação para investigar as leis da natureza; por outro o uso da imaginação e perícia, para
despertar a sensibilidade estética pessoal e nos outros. O cientista que procura evitar a subjectividade
instintiva. O artista que segue os seus sentimentos e desejos para criar algo completamente novo”.
(Marques,2012, p.151)

Com base nestas premissas, destacamos na fig. 2, três ilustrações de bustos de personagens
fantásticas desenvolvidas por uma aluna no âmbito da disciplina O Fantástico na Arte I que
lecionamos na Escola Superior de Educação de Lisboa. Nestes exemplos, está patente não só a
qualidade gráfica, como também o domínio técnico e ainda uma tentativa de almejar o rigor
anatómico, quase científico. Poderemos igualmente, denotar uma certa tendência para dispor
as ilustrações em poses de retrato tipicamente clássicas, podendo até, ser observadas à luz de
interpretações de fisiognomonia.
A identificação de uma cabeça tende a ser universal. Cada cabeça possui em concreto,
diferentes especificidades consoante os casos. Esta ordem estende-se também a todo o corpo,
o que faz com que o todo seja harmonioso e consequentemente, concordante. Apesar da
dificuldade em justificar esta situação, esta é compreensível através do reconhecimento visual
de toda a figura. Por conseguinte, a noção de concordância é também visualmente utilizada na
construção de personagens fantásticas. Tendo por base a análise da fig.2, embora cada
personagem seja morfologicamente diferente, são harmoniosas e concordantes em termos de
composição, formas e tonalidades. A forma mais evidente de cada parte da cabeça determina a
forma do conjunto geral, influenciando assim os elementos secundários. A título de exemplo
desta situação, na fig. 2, o primeiro retrato da esquerda apresenta como elemento principal
linhas curvas presentes nos processos córneos da criatura: essas linhas que, de certa forma, dão
a tónica geral à figura, irão repetir-se em elementos secundários como as curvaturas das orelhas,
direção do cabelo, marcas no rosto, etc.

155
Fig. 2. Ilustrações desenvolvidas pela aluna Sinditelma Correia na Unidade Curricular O Fantástico na Arte I,
ano letivo 2016/2017.

Porém, é necessário compreender que o mote fantástico não é um substituto e sim um


complemento motivacional muito útil para as matérias dadas, pois permite a aplicação e
expansão de conceitos e princípios presentes em outras atividades, desenvolve a criatividade e
imaginação e contribui para uma maior motivação e satisfação dos alunos por serem exercícios
que saem do contexto normal dos manuais e livros escolares e de sala de aula. Assim, a
utilização da temática das criaturas fantásticas serve como mote para uma aprendizagem ativa
(active learning), defendida pelo Professor Ronald Cruz relativamente ao ensino da biologia e
outras ciências (Cruz,2013, p.257).

5. Recurso a meios digitais

Na atualidade possuímos uma maior gama de ferramentas e tecnologias que nos permitem criar
a outros níveis. De acordo com Jorge Castanho, «situamo-nos justamente numa fronteira de
técnicas acompanhadas de contextos teóricos favoráveis à criação artística. (…) emergem
criaturas com atributos especiais para habitarem um mundo visual 2D e 3D» (Marques, 2012, p.52)
O desenvolvimento do desenho tradicional (dito analógico) é sempre necessário, porém, a
utilização das ferramentas digitais surge como um progresso na criação artística, que não
descaracteriza o analógico, pois: «o conceito de Desenho não se esgota numa só definição, nem
nas certezas que acompanham os modelos de representação exata. As definições do desenho
são determinadas pelas circunstâncias e atendem a fatores de sensibilidade estética, de
inteligência, de cultura, de talento, de experiência, de conhecimento técnico e científico»
(Marques,2012, p.103)
Desta forma, o recurso a programas digitais 3D é predominante na disciplina Representação
Digital, que recorre ao software Blender. Na figura 3, podemos observar a comparação entre
dois exemplos de exercícios com enunciados díspares. O exercício da esquerda (A) era baseado
em proporções e rigor anatómico e o da direita (B) na realização de uma personagem à escolha
dos estudantes, com obrigatoriedade de um desenho prévio (C). Em termos comparativos, é
possível verificarmos uma melhoria significativa na qualidade e desempenho técnico no
exercício da personagem, no entanto, os conceitos apreendidos em (A) revelaram-se essenciais
para os seguintes (B) e (C).
Inquirida sobre desta situação, a aluna revelou que o exercício que mais apreciou foi
precisamente o da personagem por poder selecionar algo que lhe agradava estética e
emocionalmente estando consequentemente, mais motivada e recetiva para a execução das
tarefas propostas. Porém, reconheceu a utilidade do primeiro exercício que lhe proporcionou
as bases necessárias que iria usar posteriormente, no exercício da direita.

156
A) B)

C)
Fig. 3. Captura de ecrã de dois exercícios de modelação tridimensional com recurso ao software 3d Blender
realizados pela aluna Joana Silva no âmbito da Unidade Curricular de Representação Digital, ano letivo de
2016/2017. Em A) a premissa do exercício era modelar uma cabeça humana realista e em B) e C) era criar uma
personagem da sua autoria, ou inspirada em outros universos existentes.

Conclusões

Devido à sua natureza interdisciplinar, que pode envolver de tudo um pouco (quer animais,
relatos, lendas, mitos, entre outros) as criaturas fantásticas despoletam curiosidade, sendo por
isso bastante estimulantes numa primeira fase de abordagem. A sua utilização em livros, filmes,
videojogos ou jogos de tabuleiro cria empatia com o sujeito e auxilia-o no processo de
aprendizagem, reforçando, enriquecendo e retendo muito mais informação do que de forma
tradicional, bem como auxiliando na sintetização do conhecimento e capacidade de
argumentação/defesa do trabalho efetuado: « A fantasia pode também providenciar metáforas
úteis para aprender novas competências (…) e providenciar exemplos de contextos reais nos
quais essas competências podem ser utilizadas.» (Malone,1987, p.240)
Como paralelismo, podemos verificar também que em outras áreas de ensino a utilização da
fantasia é uma ferramenta que melhora a facilidade de aprendizagem. Através do exemplo de
Cruz, não é só na área das artes visuais que as utilizações da fantasia se tornam vantajosas, a
sua aplicação na área das ciências subordinada ao tema da ficção científica, tem uma incrível

157
adesão por parte dos estudantes. Esta temática torna-se útil para ilustrar e aplicar diversos
conceitos e princípios biológicos, anatómicos e até de ordem evolucional, como o caso da
classificação taxonómica de espécies existentes e extintas45, permitindo-lhes fazer conexões
entre a fantasia e o conhecimento. A Professora Andrea Bixler também frisa esta utilidade
quando afirma que:

“Usar a ficção cientifica para ensinar biologia evolutiva tem várias vantagens: primeiro proporciona
uma envolvência para explorar conceitos que são difíceis por serem abstratos, em segundo lugar, a
ficção cientifica, [vulgo sci-fi], proporciona exemplos visuais (ilustrações) da evolução, (…) e terceiro,
o sci-fi pode ser utilizado como um formado de aprendizagem ativa através de um pensamento
verdadeiramente científico (aplicação, análise, síntese e avaliação) ajudando os estudantes a solidificar
o seu conhecimento e compreensão acerca do assunto abordado.” (Bixler,2007, p.337)

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45
Curiosamente, e de acordo com os autores Guidetti, et.al. (2007), os fósseis de animais pré-históricos
encontrados no período clássico, medieval e posterior, eram considerados como restos de criaturas mirabolantes.
Alguns exemplos dessas “descobertas fantásticas” eram conchas de amonite (consideradas como restos de cobras)
e crânios de elefante (considerado como uma cabeça de ciclope).

158
Guidetti, R., et. al. (2007) Fantastic animals as na experimental model to teach animal
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1

159
O LIVRO ILUSTRADO E O LIVRO DE ARTISTA:
INTERSECÇÕES EXPERIMENTAIS A PARTIR DO METODO OUBAPO.

Klaus Reis
FBAUL – UFRRJ/CBA – CAPES

RESUMO
A investigação teórico-prática que será apresentada tem como ponto de partida as diretrizes criativas propostas
pelo grupo OuBaPo – Ouvroir de Bande Dessinée Potentielle [Oficina de Banda Desenhada Potencial]. O objetivo
geral do trabalho é aprofundar a relação entre os aspetos experimentais do desenho e a sua relação com a
produção visual para livro ilustrado e explorar as suas possibilidades enquanto imagem narrativa. As
experiências produzidas até o momento demonstraram pontos de contacto com o chamado livro de artista –
território experimental por excelência – e permitiram a ampliação da exploração gráfica e plástica para a
estrutura do objeto “livro”. Apresentaremos alguns resultados obtidos até o momento e alguns
questionamentos que serão desenvolvidos no decorrer da investigação.

ABSTRACT
The theoretical-practical research that will be presented has as starting point the creative guidelines proposed by
the group OuBaPo - Ouvroir de Bande Dessinée Potentielle [Potential Comics Workshop]. The general objective
of the work is to deepen the relation between the experimental aspects of drawing and its relation with the visual
production for illustrated book and to explore its possibilities as a narrative image. The experiments produced so
far have shown points of contact with the so-called artist book - experimental territory par excellence - and allowed
the expansion of the graphic and plastic exploration for the structure of the book as an object. We will present
some results obtained so far and some questions that will be anwered during the investigation.

INTRODUÇÃO
A investigação teórico-prática que será apresentada tem como ponto de partida as
diretrizes criativas propostas pelo grupo OuBaPo – Ouvroir de Bande Dessinée Potentielle
[Oficina de Banda Desenhada Potencial]. O objetivo geral do trabalho é aprofundar a relação
entre os aspetos experimentais do desenho e a sua relação com a produção visual para livro
ilustrado e explorar as suas possibilidades enquanto imagem narrativa. As experiências
produzidas até o momento demonstraram pontos de contacto com o chamado livro de artista
– território experimental por excelência – e permitiram a ampliação da exploração gráfica e
plástica para a estrutura do objeto “livro”.
Primeiramente apresentaremos uma breve definição de que tipo de ilustração estamos
a falar para melhor expor o ponto de vista a partir do qual falaremos, uma vez que ilustração
é um termo demasiado abrangente pra que ele por si só baste.
Em seguida, faremos um faremos uma breve apresentação de algumas referências
teóricas que têm no livro ilustrado seu objeto de estudo. Algumas destas referências servirão
para apoiar nossa argumentação ao longo deste artigo.

160
Será necessário, ainda, definir alguns aspectos do livro ilustrado. O entendimento acerca
da estrutura do livro ilustrado nos ajudará a perceber melhor as relações entre o livro
ilustrado e o Livro de artista.
O grupo Oubapo terá sua particular agenda criativa explicada no seguimento do artigo,
assim como o processo de adaptação sofrido para que os procedimentos da sua vertente
literária – o Oulipo – pudessem ser usados como referência para os primeiros exercícios.
Foi este procedimento que nos levou a atuar de maneira semelhante com relação ao livro
ilustrado, o que será explicado em seguida.
Finalmente, traçaremos alguns paralelos entre o livro de artista e o livro ilustrado numa
espécie de conclusão que mais aponta para novas possibilidades do que conclui o processo
ainda em andamento.

SOBRE A ILUSTRAÇÃO PARA LIVROS


A ilustração, com o objetivo específico de acompanhar um texto escrito, tem seu início
antes mesmo do dispositivo de Gutemberg, a imprensa, que possibilitou a reprodução de
livros e imagens em escala de forma mecânica. As iluminuras faziam parte dos manuscritos
medievais e mesmo antes, no Egito Antigo, desenhos reforçavam o conteúdo dos hieróglifos
tanto no texto dos papiros quanto nas paredes das construções colossais daquela civilização.
Se pensarmos em narrativas sem palavras, essa origem retrocede ainda mais no tempo, e
encontramos as pinturas rupestres e a coluna de Trajano, além dos vasos gregos e da paleta
de Narmer (3100 - 3200 a.C.), artefacto egípcio que foi produzido para representar a
unificação do Alto e do Baixo Egito.

Figura 1 - Paleta de Narmer (3100 – 3200 a.C.)

Mas, mesmo assim, a imprensa ainda tem a maior importância para o desenvolvimento
do livro ilustrado de maneira geral. A reprodução de imagem pela técnica da xilogravura será
a primeira a ser utilizada. A partir desse ponto, a evolução nas técnicas de reprodução nos

161
trouxe ao modelo atual da impressão a 4 cores offset (entre outras ainda mais eficientes em
termos de reprodução cromática, embora de uso menos frequentes), para citar a mais
simples das técnicas atuais, que cada vez mais se aperfeiçoam.
A ilustração que é pensada para o objeto livro, apesar de ter importante origem anterior,
ganha relevância e começa a se desenvolver como forma de expressão gráfica e artística
autônoma em meados do século XIX. (SALISBURY; STYLES, 2013)
É relevante ressaltar que a ilustração passa por um processo de transformação não
somente técnica, mas conceitual. Se, anteriormente, a imagem possuía o papel de adornar
ou reforçar o que o texto dizia, ela passa a ter uma relação de igualdade com o texto em
termos de importância na narrativa. Será Randolph Caldecott (1846-1886) que implementará
essas mudanças pelas quais a ilustração de livro passou, e então ela se aproximará mais
daquilo que entendemos hoje como ilustração para livro infanto-juvenil. (SALISBURY, 2013).
Essa transformação se dá com o surgimento de “um subtexto pictórico que expande a
narrativa transmitida pela palavra escrita em vez de apenas duplicá-la ou decorá-la”. (Idem,
p.16)

Figura 2 - Randolph Caldecott

Esse desenvolvimento conceitual resultará, com o passar do tempo, no livro ilustrado


contemporâneo: imagens sequenciais que, em conjunto com um texto reduzido em
quantidade, se complementam ao transmitir a narrativa. Percebe-se então, a partir da década
de 1960 do século XX o aumento da importância dada ao aspecto visual nos livros ilustrados
contemporâneos (Ibidem). A esse respeito, Sophie Van der Linden no livro Para ler o livro

162
ilustrado, (2011) nos aponta o trabalho editorial de Robert Delpire (1926-) como sendo de
grande importância, uma vez que publica uma história que tira partido da própria
materialidade do livro – que é posto dentro de uma caixa, caixa esta representada numa das
ilustrações de Les Larmes de Crocodile –, escrito e ilustrado por André François (1915-2005).
O próprio formato do livro reproduz um envelope de carta, assim como sua capa possui as
estampas comumente encontradas nesses envelopes. (LINDEN, 2011)

Figura 3 – Contracapa e caixa do livro Les Larmes de Crocodile

As possibilidades de experimentação narrativa que o livro ilustrado proporciona fazem


com que a própria definição de infanto-juvenil venha a ser repensada em razão do aumento
da complexidade das relações entre palavra e imagem, ou mesmo da possibilidade da criação
de um livro sem palavras, mas com um conjunto de imagens sequenciais narrativas: o livro-
imagem ou livro de imagem (conforme tipologia sugerida por Sophie Van der Linden).
O gênero do livro ilustrado como um todo tem se desenvolvido bastante, bem como o
subgênero que se mostra cada vez mais presente que é o do citado livro de imagem. Esse
gênero, que se caracteriza pela predominância da imagem enquanto transmissora da
narrativa, apesar de aparentemente simples, possibilita ao leitor a criação do seu próprio
texto e dessa forma aumenta as possibilidades de leitura e interpretação. Como nos diz Maria
Nikolajeva em Livro Ilustrado: palavras e imagens, “o texto verbal tem suas lacunas, e o
mesmo acontece com o visual” (NIKOLAJEVA, 2011, p. 15), permitindo assim que o leitor, ao
preencher essa lacuna, dê sua própria contribuição para a narrativa que está sendo
desenvolvida visualmente.

163
A própria imagem narrativa voltada para impressos, devido ao avanço tecnológico dos
meios de reprodução da imagem, pôde desenvolver-se em termos de experimentação
plástica. O nível de fidelidade ao original que o aparato gráfico alcançou, permitiu que o
artista envolvido na produção da imagem para o livro – o ilustrador – pudesse desenvolver
sua linguagem plástica tanto no sentido mais tecnológico, ao se utilizar do computador em
todas as etapas para produzir a imagem, quanto no de se utilizar de técnicas tradicionais para
essa mesma produção. Esse uso das técnicas tradicionais não afasta, no entanto, os
ilustradores de uma expressão visual contemporânea. Pelo contrário, suas experimentações
dialogam diretamente com elementos visuais e abordagens técnicas e conceituais absorvidas
das artes plásticas.
Nesse sentido, a italiana Beatrice Alemagna (1973-), homenageada no 14º Ilustrarte
(Bienal Internacional de Ilustração para a Infância - Lisboa, 2014), desenvolve seu trabalho
utilizando-se de técnicas tradicionais como lápis de cor e aquarela. Isso não impede que a
espacialidade representada em seus trabalhos crie uma tensão perceptiva bem própria de
trabalhos de artistas contemporâneos que também fazem uso de técnicas tradicionais, como
Daniel Richter (1962-), Dana Shutz (1970-).

(a) (b) (c)


Figura 4: a) Beatrice Alemagna b)Dana Schutz c)Daniel Richter

A vencedora da mesma bienal, a alemã Johanna Benz (1986-), é mais um exemplo do uso
de técnicas não digitais na ilustração para livro infantojuvenil. Contudo, tanto sua pesquisa
plástica quanto a de Alemagna, como fica evidente pelas obras apresentadas naquela
exposição, nos apontam para um campo rico de possibilidades no sentido de desenvolver,
por intermédio de experimentações da linguagem do desenho, uma expressão gráfica inédita
e pessoal voltada para a narrativa visual para livro.

164
Figura 5 – Johanna Benz

Bernardo Carvalho (1973-), ilustrador e editor português de livros infanto-juvenis,


também tira partido das técnicas tradicionais com alto potencial de experimentação como
serigrafia e colagem, para criar livros-imagem cujo visual limpo e minimalista explora ao
máximo os elementos narrativos, como no caso dos livros Um Dia Na Praia, P de Pai e
Supergigante.

Figura 6 - Bernardo Carvalho

ESTUDOS SOBRE O LIVRO ILUSTRADO


Pode-se ver que o livro ilustrado tem recebido a atenção teórica em grau exponencialmente
maior. Exemplo disso são as obras já referidas de Maria Nikolajeva e Sophie van der Linden.
Esse material gerou em nós um interesse maior para pensar a imagem narrativa, e a
consequência foi o presente projeto, que terá como meta desenvolver um trabalho que
produza tanto uma reflexão teórica a respeito do fazer artístico inerente à ilustração para

165
livros, quanto um corpo de trabalho artístico que dê sustentação ao trabalho teórico e de
onde este irá surgir.
Uma vez que o material teórico lido até este momento dá conta de aspectos que fundam
uma retórica específica do livro ilustrado, ou ainda, direciona-se de maneira multidisciplinar
a uma crítica do livro ilustrado, o objetivo deste projeto é apresentar uma produção artística
direcionada a essa mídia específica. Essa produção visual passa necessariamente pelo
desenho – elemento essencial para o pensamento visual e para a criação da linguagem gráfica
de um livro ilustrado.
Comumente, as abordagens teóricas visam categorizar e fundar uma crítica sistemática
desse tipo de ilustração. Passemos a apontar algumas dessas abordagens.
Teóricos como Maria Nikolajeva, Sophie Van der Linden e Peter Hunt têm apresentado
resultados importantes, lançando mão de uma abordagem multidisciplinar na análise do
objeto livro ilustrado e sua relação com o leitor. Maria Nikolajeva parte, em seu Livro
Ilustrado: Palavras e imagens, de uma conjunção entre hermenêutica e semiologia para
abordar a relação entre texto e imagem, assim como detalhar as lacunas em ambos, contida
nos livros infantojuvenis. A autora afirma: “Palavras e imagens podem preencher as lacunas
umas das outras, total ou parcialmente. Mas podem também deixá-las para o
leitor/espectador completar: tanto palavras como imagens podem ser evocativas a seu modo
e independentes entre si”. (2011, p. 15)
Já a abordagem de Sophie Van der Linden em Para ler o Livro Ilustrado parte de uma
análise estrutural, para chegar a uma análise da função da diagramação e da página dupla,
passando ainda por aspectos narrativos e plásticos, até apresentar depoimentos de
ilustradores e estudos de casos (leitura comentada de livros infanto-juvenis). A abordagem
dessa estudiosa visa preferencialmente o papel do design na construção da narrativa visual
do livro ilustrado:
Assim, ler um livro ilustrado não se resume a ler texto e imagem. É isso, e muito mais. Ler
um livro ilustrado é também apreciar o uso de um formato, de enquadramentos, da relação
entre capa e guardas com seu conteúdo; é também associar representações, optar por uma
ordem de leitura no espaço da pagina, afinar a poesia do texto com a poesia da imagem,
apreciar os silêncios de uma em relação à outra... Ler um livro ilustrado depende certamente
da formação do leitor. (p. 15)

166
Em Peter Hunt, no livro Crítica, teoria e literatura infantil (2010), a abordagem
incontornável da crítica literária voltada para a literatura infantil deixa pouco espaço para o
estudo da imagem, todavia, sua contribuição para esse aspecto é a análise da relação palavra
e imagem, especialmente no capítulo “A crítica e o livro ilustrado”. (p. 233-251)
Existem também autores que partem da prática da ilustração para criar espécies de
manuais ou mesmo memoriais descritivos de seus processos. Uri Shulevitz e Suzy Lee são dois
exemplos de ilustradores que se baseiam no próprio ofício para caminhar na direção
apontada acima. Shulevitz analisa a criação da narrativa visual sequencial de um livro de
imagens, partindo de seus elementos visuais mínimos, até a criação propriamente dita dessa
narrativa com meios mais complexos, como a inclusão de cenários e personagens.
Lee, por outro lado, retoma, no seu A Trilogia da Margem (2012) ˗ livro que é resumo de
uma conferência do salão da FNLIJ (Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil ˗ Brasil) ˗, o
processo de confecção da sua trilogia de mesmo nome, que compreende os seguintes livros
de imagem: Sombras (2011), Espelho (2010) e Onda (2009).46

Figura 5 Suzy Lee – A Onda

O estudo da narrativa visual sequencial é abordado por Will Eisner em Quadrinhos e Arte
Sequencial (2010). Trata-se de um estudo direcionado ao mundo das bandas desenhadas que,
a despeito das diferenças em relação ao livro ilustrado, muito contribui para um estudo da
imagem narrativa.
Também se origina das bandas desenhadas um estudo mais experimental em relação à
criação de narrativas visuais. Trata-se do grupo de origem francesa OuBaPo (Ouvroir de Bande
Dessinée Potentielle) que foi criado a partir de princípio criativo proveniente da literatura,

46Esses livros têm em comum o fato de trabalharem com a calha do livro, ou seja, o
limite entre a página da direita e a da esquerda, estabelecendo assim uma margem, ou
ainda uma fronteira entre dois mundos.

167
adotando nome semelhante: OuLiPo (Ouvroir de Littérature Potentielle). Esse grupo se utiliza
de um processo de criação de narrativas visuais baseados na ideia de restringir o processo de
criação com regras previamente estabelecidas. Essas restrições podem ser, por exemplo, a da
orientação de leitura. A Reversibilidade (Upside-Down), por exemplo, possui seu uso mais
antigo na obra de Gustave Verbeck. Em 1903, ele escreveu e desenhou The Upside-Downs
Little Lady Lovekins and Old Man Muffaroo, na qual os quadros podem ser lidos na ordem
tradicional, mas, ao girarmos a página em 180°, outra leitura é possível, pois o desenho é feito
de forma a ser inteligível das duas maneiras.
Veremos explicação mais detalhada dos seus procedimentos criativos que procuraremos
por em prática a partir do grupo OuBaPo mais à frente, na parte referente ao grupo.

168
Figura 6 - Upside down – a imagem de baixo é a mesma de cima, embora invertida47.

BREVE TIPOLOGIA DOS LIVROS ILUSTRADOS

Antes de dar seguimento à reflexão proposta, é necessário estabelecer uma definição


mais específica para o tipo de livro ilustrado ao qual nos referimos. Defini-lo como um
conjunto de imagens com relação mais ou menos direta com um texto que reforça ou
complementa a narrativa escrita poderia ser suficiente. No entanto, torna-se necessária ainda
uma definição maior devido ao fato de o livro ilustrado possuir sutilezas em relação à
frequência de aparição das imagens e mesmo em relação à sua função relativamente ao texto.
Existem algumas tentativas de se estabelecer tipologias do livro ilustrado. Veremos então as
tipologias estabelecidas por Sophie Van Der Linden (1973-) e Maria Nikolajeva (1956-), duas
teóricas do livro ilustrado.
Para Van der Linden existe uma dificuldade de definição tanto formal quanto
relativamente ao conteúdo, pois, os gêneros podem muitas vezes se entrecruzar, tornando
assim a classificação uma espécie de exercício de análise combinatória. Ainda assim,
estabelece uma classificação básica (LINDEN, 2012).

47Para perceber a personagem Little Lady Lovekin, à direita de Old Man Mouffaroo no
primeiro quadro, é necessário focar na parte de baixo da figura

169
• Em primeiro lugar ela nos aponta que o livro com ilustração é acompanhado de
ilustrações, mas é composto em sua maior parte por texto, sendo este o
sustentáculo da narrativa.
• As primeiras leituras são uma derivação mais ilustrada da categoria anterior e
são uma classificação editorial acima de tudo. São direcionadas aos leitores em
formação e tem o formato do romance, mas com capítulos mais curtos. Como
possui mais ilustrações e vinhetas, aproxima-se do livro de imagem. Esse por sua
vez possui a imagem predominante em relação ao texto, e é nela que a narrativa
se sustenta.
• A banda desenhada apresenta na composição da página segmentada em
quadros, imagens relacionadas entre si em sequência que as subordina a uma
narrativa (já aqui podemos ter uma combinação em que a imagem é a única
forma de contar histórias, como em vários livros de imagem).
• Livros pop-up, livros brinquedo, interativos e imaginativos, compõem por sua vez
um grupo que de forma geral são direcionados para bebês ou crianças em fase
de alfabetização e formação de vocabulário, sendo, portanto, não narrativos em
sua maioria.
• Livro de Artista: essa é uma fronteira que Lindem não ultrapassa apesar de
mencionar rapidamente. Veremos mais à frente como os desdobramentos da
investigação convergiram nesta direção.

Dos apresentados acima, os livros de imagem foram, portanto, nosso ponto de partida,
ou seja, aqueles que têm predominantemente imagens e elas compartilham com a palavra
(quando esta está presente) a tarefa de sustentar a narrativa.
Ainda no sentido de construir uma definição para nosso objeto de estudo, veremos que
Nikolajeva nos apresenta já na introdução de Livro Ilustrado - Palavras e Imagens o resultado
de uma longa pesquisa a respeito das tipologias do livro ilustrado. Ela estabelece os dois
extremos da relação palavra e imagem na forma de uma tabela:
• De um lado, a palavra: livros sem nenhuma imagem, somente texto, seja ele
narrativo ou não.

170
• Do outro, somente a imagem onde se situa o livro de imagem (narrativo) ou um
livro demonstrativo, como um mostruário de produtos (não narrativo e não
sequencial).
• E no meio dessa tabela encontram-se livros em que a imagem estabelece
relações mais ou menos redundantes com o texto em que “mais redundante”
significa se aproximar da palavra, e “menos redundante” significa se aproximar
da imagem.
Ou seja, na sua classificação não entram as variações editorias, mas somente as relações
entre o texto e a imagem.

Figura 7 - Tabela de Maria Nikolajeva

171
Acreditamos que ambas as definições se completam no que diz respeito ao livro de
imagem, portanto, usaremos a definição de Van der Linden para caracterizar o objeto que
será produzido, ou seja, o livro de imagem, sendo a imagem quantitativamente predominante
em relação ao texto..
Para definir o que, por ora, estamos chamando de Livro Ilustrado48, recorreremos mais
uma vez a Sophie van der Linden (2013). A autora nos aponta os elementos essenciais para
caracterizar este média e dos quais os seus criadores têm em conta para sua criação. Estamos
a nos referir aos seguintes elementos:

• A materialidade do álbum
• Seu formato
• A página dupla
• A dobra central
• Sua reprodutibilidade
• A ilustração
• Técnica de realização da imagem
• Relação texto/imagem
• Organização da página
• A Oralidade do texto
• Concatenação entre as páginas

De imediato, essas categorias sugerem também novas formas de se trabalhar com os


exercícios de economia de meios que desde o início temos usado para criar as experiências
até então apresentadas. Contudo, devemos antes entender como funciona cada uma das
categorias citadas para que possamos definir como funcionarão esses novos exercícios
específicos para o álbum.
Temos também em SOTTO MAYOR trechos em que se vê um vasto trabalho de
investigação do estado da arte no que tange a definição de álbum. Seu trabalho nos fornecerá
referências importantes para o desenvolvimento da vertente teórica da nossa tese. Uma
citação nos chama a atenção por complementar a definição de LINDEN. SOTTO MAYOR
apresenta uma definição de aspetos relacionados à edição e composição gráfica. Dessa forma,
essas publicações se caracterizam por:

48Esta definição carece ainda de maior estudo visto que, mesmo excluindo-se as traduções brasileiras, a
terminologia encontra opiniões diversas mesmo em Portugal.

172
Capa dura, por um formato de maiores dimensões, pela utilização de um papel de
gramagem/qualidade superior, pela presença de texto de reduzida extensão, utilizando-se um
ou mais tipos de letra (num mesmo [livro]) e suas possíveis variações de tamanho, pela
impressão em policromia, por um menor número de páginas contendo muitas ilustrações (que
podem ser de página inteira ou de página dupla, existindo, por vezes [exemplos] com
ilustrações que percorrem mais de duas páginas) e pela disposição do elementos na página,
sendo o design gráfico alvo de grande cuidado e investimento. (p. 118, 2016)

OUBAPO
O interesse e a pesquisa em torno dos livros ilustrados podem se dividir entre a área de
arte e o design e a área educacional, quando se pensa exclusivamente no livro infantojuvenil.
No caso da presente proposta de tese de doutorado, situamo-nos na confluência da arte e do
design, para criar ilustrações a partir de exercícios restritivos das oficinas OuBaPo – Ouvroir
de Bande Dessinée Potentielle [Oficina de Banda Desenhada Potenciais49].
Essa escola – OuXPo – é protagonista em orientar experimentos em diversas artes, que
incluem sua primeira sílaba no lugar do X para designar as diferentes disciplinas. A partir desse
princípio, temos OuLiPo para Literatura, OuPeinPo para pintura e finalmente OuBaPo para
bandas desenhadas. OuBaPo vem a ser nosso ponto de partida para a criação dos livros de
imagem, pois as bandas desenhadas possuem um ponto em comum com o livro ilustrado por
ser uma narrativa visual sequenciada.
Mas devemos entender o surgimento do OuBaPo, uma vez que o seu conjunto de
propostas criativas, de onde sairão as nossas também, precisou efetuar adaptações.
Originário do OuLiPo – Ouvroir de Literature Potentielle (Oficina de Literatura Potencia) – o
OuBaPo precisou estabelecer os pontos de contato e de dissonância em relação as linguagens
literária e das BD. A literatura é, aliás, a pioneira das oficinas potenciais (Ou-X-Po) e como tal
tratou de questões relativas aos exercícios criativos propostos que possibilitam alguns atalhos
para as outras Ou-X-Po:

“(...) premier-né des Ou-X-Po, fut tout naturellement le premier à se poser de questions
épineuses allant jusqu’à mettre en doute l’utilité de sa fondation. Tout nous porte à croire que
chacun des Ou-X-Po d’aujourd’hui sera confronté à des semblables et torturants problèmes
si, justement, l’OuLiPo n’en avais vécus les affres et ne s’en étais guéri. Au reste, Queneau
aura dès cet instant noué la relation avec la peinture, en soulignant que les travaux de
l’OuLiPo, quand ils découvrent des valeurs littéraires où il n’y en a pas, ressemblent à ceux de

49Nas palavras de Noël Arnaud, a palavra potencial contida no título se refere a não
haver limites para a criação. (ARNAUD et alt., 1997, p. 7)

173
certains peintres qui découvrent des valeurs picturales où elles n’existent pas. (ARNAUD et
alt., 1997, p. 14)

Além da pintura, as BD também figuram como outra oficina em potencial desde a


fundação do OuLiPo. Chegaram a ser feitas apropriações de tirinhas ou mesmo de exemplares
de novelas gráficas inteiras. Noël Arnaud, presidente do OuLiPo, chegou a fazer uma banda
desenhada baseada em colagens e apropriações. Uma espécie de OuBanPo foi pensada ainda
nos anos 60, mas não chegou a se desenvolver. Ainda assim, havia a iminência no meio das
BD francesas da criação dessa oficina. Foi feita uma convocatória para a sua criação na edição
de junho de 1990 do Cahiers de La Bande Dessinée na qual Arnaud pedia que se enviassem
ideias para o novo ouvroir. O terreno de todo modo já havia sido preparado por grandes
nomes da banda desenhada como Gotlib, Art Spiegelman e Marc-Antoine Mathieu sem falar
no trabalho já citado Gustave Verbeek. Finalmente, o OuBapo foi criado em 1992 a partir de
reuniões de autores da editora L’Association, especializada em banda desenhada.
No que diz respeito às restrições criativas criadas pelo grupo, definiremos de maneira
breve agumas das que utilizamos para criar alguns dos livros produzidos até o momento para
investigação50. A palavra restrição aqui é usada pelo fato das propostas dos grupos Potenciais
de diversas artes terem como característica principal uma economia de meios que lhes é
particular. Dos dois tipos gerais inicialmente propostos na fundação do grupo –restrições
Geradoras e as Transformadoras – selecionamos as restrições Geradoras tais como descritas
abaixo, conforme o artigo de Thierry Groensteen, Un premier bouquet de contraintes [Um
primeiro buquê de restrições], no livro Ouvroir de Bande Dessinée, Oupus 1 (1997).

• Restrição icônica – Consiste na interdição do desenhista representar


um dado elemento, denominado “motivo”. Exemplo: La Cage, de Martin
Vaughn-James: novela gráfica de 180 páginas, na qual nenhum ser-vivo, homem
ou animal, é representado visualmente. Somente suas falas em textos são
inseridas.

50Os livros mencionados estão em um apêndice apresentado após o final do presente


artigo.

174
Figura 8 - François Ayroles

• Restrição plástica – Essa restrição não reduz o número de motivos


autorizados, mas afeta mais ou menos severamente os procedimentos de
representação. Consiste numa limitação de signos ou formas utilizadas.
Apresenta um empobrecimento voluntário do vocabulário gráfico. Exemplo:
Jean Ache no álbum Des carrés et des ronds [Quadrados e círculos] interpreta as
Fábulas de La Fontaine utilizando-se apenas das figuras enunciadas no título de
seu álbum.

Figura 9 - Jean Arch – Le Lion et le Rat

• Restrição enunciativa – é na encenação que essa restrição funciona;


ela diz respeito ao enquadramento e ao ponto de vista que determinará os

175
desenhos: ponto de vista único, ou alternado, ou limitado, ou ainda, distribuídos
antecipadamente na sequência de quadros.

Figura 10 – Floc’h e Rivière

• Iteração icônica – Trata-se da repetição de uma única imagem ou da


utilização de um pequeno número de imagens recorrentes. São conservados
aqui o enquadramento, o ponto de vista e a imagem em todos os seus
componentes, com exceção do texto, que se altera.

Figura 11 – Robert Crumb

176
• Plurileitura – Esse termo esconde uma ideia simples: um desenho não
precisa ser repetido para ser lido ou visto várias vezes, basta que seja sugerido
ao leitor que ele reveja várias vezes o mesmo quadro. Por exemplo, por um
processo de dobradura, o livro se abre e fecha em diferentes direções, levando a
leituras reiteradas da mesma imagem.

Figura 12 – Étienne Lecroart

• Reversibilidade/Upside-Down: O exemplo mais antigo dessa técnica


foi realizado por Gustave Verbeck (1867-1937), em 1903. Ele escreveu/desenhou
The Upside-Downs Little Lady Lovekins and Old Man Muffaroo, como descrito na
Justificativa deste trabalho. Temos também no livro de Bernardo Carvalho de
nome Olhe, por favor, não viu uma luzinha a piscar? seguido de Corre, coelhinho,
corre, um exemplo de reversibilidade em que o livro lido de trás pra frente
permite a leitura de outra história. Se no início o que se passa é a busca de um
pirilampo por uma luz que pisca, que como leitores, iremos descobrir ser um
semáforo, na leitura reversa acompanhamos a fuga de um coelho de uma gaiola

177
situada num caminhão. No decorrer das páginas, o coelho é perseguido pelo cão
do motorista do caminhão. Ambas as narrativas se encontram na mesma página,
mas a chave para acompanhar a segunda narrativa se encontra na última.
• Sobreposição e dobradura – Conjunto de procedimentos que, tal
como a reversibilidade, convida o leitor a participar; nesse caso, sua participação
se dá com a manipulação efetiva da página impressa. De qualquer modo, a
mesma imagem apresenta duas leituras nas quais se insere uma modificação,
quer nos componentes, quer no encadeamento. Por exemplo, o leitor é levado a
dobrar a página sobre ela mesma, juntando uma parte de um quadro com parte
de outro, formando assim um terceiro desenho, de modo a revelar mais um
sentido para a história, como numa mensagem codificada.

Figura 13 – Étienne Lecroart

A seguir veremos como foi idealizado o grupo e como foram feitas as adaptações
necessárias para que a as restrições criativas fossem aproveitadas da vertente literária – o
Oulipo – e utilizadas na criação de bandas desenhadas.

***

Em primeiro lugar, devemos ter em mente que as restrições do OuBaPo são derivadas,
inicialmente, de seu equivalente no OuLiPo (Ouvroir de Literature Potentielle), ou seja, de um

178
mesmo conjunto de exercícios de economia de meios desenvolvidos para a criação de textos
literários. O OuBaPo precisou estabelecer os pontos de contacto e de dissonância entre a
linguagem literária e a Banda Desenhada. A literatura é, aliás, a primeira das artes a ter
exercícios criativos do tipo proposto pelas oficinas potenciais e por isso se deparou com os
obstáculos comuns aos que estão a construir algo novo. Por esse motivo o OuLiPo foi o ponto
de partida do OuBaPo para a criação de seus exercícios, e foi assim que partimos também deste
último. A relação entre palavra e imagem no contexto de uma narrativa foi abordada pelo
OuBaPo e pode também nos apresentar atalhos na elaboração de exercícios voltados para o
livro ilustrado.
Assim como as BD, a ilustração para livro mistura a informação escrita e a informação
visual. Apesar disso, a diferença mais evidente do ponto de vista narrativo é o tempo decorrido
entre uma imagem e outra e, principalmente, a quantidade de informação apresentada ao leitor
a cada imagem, seja em se tratando de uma página inteira de um livro de imagem, seja no
interior de uma vinheta dentro de uma página de BD. É evidente que a quantidade de
informação é variável, mas quando se trata de um livro de imagem, a duração da história é
frequentemente menor no que diz respeito ao tempo narrado, ou mesmo no que diz respeito ao
tempo destinado à leitura da história completa.
No texto que estabelece as primeiras restrições para criação de bandas desenhadas, Thierry
Groensteen aponta as diferenças entre a literatura e as BD e conclui que as BDs não possuem
sequer o mesmo alfabeto51 (observação que podemos estender para a relação entre a BD e a
ilustração). Ao pensar nos exercícios criativos estabelecidos pelo OuLiPo, o autor nos aponta
que entre elas há os que são de ordem não aplicável diretamente à banda desenhada. Isso porque
elas interferem em pequenas unidades da linguagem escrita, quais sejam: letras, sílabas e
palavras. Sendo assim, é necessário alterar as unidades em que se vai aplicar a restrição.
Groensteen exemplifica, então, em um dos exercícios do OuLiPo, a adaptação procedida:

(…), o palíndromo (que consiste, lembremo-nos, em um enunciado suscetível de se ler


somente da esquerda para direita, mas também da direita para a esquerda) se aplicará não às
letras ou às palavras, mas a vinhetas inteiras, que deverão obedecer, tanto num sentido quanto
no outro, às leis do encadeamento sequencial (…). O Famoso Upside-Downs de Gustave
Verbeek, (…), se apresentam notavelmente como sequências palindrômicas (…)
(GROENSTEEN, 1997, p. 16)

51
No sentido de qual seria a unidade mínima constituinte da banda desenhada, da mesma forma que
as letras são dos textos. As definições estruturais da banda desenhada podem ser encontradas, entre
outros, em dois livros: Quadrinhos e arte sequencial (EISNER; 1999) e Desvendando os quadrinhos
(MCLOUD; 2005). Neles, os autores estabelecem as bases de uma espécie de gramática da banda
desenha.

179
Há ainda uma outra diferença importante entre ambos OuLiPo e OuBaPo ainda segundo
Groensteen: para um escritor, via de regra, não interessa a diagramação na qual vai estar
inserido seu texto para a perceção de seu conteúdo. Isto é, se um parágrafo começará numa
página ou terminará em outra, ou se uma ocupará 5 ou 10 linhas da página. Por sua vez, para a
BD, a diagramação é praticamente a alma da leitura e, principalmente, parte importante da
própria linguagem da BD.
O desenhista é o responsável pela composição das páginas da história, e esta, uma vez
composta, carrega em si um conjunto de intenções narrativas definidas pelo que mostra ou pelo
que deixa para mostrar na página seguinte. Um dos aspetos narrativos trabalhados nas BD é o
tamanho dos quadros ou vinhetas que, por si só, são unidades subordinadas ao todo da página.
De acordo com Will Eisner, por exemplo, o tamanho horizontal da vinheta é uma forma de
estipular o tempo de duração do que se desenrola em seu conteúdo.
Mesmo a página em si não existe isolada, e não estamos a falar das subsequentes, mas da
página concomitante que forma a página dupla - o que por si só é uma unidade na composição
gráfica de uma publicação impressa, desde jornais revistas até livros. No que diz respeito à BD
(e como veremos à frente, a página dupla é cara também à própria ilustração para livros) essa
unidade deve ser pensada como um todo de forma a que os desenhos dialoguem não somente
de maneira formal, mas que sua composição tenha um papel na própria narrativa.
À primeira vista, podemos deduzir que, o formato, a impressão prevista para ser em cores
ou em preto e branco, e mesmo o número de páginas entre outras especificações do campo
editorial/gráfico podem ser considerados restrições em si. Mas as restrições podem ser auto
impostas num contexto de experimentação e de publicação independente como propõe o
OuBaPo, ou num contexto de investigação artística como a investigação que estamos a
conduzir.
Essas especificidades do suporte levaram a algumas conclusões quanto a que direções
tomar na criação das restrições por parte do OuBaPo. Uma dessas conclusões foi a de que as
restrições que afetem a forma e o número das vinhetas na página deveriam ser aplicadas a
histórias curtas. Outra conclusão é a de que eventualmente dever-se-ia pedir uma intervenção
física do leitor na história para que ela se concluísse.
Intervenções como cortes e dobras passaram, então, a fazer parte de alguns procedimentos
adotados na criação de narrativas OuBaPo. Todavia, esses tipos de intervenções também já
haviam sido utilizados nas restrições do OuLiPo, ainda que de maneira e com objetivos
diferentes. Groensteen entende que esses tipos de recursos que se caracterizam por

180
interferências diretas sobre o suporte livro aparecerão frequentemente nas restrições ao longo
do desenvolvimento conceptual do grupo. De facto, elementos transparentes, móveis, dobras e
recortes são parte integrante de algumas restrições, como já vimos nas definições das restrições
anteriormente apresentadas. Isso porque “agir sobre a imagem é muitas vezes interferir
solidariamente na organização do espaço e na natureza do suporte”. (GROENSTEEN, 1997,
p. 17.)

DIFERENÇAS ENTRE BD E ILUSTRAÇÃO PARA LIVRO: PROCESSO DE ADAPTAÇÃO DOS

EXERCÍCIOS OUBAPO
Quanto à adaptação do método OuBaPo para a ilustração para livros, devemos repetir o
caminho já percorrido e buscar as semelhanças entre a banda desenhada e o livro ilustrado.
Apesar de se tratar de uma linguagem também voltada para a reprodução gráfica em massa,
são as diferenças que designarão que tipos de adaptações deverão ser feitas e quais novas
possibilidades se mostrarão viáveis.
Uma das diferenças mais importantes, ao nosso ver, entre a ilustração para livro e a banda
desenhada pode ser encontrada no uso dos elementos paratextuais do livro. A integração da
capa, da folha de rosto, da ficha técnica e mesmo do índice, é por diversas vezes um contributo
significativo à narrativa no livro ilustrado, o que não se pode verificar na banda desenhada e
nem mesmo nas publicações da editora francesa L’Association (acessadas até o momento),
voltadas para os trabalhos do OuBaPo.
O uso dos elementos paratextuais contribuirem algumas vezes para a narrativa ao
apresentar ações, personagens ou objetos importantes que só serão introduzidos na história à
qual pertencem num momento posterior. Também se pode observar a narrativa começar mesmo
antes de o livro ser aberto, ou seja, desde a capa, a imagem já entra no tempo da narrativa.

(a) (b)
Fig 14 – a) capa de O Fim da Fila b) Capa e contracapa sem título

181
Um exemplo pode ser encontrado no livro do ilustrador brasileiro Marcelo Pimentel
intitulado O Fim da Fila (2014). No livro, a capa funciona, à primeira vista, como o início da
história. Trata-se de uma fila de animais que se põem em fila para serem pintados por um índio
que se encontra sentado com um pincel e um pote de tinta nas mãos. Mais tarde vamos perceber
que Pimentel cria uma narrativa sem fim, uma vez que na última página, um macaco olha para
dentro de um oco de uma árvore depois de uma chuva lavar as cores dos animais já pintados.
Esse oco na árvore nos conduz não para dentro do oco da árvore como era de se esperar, mas
para outro lugar. Uma área externa, que somente descobrimos ao fechar o livro, pois se trata
da quarta capa do Livro. Essa passagem fantástica conduz o espectador para o fim da fila que
se inicia na capa (uma vez que tanto capa quanto quarta capa são um mesmo desenho contínuo),
dando a entender que a história recomeçará.

Figura 14 – última Página de O Fim da Fila

Outra diferença entre o livro ilustrado e a banda desenhada é a maneira como a sequência
de imagens se dá tanto no tempo quanto na forma. Formalmente falando, a página da banda
desenhada é predominantemente vertical, enquanto no livro ilustrado o formato é bastante
variável.
Além disso, o número de imagens em sequência nas bandas desenhadas é mais extenso
quando pensamos no livro ilustrado que usa com bastante frequência a distribuição
imagem/texto - ou seja, a página dupla mostrando uma página com imagem e outra com texto
ao longo do livro com algumas variações. Mas há variações possíveis de composição do texto
tipográfico com a imagem, sendo outra bastante comum a interação da imagem na mesma
página que o texto, e este invadindo espaços do desenho deixados vazios de propósito para essa
interação.
Também podemos observar que o tempo decorrido de uma vinheta para outra nas bandas
desenhadas é variável. Em seu Desvendando os Quadrinhos (2005), Scott McLoud exemplifica
essas variações que tornam inevitável relacionarmos a banda desenhada com a narrativa

182
cinematográfica no que diz respeito a planos e à ideia de cortes e decupagem. Já no âmbito da
ilustração de livro, vemos que a distância temporal entre as imagens é maior, e o tempo da
narrativa é muitas vezes dado pelo texto, que também sugere os acontecimentos entre uma
imagem e outra. O livro ilustrado possui, de maneira geral, mais elementos visuais por imagem
do que as BDs, os quais o leitor pode percorrer para colectar dados e formar (ou ajudar a formar
no caso de haver texto) a história que está a ser contada.
Mais uma diferença é o facto de muitas das histórias narradas em álbuns de BDs — como
um todo, mas somente algumas das produzidas pelo método Oubapo — serem extensas, sendo
inclusive chamadas de novelas gráficas, ao contrário das histórias comumente narradas nos
livros ilustrados. É uma diferença importante devido ao facto de figurar entre as principais
restrições do Oubapo algumas que são mais bem aproveitadas em histórias maiores e, portanto,
não sendo totalmente aplicável no caso dos livros ilustrados.
Um aspeto fundamental da narrativa visual que se beneficia da extensão das novelas
gráficas é a repetição. Groensteen nos lembra da

“regra da não dispersão” que “nos ensina que quanto mais um fenômeno evolutivo (ou seja,
uma informação fracionada em várias imagens) é proposto, afetando somente um elemento do
conteúdo icónico, mais sua legibilidade depende da invariância do resto…” (1997, p. 25).

Ou seja, a perceção da mudança na imagem depende do que permanece inalterado na sequência.

Em suma, o livro ilustrado permite que se explore no campo da ilustração um caminho


experimental com uma complexidade poética maior, uma vez que abre espaço para a
contemplação do leitor relativamente à construção da história. Consequentemente, dispõe da
abertura de significado que uma experimentação narrativa visual nos parecem necessitar em
termos criativos.
Tendo definido as principais diferenças entre a BD e o livro ilustrado, passei então para o
estudo dos exercícios sugeridos pelo OuBaPo e de como estes poderiam então ser aproveitados
e de que maneira.

O LIVRO DE ARTISTA E O ÁLBUM ILUSTRADO

Fazer experiências com elementos rudimentares da própria confeção do álbum ilustrado, em


outras palavras, com a materialidade do livro, nos remete automaticamente a práticas
criativas associadas ao livro de artista. Trabalhar com a estrutura de encadernação e com a

183
própria anatomia do álbum (como por exemplo a dobra central do livro) como aspeto
obrigatório para se construir a narrativa é, numa análise preliminar, produzir um livro de
artista. A própria montagem da maquete de um álbum ilustrado já aproxima o ofício do
ilustrador dedicado aos álbuns ilustrados das atividades inerentes a livro de artista – obra
mais afeita a experiências.
Fizemos o levantamento de algumas referências que são momentaneamente
suficientes, mas que devem ser melhor entendidas para o desdobramento teórico da tese em
desenvolvimento

Vemos em LINDEN (2006) que a materialidade do álbum ilustrado vem sendo


explorada desde os anos de 1970 e 80 quando pequenas editoras começam a desbravar novos
caminhos, “incrementando o uso da fotografia ou de estilos pictóricos ousados, multiplicando
livros-imagem ou livros com estruturas não narrativas, ou ainda valorizando o caráter
literário, ao buscar uma poética comum ao texto e à imagem” (p. 19). Vemos nesta colocação
uma justificativa suficiente para abraçar as experiências que se apresentaram como rumo
desta investigação com a certeza de que pode, não só expandir nosso entendimento
plástico/gráfico na produção de imagens para álbuns ilustrados, mas também contribuir para
o alargamento da compreensão a respeito da construção de uma narrativa visual.
Enquanto, normalmente, no álbum produzido para comercialização a sua
materialidade está intimamente ligada à funcionalidade, a experimentação neste mesmo
campo permite o uso de materiais não convencionais ou não indicados para o manuseio do
público infantil, mas que, possivelmente, podem ser posteriormente incorporados ao leque
de opções, com a adaptação necessária. Como exemplo, tomamos o livro com páginas de
cartão prensado habitualmente usadas nos livros que LINDEN nomeia de “primeiras leituras”
(2006). Esse material permite o manuseio de um público ainda sem destreza necessária para
um folhear delicado. Pode-se expandir o uso deste mesmo material em álbuns experimentais
e mesmo adotar outros que atualmente não são empregados, como o papel corrugado.
Ainda sobre a questão do caráter experimental que pode ser empregado ao álbum
ilustrado, as publicações recentes vêm discutindo a expansão do público para o qual esses
álbuns são endereçados. LINDEN elenca algumas editoras que vêm discutindo essa questão e
aponta uma tendência para o “múltiplo acesso” de alguns títulos. Ressalta, porém, que a
adesão do público adulto ainda não se compara com a alcançada pela banda desenhada. A

184
respeito de experiências editoriais, LINDEN aponta o caso emblemático da editora L’Ampoule
e sua coleção Touzazimute:

Explicitamente concentrada no trabalho plástico, recusa qualquer distinção de público ou


idade: ‘A coleção é antes de tudo um espaço de expressão reservado aos ilustradores. A
palavra é da imagem! [grafia nossa] Essa imagem que se dirige ao público mais amplo e
muitas vezes só encontra lugar na imprensa ou na comunicação’. Esses títulos se libertam
de toda a narrativa, e o texto aparece neles muitas vezes em pequenos fragmentos,
materiais linguísticos ou plásticos reinvestidos em composições globais. E de fato
oferecem uma grande diversidade de estilos plásticos incomuns, sem dúvida
descortinando novos horizontes artísticos aos leitores. (p.30, 2006)

Esta dita “libertação da narrativa” é uma das propriedades do livro de artista (ou uma
das opções que o artista tem na hora de desenvolver seu livro). As definições do livro de
artista já foram exaustivamente abordadas em trabalhos académicos. Na dissertação de
mestrado de Inês Almeida, vemos uma rigorosa revisão acerca do tema, a qual, por enquanto,
usaremos como base para defini-lo.
A autora faz uma revisão que abrange a literatura acerca do tema no âmbito
internacional e no contexto teórico português e se alinha com outros teóricos que afirmam
não haver consenso na definição sobre o que é o livro de artista. Dessa forma, “o conceito (...)
aparece já na segunda metade do século XX estando, portanto, ainda tudo em aberto quanto
ao seu encapsulamento teórico.” (p. 34, 2012) ALMEIDA aponta que a definição mais aceita e
difundida atualmente vai no sentido de que o livro de artista seria “o suporte de um projeto
artístico, alcançando novos meios de expressão e rompendo com a própria noção do
conceito”.
O que está em jogo neste trabalho é antes usar o livro como suporte para um projeto
do que pôr o objeto livro em questão. Estamos explorando este objeto e sua construção como
forma de desenvolver o jogo narrativo para além das fronteiras somente da ilustração – mas
também com ela. Ele entra como mais um elemento que está sendo trabalhado e sujeito às
restrições próprias dos jogos de criação propostos.
De facto, a denominação livro de artista engloba alguns outros tipos de livros tais
como fanzines, os livres de luxe os livros fine press e os livros múltiplos, mas ainda assim não
são suficientes para o que produzimos. Para nós a definição que inclui nosso trabalho está no
trecho a seguir da dissertação de ALMEIDA:

185
(...) a grande diferença entre um livro e um livro-artístico está assente na
componente da leitura, que no segundo caso pede uma compreensão mais ativa do
objeto, tanto ao nível percetivo como ao nível cognitivo. O Livro de Artista em todas as
suas formas clama pelo conhecimento através dos sentidos e da razão, exigindo reflexão
e uma decifração dos elementos à disposição, revelando ao observador um artista para
além das palavras. Na verdade, um livro com estas características não pode estar sujeito
a limitações que impeçam ou deteriorem a mensagem, verificando-se uma correlação
simbiótica entre o conteúdo e o que contém.

No nosso caso, nos impusemos a necessidade de haver uma narrativa visual que faça sentido,
ou seja, que não seja abstrata no sentido narrativo. Ela também deve fazer uso de materiais de
desenho tradicionais e, por vezes, experimentamos misturas desses materiais na busca de um
resultado diferente. Os recursos digitais são acionados somente para a montagem dos livros,
diagramação e edição das imagens capturadas digitalmente.
Com essa definição de livro de artista, resta ainda a definição dos tipos de livro de artista.
Trata-se de dois tipos e alguns subtipos:

• Únicos, do qual são subtipos:


o livro alterado
o livro objeto
• Múltiplos

Os Únicos possuem a característica de poderem explorar mais o caráter escultórico do livro.


O Livro Objeto é o subtipo que tira proveito da estrutura física do livro e, na sua maior parte, são
objetos únicos e apresentados como uma escultura.
Podemos dizer que na nossa investigação o segundo tipo de abordagem – ou seja, os
Multiplos – é predominante devido ao facto de fazermos a montagem digital das ilustrações, o que
permite a reprodução ilimitada desses livros. Contudo alguns ensaios com o livro único ocorreram
dada a natureza experimental do processo.
Naturalmente será preciso aprofundar mais o entendimento a respeito do livro de artista. A
leitura de textos específicos e a investigação das fontes citadas por ALMEIDA serão parte do caminho
a seguir. Este caminho já conta com algumas referência importantes para o entendimento do livro de
artista. São elas: Fully booked : cover art & design for books, com ensaios de Katherine Gillieson e
Maria Fusco; Esthétique Du Livre D'artiste Une Introduction À L'art Contemporain, de Anne Moeglin-
Delcroix e Tarefas Infinitas : Quando a Arte e o Livro se Ilimitam, catálogo de exposição homônima na
Fundação Calouste Gulbenkian. A partir dessas referências e de indicações de nosso orientador

186
podemos entender melhor o livro de artista e saber como tirar partido de suas características
adequadas aos nossos objetivos.

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188
APÊNDICE

PRODUÇÃO ARTÍSTICA
Apresentamos aqui o resultado mais recente da produção artística ligada ao
processo descrito acima. Podemos dividir essa produção em Experiências Livres, que são
experiências com encadernações artesanais e com conteúdos não relacionados com nenhum
texto específico (mais alinhado com os livros de artista) e em Aplicação de exercícios
direcionados, nos quais trabalhamos com textos extraídos do livro Contos Tradicionais do
Brasil, de Luis da Câmara Cascudo e que foram ilustrados segundo exercícios adaptados do
grupo Oubapo.
Apresentaremos reflexões acerca do resultado e algumas imagens no corpo do texto
e não em anexo, por entender que as explicações próximas das imagens às quais se referem
tendem a ser melhor entendidas e também por essas imagens serem parte de uma retórica
(ainda que visual) que é parte integrante da produção da tese.

1- Experiências livres

1.1- Dobraduras

Neste exercício usamos a dobradura para permitir que a virada de páginas desse a
ideia de movimento. A criação de uma animação a partir deste exercício foi um caminho que
se impôs. Esta animação será exibida no dia da apresentação deste relatório.
Este objeto que foge à conceção tradicional de livro pode ser inserido como objeto
móvel no interior de um livro mais tradicional – ou seja, como um encarte – no momento que
seja mais oportuno à narrativa.

189
Essa outra dobradura apresenta o elemento surpresa uma vez que a trança da personagem
passa a estar dentro da boca do gato. Isso porque o desenho que se apresenta com o papel
dobrado é aproveitado mesmo depois de se desdobrar a folha. Num álbum com
encadernação tradicional a página que contiver esta dobradura poderá estar perfeitamente
integrada à encadernação.
1.2- Livro arquivador de memórias

Nesse tipo de encadernação, é possível costurar papéis avulsos dobrados ao meio. Parece-
nos que é uma técnica de encadernação cujo interesse reside mesmo no fato de ser única.
Seu manuseio é interessante por si só, pois sua lombada em harmónio torna-o maleável. É
nessa lombada que, aliás, são costuradas as folhas avulsas. No entanto, não sabemos quais
possibilidades ou interesse pode ter, pelo menos de imediato, para nossa investigação.

190
1.3- Livro harmónio

Nesse livro, as páginas todas estão conectadas, na verdade, trata-se de uma só folha
dobrada para lados opostos alternadamente. Nesse livro criamos uma imagem contínua em
que os personagens todos estão conectados fisicamente, formando uma só imagem que
perpassa todo o livro. Foi usada a técnica de colagem com um plástico autocolante
transparente, o que permite criar tons e cores mediante sua superposição. Esta experiência
revelou possibilidades de se criar um álbum que pode ser reproduzido por meios digitais, além
de ter sugerido uma nova possibilidade de exercício: a narrativa contínua em que as imagens
se conectam num cenário igualmente contínuo.

1.4- Livro Bandeira

191
Este livro guarda semelhança estrutural com o livro arquivador de memórias, uma vez
que ele também possui a lombada em harmónio. Neste caso, contudo, ao invés de costurar
as folhas em sua lombada, essas folhas são coladas em lados alternados da lombada
permitindo que as folhas se abram automaticamente para lados opostos, como mostra a
imagem acima. No entanto, essa abertura não é evidente à primeira vista.
Nesse caso não produzimos uma narrativa e sim trabalhamos com um retrato e
desenhos avulsos, produzindo um ritmo visual cromático e de relevo. Esse é um tipo de livro
que possui características mais escultóricas e até o momento não nos parece evidente seu
uso para narrativas visuais.

1.5- Livro carrossel

A imagem acima mostra apenas uma unidade das várias que formam este livro. No
entanto, produzimos apenas esta unidade. O que impede que se visualize o efeito geral desta
encadernação. Cada unidade possui duas camadas que impedem que o livro se abra por
completo. Uma vez que todas as páginas são abertas, o livro forma uma estrutura que lembra
um carrossel.
Essa técnica de encadernação cria uma limitação física pela forma que cada camada
deve ser recortada. Se a parte em que se encontra a dobra central for muito fina, a abertura
corre o risco de se partir. Contudo, esse livro nos lembra os livros pop-up, e este género não
nos interessa pelo momento, embora por si só possa ser considerada uma restrição criativa.

192
2- Aplicação de exercícios

Nesta parte, apresentaremos uma seleção de imagens representativas dos resultados


na execução de alguns exercícios. Começaremos pelo livro produzido a partir do conto O
Afilhado do Diabo. Posteriormente, apresentaremos alguns resultados referentes ao conto
Couro de Piolho. Ambos os contos mencionados foram extraídos do livro Contos Tradicionais
Brasileiros que é uma coletânea de contos populares registrados por Luís da Câmara Cascudo.

2.1- O Afilhado do Diabo

Para este álbum optamos por executar o exercício de iteração icónica parcial. O
exercício consiste em repetir os personagens numa mesma posição e alterar outros detalhes
como a vestimenta e o cenário. Aqui o caminho seguido foi que a repetição seria no âmbito
da composição da imagem, que teria sempre dois personagens em primeiro plano de frente
para o leitor.
A técnica escolhida, a monotipia, teve o intuito de contribuir para a construção de um
ambiente que remontasse ao contexto em que foi pintado o quadro Casal Arnolfini de Jan van
Eyck.
A paginação foi feita seguindo a proporção áurea na inserção do texto, fazendo
referência aos manuscritos iluminados da idade média, sendo o texto inserido sempre do lado
direito e a imagem do lado esquerdo. Essa escolha serviu como reforço para a monotonia da
composição geral. No entanto, essa estabilidade tem como contraponto um traço mais fluido
com muitas curvas e falhas próprias da monotipia.
As vinhetas posicionadas abaixo do texto na maioria das páginas da direita também
foram feitas em monotipia e sempre se referem a algum elemento ou personagem que fará
parte da página seguinte.

193
Apresentamos na imagem acima o storyboard. Procuramos sempre que possível
seguir a metodologia proposta por SHULEVITZ no que diz respeito à génese da narrativa para
que se possa repensar rapidamente cada página dupla sem se ater em detalhes do desenho
que poderão ser pensados uma vez resolvida a composição geral. O mesmo foi utilizado na
criação de uma maquete preliminar na qual mais detalhes foram adicionados ao desenho.
Abaixo vemos duas páginas duplas utilizadas na maquete criada a partir dos estudos
acima citados:

194
2.2- Couro de Piolho52

Neste conto, devido à forma como se desenrola sua narrativa, optamos por dividi-lo
em histórias menores. Cada uma dessas histórias foi contada utilizando um exercício
diferente. Sendo assim, vemos abaixo as histórias criadas a partir deste conto e seus
processos criativos correspondentes.

- A Cadeira e Adivinha
Optamos por incluir estas duas histórias em uma só encadernação, por possuírem
ambas reduzido número de páginas. Na primeira, vemos o momento de descoberta do piolho
pela princesa e sua posterior transformação em cadeira. Na segunda, vemos as sucessivas
tentativas dos pretendentes da princesa em adivinha de que animal era feito o couro da
cadeira.

52 O conto encontra-se transcrito nos anexos.

195
Em ambas as histórias criamos uma narrativa visual sem palavras, por si só uma das
principais restrições para a criação de narrativas visuais. Na primeira temos uma intervenção
na materialidade do álbum em que uma das páginas se desdobra para simular o crescimento
extraordinário do piolho. Já na segunda, decidimos utilizar um recurso das bandas
desenhadas para aplicar o exercício da Ordenação geométrica. Isto é, a história começa
utilizando todo o espaço da página dupla e exponencialmente vai sendo dividida pela metade,
até cada quadrado ocupar um espaço reduzido da página, num processo que leva 4 páginas
para ser concluído. Antes e depois desse processo de subdivisão do espaço há os momentos
de introdução e conclusão. Primeiro, por intermédio de uma bolha de fala contendo
pictogramas sabemos que quem souber de que é feito o couro casará com a princesa, e no
final descobrimos que ninguém conseguiu decifrar. Esta fala por pictogramas também é
utilizada por ilustradores editoriais em periódicos ou na arte de rua, e é uma ferramenta que
mantém a narrativa no campo estritamente visual.

196
Na primeira história optamos por adotar um estilo gráfico que desse a ideia de que os
personagens e os objetos fossem feitos com cabelos. A partir desta premissa começamos a
produzir ensaios com lápis e monotipia e, finalmente, chegamos à técnica adotada: tinta da
china com realces em tinta branca.

197
- Encontros e Magias

Nesta história optamos por trabalhar com o desdobramento de uma só folha de papel.
Nela os acontecimentos apresentam-se na página da esquerda que permanecerá sempre à
vista conforme se desdobra a página da direita. Dessa forma pode-se dizer que a página da
esquerda é contínua e a da direita só é relevante enquanto esta ainda está visível, fazendo
com que o verso, ao final do desdobramento, não contenha uma narrativa concatenada, ao
contrário do anverso.
Este método faz com que seja necessário um planeamento trabalhoso em que se deve
levar em conta a espessura do livro totalmente dobrado na composição do mesmo
totalmente desdobrado como vemos no exemplo das figuras abaixo. O storyboard também
assume o aspeto de maquete, uma vez que somente se pode pensar a composição levando
em conta a espessura do papel conforme já explicado.
Ainda não realizamos os ensaios para definir o estilo gráfico a ser utilizado neste álbum

198
A Academia de Viena e o desenho de mestres austríacos que vieram para
Portugal

Luís Augusto Fernandes Lyster Franco


Pós-doutorando - FBAUL

Resumo
Em finais da década de 80 do séc. XIX, e inseridos numa campanha do Estado Português de
contratação de professores estrangeiros para o ensino técnico, vieram para Portugal trinta
professores dos quais quatro eram de origem Austríaca e tinham frequentado a Escola de Artes
Decorativas ou a Academia de Belas-Artes de Viena. De entre eles destaca-se Adolf
Hausmann, vindo para Torres Novas e que trouxe consigo um importante conjunto de desenhos
realizados nas duas escolas referidas. Esta comunicação destina-se a dar a conhecer um valioso
núcleo de mais de oito dezenas de desenhos realizados em contexto académico, comparando-
os com outros de artistas como Gustav Klimt e os que foram posteriormente realizados por
Adolf Hausmann em território português.

Abstract
At the end of the 80's decade of the In the nineteenth century, and included in a campaign by
the Portuguese State to hire foreign teachers for technical education, thirty teachers came to
Portugal, four of whom were of Austrian origin and had attended the School of Decorative Arts
or the Academy of Fine Arts in Vienna. Among them is Adolf Hausmann, who came to Torres
Novas and brought with him an important set of drawings made in the two schools mentioned.
This communication aims to make known a valuable nucleus of more than eight dozen
drawings made in academic context, comparing them with others of artists like Gustav Klimt
and those that were later realized by Adolf Hausmann in Portuguese territory.

199
Em finais da década de 80 do séc. XIX, e inseridos numa campanha do Estado
Português de contratação de professores estrangeiros para o ensino técnico, vieram para
Portugal trinta professores (Costa, 1997, p. 39-40) dos quais cinco eram de origem Austríaca e
tinham frequentado a Escola de Artes Decorativas ou a Academia de Belas-Artes de Viena.
Dos restantes, nove eram italianos, oito suíços, cinco alemães, dois franceses e um belga (anexo
1).
Se por um lado nem todos se adaptaram e permaneceram em Portugal (Costa, 1990, p. 176), a
muitos acabaram por ficar e, alguns deles, deixaram marcas que ainda perduram, do seu talento
artístico e científico. A título de exemplo não podem deixar de ser referidos Ernesto Korrodi
(1870-1944), escultor decorador e arquiteto, já se encontra devidamente estudado e divulgado,
permanece ainda presente através do magnífico trabalho de restauro que realizou em diversos
monumentos, com destaque para o Castelo de Leiria, ou nas fachadas dos cerca de quatrocentos
projetos que realizou um pouco por todo o país (Costa, 1997); Leopoldo Battistini (1865-1936),
também já igualmente tratado (Lázaro, 2011), que após ter passado por Coimbra, onde
frequentou as elites intelectuais, acabou por se fixar em Lisboa desenvolvendo uma obra como
pintor e ceramista, encontrando-se esta hoje dispersa por museus e coleções particulares;
Giovanni Christofanetti (1860-?), cinzelador e ourives com marca registada entre 1889 e 1932
(Vidal, 1996, p. 14-15, 46), com peças realizadas para a Casa Real, continua a faltar ainda um
estudo que nos apresente a multiplicidade da sua obra; Joseph Füller (1861-1927), escultor que
se dedicou à cerâmica tendo, entre 1892 e 1896, sido o diretor artístico do Atelier Cerâmico
que funcionou na Quinta do Visconde de Sacavém. Foi ainda autor de dois manuais para o
ensino técnico, Manual do Formador e Estucador e Elementos de Modelação de Ornato e
Figura, o primeiro com duas edições e o segundo com três; Charles Lepierre (1867-1945),
professor de química e investigador, dele podemos destacar Estudo Chimico e Technologico
Sobre a Ceramica Portuguesa Moderna. Trabalho effectuado no Laboratorio Chimico da
Escola Industrial “Brotero” em Coimbra (Lepierre, 1899); Cesare Ianz (18?-1901), arquiteto
a quem podemos, entre outras obras atribuir a fachada do Coliseu dos Recreios, em Lisboa, e
a reconstrução do “Forte da Cruz”, no Estoril; e Nicola Bigaglia (1841-1908), que para além
de modelador e aguarelista, foi um arquiteto com obra dispersa por todo o território nacional,
tendo ganho em 1902 o primeiro Prémio Valmor com o projeto do Palácio Lima Mayer,
construído na Avenida da Liberdade, em Lisboa (Bairrada, 1988).
Dos professores austríacos a leccionar em escolas industriais (anexo 1), hoje todos
praticamente esquecidos, Joseph Füller foi o que mais se destacou. Talvez pelo seu carácter
introvertido, Adolf Hausmann (1858-1929) cujo talento e capacidades não ficavam atrás do

200
seu compatriota, acabou por produzir uma obra que raras vezes transpôs a porta do seu atelier.
Se por um lado não deixou obras suficientes que perpetuem o seu nome na memória das
gerações, honra lhe seja feita no que respeita à vertente pedagógica continuando o seu nome a
ser referido com alguma regularidade, associado ás marcas e influência que deixou em alguns
dos seus discípulos, nomeadamente no pintor Carlos Porfírio, um dos principais dinamizadores
do Futurismo em Portugal, e que a Adolf Hausmann ficou a dever o incentivo para enveredar
pela carreira artística.
Adolf Hausmann nasceu a 16 de Junho 1858 em Rückersdorf bei Friedland, situada na
Boémia austríaca, hoje designada Dolní Řasnice e pertencente à República Checa. Após ter
realizado os primeiros estudos na sua terra natal foi para Haida, hoje Nový Bor, completar o
ensino secundário. Em 1875 partiu para Viena onde frequentou a Escola de Artes Decorativas
e, em 1885 inscreveu-se na Academia de Belas-Artes cujos estudos concluiu em 1889, ano em
que respondeu ao concurso público para Professor de Desenho Decorativo em Portugal. Dos
vinte e sete opositores austríacos ao concurso, Adolf Hausmann foi um dos cinco selecionados.
Após ter permanecido em Portugal, como professor do ensino industrial, durante cerca de vinte
e sete anos [1], em 1916, como resultado da entrada de Portugal na Primeira Grande Guerra,
teve de fixar residência em Madrid e, após o armistício, não conseguindo reaver o seu lugar
como professor em Faro, regressou à sua terra natal, onde, em 13 de fevereiro de 1929, viria a
falecer num hospício, com setenta anos de idade (Franco, 2012, p. 37).
Ao vir para Portugal, entre outras coisas, Adolf Hausmann fez-se acompanhar dos
trabalhos e obras realizados em Viena, os quais, como de resto a totalidade dos seus bens, com
a sua expulsão em abril de 1916, acabariam por ser confiscados pelo Estado português e
vendidos em leilão. Dos mais de oitocentos desenhos a que tivemos acesso cerca de dez por
cento dizem respeito a trabalhos académicos destinados ao estudo do desenho de ornato (fig.
1), desenho do antigo (fig. 2), desenho de anatomia (fig. 3) e desenho de modelo vivo, nas
vertentes de nu (fig. 4), panejamento (fig. 5) e cabeça (fig. 6). Na realização dos seus estudos,
para além da observação direta a partir de modelos tridimensionais, Adolf Hausmann socorria-
se também da gravura e da fotografia (Franco, 2012, p. 169 e 179).
Ao analisarmos os desenhos de Adolf Hausmann percebemos que eles estão ao nível
dos desenhos dos melhores artistas da sua época. De um deles, Gustav Klimt (1862-1918), hoje
consensualmente considerado um dos melhores pintores e desenhadores do seu tempo,
Hausmann trouxe consigo três desenhos (Franco, 2012, p. 62). Entre 1876 e 1883 Klimt e
Hausmann foram colegas na Escola de Artes Decorativas de Viena e, felizmente, existem
alguns desenhos de ambos que, de alguma forma, estão relacionados. A título de exemplo

201
referimos duas académias de nu masculino em pé que, apesar de não representarem o mesmo
acto (pose) (Rodrigues, 1875, p. 20), foram realizadas a partir do mesmo modelo (Franco, 2012,
p. 59, figs. 17 e 18). Não estando o desenho de Hausmann datado, o de Gustav Klimt (Pauli,
2000, p. 13) não só ajuda neste aspecto como também nos dá a preciosa indicação de que se
trata de um desenho da Escola de Artes Decorativas e não da Academia. Outro exemplo
igualmente evidente da qualidade representativa de Adolf Hausmann são os desenhos de estudo
de botas (figs. 7 e 8). Todavia, se neste caso o desenho de Hausmann terá sido executado apenas
com uma finalidade de exercício escolar, o de Klimt consistiu num estudo preparatório para
uma pintura (Bisanz-Prakken, 2007, p. 238).
Adolf Hausmann utilizou trabalhos escolares realizados em Viena para aplicar em
projetos que concretizou em Portugal. Um bom exemplo é a sua Travessa Vénus e Psiché,
(Franco. 2012, p. 38 e 40).
Como foi referido, Adolf Hausmann à semelhança de outros artistas da sua época como
Gustav Klimt (Price, R., 2007, pp. 110-121), servia-se da fotografia como fonte para a
realização dos seus trabalhos. Como exemplo referimos o já conhecido projeto Édipo em
Colono (Franco, 2012, p. 180), que tendo também partido de estudos realizados em contexto
académico, acabou por ter continuidade no nosso país, numa pintura que utilizou um modelo
torrejano (Franco, 2012, p. 188 e 189). Facto curioso é o de um destes estudos ter sido
posteriormente utilizado, em 1927, cerca de seis anos após a última permanência de Hausmann
em Portugal, e dois antes da sua morte, para ilustrar um artigo de Adolfo Coelho, publicado no
número 352 do periódico ABC – Revista Portuguesa, dedicado à Páscoa (fig. 9).
Se por um lado o conjunto dos desenhos do projeto da Travessa Vénus e Psiché
conserva a linguagem plástica das escolas de artes vienenses, por outro, os desenhos do Édipo
em Colono revelam uma tendência que nos propomos a designar de “Realismo Expressivo”. É
nesta tendência que inserimos a maioria da série de retratos realizados em Torres Novas e os
autorretratos realizados em Portugal (Franco, 2012, pp. 137, 139 e 147 a 152). Se compararmos
os últimos autorretratos conhecidos (Franco, 20112, p. 137) com as fotografias mais recentes
de Adolf Hausmann em Portugal (fig. 10), e tivermos em conta a capacidade representativa
deste artista, facilmente concluímos que existiu uma clara intensão de acentuar aspetos de
caráter psicológico.

202
Notas

[1] Em 1889, Adolf Hausmann foi colocado na Escola de Desenho Industrial Victorino
Damásio, em Torres Novas. Em 1895 passou para a Escola Jácome Ratton, em Tomar e por
último, em 1900, foi transferido para a Escola de Desenho Industrial Pedro Nunes, em Faro,
onde permaneceu até abril de 1916.

203
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Vidal, M. G., & Almeida, F. M. (1996). Marcas de Contrastes e Ourives Portugueses. (Vol.
2). Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda.

205
Anexos

Anexo 1

206
205
Imagens

206
Fig. 1. Adolf Hausmann. Urna em cerâmica majólica, grafite e aguada, 46,2 cm x 35,3 cm, s.d.

207
Fig. 2. Adolf Hausmann, Desenho de estátua
com panejamento, carvão e lápis branco,
81 cm x 41,5 cm, 1879.
.

208
Figs. 3. Adolf Hausmann, Arqueiro
esfolado de Houdon, grafite e lápis
branco, 34,3 cm x 8,9 cm, s.d.

209
Fig. 4. Adolf Hausmann, Nu masculino de pé, voltado de costas e o braço direito
levantado, carvão, esfuminho e lápis branco, 55,4 cm x 39,9 cm, s.d.

210
Fig. 5. Adolf Hausmann, Estudo de panejamento, lápis negro e branco, 31,5 cm x
22,7 cm, s.d.

211
Fig. 6. Adolf Hausmann, Cabeça em escorço, grafite, 12,8 cm x 10,8 cm, s.d.

212
Fig. 7.
Adolf Hausmann, Estudo de botas e couros, grafite e lápis branco, s.d.

Fig. 8. Gustav Klimt, Estudo de botas para homem de pé, lápis e lápis branco, 45
cm x 31,5 cm, 1883. (estudo para o Retrato de Philipp Friedrich Christoph
Conde de Hohenzollern). Coleção Serge Sabarsky, Nova Iorque.

213
Fig. 9. ABC – Revista Portuguesa, ano VII, n.º 352, 14-04-1927, p. 10.

214
Fig. 10. Retrato de grupo dos professores, alunos e pessoal da Escola de Desenho Industrial Pedro Nunes, em
Faro (pormenor), prova fotográfica, 17 x 23, s.d.

215
As três cruzes – a forma, o conteúdo plástico e o semântico.

Marcelo Duprat Pereira


Universidade Federal do Rio de Janeiro – Belas Artes Resumo

Resumo:
O estudo da relação entre a forma e o conteúdo, segue sendo fundamental para o
desenvolvimento do pensamento visual nas artes. Os conceitos de ideia plástica e conteúdo
formal, derivados deste estudo, têm um significado bastante preciso para os artistas, mas
permanecem obscuros para a grande maioria dos observadores, que normalmente associam o
conteúdo de uma obra somente ao tema e a representação.
A análise que desenvolveremos da gravura de Rembrandt, intitulada “As três Cruzes”,
oferece um excelente estudo desta relação, pois através dela podemos indicar com clareza e
objetividade como o conteúdo plástico e abstrato das obras de arte, ou seja, os conteúdos que
emanam da própria forma, dialogam com os conteúdos semânticos ou narrativos, estes sim
ligados ao tema das obras e a seus significados.

Abstract:
The study of the relationship between form and content remains fundamental for the
development of visual thinking in the arts. The concepts of plastic idea and formal content,
derived from this study, have a very precise meaning for artists, but they remain obscure for
the great most of the observers, who usually associate the content of a work only with the
theme and the representation.
The analysis of Rembrandt's engraving entitled "The Three Crosses" offers an
excellent study of this relation, for through it we can clearly and objectively indicate how the
plastic and abstract content of works of art, that is, the contents that emanate in their own way,
dialogue with the semantic or narrative contents, these linked to the theme of works and their
meanings.

216
As Três Cruzes. A forma, o conteúdo plástico e o semântico.

Figura 1 - Rembrandt. As Três Cruzes. Gravura em metal. 38 cm x 45 cm, 1653.

Historicamente o pensamento do homem moderno, sua perspectiva e compreensão, é


marcado por uma visão singular das obras de arte. Com a proliferação e consolidação dos
grandes museus da Europa no séc. XIX, o público passou a ter acesso a obras de diversas
culturas e épocas, muitas delas desenvolvidas com base nos mesmos temas. Ao contrapor tais
obras, os estilos e soluções plásticos particulares de cada pintor, adquiriram um contorno que
antes se mostrava vago e difuso. Como parte desta mudança de leitura, tornou-se possível
perceber como os artistas animam suas formas com um forte poder expressivo, utilizando com
criatividade e simultaneamente os dois conteúdos que compõe as imagens; o formal, plástico,
abstrato, e o conteúdo iconográfico, também chamado de conteúdo semântico ou narrativo. O
conteúdo formal é do tipo que percebemos quando comparamos a suavidade feminina de uma
217
linha sinuosa e ondulante, por exemplo, com o conteúdo mais rígido e masculino que emana de
uma linha reta, com mudanças de direção bruscas. Já o conteúdo iconográfico está ligado ao
tema da obra e ao que nela está representado, como no caso da gravura que analisaremos, que
representa o tema da Crucificação.
Estas duas possibilidades básicas de manifestação do conteúdo, sempre mantiveram
uma estreita relação nas obras antigas. Elas sempre formaram uma unidade. Separar tais
conteúdos de uma imagem, tal como a perspectiva moderna propõe, nos oferece um acesso ao
que os pintores costumam chamar de ideia plástica, isto é, um conteúdo relacionado a forma em
si mesma, independente do tema escolhido.
Para percebermos objetivamente as características e a relação entre os conteúdos
formais e iconográficos, escolhemos analisar, não uma obra moderna (onde esta relação é
menos equilibrada), mas uma gravura de Rembrandt, intitulada As três cruzes. Nela podemos
verificar, não só até que ponto estes conteúdos estabeleciam um diálogo íntimo, como também
o caráter próprio de cada um deles.
Ao analisarmos a estrutura abstrata sugerida pelo tema da crucificação, desde sua
origem, percebemos que a cruz central, além do interesse intrínseco relacionado ao tema,
estabelece um ponto estático de grande peso visual. Rembrandt dinamiza a estabilidade deste
ponto através da articulação de um triângulo de luz que envolve praticamente toda a
composição, e cujo ápice encontra-se fora do campo visual. Este triângulo se relaciona
intimamente com o tema da obra, pois sugere um movimento de elevação da luz (o espírito de
Cristo) em direção ao céu invisível (local fora das vistas e do campo visual).

218
A base do triângulo, é articulada por
uma faixa horizontal de tons escuros,
localizados na borda inferior da gravura.
Formalmente, além de fechar e assentar o
triângulo, esta faixa relaciona-se com o eixo
horizontal da cruz. Do ponto de vista
iconográfico, ela sugere que a terra (o chão, a
base), durante o acontecimento, é
gradativamente dominada pelas trevas, e que o
único local por onde a luz pode fluir, é
justamente a parte superior da gravura.
A clareza explícita do triângulo, entretanto, é quebrada por dois acontecimentos que
lhe emprestam mais naturalidade. Em primeiro lugar, os cantos da base são quebrados pelos
pretos. Em seguida o ápice é quebrado pela luz, que forma um triângulo invertido, aproveitando
as direções compositivas dos braços de Cristo.

Agora observemos o grupo de


figuras da esquerda, que está representado
em contraluz. As personagens conversam
entre si, e estão posicionadas de costas para
a cena, como se dela não fizessem parte. A
independência deste grupo em relação à
cena, sugere, assim, a indiferença dos
homens que assassinaram o Cristo, como
também seu caráter obscuro (figuras em
219
contraluz). Plasticamente, este caráter é enfatizado pelo fato do grupo estar rompendo uma das
arestas do triângulo - forma que, como vimos, representa o próprio acontecimento de elevação
que fundamenta o tema.
No primeiro plano são apresentados
duas personagens que caminham para fora da
cena. Estas personagens, mesmo não sendo tão
escuras quanto o grupo da esquerda, também
são representadas em contraluz e também estão
posicionadas de costas para a cena. Parecem
ser as personagens mais indiferentes ao
acontecimento. Elas saem da cena,
encaminham-se para a ponte da extrema
direita, mas, pelo fato de estarem assentadas
em linhas que se dirigem para o buraco sob a ponte, são para lá conduzidas e somente com
muito esforço podemos imaginá-las se desviando deste destino obscuro.
Note-se ainda, a relação
articulada entre o conteúdo formal e
iconográfico nos outros dois crucificados,
claramente inspirada no diálogo travado entre
Jesus e os dois malfeitores no calvário.
Sabemos pela Bíblia que um deles duvida que
Jesus seja mesmo filho de Deus, enquanto o
outro nele acredita. Na gravura o personagem
da direita tem o corpo arqueado em direção à
luz, como se, em sua redenção, por ela fosse

tragado. O outro tem o corpo entregue ao abandono da descrença. O movimento de queda desta
segunda personagem é enfatizado pela articulação tonal. Uma mancha negra o atravessa, desce
pela lança da personagem a sua frente, que levanta a esponja, escorrega como uma serpente
pelas costas desta personagem, e acaba por se ligar ao grupo do primeiro plano. Vê-se assim
que, em uma obra como a de Rembrandt, o conteúdo formal e o iconográfico têm um vínculo
estreito. Rembrandt não conduz a expressão dramática da obra, representando o Cristo com um
rosto sofredor, ou os soldados com gestos e rostos agressivos. Através das formas, i.e dos
elementos plástico-abstratos, é que Rembrandt expressa o conteúdo da cena. Portanto, convém
220
lembrar que o modernismo, ao se afastar da representação naturalista, rompendo com a função
narrativa, nada mais fez do que silenciar o conteúdo iconográfico a fim de evidenciar o conteúdo
“formal” (já trabalhado por todos os bons pintores mais antigos). A iconografia e a narrativa,
pouco a pouco, foram reduzidas em prol de temas neutros, como naturezas mortas e figuras
isoladas, onde o conteúdo da imagem provém, sobretudo, de sua articulação formal.
Entretanto, a possibilidade de separação destes dois conteúdos, não é, na maior parte
das vezes, tão clara e simples como parece à primeira vista. Antes de tudo devemos ressaltar,
que escolhemos deliberadamente a gravura de Rembrandt por se tratar de uma obra onde esta
relação se mostra objetiva, e na qual cada conteúdo contribui e justifica o outro. Mas ao
considerarmos uma obra consagrada à supremacia do conteúdo formal, uma obra moderna que
minimize o conteúdo narrativo, como uma natureza morta por exemplo, ou mesmo uma obra
antiga onde esta relação não se mostre tão literária, como em um retrato, percebemos logo que
tudo se complica. O conteúdo formal tem um significado intraduzível, que na falta de termo
melhor chamamos precariamente de “abstrato”. Ao tentarmos definir o que ele expressa através
das palavras, violentamos o seu caráter próprio e irredutível.
Kandinsky, um dos pioneiros da arte abstrata, analisa a diferença entre o conteúdo
formal e o narrativo. Tomando as letras como exemplo, ele observa que o efeito que a letra
produz no observador é duplo: por um lado tem o efeito de um sinal que possui uma finalidade,
“a designação de um determinado som”1, e por outro, o efeito causado pela forma da letra em
sim mesma, ou seja, das linhas isoladas, curvadas desta ou daquela maneira. Neste sentido o
efeito da letra é duplo. Kandinsky observa:

1. Ela age enquanto signo dotado de uma finalidade.


2. Ela age primeiro enquanto forma, depois enquanto ressonância interior desta
forma, por si mesma e de maneira totalmente independente. 2

Ao retirarmos da letra sua função de significação, ela continua nos transmitindo


determinada sensação. É justamente este poder expressivo da configuração em si mesma que o
abstracionismo tentava evidenciar. Ao retirar da forma-letra seu significado, a abstração evita
enfraquecer a forma com uma finalidade prática. Mas o que é uma “finalidade prática”? Na letra
vimos que é o “designar de determinado som”. No caso de uma gravura, pintura ou desenho,
esta finalidade é usualmente designada como sendo a representação (designação) de

1
Kandinsky, Wassily. Um olhar sobre o passado. P.125
2
Idem, p.126
221
um objeto ou ícone, que funciona como agente de uma narrativa – isto é, utilizar a dinâmica
abstrata das linhas, tons e cores, não por si ou em si, mas para uma representação determinada.
Em sua reflexão, entretanto, Kandinsky não rejeita a representação do objeto, como
seria de se esperar. Pelo contrário, ele adverte que a possibilidade de desdobramento da imagem
em conteúdos distintos, o formal e o iconográfico, por um lado liberta a forma abstrata de
qualquer função estranha a própria formulação estética (ele a chama “artística”), mas, por outro
lado, liberta também a representação do objeto de qualquer preocupação formal. A
representação do objeto, que muitas vezes servia de mero pretexto para a criação formal, ganha
assim uma nova autonomia. Isto está indicado no mesmo texto anteriormente citado. O trecho
é um pouco longo, mas devido a sua importância visionária em relação a muitos dos
movimentos que viriam depois, vale a pena transcrevê-lo:

O realismo máximo, que por enquanto só faz despontar, porfia em eliminar do quadro
o elemento estético exterior afim de expressar o conteúdo da obra pela simples
(inestética) reprodução do objeto em sua singeleza e nudez. O invólucro exterior do
objeto - assim concebido e fixado no quadro - assim como a concomitante eliminação
da importuna beleza convencional, liberam mais seguramente a ressonância interior
das coisas. Quando o elemento ‘estético’ se vê reduzido ao mínimo, é precisamente
por intermédio deste invólucro que a alma do objeto se manifesta com mais vigor;
então, a beleza externa e lisonjeira já não vem desviar dele o espírito.
É isso só é possível pois somos cada vez mais capazes de entender o mundo como ele
é, portanto sem acrescentar-lhe qualquer interpretação embelezadora. O elemento
estético reduzido ao mínimo deve ser reconhecido como o mais poderoso elemento
abstrato.
A este realismo opõe-se a abstração máxima, que porfia em eliminar de uma maneira
aparentemente total o elemento objetivo (real) e procura reduzir o conteúdo da obra
em formas ‘imateriais’. Assim concebida e fixada num quadro, a vida abstrata das
formas objetivas reduzidas ao mínimo, com a predominância evidente das formas
abstratas, revela o mais seguramente possível a ressonância interior da obra. Assim
como o realismo reforça a ressonância interior pela eliminação do abstrato, a abstração
reforça essa ressonância pela eliminação do real.3

As palavras de Kandinsky esclarecem a ruptura que ocorreu no modernismo entre a


abstração e a representação dos objetos, assim como entre os conteúdos plásticos (abstratos) e
semânticos (provenientes do objeto).
Não há regras para a conquista ou o emprego destes conteúdos da imagem. Um pintor,
gravador ou desenhista, pode negar um ou outro (como no modernismo), pode adaptar um
conteúdo ao outro (como no caso da gravura de Rembrandt), ou ainda estabelecer contradições
entre estes conteúdos - por exemplo construindo a cena dramática de uma batalha, com tons

3
Idem, P.124
222
suaves, ou uma cena campestre e suave com cores gritantes, cheia de contrastes tonais, agressiva
em termos plástico-abstratos. O que importa aqui, não é tanto o domínio dos meios de expressão
no sentido de os orientar para um determinado resultado, mas sim a clareza e criatividade com
que o artista lida com estes conteúdos, próprios da linguagem do desenho.
Portanto, a nossa leitura não visou induzir ao uso de relações racionais e metódicas
entre os dois conteúdos da imagem, relação por sinal rara na história das artes plásticas. Nossa
análise visou somente, pautar as diferenças entre estes dois conteúdos a fim de esclarecer o
poder expressivo do conteúdo formal nas artes plásticas, tornando mais acessível e concreto o
que os pintores costumam chamar de “idéia plástica”.
Cabe aqui, adiantar uma questão usual. É comum a quem acompanha este tipo de
análise formal levantar a seguinte objeção. Será que o pintor pensou mesmo nesta estrutura
plástica ou abstrata? Não estaríamos forçando uma leitura moderna?
Questionar se o artista pensou, ou não, em uma estrutura de composição ao elaborar
uma gravura ou um quadro, é uma atitude corriqueira. Tal questão é natural quando se parte do
pressuposto de que o fazer na pintura é uma atividade estritamente racional (neste caso o pintor
pensou) ou, de outra ordem, uma ação intuitiva, emocional (neste caso o pintor não pensou).
Entretanto, a pergunta traz, consigo, um pré-conceito velado. Pressupõe que, no primeiro caso,
o artista racional, antes de iniciar seu trabalho, constrói em sua mente uma imagem da forma
que irá realizar (o fazer fica, deste modo, relegado à realização técnica desta imagem). Por outro
lado, no caso do artista emocional, credita-se um fazer puramente casual, intuitivo, desatento a
estrutura abstrata da imagem (como se esta fosse uma mera casca, em si mesma mero indicador
de um sentido ou expressão). A pergunta não deixa margem para compreender
o fazer de outra maneira.
No nosso exemplo é relativamente claro que Rembrandt tinha como ponto de partida
da idéia plástica a estrutura de um triângulo de luz. Mas, se a gravura de Rembrandt se limitasse
à realização desta idéia, ela não passaria de uma tosca ilustração. Entretanto, ela é mais do que
a realização de um esquema racional pré-estabelecido, assim como mais do que uma estrutura
casualmente encontrada. Como, então, podemos superar uma oposição que apenas nos impede
o acesso ao pensamento próprio do fazer criativo?
Para pensarmos o fundamento da gênese de uma imagem, não há melhor acesso do
que a palavra dos próprios artistas. No texto de Paul Klee, intitulado Filosofia da criação,
encontramos uma passagem esclarecedora. Klee observa.

223
[...]a marcha para a forma, cujo itinerário deve ser ditado por alguma necessidade
interior ou exterior, prevalece sobre o fim terminal, sobre o final do trajeto. A
orientação determina o caráter da obra consumada. A formação determina a forma e é,
em consequência, predominante. Nunca, em nenhuma parte, a forma é resultado
adquirido, acabamento, remate, fim conclusão. Há que concebê-la como gênese, como
movimento, seu ser é o devir, e a forma como aparência não é mais do que uma maligna
aparição, um fantasma perigoso. Boa é, portanto, a forma como movimento, como
fazer; boa é a forma em ação. Má́ é a forma como inércia fechada, como detenção
terminal. Má́ é a forma da qual alguém se sente satisfeito como de um dever cumprido.
A forma é fim morte. A formação é vida. 4

Klee pensa o fazer como uma gênese, um acontecimento, em meio ao qual a


sensibilidade do artista se desdobra e elabora. Conceber a forma como gênese, implica em negar
a idéia como algo pronto e acabado na mente do pintor, negar que a forma seja imaginada
previamente antes do artista desencadear o processo de formação. Tal indicação esclarece que
a composição das relações plásticas, forma-se durante o caminhar do pintor.
Pelas observações anteriores, percebemos que não se trata nem de imaginar que o
artista meramente realiza uma imagem previamente formada em sua mente, nem, por outro
lado, de supor que, em seu fazer, não há nenhum pensamento. O artista inicia seu trabalho com
uma idéia que lhe serve de ponto de partida, mas durante a gênese da imagem ele continua
atento, escutando as relações plásticas de cada elemento acrescentado. O essencial não é
estabelecer uma composição harmônica e bem equilibrada, como imaginam muitas vezes os
iniciantes, mas perceber como estas relações, que compõe o corpo da obra, a animam com
determinado sentido. A palavra "sentido", deve ser compreendida aqui, em seu significado
preciso. É um intento, orientação, direção, rumo. Nesta acepção, se fundamenta precisamente
naquilo que ela não é, ou seja, no que almeja, procura. Trata-se, portanto, de uma atitude, que
procura pela expressão e sentido da obra a cada momento de sua formação.
O conceito de ritmo é, neste ponto, a pedra de toque para se compreender o pensamento
desencadeado durante o fazer. Toda arte é a instauração de um ritmo de elementos concretos,
reais, racionalizáveis, que, em si, não têm expressividade alguma. A literatura e a poesia
utilizam palavras cujos significados estão empilhados nos dicionários. Mas, somente ao
engendrá-las no ritmo da narrativa ou no ritmo poético, elas podem ultrapassar seu significado
estrito. A música utiliza notas musicais, a arquitetura volumes e espaços, a dança os gestos, a
escultura volumes, a pintura e o desenho os elementos formais, linha, tom e cor. Nenhum destes
elementos tem em si mesmo um valor artístico. É somente a partir da instauração de um ritmo

4
Klee, Paul. Theorie de l’art moderne. p.60.

224
que estes elementos concretos se animam para nós com algo que os ultrapassa. O ritmo é uma
correnteza que nos envolve, nos conduz e mantém em suspenso, na expectativa do que ainda
está por vir. Nem totalmente casuais, nem tampouco racionais, os ritmos são como as pulsações
vivas de cada linguagem.
A estrutura plástica, é uma articulação de ritmos que expressam um sentido na maioria das vezes
só traduzível visualmente. A imagem na arte não é um mero sinal de um determinado conteúdo.
Ela é um símbolo, ou seja, algo cujo significado não é unívoco. A rigor a idéia plástica não vem
antes do ritmo, nem este precede aquela. Ambos são uma e a mesma coisa.
Nosso objetivo foi, portanto, desenvolver uma leitura do processo de criação das obras
a fim de resgatar a sua abertura, e não no sentido de tentar obter algum método de controle
técnico do fazer, da expressão ou da leitura. Trata-se simplesmente de perceber as relações
articuladas, e, com isso, resgatar a mesma atitude de escuta atenta, própria do criador diante do
processo de formação de sua obra.
Com esta ressalva podemos voltar à gravura de Rembrandt, e verificar como esta obra
ultrapassa uma estrutura previamente imaginada ao instaurar um complexo de ritmos, e logo de
sentidos, que, na falta de melhor conceito, podemos caracterizar como transcendente. Levando
mais a fundo a nossa análise, percebemos que nada nesta gravura é casual. Buscando estabelecer
relações rítmicas, Rembrandt dá sentido a
cada elemento acrescentado. Observemos
que há um ritmo descendente que comanda
o grupo da direita. Vários recursos são
utilizados para obter este fluxo. Temos
cinzas médios, que quebram a luminosidade
do grupo, assim como diversas direções
lineares. É provável que Rembrandt
estivesse buscando um contra-ritmo ao
triângulo regente, similar ao desenvolvido
pelos braços de cristo, que, como vimos,
formam um triângulo invertido.
Neste caso, se nossa suposição está correta, devemos buscar o outro lado do triângulo
sugerido. De fato, encontramos alguns elementos que se projetam no sentido que buscamos,
que acabam por criar um contra-ritmo ao triângulo principal de luz. No todo sentimos que há
um sentido geral que converge para as duas personagens do primeiro plano, emprestando a elas um peso
visual equivalente ao de Jesus, ou dos outros crucificados.
225
O destaque destas personagens
ocorre, em parte, devido as forças visuais
que convergem para elas, mas, também,
pelo fato delas manterem certo contraste
com o contexto na maior parte de seu
contorno. Elas se fundem somente com o
chão, mantendo certo contraste com o
fundo luminoso.
Isso nos faz perceber que em
relação à tensão plástica entre a forma e o
fundo das figuras, existe uma hierarquia e
um ritmo muito cuidadoso. A imensa
maioria das personagens se funde total ou
parcialmente com o fundo ou com as
outras personagens em seu entorno. São
figuras claras sobre fundo claro, e escuras
sobre fundo escuro, que criam uma tensão
muito leve entre a forma e o fundo.
Percebemos isto com mais clareza,
quando tentamos acompanhar o contorno
das personagens. A exceção fica reservada
ao próprio Jesus, que é representado
integralmente como uma figura clara
sobre um fundo escuro, enfatizando o
caráter ao mesmo tempo luminoso,
destacado, e dramático, desta
personagem.
Vejamos agora, as direções que
convergem para a personagem ajoelhada.
Há um forte ritmo de pretos, fluindo para
dentro desta personagem. A perna do
cavalo, enfatizada devido ao

226
contraste que estabelece, rompe este fluxo tonal, de claro escuro, ligando-se a personagem do
primeiro plano.
Este movimento de entrada
dos pretos, na forma de uma cunha,
gradativamente se amplia pelo campo
compositivo. Estas formas são incisivas,
como dentes, como setas. Nos
empurram de um canto para o outro, de
uma forma para a outra, em uma
agitação que traduz plasticamente a
angústia do momento. Animam o todo
da gravura e quebram a simetria geral,
estável, para a qual tenderia a ideia
inicial.
O leitor que acompanhou esta análise até aqui, começa a perceber que as
dinâmicas e ritmos articulados, assim como seus sentidos, parecem não ter fim. Realmente,
podemos indicar certas idéias plásticas regentes, mas uma obra como esta, uma obra de arte,
alcança a estatura de uma verdadeira matriz de ritmos plásticos, que parecem se perpetuar ao
infinito. Poderíamos indagar: qual o sentido da personagem deitada de bruços sobre o chão
iluminado? Ou do cachorro a seu lado? O que dizer das sombras com forma flamejante na
ponte? Que segredos se escondem no ziguezague das sombras do lado esquerdo da gravura?
Muitos dos ritmos que foram analisados, devem, de fato, ter sido deliberadamente
construídos por Rembrandt. É certo que outros surgiram espontaneamente da própria gênese da
imagem, sem nenhuma premeditação, casualmente gerados pela própria lógica interna da obra.
Mas o fundamental, é percebermos que racional ou intuitivamente, estas relações estão
concretamente instauradas na forma da obra, e isto não se deve a algum mérito nosso, como
bons intérpretes, mas sim da própria obra. Só as obras de arte conquistam esta abertura.
Se nos aproximamos um pouco do local onde lastimavelmente a lógica da análise se
esvai, se chegamos perto de um delírio da razão, onde a palavra não dá mais conta do sentido
plástico, então, alcançamos nosso objetivo! Podemos mesmo concordar com o pintor Eugene
Delacroix quando este afirma:

227
Ticiano, se calhar, não sabia como iria acabar os seus quadros. Com Rembrandt devia
suceder muitas vezes o mesmo. Os seus entusiasmos excessivos, resultam menos da
determinação da vontade, do que dos seus constantes tateamentos. [...] 5

O fazer artístico não é, portanto, resultado de uma mera determinação da vontade,


atitude racional e deliberada, mas sim, de um tatear em busca de um sentido que é desconhecido,
posto que procurado durante o processo de construção da imagem. Paradoxalmente, tal atitude
é a da espera do inesperado. O criar uma ação, cri-ação, que ao ser desencadeada, permanece
tateando ritmos, na espera de que a imagem se abra e revele de maneira surpreendente, para o
próprio feiticeiro que a criou.

5
Eugène Delacroix, Diário p.97

228
Referências Bibliográficas.

DELACROIX, Eugène. Diário (extratos). Lisboa: Editorial Estampa, 1979.


KANDINSKY, Wassily. De lo espiritual en el Arte. Barcelona: Barral,
1978.
Olhar sobre o passado. São Paulo: Martins Fontes,
1991. KLEE, Paul. La pensée créatrice. Paris: Dessain et Toira, 1980.
. Theorie de l'arte moderne. Genéve: Gonthier, 1971.

229
Um caso especial: o conhecimento da atitude do esquisso considerando os desenhos
produzidos por indivíduos com a síndrome savant.

Miguel Bandeira Duarte


Prof. Auxiliar EAUM
Investigador Lab2PT

Resumo

O exercício de comparação de características entre desenhos, que correntemente se pratica no


processo de investigação, permite encontrar abordagens inusitadas que visam esclarecer as
questões que lhe são prementes. O presente artigo tem como objetivo comparar representações
comuns do esquisso com os desenhos produzidos pelos indivíduos com a síndrome savant. No
paradigma do desenho de observação as particularidades gráficas são similares esclarecendo a
relação entre observação, memorização e representação, entre a perceção direta e a utilização
de estruturas simbólicas no registo. Esta correlação, estabelecida no processo de investigação
para a tese de doutoramento, não foi presente no seu corpo de texto. Questiona-se desta maneira
a pertinência do desviar da atenção para especialidades temáticas disciplinares secundárias ao
Desenho.

Abstract

The comparison of qualities between drawings, currently practiced in the research process,
allow us to find unusual approaches that seek to clarify the main issues. This article aims to
compare common sketches with the drawings produced by individuals with the savant
syndrome. In the observation drawing paradigma, similar graphic qualities clarify the relation
between observation, memorization and representation, between the direct perception and the
use of symbolic structures.

230
Nos estudos da psicologia, sobre desenho e desenvolvimento cognitivo, surgiu nos anos
70-80 do século passado um conjunto de trabalhos sobre desenvolvimento anómalo baseado
na observação de crianças mentalmente retardadas (Selfe, 1985, 135) com síndrome de Down.
J. Langdon Down (1887) designou por “idiot savant” os indivíduos com baixo coeficiente de
inteligência, mas que demonstravam um desenvolvimento extremo em certas áreas,
nomeadamente na memorização de texto. O´Connor, N. e Hermelin, B. (1987) e recentemente,
Darold A. Treffert (1989, 2013) reavaliam as circunstâncias típicas a um individuo savant
referindo que nem todos os autistas são savant e que nem todos os savant são autistas. Com
efeito, este desenvolvimento especial de competências pode vir a ser adquirido por alterações
físicas e neurológicas do individuo, como pode ser uma manifestação natural da genialidade
(prodígio). Neste sentido a designação mais recente para a desordem é síndrome savant,
reconhecendo que o baixo coeficiente de inteligência se deve, por vezes, à falta de adequação
dos testes realizados. Enquanto o prodígio está definitivamente associado a um elevado
coeficiente de inteligência visual e verbal, a capacidade do savant é independente do QI.
No entanto, a razão para abordar este assunto deve-se ao facto de observando as
representações (desenhos), ainda hoje exemplares sobre a síndrome savant, poder encontrar-se
traços de semelhança com as características do esquisso. Isto é, se ao nível do registo gráfico
as semelhanças forem próximas procura-se depreender através da análise realizada pelos
clínicos certas predisposições para a realização de um esquisso.
Note-se que o resumo realizado por Lorna Selfe (2011, 173), que destaca as
características particulares entre o individuo autista savant e o indivíduo artisticamente dotado,
apesar de salientar em comum uma memória visual superior, perceção visual avançada e uma
capacidade de análise visual elevada, as restantes características são marcadamente opostas.
As dualidades enunciam-se: coerência central fraca/boa coerência central e funcionamento
executivo; foco no detalhe (estratégia de desenho local por adição de secções) / conceção global
sem habilidade na segmentação; aparente segmentação mental espontânea com capacidade
superior para evocar fragmentos/sem estratégia de proximidade, o desenho tem início pelos
contornos exteriores. No entanto aquilo que motiva esta comparação além das características
comuns é efetivamente o entendimento da atenção ao detalhe, que é descrita, que não coincide
com um detalhe efetivo no sentido do pormenor, mas no da parte.
Se é possível descrever uma situação ideal para o registo do esquisso, ele teria início no
geral evoluindo para o particular, no entanto o detalhe aqui proposto parece resultar do
seccionamento de uma vista, por interesse, de forma a organizar a informação tornando-a mais
percetível. Neste caso esta organização não está relacionada com um processo de estrutura e

231
correção do desenho, mas com a experiência visual. Portanto, sem a noção do valor social do
desenho e provavelmente do conceito de imagem, é permitido ao savant uma dimensão
processual menos comprometida e direta na relação entre observação e representação. Apesar
de ficar a ideia que o desenho é um somatório de partes, como é visível nos vídeos de Stephen
Wiltshire, também pode verificar-se que a representação dessas partes não segue uma lógica
de construção por continuidade do gesto e da área (threading), mas de disseminação de marcas
pela área. O processo construtivo é, desde o início, de preenchimento circulando o instrumento
por toda a área.
Antes de observar os desenhos a atenção recai sobre a especificação que L. Selfe realiza
da experiência visual do savant:
“The autistic subjects, however, appear to be attending to non-symbolic
aspects of visual experience. Objects are truncated or partially occluded and
represented without their defining characteristics, as seen from one fixed
viewpoint. This type of drawing is necessarily autistic and asocial in so far as one
single viewpoint is possible only to one single viewer at one fixed spot. It is
therefore hypothesized that the autistic child, in drawing, records objects in his
optic array more as patterns – edges, contours and shapes – rather than as
representatives of classes or symbols.” (Selfe, 1985, 150)

Destaca-se a possibilidade do desenho se realizar alheado de uma dimensão simbólica


que lhe é inerente. Uma ideia já referida sobre a tradução direta da forma sem recurso a um
enquadramento concetual que transforme de forma evidente a expressão. Comparativamente
não existe uma dimensão simbólica correspondente a indivíduos da mesma idade
(principalmente quando os sujeitos são crianças), no entanto o que é possível compreender é
que se tratando de uma conjuntura percetual privilegiada, o domínio simbólico estará
condicionado por um sentido analítico desenvolvido. Por outro lado, o tipo de representação
através de padrões /texturas parece coincidir com um entendimento do estímulo visual
independente da dimensão simbólica. Será mais natural traduzir o observado através de um
conjunto de arestas contornos e formas diversas correspondentes a partes dos objetos
visualizados que através de formas simbólicas exigentes de uma construção mental divergente
da experiência visual. Aqui o problema interpretativo reside no facto de o desenho final ser
observado enquanto objeto que responde a uma imagem com contornos fotográficos com dois
desvios: um onde se entende que existe uma comunicação sendo o desenho mediador dessa

232
intenção expressiva e outra onde se traduziu uma experiência maioritariamente visual pelo
interesse suscitado pelo processo de tradução.

Fig. 1 StephenWiltshire (9 anos) Fig. 2 StephenWiltshire (11 anos)


Royal Albert Hall, 01011983/ London Alphabet - E for Eros, 23041985

Os dois desenhos escolhidos de Stephen Wiltshire apesar de não revelarem a ordem do


seu processo de registo demonstram uma grande capacidade de síntese e de representação
através da estrutura de organização dos elementos, tanto no edifício (objeto) como na rua
(espaço). Estes desenhos, que terão sido realizados a partir da memória de uma experiência no
local, mostram como os diversos elementos que compõem os objetos se organizam
tipologicamente e, ainda, como os ritmos de repetição se distribuem no espaço do suporte. Em
ambos o sentido de proporção é elevado; a correção da perspetiva natural denuncia a posição
do observador; e há alteração na dimensão e na qualidade das formas na profundidade.
Os desenhos aqui apresentados são distintos dos seus registos mais recentes que
demonstram uma evolução ao longo de vários anos de experiência. Atualmente, os seus
trabalhos são mais detalhados, com mais informação na caracterização das formas, mais
complexos e exigentes na escolha dos pontos de vista e motivos de interesse. Porém são
demonstrativos de uma relação entre simplicidade, economia, seletividade na atenção, clareza
de organização e precisão no registo, sem grande espaço para correção ou hesitação. Em ambos
os casos as linhas não encerram formas de maneira determinada, notando-se sobreposições ou
cruzamentos de linhas e, também, traços que não chegam a tocar na junção tipo T.

233
Fig. 3 Simon (6 anos), caneta de feltro. Fig. 4 Simon (7-9 anos), lápis. Desenhado
Desenhado da memória. da memória.

Os desenhos de Simon são diferentes acentuando o carácter textural através do traçado


nem sempre bem organizado. Na primeira imagem é percetível uma correção perspética para o
edifício, no entanto os elementos que o compõe não estão hierarquicamente organizados nos
espaços. Isto é, a disposição de elementos secundários é pouco coordenada em relação à forma
que os contém. As formas utilizadas são fortemente abstraídas reservando apenas uma leve
referência relativamente à caracterização e ao detalhe desses objetos. Sobretudo ressalta o
caracter livre do posicionamento das linhas do telhado ainda que a sua orientação espacial
pareça absolutamente correta. A segunda figura é um desenho de memória de uma imagem ou
pintura de George Lowe. Neste caso a base do trabalho já é uma síntese bastante organizada e
simplificada, no entanto o desenho demonstra o foco da atenção tanto na dinâmica dos planos
dos telhados como na repetição das aberturas nas fachadas que figuram agrupadas segundo um
modo de produção mais eficiente.
Nos casos apresentados há uma conjuntura que tendencialmente se perde. Por um lado,
são desenhos iniciais que apesar de mostrarem alguma prática refletem a natural imaturidade
do conjunto das experiências, daí também a ‘frescura’ que possibilita a relação com as imagens
do esquisso. Por outro, o treino do desenho é algo pessoal ainda longe de uma crescente
socialização e desenvolvimento de outros mecanismos de expressão, além da expressão gráfica.
O desenvolvimento cognitivo é fruto de uma dedicação continua à prática do desenho como a
forma de expressão que parece obter resultados mais efetivos. Lorna Selfe (1985, 152) lançou
uma proposição que tal desenvolvimento, relativo a uma apurada representação fotográfica, se
deve a uma dificuldade de transposição entre linguagens, de mobilidade mental, que acentua o
foco na modalidade visual/espacial em lugar da modalidade temporal/verbal própria da
comunicação oral e escrita.

234
No entanto o ponto mais interessante desta prática será a relação entre a perceção e a
memória a um nível que permite entender uma utilização bastante direta e pouco mediada
através de mecanismos de reflexão sobre o processo. O sentido de proporção, o correto
dimensionamento, a oclusão e a diminuição do tamanho e gradação da forma na profundidade,
não são processos utilizados como fórmula para obter um desenho correto, mas de maneira
natural a partir da avaliação relativa dos elementos que compõe a vista. Supõe-se que devido a
um baixo ou ausente sentido crítico não é necessário ‘evocar’ mecanismos que sustentem o
registo e este estado de baixa inibição permitirá um acesso à memória menos condicionado
quer no armazenamento quer como fonte.
De facto, O’Connor e Hermelin (1987) levantaram a questão sobre a baixa capacidade
para usar a memória na recognição e escolha entre alternativas de formas abstratas, não
realistas, quando comparado com a elevada capacidade de cópia e reprodução a partir da
memória. Apontaram, como possível, uma relação de independência entre programas motores
gráficos codificados e a capacidade para utilizar a memória visual para determinada forma: “A
particular visual input may evoque a motor representation directly, without recourse to a
visually stored memmory of the required motor act. (316)”. Atendendo a que estes indivíduos
praticam as competências gráficas a partir de imagens próximas da realidade, será, por ventura,
mais complexo entender primitivas e outras configurações abstratas. No entanto, a dificuldade
para conceptualizarem a informação para que a possam utilizar como esquema, permite o
estabelecimento de uma relação direta e eficiente entre fonte/estímulo externa/interna
(memória) e programa motor gráfico de resposta.
Parte da aprendizagem do desenhador consiste em transpor o sistema simbólico infantil
através da observação e representação da realidade. Através da observação, medição e
certificação, o sistema simbólico é substituído, revisto ou adormecido por um outro que permite
obter uma relação quase fotográfica com o que observa. Avaliando o processo do idiot savant,
pode depreender-se que no que diz, desse processo, respeito ao esquisso consiste no
bloqueamento do sentido crítico e na aceitação de uma matriz flexível variável segundo o
contexto. Isto é, a fiabilidade dos resultados anteriores permite a não utilização de sistemas de
representação que permitiram o processo de transição, como o desenho diagramático e a
utilização da perspetiva. Processos que em si comportam uma dinâmica cognitiva específica e
pesada. Quanto às habilidades motoras, acompanham esta transição registando a eficiência das
diversas utilizações e criando os programas motores gráficos para aplicação conforme a

235
diversidade do estímulo. Assim, a impressionante capacidade de acesso ao léxico imagético53
(Picture-lexicon), descrito nos artigos sobre esta matéria, poderá relacionar-se com a baixa
mediação cognitiva/concetual entre o estímulo e a ação motora que empreende o registo

Referências Bibliográficas
O´Connor, N. & Hermelin, B. (1987), Visual memory and motor programmes: Their use by
idiot-savant artists and controls. British Journal of Psychology (78), 307-323.

Selfe, L. (1985), “Anomalous drawing development: some clinical studies”, In Freeman &
Cox (eds.) (1985), Visual Order, Cambridge: Cambridge University Press.

Selfe, L. (2011), Nadia Revisited; A Longitudinal Study of an Autistic Savan, Hove:


Psychology Press.

Simon (s.d.), Desenho, In Freeman & Cox (eds.) (1985), Visual Order, Cambridge:
Cambridge University Press.

Treffert, D. A. (1989), Extraordinary People: “Understanding Idiot Savants”. New York,


Harper & Row, Publishers, 1989.

Treffert, D. A. (2013), Savant Syndrome: Realities, Myths and Misconceptions. Journal of


Autism and Developmental Disorders, 44 (3), 564-571.

Wiltshire, S. (1983). Royal Albert Hall. Retirado de http://www.stephenwiltshire.co.uk.

Wiltshire, S. (1985). London Alphabet - E for Eros. Retirado de


http://www.stephenwiltshire.co.uk.

53Mencionado em O’Connor & Hermelin e por Treffert, o Picture –lexicom representa a noção de base de dados sobre toda a
informação visual arquivada na memória. Deverá conter informações sobre objetos de forma declarativa e, também sobre os seus
movimentos designadamente na forma processual.

236
ESPAÇOS DA COR NAS FASES DE UM PROCESSO
Natacha Antão Moutinho
Prof.ª Auxiliar EAUM
Investigadora Lab2PT

Resumo

O foco desta investigação é o estudo do fenómeno da cor e seu papel nos desenhos realizados durante os
processos gráficos projetivos. Procura-se compreender o espaço da cor no contexto do desenho de arquitetura,
como é aplicada, utilizada e explorada e que consequências ou efeitos pode ter no desenvolvimento do projeto e
no observador. O primeiro passo dado nesta investigação foi proceder ao levantamento e leitura do material
bibliográfico sobre o tema cor e desenho, sustentada por uma consulta a especialistas da área de estudo. Em
complemento foi necessário observar desenhos de arquitetos que foram alvo de estudo e de comparação, sendo
necessário determinar e constituir parâmetros a observar. Este estudo pretende contribuir para um melhor
entendimento da utilização da cor na prática do desenho, no processo gráfico de análise, conceção e ilustração,
enquanto medium do pensamento projetivo.

Abstract

The focus of this research is the study of the phenomenon of colour and its role in the sketches made
during the design processes. We wish to understand the space of colour in the context of architectural design, how
it is applied, used and explored, and what consequences or effects it may have on the development of the design
project and the draftsman. The first step taken in this investigation was to collect and read the bibliographic
material on colour and drawing, supported by specialist’s consults within this area of study. In addition, it was
necessary to observe architect’s sketches that were object of study and comparison, being necessary to determine
and constitute parameters of observation. This study aims to contribute to a better understanding of the use of
colour in the practice of drawing, in the design process of analysis, conception and illustration, as a medium for
design thinking.

ESPAÇOS DA COR NAS FASES DE UM PROCESSO

O desenho sobre o qual incide esta investigação é o desenho realizado durante o


processo gráfico projetivo, com enfase nos esboços ou esquemas de arquitetos, onde há procura
e verificação do projeto por simulação gráfica. Estes desenhos resultam do desenvolvimento
de um processo criativo onde a ação do desenhar tem um papel basilar e instrumental. Este
estudo pretende contribuir para um melhor entendimento da utilização da cor na prática do
desenho, no processo gráfico de análise, conceção e ilustração, enquanto medium do
pensamento projetivo.
O primeiro passo dado nesta investigação foi proceder ao levantamento, leitura e
recensão do material bibliográfico sobre o tema cor e desenho, recorrendo a ajuda de
especialistas em cor. Em paralelo, e dado que se detetou que a literatura específica sobre
desenho não incluía referências suficientes sobre Cor, foi necessário proceder à recolha e
análise (e comparação) de desenhos, com base em parâmetros estruturados na literatura
científica e artística. Em complemento, e dada a área específica de investigação - belas artes,

237
reconheceu-se a importância e necessidade de proceder à construção de hipóteses e exercícios
de desenho com recurso de cores, como se verá nas imagens apresentadas, através de
investigação baseada na prática. Esta pesquisa está enquadrada na tese realizada para obtenção
de grau de doutor em Belas Artes, com o título de “A cor no processo criativo”, concluída em
fevereiro de 2016.

Organização de um processo
Os desenhos produzidos em fase de projeto por arquitetos não são valorizados como
obra acabada mas interpretados como etapas de um processo. Quando se analisa um desenho
convém reconhecer que este faz parte de um coletivo de desenhos, imagens e maquetes, entre
outras estratégias metodológicas, e que por vezes não é possível aceder à totalidade do
processo. O processo de criação de uma obra pode desenvolver-se numa série de desenhos que
estabelecem um percurso eventualmente não sequencial ou não evolutivo do trabalho. Cada
desenho é, assim, o estado de um processo de trabalho e não um estudo significativo com valor
próprio, ainda que por vezes adquira essas propriedades (mesmo sem a intenção do seu autor),
tornando-se uma declaração artística em si mesma.
As diferentes fases em que se pode organizar o processo gráfico projetivo são
relativamente idênticas em diferentes autores de referência: Lebahar (1983), Porter (1990 e
1997), Vaz (2001), Lawson (2005), Gänshirt (2007), Ware (2008), Minah (2008), e todos
parecem concordar que estas não são necessariamente sequenciais, nem sempre presentes,
nomeadamente variando em função das metodologias utilizadas, da formação do arquiteto ou
do programa de trabalho.
Neste artigo estou a utilizar como base a estrutura teórica sobre processo e desenho de
projeto que constitui a referência de trabalho na EAUM54. Deste modo pretendo contribuir para
as referências teórico-práticas da instituição onde leciono e investigo. Assim, podemos resumir
as fases em três: conceção (que pode incluir o levantamento gráfico de dados relevantes);
formalização (definição de formas ou espaços); ilustração (descrição gráfica ou
comunicação)55. Tomando como metodologia de organização esta estrutura foram ensaiadas
algumas possibilidades de usos das cores, sendo que neste artigo se apresentam apenas as
propostas relacionadas com o espaço da cor em fase de conceção.

54
A inclusão da EAUM deve-se ao facto da investigadora ser docente de desenho naquela escola. É fundamental articular a investigação
realizada com a função docente e a prática como desenhadora, confrontando estas aprendizagens com as referências de trabalho ali
investigadas, produzidas e aplicadas.
55
Esta separação por fases é resultado de uma estratégia de ensino-aprendizagem e uma vez que se utiliza e reflete sobre esta prática
interessa, aqui, confrontá-la com as ideias desta investigação.

238
Espero que estas propostas possam ampliar a ação cromática no desenho procurando
uma ordenação dos usos da cor, ou das possibilidades de uso, nas distintas fases do processo
criativo.

Cores e conceção
A fase inicial do processo gráfico projetivo pode ser caracterizada como fase de
conceção. O desenho de conceção destina-se a organizar e referenciar conceitos e a estabelecer
relações entre esses conceitos, recorrendo a regimes gráficos mistos, onde se emprega a
utilização da escrita, do sinal ou da imagem. Cada ideia é desenvolvida e explorada através da
pesquisa de conexões ou relações entre as partes constituintes do todo, estabelecendo relações,
vetores, hierarquias ou ligações. Estas marcas de natureza ambígua e polissémica são
confrontadas com os conteúdos programáticos e que lhes conferem sentido e atribuem
significado, ou então servem como catalisadores de novos sentidos programáticos e
conceptuais.
Quando há atribuição de cor a qualquer elemento, marca ou sinal gráfico, esta pode
influenciar interpretação das marcas representadas e, por consequência, interferir no processo
criativo de duas maneiras: pela cor em si e pelas relações cromáticas entre as cores.
O que defendo é que no processo de desenho é possível recorrer ao potencial significado
das cores para explorar significantes ideias, conceitos, sensações ou sentimentos. Enquanto
característica do sinal gráfico, o possível significado simbólico da cor pode ser associado à
forma ou à marca gráfica.
Podemos atribuir significado (Van Leeuwen, 2011, p. 59) às cores por: proveniência;
associação; de modo arbitrário; ou metáfora, considerando o contexto onde estas aparecem para
compreender o significado atribuído à cor ou aos esquemas cromáticos. A carga significante
da cor pode ser explorada em fase de conceção, e pode também ser um recurso criativo em fase
de formalização, e comunicativo e expressivo em fase de ilustração, como veremos.
Na contemporaneidade a atribuição do significado da cor por proveniência já não parece
fazer sentido56, mas pode ser entendido estabelecendo relações entre as cores e a sua aplicação

56
O simbolismo de algumas cores pode ser relacionado com a proveniência do material a partir do qual são
produzidas, p ex., um destes pigmentos era o lápis-lazúli, que foi descrito como azul ultramarino, inicialmente
foi importado para a Europa a partir do Médio Oriente. Hoje em dia as cores perderam quase totalmente a
relação entre o seu significado e a proveniência, mantendo a relação apenas do ponto de vista formal. O azul
ultramarino já não é importado, mas é produzido industrialmente, e nem sequer tem lápis-lazúli na sua
composição.

239
original, como as cores dos camuflados e os militares, ou os esquemas cromáticos que
caracterizaram uma época, uma tendência ou um autor.

1 – Desenho que explora os potenciais significados das cores e esquema cromático - primárias (desenho da
autora).
2 – Desenho que explora os potenciais significados das cores e esquema cromático - secundárias (desenho da
autora).

Podemos atribuir significado à cor por associação57, que pode variar entre uma cor
denotativa58 ou naturalista. Ou seja, entre a cor da coisa, sem outro padrão de informação
visual, como uma árvore verde, ou a cor da coisa numa determinada circunstância particular e
individual, num tempo, lugar ou momento específico, como o verde acastanhado com reflexos
vermelhos na copa de uma tília num fim de tarde de Outono.
O significado arbitrário para as cores pode não seguir princípios lógicos mas uma
intenção pessoal ou funcional, o seu significado pode oscilar entre nenhum e todos os possíveis
de imaginar. Se a cor for entendida como uma ferramenta de organização visual, as cores
podem ser aplicadas para organizar, comunicar ou segmentar informação visual, respeitando
regras e lógicas de composição operativas, como a discriminação das cores ou o controlo da
quantidade de cores no ambiente cromático. Esta atribuição das cores é frequentemente
utilizada no design de comunicação quando o interesse é comunicar, de modo claro e direto,
informação veiculada numa imagem, funcionando a atribuição cromática como um código de
cores.

57
A construção do significado por associação pode ser encontrada em relações óbvias, entre a cor verde e a natureza ou a ecologia, ou entre
o amarelo e a cor do sol ou a energia, outras mais naturalistas, como a relação entre uma cor e a cromaticidade do material, como o laranja e
a cor do tijolo, ou o azul e a cor do céu.
58
A cor denotativa implica uma atribuição cromática a um elemento, ou o preenchimento rápido de uma configuração, que permite o
reconhecimento do material e a distinção dos espaços do projeto, em diferentes sistemas projetivos: “Sketching in ink or pencil, the
architects use colour pencils to quickly ‘fill in’ the designs, to denote materials, plants and spaces.” (Bercy Chen Studio LP, citado de Jones,
2011, p. 61)

240
Finalmente, a associação por metáfora, mais difícil de controlar mas mais rica pela sua
ambiguidade. Os significados da cor funcionam como meio de expressar ou encontrar sentido
e as cores (esquemas cromáticos) são apresentadas em substituição de algo. Poderá ser o
recurso à relação entre a cor e a temperatura, a arquétipos como as cores fundamentais -
amarelo, azul e vermelho - ou a tríade primordial - preto/branco/vermelho – e que pode ser
ampliada a partir de regras que surgem do próprio processo criativo do desenhador, da
subjetividade e das suas experiências individuais com cores.
Os potenciais significados das cores podem representar ou servir como metáfora para
ideias ou conceitos, em fase de conceção, ampliando o leque de meios significantes e não
formais a explorar. Mesmo que o desenhador não explore este recurso significante, o seu
simples aparecimento no desenho pode potenciar o desenvolvimento do trabalho quando
confrontado com a agenda programática.

3 - Desenho que explora os potenciais significados das cores e esquema cromático - secos (desenho da autora).
4 – Desenho que explora as relações entre cores - contaminação (desenho da autora).

Pela possível “transferência” de significado pelas cores, os contrastes ou justaposições


entre cores potenciam relações dinâmicas. A introdução de uma cor num desenho altera o
ambiente cromático, interferindo com as cores preexistentes, sejam estas cromáticas ou
acromáticas, implicando novas relações de harmonia, contraste ou semelhança, nas várias
dimensões possíveis (matiz, valor, saturação, temperatura, textura, transparência, etc.), que
podem representar ou despoletar diferentes relações ou ligações entre as partes constituintes.
Podemos encontrar em Galen Minah (2008) um argumento que sustenta esta ideia.
Segundo este autor, na fase conceptual é geralmente valorizada a utilização de diagramas de

241
linhas, para representar relações abstratas entre partes do edifício que podem ser descritas
metafórica ou formalmente, e que são frequentemente monocromáticos. A articulação entre as
partes, suas relações ou justaposições, concebe a ideia generativa, o conceito e ponto de partida
do projeto. As relações de contraste e de justaposição entre as cores podem representar relações
qualitativas entre os dados representados, ideias ou conceitos.

“If one assigns colour to the parts in these diagrams representing, in the designers’ eyes, the
character of the part, then colour contrasts or juxtapositions between the parts will represent the
dynamic relationship of the parts. Red/blue contrasts may be active/passive, saturated hues may be
dominant, and muted hues subordinate. These new juxtapositions can represent events in the experience
architecture, i.e. hierarchy, opposition, separation, connection, transition and assimilation. The colour
choices in the conceptual phase, although abstract and diagrammatic, will begin to influence choices in
lighting, materials, and surfaces that continue throughout the design process.” (Minah, 2008, p. 3)

A cor, entendida com várias dimensões - matiz, saturação ou valor, textura,


transparência ou temperatura - , em complemento com outras formas de representação de
relações dinâmicas, amplia infinitamente as possibilidades gráficas e operativas nestes
processos visuais criativos. Algumas destas relações podem ser mais fáceis de interpretar,
como a relação de temperatura, que pode descrever maior ou menor quantidade de energia, e
outras mais difíceis, como o recurso a uma metáfora. O recurso a cores para criar semelhança
ou distinguir elementos facilita a constituição de afinidade entre unidades, formalmente
distintas mas cromaticamente semelhantes ou vice-versa. Outras estratégias, como o uso da
transparência possibilitam analogias entre as formas, que contêm ou estão contidas,
explorando possibilidades de representação de conceitos como simultaneidade,
interpenetração, sobreposição, ou implicar sincronia de dimensões como o espaço/tempo59.

59
Sobre o conceito de transparência e a sua relação formal ou fenomenológica no campo da arquitetura consultar Rowe, C. & Slutzky, R.,
1997. Transparency. Basileia: Birkhäuser.

242
5 – Desenho que explora correspondências entre itens por semelhança e diferença cromática (desenho da
autora).
6 – Desenho que explora relações entre elementos cromáticos por difusão (desenho da autora).

A cor como recurso dinâmico pode potenciar a organização de um sistema físico e


estável e, ao mesmo tempo, em perpétuo desequilíbrio, já que relação com a cor é sempre
instável e pessoal. Neste contexto a cor pode funcionar como um diagrama, servindo como um
condutor que liga unidades livres, que conecta pontos para além dos determinados, ainda não
objetivados e não formalizados, pontos de resistência, instabilidade e criatividade para a
conceção arquitetónica.

“A diagram is therefore not a thing in itself, but a description of potential relationships among
elements; not only an abstract model of the way things behave in the world, but a map of possible
worlds.” (Allen, 1998, p. 16)

A ideia de pensar através do diagrama é crucial porque proporciona ordem e


estabilidade mas simultaneamente é um veículo de destabilização e descoberta (Knoespel,
2002, p. 20). A partir desta definição de diagrama podemos estabelecer uma analogia entre cor
e diagrama, no sentido em que a cor pode virtualmente ser um veículo para “formar matéria
visível e formalizar funções articuláveis” (Eisenman, 1999, p. 30).
Na fase conceptual não se procura uma forma mas algo que a antecede, que é anterior
à visualidade das convenções formais, configurações ou suas estruturas. Explora-se uma
constelação nebulosa e abstrata de ideias e conceitos. Aliás, é possível encontrar referências de
criativos que procuram outras metodologias de projeto que não o desenho, exatamente para

243
evitar uma aproximação rápida à forma, tão potencialmente presente em qualquer simples
garatuja.
Como recursos que permitem diferentes aproximações à construção de espaço, Edwards
(2008, p. 230) dá como exemplo o uso de diagramas (Peter Eisenman) ou pintura (Will Alsop,
Zaha Hadid ou Massimiliano Fuksas), aos quais se pode acrescentar a aguarela (Steven Holl,
Santiago Calatrava), ou o pastel (Ricardo Bak Gordon) entre outros processos que recorrem à
maquete, colagens ou ao digital. Este autor explica que vários arquitetos consideram que na
fase de pesquisa conceptual o uso do desenho pode ser limitativo, podemos acrescentar porque
baseado em linhas e configurações, preferindo o recurso a diagramas.

7 – Peter Eisenmann, Frank House (House VI), Cornwall, Connecticut, 1973, fita-cola, tinta e decadry, 50.8 x
60.9 cm (Eisenmann, [1973]).
8 – Zaha Hadid, Victoria City Areal, Berlin, Alemanha, 1988, pintura (Feireiss, 2003, pp. 100-101).

Há uma distinção útil entre esboço e diagrama, este último é embrião da ideia
conseguida com o mínimo de linhas mas que contém o potencial código genético do projeto
(Edwards, 2008, p. 239).
A variação nos métodos processuais explora alternativas que permitem lidar com
questões estruturantes da crítica da arquitetura, mantendo afastada qualquer semelhança com
configurações ou imagens convencionais, procurando impressões e não figuras, ideias e não
formas. O que propomos é recorrer ao uso de cores como uma dessas alternativas. As cores
podem potencialmente levar o desenhador/observador a recuperar memórias, a estabelecer
associações entre conceitos ou ideias no domínio da significação e não da forma. As cores
podem, por oposição à linha, ser mais abstratas porque a sua interpretação é flexível, instável,
indefinida e associada à individualidade do desenhador, representando a ideia na mais pura e
original condição.
A cor pode ser explorada como estratégia visual, tal como uma conceção diagramática,
ou seja, a expressão cromática é potenciadora de significados e relações dinâmicas que podem

244
ser aproveitadas num processo criativo. Correspondências entre ideias ou conceitos podem ser
expressas através da relação entre as cores utilizadas e cada cor pode ser potencialmente um
veículo para significados pessoais e idiossincráticos.
Alguns princípios que organizam as relações dinâmicas entre as cores neste processo
gráfico podem ser descritos, mas esta descrição é artificial e não deve ser considerada como
uma regra. Pelo contrário, a sua inclusão neste trabalho é uma tentativa de refletir sobre as
potencialidades da cor e aumentar procedimentos e metodologias para este medium gráfico
criativo que é o desenho.
As dinâmicas entre cores podem estabelecer-se por analogia, contraste, repetição,
ênfase, figura-fundo, expansão e redução, ritmo ou unidade artística.
Por analogia é possível relacionar diferentes elementos pela cor ou famílias de cor,
ligando ou distinguindo por semelhança cromática sinais, marcas, formas, ou outras
representações abstratas.
Os contrastes e as harmonias permitem explorar naturezas opostas ou complementares,
constituindo relações mais ou menos ativas entre os componentes apresentados em desenho.
Por repetição de cor é possível agrupar elementos de distintas naturezas destacando
aspetos como funcionalidade, proporção, temática e tectónica.
Com recurso à cor é possível enfatizar um componente explorando as qualidades
visuais de atração e pop-out, compondo hierarquias visuais, organizando a informação gráfica
ou avaliando os dados visuais em fases de crítica de trabalho.
A utilização de cores potência as relações de figura-fundo, cheio-vazio, contido-
contendo, dentro-fora, incluído-excluído, em articulação com outras dimensões da cor podem
ser explorados também operações como sincronia, penetrabilidade, adição ou acumulação.
Como as cores afetam a perceção de distância e tamanho é possível explorar conceitos
como expansão e redução, implicando até as noções de espaço e tempo. A associação de ritmo
através da cor permite criar a ideia de movimento e tempo, como são exemplos a dinâmica da
cor em Disques (1912) de Robert Delaunay, ou o ritmo visual no Broadway Boogie-Woogie
(1942) de Piet Mondrian.
Enquanto característica dos elementos gráficos as cores podem constituir uma
qualidade visual que confere unidade ou variedade gráfica e enquanto elemento gráfico
autónomo pode também ser indicador de uma característica processual ou gráfica particular de
autoria.
Todas estas relações dinâmicas das cores podem ser aproveitadas para avaliação crítica
do trabalho e para as restantes fases do processo.

245
Concluindo, podemos considerar que as cores podem ser utilizadas em fase de conceção
para: potenciar ou transferir significado, quer enquanto cor isolada quer como esquema
cromático; constituir ou representar relações e ligações entre os elementos; clarificar e
classificar os elementos apresentados; estabelecer diferentes níveis de atenção (pop-out,
segregação, hierarquia) organizando a composição da imagem de modo estético ou
significativo; e por consequência, ter impacto na organização de ideias, na produção de
conceitos (visualmente), na interpretação de relações afetando, influenciando ou inovando o
processo criativo.

Referências Bibliográficas:
Allen, S., 1998. Diagrams matter. ANY: Architecture New York, Volume no.23, pp. 16-19.

Edwards, B., 2008. Understanding Architecture Through Drawing. 2ª ed. Nova Iorque:
Taylor & Francis.

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247
Similitudes - Da ocultação ao scraping surrealista de Cruzeiro Seixas

Autor: Pedro Miguel Domingos Jorge de Oliveira


Faculdade de Belas-Artes da Universidade de Lisboa

Resumo

A participação neste congresso, visa sobretudo salientar a importância do desenho e do processo de


colagem como um importante veículo de expressão artística. Nesta medida, salientamos a criação e o
espaço ocupado pelo movimento surrealista em Portugal no desenvolvimento da colagem
contemporânea, nomeadamente de artistas, como Mário Cesariny, Fernando de Azevedo, António
Areal, Marcelino Vespeira e a partir da década de 50, no contexto internacional, do Grupo KWY.
No âmbito do surrealismo destaca-se a colagem do artista Cruzeiro Seixas, e de alguns aspectos inéditos
do seu trabalho - os seus cadernos - designados como scrapbooks, veículo de expressão artística para
além do âmbito do desenho, agregando-lhe o campo da literatura e da poesia. A simbiose entre estes
elementos resultou em trabalhos de grande relevância no conjunto do movimento surrealista e,
nomeadamente do desenho português.

Abstract

The participation in this congress pretend to emphasize the importance of drawing and the collage
process as an important vehicle for artistic expression. We emphasize the work by the surrealist
movement in Portugal in the development of contemporary collage, by the artists, Mário Cesariny,
Fernando de Azevedo, António Areal, Marcelino Vespeira and from the 50s, in the international
context, of the KWY Group. In the surrealism Portuguese movement, stands up the Cruzeiro Seixas's
work in collage and some unpublished aspects of his work - his notebooks - are designated as
scrapbooks, a vehicle for artistic expression beyond the field of drawing, adding literature and poetry.
The symbiosis between these elements resulted in works of great relevance in the whole of the surrealist
movement and, in particular, of the Portuguese drawing.

248
A colagem Surrealista em Portugal

Ao longo da história da arte e até muito recentemente, a colagem foi considerada como uma técnica
de importância menor, encarada como um procedimento complementar do desenho e da pintura. Só
no início do século XX esta técnica começou a ser utilizada pelos artistas como forma de expressão
autónoma e de criação artística.
As primeiras intervenções com colagem por parte dos artistas no início do séc. XX, exerceu um papel
fundamental na descoberta de novas linguagens, num primeiro momento relacionada com a fundação
do movimento Cubista, através da criação dos papiers collés de Picasso e Braque, a sua consequência
e prossecução no Dadaísmo e Surrealismo.
A nível nacional, a colagem começou a adquirir grande protagonismo nas obras de Amadeo de Souza-
Cardoso. O seu carácter pioneiro e experimental foi influenciado pelas grandes correntes artísticas
europeias, centradas sobretudo na cidade de Paris.
Todavia foi a partir da segunda metade do século XX, que a colagem em Portugal evoluiu
gradativamente de uma forma significativa. Isso foi notório na obra de alguns artistas portugueses
que mais se notabilizaram no capítulo da colagem nas grandes correntes internacionais como os
artistas do Surrealismo português, nomeadamente do Grupo Surrealista de Lisboa no início dos anos
50 em que artistas como Fernando de Azevedo, Mário Henrique Leiria, Alexandre O ´Neill ,Mário
Cesariny, Marcelino Vespeira e Cruzeiro Seixas, aferindo as principais influências a nível
internacional e as metodologias seguidas pelos artistas. Nas obras destes artistas define-se a evolução
da colagem portuguesa a partir do início dos anos 50 até ao final da década de 80.
Com a interpretação do subconsciente, o Surrealismo possibilitou uma absoluta liberdade criativa,
gerando, através da sua intervenção, uma alteração de mentalidades na sociedade portuguesa do pós-
guerra. O desenho e a colagem assumiram grande protagonismo, ao apresentar uma enorme
pluralidade de estilos e abrindo caminho para diferentes vias de expressão. O Grupo Surrealista de
Lisboa foi essencial para esse vanguardismo, tendo continuidade nos grupos dissidentes que se
seguiram. As primeiras experiências de desenho ocorreram com António Pedro, com a criação dos
primeiros cadavre-exquis, entre 1947 e 1949, estimulando a criação deste tipo de prática artística e
contando com a colaboração de vários membros do grupo, entre os quais realçamos Fernando de
Azevedo, Marcelino Vespeira e Mário Cesariny.
Os principais membros do GSL rapidamente definiram diferentes abordagens no uso da colagem. Foram

explorados três diferentes perspectivas, com início na 1ª Exposição Surrealista: A primeira, através do

processo de ocultação, praticado inicialmente por Alexandre O´Neill, Mário Cesariny e possuindo em

Fernando de Azevedo a sua maior referência. Inspirado nas obras e colagens de Max

249
Ernst e no processo de overpainting, o artista desenvolveu um tipo de colagem que servirá de
inspiração para outros artistas.
As ocultações, criadas e desenvolvidas no Surrealismo português, são uma transposição da técnica de
overpainting de Max Ernst, criada em 1918. Esta técnica consistia na apropriação de uma imagem
ou ilustração já existente, sobre a qual era aplicada uma película de matéria pictórica que deixava a
descoberto determinados elementos da imagem pré-existente, parecendo aderir à superfície em lugar
de fazer parte dela, como um processo de transformação e metamorfose para uma nova imagem (Ávila
et al., 2001, p.154). A primeira ocultação parcial de uma imagem surgiu em 1940, numa obra de
António Pedro. Todavia, as primeiras ocultações totais surgiram em 1947. Da autoria de Alexandre
O´Neill, tinham o objectivo de descobrir novas realidades inconscientes a partir de uma imagem sob
o lema ocultar para descobrir, que haveria de ficar como um dos provérbios dos surrealistas
portugueses (muitas destas obras encontram-se actualmente perdidas).
Foi Fernando de Azevedo (1922-2002) que, através da criação de diversas ocultações realizadas entre
1950 e 1952, impulsionou e explorou todas as suas possibilidades. A partir de 1946/47, rapidamente
foram abordados paralelamente outros processos de colagem, dos quais salientamos o uso do efeito
de dépaysement, que, segundo a descrição de M.J. Ávila e Perfecto E. Cuadrado resulta:

Do encontro inesperado entre diversas realidades diversas e opostas, arrancadas do seu universo e
posteriormente recontextualizadas (....) Uma realidade que nos é familiar e ao mesmo tempo estranha, que

nos aparece com unidades suficiente na sua ordenação para adquirir, pese a sua irracionalidade, o

estatuto de narrativa inquestionável (Ávila; Cuadrado, 2001, p.175).

Além da ambiguidade, estranheza e até crítica e humor provocatório que desencadeia, promoveu a
alteração do sentido e do significado da linguagem convencional e adquiriu superior dimensão nas
obras de Cruzeiro Seixas, Mário Henrique Leiria, Jorge Vieira e Fernando de Azevedo. Em Portugal,
o efeito de dépaysement combinava o espírito crítico e de sátira, oriundo do universo Dadaísta, com
a liberdade criativa da exploração da fantasia e dos sonhos, do movimento Surrealista e exerceu um
forte desenvolvimento da colagem na arte contemporânea portuguesa eco permitir uma total liberdade
criativa e integração de um conjunto infinito de soluções ao nível compositivo e das imagens e
técnicas utilizadas. Contribuiu, através da criação de novas formas de linguagem e de diferentes
tipologias de comunicação, particularmente no contexto português, para uma mudança e ruptura de
mentalidades no academismo vigente, marcado por um institucionalismo artístico imposto pelo
Antigo Regime.

250
Fig.1 - Fernando de Azevedo, Ocultação, 1949. Fig.2 - Fernando de Azevedo, A Cigarreira Breve, Lisboa, 1986.

Tinta-da-China e colagem s/imagem impressa, 171 x 256 mm. Colagem s/papel, 355 x 420 mm.
Col. FCG/CAMJAP, Lisboa. Col. Cristina Azevedo Tavares e Filhos, Lisboa.

Fig.3- Alexandre O´Neill, A linguagem, 1948. Fig.4- Jorge Vieira, S/título, 1947.
Tinta-da-china e colagem s/papel, 645 x 495 mm. Colagem s/ilustração 130 x 102 mm.
Col. Museu do Chiado, Lisboa. Col. Museu do Chiado, Lisboa (Doação Noémia Cruz).

251
A introdução de novas técnicas na prática do desenho aliado à literatura, introduziu novos modos de
expressão no seio do movimento surrealista português onde a poesia foi sem dúvida o seu porta
estandarte. Mário Cesariny, Alexandre O´Neill e Mário Henrique Leiria foram alguns dos artistas
pertencentes ao Grupo Surrealista de Lisboa que a partir do final dos anos 40 associaram a vertente
plástica da colagem à componente literária.
Segundo Bernardo Pinto de Almeida, Cesariny “(...) realizou uma obra em que se inventa uma imagética
brutalista/informalista marcada pelo uso do collage e da frottage, original no contexto da arte portuguesa
e mesmo se comparada com a realidade artística europeia” (Almeida, 2009, p.30).
Importa por isso destacar a obra de Mário Cesariny, pela forte vertente literária que incorporou de
forma única nas artes plásticas em Portugal de uma forma inovadora e experimentalista. O seu
interesse pela arte e pelas letras advém de diferentes origens, influenciado pela sua mãe na vertente
literária e pelo seu pai nas artes plásticas. Foi mesmo através do seu pai que Cesariny integrou o curso
na escola António Arroio em Lisboa, onde teve aulas de desenho e pintura. No início desta fase
embrionária e ainda antes da formação do GSL foi fundamental as viagens que efectuou e o período
que viveu no estrangeiro, nomeadamente em Paris em 1947, onde contactou com vários membros do
grupo surrealista francês e visitou a exposição Le Surréalisme, realizada no mesmo ano.

Fig.5 - Mário Cesariny, General de Gaulle, 1946/47. Fig.6 - Mário Cesariny, Voir Deux Fois, 1947. Tinta-da-
Colagem s/ ilustração, 525 x 422 mm. china aguada, mostrador de relógio e colagem s/papel, 220 x
Col. Fundação Cupertino de Miranda, V.N. Famalicão. 155 mm.
Col. Alberto Caetano, Lisboa.

252
No âmbito deste grupo, através do seu carácter experimentalista, Cesariny rejeitou qualquer
preocupação pela técnica ou forma e criou no período de pós-guerra a primeira colagem surrealista.
Juntamente com Alexandre O´Neill, as suas obras de finais dos anos 40 foram das mais importantes,
detentoras de uma linguagem ecléctica que conjuga palavra e imagem. Além disso, o artista aplica
diferentes métodos e técnicas de colagem, com influência bem vincada de artistas pertencentes ao
Surrealismo francês, especialmente das colagens de George Hugnet, de Victor Brauner e Max Ernst
e identificando-se menos com Magritte, De Chirico e Salvador Dali. Na sua estadia em Paris, entre
Agosto e Outubro de 1947, realizou uma série de poemas-colagens onde nos recortes de palavra
incorpora os recortes de imagem, seguindo a mesma orientação de Hugnet (Ávila et al., 2001, p. 253).
Em algumas das suas colagens, a pintura desempenha um papel alusivo, como uma representação
figurada. Todavia, em obras como em Voir Deux Fois (1947) [Fig.6], a introdução de objectos
colados como, por exemplo, um mostrador de relógios e palavras, retiram esse protagonismo à
pintura. Em outras obras aplica outras técnicas, como da tinta soprada no suporte do papel, na obra
Sourges de l´alussión, la vertu d´oiel (1947) com a permanência de algumas personagens, onde o
homem tem a cabeça substituída por dois círculos espiralados, compostos pela aplicação de diversas
colagens de palavras recortadas que constroem frases breves como títulos (Calhau et al., 1999, p.8).
Esta obra, juntamente com La voie sauvange des songes (1947), demonstra uma clara influência
do tipo de colagem protagonizado por Victor Brauner e George Hugnet, provenientes do Surrealismo
francês e admiradores das colagens picto-poéticas. A obra Poème (1947) foi um dos principais
poemas-colagens, que reflecte a articulação de um discurso poético próprio das obras de George
Hugnet,
Nessa medida, durante os anos 50 e 60, foi decisivo o papel de personalidades inicialmente ligadas
Àliteratura como Alexandre O´Neill, Mário Cesariny, Mário Henrique Leiria ou artistas associados
ao desenho e à pintura, como Cruzeiro Seixas e Paula Rego, que com a sua visão e irreverência
contribuíram para efectivar uma real mudança. Cesariny estabeleceu amizade marcante com alguns
artistas, nomeadamente com Cruzeiro Seixas revelada numa intensa troca de correspondência entre
os dois artistas.
Nesse grupo de artistas nacionais emergiu a figura de Cruzeiro Seixas, um dos protagonistas do
Surrealismo nacional, cujo trabalho em colagem se revelou como uma das suas linguagens de eleição.

253
O seu trabalho como artista, é multidisciplinar, sendo todavia, um desenhador por excelência, e é
nesse campo, que o seu trabalho ganhou maior fulgor. Como podemos a seguir, o seu trabalho é muito
vasto estende-se ao longo de 4 décadas, englobando um conjunto muito amplo de desenhos, e um
conjunto muito extenso de colagens, com diferentes técnicas, desde montagem fotográfica, uso da
própria imagem, recorte e colagem de desenhos, ocultações, objectos, entre outros.
Cruzeiro Seixas desenvolveu um extenso e diversificado trabalho no campo da colagem e do desenho,
trabalho que constitui um espólio valioso e uma referência para o presente e para o futuro da arte
contemporânea nacional. Poeta, pintor, desenhador, encarava a vertente da escrita e da poesia como
uma faceta fundamental da sua essência enquanto ser humano e artista. A força da escrita ainda
ganhou mais peso na sua personalidade artística com a adesão à corrente surrealista de Breton. Com
esse espírito, facilmente transportou para o campo das artes plásticas a sua visão e perspectiva poética
sobre a vida e os sonhos, desejos e profundas fantasias. Aí, sentia-se completamente livre de
preconceitos, encarando o desenho como uma necessidade de expressão natural e diária. Os inúmeros
desenhos e colagens criadas ao longo da sua vida, manifestam esse desejo, essa força da poesia como
principal veículo de expressão, em cada traço, figura, recorte ou paisagem que desenhava. Num
período de tantos condicionalismos e preconceitos, Cruzeiro Seixas conseguiu viver, tal como o
próprio Surrealismo ditava, na intemporalidade do sonho, aspirando a uma sociedade mais pura sem
ideias pré-concebidas, medos e receios do risco, onde o despojamento e a pureza da ligação humana
à natureza prevalecessem, em detrimento da superficialidade presente nas sociedades europeias.
Cruzeiro Seixas projectou em grande parte das suas obras, de forma mais ou menos directa,
influências e visões de diferentes artistas. As temáticas provenientes do universo surrealista, como os
sonhos e fantasias referentes ao estudo da psicanálise, manifestam uma clara influência de base
freudiana, do Surrealismo francês e do seu fundador, André Breton. Cruzeiro Seixas manifestou
desde muito cedo uma enorme preocupação com a representação do subconsciente, das experiências
emocionais e da deturpação da realidade. Muitas das suas obras, independentemente da influência
artística que tiveram, captam diferentes momentos e estados de consciência, inspirando-se sobretudo
nas paisagens boschianas e na arte primitiva africana, que pretende ascender a um superior estado
de alma. A sua perspectiva acerca do movimento surrealista foi única no conjunto dos artistas da sua
geração, projectando essa notoriedade nas suas brilhantes capacidades para o desenho. Nas suas
ilustrações, compostas por desenhos e colagens, encontramos cenas que representam paisagens
desérticas e de metamorfose entre o homem e a natureza, com uma forte

254
carga emocional e metafísica que manifesta a influência de vários artistas de referência internacional,
como Salvador Dali, Domingues, Yves Tanguy, Delvaux, Magritte ou Chirico (Fernandes, 1999, p.5).
Durante os anos 50, Salvador Dali foi a principal referência, patente na elegância e subtileza das
formas, que ficaram mais brandas e suaves, sobressaindo dos seus trabalhos.
Essas influências são notórias em muitas das suas obras ao longo da sua carreira. Encontramos
paralelismos com alguns dos artistas em alguns dos seus desenhos, nomeadamente durante a década
de 50 e 60, caracterizados por vastos horizontes, tons sombrios, paisagens nocturas, e formas
ambíguas que se transformam e modelam sem nenhuma explicação. Os seus desenhos são fascinantes
pelo seu imenso poder metafórico, compostos por uma simbologia complexa de figuras e situações:
caudas de cavalos e aves, sóis e planícies, barcos, mãos, asas, chaves e espelhos, cabelos soltos,
projectando muita da sua poesia (Gonçalves, 2007, p.21).
O conceito de metamorfose é o elemento-chave que estabeleceu uma coerência em toda a sua obra,
associado a uma forte vertente de automatismo e acaso criativo. Segundo a opinião de Maria João
Fernandes, “Deslumbramo-nos com o espectáculo de um mundo em eterna metamorfose, que não é
um espelho do real conhecido, mas do seu avesso desconhecido, com o movimento de uma simbiose
entre todos os reinos e as suas criaturas, onde nada parece, nunca, ter uma forma definitiva”
(Fernandes, 1999, p.5).

Fig.7 - Cruzeiro Seixas, S/título, S/data.


Aguarela, Colagem e Tinta-da-China s/papel, 275x 370 mm.
Doação Cruzeiro Seixas
Col. Fundação Cupertino de Miranda, V.N. Famalicão.

Representa também figuras híbridas, quer animalescas quer humanas, onde tudo está em constante e

contínua transformação, não atribuindo grande importância ao reino vegetal. (...) é frequente

encontrar a crueldade na desfiguração monstruosa de formas orgânicas, parcialidades biomórficas

255
transfiguradas em formas autónomas e agressivas, portadoras da violência fisíca (Ávila et al., 2001,

p.111).

Nas suas colagens, a sensualidade expressa através da nudez funciona como um espaço de encenação
e metamorfose, através de corpos distorcidos, imbricados uns nos outros, alongados e assimétricos.
Ali, o sexo e o erotismo são encarados como uma força libertadora e de criação. Parte das suas obras
resultam assim, de um conjunto de elementos, de seres vivos em mutação sendo a metamorfose o seu
universo plástico. Os peixes são a face de alguém, os cabelos são chamas, as pernas e os pés pertencem
a outros seres, existindo uma mescla entre o universo humano e a natureza. Esta constante
representação de figuras estranhas e híbridas nos seus registos, despertam múltiplas interrogações.
Que monstros, que demónios, que medos ancestrais, que fantasmas da nossa fome de ser? (Freitas,
1989, s/p).
Cruzeiro Seixas combina de forma perfeita a metamorfose das figuras que criava com o universo
poético, sendo a poesia desde a juventude muito intensa e entrelaçada com a sua personalidade.
Podemos dizer que a verdade da sua vida foi ditada, em grande medida, pela força da poesia. É natural
encontrar essa faceta poética fortemente emocional na escrita ou nos muitos desenhos e colagens,
através da representação de figuras híbridas, escultóricamente belas, ou diabolizantes que
ziguezagueavam entre noites de luar de tons sombrios e misteriosos. É nessa diversidade infinita,
proporcionada pelo encontro de diferentes realidades e dimensões, que encontramos a verdade do real
valor da poesia na sua vida, num misto de paixão, amor, saudade, tristeza e luxúria, onde o horizonte
das muitas paisagens que adorava desenhar não são mais que uma doce vista sobre o invisível.

Fig.8 - Cruzeiro Seixas, História das figuras só com uma asa, Fig.9 - Cruzeiro Seixas, O que resta da cidade, 1965.
1970 Colagem, grafite e tinta-da-china s/papel, 338 x 499 mm. Serigrafia intervencionada com colagem, 269 x 415 mm.
Doação Cruzeiro Seixas Doação Cruzeiro Seixas
Col. Fundação Cupertino de Miranda, V.N. Famalicão. Col. Fundação Cupertino de Miranda, V.N. Famalicão.

Todos os seus desenhos manifestam a sua visão do Surrealismo e expressão poética, onde as palavras
se convertem em traços e linhas e convivem lado a lado com formas, por vezes estranhas. Assistimos
a uma ligação inquebrável entre o conteúdo dos seus poemas – detentores em alguns casos de um
complexo mas perfeito jogo de palavras – e as figuras presentes nos seus desenhos.

256
Acerca desta questão, Bernardo Pinto de Almeida refere que:

Vemos nos seus desenhos representações de espelhos, falésias, ferrolhos, barcos, mãos, asas, caudas de
cavalos, cabelos soltos ao vento...Tudo referências que também ocorrem nos poemas.
E lembremos de novo que a amálgama das figuras desenhadas obedece a uma necessidade de expressão que
exige nos poemas a invenção de palavras compostas por justaposição de substantivos: cabelos-vento, sangue-
fogo, leito-mar, infinito-finito, livros-couve, rapariga-cavalo, cavalo-aqueduto, mão-raio-de-luz, mão-arco-
íris (Almeida, 2000, p.21).

A obra S/título (1952) [Fig.10], reflecte a sua visão poética, similar à de Cesariny, com os princípios
que o guiaram pelo Surrealismo através da associação entre a colagem e a vertente literária. Neste
caso, o texto colado é unido por uma representação constituída por fragmentos de papel,
esquematicamente recortados, e por uma pena, que relatam uma cena de um tempo familiar e
estranho. Foi utilizado o mesmo papel colado para as peças de mobiliário, o corpo feminino e a cabeça
masculina (Ávila et al., 2001, p.254).

Fig.10 - Cruzeiro Seixas, S/título, 1952.


Colagem s/papel, 350 x 260 mm.

Para além do desenho, Cruzeiro Seixas fez particular uso das fotografia nas suas colagens e da sua
fragmentação, remetendo um pouco para as ocultações de Fernando de Azevedo, com destaque para
o uso de monumentos e de símbolos de cultura nacional, em cujas imagens intervencionava, colava,
recortava e ocultava, deixando fragmentos da imagem.

257
Embora não fosse muito comum encontrar na sua obra um conteúdo explícito de crítica e sátira acerca
da sociedade, como acontecia com Mário Cesariny, algumas das suas fotomontagens criadas após o
25 de Abril, manifestam o alargamento a um espaço de crítica mais acentuado, com alguma sátira e
humor.

Fig.11 - Cruzeiro Seixas, Fig.12 - Cruzeiro Seixas,


Recordação de Lisboa em forma de postal, 1970. Projecto para um Tejo à nossa medida, 1966.
Colagem s/ ilustração, 280 x 310 mm. Colagem s/ilustração, 150 x 205 mm.
Col. Fundação Cupertino de Miranda, V.N. Famalicão. Col. Fundação Cupertino de Miranda, V.N. Famalicão.

Além do uso da fotografia, foi possível encontrar algumas obras, na sua maioria presentes nos
scrapbooks, cuja intervenção artística aconteceu em vários postais referentes à cidade de Lisboa,
através do recurso a algumas técnicas, de onde sobressai o uso do processo de ocultação ou de
colagem. É facilmente perceptível esse espírito em Projecto para um Tejo à nossa medida (1966)
[Fig.12], onde a Avenida da Liberdade serve como imagem de fundo sobre uma serigrafia, na qual
Cruzeiro Seixas transforma a avenida num imenso rio, no prolongamento do Tejo, completando-a
com a colagem de algumas embarcações.
Na obra Recordação de Lisboa em forma de postal (1970) [Fig.11], que embora não seja uma
colagem tem igualmente como base uma serigrafia, foi feita uma sobreposição da Torre de Belém
sobre a imagem, elevando-a em relação ao imenso mar que a rodeia, com uma aparente e misteriosa
neblina de fundo que inibe a percepção dos limites do rio Tejo e do seu horizonte citadino.
Podemos encontrar muitas fotografias, postais e cartas alusivos ao período que viveu em África entre
1952 e 1964. Nesta fase, Cruzeiro Seixas obtêm vários empregos em Angola, e sendo um período
particularmente enriquecedor em termos artísticos e pessoais, resulta na produção de um grande
número de desenhos, colagens, esculturas e pinturas. As viagens por Angola, efectuadas entre 1952
e 1958, fascinaram o pintor pela imensidão das distâncias, a noção de espaço, a intensidade das cores
e da luz, a cultura tribal, iniciando uma colecção de arte nativa. Parte dessas viagens, percorridas
através de trilhos e rotas complicadas e sinuosas, muitas pelo meio da lama e por incursões na selva,
foram pretexto para a criação de alguns trabalhos de desenho e colagem,

258
com recurso a objectos com as mais variadas formas, recolhidos pelos locais por onde ia passando.
A representação de paisagens africanas remonta a um estado de nostalgia e melancolia que emana
de um continente enorme, vasto e selvagem, onde se configurava essa civilização africana que o
artista quis celebrar, ao perdê-la e ao ver perder-se nela, da qual terá sido uma das últimas
testemunhas, antes que o massacre de uma guerra injusta a devastasse, talvez para sempre, da
ligeireza exaltante do seu estar primitivo, paradisíaco e poderoso.
Na vertente da colagem de objectos, é notório em alguns casos o período no continente africano e o
impacto que exerceu na sua vida, e na sua obra, com a colagem de objectos que trouxe de África para
Portugal. Outras obras numa vertente de assemblage e que saem foram da bidimensionalidade do
papel para o assemblage, foram feitas com objectos que recolhia no dia-a-dia e que devolvia com a
sua nova utilização a uma nova vida. Em História de uma serpente que era pintora oficial e tudo
(1960) [Fig.14], podemos observar essa combinação de materiais, com uma matriz figurativa que
caminha, ainda, de forma subliminar, para a desfiguração, através dos materiais colados compostos
por pedras, conchas e jornais que remetem para o período que viveu em Angola.
A criação dos primeiros poemas-objectos resultaram da necessidade premente de alargamento do
espaço criativo a outros suportes e formas de expressão que, tal como o Surrealismo pretendia, não
impunha regras ou qualquer tipo de condicionalismos e preconceitos. A partir de 1953, Cruzeiro
Seixas desenvolveu de forma intensa uma série de exercícios pela acção da palavra, compostos por
textos recortados, colados e por objectos. Neste tipo de intervenções com colagem, é notória a
influência de Max Ernst e dos seus trabalhos de 1924 (Ávila et al., 2001, p.255).

Fig.13 - Cruzeiro Seixas, S/título 1970. Fig.14 - Cruzeiro Seixas, Historia de uma serpente que
Colagem e desenho s/papel, 125 x 245 mm. era oficial e tudo, 1960.
Doação Cruzeiro Seixas. Cartão, concha, ecolibertário, fragmento de transferidor, jornal,
Col. Fundação Cupertino de Miranda, V.N. Famalicão. madeira, pedras, tinta-da-china colados s/tecido montado s/
madeira, 604 x 649 x 67 mm.
Doação Cruzeiro Seixas.

259
Scrapbooks de Cruzeiro Seixas

Este tema visa explorar e destacar uma componente pouco conhecida do seu trabalho, colocando, ao
mesmo tempo, questões acerca da utilização deste tipo de suporte para a prática artística. Assim,
abrimos espaço a uma vertente inédita do seu trabalho e ao mesmo tempo apresenta similitudes com
muita da sua obra e de artistas com quem fez amizade e teve grande influência.
A prática do scrapbook não é nova, sendo utilizada pelos artistas há muito tempo, desde o séc. XVII,
como um espaço de registo de memórias, de ideias e conceitos. A sua definição não é unânime nem
pretende ser consensual, pois a sua utilização foi múltipla por parte dos artistas, tanto no que diz
respeito às abordagens, como aos temas e materiais utilizados.
Acerca desta problemática, o que diferencia um registo preparatório de uma obra final? Esta
interrogação não possui uma resposta objectiva e tem suscitado um amplo espaço de discussão, já
que o critério é definido pelo artista no processo de criação.
é importante salientar que no que concerne a este tema, existe pouca bibliografia no panorama
internacional, e a nível nacional, é um tema praticamente inexistente, sendo que este tipo de conceito
ou abordagem com o uso de cadernos para registos é muitas vezes confundido com a denominação
de diários gráficos, sendo que neste caso, existe uma clara diferencia entre estes dois conceitos para
a prática artística.
A Fundação Cupertino de Miranda reúne um conjunto de 42 cadernos que designamos como
scrapbooks, baseando-nos na recente teorização internacional sobre esta forma de expressão tão
intimamente ligada à colagem. Seleccionamos um conjunto significativo de imagens fortes e de
grande qualidade estética, com base na colagem, integrando desenho e escrita e revelando uma das
poéticas de Cruzeiro Seixas, a reacção directa a acontecimentos do dia a dia, como o próprio refere.
O conceito de criação de obra artística através dos scrapbooks representa um espaço singular e ao
mesmo tempo universal, que comporta um infinito conjunto de linguagens e uma verdadeira porta
de entrada na intimidade dos seus autores. Para a prática artística podem servir meramente como um
suporte para desenhos preparatórios e esboços e ao mesmo tempo constituir uma obra final no
conjunto do objecto – scrapbook.
Cruzeiro Seixas torna o acto de scraping não somente como um registo de desenhos ou memórias,
mas um acto de criação artística que atinge uma dimensão que salva fora do espectro da folha de
papel e da vertente dimensional, já que não fica restrito ao uso do marcador ou do papel para colagem,
usando todo o tipo de elementos para colagem. É este acto revolucionario que torna o scraping,
diferente do denominado diário gráfico.
Os seus cadernos não estão definidos por ordem cronológica, nem reivindicam uma história ou um
conjunto de histórias, desvendam sobretudo um vasto conjunto de intervenções artísticas sobre forma
de desabafos, críticas ou simples desenhos e uma longa carreira artística, com mais de quatro décadas,
compreendida entre a década de cinquenta e o início do novo século.

260
Os referentes de linguagem adoptados foram por vezes divergentes, mas convergem para momentos
de reflexão, de crítica ou de emoção – inquietação, irreverência, entusiasmo, alegria ou melancolia –
nem sempre tendo um destinatário específico.
Os scrapbooks podem ser perspectivados como uma intervenção onde tudo é colagem, desde a
personalização das capas e contracapas ao interior, onde incorpora uma sucessão de métodos por
vezes sobrepostos numa mesma composição, através do uso de técnicas mistas.
Em cada caderno, não existe uma coerência na metodologia ou técnica de colagem, sendo o acaso o
que determina a sua organização e resulta de um somatório desordenado de imagens que vão sendo
adicionadas sem grande preocupação pela organização ou enquadramento. Essa sensação de
despreocupação na sua exploração gráfica é algo que é de certa forma transversal e subjacente a este
tipo de suporte, tanto na esfera nacional como internacional. A este respeito, Alex Kidnick afirma
“But looking at scrapbooks is always a bit like looking at an archive – it´s perpetually unfinished.
Even when all the pages are filled” (Kidnick apud Hawkins, 2013, p.149).
Nos scrapbooks de Cruzeiro Seixas nota-se uma visão eminentemente contemporânea e vanguardista,
alternada com uma linguagem mais convencional, experimental e preparatório para futuras obras ou
como uma obra final. O desafio permanente e a liberdade de atingir novos limites estão implícitos em
muitos dos seus registos escritos, que classifica de desaforismos, uma palavra criada por Cruzeiro
Seixas para designar os seus textos, onde pode expressar todo o tipo de opiniões, desabafos e críticas
e onde encontramos espaço para a crítica e inclusivamente para a autocrítica.
A escrita assume-se como um elemento vital e documental do foro íntimo, resultando em belos traços
e desenhos sublinhados por poemas lusitanos ou africanos que contornam objectos caídos sobre a
folha de papel. É essa condição poética e surrealizante inerente ao seu íntimo e projectada em quem
mais ama, que Cruzeiro Seixas transporta para o seu trabalho. Sobre essa premissa, a poesia assume
particular importância na sua linguagem, com a presença de vários poemas escritos isoladamente na
folha de papel ou integrados no campo visual assumindo a escrita e o desenho uma única e só voz.
Em relação a esse assunto o próprio artista cita num dos seus cadernos:
(...) Julguei possível tornar a poesia um meio privilegiado de comunicação, e afinal isso ao distanciamento e
339) indiferença dos outros. Estou solitário mas não falhei pois a poesia ficou ao meu lado, e tenho que
reconhecer que, embora de maneira muito diferente da gloria dada aos outros, tem tornado possível este dia-
a-dia que sem ela seria completamente impossível...(Seixas, scrapbook nº39, p.107).

Como metodologia criativa, o artista ultrapassa a forma dos cadernos servindo-se das duas páginas
ou dos dossiers como suporte para o mesmo desenho, aplicando a colagem em qualquer uma das
páginas ou em ambas. Temos esse exemplo na obra S/título (Seixas, SB nº2, p.172-173), [Fig.15],
com um desenho de traços, contorno e cenário preenchido pelo negro, quebrados por faixas de luz
penetrantes e figuras desconcertantes, em muitas ocasiões irreconhecíveis. Neste caso, o desenho é
feito através da colagem parcial de uma folha oficial da Intendência Geral dos Abastecimentos de
Lisboa, pertencente ao Ministério da Economia.

261
Fig.15 - Cruzeiro Seixas, S/título, Scrapbook nº2, p.172-173.
Colagem e desenho s/papel, 210 x 300 mm.
Doação Cruzeiro Seixas.
Col. Fundação Cupertino de Miranda, V.N. Famalicão.

O uso de postais ou documentos oficiais sobre os quais intervencionava através do desenho e da


colagem desses mesmos documentos ou postais sobre páginas soltas dos cadernos foi muito comum
e encontramos vários exemplos de obras que importa salientar.
Em outras peças, utilizou postais oficiais do Estado português para desenhar, preenchendo toda a
superfície do postal a negro, com tinta-da-china, com a representação de duas figuras cujos rostos se
cruzam, envoltos de uma mesma forma de cariz escultural, num mesmo olhar sobre o vazio como
observamos na obra S/título (Seixas, SB nº2, p.106), [Fig.16].

Fig.16 - Cruzeiro Seixas, S/título, Scrapbook nº39, p.106.


Colagem e desenho s/papel, 180 x 110 mm.
Doação Cruzeiro Seixas.
Col. Fundação Cupertino de Miranda, V.N. Famalicão.

Ao nível do tipo de suporte utilizado para a colagem, Cruzeiro Seixas desenha e cola documentos
sobre as folhas dos seus cadernos todo o tipo de elementos e materiais, alguns anónimos que

262
recolhia do dia-a-dia e outros referentes à sua vida: cartas, papéis, fotografias e documentos oficiais
dos empregos que teve, postais e papéis dactilografados que marcaram o seu trajecto de vida. Das
folhas e documentos oficiais sobre os quais intervencionou, destacamos os que são referentes aos
empregos tidos em Portugal e em África, sobre os quais desenhava, riscava e escrevia, sem qualquer
preparação ou carácter pré-definido. De assinalar também neste caso, o aproveitamento de uma das
formas patentes no fundo para a sua reprodução no desenho. Como artista saturnino, born under
Saturn e, portanto, fora das convenções morais da sociedade, justifica-se o interesse por este desenho
de carácter obsceno.
Em algumas páginas como na [Fig.17] combinava diferentes elementos para colagem, como neste
exemplo em que vemos uma folha colada numa das páginas e na página seguinte um maço de tabaco
com uma legenda acima a assinalar a data.

Fig.17 - Cruzeiro Seixas, S/título, Scrapbook nº2, p.172.


Colagem e desenho s/papel, 210 x 300 mm.
Doação Cruzeiro Seixas.
Col. Fundação Cupertino de Miranda, V.N. Famalicão.

Fig.18 - Cruzeiro Seixas, S/título, Scrapbook nº21, p.127.


Colagem papel e desenho s/papel, 155 x 110 mm.
Doação Cruzeiro Seixas.
Col. Fundação Cupertino de Miranda, V.N. Famalicão.

263
Poesia e objecto surrealista

O acto scraping encontrou nos seus cadernos um espaço privilegiado para a expressão poética
fortemente envolta na figura do objecto surrealista, através de uma poesia escrita ou documental, de
paisagens carregadas de vazio, ecoam na introspecção e no silêncio da escuridão. É este vai e vem de
palavras e cenários ambíguos, algo chiquirianos ou dalinianos, que forma uma linguagem única e
interpretativa da sua mais profunda consciência. Embora esteja patente uma forte influência de outros
artistas, floresceu uma visão intemporal da arte e do Surrealismo na força das suas palavras e da
alienação do objecto em detrimento do mundo, do qual os scrapbooks são testemunho.
A representação da noite, aliada ao conceito de metamorfose, é recorrente no seu trabalho,
nomeadamente no desenho S/título (Seixas, SB nº18, p.87) [Fig.19], composto a tinta-da-china, com
elementos formalmente ambíguos e orgânicos que se completam entre cavalos interligados ca uma
face e um braço que, por sua vez, entronca em linhas ondulantes e sensuais do corpo humano que
descansa sobre um tronco personificado com um rosto barbudo. Esta figura surge como que abraçada
por um fundo negro e opaco.

Fig.19 - Cruzeiro Seixas, S/título, Scrapbook nº18, p.87. Fig.20 - Cruzeiro Seixas, S/título, Scrapbook nº13, p.126.
Colagem e desenho s/papel, 220 x 155 mm. Colagem e desenho s/papel, 190 x 160 mm.
Doação Cruzeiro Seixas. Doação Cruzeiro Seixas.
Col. Fundação Cupertino de Miranda, V.N. Famalicão. Col. Fundação Cupertino de Miranda, V.N. Famalicão.

De sublinhar a peculiaridade da sobreposição, no desenho, e uma legenda com referência ao Museu


de Serralves, num misto entre fantasia e realidade tão ao gosto de Cruzeiro Seixas.
Esse carácter metamórfico continua no desenho S/título (Seixas, SB nº13 p.126) [Fig.20], onde uma
figura humana com asas, semelhante a um anjo, está sentada a abraçar um animal cujo plano e a
figura, tal como no desenho anterior, são realçados pelo fundo a negro. Mais uma vez, a figura é

264
acompanhada de uma mensagem em nota de rodapé que afirma: “...quasi todas as palavras que as
rodeiam estão gravidas...” (Seixas, scrapbook nº 13, p.109).
Como já referimos, o suporte dos cadernos, embora seja condicionante, nunca foi inibidor da sua
criatividade, servindo-se o artista de forma ocasional das duas páginas dos cadernos ou dos dossiers
como suporte para o mesmo desenho, aplicando a colagem em qualquer uma das páginas ou em
ambas. É disso exemplo a obra S/título (Seixas, SB nº34, p.49-50), [Fig.21].

Fig.21 - Cruzeiro Seixas, S/título, Scrapbook nº34, p.92.


Colagem e desenho s/papel, 220 x 330 mm.
Doação Cruzeiro Seixas.

Fig.22 - Cruzeiro Seixas, S/título, Scrapbook nº2, S/p.


Tinta-da-china, colagem e desenho s/papel, 220 x 330 mm.
Doação Cruzeiro Seixas.
Col. Fundação Cupertino de Miranda, V.N. Famalicão.

265
A livre associação de elementos atesta a sua liberdade no processo criativo, através dos desenhos e
colagens ou na literatura. O culto pelo objecto surrealista e a sua associação à literatura, como tivemos
oportunidade de ver no capítulo anterior em relação ao estudo dos poemas-objectos, constituem um
dos pilares da sua obra. Esse processo de criação é feito a partir de uma miscelânea de sentimentos e
emoções, de vitórias e naufrágios, de conquistas e desilusões, onde se debate constantemente com a
sua própria conflitualidade. A esse propósito, o artista desabafa num dos seus cadernos “...tudo é
verdade ao mesmo tempo que tudo é mentira. O mar não é só mar, o lapis não é só o lapis, o sorriso
não é só o sorriso. Possivelmente a morte não é apenas a morte. A ciência não tem limites, o desejo
não tem limites, a Poesia não tem limites...”(Seixas, scrapbook nº14, p.6).
O espaço dos cadernos foi amplamente usado como um veículo para a realização de desenhos
inacabados e constantemente trabalhados. Se alguns registo foram apresentados como obras finais,
outros são esquissos para futuras obras, que podia ser peças de mobiliário ou esculturas, como o
próprio faz referência em alguns destes desenhos. O esquisso constitui formalmente uma primeira
abordagem a um determinado tema. Vasari escreve: “esquissos [...] chamamos nós uma primeira
espécie de desenhos que se fazem para encontrar o modo das atitudes, e a primeira composição das
coisas” (Arruda apud Vasari, 1998, p.1

Fig.23 - Cruzeiro Seixas, S/título, Scrapbook nº32, p.85. Fig.24 - Cruzeiro Seixas, S/título, Scrapbook nº12, p.29.
Colagem e desenho s/papel, 220 x 160 mm. Colagem e desenho s/papel, 160 x 120 mm.
Doação Cruzeiro Seixas. Doação Cruzeiro Seixas.
Col. Fundação Cupertino de Miranda, V.N. Famalicão. Col. Fundação Cupertino de Miranda, V.N. Famalicão.

iv possível descobrir um infindável aglomerado de registos e referências a inúmeras personalidades


ou movimentos artísticos, de citações que veiculam uma multiplicidade de desabafos, opiniões frases
manuscritas em forma poema ou prosa, escondidas numa página ou articuladas com desenhos,
colagens, fotografias e postais ilustrados. Nesse cruzamento de desabafos e diferentes técnicas de
expressão, Cruzeiro Seixas fez grande uso da imagem, da fotografia e montagem fotográfica que
aliados à literatura constituiu como técnicas essenciais para a definição de uma linguagem gráfica
que representa o seu testemunho dos ideais surrealistas.

266
É particularmente curioso, no caso do uso da montagem fotográfica, o cuidado de deixar uma nota
identificadora do monumento, fazendo desta realidade paralela um limbo, que oscilava entre os
elementos provenientes de uma realidade conhecida e dos desejos e fantasias mais profundos. Importa
também fazer referência, na composição da obra, à articulação de diferentes formas de escrita, com a
presença de escrita manuscrita no interior da imagem, em rodapé e escrita dactilografada, referindo
“Apaixonei-me por aquele sítio” e identificando o respectivo local “Torre de Belém – Lisboa”
(Seixas, scrapbook nº34, p.159). O uso de escrita dactilografada é uma constante em todos os
cadernos, sendo inclusivamente uma prática comum o artista fazer a associação deste tipo de escrita
sobreposta em imagens, desenhos e fotografias.

Fig.25 - Cruzeiro Seixas, S/título, Scrapbook nº34, p.159. Fig.26 - Cruzeiro Seixas, S/título, Scrapbook nº6, p.118.
Colagem de fotografia e desenho s/papel, 165 x120 mm. Colagem de fotografia e desenho s/papel, 165 x 120 mm.
Doação Cruzeiro Seixas. Doação Cruzeiro Seixas.
Col. Fundação Cupertino de Miranda, V.N. Famalicão. Col. Fundação Cupertino de Miranda, V.N. Famalicão.

Em nota de rodapé, abaixo da imagem, refere o seguinte “Não foi necessário frequentar universidades
ou escolas de Belas-Artes para ser tocado por exemplo pela qualidade de daqueles tumulos existentes
na Sé de Lisboa que de tempos a tempos visito” (Seixas, scrapbook nº34, p.159). A criação de
colagens com a combinação de vários elementos oriundos de diferentes realidades, foi também uma
das suas práticas, à semelhança do que produziram outros artistas surrealistas, como Mário Cesariny
ou Alexandre O´Neill.
No uso da fotografia salientamos o processo de ocultação, que foi fortemente usado pela geração
surrealista nacional e em particular por Fernando de Azevedo e Alexandre O´Neill, a partir do início
da década de 50. É disso exemplo a obra S/título (Seixas, SB nº6, p.118), [Fig.26], onde é visível uma
imagem de um portal manuelino, cuja porta foi recortada e ocultada com um manto vermelho

267
que encontra similitude com algumas das colagens de Fernando de Azevedo. Em ambos os artistas,
foi frequente o uso de fotografias de monumentos nacionais e a ocultação de parcelas da imagem.
Embora Fernando de Azevedo tenha desenvolvido as suas primeiras ocultações a partir dos anos
cinquenta, esta peça encontra mais elementos em comum com as colagens desenvolvidas já durante
a década de oitenta, com o uso de fotografias de monumentos nacionais, como acontece na obra
Cigarreira Breve (1986).
Cruzeiro Seixas fazia uso de imagens de monumentos e símbolos nacionais, combinando todo o tipo
de elementos expressivos, com a inserção de legendas em nota de rodapé dos desenhos ou fotografias,
como é visível na obra da [Fig.27].

Fig.27 - Cruzeiro Seixas, S/título, Scrapbook nº10, p.39, 40.


Colagem e desenho s/papel, 180 x 310 mm.
Doação Cruzeiro Seixas.
Col. Fundação Cupertino de Miranda, V.N. Famalicão.

268
Os temas usados por Cruzeiro Seixas no que concerne ao uso da fotografia alargou-se ao uso do
retrato e do auto-retrato, através de um conjunto de registos onde a sensualidade, o erótico, o humor
e o sarcasmo são parte integrante da sua linguagem. Nos exemplos que iremos ver de seguida, foi
particularmente comum o recorte, colagem e ocultação de elementos das imagens, associando o uso
da imagem à literatura. Este tipo de registo encontra similitudes com obras de outros artistas
surrealistas.
A obra S/título (Seixas, SB nº7, p.146), [Fig.28], é representada por uma figura que apela à
masculinidade. Detentora de um forte carácter sexual e mesmo pornográfico, a figura está enquadrada
numa composição que remete para o movimento Pop Art, já que se inspira num cartaz de propaganda
turística, pelo forte cromatismo e pela referência à nudez na praia. A inscrição propaganda turística
de Mallorca adopta talvez uma postura crítica em relação ao tipo de publicidade turística desta ilha,
particularmente ao turismo de veraneio que ali se pratica e que é claramente marcado pela cultura de
sol, praia, vida nocturna e sexo.

Fig.28 - Cruzeiro Seixas, S/título, Scrapbook nº7, p.146.


Colagem e desenho s/papel, 175 x 120 mm.
Doação Cruzeiro Seixas.
Col. Fundação Cupertino de Miranda, V.N. Famalicão.

269
Fig.29 - Cruzeiro Seixas, S/título, Scrapbook nº8, p.25-26.
Colagem fotografia s/papel, 190 x 120 mm.
Doação Cruzeiro Seixas.
Col. Fundação Cupertino de Miranda, V.N. Famalicão.

Fig.30 - Cruzeiro Seixas, S/título, Scrapbook nº , p.3-2.


Colagem fotografia s/papel, 190 x 120 mm.
Doação Cruzeiro Seixas.
Col. Fundação Cupertino de Miranda, V.N. Famalicão.

270
Como ja foi dito anteriormente a sua presença em África foi muito importante para a sua vida e
encontramos nos scrapbook um conjunto muito vasto de registos, reflexões, confissões e desabafos
acerca de África, nomeadamente dos anos que viveu em Angola: “...A Africa é como uma semana
que germinou na minha alma. O contacto com a terra em si mesma e aquela gente são
inesqueciveis. Os espacos imensos apaixonaram-me. Sinto uma grande raiva por um mundo que
deixa chegar angola aquele estado de miseria...” (Seixas, scrapbook nº10, p.115).

Fig.31 - Cruzeiro Seixas, S/título, Scrapbook nº23, p.42. Fig.32 - Cruzeiro Seixas, S/título, Scrapbook nº23, p.126.
Colagem e desenho s/papel, 190 x 155 mm. Colagem e desenho s/papel, 190 x 155 mm.
Doação Cruzeiro Seixas. Doação Cruzeiro Seixas.
Col. Fundação Cupertino de Miranda, V.N. Famalicão. Col. Fundação Cupertino de Miranda, V.N. Famalicão.

Das folhas e documentos oficiais sobre os quais intervencionou, destacamos os que são referentes aos
empregos tidos em Portugal e em África, sobre os quais desenhava, riscava e escrevia, sem qualquer
preparação ou carácter pré-definido. A ligação a África é muito forte e releva através dos muitos
registos nos scrapbook essa predilecção por tudo o que o recorde África, a luz, as cores, os vastos
horizontes e toda a cultura africana.
A obra S/título (Seixas, SB nº23, p.42), [Fig.32], muito importante no conjunto das peças
apresentadas, já que demonstra a paixão de Cruzeiro Seixas por África e o impacto que este continente
exerceu na sua vida. Trata-se de um desenho com dois rostos, sendo que o primeiro, em forma de lua,
caminha sobre uma pedra e onde ambos se complementam com um olhar de tristeza e compromisso.
Se para muitos artistas da sua geração e seus predecessores, Paris foi a cidade de eleição para o
desenvolvimento das suas carreiras, África foi para Cruzeiro Seixas muito mais que uma cidade, um
país ou uma cultura, foi um continente que arrastou consigo momentos de revelação.

271
Esta frase demonstra a importância deste período na sua vida, sendo um dos temas de predilecção nos
scrapbooks. A noção destas verdades omitem o presente e transcendem tudo o que teve oportunidade
de viver dai em diante, remetendo-se consecutivamente para um transbordo na vertente literária, com
a descrição de memórias, críticas ou com poemas dedicados ao continente africano.
Após o seu regresso, podemos dizer que o futuro de Cruzeiro Seixas se fez de constantes viagens ao
passado, num misto de um perpétuo saudosismo e criação de uma nova visão surrealista que foi muito
além de um horizonte longínquo ou de praias cobertas de areias douradas.
Essa saudade, que é tão presente na população luso/africana e que, tal como Cruzeiro Seixas, teve de
abandonar Angola devido à guerra colonial, resulta de uma simbiose cultural muito particular entre
Portugal e África (nomeadamente com as gentes, a arte e a cultura africana) que foi preservada ao
longo de décadas e que, no caso deste artista, permanece inviolável nos muitos desenhos, colagens,
pinturas e poemas que criou. Em algumas peças, texto e imagem complementam-se e enriquecem-se
mutuamente num estilo lírico e poético, sendo que variavelmente encontramos a colagem de
fotografias ou de elementos relativos à cultura africana, como máscaras e objectos. É exemplo disso
a obra na [Fig.33], com o uso de fotos de objectos e aspectos alusivos à cultura africana,
complementado com frases em forma de legenda e da colagem de um cartão de uma livraria em Paris.
Alguns destes elementos, a par de uma vertente gráfica e visual que é naturalmente importante,
consignam uma componente documental que importa sublinhar, com alguns dos sítios e locais onde
habitou ou esteve de passagem, servindo-se de qualquer suporte para registo gráfico ou escrita. Nesse
sentido é importante referenciar a forma como associa em mais do que uma obra a cidade de Paris ao
continente africano.

Fig.33 - Cruzeiro Seixas, S/título, Scrapbook nº32, p.153.


Colagem e desenho s/papel, 180 x 140 mm.
Doação Cruzeiro Seixas.
Col. Fundação Cupertino de Miranda, V.N. Famalicão.

272
As intervenções nos scrapbooks com escrita e desenho foram frequentes sendo fundamental a ligação
da componente poética a elementos plásticos no desenho e na colagem, através de um vasto conjunto
de registos e referências a personalidades ou movimentos artísticos, de citações com desabafos,
opiniões, frases manuscritas em forma poema ou prosa, escondidas numa página ou articuladas com
desenhos, colagens, fotografias e postais ilustrados.
Esse processo de criação é feito a partir de uma miscelânea de sentimentos e emoções, de vitórias e
naufrágios, de conquistas e desilusões, onde se debate constantemente com a sua própria
conflitualidade. A esse propósito, o artista desabafa num dos seus cadernos “...tudo é verdade ao
mesmo tempo que tudo é mentira. O mar não é só mar, o lapis não é só o lapis, o sorriso não é só o
sorriso. Possivelmente a morte não é apenas a morte. A ciência não tem limites, o desejo não tem
limites, a Poesia não tem limites...”(Seixas, scrapbook nº14, p.6).

(...) Julguei possível tornar a poesia um meio privilegiado de comunicação, e afinal isso ao distanciamento e
á indiferença dos outros. Estou solitário mas não falhei pois a poesia ficou ao meu lado, e tenho que
reconhecer que, embora de maneira muito diferente da gloria dada aos outros, tem tornado possível este dia-
a-dia que sem ela seria completamente impossível...(Seixas, scrapbook nº39, p.107).

Fig.34 - Cruzeiro Seixas, S/título, Scrapbook nº34, p.55.


Colagem e desenho s/papel, 200 x 145 mm.
Doação Cruzeiro Seixas.
Col. Fundação Cupertino de Miranda, V.N. Famalicão.

273
Como temos oportunidade de observar ao longo da sua carreira, o registo figurativo, em particular
nos scrapbooks, configurou grande parte da sua obra plástica. Não obstante, Cruzeiro Seixas
desenvolveu, paralelamente, a partir da década de 60, intervenções com colagem que caminhavam
para o abstraccionismo ou para a desconstrução. Alguns dos seus registos remetem claramente para
as várias obras que realizou entre finais da década de 50 e ao longo de toda a década de 60.
O suporte em papel e a escala destas obras não foram uma condicionante para os registos, sendo
alguns destes desenhos acompanhados com anotações que revelam a necessidade do artista verbalizar
acerca deste assunto, com algumas opiniões e comentários.

Fig.35 - Cruzeiro Seixas, S/título, Scrapbook nº32, p.153.


Colagem e desenho s/papel, 180 x 140 mm.
Doação Cruzeiro Seixas.
Col. Fundação Cupertino de Miranda, V.N. Famalicão.

O acaso e a apropriação de todo o tipo de materiais utilizados nestas colagens, caracterizam


conceptualmente o seu modo de criação, na sequência de grandes artistas internacionais que Cruzeiro
Seixas tem como referência. A procura do acaso teve eco nas obras de Kurt Schwitters e de Jean Arp,
constituindo uma das suas maiores referências, como tivemos oportunidade de abordar anteriormente.
Nesse domínio, destacamos a obra S/título (Seixas, SB nº32, p.153), [Fig.35], cuja composição é
composta por formas geometrizadas dispostas de forma aleatória sobre o papel. A relação figura/
fundo é facilmente definida pelo forte contraste cromático.
Uma das curiosidades nos seus cadernos, que atesta o cuidado na sua feitura, passa pelas intervenções
sobre algumas capas com desenhos recortados e colados, ou com a colagem de objectos. A sua
personalização nas capas visa, no nosso entender, associar elementos que sejam subjacentes à sua
identidade, tal como fez também no interior.

274
Encontramos um largo conjunto de scrapbook com capas personalizadas e com colagem de diferentes
elementos, ou com o recorte de desenhos feitos pelo autor. Em outras capas, o artista usou imagens
com recorte e montagem fotográfica, como podemos exemplificar no scrapbook nº30. Na capa, colou
uma imagem de um avião sobre uma gravura que recorda os dépaysements de Raoul Haussman ou
Jorge Vieira, onde é notória a desproporcionalidade e a ruptura estabelecida entre os elementos
colados. Segundo Maria Jesús Ávila “A colagem e a montagem são por excelência os mecanismos
veiculadores destes acasos objectivos” (Ávila, 2011, p.6). Na contracapa, está uma colagem figurativa
com uma forma escultórica, cujo interior é preenchido com a sua escrita sobre um fundo negro,
comum a vários desenhos e colagens realizadas.
Noutros exemplos, o artista exibe imagens com obras de artistas que foram referência para si e
pelos quais teve grande admiração, como acontece na capa do scrapbook nº 34, com a colagem de
uma imagem que retrata uma das obras mais emblemáticas de Giorgio De Chirico, ou no scrapbook
nº 20, com uma obra de Magritte.

Fig.36 - Cruzeiro Seixas, S/título, Scrapbook nº34, capa Fig.37 - Cruzeiro Seixas, S/título, Scrapbook nº20, capa
Colagem s/papel, 200 x 135 mm. Doação Cruzeiro Colagem s/papel, 215 x 150 mm. Doação Cruzeiro
Seixas. Seixas.
Col. Fundação Cupertino de Miranda, V.N. Famalicão. Col. Fundação Cupertino de Miranda, V.N. Famalicão.

275
Conclusão

Não sendo um homem do presente, foi na intemporalidade que encontrou resposta às constantes
problemáticas e interrogações que ininterruptamente colocava. O próprio afirmou, ”...o meu passado
está tão vivo quanto está o presente, e é nele que engendre o presente, certo que não ha futuro. Tudo
é fragil como uma flor...e vive ha milhões de séculos!...” (Seixas, scrapbook nº 13, p. 72). Esta ideia
de intemporalidade está presente na forma como organiza os scrapbooks, / cadernos diários e não
diários, como o próprio os intitula. O artista encarou este suporte de um modo muito peculiar, como
um diário intemporal, pelo cruzamento de registos de todas as proveniências possíveis e absoluta
ausência de qualquer intenção cronológica, classificando as suas anotações como desaforismos.
Apesar das profundas diferenças e das abordagens seguidas em todos os scrapbooks observados,
existem elementos comuns a todos eles, que se prendem sobretudo com a consciência do uso de um
mesmo tipo de suporte gráfico, que apesar de estar bastante condicionado pela sua escala, não foi
impeditivo para a prática artística. O uso da imagem, da fotografia e, como já foi dito, da literatura,
foram essenciais para a definição de uma linguagem gráfica que representa o seu testemunho.
O seu percurso constitui um trajecto de sobressaltos, de múltiplas partidas e abandonos de uma vida
construída dentro de outras vidas, marcado pelo desejo do inexplorado nas sucessivas viagens pelo
mundo, sempre acompanhado de uma simples caneta e papel que trazia consigo para um registo diário
e casual, que muitas vezes reutilizava colando nos seus scrapbooks.
Sabemos que foi em África, continente que conserva a pureza e a magia de um universo que se
pensava outrora perdido e apenas encontrado nos sonhos, que Cruzeiro Seixas encontrou uma das
suas grandes paixões.
Cruzeiro Seixas não é apenas um homem sonhador, o seu carácter liberal e desafiador do status quo
foi evidente desde a sua juventude, pelo arrojo e atitude manifestada na prática artística, sobretudo a
partir dos anos 50, juntamente com Mário Cesariny e os artistas pertencentes ao Grupo Surrealista de
Lisboa.
A ligação entre o sonho e as suas fortes convicções distinguiu Cruzeiro Seixas no movimento
surrealista, convergindo num estilo muito próprio. A sua superior técnica de desenho e de
composição, manifestada na colagem, constitui uma linguagem expressiva de infinitas formas, onde
o artista surge mergulhado num misto de desejos, ambições, desesperos, ódios e ciúmes, por vezes
envolto numa aura negra, que caminha para além do humanamente reconhecível. No entanto, para
Cruzeiro Seixas, o surrealismo é muito mais que um movimento artístico, ou seja, é um estado de
alma, uma forma de estar na vida, uma ideologia e um conjunto de valores que deviam mudar o
mundo e as sociedades.

276
8.1 Fontes Manuscritas

Seixas, Cruzeiro (s/data), Scrapbook nº2. Famalicão: Fundação Cupertino de Miranda.


Seixas, Cruzeiro (s/data), Scrapbook nº6. Famalicão: Fundação Cupertino de Miranda.
Seixas, Cruzeiro (s/data), Scrapbook nº7. Famalicão: Fundação Cupertino de Miranda.
Seixas, Cruzeiro (s/data), Scrapbook nº10. Famalicão: Fundação Cupertino de Miranda.
Seixas, Cruzeiro (s/data), Scrapbook nº12. Famalicão: Fundação Cupertino de Miranda.
Seixas, Cruzeiro (s/data), Scrapbook nº13. Famalicão: Fundação Cupertino de Miranda.
Seixas, Cruzeiro (s/data), Scrapbook nº14. Famalicão: Fundação Cupertino de Miranda.
Seixas, Cruzeiro (s/data), Scrapbook nº18. Famalicão: Fundação Cupertino de Miranda.
Seixas, Cruzeiro (s/data), Scrapbook nº20. Famalicão: Fundação Cupertino de Miranda.
Seixas, Cruzeiro (s/data), Scrapbook nº22. Famalicão: Fundação Cupertino de Miranda.
Seixas, Cruzeiro (s/data), Scrapbook nº23. Famalicão: Fundação Cupertino de Miranda.
Seixas, Cruzeiro (s/data), Scrapbook nº32. Famalicão: Fundação Cupertino de Miranda.
Seixas, Cruzeiro (s/data), Scrapbook nº34. Famalicão: Fundação Cupertino de Miranda.
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8.2 Cruzeiro Seixas - Fontes impressas


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8.3 Cruzeiro Seixas - catálogos de exposições


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Gonçalves, Rui Mário (1967), Cruzeiro Seixas. Lisboa: Galeria Buchholz.

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Seixas, Cruzeiro (1975), Cruzeiro Seixas: 40 Guaches: África 1954/58. Lisboa:
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8.4 Outras fontes


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Miranda.
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Fundação Cupertino de Miranda. Calheta: Centro das Artes Casa das Mudas.

280
ILUSTRAÇÃO DO LIVRO INFANTIL, UMA MULTIPLICIDADE
DE LINGUAGENS

Teresa Salinas Calado

Resumo

Uma das riquezas de ilustrar livros para crianças é a multiplicidade de linguagens que se podem
descobrir quando se exploram formas, cores, materiais e técnicas, na procura da melhor maneira de
comunicar as mensagens que o livro, página a página, pretende transmitir. A presente comunicação
mostra o caminho percorrido no âmbito do meu projeto de doutoramento em Desenho. Ao longo deste
percurso testei várias possibilidades de composição visual, combinando diferentes estilos de desenho,
técnicas de representação, suportes e materiais, o que implicou o uso de recursos tão distintos como o
bloco de desenho e o computador. Pretendo com isto exemplificar o trabalho do ilustrador e a variedade
de expressões plásticas que, dependendo do caminho pelo qual opte seguir, pode resultar em diferentes
estilos de ilustração de um mesmo autor.

Palavras-chave: desenho; ilustração; livro; criança

Abstract

One of the treasures of illustrating children’s books is the multiplicity of languages that can be
discovered when exploring forms, colours, materials and techniques, while looking for the best way to
communicate the messages that the book, page by page, intends to convey. This Communication shows
the way followed during my doctoral project in Drawing area. Throughout this pathway I have
tested several possibilities of visual composition, combining different styles of drawing, of
representation techniques, supports and materials, which implied the use of resources such different as
the sketch book and the computer. With this I intend to exemplify the work of the illustrator and the
variety of plastic expressions which, depending on the path he chooses to follow, may result in different
styles of illustration, created by only one author.

Keywords: drawing; illustration; book; child

281
Ilustrar para crianças

Uma das riquezas de ilustrar livros para crianças é a multiplicidade de linguagens que se
podem descobrir quando se exploram formas, cores, materiais e técnicas, na procura da melhor
maneira de comunicar as mensagens que o livro, página a página, pretende transmitir.
Existem múltiplas formas de ilustrar uma história, pois são infinitas as soluções que podem
resultar, por um lado, da interpretação que o artista faz dela, por outro, das opções formais que
toma para a representar visualmente. A ilustração é, pois, o espelho da interpretação íntima
e livre do seu autor (Oliveira, 2009, p. 8) a partir da qual se geram outras, por parte de cada
leitor (Lins, 2009, p. 46).

(...)o ilustrador amador que ilustrava os livros como hobby, ou nas horas vagas, deu lugar a um
profissional com formação acadêmica, criterioso e encarregado de dar qualidade estética,
funcional e lúdica a um produto bastante peculiar. Não existe técnica mais ou menos nobre,
mas sim a mais adequada ao projeto e ao momento histórico do ilustrador. (Lins, 2009, p. 46).

Reconhecendo a importância que tem a imagem no livro infantil, deve ser ponderada a
forma como a ilustração é trabalhada e apresentada. Aqui, o papel do ilustrador destaca-se
pela sua responsabilidade, no sentido de oferecer à criança imagens com qualidade artística,
que a ajudem a retirar prazer da leitura (Rocha, 2001, pp. 24,25). É importante não perder
de vista que os livros contribuem para a construção da cultura visual das crianças e jovens,
permitindo-lhes descobrir formas de expressão artística e compreender o valor da
criatividade (Terrusi, 2012, p. 111), ao proporcionar tantas e tão diferentes soluções visuais.
A prática de ilustrar livros infantis obedece a regras, implica esforço, conhecimento, talento,
além de tempo e muita dedicação.

Sabe-se que o ato de criação, em qualquer campo da arte, não se dá de forma leviana e impensada.
Conscientemente ou não, surge de um intenso processo de pesquisa. Além das “imagens”
gravadas no arquivo mental de quem cria, há aquelas que surgem de um longo e detalhado
processo de construção consciente: de época, lugar, texturas, intenções, etc.
O livro infantil necessita de pesquisa, conhecimento técnico, projeto e metodologia, tanto na
criação do texto, como na criação da ilustração. (Anielizabeth, n.d.).

O percurso antes do projeto

282
Por trás da função de ilustrar existe um trabalho preparatório, de pesquisa, de estudo, de
reflexão e de experimentação, por vezes moroso e complexo, que dificilmente se adivinha
quando observamos o produto final. Como exemplo desse trabalho, inerente à tarefa do
ilustrador, apresento o caminho percorrido no decurso do meu projeto prático, no âmbito
do doutoramento em Desenho, intitulado “Ilustração do livro infantil, um projeto na
Educação para a Saúde”.
Na sua vertente prática, o trabalho consistiu no desenvolvimento do projeto de ilustração
e design para dois livros infantis, veículos de comunicação e prevenção na área da Saúde
Infantil.
A fase de anteprojeto revelou-se verdadeiramente enriquecedora, na qual se desencadeou
um momento de produção artística extenso e variado, com uma dinâmica muito própria,
estimulada pela alternância na utilização dos suportes, dos materiais e pela transformação
que, de forma natural, foi acontecendo, dando origem a diferentes estilos de representação,
que se apresentam mais adiante.
No decorrer deste período sempre existiu a preocupação no sentido de encontrar uma
linguagem que, adequando-se aos temas e destinatários do livro, não desviasse da
responsabilidade de lhe conferir valor artístico, além de lhe imprimir um cunho pessoal. É
necessário ter em atenção o aspeto formal das figuras, bem como a utilização das cores,
texturas, padrões, mas também a produção de ambientes e, em especial, os pormenores. A
criança, pela maneira muito própria que tem de ver as coisas, diferente da dos adultos, fixa-
se em certos detalhes das ilustrações que passam despercebidos ao olhar dos mais velhos
(Manzano, 1988, p. 48). Além disso, possui uma capacidade crítica que não deve ser
desconsiderada, pelo que trabalhar para o público infantil exige do ilustrador uma
responsabilidade acrescida, no sentido de prestar a máxima atenção aquilo que transmite
através dos seus desenhos. Requer também competência na associação das mensagens
visuais às verbais, produzindo imagens que apresentem qualidade estética, pois os desenhos
dos livros infantis são muitas vezes as primeiras formas de expressão artística com que a
criança contacta. Contribuem para a educação do olhar e desempenham um papel na
formação do seu gosto pessoal (Gloton & Clero, 1997, pp. 155, 156) .

283
Compreendendo o papel do ilustrador na formação da sensibilidade estética da criança, mais
se reforça a importância de aceitar e assumir essa responsabilidade, a de criar imagens com
qualidade. A esta ideia se associa, mais uma vez, a relevância da fase preparatória do projeto
de ilustração, como momento de pesquisa, de reflexão, de amadurecimento, caracterizado
pela permanente procura, experimentação e escolha. Fase na qual se exploram diferentes
linguagens plásticas, começando pelo tipo de traço, passando pela escolha das técnicas,
seleção da paleta de cores, escolha dos elementos a incluir em cada desenho, terminando na
forma de compor cada página ilustrada. A busca de um estilo de ilustração claro, atraente,
sugestivo e pertinente leva a testar diferentes combinações entre elementos visuais como a
linha e a mancha, a forma e o fundo, a luz e a sombra, espaços cheios e vazios, ampliação e
redução, perspetiva, além do uso da cor, ou sua ausência.

Processo de criação, múltiplas soluções

Como exemplo da multiplicidade de linguagens que podem resultar do trabalho do


ilustrador, enquanto procura soluções de representação, apresenta-se de seguida o trabalho
desenvolvido no momento do anteprojeto, do qual se retiram várias possibilidades de
ilustração. O processo de criação foi sofrendo sucessivas mutações, gerando múltiplas
linguagens e encontrando possíveis caminhos. A procura de uma coerência na adequação
do estilo de ilustração relativamente ao tema a tratar levou ao abandono de algumas
soluções, em detrimento de outras, até chegar à proposta final.
Para melhor compreensão divide-se a apresentação em quatro fases distintas, cada uma delas
correspondente a cada estilo.
Numa primeira fase optou-se por imagens que preenchem toda a página, com
representações a uma escala ampliada, numa aproximação propositadamente exagerada,
que, por vezes, chega mesmo a deformar as figuras. A cor está fortemente presente, tendo
sido usadas grandes manchas cromáticas, dando preferência às cores primárias e
secundárias. Esta fase desdobrou-se em duas, tendo sido feita, para comparação, uma versão
a aguarela e outra em desenho vetorial.

284
Na fase seguinte a imagem continua a preencher toda a página. Neste tipo de representação
dá-se uma especial atenção à caracterização dos interiores e dos objetos, que são trabalhados
ao pormenor. A paleta de cores foi criteriosamente decidida, de modo a conferir a cada
ilustração uma atmosfera doce e envolvente, onde predominam cores quentes, em tons
decorrentes do magenta. Aqui o ponto de vista é escolhido de acordo com a ação traduzida
em cada cena, alternando-se a perspetiva com a representação em vista ortogonal. Explora-
se a profundidade do espaço, dada pela perspetiva e pela sucessão de planos. A representação

285
do pavimento e do teto, o uso de padrões e a repetição ritmada de elementos ajuda a reforçar
a ideia de profundidade.

Numa terceira fase adota-se um estilo de representação diferente dos anteriores. Com um
traço mais solto, o desenho mostra uma despreocupação na representação das figuras e
assume uma economia de elementos. As imagens são despojadas de objetos, apresentando
sempre o fundo a branco. A intenção é dar destaque às figuras, fazendo sobressair um
elemento central - o sofá azul - em torno do qual se desenrola toda a história. Este objeto

286
nunca é referido no texto, mas revela-se essencial à ilustração porque faz a ligação entre
todas as cenas, tornando-se parte da história.
Continua a ser utilizada a aguarela, agora com cores suaves, onde se destaca o azul do
elemento principal.

A quarta e última fase foi a que acabou por dar origem à solução final, resultando no estilo
de representação aplicado ao projeto.
Tendo em conta a natureza das temáticas a tratar e objetividade da informação que se
pretendia passar, utilizou-se um tipo de representação clara e objetiva, num desenho
idealmente figurativo. Para tal, optou-se pela técnica de desenho vetorial, trabalhado sobre
o esboço à mão e editado informaticamente.
As ilustrações apresentam-se em página dupla, onde o desenho termina de forma subtil, sem
que haja uma delimitação do espaço que ocupa.
Optou-se por um despojamento de elementos, nas imagens sobre fundo branco, de modo a
dar espaço à intervenção do pequeno leitor. Os desenhos apresentam-se a linha de
contorno, com um ou outro apontamento cromático dado através de manchas de cor
uniforme ou de uma imagem recortada e aplicada à forma.

287
Todas as representações são desenhos de memória, com figuras sintetizadas e retratadas de
forma muito clara. Os objetos são absolutamente identificáveis, sendo muitos deles alusivos
à casa portuguesa.

288
O percurso aqui apresentado é apenas um exemplo de como a fase exploratória de um
projeto de ilustração, quando trabalhada de forma aprofundada, pode abrir caminhos tão
diferenciados e dar origem a múltiplas linguagens estéticas.

289
Referências Bibliográficas:

Anielizabeth. (s.d.). Algumas considerações sobre a ilustração na literatura infantil e juvenil. Acesso em 4 de
Agosto de 2012, disponível em Portal do Ilustrador: http://portaldoilustrador.blogspot.pt/2011/02/algumas-
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para crianças e jovens (pp. 5-10). Rio de Janeiro, Brasil: Secretaria de Educação à Distância, Ministério da
Educação.

Rocha, N. (2001). Breve história da literatura para crianças em Portugal. Lisboa: Editorial Caminho.

Terrusi, M. (2012). Albi Illustrati. Roma: Carocci editore.

290
O DESENHO NA AZULEJARIA DE PADRÃO: UM ESTUDO DA FORMA

Tônia Matosinhos
Mestre em Design pela Escola Superior de Desenho Industrial (ESDI),
da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Brasil.

Resumo

O desenho na azulejaria de padrão emprega formatos tanto geométricos quanto orgânicos. Sua
padronagem é constituída de um ou mais elementos baseados em princípios da forma, tais como
repetição, rotação, simetria, gradação, entre outros. Neste artigo abordaremos os aspectos relacionados
à forma e à estrutura de composição dos azulejos, em um padrão do século XIX comum a Brasil e
Portugal, presente na fachada de uma edificação da cidade do Rio de Janeiro. Trataremos dos princípios
de desenho que o regem – do padrão ao conjunto da fachada – e que nos permitem visualizar diferentes
efeitos: o do desenho em detalhes e o de um tapete de textura uniforme, de acordo com a distância
estabelecida entre o observador e o azulejo, ou seu conjunto.

Abstract

The pattern tile design employs both geometric and organic shapes. Its pattern consists of one
or more elements based on principles of form, such as repetition, rotation, symmetry, gradation, among
others. In this article we will discuss aspects related to the shape and composition structure of the tiles,
in a nineteenth century pattern common to Brazil and Portugal, present in the façade of a building in
the city of Rio de Janeiro. We will talk about the design principles that govern it – from the standard to
the whole of the façade – and which allow us to visualize different effects: drawing in detail and that of
a uniformly textured carpet, according to the distance established between the observer and the tile, or
its set.

291
Largamente utilizada nas composições azulejares portuguesas, sobretudo nos séculos
XVII e XIX, a padronagem é um recurso decorativo de grande efeito visual. Dos azulejos
hispano-mouriscos com suas formas geométricas e orgânicas, introduzidos em Portugal no
século XV, passando pela padronagem inspirada em linguagens como a da ourivesaria, talha,
têxteis, couros e ferronneries60 do final do XVI e três primeiros quartéis do XVII; pelos painéis
de azulejos de padrão azul e branco – no final do XVII e primeira metade do XVIII – ou
pombalinos na segunda metade do XVIII, à multiplicidade de motivos desenvolvidos no XIX
(Fig. 1), o uso da repetição de um determinado desenho com o intuito de ornamentar grandes
superfícies parietais tem sido bastante empregado ao longo do tempo.

Fig. 1: Alguns exemplos de padronagem nos azulejos em Portugal: século XV ao XIX.


(A) Séc. XV-XVI; Foto: Ruben Duarte e Maria de Freitas; Fonte: Silva, Fig.1, p.6; (B) Séc. XVI-
XVII; Foto: Ruben Duarte e Maria de Freitas; Fonte: Silva, Fig.2, p.10; (C) Painel de azulejos
proveniente da Quinta da Bacalhoa, Azeitão, atualmente pertencente ao acervo MNAz, c. 1580-1590;
Foto: Divisão de Documentação Fotográfica/IMC; Fonte: Pais, Fig.1, p.111; (D) Séc. XVIII
(1ª metade); Foto: Ruben Duarte e Maria de Freitas; Fonte: Silva, Fig.9, p.16; (E) 3º quartel do XVIII.
Museu de Lisboa. Foto: Arquivo Alfa. Fonte: Meco, Fig.s/n, p.140; (F) Padrões de azulejos no Bairro
Alto, Lisboa, século XIX; Foto: Tônia Matosinhos

60 Ornamentos em ferro forjado.

292
A chegada do azulejo português ao Brasil ocorre na primeira metade do século XVII.
No Rio de Janeiro, os mais antigos exemplares da cidade datam entre 1660 e 1680 e são
justamente azulejos de padrão: os azulejos de tapete policromáticos (azul, amarelo e manganês
nos contornos) presentes na antiga portaria, no corredor e na escada de acesso às celas do
Mosteiro de São Bento, no centro da cidade (Fig. 2).

Fig. 2: Silhar de azulejos (parte) em padrão camélia,


na antiga portaria do Mosteiro de São Bento, Rio de
Janeiro. Século XVII. Foto: Tônia Matosinhos

Entretanto, é no século XIX que o Brasil se torna um grande importador dos azulejos
de padrão, produzidos através da nova técnica de estampilha61. Ela possibilitou não só uma
maior agilidade à produção, como também a criação de vários padrões distintos, dos
geométricos aos fitomórficos, policromáticos ou a uma cor, geralmente emoldurados por
cercaduras ou frisos.
Os azulejos estampilhados foram aplicados em fachadas de edificações das cidades
brasileiras, sobretudo as litorâneas. Belém, São Luís, Recife e Alcântara estão entre as mais
conhecidas por possuírem o patrimônio em relativa quantidade.

61 Técnica decorativa introduzida em Portugal na primeira metade do século XIX que permitiu a produção de azulejos em
série (SANTOS, 2015).

293
Belém apresenta sem dúvida o maior conjunto de fachadas azulejadas em nosso país. É possível que o
do Rio de Janeiro e o de Salvador o seguissem de perto, mas encontram-se muito reduzidos. O de Belém,
aliás, está diminuindo dia a dia com sucessivas demolições. (Alcântara, 1980, p. 72)

O Rio de Janeiro também recebeu numerosos carregamentos de azulejos de padrão,


conforme podemos constatar nas palavras de Barata: “(...) grande número de casas tem as
fachadas recobertas de azulejos estampilhados, comuns em meados e fins do século passado
(...)” (1955, p. 49). Apesar disso, poucos foram os exemplares portugueses que se mantiveram.
No artigo em questão “O DESENHO NA AZULEJARIA DE PADRÃO: UM ESTUDO
DA FORMA”, abordaremos os princípios da forma empregados em padrões de azulejos
estampilhados característicos do século XIX – comuns a Brasil e Portugal – presentes em
fachadas de edificações da cidade do Rio de Janeiro. Como objeto desta nossa reflexão,
escolhemos um padrão português existente na rua Teófilo Otoni, 93, centro do Rio (Fig. 3) e
em 60 endereços de Lisboa62 (Fig. 4), o qual chamaremos padrão cruciforme com elementos
fitomórficos (Fig. 5).

Fig. 3: Fachada na rua Teófilo Otoni, 93 com os azulejos de padrão do século XIX.
À direita, o azulejo-elemento que reveste a parte inferior da fachada. Foto: Tônia Matosinhos

62 Informação disponível no “Inventário da Azulejaria de Fachada semi-industrial da cidade de Lisboa”, realizado por Isabel
Almasqué e António José Barros Veloso entre os anos de 1988 e 1989, para a Câmara Municipal de Lisboa.

294
Fig. 4: Alguns endereços em Lisboa com o mesmo padrão de azulejos da Teófilo: no alto esquerdo,
sentido horário: rua Bartolomeu de Gusmão, 4; rua dos Fanqueiros, 70 (este com o mesmo friso
também); e Alameda das Linhas de Torres, 50. Foto: Tônia Matosinhos

Fig. 5: Padrão cruciforme com elementos fitomórficos.


Foto: Tônia Matosinhos

295
A propósito do termo padrão, vejamos a definição de Nery (2007):

No azulejo, o conceito de padrão encontra-se intimamente ligado ao da repetição de um motivo gráfico


ou pictórico, organizado segundo eixos de simetria ou de outros esquemas estruturantes, quase sempre
de raiz geométrica, mesmo quando os motivos ornamentais se inspiram na natureza. (p. 86)

Trataremos aqui dos aspectos relacionados à forma no azulejo em questão. Além da


análise da configuração e da estrutura de composição, elencamos também os princípios que
regem os desenhos neste azulejo, tanto em seu padrão quanto no conjunto da fachada. Para tal,
nos baseamos nos estudos relacionados à forma e ao desenho, propostos por Wong (2014).

Forma

O padrão de azulejos da fachada da Teófilo Otoni, 93 é composto de duas formas


figurativas principais, uma com formato geométrico e outra, orgânico. Trata-se de uma grande
cruz no centro do módulo, ladeada de elementos fitomórficos como folhas e galhos estilizados.
Na parte interna da cruz, formatos delimitados por curvas livres estabelecem uma relação de
unidade com os elementos externos a ela, minimizando o contraste entre o geométrico e o
orgânico. Além disso, três círculos em gradação de tamanho, do menor para o maior, dispostos
entre a cruz e os elementos vegetais funcionam como elo entre os dois, não só pela forma como
também pela sua posição no prolongamento da diagonal da composição, que por ali passa (Fig.
6).

Fig. 6: À esquerda, o azulejo visto isoladamente, composto de duas formas principais. À


direita, o padrão formado pela junção de quatro azulejos iguais. Foto: Tônia Matosinhos

296
Quanto à representação de formas da natureza, Wong nos fornece a seguinte informação
que podemos constatar ao observar o desenho no azulejo: “Uma característica comum nas
estruturas de plantas e animais é a existência de uma espinha dorsal ou coluna central com
elementos que se ‘ramificam’ bilateralmente ou em um padrão alternado”. (2014, p. 187) São
essas ramificações que ocupam a área com o maior fundo branco do padrão em estudo – as
extremidades – contrabalançando o peso das demais figuras presentes.

Estrutura de composição

No azulejo visto isoladamente, a forma vegetal encontra-se em destaque, no centro em


diagonal, ocupando a maior parte da área; e secundariamente, a fração da cruz. No padrão,
formado pelos quatro azulejos iguais (2 x 2/1), isso se altera e a cruz passa a prevalecer na
composição, em função do seu tamanho e da posição central no conjunto. Isto significa dizer
que para termos a noção exata do padrão, é necessário visualizar o módulo completo, composto
dos quatro azulejos, agrupados a partir do seu eixo central de rotação (ver Fig. 6, foto da
direita).
Se observarmos a estrutura de composição do azulejo, ela é formada por duas diagonais
principais complementares; e duas linhas secundárias ortogonais, nos lados do azulejo que
representam a fração da cruz. Já na estrutura do padrão, temos duas linhas transversais que se
cruzam (eixos que passam, em ambos os lados, pelo prolongamento dos elementos
fitomórficos, três círculos em gradação de tamanho e linha azul no centro da cruz, continuando
pelos mesmos elementos em ordem inversa, no azulejo do quadrante diagonalmente oposto); e
também duas perpendiculares, antes secundárias (eixos da própria cruz). Este tipo de estrutura
compositiva formada pela harmonia entre as linhas ortogonais e diagonais (Fig. 7) proporciona
equilíbrio e dinâmica simultaneamente, além de um outro atributo – este relacionado às
diagonais – que Almeida (2006) vem nos acrescentar:

O desenho colocado nas diagonais, (...) com possibilidade de rotação dos cantos geram as composições
mais decorativas e tiveram grande desenvolvimento no século XVII, (...) continuando até aos nossos
dias”. (p. 120)

297
Fig. 7: Em vermelho, esquema linear da composição no azulejo (à esquerda) e no
padrão (à direita).

Vejamos a seguir os princípios da forma presentes no padrão cruciforme com elementos


fitomórficos:

1. Repetição

A repetição nada mais é do que a reduplicação de uma forma. Constitui o meio mais
simples de preencher espaços com apenas um desenho, seja ele único ou configurado por duas
ou mais unidades de forma. A repetição constitui o princípio básico da azulejaria de padrão e
nesta podemos incluir a de fachada. Módulos repetidos que de longe funcionam como um
grande tapete a decorar as edificações e que de perto, podemos perceber os detalhes do desenho:

Cada unidade de forma repetida é como a batida de algum tipo de ritmo. Quando as unidades de forma
são utilizadas em tamanho maior e número menor, o desenho pode parecer simples e evidente; quando
são infinitamente pequenas e em grande número, o desenho pode parecer uma porção de textura
uniforme, composto de elementos diminutos”. (Wong, 2014, p. 51)

Embora o autor estivesse aqui se referindo à forma única – e não por exemplo, a um
padrão, composto de mais de uma forma na maioria das vezes – ainda assim seu postulado
pode ser aplicado à azulejaria de fachada, se levarmos em consideração os fatores aproximação
e distanciamento, capazes de proporcionar impressões distintas sobre o mesmo desenho (Fig.
7).

298
Fig. 7: À esquerda, azulejo com repetição, visto de perto em detalhes aparentes; à direita, o tapete à distância,
em textura uniforme. Foto: Tônia Matosinhos

2. Rotação

É a mudança de direção de uma forma. A rotação é outro princípio bastante utilizado


na azulejaria de padrão.

Em todos os conjuntos de azulejo, o ornato, o padrão ou composição, não é livre, mas antes sujeito a duas
dimensões: a do azulejo e a da superfície a revestir. Deste modo são sempre em número par, para que o
principal centro de rotação se situe nos ângulos dos quatro azulejos centrais”. (Almeida, 2006, p. 129)

Na fachada da Teófilo Otoni, o módulo de repetição é formado por 4 azulejos iguais (2


x 2/1) e a rotação é estabelecida a partir do eixo central (Fig. 8).

Fig. 8: Rotação dos azulejos a partir do eixo central, formando o padrão.

3. Simetria

299
É quando uma forma tem sua imagem invertida de modo especular, disposta em lados
opostos. O princípio da simetria pode ser encontrado nos azulejos da Teófilo Otoni ao
formarem o módulo de repetição ou padrão, quer nele tracemos um eixo central horizontal,
vertical ou diagonalmente. A simetria é mais um dos princípios da forma empregados na
azulejaria de fachada (Fig. 9).

Fig. 9: Simetria nos azulejos.

4. Gradação

A gradação pode afetar formato, tamanho, cor, textura, direção e posição. A gradação
de tamanho se baseia na mudança, progressiva e em sequência, do tamanho das formas. É a
que ocorre no padrão que estamos abordando, particularmente nos círculos localizados entre
os elementos fitomórficos e a forma geométrica da cruz (Fig. 10).

Fig. 10: Gradação de tamanho no azulejo.


Para além dos princípios aqui abordados, um artifício utilizado pelo pintor de azulejos
no planejamento da forma com o intuito de sugerir diferença de planos, deve aqui ser

300
considerado: a configuração, delimitada cromaticamente, é realçada em relação ao fundo
(figura-fundo) através da demarcação de linhas mais escuras e espessas que têm por objetivo
colocar em destaque determinados elementos visuais. Este ressalto é dado na folha, nos círculos
em gradação de tamanho e nas linhas internas da cruz. A percepção é de como se houvesse três
planos distintos: o destacado, o intermediário (composto dos galhos estilizados) e o fundo
propriamente dito (Fig. 11).

Fig. 11: Destaque de determinados elementos


visuais através da demarcação de linhas mais
escuras. Foto: Tônia Matosinhos

É fato que estas sutilezas só são notadas se olharmos o padrão de perto. Visto à
distância, tais informações se perdem e o conjunto é percebido de maneira abstrata, como uma
massa decorativa de textura uniforme, ou seja, uma composição na qual o todo prevalece sobre
as partes (ver Fig. 7, foto da direita).
A partir desta investigação sobre o desenho na azulejaria de padrão, pudemos identificar
não só os elementos que o compõem – particularmente, em um módulo aqui estudado – como
também os princípios da forma que o regem. Empregados na decoração parietal, na pintura,
nos têxteis e em tantos outros suportes, tais princípios apresentados neste trabalho constituem
um método eficaz para a cobertura de grandes superfícies, utilizando-se um único desenho –
seja ele composto de uma ou mais formas. Na medida em que os estudamos, compreendemos
sua importância e o porquê do seu largo emprego na azulejaria de padrão.

301
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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Janeiro: Fontana.

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Barata, M. (1955). Azulejos no Brasil. 1. ed. Rio de Janeiro: Mario Barata.

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Meco, J. (1985). Azulejaria portuguesa. 1. ed. Lisboa: Bertrand Editora.

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Nery, E. (2007). Apreciação estética do azulejo. 1. ed. Lisboa: Inapa.

Pais, A. N. (2012). Padrões. In: Um gosto português: o uso do azulejo no século XVII. 1. ed.
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Santos, C. E. F. (2015). Artes Decorativas nas fachadas da arquitectura bairradina: azulejos


e fingidos (1850 – 1950). 1. ed. Mealhada: Câmara Municipal da Mealhada.

Silva, C. (2014). Rota do azulejo padrão: século XV ao século XX. Redondo: Fundação
Henrique Leote.

Simões, J. M. S. (2010). Azulejaria em Portugal no século XVIII. Edição revista e atualizada.


Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian.

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Veloso, A. J. B.; Almasqué, I. (1991). Azulejaria de Exterior em Portugal. 1. ed. Lisboa:


Edições Inapa.

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______. (1989). Inventário dos Azulejos de Lisboa. Lisboa: Câmara Municipal de Lisboa.

Wong, W. (2014). Princípios de Forma e Desenho. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes.

302
NOTAS SOBRE O DESENHO, PERSPETIVA E COMPOSIÇÃO, NOS MURAIS REALIZADOS EM
LISBOA ENTRE OS ANOS 1930 E 1960.

Vinícius Queiroz Gomes


Doutorando em Desenho FBAUL;
Professor do Curso de Belas Artes UFRRJ;

Resumo
A pintura mural realizada em Lisboa entre os anos de 1930 e 1960 representa um recorte muito
específico e atualmente (salvo algumas exceções) pouco valorizado dentro do contexto do modernismo
português. Acreditamos que uma das explicações para este facto se deva à uma visão negativa associada à essa
produção, em função do contexto político em que elas estavam inseridas. O presente artigo se propõe a
apresentar e comentar algumas dessas obras, expondo características ligadas à forma como essas pinturas se
organizam visualmente do ponto de vista do desenho, perspetiva e composição. Este artigo integra a
investigação de doutoramento intitulada “Entre o Monumental e o Íntimo”, que se encontra em fase de
desenvolvimento.

Palavras-Chave: Desenho, pintura-mural, arte-portuguesa

Abstract
The mural painting did in Lisbon between the years 1930 and 1960 represents a very specific and
undervalued production in the context of Portuguese modernism, excluding for some exceptions. We believe
that one of the explanations for this fact is related to the negative perception, that associate this production,
with the political context in which they were inserted. This paper proposes to present and comment on, some
of these works, exposing characteristics related to the way these paintings are organized visually, acording to
the drawing, perspective and composition. This article integrates the doctoral research entitled "Between the
Monumental and the Intimate", which is in the development phase.

Key-words: Drawing, mural painting, portuguese art

303
Introdução
O artigo a seguir propõe uma reflexão a partir da presença do desenho na pintura mural
realizada em Portugal no período compreendido entre 1930 e 1960; com essa finalidade, serão
comentados alguns exemplares existentes na cidade de Lisboa. Destacamos nessas obras,
características formais muito peculiares, determinadas em grande parte pelo contexto
intelectual, político e religioso em que foram produzidas, além da formação artística
propriamente dita, dos artistas que as conceberam. Observamos tais referências nas diferentes
soluções visuais encontradas pelos pintores, que buscaram conciliar as influências modernas
às de tradição secular, ao mesmo tempo em que procuraram atender as demandas colocadas
por ocasião de cada encomenda específica.
O desenho representa um caminho preferencial para o desenvolvimento de um projeto
de pintura mural, sua presença subjaz à imagem pintada e habita o processo de criação desde a
mais remota gênese (nas notas e rabiscos iniciais do artista), até os estudos de detalhamento
final da obra. O pintor, por ocasião do desenvolvimento de um mural, enfatiza os aspetos da
imagem ligados ao desenho, se utilizando desse expediente não apenas como recurso
facilitador, mas principalmente como matéria estruturante de seu pensamento. Nesse sentido,
pode-se dizer que o muralista é antes um desenhista, na medida em que concebe a imagem nos
termos do desenho. Sua utilização (a do desenho) também pode ser entendida como meio pelo
qual o artista associa a sua visão formal ao conteúdo programático estabelecido pelo
financiador; dessa maneira, portanto, em relação às demandas colocadas pela encomenda do
mural, forma e conteúdo são equacionados previamente pelo artista durante o ato de desenhar,
por ocasião da criação do projeto que será pintado posteriormente.
Apesar de estarem ideologicamente associadas ao regime do Estado-Novo português e
em certa medida, traduzir em imagens um certo ideário intelectual de perfil conservador
daquele período, acreditamos que tais obras mereçam uma reavaliação criteriosa, que busque
estimar aquilo que propuseram do ponto de vista artístico, observando-as enquanto exemplares
de natureza didática63. De acordo com esta proposição, tais trabalhos seriam examinados como

63 Acreditamos que o estudo dessas obras sob essa perspetiva propõe um legado interessante para esses
artefactos, requalificando ou em última análise, ampliando o investimento feito à época de sua realização. Os
muralistas do estado-novo português, em grande parte professores, se dedicaram à publicação de manuais,
artigos e conferências sobre o estudo e realização das pinturas, seja por motivação pessoal ou como
contrapartida às bolsas de estudo então oferecidas por instituições ligadas ao governo, como o extinto
Instituto de Alta Cultura.

304
referencial disponível à consulta pelas futuras gerações de artistas, interessadas em realizar
desenhos e pinturas em grandes dimensões, destinados a espaços de uso coletivo.
Este estudo tem em questões relacionadas ao desenho (dinâmica, perspetiva,
organização de claro/escuro e configuração), seu foco de abordagem. Como recurso orientador,
será apresentado um modelo original de ficha catalográfica, que representará um apoio
importante para a investigação dos murais; o sentido primário de organização inerente a este
tipo de ferramenta deverá se somar, neste caso, à uma intenção de pré-análise, cujo roteiro é
sinalizado pela presença dos itens nela incluídos.

O desenho e a pintura mural.


A pintura realizada em grandes dimensões e integrada a uma determinada edificação,
impõe ao artista relevantes diligências relacionadas à adequação da imagem criada ao ambiente
arquitetónico previsto para a obra. Em função de suas medidas diferenciadas e localização, por
vezes de difícil acesso para realização do trabalho, tais obras requerem um planeamento prévio,
que ofereça uma antecipação dos resultados e permita uma execução segura para o artista.
Paralelamente a isso, a encomenda do mural traz consigo a presença dos agentes
financiadores, que apenas permitem o início do trabalho após aprovação do que ali vai ser
executado. Sejam eles mecenas, instituições ou comissões designadas para essa finalidade,
cada um desses personagens exige uma visualização antecipada da obra, mediante apresentação
de projeto, eventualmente até sugerindo elementos a serem incorporados na obra. O desenho
tem sido historicamente a ferramenta ideal de condução desse processo amplo (dos esboços
iniciais à pintura finalizada), pelo facto de sua natureza permitir experiências, alterações,
retornos e adaptações, além da possibilidade de apreciação do conjunto pintura/ambiente.
Os exemplos que serão doravante comentados foram realizados segundo técnicas e
procedimentos tradicionais de pintura mural, as quais no contexto do período investigado,
passaram por uma revalorização e estudo por parte dos artistas-professores; em relação a isso,
destacamos a influência das publicações sobre a técnica do fresco feitas por Dordio Gomes 64,
no Porto e Henrique Franco65, em Lisboa.

64
Gomes, Dordio. 2000.
65
FRANCO, Henrique. (1947).

305
Imagem 1 – Montagem original, com sobreposição de pintura a fresco e desenho
preparatório para uma Anunciação, de Jacopo Pontormo, (1525). Pintura em Igreja
Santa Felicita, Florença.
Imagem 2 e 3 – Desenho preparatório e detalhe do mural a fresco “O Povo de
Lisboa Doa Seus Bens ao Mestre de Avis”, Henrique Franco, (1944). Casa da
Moeda, Lisboa. Registo original da pintura.

A pintura mural em geral, tem na técnica a fresco uma espécie de arquétipo


representativo, condição justificada em grande parte pela fama alcançada pelos grandiosos
exemplos italianos do Renascimento e Idade Média. Isto talvez explique o facto de a expressão
afresco ser frequentemente utilizada de forma indiscriminada, mesmo quando referida a
exemplares executados unicamente com tintas à base de têmperas, por exemplo66. Observamos
a valorização dessa técnica no contexto português de meados do século 20 no depoimento do
pintor Domingos Rebêlo a respeito dos murais feitos para a Assembleia da República:

O processo antiquíssimo da pintura a fresco, usado pelos mestres da Renascença, nas grandes
decorações murais, foi, por assim dizer abandonado, desde aquela época até aos nossos dias. A sua
técnica torna-se difícil, por não ter a maleabilidade da pintura a óleo que se pode interromper e corrigir,
todas as vezes que disso necessitarmos. Ao contrário, com a pintura a fresco, executada directamente
sobre a argamassa de cal e areia, só se pode trabalhar, enquanto esta estiver branda ou fresca, isto é,
no espaço de tempo que vai de Sol a Sol. Impossível completar o trabalho no dia seguinte. O seu efeito,

66
Sobre a utilização ampla da expressão a fresco, Ernst Gombrich em seu livro Os Usos Das Imagens, julgou
necessário destacar o uso, segundo ele, pickwickiano (sic) do termo. Gombrich, E. (2012)

306
porém, na decoração mural, é de um equilíbrio admirável e sem igual em qualquer outro processo de
pintura67.

Curiosamente, como podemos constatar atualmente, este artista não utilizou a técnica
do fresco na obra que a publicação citada acima celebra.
Destacamos a recorrência no uso da técnica do fresco nas pinturas murais feitas em
Lisboa no período observado, contudo, em grande parte dos casos esta técnica é utilizada como
pré-pintura, com acabamentos sobrepostos feitos a seco68, como no caso das pinturas de
Apóstolos, feitas por Lino António para a Igreja Nossa Senhora de Fátima (1938), assim como
na Alegoria ao Cinema, mural de Estrela Faria, concebido em 1953 para o antigo Cine
Alvalade.
O artista utiliza, portanto, o desenho como local de amadurecimento de suas ideias
visuais, projeção e adequação ao espaço arquitetónico, estudos de detalhamento e transposição
da imagem que vai ser executada posteriormente.

Imagem 4 – Henrique Franco durante a execução do mural para a Casa da Moeda: à esquerda
os desenhos preparatórios e à direita, o mural em execução. Imagem pertencente ao arquivo
Calouste Gulbenkian. Disponível em
https://www.flickr.com/photos/biblarte/34867094945/in/photostream/. Acesso em
04/12/2017.

67
Rebêlo, D. (1950) in Olisipo: boletim do Grupo "Amigos de Lisboa", A. 13, n.º 50. Disponível em
http://hemerotecadigital.cm-lisboa.pt/Periodicos/Olisipo/1950/N50/N50_master/Olisipo_N50_Abr1950.PDF ;
acesso em 20/11/2017. Grifo nosso.
68
Utilizando tintas com aglutinantes à base de gema de ovo ou proteína do leite de vaca (caseína).

307
Relacionamos a seguir, as fases do processo de pintura mural onde a presença do
desenho assume relevo:
1 - Os esboços iniciais, local de surgimento da ideia original e onde são reunidos
diferentes elementos a serem incluídos;
2 – O projeto, ou a conceção da imagem e composição a ser pintada: onde o artista
define os elementos da imagem que irão interagir com o ambiente arquitetónico, a
quantidade e disposição das figuras, a relação espacial entre elas e sua localização
na superfície da parede;
3 – Transposição do projeto para a parede: Detalhamento prévio dos elementos a serem
pintados; elaboração dos cartões de transporte, e, especificamente no caso do
fresco, a predefinição dos cortes na argamassa e a eventual utilização de incisões
(que visualmente produzem um registo de natureza gráfica sobre a superfície a ser
pintada) como recurso de transferência69.

Notas breves sobre o contexto que as obras se inserem (passado e presente).


Os murais realizados em Lisboa, entre as décadas de 30 e 60 do século 20 representam
património português importante, todavia, até o momento, pouco estudado em âmbito
académico. Destacamos a variedade de formulações plásticas encontradas nessas obras, a
influência da tradição europeia e dos movimentos muralistas latino-americanos, assim como o
peculiar ambiente político vivido em Portugal nesse período (cuja consideração permite avaliar
o impacto de interferências institucionais na criação artística) como fatores de interesse para o
desenvolvimento de uma investigação a partir dessa produção específica. Tais obras se
configuram como um recorte muito específico e pouco valorizado dentro do modernismo
português70. Acreditamos que uma explicação para tal “esquecimento” se deva à proximidade
histórica ao regime político do Estado-Novo português, assim como uma visão depreciativa
dessa produção, por comparação às vanguardas internacionais do mesmo período:

“Considera-se que a arte moderna em Portugal, nas décadas de 30 e 40 e continuada na década de 50,
foi manipulada por discursos, pela criação de prémios e pelo aumento de encomendas, que motivariam

69
“A pintura só foi executada depois de haver sido firmado o desenho no indulto mole, com uma ponta de
ferro ou de madeira dura, conforme está tradicionalmente indicado, no caso de uma pintura a-fresco.” Franco,
H. (1947). P.56.
70
O pintor Joaquim Rebocho, que possui obras de grandes dimensões como o mural na Igreja do Santo
Condestável, em Campo de Ourique, ou os painéis no Ministério das Finanças de Portugal, recebeu a seguinte
descrição no sítio eletrónico do Parlamento Português, local que também guarda uma obra sua: “Pintor
excessivamente académico e condicionado quer pelos ensinamentos do mestre, quer pelos imperativos
programáticos do Estado Novo, não deixou obra individual de grande relevância”. Disponível em
https://www.parlamento.pt/VisitaParlamento/Paginas/default.aspx Acesso em 01/07/2019.

308
os artistas a abdicar conscientemente da sua liberdade de expressão, devido à aceitação do seu papel
perante a sociedade!71

Nesse sentido, justificamos aqui a ausência de Almada Negreiros, que por sua
notoriedade, possui obra já extensamente estudada e cujas implicações de sua inclusão
extrapolariam os contornos definidos para o presente artigo.
Os murais doravante referenciados foram concebidos por artistas pertencentes a
gerações distintas do modernismo Português, conforme atribuição da historiografia tradicional.
Justificamos a seleção das obras neste artigo pelo facto de apresentarem referências em comum
e diferenças na forma como são organizadas visualmente, o que nos permite estabelecer
parâmetros de comparação para a presente investigação.
A referência clássica observada nas figuras femininas a seguir (com seios desnudos e
trajando túnica), remonta à uma memória imaginária, talvez ligada ao ensino artístico de
tradição académica, ao mesmo tempo em que se associa à um certo revivalismo típico da
primeira metade do século 20. A forma Alegoria (princípio de que se servem os pintores nessas
obras), se apresenta igualmente como índice de uma sensibilidade simultaneamente moderna e
nostalgica, em voga em Portugal naquele período.

Imagem 5 - Estrela Faria, (1953). Alegoria ao Cinema (detalhe) Cine Alvalade.


Registo do autor.
Imagem 6 – Luís Dourdil (1955). Café Império (detalhe). Registo do autor.

71
CARDOSO, S. (2013). Pg 21.

309
Entendemos que o esforço empreendido por esses profissionais, no sentido de atender
às demandas colocadas pelas instituições, mereça ser analisado do ponto de vista das obras e
daquilo que propuseram como homens, artistas e professores72. O interesse desses artistas na
investigação e ensino de conhecimentos relacionados à técnica tradicional torna esse conjunto
peculiar em relação ao que foi feito internacionalmente do mesmo período, ao mesmo tempo
em que demonstraram interesse pela produção de artistas contemporâneos sul-americanos73, o
que sinaliza um horizonte de busca interessante, não obstante pouco evidente quando tais
pinturas são observadas unicamente sob o prisma da estrutura política em que foram
produzidas.

Imagem 7- Joaquim Rebocho e Severo Portela Jr. (1951). Igreja do Santo Condestável, Lisboa.
Detalhe.
Imagem 8 - Sandro Botticelli, (1489). Galeria Uffizi, Florença. Disponível em
https://en.wikipedia.org/wiki/Cestello_Annunciation. Acesso em 10/11/2017.

A análise de documentação referente às obras, assim como as publicações relacionadas


ao contexto artístico de então, permitirão, na sequência da investigação, entrever os indivíduos
atuantes por trás de uma imagem genérica do Estado-Novo; sobre esse aspeto, localizamos um
curioso fragmento do pintor Varela Aldemira, professor da Escola de Belas Artes e em

72
Entre os pintores cujas obras iremos comentar, foram professores os artistas Henrique Franco (Escola de
Belas Artes em Lisboa), Lino António e Estrela da Liberdade Alves Faria (ambos na Escola Artística António
Arroio).
73
Todos os pintores mencionados receberam bolsas de estudo do governo para aprimoramento no exterior,
conforme é possível verificar atualmente nos arquivos do Instituto Camões, herdeiro do espólio documental
do antigo Instituto de Alta Cultura (órgão estatal designado para a condução da política cultural do Estado-
Novo). Destacamos a pintora e professora Estrela Faria: “bolseira pelo Instituto de Alta Cultura, em França,
Itália e Holanda. Fixou residência em São Paulo, Brasil, entre 1953 e 1958.” Citação disponível em: Biografia da
pintora Estrela Faria, http://comjeitoearte.blogspot.pt/2014/10/hoje-aconteceu104-aniversario-da.html,
acesso em 01/07/2017.

310
determinado momento, designado como avaliador para os murais executados no edifício do
Ministério das Finanças, em Lisboa. Observamos a sua peculiar preferência artística a partir de
um comentário sobre um pintor moderno, o suísso Paul Klee:

No desequilíbrio nervoso de Paul Klee são frequentes as dissociações do conceito, falácia


descontrolada, atrabílis na escrita e nos desenhos traçados, dir-se-ia por falanges perras na articulação
de gancho, a esclerodactília dos ossos e músculos das mãos. Daqui resultam as herméticas puerilidades
na prosódia de labirinto, onde os críticos descobrem verdades de alto nível metafísico. 74

Os murais que serão comentados se dividem entre encomendas particulares e oficiais,


assim como de caráter laico e religioso. As circunstâncias de preservação atuais, denotam o
valor atribuído pelos gestores dos espaços a essas obras, assim como pela população que
usufrui do acesso aos locais em que elas estão contidas.
As pinturas localizadas em igrejas se encontram em bom estado de conservação e
atualmente gozam de prestígio junto aos grupos paroquiais e câmara de Lisboa, que
eventualmente promove eventos nesses espaços. À época de suas construções, entretanto, a
receção a essas obras monumentais se dividiu; o historiador José Augusto França se refere a
elas como “equívocos risíveis que os novos bairros de Lisboa pagavam caro”75. Tais afirmações
estariam relacionadas à certa interpretação da tradição presente nesses projetos:

“Na Igreja do Santo Condestável (…) fez-se cenografia em vez de arquitetura. Produziu-se, deste modo,
uma obra que pretende ser um moderno temperado com efeitos de um goticismo totalmente
desvirtuado do seu mais profundo e verdadeiro espírito”76.

Em relação aos edifícios particulares, destacamos, um caso atual de preservação cujo


resultado, em certa medida, descaracteriza a conceção original prevista pelo artista: a
transposição do mural de Estrela Faria em Alvalade representou uma iniciativa fundamental
para a existência atual da obra, visto que o edifício original foi demolido, entretanto, o
acolhimento não calculado no novo projeto arquitetónico alterou relações de escala,
visualização e integração da imagem com o fluxo vital do edifício.

74
Disponível em: http://5dias.net/2008/11/20/a-pedido-de-luis-rainha-um-nome-professor-varela-aldemira/
acesso em 01/07/2017.
75
In CUNHA, J.P. F. G. A. (2014). Pg.99.
76
Flórido de Vasconcelos citado por CUNHA, J.P. F. G. A. (2014). Pg. 100.

311
Imagens 9 e 10 - Aspeto do Foyer do antigo Cine Alvalade. (1953). Disponível em
http://restosdecoleccao.blogspot.pt/2012/03/cinema-alvalade.html. Acesso em 04/12/2017.

Imagem 11 - Alegoria ao Cinema, (1953). Cine City Alvalade, Estrela da


Liberdade Alves Faria. Aspeto atual. Registo fotográfico do autor.

Interrogar os murais a partir de sua visualidade:


A pintura mural e especificamente os murais de Lisboa, representam objetos de estudo
de natureza multidisciplinar, o que significa dizer que uma análise de seus aspetos puramente
visuais ou técnicos não pode se concluir sem uma consideração das implicações oriundas do
contexto em que se inserem. A trama a ser desenvolvida pelo investigador pode, diante desse
aspeto multimodal, facilmente padecer de sua objetividade, caso não estabeleça prioridades e
uma metodologia clara para organização do conjunto e aprofundamento em cada caso.
Diante de um contexto que abrange obras em construções distintas, com soluções
plásticas peculiares, assim como diferentes aspetos de encomenda envolvidos, cabe ao
investigador estabelecer uma base que organize os dados primários e acene com o foco a ser
desenvolvido. Nesse sentido, propomos um modelo original de ficha catalográfica, cuja

312
intenção é organizar as referências recolhidas, possibilitando apontar posteriormente
determinadas dinâmicas ligadas às escolhas feitas pelos artistas em cada situação. Este
documento atuará, portanto, como recurso organizador das características observadas nas
obras.
Baseamos a estrutura deste protótipo de ficha em três modelos existentes, cujos aspetos
principais serviram de base para a sua elaboração, a saber: o modelo Donato, utilizado por
instituições museológicas brasileiras77, o modelo utilizado pela Fundación Goya78 e o modelo
utilizado pelo Projeto Portinari79; estes dois últimos, incluídos como referência por suas
motivações pedagógicas.
A característica que define a especificidade de nossa ficha reside nos itens de descrição
artística80; pretende-se que o seu preenchimento estabeleça um roteiro a respeito do estudo da
composição relacionada ao espaço específico em que a obra se encontra, desta forma, atuando
como uma pré-análise do contexto a ser estudado. A ficha atenderá às necessidades desta
investigação, na medida em que relaciona os espaços físico e plástico da imagem, ao mesmo
tempo em que confronta os significados do mural com aqueles pertinentes ao uso cotidiano da
edificação.
Para a elaboração do protótipo a seguir apresentado, especificamente falando sobre os
itens ligados à composição, foram utilizados como referência, o pensamento de Erwin
Panofsky (sobre as implicações nos significados da imagem, decorrentes da utilização da
perspetiva, descritos no livro A Perspetiva como Forma Simbólica81 e Rudolph Arnhein, a
partir de seus estudos sobre dinâmica, tensões visuais e perspetiva82.
Além dos autores supracitados, foram considerados como referência os estudos
relativos à montagem, aqui entendida como um significado dinâmico, surgido a partir da
reunião de representações parciais de acordo com uma determinada ordenação. Nesse sentido,
utilizamos o pensamento do cineasta russo Serguei Eisenstein, descrito ao longo do capítulo
Palavra e Imagem de O Sentido do Filme83; Pierre Francastel e Marilyn Aromberg Lavin,
ambos mencionados pelos estudos ligados à compreensão dos significados em murais italianos
utilizando a montagem como recurso para a compreensão desses conjuntos84.

77
SILVA, Camila A.
78
Disponível em http://www.fundaciongoyaenaragon.es/goya/obra/metodologia/ Acesso em 01/07/2019.
79
Disponível em http://www.portinari.org.br/ Acesso em 01/07/2019.
80
A partir do item 13 da ficha a seguir apresentada.
81
Panofsky, E. (1993).
82
Arnhein, R. (1986) e (2004).
83
Eisenstein, S. (1983)..
84
Francastel, P. (1982).

313
Ficha catalográfica (protótipo):
1 - NOME DO ARTISTA
Nascimento: local/data
Falecimento: local/data
ASSINATURA

2 - TÍTULO DA OBRA
Data de inauguração
Data registada na obra
3 - TÉCNICA/SUPORTE
Descrição

4 - MEDIDAS Altura Largura Profundidade


5 - LOCALIZAÇÃO DA EDIFICAÇÃO

6 – NOME DO ARQUITETO DA EDIFICAÇÃO


7 - LOCALIZAÇÃO DA OBRA NO EDIFÍCIO:
Acesso amplo ou restrito
8- UTILIZAÇÃO FORMAL DO AMBIENTE
9- HISTÓRICO DA OBRA (com descrição)

10 - DESCRIÇÃO DA IMAGEM

10 - SITUAÇÃO DA ESTRUTURA
Descrição

11 - INSCRIÇÕES/SINAIS/MARCAS APARENTES (danos ou registos intencionais)


Descrição

12 - PROCEDIMENTOS DE CONSERVAÇÃO/RESTAURAÇÃO:
Nome do profissional responsável
Data da intervenção
Descrição dos procedimentos

13 - INTEGRAÇÃO DA IMAGEM COM A ARQUITETURA:


Continuidade ou isolamento com as estruturas ao redor
Visualização da imagem no recinto em relação aos acessos e utilização
Descrição

14 - ILUMINAÇÃO DO AMBIENTE:
Natural/artificial
Integração/interferência cromática na obra
Integração com a composição
Descrição:

15- O TEMA DA OBRA DIZ RESPEITO À FUNÇÃO DO LOCAL?


Descrição

16 - PERSPETIVA:
Existe linha do horizonte definida?
Existe unificação da convergência dos elementos na imagem?
Os elementos/figuras estão encadeados em relação ao plano da imagem?

314
Os elementos/figuras estão encadeados em profundidade?
Descrição

17- EXISTE UNIFICAÇÃO OU CONTRASTE NO TRATAMENTO PLÁSTICO DAS FIGURAS?


Descrição

18 - CLARO X ESCURO:
É unificado?
Existe contraste entre as figuras na forma como o claro x escuro é representado?
Existe orientação comum entre as áreas de luz e sombra nas figuras representadas?
Existe culminância?
Existe destaque ou hierarquia por claro escuro?
Descrição

19 - TEMA E HIERARQUIA:
Existe hierarquia entre os elementos/figuras representadas?
Existe hierarquia por localização?
Existe hierarquia por escala?
Existe hierarquia por isolamento?
Existe hierarquia por destaque/culminância?
Descrição

20 – GIORNATAS (em caso de utilização da técnica de pintura a fresco)


Existem emendas visíveis?
As emendas estão relacionadas à conceção das imagens (figuras ou composição)?
Descrição

20 - NOME DO AUTOR DO FICHAMENTO


21 - DATA DO FICHAMENTO
22- FORMAÇÃO DO AUTOR DO FICHAMENTO
23 - MOTIVO DA INICIATIVA
24 - PALAVRAS-CHAVE

Obras comentadas
A seguir comentaremos aspetos sinalizados na ficha catalográfica apresentada acima,
em relação aos murais selecionados. Tais observações não constituem análises propriamente
ditas, pelo facto de não apontarem para uma totalização conclusiva. Os dados orientados pela
ficha representam fragmentos, cuja sequência da investigação poderá definir a pertinência e
estabelecer inter-relações, consubstanciando ao final, um corpo de análise mais completo.
Para fins de objetividade, organizamos o inquérito às obras em forma de comparação,
pois acreditamos que o confronto entre as soluções desenvolvidas pelos artistas pode evidenciar
especificidades inerentes à maneira como cada um definiu a visualidade consoante às
demandas locais.

315
- Café Império (Luís Dourdill) e Alegoria ao Cinema (Estrela da Liberdade Alves Faria).
Os murais de Estrela Faria e Luís Dourdill possuem algumas referências em comum,
nomeadamente em relação à presença ou memória de certa iconografia de inspiração clássica,
conforme destacamos anteriormente, ao mesmo tempo em que comungam de determinada
gramática visual modernista, de influências cubistas e expressionistas. Um olhar interessado
na singularidade de cada obra, entretanto, pode revelar aspetos ligados à maneira como cada
um administrou tais referências construindo exemplares de características plásticas específicas.
Definimos o item 17 da ficha catalográfica (unificação ou contraste no tratamento
plástico das figuras), como referência para confrontar as características visuais da pintura feita
para o Café Império e do mural criado para o Cine Alvalade: enquanto no Café, a composição
segue um padrão unificado, com um tratamento de superfície contínuo, que aproxima
visualmente figuras e fundo; no cinema, as figuras se mostram com uma independência maior
em relação ao espaço virtual da composição, possuem contornos definidos e claro escuro com
orientação particular em cada figura.

Imagem 12 - Luís Dourdil. (1955). Café Império. Disponível em


http://luisdourdil.blogspot.pt/2016/09/luis-dourdi-nasceu-em-coimbra.html. Acesso em
05/12/2017.

A imagem de Dourdill ordena ritmos verticais e diagonais ao longo da extensão da obra.


Essas direções definem os contornos das figuras e ao mesmo tempo, estruturam certo caráter
isométrico da perspetiva. A unidade entre representação (das figuras e do espaço) e ritmos
abstratos no campo, produz uma escala que se estende do plano da imagem aos volumes

316
sugeridos, com um ponto de culminância em uma única figura, cuja cabeça possui volumetria
pronunciada e sugere querer desprender-se da superfície85.

Imagem 13 - Luís Dourdil. (1955). Café Império. (Detalhe). Foto do autor.

Imagem 14 - Estrela Faria. (1953) Detalhes da Alegoria ao Cinema. Registo do autor.

Na pintura de Estrela Faria, as direções abstratas presentes na dinâmica visual de cada


figura, possuem certa independência em relação ao campo. Definem quebras de ritmos e

85
Curioso observar neste mural, uma outra escala possível, ligada às representações contidas na imagem. Tal
escala teria em seus polos as figuras de inspiração clássica que tal como musas, aparecem com os seios
desnudos e trajando togas, e as figuras de aspeto cotidiano e contemporâneo. Essas diferenças configuram
uma amplitude de tessitura de realidade contida na imagem do mural.

317
tensões próprias; dessa maneira, cada figura atua em relação à composição, como um conjunto
particular e de expressão própria86.
Se em Dourdill, a imagem exibe uma continuidade entre o plano e volumetria (ambígua)
sugerida, com culminância em uma figura de presença destacada; em Estrela Faria, a maior
parte das figuras possui volume próprio e relativa independência de suas direções em relação
à composição87.
Observamos que em cada um desses murais, uma figura se destaca dentro no conjunto:
no caso do Café por possuir uma espacialidade cúbica pronunciada e no Cinema, inversamente,
por exibir um caráter gráfico e de planificação maior.

Imagem 15 - Estrela faria. (1953). Alegoria ao Cinema. (Detalhe).


Registo fotográfico: Marcelo Duprat, setembro de 2017.

Em ambos os casos, o projeto segue uma intenção primária de integração com a


arquitetura, facto que se confirma pelo trabalho ter sido realizado em acordo com os arquitetos
responsáveis por essas construções 88; desta maneira, a disposição das figuras e pontos de
ênfase se encontram em consonância com a natureza dos espaços e se favorece daquilo que
esses ambientes têm a oferecer em termos de visualização.

86
Rudolph Arnhein, ao analisar uma transfiguração de Piero Della Francesca, assinala a forte relação entre
dinâmica e significados presentes em uma obra. Acreditamos que uma reflexão dessa natureza pode ser útil,
posteriormente, em uma análise pormenorizada dessa Alegoria ao Cinema, visto que cada figura possui
dinâmica própria e sinaliza um elemento que compõe o que seria uma espécie de universo imaginário ligado
ao cinema.
87
O que não significa que não haja uma solidariedade entre a composição, as figuras e o ambiente
arquitetónico, conforme destacamos anteriormente. Nomeamos aqui uma maior independência espacial
dessas figuras, algo que em Dourdill se encontra muito relativizado, pela continuidade e coincidência entre os
contornos, perspetiva e demais elementos representados.
88
Os projetos de cada mural foram elaborados em conformidade com os arquitetos Cassiano Branco (Café
Império) e Lima Franco (Cine Alvalade).

318
O aspeto solar da pintura do Cine Alvalade, difere do clima algo atmosférico da imagem
para o Café Império. Neste caso, acreditamos não se tratar apenas de um feliz encontro entre
um tipo de temperamento plástico recorrente nesses artistas e as características de cada espaço.
As imagens do mural feito para o restaurante panorâmico Monsanto por Dourdill, mostram
uma variação luminosa de sua visualidade, nesse caso específico, mais adequada ao ambiente
amplo a que se destina.

Imagem 16 - Luís Dourdil. (1967). Restaurante panorâmico


Monsanto. Disponível em
http://luisdourdil.blogspot.pt/2016/ Acesso em 04/12/2017.

- Tríptico de São João de Deus (Domingos Rebêlo),


- O Santo Condestável (Severo Portela Júnior)
- O Povo de Lisboa Doa Seus Bens ao Mestre de Avis (Henrique Franco).
O estudo dos murais destinados às igrejas do Santo Condestável e São João de Deus,
oferece a possibilidade de investigar formas de organização visual associadas à uma hierarquia
determinada pela temática religiosa. Nesses casos, a composição deve refletir ou respeitar a
importância atribuída à doutrina católica e aos santos, cuja veneração é celebrada nesses
ambientes. Por esse motivo, é natural o assédio (direto ou subjetivo) de certo convencionalismo
formal; dessa forma, é esperado que não se encontrem nessas igrejas, formulações plásticas
como aquelas propostas por Estrela Faria no Cine Alvalade ou Luis Dourdill, para o Café
Império.
A composição para templos religiosos costuma respeitar uma certa topografia
estrutural intuitiva do plano percetivo, a qual sugere a presença de um eixo imaginário, que se
orienta de baixo para cima, como correlato de uma valorização ou ascensão de natureza

319
espiritual. Essa dinâmica primária da imaginação, pode eventualmente associar o tamanho dos
objetos ou figuras representadas em uma imagem, à sua importância, caso exista diferenças de
escala entre eles89.
Cada composição mural irá sinalizar um mapa de hierarquia específico, a partir de uma
ordenação intencional, prevista pelo artista nos desenhos preparatórios. O pintor-desenhista
define os elementos, tamanho, localização e unificação ou não, na elaboração da imagem, de
forma plenamente consciente das implicações do uso deste ou aquele arranjo em cada caso.
Acentuar ou contrariar essas dinâmicas primárias constituem, portanto, vias possíveis de
criação artística.

Imagem 17 - Joaquim Rebocho e Severo Portela Jr.


(1951). O Santo Condestável. Registo Fotográfico do
autor.

No mural O Santo Condestável, de Severo Portela Júnior e Joaquim Rebocho, a


composição obedece ao modelo tradicional de Imagens de devoção, onde a figura venerável do
santo se dispõe ao centro. Não há sugestão de espaços em profundidade, os atributos místicos
e demais representações associadas ao Condestável se dirigem a ele, paralelamente ao plano
da imagem. O ambiente hierático (e soturno) da composição é reforçado pela forma do nicho

89
De acordo com Rudolph Arnhein, contradizer esse eixo intuitivo também representaria um recurso
compositivo interessante; ao citar um exemplo específico na história da arte menciona: “a contradição
resultante entre aspeto visual e importância temática cria uma tensão que começa e a ser explorada durante o
Renascimento” Arnhein, R., 2004. Intuição e Intelecto na Arte. Martins Fontes, São Paulo. pg. 178.

320
onde a pintura se encerra. Tais características de composição, perspetiva e clima são muito
diferentes das que encontramos no mural da igreja da praça de Londres.

Imagem 18 - Domingos Rebêlo. (1953). Tríptico de São João de


Deus. Disponível em http://www.domingosrebelo.com/?p=13
Acesso em 04/12/2017.

No mural em tríptico de Domingos Rebêlo, o sentido narrativo linear associado aos


episódios da vida do santo, se organizam da esquerda para a direita. Do nascimento à morte e
elevação aos céus: no primeiro quadro(esquerdo) em sentido vertical de cima para baixo e nos
painéis seguintes (centro e lateral direito) essa sequência se orienta em sentido inverso, isto é,
de baixo para cima. O painel central culmina com a iluminação do Santo e no painel da direita,
com a sua morte e elevação. Descrevemos esse sentido nas imagens a seguir:

Imagem 19 - A vida do santo e acontecimentos


notáveis (sentido narrativo): 1º nicho –
nascimento e vocação; 2º nicho – iluminação e
visão mística; 3º nicho - morte e elevação.

321
Ao sentido narrativo, contudo, se superpõe o eixo intuitivo de valorização, já
mencionado, que também é sugerido pela configuração em forma de ogiva dos nichos do
tríptico e, em última análise, por toda a estrutura do templo. Se por um lado a sequência
narrativa se inicia de cima para baixo no primeiro quadro, a valorização da doutrina religiosa
e do céu como representação do início e do fim da vida do santo reforçam o sentido vertical
para cima nos três painéis.

Imagem 20 - Eixos ascensionais: nascimento,


iluminação e elevação.

Comentando a partir do item 16 de nossa ficha catalográfica, observamos que a forma


como a perspetiva é utilizada nesse caso, amplia o sentido sensível da imagem, por contrastar
a unificação do conjunto e continuidade entre os momentos da vida do santo com acentuações
espaciais específicas em cada fragmento.

Imagem 21 – Direções e unificação da composição.

322
O paralelismo das direções compositivas que atravessam o conjunto e a equivalência
entre o tamanho das figuras ao longo da superfície da pintura, sugerem um sentido isométrico
geral para a imagem, entretanto, um olhar cuidadoso e um exame parte-a-parte revelam pontos
de aceleração do espaço, tanto nas paisagens em fuga (nos painéis da esquerda e centro), como
no espaço representado na parte inferior do painel da direita, onde um relativo emparelhamento
ao plano da imagem se assemelha à certas soluções presentes na pintura flamenga do século
15.

Imagem 22 - Detalhes do Tríptico de São João de Deus. Momentos de acentuação individualizada


do espaço.

Pierre Francastel, menciona o exemplo de um fresco italiano, onde a reexposição do


tema principal segundo três sistemas espaciais diferentes, propõe uma expansão dos
significados da imagem. Segundo ele, nesse caso:

323
O liame profundo da composição é mais sutil do que uma pseudo-unidade geométrica. Na realidade o
elo que une as três partes do afresco não é de forma alguma geométrico ou estrutural, mas figurativo 90.

Guardadas as devidas diferenças de contexto, podemos partir do mesmo princípio ao


avaliar a pintura de Domingos Rebêlo, na medida em que, de maneira sutil, também subdivide
sua composição em ambientes com identidade espacial específica em cada momento da obra.

Imagem 23- 3º painel: Tensão


entre eixo imaginário de elevação
espiritual e espaço com inclinação
acentuada abaixo.

Na medida em que o espaço é um conceito temporal91, e o espaço pictórico se define


como uma passagem sensível entre dois espaços subjetivos92; o desdobramento do espaço
figurativo ou a soma de diferentes qualidades ou tipos de espaço representado em uma obra da
arte, irá se configurar então como um recurso poético, o qual, pela utilização das possibilidades
de agregação de tipos de representação distintos, expande seu sentido através do alargamento
de sua tessitura temporal.

90 Francastel, P. (1982), Pg. 231.


91
Klee,P., ap. Chipp,H.,B. 1996, p.185.
92
Metzinger., ap. Chipp,H.B. id, p.214.

324
- O Povo de Lisboa Doa Seus Bens ao Mestre de Avis, Henrique Franco.
O estímulo a uma memória histórica idealizada de Portugal alimentou em grande parte,
a ideologia vigente durante o estado novo português. Nesse sentido, certas imagens foram
definidas como representações preferenciais desse sentimento nacional incentivado. A pintura
primitiva portuguesa, encarnada na figura mítica do Grão Vasco e, sobretudo, os painéis de
São Vicente de Fora, atribuídos à Nuno Gonçalves, ocuparam um espaço de referência entre
muitos pintores atuantes nesse período.
Não são raras as composições desse período com inspiração nos Painéis, o fresco O
Povo de Lisboa Doa Seus Bens ao Mestre de Avis, de Henrique Franco, se encontra
precisamente nesse contexto. O engajamento político indireto, representado pelo apelo presente
no tema histórico, não deve ser visto como correlato de uma obra de sentido apenas ilustrativo.
O esforço empreendido pelo pintor no sentido de interpretar as referências quatrocentistas
torna, do ponto de vista didático e artístico, interessante o seu estudo. Destacamos a utilização
da perspetiva como recurso de ênfase da ação central na composição, em contraste com a
planificação da imagem.
Como personagem dessa contradição e elemento de tensão oportuna na obra,
destacamos a mesa, que mesmo assentada no chão em perspetiva, possui arestas não alinhadas
com a fuga por ele indicada. Seu tampo não possui convergência, marca uma direção horizontal
que atende ao sentido de forte lateralidade da composição.

Imagem 24 - Henrique Franco. O Povo de Lisboa Doa Seus Bens ao Mestre de Avis, (1944). Grifo nosso.

325
A técnica do fresco e o desenho
As imagens a seguir sugerem uma combinação interessante entre a necessidade de
execução segundo jornadas, imposta pela técnica de pintura a fresco93 e a conceção artística do
desenho pelo pintor. Observamos na comparação entre as obras de Severo Portela Júnior, uma
forma de simplificação semelhante, presente na configuração da cabeça feminina no desenho
(imagem 25) e nos contornos da figura do Batismo de Cristo (imagem 26); destacamos o facto
de a configuração geometrizada na pintura do anjo coincidir com o corte na massa do fresco,
nesse caso, a solidariedade entre desenho e técnica incorpora a previsão dos recortes, próprios
da execução do fresco, ao projeto feito no desenho.

Imagem 25: Severo Portela Junior (1954). Busto de


mulher. Técnica mista sobre cartão. Disponível em:
http://www.artvalue.com/auctionresult--portela-junior-
severo-1898-198-busto-de-mulher-2588179.htm. Acesso
em 20/11/2017.
Imagem 26: Severo Portela Junior (1960), Batismo de
Cristo. Fresco. Igreja de S. João de Brito, Capela Batismal.
Registo fotográfico do professor Joaquim Inácio Caetano
(FLUL).

Observemos a seguir, outro exemplo de intencionalidade gráfica e compositiva,


presente nos cortes na argamassa do fresco. A Via Sacra de Henrique Franco, na Igreja N.Srª
de Fátima, representa uma variação na forma de exploração visual da técnica. Nesse caso, os
cortes são pensados em forma de arranjo abstrato no campo visual.

93
Esta técnica consiste em pintar diretamente sobre o revestimento da parede, recém aplicado e ainda
húmido, feito de argamassa à base de cal. A pintura é feita com pigmentos diluídos em água que penetram
essa superfície e são “aprisionados”, conforme decorre a secagem da massa. Sua natureza exige um
planeamento rigoroso, principalmente pela característica específica de execução parte-a-parte, peculiaridade
que acentua a importância do desenho prévio da composição, no processo de elaboração do mural. A secagem
da argamassa varia entre 30 minutos a duas horas e meia, aproximadamente, conforme a temperatura e
umidade do local. A medida do tempo que o artista dispõe para trabalhar, portanto, está relacionada a esse
dado e determina a restrição de tamanho das áreas a serem trabalhadas por jornada.

326
Nas imagens, os traços brancos marcam o trajeto dos cortes feitos na argamassa e os de
cor laranja, as direções compositivas do desenho da imagem.

Imagem 27. Henrique Franco, 3 Estações da Via Sacra, (1938). Frescos. Igreja São João de Brito. Registo
fotográfico de Marcelo Duprat Pereira feito em setembro de 2017.

Imagem 28. A solidariedade e complementaridade entre os ritmos geométricos da composição e os cortes


do fresco em três situações distintas

Considerações finais.
Através do estudo desse conjunto de obras, esperamos desenvolver um modelo de
análise baseado no desenho que, segundo esperamos, seja útil à formação de desenhistas e
pintores muralistas, assim como informativo a investigadores dedicados ao estudo dessa
produção em perspetiva histórica. Os resultados aqui apresentados representam fragmentos
desse empreendimento, que se encontra em desenvolvimento.
Diante dos diferentes aspetos da pesquisa, optamos neste artigo por apresentar parte do
nosso objeto de estudo (os murais do estado-novo português em Lisboa) e principalmente,
fundamentar a importância do desenho nesta investigação, ou seja, definir a relação da pintura
mural com os temas ligados ao desenho, assim como definir o desenho como elemento para
investigação dessas imagens.
Acreditamos que o desenvolvimento da tese irá contribuir com a valorização desse
património por meio de sua divulgação enquanto conjunto, ao mesmo tempo em que deverá

327
contribuir com outros campos correlatos de investigação (nomeadamente história, conservação
e património), além do desenho e da pintura, propriamente.

Referências bibliográficas.

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328
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Contemporânea da Universidade de São Paulo. (2015). 299 f. Dissertação (Mestrado) - Curso
de Museologia, Inter unidades em Museologia, Universidade de São Paulo, São Paulo.

329
CLASSIFICAÇÕES DO LIVRO ÁGRAFO E A SUA LEITURA

José Salmo Dansa de Alencar


Doutorando em Design do Departamento de Arte & Design, PUC - Rio.

Resumo
A simultaneidade entre ambientes materiais e ambientes virtuais tem sua equivalência às dimensões tangíveis
(estéticas) e intangíveis (históricas, semióticas, teleológicas) do livro ágrafo. Este artigo propõe uma classificação
taxonômica deste tipo de livro, tomando características como conjunto de sinais capazes de indicar categorias. O
trabalho parte da análise de dois tipos de livro ágrafo: livros de imagem e livros de artista, suas relações,
classificações e subcategorias relacionadas ao processo criativo. Essas características são tomadas como códigos
para estabelecermos uma reflexão acerca da leitura de códigos visuais, relacionadas também à nossa metodologia
de análise em quatro etapas que correspondem às quatro dimensões do espaço-tempo: 1ª dimensão - linha
(desenho); 2ª dimensão - plano (página); 3ª dimensão - objeto (livro); e 4ª dimensão - tempo (narrativa).

Palavras chave: livros ágrafos; Design; Literatura; Estética, Taxonomia.

Abstract
The simultaneity between material environments and virtual environments has its equivalence in the tangible
(aesthetic) and intangible (historical, semiotic, teleological) dimensions of the textless book. This article proposes
a taxonomic classification of this type of book, taking characteristics as a set of signs capable to indicate
categories. The work starts from the analysis of two types of textless book: picture books and artist’s books, their
relations, classifications and subcategories related to the creative process. These characteristics are taken as
codes to establish a reflection about the reading of visual codes, also related to our methodology of analysis in
four stages that correspond to the four dimensions of space-time: 1st dimension - line (drawing); 2nd dimension
- plane (page); 3rd dimension - object (book); and 4th dimension - time (narrative).

Keywords: Textless book; Design; Literature, Aesthetic; Taxonomy

330
Introdução
A noção de gênero engloba inúmeras acepções que fazem parte de nosso vocabulário
para classificar objetos em categorias. Essa forma de classificação a partir das abordagens das
ciências naturais tornou-se tão assimilada pela cultura que passou a ser tomada, nos dias de
hoje, como forma dialética de contrapor ideias genéricas e específicas. O conceito de gênero
consiste em uma unidade de classificação para agrupar espécies de objetos com semelhanças
morfológicas e funcionais refletidas em ancestralidades aproximadas.
Ambientes virtuais refletem ambientes tangíveis, portanto, sistemas de busca de
bibliotecas são estruturas de organização que decorrem de um pensamento classificatório em
analogia às estruturas de organização material. Essa simultaneidade entre ambientes tangíveis
e intangíveis tem sua equivalência no objeto que tem suas formas de atuação social como
extensão da matéria configurada. A equivalência entre a biblioteca e seu sistema de busca pode
ser comparada, no caso dos livros ágrafos, a equivalência entre suas dimensões tangíveis e
intangíveis. Neste caso, as dimensões estéticas trazem aspectos mais tangíveis relacionados às
dimensões de espaço/tempo e sua morfologia. Dentre os aspectos intangíveis nos interessa aqui
a dimensão semiótica e comunicativa, que procuramos abordar em função da leitura.
O presente artigo consiste na apresentação de uma classificação taxonômica de livros
ágrafos nos campos de conhecimento com maior incidência: os livros de imagem, pertencentes
à Literatura infantil e os livros de artista, pertencentes às Artes visuais. As obras apresentadas
foram coletadas em dois acervos: livros de imagem da Biblioteca de Leitura e Literatura Infantil
e Juvenil – BLLIJ do Instituto Interdisciplinar de Leitura – iiLer e o acervo de livros de artista
do Research Centre for Artists' Publications – Weserburg, de Bremen, em 2017. O material
apresentado integra o corpus da pesquisa de doutorado intitulada ‘Estudo das dimensões do
livro ágrafo’, iniciada em 2014, no Departamento de Arte e Design da Puc-Rio.
A descrição das principais características dos livros ágrafos serve aqui para estabelecer
tipologias de imagem, objetos, formas narrativas e critérios de legibilidade. Nesse sentido,
apresentamos uma classificação esquemática do livro de imagem, partindo de um breve
percurso da formação de sua terminologia, a influência dos gêneros literários, semelhanças e
distinções em relação ao livro de artista e a influência de outros meios sobre suas formas de
narrativas (Rosenfeld, 1983; 1995; Sagae, 2008; Linden, 2011; McCloud, 2005). Em seguida,
descrevemos características dos livros de artista em sua classificação em relação às Publicações
de artista, apresentando distinções que incluem suas espécies, subcategorias e a influência da
tecnologia nos processos de categorização. (Thurmann-Jajes, 2009, 2010; Ludovico, 2015). No
último bloco, abordamos a leitura dos livros ágrafos comparando imagens e grafias, processos

331
de criação e fruição. As duas principais categorias de livros ágrafos trazem contribuições
distintas nos processos de análise e leitura, encontrando pontos em comum na influência das
formas verbais para cada tipo de narrativa, na relação genérica ou específica com cada ambiente
(Nikolajeva, 2011; Favero & Kock, 1983; Mc Cloud, 2007; Carrion, 2011; Krüger, 1993).

1 Classificações do Livro Infantil

O surgimento de novos padrões em determinado sistema está diretamente relacionado


ao conceito de transcendência, ou seja, uma evolução do sistema assimilando aspectos de seus
antecessores, em busca de um novo estágio evolutivo. Este conceito do pensamento sistêmico
permite uma analogia distintiva entre o livro de artista e os livros infantis por percebermos no
primeiro esse aspecto expressivo, de cunho mais exploratório, capaz de reformular por
completo as concepções estéticas da imagem bibliográfica.94
A obra de Claus Boehmler, por exemplo, inclui uma gama diversificada de publicações
baseadas em imagens e, especialmente, no desenho. Alguns desses livros trazem rascunhos de
projetos, descrições visuais e registros de processos criativos que sugerem diversos
procedimentos de experimentação e dissecação da forma gráfica. O livro ágrafo Bild-
Partituren (Figura 01-b) traz 32 páginas com desenhos em preto e branco que têm mais
características do desenho usado como ferramenta do pensamento do que de uma ‘arte final’.
De outro modo, o livro Pinocchio, (Figura 1-a) do mesmo autor, tem os mesmos aspectos
experimentais traduzidos em uma linha de trabalho conceitualmente mais clara. Essa
legibilidade está ancorada no uso de legendas verbais e em identidades visuais de um gênero
mais popular, o livro infantil.
No exemplo de Boehmler, os desenhos impressos em duas cores sobre papel
quadriculado fazem combinar perfeitamente a identidade do objeto (caderno escolar) com a
identidade da imagem (ilustração de livro infantil), sem perder suas características
experimentais. Esse aspecto de registro de um processo que não se encerra na obra é uma
característica muito peculiar ao desenho contemporâneo, em que não há uma narrativa, no
sentido tradicional do termo, a não ser pela sequencialidade das páginas.

94
O termo ‘imagem bibliográfica’ busca aqui ampliar os sentidos do termo ilustração que, usado de forma
genérica, pode limitar nossa abordagem pela raiz etimológica, que a liga diretamente às iluminuras e seu sentido
funcional, que a coloca como instrumento de esclarecimento do texto verbal.

332
Figura 01. Capa e trecho interno de Pinocchio, (a) e capa de Bild-partituren (b), ambos de
Claus Boehmler. Fonte: Weserburg.

Nesse sentido, podemos encontrar tanto semelhanças morfológicas, quanto essas


divergências ideológicas que concernem aos gêneros relacionados aos dois tipos de livros.
Portanto, podemos estender a ideia de identidade da imagem e identidade do objeto às quatro
dimensões de espaço-tempo abarcando, deste modo, a 1ª dimensão – linha (desenho); 2ª
dimensão – página (imagem); 3ª dimensão – livro (objeto); e a 4ª dimensão – tempo (narrativa),
como identidades de livros ágrafos.
A questão central da classificação taxonômica do livro infantil é a duplicidade de seus
conteúdos e as formas de interação entre texto e imagem, tendo em conta que cada linguagem
tem natureza própria e características distintas. Por uma questão ontológica, as principais fontes
deste imaginário e sua análise teórica vêm da Literatura e, nesse sentido, o aspecto verbal tende
a prevalecer sobre o aspecto visual com abordagens baseadas em analogias à Estética da criação
verbal.
O crítico Anatol Rosenfeld, em seu livro ‘O Teatro épico’, afirma que as ideias centrais
dos gêneros literários têm origem na ‘República’ de Platão, pelas definições dos três tipos de
obras poéticas, a Lírica, A Épica e a Dramática. Nessas acepções há variações que podem ser
percebidas pela forma como a história é apresentada, ou seja, “uma em que há introdução de
um terceiro (em que os próprios personagens se manifestam) e outro em que se insinua a própria
pessoa (do autor), sem que intervenha outro personagem” (Rosenfeld, 1985, p. 16).
Essas classificações são artifícios dentro de uma realidade literária multiforme, na qual
“a pureza dos gêneros e das formas literárias jamais foram valores positivos”. Neste sentido,
Rosenfeld estabelece que através dos gêneros diferentes tipos de imaginação e atitudes se
manifestam frente ao mundo e que essa “maneira pela qual é comunicado o mundo imaginário
pressupõe certa atitude em face deste mundo ou, contrariamente, a atitude exprime-se em certa
maneira de comunicar” (Idem, p. 17).
A teoria dos gêneros é aplicada em duas acepções diferentes: a acepção substantiva,
mais ligada a estrutura dos gêneros e a acepção adjetiva, que se refere aos traços estilísticos

333
que uma obra possa carregar em maior ou menor grau. Mesmo considerando a dissolução de
fronteiras entre cada gênero, podemos perceber as tonalidades de cada um se considerarmos
que a Dramática será predominantemente constituída de obras dedicadas à encenação teatral,
televisiva, cinematográfica. Do mesmo modo, na Épica tomam parte os poemas de maior
extensão em que um narrador apresente personagens e eventos. Por fim, devemos considerar
que se alinha substantivamente à Lírica “todo poema de extensão menor, na medida em que
nele não se cristalizem personagens nítidos e em que, ao contrário, uma voz central [...] nele
exprimir seu próprio estado de alma” (Idem, p. 18).
Por estas definições teríamos uma primeira distinção entre o livro infantil e o livro de
artista, pela qual o primeiro tem suas raízes mais ligadas à Épica, já que a matriz principal dos
livros infantis são os contos de fadas e as fábulas. Do mesmo modo, podemos considerar no
caso do livro de artista, a prevalência das poéticas sobre as narrativas e suas características na
Lírica. Como texto de ficção, o conto apresenta uma estrutura básica com um narrador,
personagens, ponto de vista e enredo. No caso do livro infantil, a função desse narrador ou
parte da narração pode ser ocupada pelas ilustrações. Outra relação é a atmosfera de liberdade
e fantasia encontrada nos contos de fadas e nas fábulas. A fala dos animais se torna um canal,
na voz do narrador, transportando o leitor para a era pré-cristã, quando as fábulas de Esopo
foram cunhadas.
Seja na forma de fábulas ou em reinvenções contemporâneas, os livros infantis
reinventam sua própria linguagem visual, estabelecendo-se como uma linguagem universal
integrada num processo de ressignificação e hibridização. Na contemporaneidade esse processo
tem incidido fortemente sobre as formas de ilustração e configuração do objeto com a forte
influência do livro de artista, percebida mais claramente em livros de imagem.
A fixação do termo livro de imagem em referência ao livro ágrafo infantil tem sido
discutido no trabalho de teóricos brasileiros nos últimos quarenta anos. Essa confluência de
estudos de diferentes disciplinas criou desencontros terminológicos em função da teleologia do
objeto em cada campo de conhecimento. Esta realidade não está restrita ao universo dos livros
ilustrados brasileiros, pois, segundo Sophie Van der Linden, “não há em muitos países um
termo fixo para definir o livro ilustrado infantil” (Linden, 2011, p. 23).
Peter Sagae em sua tese de doutorado, intitulada ‘Imagens e Enigmas na Literatura para
Crianças e Jovens’ (2008), apresenta um esquema da evolução do termo adaptado à língua
portuguesa no Brasil. Nelly Novaes Coelho trouxe a campo o seu ‘Dicionário Crítico da
Literatura Infantil e Juvenil Brasileira’ (1983) e Luís Camargo, tomou emprestadas as funções
da linguagem para aplicá-las à ilustração (1995), enquanto Lúcia Pimentel Góes apresentou

334
classificações no estudo do ‘livro só-imagem’ (1996). No entanto, devemos considerar o
trabalho pioneiro da ilustradora Regina Yolanda (1976) para a pesquisa da ‘I Exposição
Retrospectiva de Ilustração do Livro Infantil e Juvenil Brasileiro’. São três os grupos de
principais campos de conhecimento que têm trazido contribuições teóricas e discussões em
torno das terminologias para o livro de imagem:

(1) Artes, Comunicação e Design, que privilegiam o ponto de vista do ilustrador e da


produção de livros; (2) Psicologia e Educação, que se ocupam do uso instrumental dos
livros e da mediação da criança com a Literatura; por fim, (3) Linguística e estudos
literários, centrados na textualidade e no fazer estético das obras (Sagae, 2008, p. 17).
Em sua acepção mais literal, o termo livro ilustrado é bastante abrangente, dando conta
de livros de artista e livros infantis, o que se torna uma afinidade no que concerne às obras que
contemplam textos e imagens, consideradas aqui como gêneros. Por essa lógica, o livro de
imagem (infantil) e o livro ágrafo (de artista) podem ser classificados neste trabalho como
espécies nas quais incidem conjuntos de tipologias de livros infantis que compreendem três
grupos de obras: livros descritivos, interativos e narrativos. Cada um desses três grupos
comporta obras mais ou menos adequadas às características que anunciam.
A classificação dos livros ágrafos relacionada às quatro dimensões de espaço-tempo
abarca quatro tipos de identidades: desenho, imagem, objeto e narrativa. Na primeira dimensão
encontramos identidades do desenho como: o desenho de observação, geométrico, caligráfico,
desenho de humor e projetual. Na segunda dimensão encontramos identidades da imagem
(bibliográfica), como: decorativa, linear, pictórica, icônica e simbólica. Na terceira dimensão
encontramos as identidades do objeto, em sua qualidade físico/material, como: único, serial,
artesanal, monografia, descritivos, interativos e narrativos e, na quarta dimensão encontramos
identidades da narrativa como: espacial, causal, sequencial, cinética e verbo-visual.
A classificação do livro infantil, de modo geral, está alinhada às relações com o gênero
literário, mas o livro de imagem traz aspectos próprios pela predominância absoluta de
conteúdos visuais. Por outro lado, esse predomínio da visualidade não é suficiente para um
descolamento de sua origem literária, nem para a adesão absoluta ao campo das Artes visuais.
Deste modo o livro ágrafo, como artefato, é ligado à Arte Visual pela forma material e à
Literatura pelo aspecto narrativo, enquanto o Design atua no âmbito processual e,
especificamente, no “planejamento, ou seja, a aplicação dos conhecimentos de diversas áreas
na solução de problemas específicos e concretos” (Bonfim, 1997, pp. 27-42).
A influência da Literatura, contudo, não acontece como via de mão única, mas nos dois
sentidos e mais predominantemente sobre os aspectos da forma do que sobre os conteúdos. Por

335
exemplo, o autor e ilustrador estadunidense Peter Newell produziu três livros que inovaram por
abordar a própria forma do livro: ‘O livro do buraco’, 1908; ‘O livro inclinado’, 1910 (Figura
02-a); e ‘O livro do foguete’, 1912 (São Paulo: Cosac Naify, 2008). Nesse sentido, livros de
artista elaborados com base na estrutura do códice, muitas vezes, transitam por caminhos já
percorridos por livros infantis.

Figura 02. Capas de (a) ‘O livro inclinado’, de Peter Newell. São Paulo: Cosac Naify, 2008.
(1ª edição: Nova Iorque: Harper & Brothers, 1910) e (b) Éloge de L’italique, de Claude Faure
(Nova Iorque: Emily Harvey editions,1989). Fontes: iiLer e Weserburg.

Portanto, o livro infantil ágrafo pode tanto assemelhar-se como distinguir-se do livro de
artista, havendo, entretanto, uma distinção radical por sua relação com o Conto, gênero literário
que é a raiz de suas características formais. Uma característica essencial para entendermos o
livro infantil, foi apontada por Laurence Sipe, afirmando que “A primeira característica que
você perceberá nos picture books [livros infantis] é a brevidade: Genericamente, um picture
book tem a extensão média de 32 páginas” (Sipe, 2010, p. 72, tradução nossa).
Essa brevidade está diretamente relacionada com sua extensão material e narrativa, uma
vez que a matriz principal dos livros infantis é o conto. Além do número limitado de páginas,
há uma concisão (idealizada) nesses livros devido ao predomínio das imagens sobre as
palavras. Como decorrência, o texto tende a ser proporcionalmente menor, podendo chegar a
um idealizado grau zero no caso do livro de imagem. “De fato, alguns picture-books são ágrafos
ou possuem poucas palavras” (Ibidem).
Essa independência das imagens em relação aos textos têm permitido que artistas
produzam livros dedicados às crianças seja como expressão de afeto, seja como abordagem
consciente do livro infantil. Então, o livro infantil, que tem sua própria ontologia, cunhando
suas características formais e estruturas narrativas, no ambiente das Artes Visuais torna-se um

336
gênero “associado à forma de arte livro de artista” (Thurmann-Jajes & Vögtle, 2010, p. 52.
Tradução nossa).
Os livros infantis beneficiam-se largamente das possibilidades narrativas engendradas
na arte sequencial. Por exemplo, nos livros de imagem, que inicialmente se limitavam a mostrar
cenas e objetos, a narrativa visual passou a ser experimentada em decorrência do repertório
narrativo desenvolvido anteriormente pelo cinema mudo e quadrinhos [banda desenhada].
Podemos dizer que a forma gráfica de contar histórias em quadrinhos foi alcançada num
momento posterior ao cinema mudo, assimilando assim grande parte de seus avanços
narrativos, já que o domínio da narrativa visual no cinema se deu de forma independente da
linguagem verbal e, até da linguagem musical presente no primeiro momento.

Alega-se, por exemplo, que a música, no início, não veio satisfazer um impulso
artístico, mas a simples necessidade de encobrir o ruído do projetor [...]. Por
conseguinte, os proprietários de cinema recorreram desde o início a pianistas e logo em
seguida a orquestras [...], neutralizando o som desagradável por um som mais agradável
(Rosenfeld, 1993, p. 123).

Antes mesmo de se produzirem as revistas em quadrinhos o filme mudo já havia


conquistado total domínio dos meios de expressão, ainda que as afinidades entre esses dois
meios na contemporaneidade passe certamente pela relação com a palavra. Do mesmo modo,
nos livros infantis são as imagens e os objetos que desempenharam ao longo do tempo um
papel mais experimental pelas qualidades estéticas intrínsecas às imagens e objetos, de acesso
imediato aos olhos e ao tato. O livro ágrafo se desenvolveu potencializando diferentes
imaginários e, nesse sentido, podemos considera-lo como espécie de livro infantil, no âmbito
da Literatura infantil, assim como espécie de livro de artista, no campo das Artes Visuais.

337
Taxonomia dos livros ágrafos
ÉPICA LÍRICA CLASSE
CONTO POESIA ORDEM
CONTO de FADAS POESIA CONCRETA FAMÍLIA

LIVROS INFANTIS LIVROS de ARTISTA GÊNERO

LIVROS de IMAGEM LIVROS ÁGRAFOS ESPÉCIE

DESENHO IMAGEM OBJETO NARRATIVA IDENTIDADES

Geométrico linear Único causal


Caligráfico pictórica Serial espacial
Humor simbólica Descritivo sequencial
Observação ilustrativa Interativo Cinética
Projetual fotográfica Narrativo verbo-visual
decorativa Artesanal
Monografia
Figura 03. Gráfico de classificação do livro ágrafo.

2 Classificações do Livro de Artista

A crescente desmaterialização do objeto e as novas possibilidades de acesso aos bens


culturais, facilitadas pelas novas tecnologias trazem consigo uma contrapartida de dimensões
estéticas dentro do atual ambiente de produção cultural. A experiência em relação aos objetos
vem se transformando rapidamente, colocando em questão o fetichismo do artefato,
evidenciando a desmaterialização como manifestação da consciência ecológica e privilegiando
o conteúdo sobre a forma. Não obstante, a qualidade mais valorizada neste contexto continua
sendo a singularidade, tornando-se, mais do que nunca, o item mais ambicionado da nossa
sociedade de consumo.
O objeto de arte inserido neste contexto torna-se símbolo e documento dessa
transformação atuando, ao mesmo tempo, como revelador e parte integrada à reorganização de
sua complexidade. Nesse sentido a classificação taxonômica do livro de artista se encontra
intimamente relacionada à forma do objeto e sua atuação social. Deste modo, as variações da
forma material configuradas em cada livro trazem aspectos da morfologia de uma espécie de
objeto em ambientes representados como coleções. Então, tomando o livro como uma mídia
capaz de documentar a praxis do artista, será possível examiná-lo especificamente por sua
forma e genericamente em relação ao ambiente.
Quando falamos de livro de artista devemos ter em conta outros meios semelhantes –
concomitantes e posteriores – a hibridização das formas e a possibilidade de reprodução em

338
série. Então, tendo como ponto comum dessas formas o contexto da intermídia, o termo que
pode abraçar essa diversidade traz o nome Publicações de artista, abarcando formas de arte
materializadas nas mais diversas mídias. Para o livro de artista, assim como nas formas jornal
de artista e revista de artista, apresenta-se uma classificação mais detalhada, incluindo suas
sub-formas que se dividem entre sub-formas primárias e secundárias (Thurmann-Jajes &
Vögtle, Op. Cit., p. 19).
Nas subformas primárias, o eixo referencial é o livro, como objeto, compartilhando, por
exemplo, formas que foram historicamente cunhadas no ambiente dos livros infantis como, por
exemplo, o livro para pintar, o pop-up e o leporello. Formas da Arte moderna como a
assemblagem ou da Arte contemporânea, como a instalação e o livro objeto, dialogam com
formas cunhadas no ambiente da intermídia, como o cartaz dobrado como livro e o livro cartão
postal. Como subformas secundárias, livros de artista podem ser definidos pela manutenção
dos padrões formais do mercado e o eixo referencial é a atuação do artista, como sujeito (Figura
05-b).

Formas de arte categorizadas como Publicações de artista

Códice Livros de artista, Revistas de artista, Jornais de artista


Objetos conceituais Edição de objeto, Múltiplos
Arte impressa Edição de foto, Gráficos, Impressos, Ephemera
Mídia de áudio Gravação de artista, Fita cassete, Compact disc – CD
Mídia audiovisual Edição de filme/vídeo, Edição multimídia
Figura 04. Gráfico das principais categorias de publicações de artista.

As Publicações de artista podem ser subdividas em cinco grupos, revelando que as


relações de forma e conteúdo implicam meios específicos para cada tipo específico de
conteúdo. Cada tipo de mídia traz, também, sua própria história, mas sempre com algumas
interseções. Assim, os meios que agrupamos como mídia audiovisual trazem aspectos da mídia
de áudio, assim como, os códices trazem aspectos da arte impressa (Figura 04).
Essa subdivisão organiza os meios relacionando os seguintes tipos: forma códice,
objetos conceituais, arte impressa, mídia de áudio e mídia de audiovisual. Nesse sentido, as
publicações na forma de códice, tais como o livro de artista, o jornal de artista e a revista de
artista terão maior interação entre si. Por essa distinção, o livro infantil é um "gênero associado
à forma de arte livro do artista" e reflete uma específica “área temática em que o livro do artista
como meio está envolvido conceitualmente” (Ibidem).

339
Gêneros associados Formas de livro de artista (b)
ao livro de artista (a) Sub-formas Sub-formas
primárias: secundárias:
Projeto/ação Narrativa visual Livro de artista padrão Capa de livro projetada por artista

Mapa de cidade Mapa Livro objeto Catálogo de expo. projetado por artista
Caderno de notas Lista de endereços Livro de postais Intervenção em obra preexistente

Diário Calendário Leporello Contribuição original

Antologia Álbum Pop-up


Livro infantil Livro em miniatura Cartaz (dobrado)

Partitura Letras de música Instalação (com livros)

Documento Catálogo Assemblagem

Política Biografia

Photo book Quadrinhos

Apropriação História

Erotismo Álbum de recortes

Flip book Monografia *

Figura 05. Gráfico de gêneros associados e formas de livro de artista.

O processo criativo representa um aspecto da ontologia do livro de artista e aqui


procuramos traçar um breve panorama apresentando algumas dinâmicas específicas e uma
visão panorâmica das relações envolvidas na criação desses livros. Por isso, nossa abordagem
procura por tipos de autores, temas e tipos de livros relacionados a eles, partindo inicialmente
de três dinâmicas principais e exemplos de tipos de objetos resultantes: o livro único, o livro
como parceria e o livro monografia.95
O livro único consiste em uma ou poucas cópias assinadas, apresentando-se como
trabalho final que tem em si todas as etapas de trabalho. Cabe aqui uma distinção do protótipo,
livro artesanal único produzido como um layout com os principais elementos de sua
configuração, sendo um exemplo referencial usado para apresentar um projeto de livro
destinado a ser publicado em série. O livro único contempla uma vasta gama de possibilidades,
com predomínio da linguagem visual e do livro-objeto.
O livro como parceria é resultante da colaboração, real ou virtual entre, o autor do texto
(poeta) e o autor das imagens (artista visual). Esse tipo de trabalho pode abrir-se para várias
decorrências, como por exemplo, a criação do texto poético e a criação da obra gráfica. O artista

95
A partir do termo original em inglês Monograph: obra produzida por um só autor.

340
visual usa o texto de um escritor para fazer uma interpretação na forma de um livro, usando-o
como matéria ou estabelecendo um diálogo gráfico-verbal. A interpretação pode acontecer
tipograficamente, atuando sobre o texto em si e convertendo em elemento em interação com o
papel, objeto e a narrativa, ou como ponto de partida para a produção de imagens, mais ou
menos ilustrativas.
A monografia é uma proposição independente iniciada e conduzida pelo autor das
imagens ou o autor dos textos, que abrange todas ou a maior parte das etapas de criação e
produção gráfica, podendo ser definida como um tipo de “monólogo”, no qual o próprio artista
cria e produz seu livro. Este é um processo típico da criação do livro ágrafo, onde a narrativa é
exclusivamente visual. Em livros infantis e livros de artista há exemplos de ilustradores e
artistas que produziram textos e imagens, assim como escritores que também criaram
conteúdos visuais para suas próprias obras.
Aspectos da criação de livros de artista podem ser deduzidos através das curadorias de
exposição e essas escolhas e agrupamentos de tipos que são, em última instância, formas de
classificação, com foco no sujeito (autor) ou no objeto (obra). Podemos perceber esse universo
pela curadoria de Michael Glasmeier (1994), visível no catálogo da exposição Die Bücher der
Künster, no qual constam obras em dez grupos, abrangendo questões estruturais dessa prática.
Amir Brito Cadôr e Paulo Silveira foram curadores da exposição ‘Tendências do Livro de
Artista no Brasil: 30 anos depois’ 96, Centro Cultural São Paulo – CCSP (2016), que definiram
temas de agrupamento pelo tipo de obra (Figura 06).

Die Bücher der Künstler, 1994 – a Tendências do Livro de Artista no Brasil II, 2016 - b

Fluxus e Happenings; Poesia Visual; Performance; Metalinguagem

Pesquisadores e colecionadores; Projeto e investigação; Memória; Arte impressa;

Documentaristas e copistas; Apropriação de textos e imagens; Formato;

Escritores e teóricos; Questão artística; Sociedade; Narrativas;

Pintores e desenhistas; Forma e cor; Humor; Paisagem;

Editores. Catálogo como obra de arte; Publicações coletivas;

Figura 06. Gráfico comparativo de curadorias: (a) – tipos de autor; e (b) – tipos de obra.

Tomando a ontologia das publicações de artista, podemos especular sobre a primazia


histórica do livro de artista em relação aos outros meios, suas manifestações artísticas

96
Exposição comemorativa da mostra ocorrida no mesmo local, com curadoria de Annateresa Fabris, em 1986.

341
anteriores e daí a concepção do livro de artista como gênero. Outro aspecto é o uso da
tecnologia e as possibilidades de produção de obras impressas através de recursos como a
impressão sob demanda e o DIY. Essa disponibilidade tem se convertido em uma nova forma
de ampliação do acesso do público às obras. Por outro lado, a democratização desses meios
trouxe como contrapartida uma discussão de caráter ético e estético que leva em conta o
aparente interesse nas facilidades disponibilizadas pela tecnologia para produzir trabalhos de
baixo custo com uma igualmente baixa qualidade conceitual. (Ludovico, 2015)
Os zines foram criados na década 1970 graças à difusão do mimeógrafo, que permitiu
a publicação independente por fãs de ficção científica nos EUA em oposição à política da então
chamada ‘Cortina de Ferro’. Nessa época o movimento punk começou a usá-los como um meio
para criação de networking e a reapropriação de práticas visuais, como a arte postal e a prática
de montagem de revistas piratas [Action/projects Magazines], provocando reações
controversas e assim aumentando a consciência pública sobre o trabalho da mídia tradicional.
O jornal, a revista e o livro de artista são mídias na forma de códice que têm essa atuação crítica
dos artistas como uma raiz em comum. Então, um aspecto fundamental das Publicações de
artista – ágrafas ou não – é a prevalência do conteúdo sobre a forma, tendo em conta a origem
minimalista conceitual e o contexto político dos anos 1960/70.
O formato e layout dos jornais ainda é uma das formas impressas mais emblemáticas,
amplamente utilizadas como mídia para o trabalho de artistas e ativistas. Considerando que sua
forma moderna não mudou muito desde o século XIX, os jornais se estabeleceram como um
objeto padrão estético vinculado principalmente à informação diária. Segundo Alessandro
Ludovico, “fazer cópias falsificadas e distribuí-las livremente a fim de atrair a atenção do
público [...], é uma prática antiga, que remonta o fim do século XIX”, mas seu uso consciente
para atuação e contestação política é mais recente. Ludovico cita o exemplo de uma versão
falsa do jornal polonês Trybuna Ludu, distribuída durante a visita do papa João Paulo II à sua
terra natal, em 1979, ostentando a manchete “Governo Renuncia, Wojtyla é coroado rei”
(Ludovico, Op. Cit.).
Os princípios estéticos do Livro de artista contemporâneo são resultantes da
mobilização de artistas do passado ao abrir pequenas editoras, gerando diálogos e cooperação
entre artistas na busca de caminhos alternativos para publicações e exposições. Desse primeiro
impulso, instalou-se também uma distinção entre o objeto ‘único’ e o ‘múltiplo’. No caso do
livro único, pensamos especialmente o trabalho do artista e sua concepção plástica, enquanto,
no livro múltiplo, geralmente impresso em pequenas tiragens, teremos a participação direta do

342
artista na produção e o livro como objeto de difusão, na mesma linha histórica e ontológica da
gravura. (Febvre & Martin, 1992)
Se a assinatura e a tiragem de uma gravura asseguram autenticidade e a participação
efetiva do artista, em Publicações de artista essa importância é minimizada, sobretudo se
considerarmos as práticas DIY e de impressão sob demanda. O artista-editor tem como objetivo
maior preservar a originalidade do livro e, de fato, artistas como Dieter Roth produziram livros
atuando também como impressores em grandes tiragens, [até 1000 cópias], seguindo exemplos
significativos como Picasso e Gauguin.97
Outro aspecto autoral é a escolha das técnicas de impressão, sendo também uma forma
de distinção entre a linhagem mais abarcadora, que contempla diferentes qualidades de obras,
ou mais estrita a linhagem minimalista-conceitual. O tipo de impressão responde sobre a
qualidade da imagem e está também relacionada às tiragens, cada uma podendo alcançar
diferentes números de cópias a partir de uma matriz inicial. As principais técnicas de impressão
utilizadas na em Livros de artista são: impressão tipográfica, impressão com cliché, duplicação
à álcool, mimeografia, impressão a laser, litografia, monotipia, offset, gravura em relevo,
gravura em metal, serigrafia, risografia, impressão de carimbo, xerografia, colagem,
montagem.
Este repertório de técnicas sinaliza para a estética multifacetada dos livros de artista,
demonstrando abertura tanto para processos artesanais, mais próximos ao livro único, quanto
para processos tecnológicos, mais próximos da escala industrial. Esta diversidade demonstra
ainda o contraste em face da de livros infantis, restrita ao offset como, praticamente, única
técnica de impressão. O livro de artista segue o impulso do artista com ênfase no objeto de arte,
usando um amplo repertório gráfico para abordar as linguagens da própria arte e suas
interseções. A produção industrial e a ênfase comercial dos livros infantis buscam modelos de
uma linguagem específica cunhada ao longo de dois séculos e dedicada primordialmente às
crianças.

97
François Chapon, em seu livro Le Peintre et le Livre, l’âge d’or du livre illustré en France 1870-1970. (Paris:
Flammarion, 1987) cita o livro de poemas de Charles Orléans, ilustrado por Henri Matisse (Paris, Tériade Editeur,
1950), assim como, o livro Lisístrata, de Aristófanes, (New York, The Limited Editions Club, 1934) ilustrado por
Pablo Picasso.

343
3 O livro Ágrafo e a Leitura

Ler o mundo é condição necessária para ter um novo ponto de vista e contribuir em sua
transformação. Deste modo, a leitura ganha amplitude alcançando texturas, odores, sabores
indo além da linha para chegar à imagem e daí ao objeto e a narrativa. Neste sentido, a imagem
deve dialogar tanto com o objeto livro quanto com o mundo ao qual ele se refere e, assim,
compreendê-lo como representação do mundo e no mundo. Segundo Paulo Freire, “A leitura
do mundo precede a leitura da palavra, daí que a posterior leitura desta não possa prescindir da
continuidade da leitura daquele. Linguagem e realidade se prendem dinamicamente” (Freire,
1981, p. 9).
Livros ágrafos são objetos táteis que contém representações visuais do mundo e assim,
podem ampliar consciências e a liberdade criativa por ser um meio capaz de comportar a
transposição e documentação da expressão humana de forma legível. No caso específico dos
livros infantis, Maria Nikolajeva acredita que, “no processo de leitura, os estímulos visuais
desempenham um papel mais importante do que os verbais, já que nossas habilidades visuais
são inatas, diferentemente das linguísticas”. A influência da cultura nos modos de ver e
representar o mundo podem relativizar o papel de cada tipo de estímulo nos processos de
leitura. Não obstante, a autora defende a importância das expressões faciais nas ilustrações de
livros e afirma que a compreensão das expressões faciais alheias desenvolve-se na primeira
infância, iniciando-se “com o reconhecimento das cinco emoções básicas: tristeza, alegria,
medo, raiva e nojo” (Oatley, Apud Nikolajeva, p.103).98
Há uma estreita relação entre a afirmação de Nikolajeva e a leitura do livro de imagem,
uma vez que a maior parte das narrativas visuais nesses livros é figurativa, até mesmo quando
as personagens não são figuras humanas, sendo esta uma distinção fundamental entre livros
ágrafos infantis e de artistas. Pode-se dizer que os livros ágrafos exigem mais do leitor letrado
do que os livros escritos, demandando olhar mais minucioso e maior envolvimento do
pensamento em um tipo de imersão reflexiva pelos elementos da obra. Livros ágrafos
empurram o leitor para interpretar informações visuais e fazer conexões sem o suporte imediato
da escrita, ampliando o universo visual do leitor e viabilizando a formação de um vocabulário
que instrumentaliza a mediação entre o sujeito e o mundo.
O leitor tem ao seu dispor a interação entre causa e efeito nas relações entre
personagens, páginas e tonalidades expressivas da história, no desenvolvimento do tema e no

98 Scott McCLoud (2007) acrescenta “satisfação” à lista de Oatley, e outras dezoito expressões
intermediárias.

344
fluxo narrativo pretendido. O leitor pode imaginar palavras relacionadas às imagens e deduzir
daí a sua própria versão da história, fazendo com que as imagens tornem-se trechos da escrita
ou objeto de observações e inferências perceptivas. Essa noção empurrou as fronteiras da
Literatura na abordagem das imagens para reconsiderar o que poderia ser chamado de texto,
incluindo a manifestação de textualidades pictóricas, arquitetônicas, fílmicas (Favero & Kock,
1983, pp. 20-21).
O entendimento ampliado do termo leitura deve dar conta de uma serie de relações onde
o significado será resultado de um processo de mediação visual. Nesse sentido, a palavra tem
lugar de referência, sempre como uma ausência silenciosa, nunca uma inexistência. A ideia de
leitura de imagens pressupõe algumas relações com as palavras e com a narrativa verbal,
podendo ser mais diretas ou mais sutis, como nos dois grandes grupos de narrativas visuais que
chamamos aqui, por livre associação, de narrativa espacial e narrativa causal.
A narrativa espacial tem o encadeamento de sua sequência circunscrito ao espaço
interno do livro. Em geral, em uma estrutura circular como no livro de Ângela Lago, ‘Cena de
rua’, (Figura 07) evidenciando o uso do livro como um todo e aproximando a estrutura material
da estrutura narrativa. As narrativas causais seguem uma forma linear, sob uma ordem
cronológica e uma tendência para a organização dos fatos em formato de roteiro, possibilitando
analogias a outros tipos de narrativas, como o cinema. Nas histórias em quadrinhos, essa forma
narrativa é associada a uma forma de transição “entre distâncias significativas de tempo e/ou
espaço” chamada de “cena a cena” (Mc Cloud, 2007, p. 15).

Figura 07. Capa e trecho interno do livro Cena de rua, de Ângela Lago (Belo Horizonte: RHJ,
1994). Fonte: iiLer.

Mas as palavras também têm uma visualidade, uma grafia e, embora vivamos em uma
cultura da escrita, os processos de leitura tendem a excluir os aspectos gráficos como elementos
acessórios. Pode-se afirmar ainda que a leitura que aprendemos na escola privilegia algarismos
e letras no nível da fala e isso ocorre porque, ainda que precisemos dos registros escritos, a fala

345
é reconhecida como a forma essencial do texto poético, sendo o texto escrito ainda, de certo
modo, considerado secundário.99
Por este ponto de vista, a escrita seria mais eficaz para o registro e documentação,
subvalorizando, portanto, o caráter gráfico da escrita. Esta ideia decorre do fato de que, para
produzir e decifrar o texto escrito usamos sempre uma estrutura retirada do eixo fonológico
(fala) e converter seu sentido através da grafia da escrita. Então, como no texto escrito o
conteúdo será prioritário e a forma gráfica será secundária, do mesmo modo, as imagens serão
secundárias no mundo erudito. A criação de poemas com pontuação é característica distintiva
da poesia de Pierre Garnier, como a composição como o fascínio pelo ponto final em analogia
ao silêncio.

Na verdade, o Jardin Japonais do Garnier é dedicado “ao silêncio e sua poesia”, a


poesia do sinal de pontuação, um sinal que, em sua própria essência, é silenciosa. [...]
Pierre Garnier escreve: “Quero trazer a linguagem para o seu fascínio: a escrita
silenciosa.” Isso lembra a leitura silenciosa do texto tipográfico desde o
Renascimento100 e consequentemente, a mensagem do livro como mídia (Donguy, In:
Thurmann-Jajes, 2012, pp. 46-50).
Essa aproximação entre poesia e imagem engendrada pelos poetas concretos e as
decorrências na forma de livros de artista pode ser um caminho para o entendimento de alguns
aspectos específicos da leitura desse tipo de livro. Um dos aspectos mais pregnantes é a
possibilidade da inversão da função entre signo e símbolo gráfico, a partir da organização de
formas com blocos de texto ou combinação e ressignificação de palavras e frases. O mesmo
movimento no sentido inverso se abre à leitura das imagens para além do estudo da Semiótica
ou da Estética.
O Livro Learn to Read Art [Aprenda a ler Arte] (Figura 08), de Amir Brito Cador
consiste em uma série de setenta e um temas apresentados a partir de citações referentes à Arte
contemporânea. Cada tema é apresentado em uma página dupla, simultaneamente em três
formas de linguagem: escrita, libras e uma referência da Arte Visual. O que liga as diferentes
formas em uma unidade gráfica é a transposição das três em desenhos e tipografia lineares, na
mesma espessura e cor. Então, cada tema é identificado por uma palavra; pela forma em
linguagem de libras transposta para desenho; e por uma obra que representa aquele tema,

99
Jacques Derrida (2005) afirma, a partir do diálogo entre Sócrates e Fedro, de Platão, que a verdade de um texto
estava ligada ao corpo e presença de seu orador. Com a escrita, essa verdade passa a circular independente de seu
autor e daí o surgimento da relação entre a escrita e a democracia.
100
Ver o artigo de Roger Chartier em éc/artS issue no.2 (2001) A transição para a leitura silenciosa refere-se à
interiorização do texto, implicando a noção de profundidade (A la recherche du Temps Perdu, de Proust), ou
mesmo do inconsciente (Tradução livre a partir da legenda original).

346
também traduzida para um segundo desenho e, nesse sentido, a obra estabelece um tipo de
metalinguagem gráfica.
Mas devemos aqui estabelecer uma questão: os primeiros desenhos de uma criança não
seriam eles mesmos representações de seus primeiros gestos? A maneira como os desenhos de
criança são acompanhados de um discurso verbal que Jean Piaget chamou de “fala egocêntrica”
demonstram essa inter-relação entre as formas de expressão. (Piaget & Inhelder, 1968) As
análises de Leroi-Gourhan vão mais além, indicado de forma incisiva a simultaneidade do
surgimento da fala e da escrita na evolução humana (Leroi-gourhan, Apud Krüger, 1993).

Figura 08. Capa e trecho interno do livro Learn to Read Art, de Amir Brito Cadôr, (Belo
Horizonte: Ed. Andante, 2013). Fonte: Weserburg.

Na análise morfológica da linguagem verbal, cada palavra é analisada isoladamente,


enquanto na análise sintática, as palavras são analisadas em conjunto e o importante é descobrir
sua função em relação ao contexto. Portanto, a morfologia indica a classe gramatical,
analisando a palavra e a função sintática da palavra mostra sua relação com as outras palavras
em uma oração. Mas, o texto escrito, que, como tal, é a realização do discurso em sua dimensão
espaço/tempo, tem uma dimensão espacial inerente à forma gráfica, ocupando os espaços em
diversas práticas de diferentes autores. Esta dinâmica é usada de tantas maneiras por poetas e
artistas que a leitura de um livro de artista moderno exige uma ruptura quase completa com
nossos hábitos de perceber a escrita e imagens gráficas.
Não só o livro de artista e livro infantil atual, mas a própria história da expressão gráfica
do homem evidenciam que há uma relação entre as duas formas de grafia. Então, um pré-
requisito para a produção e leitura de livros de artista contemporâneo é a interação entre o
escrever e o desenhar na nos dias de hoje e, ao mesmo tempo, entender seus antecedentes
históricos comuns. Portanto, a realidade literária dos nossos dias já não pode dar conta de uma
distinção entre a escrita e o desenho do artista.
Realiza-se uma transição contínua entre o texto e o desenho, que equivale a dizer que a
escrita apresenta-se como um desenho e que o próprio desenho pode ser visto como uma forma
de escrita. Encontramos apenas uma expressão gráfica única e indivisível, mas isto pode

347
aparecer algumas vezes como uma escrita alfabética e outras vezes como uma distinção dela,
ao invés de simplesmente seguir uma grafia simbólica ou hieroglífica. Portanto, quando
falamos da categoria livro de artista contemporâneo, incluindo as interações com livros
infantis, devemos referir-nos ao documento ou registro gráfico de um conceito, no sentido da
convergência de elementos que possa levar a uma identidade desses conteúdos, como é o caso
do livro Comic Strip (Figura 09), de Gerhard Richter.

Figura 09. Capa e trecho interno do livro Comic Strip, de Gerhard Richter (Köln: Verlag der
Buchhandlung Walther König, 1962/2014). Fonte: Weserburg.

Na poética da imagem gráfica, as circunstâncias substantivas do ato de desenhar que


favorecem a produção do discurso podem tornar-se parte dessa expressão. A imagem que é
registrada no papel, a partir da sua função única de construir um discurso, não pode ser vista
independentemente do material com o qual e sobre o qual está inscrito. Na criação de livros
ágrafos, se as ideias tomam sua forma adequada, elas podem expor no universo de uma folha,
parte do universo pretendido de um livro.
Em um processo idealizado o impulso das ideias pode ser instrumentalizado,
inicialmente, apenas por um lápis, um papel e o rastro deixado ali, considerado como a essência
do trabalho. De fato, a verdade materializada de uma obra sempre será subjugada a esse
caminho intelectual que a produz e, nesse sentido, a leitura pode seguir um processo semelhante
e de sentido inverso, começando da matéria para alcançar um caminho intelectual, uma
narrativa. Há modos de disposição e relações entre elementos, próprias dos livros ágrafos. Por
exemplo, se existem vários desenhos sobre uma folha, a relação entre eles constitui um tipo de
icono-sintaxe.101

101Donis a Dondi (1991) afirma que a iconosintaxe compreende os princípios básicos de organização dos
ícones (imagens) determinando quais são as características relevantes na configuração e na posterior
decodificação da imagem, de acordo com a competência comunicativa derivada da alfabetização visual das
sociedades.

348
A folha desenhada funciona como um ideograma que contém registros subjetivos de
uma ideia, tão subjetivos quanto as descrições delas resultantes. O ideograma que segue uma
organização linear tem origem na expressão verbal e a disposição dos desenhos no espaço de
uma página de um livro pode constituir uma analogia com essa origem, seja na sua invenção,
seja na edição da obra. Assim, podemos encontrar indicações para a leitura das imagens pela
numeração das páginas do livro, indicando o sentido para leitura. Mas esse sentido não é
necessariamente o tradicional, da esquerda para a direita, podendo tomar forma de uma escrita
arcaica como o antigo boustrophedon grego como uma referência à História do livro.
Essas práticas arcaicas de leitura refletem-se na leitura de histórias em quadrinhos em
que, não só o sentido, mas a própria direção da leitura pode ser subvertida para criar ou negar
hierarquias na ordem da leitura. Em livros que trazem uma narrativa espacial, por sua vez, o
percurso do olhar tende a penetrar por simulações de espaços internos ao livro, desfazendo
também a ideia de continuidade linear e horizontal na narrativa por imagens. A leitura linear
de um livro ágrafo pode ultrapassar o sentido metafórico que o termo carrega na leitura verbal
e abarcar sua totalidade em um objeto único, “Um livro-obra ágrafo, sem texto algum”
(Silveira, 2008, p. 37).
Os elementos da configuração visual ganham força estética de acordo com sua
interdependência em relação às palavras, por assumirem valores mais estruturais e menos
acessórios na ausência de conteúdos verbais. Nesse sentido, o livro de artista tem sua leitura
predominantemente ligada à forma visual. No entanto, ele é uma mídia que pode trazer diversos
tipos de signos inclusive as palavras. Então, em obras baseadas em textos, o gênero literário
ganha predominância sobre o projeto gráfico. Nos livros de imagem a forma é configurada em
função do conteúdo, privilegiando a clareza e o aspecto ético para esse leitor. No entanto, na
ausência das palavras suas características táteis e visuais ganham predominância sobre o gênero
literário, convertendo-se no conteúdo principal.
Por fim, é preciso explorar a leitura como um terreno de novas possibilidades, levando
em conta as diferenças entre a antiga e “a nova arte de fazer livros” e as possíveis formas de
apreendê-las. Um caminho inicial e definitivo para a leitura do livro ágrafo é tomar o livro
como um “volume no espaço”, ter em conta as experiências vividas, a grafia das palavras e as
formas para construir uma visão própria sobre o mundo. Se a leitura é importante para
compreendermos o mundo, é importante ter em conta também que “compreender algo é
compreender a estrutura de que faz parte e/ou os elementos que formam a estrutura”. Ulisses
Carion nos mostra um sentido:

349
para ler a velha arte basta conhecer o alfabeto
para ler a nova arte devemos apreender o livro
como uma estrutura, identificar seus elementos e
compreender sua função.
###
podemos ler a velha arte acreditando que a
entendemos e podemos estar errados.
tal engano é impossível na nova arte. você só pode ler
se você entender (Carrion, 2011, p. 61).

4 Considerações Finais

A busca de uma taxonomia do livro ágrafo parte da ideia de que ambientes virtuais
refletem ambientes tangíveis, portanto, sistemas de busca de bibliotecas são estruturas de
organização que decorrem de um pensamento classificatório em analogia às estruturas de
organização material. Esse referencial de classificação serviu-nos para elencar tipologias de
livros em dois tipos de acervos: da Literatura Infantil e das Artes Visuais e, a partir daí,
estabelecer classificações e formas de leitura.
A questão central na taxonomia do livro infantil é a duplicidade de sua linguagem e,
consequentemente, a distinção e interação entre textos e imagens. Na análise do livro infantil
o aspecto verbal tende a prevalecer sobre o visual. A distinção dos gêneros literários estabelece
três tipos de obras poéticas, a Lírica, A Épica e a Dramática. Por estas definições teríamos uma
primeira distinção entre o livro infantil e o livro de artista: o primeiro ligado à Épica, por sua
matriz principal nos contos maravilhosos e o segundo ligado à Lírica, por sua raiz na Poesia
concreta.
O livro de imagem traz tipologias ligadas às suas funções, definidas como descritivas,
interativas, narrativas. A partir dessas funções podemos deduzir identidades relacionadas às
quatro dimensões do espaço / tempo abarcando o desenho, a imagem, o objeto e a narrativa.
Outra distinção considera os diferentes posicionamentos do artista e do ilustrador na
configuração de um objeto em que a experiência é ampliada. No livro de artista, o termo que
nomeia o objeto privilegia o autor, primordialmente um artista. No livro infantil essa lógica se
inverte para privilegiar o leitor, primordialmente uma criança.
O livro infantil é um gênero associado à forma de arte livro do artista. Dentro de um
espectro categorizado sob o termo Publicação de artista. Nesse sentido, assim como a poesia
visual foi resultante do desejo de poetas fugirem do texto linear, o livro como meio encontrou

350
bifurcações para os meios eletrônicos. A impressão sob demanda e o DIY têm se convertido
em formas de ampliar o acesso do público às obras, ainda que essa democratização tenha
trazido questões éticas e estéticas, como contrapartida.
O jornal de artista, a revista de artista e o livro de artista são mídias na forma de códice
que se distinguem pelos formatos e periodicidades, tendo a atuação crítica como raiz comum.
Os princípios estéticos do livro de artista contemporâneo são resultantes da mobilização de
artistas do passado ao abrir pequenas editoras, gerando diálogos e cooperação entre artistas. No
livro múltiplo – impresso em série e distinto do livro único – a participação direta do artista na
produção desse objeto de difusão, estabelecem uma ligação do livro de artista com a mesma
linha histórica e ontológica da gravura.
A denominação Publicação de artista abarca formas de arte materializadas como mídias
que, nas formas de códice, incluem suas sub-formas primárias e secundárias. As publicações
de artista são subdividas em cinco grupos. Cada tipo de mídia traz sua própria história, mas
sempre com algumas interseções como, por exemplo, os ‘códices’ que trazem aspectos dos
meios ‘impressos’. Assim, podemos identificar nas publicações do artista a influência do
binômio autonomia/dependência.
O processo criativo representa um aspecto da ontologia do livro de artista e, numa visão
panorâmica da criação desses livros, apresentamos três dinâmicas principais: o livro único, o
livro como parceria e o livro monográfico. O tipo de impressão está também relacionada ao
processo criativo. O amplo repertório de técnicas sinaliza para a estética multifacetada dos
livros de artista e, ao mesmo tempo, o contraste face à produção industrial de livros infantis,
restrita ao offset.
Quanto à leitura, livros ágrafos são objetos táteis que contêm representações visuais do
mundo e, assim, podem ampliar consciências e a liberdade criativa por ser um meio capaz de
comportar a documentação da expressão humana de forma legível. No processo de leitura de
livros infantis, os estímulos visuais desempenham um papel mais importante do que os verbais,
já que nossas habilidades visuais ganham sentido no senso comum de cada cultura. Nesse
sentido, o entendimento ampliado do termo leitura deve dar conta de uma série de relações nas
quais o significado será resultado de um processo de mediação visual em que a palavra tem
lugar de referência, sempre como uma ausência silenciosa, nunca uma inexistência.
Na análise morfológica da linguagem verbal, cada palavra é analisada isoladamente,
enquanto na análise sintática o importante é descobrir sua função em relação ao contexto.
Portanto, a morfologia indica a classe e a função sintática mostra a relação com as outras
dimensões em uma obra. A relação com o espaço e o tempo do livro tem suas próprias

351
dinâmicas, requerendo uma ruptura quase completa com nossos hábitos na leitura do livro de
artista contemporâneo. A relação entre vários desenhos sobre uma folha vai constituir um tipo
de Icono-sintaxe, considerada como um tipo de leitura, procedendo uma transposição desses
desenhos para uma forma verbal.
Um pré-requisito para a produção e leitura de livros de artista atual é a interação entre
o escrever e o desenhar nas dinâmicas de hoje e, ao mesmo tempo, entender seus antecedentes
históricos comuns. Realiza-se uma transição contínua entre o texto e o desenho, que equivale
a dizer que a escrita apresenta-se como um desenho e que o próprio desenho pode ser visto
como uma forma de escrita. Nesse sentido, o livro de artista contemporâneo, refere-se ao
registro gráfico de um conceito que pode levar-nos à identidade desse conteúdo.
O livro de artista como obra de arte tem sua leitura predominantemente ligada à forma,
mas pode trazer diversos tipos de signos inclusive as palavras. Então, em livros de artista
baseados em textos, o gênero literário ganha predominância. O livro infantil é um meio
específico da Literatura e tem sua leitura predominantemente ligada à narrativa. No entanto, na
ausência das palavras suas características visuais ganham predominância sobre o gênero
literário, convertendo-se no conteúdo principal.

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353
354
EM LINHA | 23 novembro – 30 novembro | Galeria Bessa Pereira, Lisboa

O desenho pode ser visto como uma linguagem polifacetada, visualizando, neste contexto, a
linha como um elemento substancial dessa linguagem.
Ao surgir como uma extensão do «Colóquio Expressão Múltipla – Teoria e Prática do
Desenho» (FBAUL), a exposição «Em Linha» procura, como premissa, explorar a
multiplicidade de formas pelas quais o desenho pode ser produzido: seja a partir de um lápis,
de um pincel, de uma caneta, de um fio de costura ou, ainda, da inovação de um recurso
digital. A mostra pretende remeter, assim, para a subjetividade com que cada um dos artistas
trabalha e desenvolve o seu entendimento de desenho e o posterior desdobramento deste nas
mais variadas possibilidades.
No que corresponde ao entendimento da linha per se, esta pode ser fundamentada a partir de
dois grandes momentos: um primeiro, no qual o objeto de desenho se coloca em contacto com
o suporte/superfície que o irá receber, e um segundo, no qual esse mesmo objeto sai de cena,
deixando então a linha como testemunho da sua passagem. Há, pois, esta ambiência da linha:
a representação de um passado – algo que por ali passou – e a sua manifestação no presente –
algo que ali existe. Neste cenário, a linha torna-se tanto um elemento criado como um elemento
criativo, assumindo, nessa sua condição criativa, uma associação compositiva, algo maior, que
se liga em múltiplos e diferentes aspetos.
É, pois, com base nesta dinâmica, que a exposição «Em Linha» pretende enveredar para uma
ideia de criatividade: trabalhos alinhados e articulados num determinado espaço que
comungam em si a prática do desenho como condição primeira, mas que, sob uma condição
heterotópica influenciada pelo poder da linha, nos direcionam para uma outra realidade, uma
dimensão que abre caminho a toda e qualquer interpretação – uma linha que se move por dentro
e se manifesta por fora.
Se o desenho pode ser encarado tanto como um ensaio como um resultado artístico em si, «Em
Linha» procura propor um discurso aberto com diferentes abordagens sobre aquilo que é a
prática do desenho na contemporaneidade. Consequentemente, desvenda-se uma mostra que
privilegia as óbvias diferenças das obras expostas, mas também aquilo que as pode aproximar.
A linha é, neste sentido, um elemento que coloca em diálogo a obra de cada artista, uma obra
de representação, descobrimento e manifestação de pensamentos e ideias abstratas, que projeta
inquietações estéticas e até poéticas.

355
Assim como a linha não se apresenta como um fim em si mesma, mas como um efetivo ato de
criação, a presente exposição desenha-se como um prolongamento dessa multiplicidade da qual
o desenho se pode associar e que permite alcançar, em larga medida, outras novas
possibilidades.

Juan Gonçalves | Curador

356
EM LINHA | 23 novembro – 30 novembro | Galeria Bessa Pereira, Lisboa

FICHA TÉCNICA DAS OBRAS

Alexandre Guedes
Storyboard e destaque de uma ilustração para A Menina, o Riacho e o Príncipe
Técnica mista sobre papel
48x83cm
2017

Aline Basso
Contemplação II
Tinta da china, aguarela e bordado sobre papel
Dimensões variáveis
2017

Armando Caseirão
Sem Título
Caneta sobre papel
Dimensões variáveis
2017

Beatriz Manteigas
Primavera árabe
Técnica mista sobre papel
70x90cm
2017

Fábio Cerdera
Anjo
Carvão sobre papel
97x97cm
2016

Filipa Pontes Lança


DicionáriosdeArtista
Canetas de gel e feltro sobre papel
Dimensões variáveis
2010/2018

DicionáriosDeArtista:SalvadorDaBahia
Julho 2010
Salvador da Bahia (Brasil)

357
DicionáriosDeArtista:Bilbao
Setembro 2010
Bilbau (Espanha)

DicionáriosDeArtista:Maputo
Julho 2011 - Julho 2014
Maputo (Moçambique)

DicionáriosDeArtista:Alte
Julho 2015
Alte (Portugal)

DicionáriosDeArtista:CaldasDaRainha
Novembro 2015 - Abril 2016
Caldas da Rainha (Portugal)

DicionáriosDeArtista:Shanghai
Maio - Agosto 2016
Xangai (China)

DicionáriosDeArtista:Alentejo
Abril 2017 - (…)
Aljustrel (Portugal)

Inês Garcia
Pranchas de Banda Desenhada da história SINtra
Tinta da china com tratamento digital sobre papel
Dimensões variáveis
2017

José Maria Lopes


Sem Título
Grafite sobre papel
13x14cm
2017

Klaus Reis
lustração para Couro de piolho
Tinta da china e acrilica sobre papel
21x30cm
2017

358
Luísa Arruda
PR/TV
Linha de costura e vestígios de lápis de grafite subjacente sobre papel
Dimensões variáveis
2017

Salmo Dansa
Cartaz Agrafo
75x100cm
Colagem (impressão)
2017

Vinicius Gomes
Máscara de Folia de Reis-estudo
Carvão ocre e sanguínea sobre papel
70.5x 50.5cm
2017

Miguel Duarte
Montanha Negra
Lápis branco sobre cartão preparado com gesso e pigmento
10x15cm
2012

Natacha Antão
Gil – Yellow Dots
Desenho sobre papel
39x38cm
2016

Pedro Oliveira
Linhas Perdidas
Tinta da china, lápis e aguarela sobre papel
29,7x21cm
2015

359

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