Professional Documents
Culture Documents
Se para Hipócrates a melancolia era uma doença (bílis negra) muito mais voltada para
o lado biológico, Aristóteles cuidou de relacioná-la entre a loucura e a genialidade,
associando melancolia e criatividade: “o homem triste é também um homem profundo.”
(SCLIAR, 2003, p. 70). Pois, uma pessoa perceptiva, introspectiva, se torna extremamente
sensitiva, o isolamento deixa mais inteirada com os sentimentos, com o que vivencia, parece
que tudo vivenciado é muito mais intenso, num grau profundo e diferenciado.
O homem melancólico, para Aristóteles é notável e excepcional não por doença, mas
por natureza. Apegando-se aos ideais de Aristóteles a escola romântica mostrou-se
fortemente influenciada pela melancolia. O movimento romântico opôs-se ao racionalismo
vigente e concentrou-se na ideia de uma visão de mundo baseada no homem, sua
individualidade e subjetividade (TEIXEIRA, 2007). Nota-se que a concepção de Hipócrates é
oposta a de Aristóteles, mas ambas ainda marcam o pensamento ocidental (SCLIAR, 2003).
Ginzburg em seu livro “Literatura, Violência e Melancolia”, relata que Hipócrates
naquela época já trazia uma definição de melancolia, esta estaria relacionada ao medo e a
tristeza e no tempo de duração que parece ser eterno, a esse complexo processo vivenciado
pelo ser humano ele chamou de melancolia (GINZBURG, 2013)
No livro “Luto e Melancolia” escrito por Sigmund Freud após a Primeira Guerra
Mundial e publicado em 1976 numa coletânea sob o título de Metapsicologia. Freud busca
estabelecer a definição que se tornaria clássica, este revela que diante de uma perda real ou
ideal de um objeto que é foco libidinal, existem duas reações básicas: o luto como uma
condição normal e seu correspondente patológico, a melancolia (COSER, 2003).
Assim para Freud a melancolia se apresenta como uma condição patológica, com o
passar do tempo vai tonando-se mais complexa quando assume graus mais intensos, pois o
fato de está relacionada a perda ou a sucessivas perdas, ou ainda apenas a ameaça de perda
incluindo as situações de frustação, desconsideração ou desprezo. A pessoa que vivencia esse
processo entra num estado de desencantamento com tudo ao seu redor, parece que o tempo
passa mais lentamente e tudo e todos estão contra ela (COSER, 2003).
Como podemos verificar no decorrer do tempo e da história, a literatura e o estado
melancólico sempre estiveram imbricados, tecer um romance falando de amor, paixão,
luxuria, separação, perdas e morte era estreitar os laços com o processo melancólico, o
personagem principal sempre tinha traços fortemente melancólicos escondidos na escuridão
de seu ser e sofrendo a dor de existir. Podemos verificar que o processo complexo
melancólico vai se instalando aos poucos na pessoa que vai sucumbindo e aceitando sem
resistência. Algumas das características básicas do quadro clínico da melancolia são: o
sofrimento moral, as ideias fixas, os julgamentos sobre sua vida, sua família, sua honra,
sendo julgamentos muitas vezes improváveis até absurdos, mas sempre com um sentimento
de culpa, abandono e ruína.
Assim a Melancolia vem sendo dos grandes males do século XVIII e XIX, no
entanto no decorrer do tempo encontra outra doença que acomete a alma, a depressão. A
depressão acaba sendo incluída como categoria clínica a partir da primeira metade do século
XIX, assim a categoria depressão, que a princípio nada tem a ver com a melancolia, vem se
sobrepuser a mais velha das doenças e depois ocupar o lugar dela.
De acordo com Berlinck & Fédida isso seria uma nova denominação para o que no
passado convencionou-se chamar de “melancolia”. Mas o incômodo que não cala é: existe
diferença entre depressão e melancolia? Para Solomon (2002) existe um número tão grande
de diferentes manifestações depressivas e melancólicas que seria necessário criar uma
classificação diferente para cada caso estudado mais a fundo
No entanto, a Melancolia e Depressão segundo alguns autores estão numa linha muito
tênue, sendo difícil fazer essa separação. Como coloca Kristeva (1989) em seu livro “Sol
Negro: depressão e melancolia” que esses dois termos poderiam se juntar formando o termo
melancólico-depressivo, pois segundo ela os limites entre os dois são imprecisos.
Dessa forma a autora ratifica ainda que apesar da melancolia e depressão estarem
numa linha tênue de separação ambas se apoiam numa intolerância a perda do objeto aonde a
pessoa vai aos poucos se tornando cada vez mais introspectiva, definhando, chegando a um
estado de inanição até a morte. Dessa maneira vamos buscar falar da melancolia e depressão,
porém sem tentar distinguir suas particularidades, mas tendo em vista sua estrutura de
sintomas em comum (KRISTEVA, 1989).
Berlinck & Fédida (2000) acrescentam através de suas pesquisas que as publicações
psiquiátricas da Era Contemporânea inclinavam-se a empregar o termo “depressão” como
sinônimo do termo “melancolia”, porém mais tarde em meados do século XIX a melancolia
passa a ser vista como um tipo de depressão a “depressão-melancólica”.
Esse romance gótico do período Vitoriano escrito por Emily O Morro dos Ventos
Uivantes sendo um clássico da historia da literatura deixa transparecer de forma intensa e
muitas vezes quase sentida por quem está lendo sentimentos como ódio, culpa, exclusão,
indiferença, desprezo de si e do outro. Os personagens criados por ela vivenciam sentimentos
intensos e sempre estão no linear do comportamento melancólico-depressivo, porém sua
história de vida nos faz acreditar que muitos dos sentimentos vivenciados pelos personagens
de sua obra literária talvez sejam projeções da autora misturadas com as fantasias que dão
vida a cada um deles.
Na busca de um melhor entendimento sobre o processo melancólico vivenciado pelos
personagens vamos tomar como exemplo as primeiras linhas do romance de Brontë, logo
encontramos um narrador que define a si mesmo como melancólico. Ermitão, o narrador-
personagem Lockwood deseja a reclusão dos introspectivos e o silêncio dos lugares ermos,
assim a Granja da Cruz do Tordo se parece lugar ideal para seu desejo de isolamento e
reclusão:
Como podemos verificar nesse trecho é a dor profunda de um menino que se sente
sozinho, todas as pessoas que ele amava acabam se perdendo, sua família, depois o Mr.
Earnshaw o pai de Catherine que o adotou, depois o afastamento de Catherine, inúmeras
perdas que o fizeram construir esse semblante carrancudo e triste o qual é citado inúmeras
vezes no decorrer da historia. A melancolia pode acontecer a partir de vários fatores sendo
um deles a vivência muito sofrida, as frustrações afetivas, o medo do abandono e as
experiências dolorosas da perda e da falta de um objeto que é sentindo mais não é
identificado. Assim o melancólico pode representar a si mesmo como alguém sem futuro
(BAPTISTA, 2011).
Fédida (1999) em seus estudos cita Abraham, o qual parte da ideia que toda perda
vivenciada gera um sentimento depressivo que ocasiona uma perturbação libidinal, que
incapacita a pessoas a amar, fazendo com que o ódio ao ser projetado para o exterior, leve o
sujeito a responsabilizar o mundo por sua infelicidade. Porém, esse processo desperta
impulsos sádicos com desejo de vingança e atitudes hostis em relação as pessoas. A pessoa ao
tentar suprimir esses impulsos tende ficar vulnerável ao aparecimento da culpa e de
autoacusações, revelando assim uma satisfação masoquista.
No decorrer da historia encontramos várias passagens que levam a compreender toda
a bagagem melancólica-depressiva que nosso protagonista carrega o Mr. Heathcliff, pois este
não consegue se ajustar a vida real, está sempre ligado aos acontecimentos do passado,
parece que viver traz consigo uma dor imensa que parece não acabar nunca, um vazio,
tristeza, o que acaba fazendo com que o personagem haja muitas vezes de forma
incompreensiva por todos os que o cercam, sendo denominado de Heathcliff o “demônio
melancólico”. Os trechos que seguem abaixo demonstram de forma mais concreta o lado
sombrio e perturbador do Mr. Heathcliff.
Quanto a você, Catherine, vou lhe dizer algumas palavras agora, já
que falamos no assunto. Quero que saiba que eu sei que você
procedeu comigo de maneira infernal....infernal, ouviu bem? E se
acha que foi esperta para não me deixar perceber, então é uma tonta.
E se acha que posso ser consolado com palavras doces, é uma idiota.
E se imagina que vou sofrer sem me vingar, então vou convencê-la
do contrário muito em breve! (BRONTE, 2012, pg.63).
Uma das passagens mais violentas e claras sobre a crueldade de Heathcliff fica
evidenciada em seu diálogo com Nelly Dean onde relata seu comportamento para com a
esposa Isabella:
Kristeva (1989) acrescenta ainda que esse abismo da melancolia pode surgir a partir
das desgraças pessoais vivenciadas que, num rompante, são capazes de assolar o homem,
arrancando-lhe a normalidade e fazendo-o assumir um luto repentino e duradouro. Para a
pesquisadora, nossos infortúnios nos colocam dentro de uma vida nova e impossível de ser
vivida: um acidente, uma traição, a morte de alguém que amamos, são exemplos de que a
existência pode se tornar dolorosa e insuportável; vazia e, ainda, cheia de grandes aflições.
São lutos, tristezas, desgraças, sofrimentos que assumem o mesmo significado a dor.
Hipócrates nos primeiros estudos sobre o processo da melancolia, fala que esta era
geralmente caracterizada pela extremada falta de ânimo e a presença de um estado de espírito
deprimido. Com o passar do tempo, já na medicina moderna essas características se
aproximam bastante dos quadros depressivos associados à angústia, sensação de paralisia
física e mental, e insônia recorrente.
A melancolia aparece no século XVIII e meados do século XIX como uma doença
que chamou a atenção de diversos campos como a filosofia, a psiquiatria, a literatura e a
psicologia, isto porque tratava-se de uma enfermidade, que machucava o corpo, a alma e o
espírito, está servia de alimento a reflexões filosóficas cujos não-melancólicos são capazes de
tecer, pois lhes falta certa dose de autocrítica. Ginzburg na obra literatura, violência e
melancolia recorre a Marcos Piason Natali para desvendar o indivíduo melancólico:
Verificou-se ainda que na Grécia antiga, a melancolia não estava, no entanto, limitada
ao rol das doenças psíquicas, por exemplo, Platão acreditava em dois tipos de loucura: uma
proveniente de doença propriamente dita, outra de influências divinas, diante deste raciocínio
o mesmo poderia ocorrer com a melancolia, como sugere Aristóteles, no Problema XXX:
“Por que razão todos os que foram homens de exceção no que concerne à filosofia, à poesia
ou às artes, são manifestamente melancólicos?” Aristóteles, implicitamente, defende que
homens normais podem ser acometidos temporariamente pela melancolia, mas existe,
também, uma melancolia natural que torna o seu portador diferente, sábio, genial, -
genuinamente anormal.
Mas os naturalmente melancólicos parecem fadados a pagar um preço: o humor
indispensável à melancolia é a tristeza, manifestação que conduz ao desespero, a angústia e
ao medo. Quem pode provar a Heathcliff que Catherine o amava mais que a si mesma, mas
que o medo da desonra deu causa a sua escolha de casar-se com Edgar Linton? A literatura,
inevitavelmente, tem dado testemunho às grandes inquietações da mente. O mais notório dos
melancólicos seria Hamlet, o príncipe da tragédia de Shakespeare. Walter Benjamim (1892 –
1940) aponta Hamlet como paradigma do ser melancólico em sua obra Origem do drama
barroco alemão. De acordo com a leitura de Benjamin é possível enxergar o seguinte sobre
Hamlet:
[...] somente Hamlet é espectador das graças de Deus; mas o que
elas representam para ele não lhe basta, pois apenas seu próprio
destino lhe interessa. Sua vida, objeto do seu luto, aponta antes de
extinguir-se, para a Providência cristã, em cujo regaço suas tristes
imagens passam a viver uma existência bem-aventurada. Só numa
vida como a desse Príncipe a melancolia pode dissolver-se,
confrontando-se consigo mesma. O resto é silêncio. (Benjamin, 1984,
p. 180)
Para Hamlet, a melancolia é resultado do universo doente do qual ele próprio fazia
parte: desiludido com o mundo, ciente de que o tio matara seu pai a fim de tomar-lhe o trono
e incapaz de executar uma vingança contra o novo rei, Hamlet experimenta a falência de seus
valores e caminha para a própria morte ao propor um plano de vingança contra o assassino de
seu pai. Durante a trama, inúmeras vezes, Hamlet demonstra certa apatia e inércia, o que
corrobora a “teoria humoral” de Hipócrates, que foi difundida durante a Idade Média na
Europa. Segundo essa concepção hipocrática, o homem possui quatro humores que se
relacionam diretamente com os quatro elementos da natureza, com as quatro estações e as
quatro idades do homem (infância, juventude, maturidade e velhice).
O ar se associa ao sangue e se mostra representado pela primavera, predominando
sobre a infância. O fogo está associado a “bile” sendo representado pelo verão e
predominando durante a juventude. A melancolia ou ‘bile negra” estaria relacionada ao
outono e a fase da maturidade, na qual se encontra Hamlet; e finalmente, a serenidade, ou
fleuma, reinaria sobre a idade madura associando-se ao inverno e à água. Essas
correspondências, ainda de acordo com a teoria de Hipócrates, também se estenderiam às
horas (manhã, meio-dia, entardecer, noite) e o equilíbrio desses humores ou fluidos vitais
assegurariam a saúde; seu desequilíbrio provocaria a doença, e a relação entre equilíbrio e
desequilíbrio determinaria nossas características emocionais e intelectuais.
Entre os romanos se consolida a tese de que a prevalência do elemento “sangue” em
um indivíduo determinaria o temperamento “sanguíneo”; a prevalência da “bílis amarela”
garantiria um temperamento colérico; da bílis negra, um temperamento melancólico; e da
fleuma, um temperamento fleumático. Esta teoria dos humores encontra-se catalogada no
Tratado da Natureza do Homem onde Hipócrates associa a melancolia ao outono e assim a
define: “quando a tristeza e o medo persistem por muito tempo, um tal estado é melancólico”
(Hipócrates 2005:512). Nota-se que a ideia de melancolia para Hipócrates parece estar
intimamente relacionada com o conceito de apatia, uma espécie de desinteresse geral,
indiferença ou até mesmo uma falta de sensibilidade aos acontecimentos ao redor, um estado
negativo permanente, disforme e que pedia por intervenção médica, uma vez que era
acarretado pelo excesso da bílis negra.
A teoria de Hipócrates nos conduz a refletir sobre o comportamento adotado por
Catherine antes de seu final trágico. Apática, após a violenta discussão entre o marido Edgar
Linton e Heathcliff, Catherine entrega-se a um profundo sentimento de tristeza e desgosto e,
mesmo a gravidez, que poderia fornecer-lhe motivos para suplantar os desagradáveis
acontecimentos ocorridos após o retorno de Heathcliff, não é capaz de tirar-lhe do estado
fúnebre.
A apatia e a dor intensa, a vontade de sucumbir ao que já está próximo o fim, era
assim que Catherine parecia se encontrar, sem forças para lutar, a lutas internas eram tantas
que já não fazia mais sentido lutar com o externo, tudo parecia perdido. O caráter próprio da
melancolia consiste em geral em uma lesão das funções intelectuais e afetivas, quanto mais
intensa mais causa danos, quer dizer que o melancólico é como possuído por uma ideia
exclusiva ou uma série particular de ideias com uma paixão dominante e mais ou menos
extrema, como um estado habitual de espanto, de profundos remorsos, uma aversão a tudo e a
todos, seria como o desencantamento da vida (TEIXEIRA, 2007).
A tristeza, a decepção, toma conta de Catherine o que nos remete a Kristeva (1989)
quando ela coloca em seu livro “Sol Negro” que no estado de melancolia-depressiva o que
persisti na pessoa acometida é um humor abafado, escondido, onde se encontra um processo
permanente de amargura, com acessos de tristeza e dor que dilaceram a alma.
Algumas das características básicas do quadro clínico da melancolia são exatamente:
os julgamentos sobre sua vida, sua família, e com ideias fixas que a toda hora e todo
momento estão retomando o que foi vivenciado através da dor e do sofrimento.
Mas podemos verificar no inicio da história que Catherine teve uma infância
construída em cima de muita rigidez, tristeza e de extrema rebeldia. O Mr. Earnshaw pai de
Catherine era um homem muito rígido e severo para com os filhos, a busca do amor do pai
trilhada diariamente por ela era algo sofrido, visto que sua busca era em vão, vamos
relembrar essa passagem nas falas de Nelly:
-Entrei sem bater, não da para imaginar em que lugar triste e sóbrio
se transformara aquela casa antigamente tão alegre! Confesso que se
eu estivesse no lugar da jovem senhora, pelo menos varreria a lareira
e passaria um espanador nas mesas. Mas ela já partilhava do espirito
de negligencia que a cercava. Seu lindo rosto estava pálido e
apático, o cabelo desfeito: alguns cachos caiam em desalinham, e
outros se enrolavam de qualquer jeito ao redor da cabeça.
Provavelmente não havia trocado o vestido desde a véspera
(BRONTE, 2012, pg.82).
Parece que todos aqueles que estavam ao redor de Heathcliff eram contaminados pela
melancolia e depressão, as pessoas se tornavam apáticas e tristes em vida, parecia que sua dor
de existir tinha que ser compartilhada e vivenciada com as outras pessoas, porém não através
de sentimentos, mas através de sua vingança, de sua vontade de destruir tudo ao seu redor.
Assim para tentar aniquilar sua dor o outro tinha que sofrer, tanto quanto ele teria sofrido no
passado. Porém mesmo fazendo as mulheres que o amavam sofrerem intensamente, sua dor
jamais se extinguia.
Abraham nos traz em seus estudos um olhar voltado para a “formação do caráter”
dentro do processo da melancolia, o qual ele denomina de “Caráter melancólico” esse
processo é considerado anormal quando a identificação que geraria o superego se degrada
numa identificação canibal com os traços agressivos orais dos objetos chamados pai e mãe.
Consequentemente o superego dessa pessoa apresentará traços de crueldade oral na sua vida
adulta, ou seja, a percepção do objeto é firmada na psique, e predominará cada vez que
houver na experiência algo que faça lembrar aquela vivência. (FÉDIDA, 1999)
A partir desse contexto é importante compreender o desdobramento da teoria para que
serve a introjeção do objeto, se é para conservar o mesmo, e poder pouco a pouco, elaborar o
luto, ou se para romper o vínculo com este objeto. Em uma pessoa “normal” ao sofrer uma
perda real, a introjeção do objeto funciona como um mecanismo de conservação da relação
da pessoa com o objeto morto, compensando assim sua perda e tem um caráter temporário.
Porém a pessoa que se encontra no estado melancólico profundo por não ter
conhecimento do que perdeu junto com o objeto, retoma em si o objeto através de uma
identificação de natureza narcísica de caráter permanente. Podemos compreender isso na
figura de Heathcliff as tendências hostis contra o objeto amado no caso Catherine e ao
mesmo tempo espalhadas a todos a seu redor, são marcadas pela existência de sentimentos
ambivalentes. O personagem de Heathcliff busca incessantemente manter o objeto amado,
mesmo que seja magoando-o, maltratando-o, pois a melancolia esta voltada muito mais para
uma forma de expressar regressivamente a tentativa de manter o objeto perdido, como vivo,
do que o resultado do procedimento de agressão em si. Não é a perda que faz regredir, mas é
para não assimilar a perda que se regride (FÉDIDA, 1999)
Em outra passagem da obra Catherine já fraca e sem força para lutar contra a angústia
e a tristeza, que a apetecem, conversar de forma áspera e seca com Heathcliff deixando claro
que ele a está matando aos poucos e que percebe que ele está feliz ao fazer isso:
Catherine Linton é mais uma das mulheres dessa trama que se encontra na dinâmica
contaminante de Heathcliff, a pobre Catherine a qual vive isolada e fora da realidade, como
numa prisão aberta, mas sem consegui se libertar verdadeiramente. A dinâmica melancólica-
depressiva de caráter narcisista de Heathcliff mostra a voracidade com que ele aprisiona suas
presas, a necessidade de tê-los ali em sofrimento junto com ele, parece ser a continuação de
sua vingança nos herdeiros de Catherine, Hindley e Linton, ao mesmo tempo em que tê-los
ali funciona também como conservação do passado. O melancólico narcísico tem o prazer de
magoar, de ferir o outro para esconde sua verdadeira dor, a dor de existe, no caso de
Heathcliff a dor da perda de sua amada, a qual ele deseja em seus mais profundos sonhos que
venha atormenta-lo, para que ele possa sentir sua presença novamente.
O estado melancólico-depressivo de Heathcliff apesar do tempo e de todo sofrimento
causado a ele mesmo e a Catherine sua amada, vive preso no passado, pois uma das
características principais da melancolia é essa volta ao passado de forma constante, é como se
revivesse as dores e tristezas continuamente. Em uma das passagens da historia com o olhar
atento de seu visitante o Mr. Lockwood o qual nos relata uma cena entre Hareton, Cathy
Linton e Heathcliff:
- Mas o amor próprio de Hareton não suportava mais ser espicaçado.
Ouvi, sem desaprovar de todo, que ele aplicava uma correção
manual àquela língua insolente. A pobre infeliz tinha feito tudo que
podia para ferir os sentimentos sensíveis, embora incultos, do primo;
e uma resposta física era o único modo que ele tinha de ajustar as
contas e devolver a ofensa ao ofensor. Ele juntou os livros e lançou-
os ao fogo. Li na sua expressão a angustia que lhe causava oferecer
aquele sacrifício à própria cólera. Imaginei que, enquanto o fogo os
consumia, ele recordava o prazer que ainda esperava obter. Achei
também que adivinhara o que o estimulava a estudar em segredo.
Ele se contentará com a labuta diária e os rudes prazeres animais,
até que Catherine cruzara o seu caminho. A vergonha pelo desprezo
da moça, e a esperança de obter sua aprovação, foram as primeiras
coisas que o encorajaram a perseguir objetivos mais elevados. No
entanto, em vez de evitar o desprezo e conseguir a aprovação, seus
esforços para se elevar haviam produzido resultados exatamente
opostos.
-Sim, isso é o melhor que um bruto como você pode obter dos
livros! – exclamou Catherine, mordendo o lábio ferido, e assistindo
ao incêndio com olhos indignados.
-É melhor calar essa boca respondeu ele, furioso.
-Estava tão agitado que não conseguiu falar mais nada. Caminhou
depressa para a porta, e me afastei para lhe dar passagem. Mas, mal
cruzara a soleira, encontrou Mr. Heathcliff que vinha subindo a
calçada e lhe pôs a mão no ombro, perguntando:
-O que aconteceu meu rapaz?
- nada, nada – disse ele, e fugiu para desfrutar sozinho de sua mágoa
e da sua raiva (BRONTE, 2012, pg. 164-165).
Hareton filho de Hindley o qual assumiu sua posição de passivo diante de todas as
maldades vivenciadas, aguentando todo o sofrimento causado por seu suposto protetor
Heathcliff, pois não conseguia vê-lo como ofensor, devido os maus-tratos que sofria desde
criança já os assimilava como algo natural. A posição do melancólico-depressivo decorre de
uma escolha – a de não enfrentar as atitudes ofensivas do outro sobre si, mas sim oferecer-se
como objeto inofensivo e indefeso à proteção do Outro (BRAPTISTA, 2011)
Assim Hareton o se defrontar com Cathy Linton não consegue lidar com novos
ataques a seu ego frágil, Cathy é uma mulher de personalidade forte, que gosta de confrontar,
e percebe em Hareton alguém frágil em quem pode depositar todas suas frustrações e
ressentimentos. Ou seja, a dinâmica doentia de Heathcliff parece continuar perpetuando agora
entre os novos jovens da casa.
O que podemos perceber é que Heathcliff em todo seu aspecto doentio tenta buscar a
presença de Catherine Earnshaw em cada parte da casa, e cada vez mais em seu filho
bastardo o qual usurpou do irmão dela para continuar sua vingança. Cada vez mais fechado e
sombrio Heathcliff continua incessantemente procurando uma saída para sua dor, dentro da
teoria Freudiana podemos dizer que este utiliza-se do mecanismo de clivagem o qual divide-
se em dois aspectos um voltado para a realidade e o outro negando a realidade em curso,
assim por um lado ele recusa as percepções traumáticas, por outro reconhece simbolicamente
seu impacto e busca através da defesa tirar suas consequências(KRISTEVA, 1989).
Desta forma, Heathcliff aparece na história como um verdadeiro anti-herói
impulsionado pela paixão e pela vingança, conseguindo despertar no leitor todos os tipos de
sentimentos: simpatia, ódio, raiva, pena, horror. Após passar por várias humilhações em sua
infância e adolescência, chegando a uma situação quase que miserável, consegue dar a volta
por cima, disposto a se vingar de todos os que lhe fizeram mal no passado e recuperar seu
grande amor da infância, Catherine. Ao voltar a casa do Morro dos ventos Uivantes, traz
consigo a degradação e ruína de todos, até mesmo de pessoas que nunca o ofenderam.
Numa breve retrospectiva da historia contada por Bronte, ao começarmos a lê, parece
um desses romances clássicos onde o menino pobre, abandonado e trazendo em sua bagagem
alguns traumas das perdas vivenciadas se enamora de uma menina rica que carrega também
algumas perdas, porém cheia de vivacidade e alegria. Parece que com o amor dos dois ele em
fim ficará em paz e acalmara a dor que sente. Mas ao sentir que está perdendo a amada,
Heathcliff se torna cada vez mais triste e sombrio. A partir dai a historia toma uma
reviravolta quando Heathcliff decide ir embora para evitar sentir a dor da perder Catherine
para Edgar Linton, no entanto a mesma decide não se casar com Linton para ajudar
Heathcliff, mas sim viver o amor dos dois, pois como ela fala ele é a alma dela e ela a alma
dele. A falta de comunicação e uma compreensão errônea dos fatos levam ambos a sofrerem
uma separação brutal que atingirá a ambos de forma dilaceradora e marcará para sempre.
O sujeito no estado melancólico-depressivo não consegue ter tranquilidade para
enxergar a real situação, não consegue dialogar, pois ele introjeta tudo ao seu redor da forma
percebida por ele, uma patologia nunca está sozinha ela traz consigo sempre outras
patologias, no caso de Heathcliff a paranoia, a ansiedade em alto grau, os pensamentos
obsessivos em relação ao passado, fazem com que ele perceba somente o que quer ver a
traição de todos inclusive de Catherine, ou seja, todos devem ser destruídos.
Na Psicanálise essas ultimas experiências já mostram o caráter do verdadeiro “eu” de
Heathcliff o qual estava escondido, camuflado pelo amor de Catherine. A melancolia já
predisposta nele ainda menino, pois para Freud e Abraham a mesma está interligada a relação
do amor com os objetos amados na infância o pai e a mãe, que não é citado em nenhum
momento por Bront em sua obra, mas o que ela nos permite vê e a relação do menino
Heathcliff com sua nova família, as humilhações, castigos, repreensões so fazem com que
aumente a dor do menino, funciona como se ele guarda-se as mágoas e sofrimentos e os
revivesse continuamente, ou seja, aquela situação atual vivenciada o fazia reviver as
anteriores. Pois, no estado melancólico-depressivo com falha de caráter narcisista o sujeito
não consegue se desligar do sofrimento que viveu no passado, aquela dor será sempre
lembrada, por mais que ele não queira, algum evento faz a dor e a tristeza vir a tona, e como
um mecanismo de defesa do ego surge a vontade de magoar, humilhar, destruir para aliviar a
dor que é imensa.
O que encontramos no decorrer da obra de Emyli Bronte foi uma mistura complexa de
sentimentos, amor e ódio, lutas interiores intermináveis, paixão intensa e dilaceradora que
estiveram nos personagens até o momento final da história. Heathcliff ao mesmo tempo em
que amou de forma intensa também odiou da mesma forma, talvez a pior de todas as
consequências que o comportamento frio e hostil de Heathcliff casou foi a morte de sua
amada Catherine, ele a levou a um dos piores de todos os sentimentos do ser humano, o
sentimento de culpa, o que causou a morte de Catherine. Há dois traços de comportamento no
sujeito melancólico-depressivo de caráter narcisista, o primeiro surge através do sentimento
de vitimização, injustiçado, ele busca passar para as pessoas que estão ao seu redor que ele é
a vítima da situação, em suas atitudes e falas deixa transparecer a vitimização, pois sempre
será o sujeito bom, gentil e sofredor da história, para jogar em cima de sua vítima a carga de
culpa para fazê-la sofrer continuamente, é o que dá prazer e ao mesmo tempo o que alivia sua
dor. Heathcliff leva Catherine a sofrer muito pela escolha que fez, atormentando-a e
deixando claro que a culpa de tudo que está acontecendo foi dela, mesmo sendo ela sua
amada e sabendo que a mesma ainda o ama, a necessidade de causar dor, de feri-la é maior
que ele.
Segundo Teixeira (2007), em seus estudos Freud atribui o conflito ambivalente do
melancólico a um conflito interno entre Ego e Superego, a partir desse conflito surge o
sentimento de culpa que é uma tensão entre essas duas instancias. No entanto, na melancolia
o superego se apodera do sadismo que se volta contra o ego, onde o objeto perdido se
encontra guardado. Na normalidade ocorre um conflito entre ego e superego que é
restabelecido pelo equilíbrio, porém na dinâmica do melancólico esse conflito se manifesta
sob a forma de impulsos de autodestruição e autodesvalorização.
A necessidade de destruir o objeto amado, para incorporá-lo e de certo modo se
proteger da dor sempre será maior que ele, assim todo esse sentimento obscuro diante de
tanta culpa leva Catherine a definhar, pois não consegue mais lidar com a culpa, as
lembranças, e o amor que ainda sente por Heathcliff.
O melancólico de uma forma geral, não consegue lidar com perdas e dificuldades de
forma natural como algo que deverá ser superado. Pois, ao esbarrar numa dificuldade, não a
reconhece como dificuldade, mas toma para si como fracasso, o que introjeta como mera
prova de sua deficiência, o sentimento de inferioridade o invadi, qualquer pessoa é
possuidora de maior dignidade e valor que ele (TEIXEIRA, 2007).
No tipo de patologia melancólica-depressiva com falha narcísica o sujeito sempre é
sentido por ele como o injustiçado, todo mal que ele causar, toda a dor causada ao outro,
jamais será culpa dele, pois não existe esse sentimento de culpa, ele jamais pedirá desculpa,
pois a culpa sempre será do outro, porém se o pedi será para manipular o outro na busca de
fazê-lo sofrer em outro momento (BAPTISTA, 2011).
A melancolia-depressiva de uma forma geral se baseia na ambivalência, já a
melancolia-depressiva com falha narcísica se apoia nos componentes destrutivos. A primeira
centra sua luta através dos embates internos da ambivalência, um superego cruel e um ego
subjulgado – tendendo a dar um especial relevo ao sentimento de culpa. A segunda ocorre o
embate entre ego e superego, ocorre à ambivalência, mas a predominância é dos componentes
destrutivos que não podem ser absorvidos nas relações com os objetos, tendendo ao caráter
psicótico da melancolia, “a melancolia aqui é conseqüência de frustrações traumáticas ou
descuidos precoces, e se manifesta por carência narcísica” (TEIXEIRA, 2007, pg 77).
A partir dos esclarecimentos sobre melancolia-depressiva e melancolia-depressiva
com falha de caráter narcisista fica claro as distintas personalidades melancólicas dos
personagens enquanto Catherine, Isabela, Lockwood, Hareton, tendiam para a primeira, o
nosso personagem sombrio Heathcliff tendia para a segunda, onde a falha narcísica permitia
vir a tona os sentimentos de ódio e vingança de forma muito mais intensa.
A partir dessa belíssima obra de Emily Bronte conseguimos fazer um breve estudo da
personalidade melancólica de seus personagens, utilizando de artigos científicos e livros de
estudiosos como Kristeva, Baptista, Ginzburg, e outros, o que nos possibilitou relacionar
brevemente os elementos da obra e os conceitos da psicologia, mostrando que o principal
personagem Heathcliff talvez sofresse de uma patologia muito complexa e perturbadora a
melancolia-depressiva de caráter narcísico, pois através da dinâmica dessa patologia
conseguimos explicar muito do seu comportamento, atitudes e amor descontrolado os quais
no desfecho da obra provocaram consequências trágicas, avassaladoras e cruéis, pois sua
vingança se estenderia até a nova geração dos Earnshaw e dos Lintons.
Bibliografia
BAPTISTA, M. C. F. A melancolia, depressão e dor de existir. Revista Hospital
Universitário Pedro Ernesto, UERJ- Reio de janeiro, 2011.
BENJAMIN, Walter. Origem do drama barroco alemão. Tradução de Sérgio Paulo
Rouanet. São Paulo: Brasiliense. 1984. Disponível em: http://ujcsp.net/wp-
content/uploads/2015/09/d7ca96566e26223d2e230142a9a99e99.pdf. Acesso em 10 de
dezembro de 2015
COSER, O. Depressão: clínica, crítica e ética (on line). Rio de Janeiro: Editora Fiocruz,
2003.
KRISTEVA, Julia. Sol Negro: depressão e melancolia. Tradução de Carlota Gomes. Rio
de Janeiro: Rocco. 1989
http://www.revistahcsm.coc.fiocruz.br/a-descida-ao-inferno-depressao-feminina/ Acesso
em 30 de dezembro de 2015.
https://www.diva-portal.org/smash/get/diva2:519140/FULLTEXT01.pdf