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Melancolia e outras angústias.

A literatura, enquanto oficina da linguagem descobre o véu das tristezas, incertezas e


negatividades. Revela, pela perspectiva da palavra, sentimentos guardados no íntimo,
exilados de uma compreensão que lhes faça justiça. Através do “dizer”, a literatura recria o
“sentir” e expõe a dor do existir.
O literário, consciente dos infortúnios e intempéries da condição humana, traz consigo
um quê de desencantamento que o torna suscetível à análises profundas da dor de,
simplesmente, ser. Essa propriedade da linguagem literária, desenvolvida por Emily Brontë,
ao tratar dos sofreres do homem, nos conduz por uma trama em que a melancolia é quase
palpável durante o processo narrativo de O morro dos ventos uivantes. A estética literária
utilizada por Brontë apresenta uma densa especulação sobre as prisões humanas, reais ou
imaginárias, que cerceiam a prerrogativa da livre escolha das personagens, tornando-as
criaturas tristes, melancólicas e angustiadas.
Uma das grandes prisões humanas pode ser vivenciada através da melancolia, pois
esta é um estado em que o ser humano se encontra voltado para suas próprias angustias,
medos, incertezas, é como se fosse um "desencantamento” com a vida, porém vários autores
buscaram estudar o que acontece no processo de melancolia, como a pessoa se sente e qual a
causa. Assim vamos tentar compreender um pouco mais através de alguns autores o que seria
esse estado de melancolia que os personagens do livro "o Morro dos Ventos Uivantes"
acabam sendo acometidos no decorrer da história.
A primeira definição vinda da antiguidade grega fala que as faculdades racionais da
pessoa acometida pela melancolia sofrem um desequilíbrio humoral, o que pode ser traduzido
clinicamente como melancolia, histeria, e outras afecções. Coser (2003) em seu artigo sobre
“Depressão: clínica, crítica e ética” cita Starobinsk (1960) este sendo um dos grandes
estudiosos sobre melancolia, ratifica que a palavra melancolia pode ser definida como um
humor natural que pode ser patógeno, ou ainda pode ser referida a uma enfermidade mental
causada pelo excesso ou desnaturalização deste humor.
No decorrer da história muitos escritores e poetas se utilizavam desse estado
melancólico-depressivo em que se encontravam muitas vezes, utilizando-o como uma forma
de inspiração para escrever suas obras literárias. Uma das obras mais conhecidas e utilizadas
para estudos da melancolia-depressiva foi Hamlet de William Shakespeare, que cria um
personagem intenso com um avassalador sentimento de culpa, depreciação de si mesmo e do
mundo (CINTRA, 2001).
A doença “melancólica” é muito antiga, na Grécia antiga berço dos grandes filósofos
os gregos já buscavam entender seus próprios sentimentos, esses transferiam para os deuses e
heróis os sofrimentos que os afligiam. Foi dessa forma que Homero teceu “A Ilíada”, onde
Belerofonte é condenado a vagar na solidão após tentar ascender ao Olimpo. A perda do
apreço pela vida torna o homem melancólico, buscando a morte como se fosse uma benção,
sintetizou Hipócrates (TEIXEIRA, 2007).

Também na Bíblia encontramos densas referências à melancolia, como a ocasião em


que Jó amaldiçoa o seu nascimento e lamenta a sua miséria, busca na morte o alívio para suas
angústias e o fim de seu sofrimento, tornando-se exemplo da síntese de Hipócrates:

“Depois disso abriu Jó a sua boca, e amaldiçoou o seu dia.


E Jó falou, dizendo:
Pereça o dia em que nasci, e a noite que se disse:
Foi concebido um homem!
Converta-se aquele dia em trevas; e Deus, lá de cima, não tenha
cuidado dele,
Nem resplandeça sobre ele a luz.
Reclamem-no para si as trevas e a sombra da morte,
Habitem sobre ele nuvens;
Espante-o tudo o que escurece o dia.” (JÓ, 3)

Se para Hipócrates a melancolia era uma doença (bílis negra) muito mais voltada para
o lado biológico, Aristóteles cuidou de relacioná-la entre a loucura e a genialidade,
associando melancolia e criatividade: “o homem triste é também um homem profundo.”
(SCLIAR, 2003, p. 70). Pois, uma pessoa perceptiva, introspectiva, se torna extremamente
sensitiva, o isolamento deixa mais inteirada com os sentimentos, com o que vivencia, parece
que tudo vivenciado é muito mais intenso, num grau profundo e diferenciado.
O homem melancólico, para Aristóteles é notável e excepcional não por doença, mas
por natureza. Apegando-se aos ideais de Aristóteles a escola romântica mostrou-se
fortemente influenciada pela melancolia. O movimento romântico opôs-se ao racionalismo
vigente e concentrou-se na ideia de uma visão de mundo baseada no homem, sua
individualidade e subjetividade (TEIXEIRA, 2007). Nota-se que a concepção de Hipócrates é
oposta a de Aristóteles, mas ambas ainda marcam o pensamento ocidental (SCLIAR, 2003).
Ginzburg em seu livro “Literatura, Violência e Melancolia”, relata que Hipócrates
naquela época já trazia uma definição de melancolia, esta estaria relacionada ao medo e a
tristeza e no tempo de duração que parece ser eterno, a esse complexo processo vivenciado
pelo ser humano ele chamou de melancolia (GINZBURG, 2013)
No livro “Luto e Melancolia” escrito por Sigmund Freud após a Primeira Guerra
Mundial e publicado em 1976 numa coletânea sob o título de Metapsicologia. Freud busca
estabelecer a definição que se tornaria clássica, este revela que diante de uma perda real ou
ideal de um objeto que é foco libidinal, existem duas reações básicas: o luto como uma
condição normal e seu correspondente patológico, a melancolia (COSER, 2003).
Assim para Freud a melancolia se apresenta como uma condição patológica, com o
passar do tempo vai tonando-se mais complexa quando assume graus mais intensos, pois o
fato de está relacionada a perda ou a sucessivas perdas, ou ainda apenas a ameaça de perda
incluindo as situações de frustação, desconsideração ou desprezo. A pessoa que vivencia esse
processo entra num estado de desencantamento com tudo ao seu redor, parece que o tempo
passa mais lentamente e tudo e todos estão contra ela (COSER, 2003).
Como podemos verificar no decorrer do tempo e da história, a literatura e o estado
melancólico sempre estiveram imbricados, tecer um romance falando de amor, paixão,
luxuria, separação, perdas e morte era estreitar os laços com o processo melancólico, o
personagem principal sempre tinha traços fortemente melancólicos escondidos na escuridão
de seu ser e sofrendo a dor de existir. Podemos verificar que o processo complexo
melancólico vai se instalando aos poucos na pessoa que vai sucumbindo e aceitando sem
resistência. Algumas das características básicas do quadro clínico da melancolia são: o
sofrimento moral, as ideias fixas, os julgamentos sobre sua vida, sua família, sua honra,
sendo julgamentos muitas vezes improváveis até absurdos, mas sempre com um sentimento
de culpa, abandono e ruína.

Assim a Melancolia vem sendo dos grandes males do século XVIII e XIX, no
entanto no decorrer do tempo encontra outra doença que acomete a alma, a depressão. A
depressão acaba sendo incluída como categoria clínica a partir da primeira metade do século
XIX, assim a categoria depressão, que a princípio nada tem a ver com a melancolia, vem se
sobrepuser a mais velha das doenças e depois ocupar o lugar dela.
De acordo com Berlinck & Fédida isso seria uma nova denominação para o que no
passado convencionou-se chamar de “melancolia”. Mas o incômodo que não cala é: existe
diferença entre depressão e melancolia? Para Solomon (2002) existe um número tão grande
de diferentes manifestações depressivas e melancólicas que seria necessário criar uma
classificação diferente para cada caso estudado mais a fundo
No entanto, a Melancolia e Depressão segundo alguns autores estão numa linha muito
tênue, sendo difícil fazer essa separação. Como coloca Kristeva (1989) em seu livro “Sol
Negro: depressão e melancolia” que esses dois termos poderiam se juntar formando o termo
melancólico-depressivo, pois segundo ela os limites entre os dois são imprecisos.
Dessa forma a autora ratifica ainda que apesar da melancolia e depressão estarem
numa linha tênue de separação ambas se apoiam numa intolerância a perda do objeto aonde a
pessoa vai aos poucos se tornando cada vez mais introspectiva, definhando, chegando a um
estado de inanição até a morte. Dessa maneira vamos buscar falar da melancolia e depressão,
porém sem tentar distinguir suas particularidades, mas tendo em vista sua estrutura de
sintomas em comum (KRISTEVA, 1989).
Berlinck & Fédida (2000) acrescentam através de suas pesquisas que as publicações
psiquiátricas da Era Contemporânea inclinavam-se a empregar o termo “depressão” como
sinônimo do termo “melancolia”, porém mais tarde em meados do século XIX a melancolia
passa a ser vista como um tipo de depressão a “depressão-melancólica”.
Esse romance gótico do período Vitoriano escrito por Emily O Morro dos Ventos
Uivantes sendo um clássico da historia da literatura deixa transparecer de forma intensa e
muitas vezes quase sentida por quem está lendo sentimentos como ódio, culpa, exclusão,
indiferença, desprezo de si e do outro. Os personagens criados por ela vivenciam sentimentos
intensos e sempre estão no linear do comportamento melancólico-depressivo, porém sua
história de vida nos faz acreditar que muitos dos sentimentos vivenciados pelos personagens
de sua obra literária talvez sejam projeções da autora misturadas com as fantasias que dão
vida a cada um deles.
Na busca de um melhor entendimento sobre o processo melancólico vivenciado pelos
personagens vamos tomar como exemplo as primeiras linhas do romance de Brontë, logo
encontramos um narrador que define a si mesmo como melancólico. Ermitão, o narrador-
personagem Lockwood deseja a reclusão dos introspectivos e o silêncio dos lugares ermos,
assim a Granja da Cruz do Tordo se parece lugar ideal para seu desejo de isolamento e
reclusão:

1801. Acabo de chegar de uma visita a meu senhorio – o


solitário vizinho com quem eu talvez tenha de me preocupar. Esta é
certamente uma bela região. Em toda a Inglaterra, não acredito que eu
pudesse ter me instalado em um local tão completamente afastado do
burburinho social. O Paraíso perfeito para um misantropo – e o Sr.
Heathcliff e eu formamos um par adequado para dividir a desolação
entre nós.
No entanto essa reclusão que nosso ilustre narrador demonstra querer, parece não ser
um isolamento para meditação, encontro de si mesmo, porém demonstra ser muito mais uma
fuga do real. Em sua comparação com Heathcliff quando diz “formamos um par adequado”
deixa ainda mais claro a necessidade de enclausuramento, de se sentir “bem” na solidão e
isolamento, pois o real se tornar impossível de se lidar e o está sozinho é como se para-se no
tempo e ameniza-se a dor.
Baptista em seu livro “melancolia, depressão e a dor de existir” cita Minkowsk (1903)
o qual apresentou as características principais da vivencia temporal da depressão melancólica
na qual a pessoa tem a sensação de viver mais vagarosamente que o tempo, parece que este
não passa, assim não há sofrimento, não há dor. Desta forma a pessoa se utiliza desse
processo como uma defesa, afastando todo tipo de possibilidade de relações positivas ou
negativas com o mundo ao seu redor (BAPTISTA, 2011).
No decorrer da narrativa, Lockwood não deixa muitas pistas sobre as razões de seu
temperamento recolhido e sua tristeza infundada, mas observa-se que se regozija ao
identificar em Heathcliff, ainda que erroneamente, suas próprias características. Lockwood,
assim como quase a totalidade das personagens de Brontë, detém um temperamento que nos
remete ao que a Idade Antiga chamou de “patologia dos humores tristes” como designada por
Teixeira (2007) que ressalta que muitos estudiosos relacionaram a melancolia ao estado de
humor.
Coser (2003) apud Godino Cabas, (1988) referencia a teoria da “melancolia
abrahamniana” a qual apresenta a melancolia como uma oscilação do humor entre euforia e
depressão, mas essa oscilação não é por ele entendida como algo cíclico, ou seja, como um
ciclo da doença que se alternaria com outro, mas sim como uma ocorrência clínica que
obedece às (e se modula por elas) contingências que afetam o sujeito em sua vida.
Em uma das passagens do livro Lockwood pede para Nelly uma senhora que tomava
conta da Charnella a muitos anos para lhe contar a historia de Heathcliff e sua família, pois
estava intrigado com aquele homem áspero, duro como uma pedra, arrogante e que não
gostava de visitas. Nelly se prontifica a contar a história e fala como o menino Heathcliff
chegou até a casa dos Earnshaw.
Encontrado vagando faminto pelas ruas de Liverpool por Mr. Earnshaw, o menino
Heathcliff chega ao Morro dos Ventos Uivantes praticamente mudo, logo ganha o apreço do
patriarca e de Catherine, mas sua personalidade fria impede-o de demonstrar reciprocidade
pelos sentimentos que Mr. Earnshaw nutre. Heathcliff, ainda criança, foi duramente
maltratado por Hindley e Nelly, sendo esta última mandada embora da casa pela
desumanidade e covardia que despendia ao menino. Mas, curiosamente, é Nelly quem
reconhece os primeiros sinais da natureza melancólica de Heathcliff:

Mrs Earnshaw impetuosamente perguntou


como ele poderia ter trazido aquele pirralho de
cigano para casa, o patrão tentou explicar, mas
estava morto de cansado.... tudo que eu pude
entender e que ele encontrará faminto, abandonado
e parecendo mudo andando pelas ruas de
Liverpool...Ele parecia uma criança taciturna e
paciente, talvez um tanto endurecida pelos maus
tratos. Suportava os tapas de Hindley sem piscar ou
derramar uma lagrima e os meus beliscões so o
faziam respirar fundo.... (BRONTE, 2012, pg.23)

O que percebemos ainda no início da história é que a trajetória da infância e


adolescência de um dos personagens principais, Heathcliff o qual parece trazer uma carga de
sofrimento muito grande, os maus tratos, o abandono na cidade Liverpool, o desprezo da
nova família devido sua raça e cor, o menino parecia viver numa imensa dor, dentro de um
sofrimento solitário, muitas vezes engolindo o choro e mostrando indiferença aos maus tratos.
Podemos identificar em Heathcliff um estado melancólico que o cerca e leva-o para
seu mundo próprio, ele demonstra ter sintomas fleumático, ou seja, alguém impassível,
imperturbável, tanto quanto traços de colérico. Tudo nele apresenta a marca das trevas e da
vontade, com muito pouca excitabilidade, o que segundo Karl Abraham chama de pessoa
melancólica profunda.
É dentro desse contexto pesado que o personagem principal Heathcliff vem
construindo sua singularidade, o isolamento, a tristeza, a escuridão parece que o acompanham
desde criança sendo esses alguns dos fatores que favoreceram para seus sentimentos e ações
sombrios os quais demonstra ao encontrar com o senhor Lockwood.
Ao falar em psicogênese da melancolia, Abraham reúne alguns elementos que
contribuem na vivencia da infância ao aparecimento do processo melancólico. Sendo o
primeiro um fator constitucional, herdado, que exacerba o erotismo oral; o segundo uma
fixação da libido no estágio oral do desenvolvimento; sendo o terceiro elemento, sucessivos
desapontamentos amorosos infantis antes que os desejos edipianos tenham sido elaborados,
culminando com grave lesão ao narcisismo, e a repetição do desapontamento primário na
vida externa, desencadeadora da depressão melancólica.
A dor do melancólico mostra que ele conhece bem as dificuldades, obstáculos, as
perdas, os sofrimentos vivenciados no decorrer de sua história, mas não é capaz de simbolizá-
los, fica gravado e armazenado no inconsciente as marcas das reações às dificuldades
relativas às necessidades vitais e as frustrações da vida afetiva, isso não pode ser tirado nem
arrancado de dentro, mas pode ser camuflado, o isolamento, a enclausuração se tornam uma
defesa a dor de existir (BAPTISTA, 2011).
De todas as perdas de Heathcliff a ausência de Catherine por um longo período que
passou como hospede na casa dos Linton talvez tenha sido a mais sentida, pois estava
acostumado desde quando chegou no lar dos Earnshaw a está sempre grudado a ela, como
“unha e carne”. Era ela que o ajudava a enfrentar os maus tratos do meio irmão, parecia que
em sua aus6encia era mais difícil sair daquele poço fundo e escuro onde se escondia quando
tinha que enfrentar a irá de Hindley e sua vingança guardada desde a infância por se sentir
negligenciado por seu pai em favor do filho bastardo. Na historia contada por Nelly ela
afirma:
-Se antes ele já era descuidado e negligenciado por todos antes da
ausência de Catherine, tornou-se dez vezes pior desde então.
Ninguém a não ser eu jamais teve a bondade de chamar-lhe a
atenção para sua sujeira, e pedir-lhe que se lavasse, pelo menos
uma vez por semana, os meninos da sua idade raramente gostam
de água e sabão.....Portanto sem falar nas roupas – que já tinha três
meses de serviço na lama e no pó – e no basto o cabelo
despenteado a pele do rosto e das mãos era um negrume atroz.
(BRONTE, 2012, pg.31)

A Melancolia no sujeito jovem é um pouco difícil de identificar porque esse jovem


passa por um processo de transformação biopsicossocial o qual altera muito seu humor indo
da tristeza a alegria intensa, tem breves momentos de isolamento, porém não são as
características permanentes desse jovem. O que podemos verificar na real situação da
trajetória de Heathcliff é um processo contínuo de perdas, o que o levam a um processo de
isolamento e tristeza por longo período, podendo ser caracterizado como uma depressão-
melancólica profundamente dolorosa na qual acontece um total desinteresse pelo mundo
externo, uma perda da capacidade de amar, diminuição do sentimento de auto-estima, de si
cuidar, de se querer bem, que se manifesta em autoacusações e autoinjuria, e quanto mais
profunda pode levar a pessoa a espera delirante da punição (BAPTISTA, 2011)
A tristeza de Heathcliff era imensa, que ao ver a jovem Catherine depois de tanto tempo
longe um do outro, so conseguiu demonstrar vergonha de si, por estar naquele estado, porém
ao mesmo tempo o fato de vê-la bem vestida e limpa igual uma princesa, surge também
sentimentos como raiva e orgulho, como podemos identificar nesse trecho do livro:

- Nossa como você parece escuro e mau humorado Heathcliff. E


tão engraçado e zangado também....
-Ela tinha razão em fazer essa pergunta, pois a vergonha e o
orgulho deixavam o semblante do rapaz duas vezes mais sombrio e
tolhiam seus movimentos. Aperte-lhe a mão disse Heathcliff – disse
Mr. Earnshaw, condescendente uma vez não faz mal......
-Não aperto – respondeu o menino recobrando o uso da fala afinal,
não vou ficar aqui para ser motivo de riso. Não admitirei isso!
(BRONTE, 2012, pg.31)

Como podemos verificar nesse trecho é a dor profunda de um menino que se sente
sozinho, todas as pessoas que ele amava acabam se perdendo, sua família, depois o Mr.
Earnshaw o pai de Catherine que o adotou, depois o afastamento de Catherine, inúmeras
perdas que o fizeram construir esse semblante carrancudo e triste o qual é citado inúmeras
vezes no decorrer da historia. A melancolia pode acontecer a partir de vários fatores sendo
um deles a vivência muito sofrida, as frustrações afetivas, o medo do abandono e as
experiências dolorosas da perda e da falta de um objeto que é sentindo mais não é
identificado. Assim o melancólico pode representar a si mesmo como alguém sem futuro
(BAPTISTA, 2011).
Fédida (1999) em seus estudos cita Abraham, o qual parte da ideia que toda perda
vivenciada gera um sentimento depressivo que ocasiona uma perturbação libidinal, que
incapacita a pessoas a amar, fazendo com que o ódio ao ser projetado para o exterior, leve o
sujeito a responsabilizar o mundo por sua infelicidade. Porém, esse processo desperta
impulsos sádicos com desejo de vingança e atitudes hostis em relação as pessoas. A pessoa ao
tentar suprimir esses impulsos tende ficar vulnerável ao aparecimento da culpa e de
autoacusações, revelando assim uma satisfação masoquista.
No decorrer da historia encontramos várias passagens que levam a compreender toda
a bagagem melancólica-depressiva que nosso protagonista carrega o Mr. Heathcliff, pois este
não consegue se ajustar a vida real, está sempre ligado aos acontecimentos do passado,
parece que viver traz consigo uma dor imensa que parece não acabar nunca, um vazio,
tristeza, o que acaba fazendo com que o personagem haja muitas vezes de forma
incompreensiva por todos os que o cercam, sendo denominado de Heathcliff o “demônio
melancólico”. Os trechos que seguem abaixo demonstram de forma mais concreta o lado
sombrio e perturbador do Mr. Heathcliff.
Quanto a você, Catherine, vou lhe dizer algumas palavras agora, já
que falamos no assunto. Quero que saiba que eu sei que você
procedeu comigo de maneira infernal....infernal, ouviu bem? E se
acha que foi esperta para não me deixar perceber, então é uma tonta.
E se acha que posso ser consolado com palavras doces, é uma idiota.
E se imagina que vou sofrer sem me vingar, então vou convencê-la
do contrário muito em breve! (BRONTE, 2012, pg.63).

Uma pessoa melancólica está sempre voltada para as experiências do passado,


contemplando esses acontecimentos, remoendo-os vezes sem conta em sua mente. Tem
grande dificuldade de esquecer o que lhe foi dito, feito, assim toda sua atitude está voltada
para tempos que já passaram (FÉDIDA, 1999). É assim que Heathcliff perdido meio ao
tempo passado e presente, porém voltado muito mais para os acontecimentos passados, seus
ressentimentos, o que deixa viva sua raiva e vontade de vingança futura.
Pouco antes de tomar Isabela como esposa, Heathcliff expõe seu completo desprezo
pela cunhada de Catherine quando esta lhe conta sobre os sentimentos que a jovem nutre por
ele:
- Isabella está morrendo de amor por você há várias semanas, e
esta manhã enfureceu-se por sua causa. Acabou proferindo uma
porção de ofensas, só porque lhe mostrei com bastante clareza os seus
defeitos para abrandar sua adoração por você. Mas não pense mais
nisso: eu queria castigá-la pelo seu atrevimento, só isso. Gosto demais
dela, meu querido Heathcliff, para permitir que a agarre e devore.
- E eu gosto muito pouco dela para me arriscar a tanto – disse ele –
a não ser de um modo muito macabro. Você ouviria falar de coisas
estranhas, se eu vivesse sozinho com aquela cara enjoativa e cerosa
(BRONTE, 2012, pg.60).

Uma das passagens mais violentas e claras sobre a crueldade de Heathcliff fica
evidenciada em seu diálogo com Nelly Dean onde relata seu comportamento para com a
esposa Isabella:

[...] Fantasiou em mim um herói de romance, e esperava


indulgências ilimitadas da minha devoção cavalheiresca. Mal posso
considerá-la uma criatura racional, tanto ela teimou em formar uma
ideia fantasiosa do meu caráter, agindo de acordo com as falsas
premissas que acalentava. [...] Foi um esforço fantástico de
perspicácia descobrir que eu não a amava. [...] Ela não pode me
acusar de exibir um único sinal de gentileza enganosa. A primeira
coisa que me viu fazer, quando saímos da Granja, foi enforcar sua
cachorrinha (BRONTE, 2012, pg.84).
Após a leitura dos trechos citados do livro podemos identificar claramente a
crueldade praticada pelo nosso protagonista, um sentimento de indiferença em relações aos
sentimentos, uma vontade de querer magoar, ferir. Segundo algumas pesquisas a melancolia
pode ser triste e contida, ou pode sair de seu estado natural, inflamar-se dando origem a raiva
ou a loucura furiosa (BAPTISTA, 2011).
A personalidade demoníaca de Heathcliff atinge Hareton, também. O filho de Hindley
cresce sob sua tutela; e seu temperamento, durante a infância e parte da juventude, será
diretamente afetado pelo desafeto do pai. Hareton, no convívio diário com Heathcliff, acaba
por absorver suas influências malignas, adquire um comportamento hostil e violento para
com o mundo e as pessoas ao seu redor, a inocência típica das crianças vai se apagando, de
forma que ele mais parece um filhote de animal selvagem. Hareton é usado como instrumento
da vingança de Heathcliff e desconstruí-lo significava dizimar os Earnshaw para sempre,
assim como tomar a herança da filha de Catherine e Edgar o fazia senhor de tudo que,
outrora, fora daqueles a quem odiou profundamente. Debaixo desta influência maligna,
Hareton perde a doçura comum às crianças e é Nelly Dean, durante uma visita ao Morro dos
Ventos Uivantes, quem nota que a malignidade de Heathcliff contaminou à desafortunada
criança:

- Hareton, sou eu, Nelly! Nelly, a tua ama.


Ele se afastou para longe do alcance do meu braço e apanhou uma
pedra.
- Vim para ver teu pai, Hareton – acrescentei, vendo pela sua atitude
que, se ele guardava na memória a lembrança de Nelly, não a
reconhecera em mim.
Hareton levantou a pedra para atirá-la. Comecei a falar, tentando
acalmá-lo, mas não pude deter-lhe a mão: a pedra atingiu minha
touca. Então, os lábios do menininho passaram a balbuciar uma
torrente de maldições; e quer as compreendesse ou não, ele as dizia
com ênfase, o que distorcia seus traços infantis numa chocante
expressão de malignidade [...]. A ponto de chorar, peguei uma laranja
do bolso e ofereci ao menino, tentando apaziguá-lo. Ele hesitou,
depois a arrancou da minha mão, como se temesse que eu fosse
apenas tentá-lo, para depois desapontá-lo. Mostrei-lhe outra laranja,
segurando-a fora do seu alcance.
- Quem te ensinou essas lindas palavras, meu menino? – indaguei. –
Foi o pastor?
- Maldito o pastor e tu também! Dá-me isso! – retrucou a criança.
- Conte-me onde aprendeu essas coisas e eu te dou a laranja. – disse
eu. – Quem é o teu mestre?
- O diabo do papai – foi a sua resposta.
- E o que é que aprendes com o teu papai? – continuei.
Ele pulou para pegar a fruta; levantei-a mais alto.
- Que é que ele te ensina? – perguntei.
- Nada – disse o menino – só me diz pra ficar fora do caminho. Papai
não me suporta, porque eu xingo ele.
- Ah! E é o diabo que te ensina a xingar o papai? – observei.
- Sim... Não! – ele hesitou.
- Então, quem é?
- Heathcliff.
Perguntei-lhe se gostava de Mr. Heathcliff.
- Gosto! – respondeu ele de novo (BRONTE, 2012, pg. 62).

A melancolia-depressiva vivenciada por Heathcliff no decorrer do tempo, deixa de ser


um aspecto carrancudo e isolado e passa a ser um sentimento de raiva, irá, vingança, ou seja,
com o tempo ela foi se intensificando, tomando conta do personagem. Pois o mesmo já não
conseguia se sentir parte de algo, é como se não pertencesse a lugar algum. Parece que
Heathcliff só consegue vê um passado extremamente doloroso e um futuro que não parece
haver paz, ou não parece haver futuro, pois tudo se torna sombrio. Para Freud a pessoa num
estado melancólico está em processo contínuo de sofrimento da perda do objeto, mas não
sabe lidar com esse sentimento, não sabe reprimir o que dele se foi junto com o objeto
perdido (GINZBURG, 2013, TEIXEIRA, 2007).
A empatia que Hareton nutre por Heathcliff remete àquela desenvolvida pelos reféns
do caso criminal que deu origem ao termo psicanalítico Síndrome de Estocolmo. Em 1973, os
suecos assistiram a um assalto a banco com final, no mínimo, curioso: os funcionários
mantidos em cárcere durante seis dias passaram a defender seus sequestradores e
apresentaram atitudes de afeto e piedade para com os mesmos durante o processo criminal.
Foi o psicólogo Nils Bejerot quem primeiro cunhou o termo que passaria a ser adotado pela
psicologia. A vítima desenvolve, involuntariamente, uma identificação emocional e afetiva
para com seu sequestrador afastando-se da situação de perigo em que se encontra, de forma
que se torna incapaz de mensurar os riscos a que esta sendo submetida. No artigo Síndrome
de Estocolmo: A natureza humana não se reconhece, de Fernand Koda, as vítimas de
sequestro, sobreviventes de cenários de guerra e pessoas submetidas a quaisquer tipos de
cárcere são potencialmente suscetíveis a desenvolver a patologia (...........................)
Tal qual as vítimas da síndrome de Estocolmo, Hareton não tem consciência do mal
que Heathcliff lhe inflige e funciona como arma de tortura contra Hindley. Hareton renega o
pai em favor de Heathcliff, de modo que não se sente submetido a um alto grau de
intimidação. Heathcliff amaldiçoa Hindley todas as vezes em que este maltrata o próprio
filho. O que podemos compreender que Hareton ao vivenciar de forma intensa e dolorosa
todas as agressões sofridas pelo pai, tem em Heathcliff a única saída. Ele busca defender o
Ego através de uma “readaptação psicológica” para processar a dor, pois ao vivenciar a
situação a sente como algo sem saída na qual percebe que não há nada que possa fazer.
Alguns autores propuseram que está situação vivenciada pela pessoa pode levar ao fenômeno
do desamparo aprendido, o qual postula que quando o organismo é submetido a situações de
incontrolabilidade leva-o a um déficit de aprendizagem de êxito, ou seja, ele aprende e
apreende que tudo que tentar fazer não adiantará, pois sempre será maltratado, sempre haverá
dor (GÓMEZ, 1999).
Dessa forma Hareton sente-se mais protegido ao lado de Heathcliff do que do próprio
pai. É um mecanismo irracional de defesa que a criança assume a partir das atitudes sádicas
adotadas pelo maior inimigo de seu genitor. Hareton toma para si o comportamento violento
de Heathcliff, em uma vã tentativa de projetar sentimentos afetivos na figura atormentada e
maldosa, a fim de conseguir alguma migalha de proteção por parte de seu agressor. Heathcliff
toma os bens de Hindley valendo-se de seu vício em bebidas e jogos, deixando-o humilhado
até a morte e, consequentemente, fazendo de Hareton um infeliz sem herança alguma. Mas
apesar disso, Hareton cresce considerando o maquiavélico Heathcliff pessoa de moral e valia,
não permitindo que ninguém ouse lhe difamar. Recorrer a este padrão psicológico não é algo
incomum na literatura, basta lembrarmo-nos dos irmãos Grimm em A Bela e a Fera.
As incontáveis qualidades negativas de Heathcliff são construídas como vimos
anteriormente nos trechos apresentados do romance com as vivencias, as perdas e com o
ambiente em que se encontra inserido, sua singularidade vai sendo aos poucos moldada
passando da melancolia dos primeiros anos no Morro à plena degradação após a morte de
Catherine.
Com o passar do tempo Heathcliff vai se tornando cada vez mais indiferente a tudo e
a todos, não consegue sentir carinho, amor, tristeza, somente raiva e vingança regem suas
atitudes, é como se sucumbisse a degradação interna e todos fossem culpados de sua dor. Mas
tarde com a perda de Catherine para Linton, o pouco que restava do amor que nutria por ela
se transforma em ódio, pois sua perda é insuportável, podemos verifica numa parte de sua
fala abaixo:
-Desejo que seja feliz com esse covarde que tem leite nas veias em
vez de sangue, Cath. Disse Heathcliff cumprimento pelo bom
gosto. E foi esse medroso, esse fracote, que você preferiu a mim,
eu não vou sujar as mãos contra ele, mas ficaria muito feliz de dar-
lhe um ponta-pé (BRONTE, 2012, pg. 65).

Estudiosos da melancolia identificaram que outra forma de desencadear a “loucura e a


fúria” na melancolia, é o direcionamento a paixão, pois o sujeito se agarraria ao ideal do eu, a
partir do qual ele compreende o mundo, então ele busca deslocar esse ideal para um objeto
exterior e tenta incorporá-lo para constituir uma imagem de si mesmo. Isso acontece como
uma regressão canibalística do narcisismo, ou seja, está embriagado pela paixão! No entanto
havendo qualquer alteração nesse ideal, a paixão se dilacera, tornando-se desilusão, abandono
renovado, que o leva a odiar o objeto antes idealizado. Sendo através deste crivo que o
melancólico vigia e reprova os menores gestos das pessoas ao seu redor. A ambivalência
e a dependência em relação ao objeto amoroso são apropriadas para desencadear o ódio, o
sadismo e a briga, produzidos por detalhes insignificantes, mas que são lidos como uma
ameaça de rompimento ou de abandono, marcando a fragilidade do eu (BAPTISTA, 2011).
Assim podemos compreender que o tratamento dispensado a Heathcliff era
suficiente para transformar santo em demônio e sua maneira resiliente despertava, ainda mais,
o ódio de Hindley. Mas é o impacto da violência a que foi submetido de forma contínua que
pesa sobre o caráter vil que Heathcliff assume na fase adulta. Podemos falar, que de acordo
com Jaime Ginzburg (2012, p. 11), a violência dentro de uma delimitação específica, é
compreendida como uma situação onde alguém ou alguns produzem danos físicos a outros, é
ato deliberado, existe prazer em machucar ou mutilar o corpo ou alma do outro.
A autora cria em seu romance alguns personagens que marcam por encontrarem na
melancolia uma fuga do real, sendo essa utilização de forma inconsciente, como uma defesa
contra o mundo que o cerca, a dor é tão intensa e o vazio é tão imenso que é necessário criar
uma carapaça, onde a pessoa se fecha em um mundo comparado ao dos autistas.
Assim o que percebemos é que Bronte ao construir os personagens descreve-os
através da alma dos melancólicos, sua vivencia do próprio sentir melancólico é tão profundo
que parece transcender o corpo, como ratifica Kristeva (1989), a melancolia supõe o germinar
da escrita de dentro da própria melancolia. Isto é, a referência a essa condição de
interioridade da melancolia com a palavra expõe uma subjetividade literária construída na e
pela escrita.
Ao tomarmos como exemplo a biografia de Emily Brontë citada anteriormente, a qual
pudemos identificar características relevantes como ela está submetida a uma vida de
escassas relações interpessoais e vivendo em uma região inglesa gélida e isolada, podemos
ponderar que o sujeito poético de Brontë encontrou, ali, um campo fértil.
Para Julia Kristeva (1989, p.18), tristeza pode ser compreendida como um “sinal de
um ego primitivo, ferido, incompleto, vazio.” Diante desta forma de entender a tristeza,
encontramos na autora Emily Bronte um ser portador de uma melancolia genuína e que, por
vezes, é capaz de desenvolver um potencial artístico significativo, expressivo e perceptivo em
alto grau dos sentimentos mais profundos e obscuros, o que faz da melancolia uma das
características responsáveis pelo aparecimento do sujeito poético.
Dessa forma, em sua trajetória de vida podemos compreender ainda a dor e o
sofrimento passados de forma silenciosa pela a autora, muitos acontecimentos relacionados à
morte como a morte de seus dois irmãos por maus tratos no colégio, a morte da sua tia
querida que foi consumida pelo alcoolismo e outros, o que levava a mais isolamento e solidão
e talvez a uma dor profunda que não poderia ser expressa em palavras, mas apenas sentida e
demonstrada através dos personagens da sua obra literária.
Desta forma, talvez a dor intensa sentida e sofrida por Emily de forma introspectiva e
solitária pode ter levado a mesma a um estado já conhecido por nós o do melancólico-
depressivo como é definida por Kristeva (1989). Através desse processo a pessoa traz um
sentimento de que tudo lhes parece fútil, ou sem real importância, é como se perdesse a
capacidade de sentir alegria ou prazer na vida. Tudo lhes parece vazio e sem graça, o mundo
passa a ser visto “sem cores”. Algumas pessoas mostram-se muito vezes mais “apáticas” do
que tristes, referindo-se ao “sentimento da falta de sentimentos”. Constata-se, por exemplo,
que as pessoas acometidas pela melancolia não se emocionam com um acontecimento como a
perda de alguém, ou com o sofrimento de um ente querido, e assim por diante (DEL PORTO,
1999). Porém, talvez o que tenha ajudado Emily a não sucumbir a melancolia-depressiva seja
exatamente a sua obra literária, pois ao começar a da vida a seus personagens ela
inconscientemente transmitia-lhes tudo que estava sentindo, dor, raiva, rejeição, tristeza,
ódio, vazio, liberando seus sentimentos mais obscuros escondidos ou imaginados.
A “lucidez suprema” apresentada por Kristeva como característica singular do
melancólico o situa dentro de uma atmosfera literária que pode fugir do contexto real vivido e
voltar-se para o imaginário, por exemplo, a despeito de todo sofrimento que o aflige, cria um
eu poético, capaz, muitas vezes, de exprimir sentimentos que nunca experimentou de fato.
Notemos a melancolia em que a personagem Catherine mergulha após o retorno de
Heathcliff ao Morro dos Ventos Uivantes: um processo de autodestruição e perda da vontade
de permanecer neste mundo é desencadeado na personagem; ciente de que o fim encontra-se
próximo, Catherine crê que, em breve, estará melhor com a chegada da morte, pois a vida
transformou-se em tormenta:

- Oh, você está vendo, Nelly? Ele não se compadece um só


momento, nem para me arrancar do túmulo. É assim que sou amada!
Bem, não importa. Esse não é o meu Heathcliff. E ao meu ainda
amarei, e o levarei comigo, pois está na minha alma. E – acrescentou,
pensativa – a coisa que mais me aborrece é esta prisão estilhaçada,
afinal de contas. Estou cansada de ficar presa aqui. Anseio por me
libertar e viver nesse mundo glorioso, e lá ficar para sempre. Não
quero vê-lo de modo vago através das lágrimas, ou ansiar por ele
confinada num coração cheio de dor, mas quero estar nele de verdade,
fazer parte dele. Nelly, você acha que é melhor e mais afortunada do
que eu, pois sua saúde e força estão intactas. Sente pena de mim, mas
muito em breve isso irá mudar. Eu é que sentirei pena de você. Estarei
incomparavelmente além e acima de todos vocês (BRONTE, 2012,
pg.90).

Nas palavras de Catherine percebemos a dificuldade dela de reconhecer que o


Heathcliff de agora e o mesmo de sua vivencia passada, ela faz uma separação entre o que
está agora maltratando-a até a morte e o menino por quem ela se apaixonou. Assim ela
afirmar que aquele que ela amou o levará com ela. A pessoa que passa por perdas
extremamente dolorosas como a de Heathcliff na infância e não consegui elaborar de forma
normal o luto, tende na sua construção enquanto pessoa levar dentro de si esse vazio imenso,
esse sofrimento ambivalente em relação ao objeto, ao mesmo tempo em que quer tê-lo quer
destruí-lo, transformando-se mais tarde em uma melancolia profunda com caráter narcísico.
A dor de Catherine em seu estado mais melancólico e próximo de sua destruição mostra que
ela conhece bem as dificuldades, os obstáculos, os sofrimentos vivenciados, mas não é capaz
de simbolizá-los. Dessa maneira a tentativa de suicídio, de tira-lhe a vida para se libertar da
prisão em que se encontra, representam as marcas das reações às dificuldades relativas às
necessidades vitais e as frustrações da vida afetiva.
O esforço demandado para superar esta dor, provocada pelo abismo das desgraças,
não raro, é limitado e sem vitalidade, um fardo insustentável que conduz a morte como forma
de vingança ou libertação, pois quando nomear razões para se continuar vivo parece tarefa
penosa e impossível, é na morte que o triste encontra redenção. Pelo contrário, permanecer
vivo, numa mobilização pesarosa para encarar dores e angústias paralisantes, é vivenciar a
morte em vida:
“Vivo uma morte viva, carne cortada, sangrante, tornada cadáver,
ritmo diminuído ou suspenso, tempo apagado ou dilatado,
incorporado na aflição... Ausente do sentido dos outros, estrangeira,
acidental à felicidade ingênua, eu tenho de minha depressão uma
lucidez suprema, metafísica. Nas fronteiras da vida e da morte, às
vezes tenho o sentimento orgulhoso de ser a testemunha da insensatez
do Ser, de revelar o absurdo dos laços e dos seres.” (KRISTEVA,
1989, p. 12).

Kristeva (1989) acrescenta ainda que esse abismo da melancolia pode surgir a partir
das desgraças pessoais vivenciadas que, num rompante, são capazes de assolar o homem,
arrancando-lhe a normalidade e fazendo-o assumir um luto repentino e duradouro. Para a
pesquisadora, nossos infortúnios nos colocam dentro de uma vida nova e impossível de ser
vivida: um acidente, uma traição, a morte de alguém que amamos, são exemplos de que a
existência pode se tornar dolorosa e insuportável; vazia e, ainda, cheia de grandes aflições.
São lutos, tristezas, desgraças, sofrimentos que assumem o mesmo significado a dor.
Hipócrates nos primeiros estudos sobre o processo da melancolia, fala que esta era
geralmente caracterizada pela extremada falta de ânimo e a presença de um estado de espírito
deprimido. Com o passar do tempo, já na medicina moderna essas características se
aproximam bastante dos quadros depressivos associados à angústia, sensação de paralisia
física e mental, e insônia recorrente.
A melancolia aparece no século XVIII e meados do século XIX como uma doença
que chamou a atenção de diversos campos como a filosofia, a psiquiatria, a literatura e a
psicologia, isto porque tratava-se de uma enfermidade, que machucava o corpo, a alma e o
espírito, está servia de alimento a reflexões filosóficas cujos não-melancólicos são capazes de
tecer, pois lhes falta certa dose de autocrítica. Ginzburg na obra literatura, violência e
melancolia recorre a Marcos Piason Natali para desvendar o indivíduo melancólico:

[...] para Freud o sujeito melancólico não delira ou se engana ao


recordar o passado. Na verdade, em sua autocrítica, ele dispõe de uma
visão mais penetrante da verdade do que outras pessoas que não são
melancólicas (...) Ficamos imaginando, tão somente, por que um
homem precisa adoecer para ter acesso a uma verdade dessa espécie.
Os melancólicos, então, são bastante lúcidos, reconhecendo a
“realidade” da morte e evitando o divertissement de Pascal, aquela
digressão elaborada para evitar que se pense na morte: ao se
descobrirem incapazes de curar a morte, os homens teriam decidido
não pensar nessas coisas. O melancólico, ao contrário, pensa nessas
coisas – constantemente, obsessivamente –, mas conclui que de fato a
morte e a perda são irreparáveis, para então ser, compreensivelmente,
dominado pela tristeza [2006a,p.72].

Verificou-se ainda que na Grécia antiga, a melancolia não estava, no entanto, limitada
ao rol das doenças psíquicas, por exemplo, Platão acreditava em dois tipos de loucura: uma
proveniente de doença propriamente dita, outra de influências divinas, diante deste raciocínio
o mesmo poderia ocorrer com a melancolia, como sugere Aristóteles, no Problema XXX:
“Por que razão todos os que foram homens de exceção no que concerne à filosofia, à poesia
ou às artes, são manifestamente melancólicos?” Aristóteles, implicitamente, defende que
homens normais podem ser acometidos temporariamente pela melancolia, mas existe,
também, uma melancolia natural que torna o seu portador diferente, sábio, genial, -
genuinamente anormal.
Mas os naturalmente melancólicos parecem fadados a pagar um preço: o humor
indispensável à melancolia é a tristeza, manifestação que conduz ao desespero, a angústia e
ao medo. Quem pode provar a Heathcliff que Catherine o amava mais que a si mesma, mas
que o medo da desonra deu causa a sua escolha de casar-se com Edgar Linton? A literatura,
inevitavelmente, tem dado testemunho às grandes inquietações da mente. O mais notório dos
melancólicos seria Hamlet, o príncipe da tragédia de Shakespeare. Walter Benjamim (1892 –
1940) aponta Hamlet como paradigma do ser melancólico em sua obra Origem do drama
barroco alemão. De acordo com a leitura de Benjamin é possível enxergar o seguinte sobre
Hamlet:
[...] somente Hamlet é espectador das graças de Deus; mas o que
elas representam para ele não lhe basta, pois apenas seu próprio
destino lhe interessa. Sua vida, objeto do seu luto, aponta antes de
extinguir-se, para a Providência cristã, em cujo regaço suas tristes
imagens passam a viver uma existência bem-aventurada. Só numa
vida como a desse Príncipe a melancolia pode dissolver-se,
confrontando-se consigo mesma. O resto é silêncio. (Benjamin, 1984,
p. 180)

Para Hamlet, a melancolia é resultado do universo doente do qual ele próprio fazia
parte: desiludido com o mundo, ciente de que o tio matara seu pai a fim de tomar-lhe o trono
e incapaz de executar uma vingança contra o novo rei, Hamlet experimenta a falência de seus
valores e caminha para a própria morte ao propor um plano de vingança contra o assassino de
seu pai. Durante a trama, inúmeras vezes, Hamlet demonstra certa apatia e inércia, o que
corrobora a “teoria humoral” de Hipócrates, que foi difundida durante a Idade Média na
Europa. Segundo essa concepção hipocrática, o homem possui quatro humores que se
relacionam diretamente com os quatro elementos da natureza, com as quatro estações e as
quatro idades do homem (infância, juventude, maturidade e velhice).
O ar se associa ao sangue e se mostra representado pela primavera, predominando
sobre a infância. O fogo está associado a “bile” sendo representado pelo verão e
predominando durante a juventude. A melancolia ou ‘bile negra” estaria relacionada ao
outono e a fase da maturidade, na qual se encontra Hamlet; e finalmente, a serenidade, ou
fleuma, reinaria sobre a idade madura associando-se ao inverno e à água. Essas
correspondências, ainda de acordo com a teoria de Hipócrates, também se estenderiam às
horas (manhã, meio-dia, entardecer, noite) e o equilíbrio desses humores ou fluidos vitais
assegurariam a saúde; seu desequilíbrio provocaria a doença, e a relação entre equilíbrio e
desequilíbrio determinaria nossas características emocionais e intelectuais.
Entre os romanos se consolida a tese de que a prevalência do elemento “sangue” em
um indivíduo determinaria o temperamento “sanguíneo”; a prevalência da “bílis amarela”
garantiria um temperamento colérico; da bílis negra, um temperamento melancólico; e da
fleuma, um temperamento fleumático. Esta teoria dos humores encontra-se catalogada no
Tratado da Natureza do Homem onde Hipócrates associa a melancolia ao outono e assim a
define: “quando a tristeza e o medo persistem por muito tempo, um tal estado é melancólico”
(Hipócrates 2005:512). Nota-se que a ideia de melancolia para Hipócrates parece estar
intimamente relacionada com o conceito de apatia, uma espécie de desinteresse geral,
indiferença ou até mesmo uma falta de sensibilidade aos acontecimentos ao redor, um estado
negativo permanente, disforme e que pedia por intervenção médica, uma vez que era
acarretado pelo excesso da bílis negra.
A teoria de Hipócrates nos conduz a refletir sobre o comportamento adotado por
Catherine antes de seu final trágico. Apática, após a violenta discussão entre o marido Edgar
Linton e Heathcliff, Catherine entrega-se a um profundo sentimento de tristeza e desgosto e,
mesmo a gravidez, que poderia fornecer-lhe motivos para suplantar os desagradáveis
acontecimentos ocorridos após o retorno de Heathcliff, não é capaz de tirar-lhe do estado
fúnebre.
A apatia e a dor intensa, a vontade de sucumbir ao que já está próximo o fim, era
assim que Catherine parecia se encontrar, sem forças para lutar, a lutas internas eram tantas
que já não fazia mais sentido lutar com o externo, tudo parecia perdido. O caráter próprio da
melancolia consiste em geral em uma lesão das funções intelectuais e afetivas, quanto mais
intensa mais causa danos, quer dizer que o melancólico é como possuído por uma ideia
exclusiva ou uma série particular de ideias com uma paixão dominante e mais ou menos
extrema, como um estado habitual de espanto, de profundos remorsos, uma aversão a tudo e a
todos, seria como o desencantamento da vida (TEIXEIRA, 2007).

• A face feminina da depressão na obra O Morro dos Ventos Uivantes

Há tempos a literatura nutre profundo interesse pelo tema da depressão, da melancolia


e da angústia; personagens deprimidos são recorrentes e costumam exercer fascínio em seus
leitores. Figuras que experimentam e vivem afligidos pela depressão proporcionam uma
experiência vicária em seus leitores. C.S. Lewis, autor de A Abolição do Homem e As
Crônicas de Nárnia, certa vez, declarou que “nós lemos para ter a certeza de que não estamos
a sós.” É preciso encontrar no outro um semelhante, alguém que sinta e viva como nós, capaz
de dizer o que está em nós, mas que somos incapazes de expressar, definir, colocar para fora.
Os escritores e romancistas do século XVIII e XIX, eram cheios de sentimentos
intensos, conseguem perceber e sentir além do que podemos imaginar, seu poder de
introspecção, a dor sentida muitas vezes no mais alto grau, deixa-os mais sensíveis em
relação ao que é vivenciado. Podemos dizer que eles dominam o conhecimento da alma dos
apaixonados e da sedução exercida pela melancolia (LAMBOTTE, 2000).
No século XVIII e XIX, as mulheres eram as mais acometidas por esse mal, a
melancolia era vivida e sentida mais profundamente por ela, as inúmeras dificuldades que
passavam as deixava mais vulnerável a esse sentimento: a cobrança de uma sociedade
machista, a desvalorização enquanto ser humano, a falta de compreensão de suas
necessidades e o fato de não poder expor suas ideias e seus sentimentos.
A autora Emily Bronte não era diferente, sua vida enclausurada, onde vivia através
dos inúmeros livros que lia, levou-a apreender a expressar-se sem medo, em sua primeira e
única obra criou personagens sombrios e muito intensos Heathcliff, Hindley e Catherine,
quem ler a obra da autora consegue identificar claramente logo no inicio comportamentos de
isolamento, rebeldia, solidão, alienação da realidade e raiva em cada um dos personagens, os
quais sofrem muitas vezes em silencio e guardam sentimentos obscuros que vão se revelando
no decorrer da história.
Muitas mulheres principalmente as que viviam amores impossíveis como as
personagens dos romances da época, ou viviam relacionamentos com homens
comprometidos, ou com homens de diferentes classes e raças que não eram aceitos pela
família e pela sociedade entravam num estado de dor e apatia infinita, que ia se agravando
com o tempo, com sentimentos de tristeza, culpa, até adoecerem e definharem, o que muitas
vezes levava a loucura e até a morte.
Esse estilo literário de Brontë nos deixa a impressão de que seus personagens
carregam suas próprias projeções e fantasias. Isto porque a própria Brontë, pertencente a uma
classe social que não era considerada propriamente pobre, mas que não tinha recursos para
que ela conquistasse um “bom casamento”. Experimentou as profissões de governanta e
tutora, no entanto tais postos de trabalho não a libertaram de um espírito introspectivo e
tímido, essa introspecção parece beirar o patológico e seus esforços para viver no burburinho
londrino são todos em vão.
Dessa forma, podemos compreender que a autora como vimos no capítulo II levava
uma vida plenamente introspectiva, e talvez fosse nesse momento de introspecção profunda
que sua criatividade viesse a tona. Uma de suas principais personagens feminina Catherine
que tinha nos livros sua fuga da vida, também tem uma trajetória de dores e perdas, que
proporciona a mesma um estado melancólico-depressivo. Logo no inicio do livro “O Morro
dos Ventos Uivantes” através da curiosidade do Mr. Lockwood, ao ter que passar uma noite
na casa dos Earnshaw descobre que no quarto onde foi acomodado encontra-se uma estante
cheia de livros antigos. A partir do que o narrador descreve percebemos que também no
momento de isolamento, introspecção a personagem de Catherine escreve pedaços de texto
contando sua vivencia na casa. Vamos relembrar através de alguns trechos:

Cortei a parte queimada do pavio e me sentindo muito mal com frio e


náusea, sentei-me e abri o livro queimado sobre o colo. Era um
exemplar do novo testamento em letras miúdas e cheirando
terrivelmente a mofo. Uma folha de rosto continha a inscrição esse
livro pertence a Catherine Earnshaw, e uma data de um quarto de
século atrás. Fechei-o e peguei outro, depois outro, até que examinei
todos. A biblioteca de Catherine era seleta e o estado dilapidado dos
livros provava que tinha sido bem usada, embora não de todo para um
proposito legítimo: era raro algum capítulo escapar de um comentário
a tinta ou assim parecia pela menos – cobrindo todos os espaços em
branco da página. Algumas eram frases soltas outras tomavam a
forma de um diário, regular, rabiscado por uma mão infantil hesitante
Isso me despertou um interesse imediato pela desconhecida
Catherine, e então me pus a decifrar seus hieróglifos desbotados pelo
tempo. “Que domingo horrível” começava o parágrafo seguinte.
“Queria que meu pai estivesse vivo, Hindley é um substituto
detestável ... sua conduta para com Heathcliff é cruel...H. e eu vamos
nos rebelar essa noite demos os primeiros passos nesse sentido
(BRONTE, 2012, pg.14).
Catherine e Heathcliff compartilhavam sofrimentos, tristezas, raiva, ódio, um dava o
colo ao outro. Não tinham certeza do amanhã, pois sentiam se sozinhos, a mercê das
maldades e crueldades de Hindley. Para as pessoas com traço melancólico-depressivo tudo é
incerto, o tempo para e a pessoa não sabe o que senti, não sabe como agir, pois ela se
encontra numa espécie de “ponto de mediação temporal”, ele vê com sofrimento o passado
em razão das inúmeras perdas e se inquieta com o futuro pelo medo de possíveis danos e
mais perdas (GINZBURG, 2013).
No parágrafo seguinte Catherine expressa toda sua dor e tristeza, pois parecia
insuportável aquela situação, e eles sendo ainda muito jovens não sabiam como agir e o que
fazer para estagnar o sofrimento.

“Nunca imaginei que Hindley me faria chorar assim! Ela escreveu.


Minha cabeça dói tanto, que mal consigo mantê-la no travesseiro;
ainda assim não posso me entregar. Pobre Heathcliff! Hindley
chama-o de vagabundo e não permite mais que se sente conosco
outra vez. Além disso, proibiu-nos de brincar juntos, ameaçando
expulsá-lo se desobedecêssemos as suas ordens. Acusou nosso pai
(como ele ousa?) de tratar H. com muita indulgência. E jura que vai
coloca-lo em seu devido lugar” (BRONTE, 2012, pg.15).

A tristeza, a decepção, toma conta de Catherine o que nos remete a Kristeva (1989)
quando ela coloca em seu livro “Sol Negro” que no estado de melancolia-depressiva o que
persisti na pessoa acometida é um humor abafado, escondido, onde se encontra um processo
permanente de amargura, com acessos de tristeza e dor que dilaceram a alma.
Algumas das características básicas do quadro clínico da melancolia são exatamente:
os julgamentos sobre sua vida, sua família, e com ideias fixas que a toda hora e todo
momento estão retomando o que foi vivenciado através da dor e do sofrimento.
Mas podemos verificar no inicio da história que Catherine teve uma infância
construída em cima de muita rigidez, tristeza e de extrema rebeldia. O Mr. Earnshaw pai de
Catherine era um homem muito rígido e severo para com os filhos, a busca do amor do pai
trilhada diariamente por ela era algo sofrido, visto que sua busca era em vão, vamos
relembrar essa passagem nas falas de Nelly:

-Quando brincava, adorava agir como uma patroa em miniatura,


distribuindo tapas e dando ordens aos companheiros. Agiu assim
comigo, mas eu não ia aguentar seus tapas e suas ordens, e deixei
isso bem claro.
-Mr. Earnshaw não permitia mais brincadeiras entre os filhos.
Sempre fora rígido e severo com eles, e Catherine, por sua vez, não
entendia porque o pai deveria ser mais rabugento e menos paciente
agora do que fora antes. As duras censuras do pai despertavam nela
um desejo perverso de provocá-lo. Cathy nunca se sentia contente
como quando nós todos a reprendíamos, e ela nos desafiava com o
seu olhar insolente e atrevido, e suas respostas prontas.
Ridicularizava as maldições religiosas de Joseph, importunando-me
e fazendo justamente o que pai mais detestava – mostrando-lhe
como sua fingida insolência, que ele acreditava ser real, tinha mais
poder sobre Heathcliff do que a bondade dele. E como o menino
fazia a vontade dela em tudo, e a dele apenas quando isso lhe
convinha. Depois de se comportar da pior forma possível durante
todo o dia, Cathy as vezes afagar o pai a noite, para fazer as pazes.
- Não Cathy – dizia o velho não posso te amar, és pior que o teu
irmão. Vai filha diz as tuas orações e pede perdão a Deus. Creio que
tua mãe e eu ti arrependemos por nunca ter ti corrigido.
Isso a fazia chorar, no princípio. Depois, o fato de ser sempre
repelida a endureceu, e ela desatava a rir quando eu a aconselhava a
mostra-se arrependida e pedir perdão (BRONTE, 2012, pg.25).

Podemos verificar nesse trecho os sentimentos ambivalentes de Catherine que


ocorriam desde a infância em relação ao pai, pois ao mesmo tempo em que o amava sentia
um desejo de provocá-lo, de decepcioná-lo enfrentando-o. Talvez a necessidade de chamar a
atenção para ela, mostrar o quanto ela precisava dele nem que fosse de suas críticas e
cobranças. Na construção do superego na infância, a pessoa já traz consigo traços
melancólicos que vão se agravando com a vivência dos afetos, dos sentimentos, de forma
inadequada. Ocorre uma anormalidade na compreensão desses processos fazendo o superego
se degrada numa identificação canibalesca com traços agressivos voltados para os objetos
amados o pai e a mãe (FÉDIDA, 1999).
Percebemos também a necessidade de controle da menina Cathy tanto em relação ao
pai quanto para com Heathcliff, o qual ela fazia questão de demonstrar que o controlava mais
que o pai, que ele servia a ela fazendo todas suas vontades em vez de satisfazer as vontades
do Mr. Earnshaw. Em suas brincadeiras já demonstrava certa tirania para com todos que
estavam a sua volta, pois seriam seus servos. A necessidade de demonstrar controle e
algumas vezes de demonstrar também certa fragilidade e despertar o sentimento de injustiça
para com a vida, mostra os traços narcísicos de controle da menina, pois logo em seguida
vem toda a hostilidade e agressividade disfarçada, podemos comparar claramente as
características de seu amado Heathcliff.
No processo normal de desenvolvimento da criança Abraham descreve a relação com
o objeto como algo primordial, pois no começo da libido da criança a mesma precisa do
objeto desejado no caso o pai ou a mãe. Posteriormente, ela toma o ego como primeiro objeto
e somente mais tarde ela se volta para os objetos externos, mantendo durante um tempo um
conflito ambivalente que será superado mais tarde dentro de um processo normal. Porém na
melancolia a corrente hostil do desejo do objeto se torna predominante, numa tentativa de ter
o objeto desejado, porém com a intenção de destruí-lo em vida, resolvendo o conflito de amor
e ódio de forma regressiva.
Inúmeras personagens deprimidas tornaram-se célebres, como Daisy Buchanan na
obra de Fitzgerald, The Great Gatsby. Daisy é alguém invejável: é linda, rica, mora em uma
mansão, tem um marido bonito, é cortejada por outros homens; todavia demonstra uma
completa insatisfação com a sua própria vida, aprisionada em tristeza, melancolia e depressão
profunda.
Outra das personagens femininas que demonstra certo grau de melancolia escondido em
sua alma, que vai da vivacidade ao mais profundo abismo e Isabela Linton, após casar com
Heathcliff, percebe-se sua vida se transformando em trevas, como podemos verificar na visita
que Nelly faz a casa do Morro dos ventos Uivantes:

-Entrei sem bater, não da para imaginar em que lugar triste e sóbrio
se transformara aquela casa antigamente tão alegre! Confesso que se
eu estivesse no lugar da jovem senhora, pelo menos varreria a lareira
e passaria um espanador nas mesas. Mas ela já partilhava do espirito
de negligencia que a cercava. Seu lindo rosto estava pálido e
apático, o cabelo desfeito: alguns cachos caiam em desalinham, e
outros se enrolavam de qualquer jeito ao redor da cabeça.
Provavelmente não havia trocado o vestido desde a véspera
(BRONTE, 2012, pg.82).

Parece que todos aqueles que estavam ao redor de Heathcliff eram contaminados pela
melancolia e depressão, as pessoas se tornavam apáticas e tristes em vida, parecia que sua dor
de existir tinha que ser compartilhada e vivenciada com as outras pessoas, porém não através
de sentimentos, mas através de sua vingança, de sua vontade de destruir tudo ao seu redor.
Assim para tentar aniquilar sua dor o outro tinha que sofrer, tanto quanto ele teria sofrido no
passado. Porém mesmo fazendo as mulheres que o amavam sofrerem intensamente, sua dor
jamais se extinguia.
Abraham nos traz em seus estudos um olhar voltado para a “formação do caráter”
dentro do processo da melancolia, o qual ele denomina de “Caráter melancólico” esse
processo é considerado anormal quando a identificação que geraria o superego se degrada
numa identificação canibal com os traços agressivos orais dos objetos chamados pai e mãe.
Consequentemente o superego dessa pessoa apresentará traços de crueldade oral na sua vida
adulta, ou seja, a percepção do objeto é firmada na psique, e predominará cada vez que
houver na experiência algo que faça lembrar aquela vivência. (FÉDIDA, 1999)
A partir desse contexto é importante compreender o desdobramento da teoria para que
serve a introjeção do objeto, se é para conservar o mesmo, e poder pouco a pouco, elaborar o
luto, ou se para romper o vínculo com este objeto. Em uma pessoa “normal” ao sofrer uma
perda real, a introjeção do objeto funciona como um mecanismo de conservação da relação
da pessoa com o objeto morto, compensando assim sua perda e tem um caráter temporário.
Porém a pessoa que se encontra no estado melancólico profundo por não ter
conhecimento do que perdeu junto com o objeto, retoma em si o objeto através de uma
identificação de natureza narcísica de caráter permanente. Podemos compreender isso na
figura de Heathcliff as tendências hostis contra o objeto amado no caso Catherine e ao
mesmo tempo espalhadas a todos a seu redor, são marcadas pela existência de sentimentos
ambivalentes. O personagem de Heathcliff busca incessantemente manter o objeto amado,
mesmo que seja magoando-o, maltratando-o, pois a melancolia esta voltada muito mais para
uma forma de expressar regressivamente a tentativa de manter o objeto perdido, como vivo,
do que o resultado do procedimento de agressão em si. Não é a perda que faz regredir, mas é
para não assimilar a perda que se regride (FÉDIDA, 1999)
Em outra passagem da obra Catherine já fraca e sem força para lutar contra a angústia
e a tristeza, que a apetecem, conversar de forma áspera e seca com Heathcliff deixando claro
que ele a está matando aos poucos e que percebe que ele está feliz ao fazer isso:

- O que foi agora - disse Catherine inclinando-se de repente para trás


e devolvendo-lhe o olhar com expressão sombria. Seu estado de
espirito era um simples cata-vento, mudando a todo o momento,
conforme os seus caprichos. – Você e Edgard despedaçaram meu
coração, Heathcliff! E os dois vieram se lamentar junto a mim. Você
me matou... e gostou disso, eu acho. Como você é forte! Quantos
anos pretende viver depois que eu me for?
- Heathcliff tinha se ajoelhado para abraça-la; tentou levantar-se,
mas ela o segurou pelos cabelos e o manteve preso.
- Gostaria de poder segurá-lo continuou ela num tom amargo – até
que estivéssemos ambos mortos! Não me importo que tenha sofrido.
Pouco me importam os seus sofrimentos. Por que não deveria
sofrer? Eu sofro! Vai me esquecer? Vai ficar feliz quando eu estiver
em baixo da terra? Vai dizer daqui a 20 anos; “Este é o túmulo de
Catherine Earnshaw. Eu a amei a muito tempo, e sofri muito quando
a perdi; mas já passou. Amei muitas outras desde então: e meus
filhos me são mais queridos do que ela foi. E agora que morro não
estou feliz porque irei encontra-la, mas estou triste por deixa-los!”
Vai dizer isso Heathcliff ? (BRONTE, 2012, pg.89).

O sentimento de ambivalência vivenciado pelos personagens é notório na obra de


Emily, estes oscilam de forma ambígua e perturbadora, nutrem amor e ódio, ferem e
desprezam a si e aos outros, são vítimas, são algozes, assumem um comportamento
melancólico-depressivo profundo que nos faz perceber o quanto a ficção está relacionada a
realidade. Não sei se a autora tinha o domínio da psicanálise, mas está consegue apresentar
personagens ricos em detalhes para interpretação e estudo da psicanálise.
Através da psicanálise de Freud podemos fazer uma comparação entre melancolia e
neurose obsessiva o que nos remete a presença da ambivalência em ambas. O neurótico
obsessivo constituído pela ambivalência estabelece um conflito entre as duas tendências da
libido. Já o melancólico tem como desejo principal e inconsciente destruir seu objeto
amoroso, se dirigindo ao objeto com o desejo de incorporá-lo, e assim, devorá-lo, escapando
do conflito ambivalente (TEIXEIRA, 2007) .
Quando a pessoa melancólica sofre uma decepção insuportável por parte de seu objeto
de amor, ela tende a querer expulsá-lo como se fosse fezes e a destruí-lo em seguida. Logo
após realiza o ato de introjetá-lo e devorá-lo, ato que é um processo especificamente da
melancolia com identificação narcisista. Sua sede de vingança encontra satisfação
atormentando o ego, é algo que dá prazer. Temos a razão de supor que este período de
autotormento dura um longo período até que o apaziguamento gradual dos desejos sádicos
tenha afastado o objeto amado do perigo de ser destruído. Quando isso acontece, o objeto
amado pode, por assim dizer, sair do seu esconderijo no ego e o melancólico pode restaurá-lo
no mundo exterior, até que tudo comece novamente (FÉDIDA, 1999).
De natureza estóica, a autora Emily em sua trajetória de vida, suportou em silêncio a
degradação do irmão, o qual era viciado em álcool e ópio, e foi aniquilado por um amor
infeliz. Talvez a autora tenha absorvido dele muitas das características autodestrutivas que
atribuiria a Heathcliff segundo os especialistas de sua obra. Sua psique selvagem fomentou a
construção de sua protagonista Catherine Earnshaw e todas as suas demais personagens
melancólicas e depressivas.
Quantos fantasmas são capazes de habitar a mesma mulher? Quantos medos e
traumas a conduzem a um estado melancólico e depressivo capaz de lhe roubar o viço? No
universo de O Morro dos Ventos Uivantes as principais personagens femininas parecem
presas a um estado de embotamento: engessadas em seus corpos, vivenciam sentimentos de
incapacidade total, como Catherine quando do retorno do homem por quem nutria paixão
avassaladora, Isabella após o casamento com o inimigo do irmão, Cathy durante os anos em
que se tornou cativa do genitor de seu falecido marido. Em comum, os fatores
desencadeadores do estado depressivo e melancólico, isto é, da angústia de todas elas
estavam ligados ao mesmo homem: Heathcliff.
Em uma das passagens Heathcliff em um processo de loucura após a morte de
Catherine sua amada deixa claro a perda do objeto amado e o desespero por não consegui tê-
la de volta para atormenta lhe a vida, pois não consegue se sentir vivo já que não tem o objeto
de desejo para magoá-lo e desprezá-lo, como fara para suportar tanta ambivalência.

- Pois desejo que desperte em tormento! – exclamou ele, com


veemência assustadora, batendo o pé e gemendo numa súbita
explosão de fúria incontrolável.
-Pois ela foi uma mentirosa até o fim! Onde ela está? Não está
lá...no céu..nem se acabou...onde está então? Oh Catherinne! Você
disse que não se importava com os meus sofrimentos! E eu rezo
apenas uma oração... e repito esse prece até que minha língua se
paralise: Catherine Earnshaw, que você não tenha descanso
enquanto eu viver! Disse que eu a matei ...venha me assombrar
então! Acredito que os mortos devem assombrar seus assassinos. E
eu sei que os fantasmas vagam pela terra. Venha ficar comigo para
sempre ...tome a forma que quiser mais enlouqueça-me! Só não me
deixe nesse abismo, onde não posso encontra-la! Oh, Deus! É
inexprimível! Não posso viver sem a minha vida! Não posso viver
sem a minha alma! (BRONTE, 2012, pg.93).

A tristeza profunda aparece como um dos sintomas, como forma de expressar o


sofrimento psíquico, ocorre um impulso e uma defesa contra o impulso de destruir o objeto
amado, seria como: eu quero destruir o objeto amado, mas não posso, porque preciso dele
para sobreviver a dor. Desta forma, falando metaforicamente o melancólico introduz em si,
destrutivamente, o objeto, mas para usufruir dele e para, de certo modo o conservar
(FÉDIDA, 1999).
O que marca distintivamente a melancolia é a perturbação do sentimento de si, que
falta no luto. O depreciar-se geral do sentimento de si mesmo no melancólico manifesta-se
através das reprovações as mais variadas e absurdas que ele direciona para si. Esse depreciar
leva a concluir que a melancolia refere-se a uma perda concernente ao Eu, que passa a não
mais ser objeto de amor e estima. Desse modo, a melancolia está relacionada ao narcisismo
(FREUD, 1930 apud TEIXEIRA, 2007).
No caminhar da história percebemos que Heathcliff é o ponto central de toda a trama,
um caracterísco melancólico-depressivo de caráter narcísico, que ama e é amado por
Catherine, mas a mesma é alguém que ele necessita magoar e destruir pelo medo de perdê-la.
Assim como Isabela, por quem não nutre um amor real, mas necessita destruir porque está
ligada ao homem que usurpou Catherine de sua vida. E toda essa trama e traçada num
ambiente opaco, mórbido e triste o Morro dos ventos Uivantes local que desde o inicio da
infância até a vida adulta dos personagens é o lugar dos acontecimentos mais cruéis e
angustiantes da trama.
Em uma das partes da trama Mr. Loockwood relata uma passagem extremamente
angustiante vivenciada na casa dos Earnshaw e sua paixão por Catherine Linton filha de Mr.
Linton e Catherine Earnshaw:
- Tendo ao lado Mr. Heathcliff, severo e soturno, e do outro
Hareton, absolutamente mudo, fiz uma refeição um pouco triste, e
logo me despedi. Eu teria saído pela porta dos fundos, para ter uma
ultima visão de Catherine e aborrecer o velho Joseph; mas Hareton
recebeu ordens para me trazer o cavalo, e meu anfitrião me
acompanhou pessoalmente até, de modo que não pude realizar o
meu desejo. “Como a vida é triste naquela casa!” refleti, enquanto
descia a cavalo pela estrada. “Seria ainda mais romântico que um
conto de fadas, se Mrs.”. Linton Heathcliff e eu nos apaixonássemos
como deseja a sua boa ama, e juntos migrássemos para a atmosfera
agitada da cidade (BRONTE, 2012, pg.165).

Catherine Linton é mais uma das mulheres dessa trama que se encontra na dinâmica
contaminante de Heathcliff, a pobre Catherine a qual vive isolada e fora da realidade, como
numa prisão aberta, mas sem consegui se libertar verdadeiramente. A dinâmica melancólica-
depressiva de caráter narcisista de Heathcliff mostra a voracidade com que ele aprisiona suas
presas, a necessidade de tê-los ali em sofrimento junto com ele, parece ser a continuação de
sua vingança nos herdeiros de Catherine, Hindley e Linton, ao mesmo tempo em que tê-los
ali funciona também como conservação do passado. O melancólico narcísico tem o prazer de
magoar, de ferir o outro para esconde sua verdadeira dor, a dor de existe, no caso de
Heathcliff a dor da perda de sua amada, a qual ele deseja em seus mais profundos sonhos que
venha atormenta-lo, para que ele possa sentir sua presença novamente.
O estado melancólico-depressivo de Heathcliff apesar do tempo e de todo sofrimento
causado a ele mesmo e a Catherine sua amada, vive preso no passado, pois uma das
características principais da melancolia é essa volta ao passado de forma constante, é como se
revivesse as dores e tristezas continuamente. Em uma das passagens da historia com o olhar
atento de seu visitante o Mr. Lockwood o qual nos relata uma cena entre Hareton, Cathy
Linton e Heathcliff:
- Mas o amor próprio de Hareton não suportava mais ser espicaçado.
Ouvi, sem desaprovar de todo, que ele aplicava uma correção
manual àquela língua insolente. A pobre infeliz tinha feito tudo que
podia para ferir os sentimentos sensíveis, embora incultos, do primo;
e uma resposta física era o único modo que ele tinha de ajustar as
contas e devolver a ofensa ao ofensor. Ele juntou os livros e lançou-
os ao fogo. Li na sua expressão a angustia que lhe causava oferecer
aquele sacrifício à própria cólera. Imaginei que, enquanto o fogo os
consumia, ele recordava o prazer que ainda esperava obter. Achei
também que adivinhara o que o estimulava a estudar em segredo.
Ele se contentará com a labuta diária e os rudes prazeres animais,
até que Catherine cruzara o seu caminho. A vergonha pelo desprezo
da moça, e a esperança de obter sua aprovação, foram as primeiras
coisas que o encorajaram a perseguir objetivos mais elevados. No
entanto, em vez de evitar o desprezo e conseguir a aprovação, seus
esforços para se elevar haviam produzido resultados exatamente
opostos.
-Sim, isso é o melhor que um bruto como você pode obter dos
livros! – exclamou Catherine, mordendo o lábio ferido, e assistindo
ao incêndio com olhos indignados.
-É melhor calar essa boca respondeu ele, furioso.
-Estava tão agitado que não conseguiu falar mais nada. Caminhou
depressa para a porta, e me afastei para lhe dar passagem. Mas, mal
cruzara a soleira, encontrou Mr. Heathcliff que vinha subindo a
calçada e lhe pôs a mão no ombro, perguntando:
-O que aconteceu meu rapaz?
- nada, nada – disse ele, e fugiu para desfrutar sozinho de sua mágoa
e da sua raiva (BRONTE, 2012, pg. 164-165).

Hareton filho de Hindley o qual assumiu sua posição de passivo diante de todas as
maldades vivenciadas, aguentando todo o sofrimento causado por seu suposto protetor
Heathcliff, pois não conseguia vê-lo como ofensor, devido os maus-tratos que sofria desde
criança já os assimilava como algo natural. A posição do melancólico-depressivo decorre de
uma escolha – a de não enfrentar as atitudes ofensivas do outro sobre si, mas sim oferecer-se
como objeto inofensivo e indefeso à proteção do Outro (BRAPTISTA, 2011)
Assim Hareton o se defrontar com Cathy Linton não consegue lidar com novos
ataques a seu ego frágil, Cathy é uma mulher de personalidade forte, que gosta de confrontar,
e percebe em Hareton alguém frágil em quem pode depositar todas suas frustrações e
ressentimentos. Ou seja, a dinâmica doentia de Heathcliff parece continuar perpetuando agora
entre os novos jovens da casa.

Heathcliff olhou-o e suspirou.


- Seria estranho se eu agora me contradissesse- murmurou, sem
saber que eu estava atrás dele. – mas quando procuro os traços do
pai no seu rosto, é a ela que encontro cada dia mais! Com os diabos
como ele pode ser tão parecido? Mal suporto olhá-lo.
- baixou os olhos para o chão e entrou melancólico. Havia em seu
rosto uma expressão inquieta, ansiosa, que eu nunca vira antes
(BRONTE, 2012, pg.165).

O que podemos perceber é que Heathcliff em todo seu aspecto doentio tenta buscar a
presença de Catherine Earnshaw em cada parte da casa, e cada vez mais em seu filho
bastardo o qual usurpou do irmão dela para continuar sua vingança. Cada vez mais fechado e
sombrio Heathcliff continua incessantemente procurando uma saída para sua dor, dentro da
teoria Freudiana podemos dizer que este utiliza-se do mecanismo de clivagem o qual divide-
se em dois aspectos um voltado para a realidade e o outro negando a realidade em curso,
assim por um lado ele recusa as percepções traumáticas, por outro reconhece simbolicamente
seu impacto e busca através da defesa tirar suas consequências(KRISTEVA, 1989).
Desta forma, Heathcliff aparece na história como um verdadeiro anti-herói
impulsionado pela paixão e pela vingança, conseguindo despertar no leitor todos os tipos de
sentimentos: simpatia, ódio, raiva, pena, horror. Após passar por várias humilhações em sua
infância e adolescência, chegando a uma situação quase que miserável, consegue dar a volta
por cima, disposto a se vingar de todos os que lhe fizeram mal no passado e recuperar seu
grande amor da infância, Catherine. Ao voltar a casa do Morro dos ventos Uivantes, traz
consigo a degradação e ruína de todos, até mesmo de pessoas que nunca o ofenderam.
Numa breve retrospectiva da historia contada por Bronte, ao começarmos a lê, parece
um desses romances clássicos onde o menino pobre, abandonado e trazendo em sua bagagem
alguns traumas das perdas vivenciadas se enamora de uma menina rica que carrega também
algumas perdas, porém cheia de vivacidade e alegria. Parece que com o amor dos dois ele em
fim ficará em paz e acalmara a dor que sente. Mas ao sentir que está perdendo a amada,
Heathcliff se torna cada vez mais triste e sombrio. A partir dai a historia toma uma
reviravolta quando Heathcliff decide ir embora para evitar sentir a dor da perder Catherine
para Edgar Linton, no entanto a mesma decide não se casar com Linton para ajudar
Heathcliff, mas sim viver o amor dos dois, pois como ela fala ele é a alma dela e ela a alma
dele. A falta de comunicação e uma compreensão errônea dos fatos levam ambos a sofrerem
uma separação brutal que atingirá a ambos de forma dilaceradora e marcará para sempre.
O sujeito no estado melancólico-depressivo não consegue ter tranquilidade para
enxergar a real situação, não consegue dialogar, pois ele introjeta tudo ao seu redor da forma
percebida por ele, uma patologia nunca está sozinha ela traz consigo sempre outras
patologias, no caso de Heathcliff a paranoia, a ansiedade em alto grau, os pensamentos
obsessivos em relação ao passado, fazem com que ele perceba somente o que quer ver a
traição de todos inclusive de Catherine, ou seja, todos devem ser destruídos.
Na Psicanálise essas ultimas experiências já mostram o caráter do verdadeiro “eu” de
Heathcliff o qual estava escondido, camuflado pelo amor de Catherine. A melancolia já
predisposta nele ainda menino, pois para Freud e Abraham a mesma está interligada a relação
do amor com os objetos amados na infância o pai e a mãe, que não é citado em nenhum
momento por Bront em sua obra, mas o que ela nos permite vê e a relação do menino
Heathcliff com sua nova família, as humilhações, castigos, repreensões so fazem com que
aumente a dor do menino, funciona como se ele guarda-se as mágoas e sofrimentos e os
revivesse continuamente, ou seja, aquela situação atual vivenciada o fazia reviver as
anteriores. Pois, no estado melancólico-depressivo com falha de caráter narcisista o sujeito
não consegue se desligar do sofrimento que viveu no passado, aquela dor será sempre
lembrada, por mais que ele não queira, algum evento faz a dor e a tristeza vir a tona, e como
um mecanismo de defesa do ego surge a vontade de magoar, humilhar, destruir para aliviar a
dor que é imensa.
O que encontramos no decorrer da obra de Emyli Bronte foi uma mistura complexa de
sentimentos, amor e ódio, lutas interiores intermináveis, paixão intensa e dilaceradora que
estiveram nos personagens até o momento final da história. Heathcliff ao mesmo tempo em
que amou de forma intensa também odiou da mesma forma, talvez a pior de todas as
consequências que o comportamento frio e hostil de Heathcliff casou foi a morte de sua
amada Catherine, ele a levou a um dos piores de todos os sentimentos do ser humano, o
sentimento de culpa, o que causou a morte de Catherine. Há dois traços de comportamento no
sujeito melancólico-depressivo de caráter narcisista, o primeiro surge através do sentimento
de vitimização, injustiçado, ele busca passar para as pessoas que estão ao seu redor que ele é
a vítima da situação, em suas atitudes e falas deixa transparecer a vitimização, pois sempre
será o sujeito bom, gentil e sofredor da história, para jogar em cima de sua vítima a carga de
culpa para fazê-la sofrer continuamente, é o que dá prazer e ao mesmo tempo o que alivia sua
dor. Heathcliff leva Catherine a sofrer muito pela escolha que fez, atormentando-a e
deixando claro que a culpa de tudo que está acontecendo foi dela, mesmo sendo ela sua
amada e sabendo que a mesma ainda o ama, a necessidade de causar dor, de feri-la é maior
que ele.
Segundo Teixeira (2007), em seus estudos Freud atribui o conflito ambivalente do
melancólico a um conflito interno entre Ego e Superego, a partir desse conflito surge o
sentimento de culpa que é uma tensão entre essas duas instancias. No entanto, na melancolia
o superego se apodera do sadismo que se volta contra o ego, onde o objeto perdido se
encontra guardado. Na normalidade ocorre um conflito entre ego e superego que é
restabelecido pelo equilíbrio, porém na dinâmica do melancólico esse conflito se manifesta
sob a forma de impulsos de autodestruição e autodesvalorização.
A necessidade de destruir o objeto amado, para incorporá-lo e de certo modo se
proteger da dor sempre será maior que ele, assim todo esse sentimento obscuro diante de
tanta culpa leva Catherine a definhar, pois não consegue mais lidar com a culpa, as
lembranças, e o amor que ainda sente por Heathcliff.
O melancólico de uma forma geral, não consegue lidar com perdas e dificuldades de
forma natural como algo que deverá ser superado. Pois, ao esbarrar numa dificuldade, não a
reconhece como dificuldade, mas toma para si como fracasso, o que introjeta como mera
prova de sua deficiência, o sentimento de inferioridade o invadi, qualquer pessoa é
possuidora de maior dignidade e valor que ele (TEIXEIRA, 2007).
No tipo de patologia melancólica-depressiva com falha narcísica o sujeito sempre é
sentido por ele como o injustiçado, todo mal que ele causar, toda a dor causada ao outro,
jamais será culpa dele, pois não existe esse sentimento de culpa, ele jamais pedirá desculpa,
pois a culpa sempre será do outro, porém se o pedi será para manipular o outro na busca de
fazê-lo sofrer em outro momento (BAPTISTA, 2011).
A melancolia-depressiva de uma forma geral se baseia na ambivalência, já a
melancolia-depressiva com falha narcísica se apoia nos componentes destrutivos. A primeira
centra sua luta através dos embates internos da ambivalência, um superego cruel e um ego
subjulgado – tendendo a dar um especial relevo ao sentimento de culpa. A segunda ocorre o
embate entre ego e superego, ocorre à ambivalência, mas a predominância é dos componentes
destrutivos que não podem ser absorvidos nas relações com os objetos, tendendo ao caráter
psicótico da melancolia, “a melancolia aqui é conseqüência de frustrações traumáticas ou
descuidos precoces, e se manifesta por carência narcísica” (TEIXEIRA, 2007, pg 77).
A partir dos esclarecimentos sobre melancolia-depressiva e melancolia-depressiva
com falha de caráter narcisista fica claro as distintas personalidades melancólicas dos
personagens enquanto Catherine, Isabela, Lockwood, Hareton, tendiam para a primeira, o
nosso personagem sombrio Heathcliff tendia para a segunda, onde a falha narcísica permitia
vir a tona os sentimentos de ódio e vingança de forma muito mais intensa.
A partir dessa belíssima obra de Emily Bronte conseguimos fazer um breve estudo da
personalidade melancólica de seus personagens, utilizando de artigos científicos e livros de
estudiosos como Kristeva, Baptista, Ginzburg, e outros, o que nos possibilitou relacionar
brevemente os elementos da obra e os conceitos da psicologia, mostrando que o principal
personagem Heathcliff talvez sofresse de uma patologia muito complexa e perturbadora a
melancolia-depressiva de caráter narcísico, pois através da dinâmica dessa patologia
conseguimos explicar muito do seu comportamento, atitudes e amor descontrolado os quais
no desfecho da obra provocaram consequências trágicas, avassaladoras e cruéis, pois sua
vingança se estenderia até a nova geração dos Earnshaw e dos Lintons.
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