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Arqueologia da repressão no contexto das ditaduras latino-americanas durante a Guerra

Fria

Pedro Paulo A Funari 1

Introdução

A Arqueologia mundial passou por um aggiornamento nas últimas décadas.

Associada ao imperialismo desde sua origem, no século XIX, com a Guerra Fria adotou,

na forma do que veio a ser chamado de New Archaeology, uma abordagem positivista,

normativa e anti-comunista. Lewis Binford, um de seus grandes epígonos, lutou na

Guerra da Coréia e inseriu a disciplina na luta contra a subversão. Ao mesmo tempo, os

movimentos sociais, desde a Segunda Guerra Mundial, entravam, de forma decisiva, nas

lutas políticas, com o desenvolvimento das batalhas pelos direitos civis, das mulheres,

contra as guerras, pela diversidade sexual e cultural. Tudo isso resultaria na renovação

das Ciências Humanas, com a introdução da subjetividade e dos sujeitos sociais plurais,

com a valorização da diversidade cultural. A Arqueologia não ficaria imune a essa

mudança social e epistemológica. A criação do Congresso Mundial de Arqueologia, em

1986, viria a assinalar uma virada na disciplina, agora preocupada com os interesses

sociais. Arqueologia como conhecimento do poder (arkhé), não só do antigo.

1
Professor Titular, Departamento de História (DH/IFCH/UNICAMP), Coordenador-Associado do Núcleo
de Estudos Estratégicos (NEE/UNICAMP), Universidade Estadual de Campinas.
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No contexto latino-americano, a disciplina sofreu com as ditaduras resultantes da

Guerra Fria. Nascia a Arqueologia Social Latino-Americana, de matriz marxista e

baseada no arqueólogo australiano Vere Gordon Childe, mas seus praticantes fugiam das

ditaduras em seus países, no exílio. Nos países sob jugo ditatorial, muitos desapareciam,

outros eram torturados ou presos, outros ainda forçados ao exílio. A Arqueologia só viria

a liberar-se com a restauração do estado de direito, a partir da década de 1980.

Agora, comemoramos o fim das ditaduras, em diferente países latino-americanos

e a Arqueologia pode contribuir de forma original para a recuperação da memória social.

Andrés Zarankin e eu, nós organizamos um volume sobre o tema, publicado, agora, em

castelhano, na Argentina, e a sair em inglês e português, em seguida:

Universidad Nacional de Catamarca


Editorial Brujas
Colección Con-Textos Humanos
Anuncian la publicación en julio de 2006 del libro

Arqueología de la represión y la resistencia en América Latina en la era


de las dictaduras (décadas de 1960-1980)

Pedro Paulo A. Funari y Andrés Zarankin (organizadores)

INDICE

Prologo, Secretaría de derechos humanos

Introducción, Pedro Paulo A Funari y Andrés Zarankin


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1. Arqueología de una búsqueda: una búsqueda arqueológica: La historia del


hallazgo de los restos del Che Guevara, Roberto Rodríguez Suárez

2. Rayando tras los muros: Graffiti e imaginario político-simbólico en el Cuartel


San Carlos, (Caracas, Venezuela), Rodrigo Navarrete S. y Ana María López Y.

3. “México 1968”: Entre las fanfarrias olímpicas, la represión gubernamental y el


genocidio, Patricia Fournier y Jorge Martínez Herrera

4. Arqueología e Izquierda en Colombia, Carl Henrik Langebaek

5. A Arqueologia do conflito no Brasil, Pedro Paulo A Funari y Nanci Vieira de


Oliveira

6. Arqueología y Antropología forense: un breve balance, Luis Fondebrider

7. Tortura, verdad, represión, arqueología, Alejandro F. Haber

8. Una mirada arqueológica a la represión política en Uruguay (1971-1985), José


Ma.López Mazz.

9. La materialización del sadismo; Arqueología de la arquitectura de los Centros


Clandestinos de Detención de la dictadura militar argentina (1976-1983), Andres
Zarankin y Claudio Niro

O caso brasileiro

A História recente da Arqueologia, no Brasil, foi bastante tumultuada. Surgida no

século XIX, apenas depois da Segunda Guerra Mundial a Arqueologia tomaria rumos

acadêmicos no Brasil, em especial graças às iniciativas de Paulo Duarte. O golpe militar

de abril de 1964, contudo, representou um momento de inflexão da disciplina, que se

inclinava para o humanismo francês, inspirada em Leroi-Gourhan e no respeito aos

direitos humanos. O país mergulhou num regime de repressão crescente, com a cassação

de inúmeros políticos, líderes sindicais e intelectuais, culminando com o AI 5, medida


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ditatorial explícita (1968), com a junta militar (1969), com exílio, detenção e assassinato

de opositores à ordem discricionária. Já em 1964, iniciava-se um Programa Nacional de

Pesquisas Arqueológicas, sediado em Washington, sob a égide da aliança entre os

Estados Unidos e o regime militar. Em 1969, com a ascensão de intelectuais ligados ao

regime, cassam-se muito acadêmicos, com destaque para Paulo Duarte, com a

conseqüente tentativa de destruição do Instituto de Pré-História da Universidade de São

Paulo (Duarte 1994).

Apesar da abertura do regime, a partir da Anistia, em 1979, o regime manteve o

controle das instituições de pesquisa e, em particular, da Arqueologia, até 1985. Próceres

do regime controlavam as pesquisas e as instituições e promoviam seus afilhados em

cargos e funções, herança pesada que marcaria o período de restauração das liberdades

civis em 1985. A liberdade permitiu que florescessem pesquisas e pontos de vista os mais

variados, mas a tutela dos herdeiros do regime militar, que passaram a se apresentar como

democratas, dificultou, no que foi possível, o estudo dos conflitos sociais pela

Arqueologia. As pesquisas pioneiras sobre quilombos e sobre Canudos, desde a década

de 1990, abriram caminhos inovadores, mas o estudo da repressão, durante o período

militar, continuou a contar com um óbice oculto: o papel político dos herdeiros do

regime, ainda importante em pleno século XXI (Funari 2002; 2003a). Neste contexto,

entende-se que pouco se pesquisou, até o momento, sobre o período ditatorial, o que, por

outro lado, permite esperar que, nos próximos anos, a pesquisa possa se desenvolver com

grandes contribuições. A Arqueologia brasileira insere-se, cada vez mais, nas discussões
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internacionais (cf. Funari, Zarankin e Stovel 2005) e as novas gerações, isentas da

colaboração com o regime militar, podem voltar-se para tais temas com autonomia.

A Arqueologia dos desaparecidos no Brasil

No Brasil, assim como na maioria das sociedades acadêmicas latino-americanas,

ainda existe uma forte resistência de arqueólogos e antropólogos físicos em trabalhar com

casos que estejam relacionados à violação dos direitos humanos. Da mesma forma, não

parece haver interesse das instituições governamentais na presença de qualquer

antropólogo ou arqueólogo forense nos quadros das instituições judiciais, como também

não há procura por parte destas instituições aos pesquisadores acadêmicos, seja no auxilio

com técnicas específicas ou no preparo das equipes de investigação para os casos que

exijam exumações.

Isto não indica a inexistência de tentativas na formação de equipes forenses,

embora ainda sejam mínimas, como ocorreu em 1992 através do Grupo Tortura Nunca

Mais/RJ, com a colaboração de antropólogos da Equipe Argentina de Antropologia

Forense, e posteriormente, o empenho de antropólogos físicos envolvendo a Escola

Nacional de Saúde Pública - FIOCRUZ e o Museu Nacional - UFRJ para a vinda do

antropólogo Douglas H. Ubelaker que ministrou um curso de Antropologia Forense.


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A Arqueologia da repressão está apenas no início, no Brasil. Há uma pletora de

aspectos relevantes, relacionados à repressão e que estão abertos à pesquisa e cuja

relevância social e política não pode ser subestimada. Do ponto de vista da História da

Ciência, o período militar constitui um imenso manancial a ser explorado, a partir de uma

abordagem social que reconstitua os liames entre as redes de poder e a constituição de

uma ortodoxia, no sentido atribuído por Pierre Bourdieu à doxa, empirista e positivista.

Embora a História da Arqueologia brasileira, em geral, já seja objeto de pesquisa, ainda

faltam estudos sobre o papel repressivo exercido pela ditadura na disciplina, em

particular a partir de uma abordagem social, tal como proposta por estudos clássicos

como Bruce G. Trigger (1990) e Thomas Patterson (2002; cf. Funari 2003c). Não se pode

bem estudar a repressão, sem um exame das condições que levaram a Arqueologia, em

nosso país, a abster-se do tema por tanto tempo e de maneira tão persistente.

Em seguida, mas não menos importante, abrem-se os estudos arqueológicos de

todo o universo material da repressão, na forma tanto das prisões, campos de detenção

legais ou ilegais, como das instituições disciplinares em geral, em um contexto ditatorial.

Um imenso manancial de artefatos, associados à repressão, também estão por ser

estudados: instrumentos de tortura, de forma mais evidente, mas igualmente os usos

normativos e repressivos de artefatos aparentemente destinados a outros fins, como no

caso dos usos repressivos de automóveis – que serviam para seqüestrar pessoas – ou de

simples lenços. Quando Caetano Veloso cantava uma vida ‘sem lenço nem documento’,

não se referia, apenas, à falta de preocupação com as formalidades burguesas, com o

lenço para assoar o nariz, com o documento que nos permite entrar no cinema, mas com
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os usos repressivos de tais simples artefatos: o documento identifica o ‘subversivo’ e o

lenço serve para vendar, calar ou mesmo executar o identificado.

Há mais de vinte anos do fim da ditadura, multiplicam-se as oportunidades de

estudo, os antigos beneficiários e sustentáculos do regime, mesmo quando ainda no

poder, são obrigados a conviver com o contraditório, com a diversidade, valor maior

tanto no Brasil, como em termos internacionais. A importância do estudo da repressão

não pode ser desprezada, pois apenas o estudo da opressão permite garantir a liberdade e

entender como foi possível a barbárie (Funari 2003d). Esta é uma condição necessária,

ainda que não suficiente, para que a barbárie não volte a triunfar.

Agradecimentos

Agradecemos a Thomas Patterson, Bruce G. Trigger e Andrés Zarankin. Devemos

mencionar, ainda, o apoio institucional do NEE/UNICAMP, LAB/UERJ, CNPq,

FAPESP. A responsabilidade pelas idéias restringe-se ao autor.

Referências

Duarte, P. 1970 Fontes de pesquisa pré-histórica, Estudos de Pré-História Geral e

Brasileira, São Paulo, IPH/USP, 374-442.

Duarte, P. 1994Paulo Duarte e o Instituto de Pré-História, Idéias, Campinas, 1,1, 155-

179.
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Funari, P.P.A 2002 Class interests in Brazilian archaeology, International Journal of

Historical Archaeology, 6,3, 2002, pp.209-216.

Funari, P.P.A. 2003a Dictatorship, democracy, and freedom of expression, International

Journal of Historical Archaeology, 7, 3, 2003, 233-237.

Funari, P.P.A. 2003b História, contradições e conflitos, in Marxismo e Ciências

Humanas, São Paulo, Ed. Xamã/Cemarx/FAPESP, 2003, pp. 101-106, ISBN

857587011-4.

Funari, P.P.A. 2003c Resenha de “A social history of anthropology in the United States”,

by Thomas Patterson, Diálogos, UEM, Maringá, 7, 2003, 291-293, ISSN 1415-9945.

Funari, P.P.A.2003d Dictatorship, democracy, and freedom of expression, International

Journal of Historical Archaeology, 7, 3, 2003, 233-237,

Funari, P.P.A., Zarankin, A., Stovel, E. 2005 (eds) Global Archaeological Theory,

Contextual voices and contemporary thoughts, Nova Iorque, Kluwer/Plenum.

Oliveira, N.V. 2004 Arqueología e Historia: estúdio de um poblado jesuítico em Rio de

Janeiro, in Arqueologia Histórica em América del Sur, Los desafios del siglo XXI, P.P.A.

Funari & A. Zarankin (eds), Bogotá, Uniandes, 73-91.

Patterson, T. 2002 A Social History of Anthropology in the United States. Nova Iorque,

Oxford University Press.

Trigger, B.G. 1990 A history of archaeological thought. Cambridge University Press,

Cambridge.

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