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Biografia de Clarice, por Benjamin Moser:

coincidências e equívocos
Benjamin Abdala Junior

E m 1995, por ocasião do lançamento


de Clarice, uma vida que se conta, um
teratura de Clarice Lispector e que vem
sendo sistematicamente consultado pe-
estudo sobre a vida e obra de Clarice Lis- los estudiosos no assunto. O livro, tese
pector, de autoria da professora Nádia de livre-docência defendida na USP em
Battella Gotlib, publiquei algumas no- 1993, editado em 1995 pela Ática, nes-
tas críticas para a revista Teoria e Debate se mesmo ano teve quatro reimpressões.
(n.30, nov./dez. 1995). Nessa resenha, Mais recentemente, em edição revista, foi
procurei destacar a inclinação da autora traduzido para o espanhol na Argentina
no sentido de apreender Clarice, persona (Ed. Adriana Hidalgo, 2007). E ganhou
e obra, no que a escritora apresenta de edição revista também em português,
mais desafiador: já com o selo da Edusp, em 2009, com
Para Clarice Lispector, a vida implicava acréscimo de meia página (leitura de uma
criação sem os espartilhos das teorias foto) e atualização de dados. Aliás, essa
e sobretudo das certezas que as enfor- atualização deveu-se também a outra
mam. É dessa maneira que a biografia pesquisa desenvolvida pela mesma auto-
literária de Nádia Battella Gotlib vai se ra, que gerou outro livro seu, intitulado
atrever a montar o retrato polifacetado Clarice fotobiografia (Edusp/Imprensa
da escritora sem apriorismos, através Oficial do Estado de São Paulo, 2008) –
das vozes que contam. uma narrativa visual de história de vida e
Ressaltei também nesse texto o ní- obra de Clarice, com 800 imagens.
vel de reflexão crítica da autora, atenta à Volto ao livro Clarice, uma vida que
“inquietação” que provoca a literatura de se conta, agora motivado pela leitura de
Clarice, e alerta ao “caráter problemático outra biografia de Clarice Lispector, pu-
dos conceitos de imitação e de verdade”. blicada em 2009, feita por Benjamin Mo-
E mais: ser, e que recebeu o título Clarice,. E
Logo, não se encontram nele traços busco as razões pelas quais a leitura dessa
inequívocos de um certo gênero de recente biografia de Moser me conduziu,
biografias voltado para perfis capazes a todo momento, à biografia de Clarice
de constituir paradigmas de ação para publicada por Gotlib quinze anos atrás.
situações previsíveis. Um retrato assim As recorrências ao texto escrito por
produzido seria uma traição à própria Nádia Gotlib começaram a partir da lei-
Clarice, que sempre manteve um olhar tura de um folheto de apresentação do
enviesado para os atores sociais de livro de Moser. Num primeiro momento,
comportamento estereotipado e per- estranhei o título. Fica-se esperando por
sonagens de caráter ritualizado.
uma complementação que, no entanto,
Remeto uma vez mais a esse livro, que não existe. Ou, num segundo momento,
se transformou em leitura fundamental após o estranhamento, o título pode levar
para os interessados na biografia e na li- à expectativa de “uma vida que se conta”,

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nas páginas interiores do livro. Há, en- gunta. Uma biografia de Clarice Lispec-
tretanto, uma explicação da editora, no tor, em 1999 (Rocco).
folheto que acompanha o exemplar e que Finalmente, o folheto realça “a habi-
tenta esclarecer a opção: o título surge lidade narrativa de Moser”, “também vi-
“numa associação com a vírgula que ini- sível nas relações que ele tece entre vida
cia o romance Uma aprendizagem ou o li- e obra”. E continua: “Não se trata de
vro dos prazeres”. Curiosamente, chegou- explicar de maneira reducionista a vida
me às mãos, depois, a coletânea poética pela obra ou vice-versa, mas fazer com
de Armando Freitas Filho, anteriormente que uma funcione como caixa de resso-
publicada (junho, 2009), que se valeu do nância de outra”. Esse texto me faz re-
mesmo recurso (Lar,. São Paulo: Cia. das meter a um trecho do livro de 1995 de
Letras). Nádia Gotlib. Na apresentação, a autora
Ora, a vírgula empregada justamen- afirma: “Neste livro entrelaçam-se vida e
te no início do romance de Clarice tem obra de Clarice Lispector. Dados de in-
função muito peculiar. Continua-se uma formação de ordem biográfica e dados de
história que já teve o seu início em algum leitura crítica de seus textos alternam-se
momento, início de história que, ali, não e complementam-se, sem que, equivoca-
aparece. Já no título do livro, o próprio damente, se estabeleçam mútuas relações
fato de se usar a vírgula depois de um de dependência” (p.15).
nome, um nome bem conhecido (Cla- Seria mera coincidência?
rice), faz que toda a possível correlação E o folheto prossegue: “a cada capí-
que possa ter com o seu uso no início do tulo o narrador se volta para o livro que
romance, aqui, se desfaça. Assim sendo, Clarice estava escrevendo ou publicando
melhor seria o leitor tecer suas próprias naquele momento, o que faz da biografia
considerações sobre o título, deixando também um guia de leitura, uma porta
sua imaginação fluir. de entrada para o universo clariciano”. É
Há ainda no folheto outras considera- exatamente esse mesmo procedimento o
ções. Afirma-se que “numa pesquisa iné- adotado pela antecessora Nádia Gotlib,
dita, o autor percorreu todos os lugares quinze anos antes...
por onde os Lispector passaram”. Outros Após tais alertas, abertos pelo próprio
já por lá andaram, como a própria autora folheto, parti para a leitura do livro. Logo
da biografia anterior a que nos referimos no primeiro capítulo, Moser recorre à
quando complementava os dados para passagem de Clarice pelo Egito e as vi-
elaboração da sua fotobiografia. Ainda sões da escritora por diferentes persona-
no folheto menciona-se “outro ponto lidades, para concluir que ela permanece
alto do livro”, a escrita de Benjamin Mo- como enigma. É essa a proposta do pri-
ser, que soube encadear “trechos da obra meiro capítulo do livro de Nádia Gotlib,
de Clarice, de seus contemporâneos, de- que aponta para várias visões de Clarice –
poimentos e documentos inéditos”. Mais “pela empregada, pela vizinha, pelos pa-
um procedimento nada original, que está rentes, amigos, jornalistas, críticos, escri-
patente em outras biografias de Clarice: tores” (p.54), para concluir que... Clarice
tanto na já citada quanto na elaborada permanece como enigma.
por Teresa Cristina Montero Ferreira, Ao longo dos capítulos, uma estrutura
publicada com o título Eu sou uma per- semelhante: capítulos curtos, com títulos

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sugestivos, que percorrem praticamente, as entrevistas que concede ao Museu da
na sua grande maioria, os mesmos textos. Imagem e do Som do Rio, ao jornal Pas-
Aliás, parte desses textos foi também uti- quim, à TV Cultura, e, finalmente, capí-
lizada por Teresa Montero, no seu livro tulos sobre A hora da estrela e Um sopro
de 1999, em que ela abre novas frentes de de vida, para então finalizar com o capí-
leitura de dados biográficos, como, por tulo referente à morte da escritora.
exemplo, as provenientes da descoberta E os fatos referentes à vida de Clari-
de processos de naturalização deposita- ce não oferecem novidade: paixão pelo
dos no Arquivo Nacional. homossexual Lúcio Cardoso, casamento
De fato, Moser recorre, salvo dois ou com Maury Gurgel Valente, união frus-
três textos inéditos aí mencionados, a trada com Paulo Mendes Campos, ami-
uma mesma massa documental já anali- zade com Olga Borelli nos seus últimos
sada pelas biógrafas que o antecederam. anos de vida. Nada de novo, além de, isto
São, por exemplo, textos críticos que sim, e por Moser, informações extensas
surgem após a publicação dos romances, sobre a dizimação dos judeus na Europa
correspondência trocada entre Clarice e e panoramas referentes a momentos his-
irmãs e entre Clarice e amigos, entrevistas tóricos do Brasil, com o sentido de eluci-
concedidas por Clarice em vários periódi- dar quem teriam sido algumas das perso-
cos, sobretudo no Rio de Janeiro. nalidades históricas brasileiras.
Os itens desenvolvidos ao longo dos As semelhanças não estão só na trilha
capítulos são também praticamente os narrativa. Se no livro de Nádia Gotlib há
mesmos: a turbulência política da Ucrâ- um subcapítulo intitulado “As receitas da
nia assolada por lutas internas e externas e bruxa”, no de Moser há capítulo intitula-
pela perseguição aos judeus, a viagem da do “A bruxa”. No da crítica brasileira há
família da Ucrânia para o Brasil, a infân- “Os diálogos possíveis”, no de Moser há
cia de penúria em Maceió e, depois, em “Diálogos possíveis”. Em Clarice, uma
Recife, as primeiras leituras, as crônicas vida que se conta há “O furacão Clarice”,
de memória, a mudança para o Rio, os em Clarice, “Furacão Clarice”...
primeiros contos e o primeiro romance, No final do último capítulo do livro
a viagem para a Itália durante a Segunda de Benjamin Moser, mais uma coincidên-
Grande Guerra, sua estada em Berna que cia: o autor transcreve a cena de Clarice
a escritora considera “um cemitério de no hospital quando se dirige à enfermei-
sensações”, a amizade com Bluma Wai- ra para afirmar a dramática frase: “Você
ner, a breve permanência na Inglaterra, matou meu personagem”. Moser esco-
a colaboração na imprensa carioca escre- lhe, para integrar parte final do último
vendo páginas e colunas femininas, os vá- capítulo do seu livro, a mesma cena com
rios romances e contos que escreveu ao que Gotlib termina o seu livro. Há que
longo desses anos, a tentativa de reconci- considerar, é bem verdade, que essa cena,
liação por parte do marido, os “diálogos relatada por Olga Borelli a Nádia Go-
possíveis” e demais entrevistas que fez tlib, funciona, no livro de Nádia Gotlib,
para periódicos no Rio, o período de crô- como clímax de um processo de mergu-
nicas publicadas no Jornal do Brasil, os lho na própria ficção, a própria escritora
textos escritos nos anos 1970, a presença transformando-se em “personagem” de
no congresso de bruxaria na Colômbia, si mesma, derradeira etapa de uma ativi-

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dade narrativa que a crítica acompanha, a Eis, a seguir, os passos da argumenta-
pari passu, ao longo das construções fic- ção de Moser.
cionais e jornalísticas de Clarice, com a Logo no início do livro, o autor afirma
preocupação de aí detectar os meandros que a mãe de Clarice foi “condenada à
de uma linguagem narrativa desmitifica- morte por um ato de indizível violência”
dora e inventiva. (p.17). Mas não aparece, em documento
O elemento diferencial da biografia nenhum de que o autor se serviu, a expli-
feita por Moser reside, no entanto, no citação dos detalhes dessa violência, que
enfoque voltado para as questões judaicas ele faz, no entanto, questão de ressaltar.
na vida e obra de Clarice. Informações Vale-se, Moser, de uma crônica da
detalhadas sobre a origem dos conflitos Clarice adulta, que se volta num discurso
no Leste Europeu, responsáveis pelo mo- de memória para esse universo da infância
vimento migratório da população judai- (até que ponto imaginário?) para descre-
ca para outros continentes, como para as ver justamente esse fato: a de que foi con-
Américas, servem de respaldo para a his- cebida para salvar a mãe de uma doença.
tória da própria família judia de Clarice, Diz Clarice: “fui preparada para ser dada
que precisou sair da Ucrânia para o Brasil. à luz de um modo tão bonito. Minha
Encontram-se ecos dessa cultura em vá- mãe já estava doente e, por uma supersti-
rios momentos do livro, quando o autor ção bastante espalhada, acreditava-se que
se refere a leituras feitas por Clarice (de ter um filho curava uma mulher de uma
Espinosa, por exemplo) e a textos escritos doença” (“Pertencer”, em A descoberta
por Clarice (em que procura, sobretudo, do mundo, p.151).
estabelecer relações com essa cultura de Para Moser, essa doença seria sífilis,
origem). causada por estupro que aconteceu du-
Justamente, porém, ao tentar privile- rante pogrom realizado por bolcheviques
giar essa ascendência, o autor recai numa russos. Com certeza absoluta, o autor
linha de reflexão que desloca seu centro identifica o crime (estupro), o criminoso
de interesse e, na ânsia de reconstituir um (bolcheviques russos) e o diagnóstico de
passado de dimensão épica, resvala em doença “proveniente” desse crime (sífi-
riscos de argumentação, que acabam pre- lis).
judicando o seu fio de exposição. Moser parte de um trecho de texto
Dentre esses riscos, cito o que se refere inédito de Elisa Lispector, intitulado Re-
a fatos referentes à mãe de Clarice, já que, tratos antigos. Ela menciona o fato de que
a partir daí, tece considerações posterio- “Foi o trauma decorrente de um daque-
res. Refere-se a um estupro de que teria les fatídicos pogroms que invalidou minha
sido vítima a mãe da escritora, fato que, mãe” (p.47-8, a partir de Elisa Lispector,
no entanto, mostra-se problemático, por Retratos antigos, p.15). Mas “trauma”
suas inconsistências, tal como ali surge, não é “estupro”. Ou não acontece neces-
transformado em verdade absoluta, pela sariamente por causa de um estupro.
via de uma interpretação forçada. Um O autor de Clarice, faz ainda a seguin-
equívoco, do ponto de vista documental. te afirmação: “Bem no fim da vida, Clari-
As razões residem na própria leitura da ce confidenciou à amiga mais íntima que
documentação que o autor usa para com- sua mãe fora violentada por um bando de
provar essa sua tese. soldados russos. Deles, ela contraiu sífilis,

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que nas pavorosas condições da guerra civil Nos parágrafos seguintes, Moser fala
ficou sem tratamento” (p.48, grifo meu). dos segredos de Clarice, das coisas não
Clarice, pois, teria dito a uma amiga, que contadas. Que podem ter sido muitas,
teria dito a outra amiga... Nessa sequên- aliás! E afirma que “todos (grifo meu) os
cia de informações, sem local, nem data, relatos dos pogroms registram a presença
e às vezes sem identificação de depoentes, generalizada do estupro” (p.48 ). E con-
escapam dados básicos para se considerar clui: “Na Ucrânia da época da guerra ci-
o depoimento como matéria documen- vil não foi diferente” (p.48, grifo meu). A
tal confiável. Não se trata, propriamente, partir dessa argumentação do autor, im-
de um documento. Onde e com quem possível ter havido violência sem algum
se encontra esse registro? Datas em que estupro... Portanto... fica provada a sua
foram ouvidos ou registrados? Local em tese. Está sacramentado o estupro. E, por
que foram concedidos? consequência, a doença.
E quem afirma que ela contraiu sífilis? É assim que caminha a argumentação
Foi ainda Clarice? Ou já foi uma conclu- “cerrada” do autor... A partir daí, refere-
são do autor Moser? Isso também não se com tranquilidade à “mãe sifilítica”
fica claro. Onde termina o suposto depoi- (p.48). E o que entra em questão é já a
mento e começa a interpretação? Se assim data em que “tal fato aconteceu”: “é di-
foi, valem para essa afirmação as mesmas fícil saber exatamente quando Mania Lis-
indagações antes referentes ao registro pector foi atacada” (p.48, grifo meu), ou
documental. Se foi o autor do livro que quanto “foi estuprada” (p.49). Depois
emenda a sua própria voz à da depoente refere-se ao nascimento de Clarice, então
para diagnosticar a doença, mais um dado chamada Chaya, em 20 de dezembro de
de afirmação forçada, para favorecer a sua 1920, já transformada em filha “de mãe
frágil argumentação. sifilítica”.
E o autor continua: Apenas em nota de rodapé, agrupada,
Se tivesse acesso mais rápido a um hos- como as demais, no final do livro (distan-
pital, talvez houvesse alguma chance. te do fluxo narrativo do corpo do texto),
Mas só vinte anos mais tarde a peni- Moser inclui possíveis teses contrárias, e
cilina, o tratamento mais eficaz, iria se aí, acertadamente – é de inferir –, como
tornar de uso comum. A seu tempo, teses “possíveis”, ou seja, hipóteses: “Ou-
depois de uma década de horrível so- tras fontes atribuem a paralisia de Mania
frimento, Mania, a garota elegante, in- a um choque traumático (possivelmente
teligente e de espírito livre dos campos um espancamento) ocasionado pela vio-
da Podólia, iria jazer num cemitério lência do pogrom ou por outra doença”.
brasileiro. (p.48) E acrescenta importante afirmação: “Não
Na continuação, o “pressuposto” de se conhecem depoimentos das filhas de
que o estupro realmente é “fato consu- Mania, Tânia Kaufmann e Elisa Lispec-
mado”. De que a mãe contraiu sífilis a tor, que confirmem a hipótese do estu-
partir do estupro. E de que mais tarde pro” (p.566, nota 7).
“iria jazer num cemitério brasileiro” por Além de discutir a “causa da sífilis”
causa dessa doença. (p.50) e de remeter a datas prováveis em
Constrói-se, assim, a narrativa “imagi- que esse estupro aconteceu (não em que
nária” do estupro, como se verdade fosse. “teria possivelmente acontecido”, como

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Foto Divulgação Edusp

A escritora Clarice Lispector.

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seria recomendável), recorre ao romance
autobiográfico de Elisa Lispector, No exí-
lio, para comprovar sua “tese”. Cita a cena
do romance em que a narradora descreve
um pogrom, mas em que não há nenhuma
especificação de estupro. O autor preen-
che com sua interpretação o silêncio que
existe na narrativa. Trata-se, pois, de uma
interpretação, construída como uma hi-
pótese, que ele, uma vez mais, transforma
em certeza.
Esse fato do passado é peça funda-
mental, aliás, para argumentação subse-
quente do autor. Tenta-se, realçando esse
fato do passado, reforçar assim o possível
trauma que seria responsável por um tipo MOSER, Benjamin. Clarice,.
de escrita diretamente ligada às origens Trad. José Geraldo Couto. São Paulo:
judaicas, ou seja, a concepção de Deus se- Cosac Naify, 2009.
gundo a tradição cultural judaica: a busca
do nome, mas enquanto “nome sagrado,
sinônimo de Deus” (p.232). gina da mencionada biografia de autoria
Não há, pois, matéria documental que de Teresa Cristina Montero Ferreira, de
comprove que a mãe de Clarice foi estu- 1999.
prada. Nem que teria nessa ocasião con- Ali também é editada uma minifo-
traído sífilis. Nem, ainda, que teria morri- tobiografia com seleção de 35 imagens.
do por causa de sífilis. Dessas, 32 aparecem no livro Clarice foto-
Para finalizar, é de mencionar que na biografia, de Nádia Gotlib (algumas delas,
edição norte-americana da biografia de também na primeira e última edições de
Moser, editada com o título de Why this Clarice, uma vida que se conta). O autor
world (Oxford University Press, 2009), menciona os créditos mencionados pela
outros detalhes de biografias anteriores autora em seu livro Clarice fotobiografia,
são incorporados. Ali surge um mapa do mas não menciona o livro Clarice foto-
Brasil e um mapa da Ucrânia, com loca- biografia como fonte dessa seleção. No
lização das cidades pelas quais passou a entanto, tais imagens são também pro-
família Lispector, proposta de ilustração duto de pesquisa que tem autoria: foram
que aparece na edição de Clarice fotobio- consultados vários arquivos para reunir o
grafia, de Gotlib. (O mapa com indicação vasto repertório, com dados informativos
das cidades da Ucrânia e países adjacentes nas legendas.
também surge na edição brasileira da bio- O que acontece nesse caderno de ima-
grafia de autoria de Moser.) gens – seleção espelhada de um intenso
Ainda na edição norte-americana do trabalho de pesquisa com imagens, feita
livro de Moser é registrada uma árvore por Nádia Gotlib, que redundou na ex-
genealógica da família Lispector, Kri- tensa fotobiografia – é o que acontece
mgold e Rabin, tal como na última pá- também em muitos momentos do texto

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de Moser, em que reconheço igualmente Clarice fotobiografia, da mesma autora.
o espelhamento da biografia de Clarice E convém recorrer ao livro de Benjamin
de autoria de Nádia Gotlib, patente nas Moser para buscar aí dados sobre a tradi-
opções de estrutura do texto, no modo ção histórica judaica que provocou a saga
de conduzir e organizar a matéria, nos dos movimentos migratórios, incluindo
textos selecionados para integrar a expo- os da família Lispector, dados que, no
sição. entanto, merecem toda a atenção, já que
Do ponto de vista da crítica literária, ao lado de um vasto repertório de infor-
no seu intuito de perseguir “os motivos mações de interesse encontram-se argu-
judaicos nos escritos de Clarice Lispec- mentos discutíveis, expostos num fluxo
tor”, no livro de Moser, a literatura de de linguagem sedutor e envolvente.
Clarice fica relegada a um pano de fundo.
Com o intuito de demonstrar essa sua
proposta, instaura-se uma leitura dos tex-
tos de Clarice sem a consideração de que
textos de memória são também constru-
ção do imaginário, e assim considerados,
não se apresentam mais como provas de
um território eminentemente factual.
O risco que corre é a tentação de en-
contrar na ficção cenas da vida da escri-
tora, como na leitura que faz do conto
“Uma galinha”, em que a personagem,
uma galinha, escapa de ser morta porque
bota um ovo. E, assim, é salva, pelo mila-
gre da criação. Segundo Moser,
[...] a referência ao “velho susto de sua
espécie” sugere o ancestral medo ju-
daico de perseguição, e a frase “resquí-
cios da grande fuga”, combinada com
o espetáculo de uma fêmea impoten-
te, grávida e incapaz de voo que corre
para salvar a vida, remete à desesperada
fuga da Europa empreendida por sua
mãe. (p.297).
Por essas razões, convém revisitar o
livro Clarice, uma vida que se conta, de
Nádia Battella Gotlib, para reforçar os la-
ços de aproximação com a literatura de
Benjamin Abdala Junior é professor de
Clarice, aí percebida a partir de recursos Estudos Comparados de Literaturas de
literários tão sutilmente utilizados pela es- Língua Portuguesa da Faculdade de Filo-
critora Clarice. Ainda mais agora que esse sofia, Letras e Ciências Humanas da Uni-
livro reaparece sob uma nova luz: a de seu versidade de São Paulo.
correspondente em imagens, o notável @ – benjaminjr@terra.com.br

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