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Robert Musil

OBRAS I

Direcção de
João Barrento
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Robert Musil
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AS PERTURBAÇÕES
DO PUPILO TÕRLESS
Robert Musil

AS PERTURBAÇÕES
DO PUPILO TORLESS

OBRAS I

Tradução e introdução à edição de


João Barrento

1
DOM Q!JIXOTE
Publicações Dom Quixote
Edificio Areis
Rua Ivone Silva, n.º 6-2.0
1050-124 Lisboa Portugal
·

Reservados todos os direitos


de acordo com a legislação em vigor

© 1978 by Rowohlt Vcrlag GmbH


Reinbck bci Hamburg
© 2005, Publicações Dom Quixote

Título original: Die Venvirrungw des Ziiglings Tiirlefl


Design: Atelier Henrique Cayatte
com a colaboração de Rita Múrias

Este livro foi composto em Rongcl,


fonte tipográfica desenhada por Mário Feliciano

Revisão: Susana Baeta

1.' edição: Abril de 2005


Paginação: Fotocompográfica, Lda.
Depósito legal n.º 225 791/05
Impressão e acabamento: Gráfica Manuel Barbosa & Filhos

ISBN: 972-20-i854-5
G'8
Introdução

JOÃO BARRENTO
G'9
ROBERT MUSIL: UM AUTOR SEM BIOGRAFIA

A alma é um enigma

Robert Musil é um escritor de método - no duplo sentido


do termo. Metódico, pela sua formação matemática e científi­
ca, e com um método próprio na escrita e no pensamento,
que podemos ver como aberto, dualista ou paradoxal, se por
paradoxo (para-doxon) se entender o caminho daquele que se
move, livre e sem a preocupação de se deixar guiar por qual­
quer espécie de «qualidades», nas margens e à margem da
doxa, da opinião e do mundo. Ao tomar, com vinte e quatro
anos, a decisão da escrita, de «abrir a porta para uma vida no
verdadeiro sentido do termo» (TB I, 115) , Musil transforma-se
num autor sem biografia,· como dirá, muito mais tarde, o seu
contemporâneo e compatriota Hermann Broch: «Partilho
alguma coisa com Kafka e Musil: nenhum de nós tem propria­
mente uma biografia; vivemos e escrevemos, e é tudo» (carta
de 5 de Dezembro de 1948, cit. em TB II, 68) . O próprio Musil
anotara já, em 1904-05, num dos cadernos dos Diários:
« ... Tenho vinte e quatro anos e há ano e meio que me
torturo com uma coisa sem importância. Um invento [o «gi­
roscópio cromático» para experiências psicológicas, J. B.].

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João Barrento

Com vinte e um anos já era engenheiro. Mas queria livrar­


-me disso e estudar filosofia ( ... ) Estas eternas experiên­
cias não pareciam ter qualquer sentido. Os bons inventos
têm de ser merecidos, e não se chega lá assim, como quem
não quer a coisa. Ou então, pensei, larga a técnica de uma
vez por todas. Torna-te escritor, engraxador, criado, qual­
quer dessas coisas americanas, e afirma-te literariamente.»
(TB I, 115)

Em Musil, como em Kafka (ou Pessoa) , a escrita usurpará


a biografia, a literatura anulará de facto a vida, apesar das qua­
se insuperáveis dificuldades que esta cria a quem escreve nas
condições em que estes escreveram. No caso de Musil, os pro­
blemas de subsistência aumentam à medida que vão sendo
abandonadas várias actividades profissionais por que passa
sem convicção, sobretudo a partir do momento em que, na
segunda metade da década de vinte, a escrita do que viria a
ser o romance O Homem sem Qualidades1 irá absorver toda a

' O romance maior de Musil ocupará os quatro tomos do terceiro volume desta edição, e
terá uma introdução própria no primeiro desses tomos. Será a primeira publicação integral
em língua portuguesa deste romance fragmentário (apesar das mais de duas mil páginas do
original), que incluirá, para além dos conhecidos Livros I e II publicados em vida do autor,
as mais de mil páginas dos vinte capítulos que ficaram em provas (e que entrariam no tercei­
ro volume a publicar) e de todos os materiais do espólio.
Afigura-se, no entanto, necessária já aqui uma nota sobre a manutenção deste título, vul­
garizado pelas traduções (parciais) portuguesa e brasileira anteriores a esta edição. A questão
dos sentidos e das versões possíveis do alemão Eigenschaften (qualidades, em sentido neutro,
atributos, particularidades) tem sido debatida. Quase todas as traduções existentes, nas lín­
guas românicas e em inglês, usam «qualidades», à excepção da tradução castelhana de José
M. Sáenz, que prefere verter o título por E/ hombre sin atributos. À primeira vista, esta solução
poderia parecer preferível também para o português, mas duas razões maiores me levaram a
manter a versão, já instalada no espaço de língua portuguesa, O Homem sem Qualidades. Em
primeiro lugar, o facto de o termo «qualidades», usado sem adjectivação, como no original,
permitir, afinal, manter em português o fundo de ambiguidade que também está presente no
título alemão, e que traduz melhor o perfil e a demanda do protagonista do romance; em se­
gundo lugar, e decorrente do primeiro argumento, o facto de as alternativas disponíveis se­
rem claramente menos felizes como título, e insuficientemente fundamentadas para destro­
narem aquele que já entrou no universo de referências literárias do leitor culto. Alterá-lo
sem uma razão convincente seria sinal de um pedantismo deslocado e arbitrário.

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Introdução

existência do escritor, e culminando na situação insustentável


dos anos do exílio na Suíça. Aos problemas financeiros acres­
centa-se o desaparecimento progressivo das obras de Musil
do espaço literário a partir de 1925, e o seu esquecimento por
parte da crítica, depois de alguns momentos de sucesso, já
distantes ou meteóricos - o êxito do primeiro romance, o
Torless, em 1906, a presença regular na crítica e no ensaísmo,
nos anos que se seguem à Primeira Grande Guerra, o bom
acolhimento da peça Vicente e a Amiga de Homens Importantes.
Faz sentido, por isso, o que escreve Karl Corino na grande
biografia Robert Musil. Eine Biographie (duas mil páginas, publi­
cada em 2003) sobre a importância relativa da vida face às
«ideias» deste autor e da sua filosofia da «não-identidade»:
«Musil teria preferido, se lhe tivessem dado a oportu­
nidade da escolha, uma pura história das suas ideias (mes­
mo que isso fosse muitas vezes dar a uma série de emprés­
timos) . ( ... ) Naturalmente que as suas ideias do sentido de
possibilidade, da moral do próximo passo - «Ü que im­
porta não é aquilo que se faz, mas o que com isso se faz» -,
o seu secretariado-geral da exactidão e da alma, o misticis­
mo do dia claro, merecem a devida atenção, mas a sua gé­
nese e o seu enraizamento no terreno biográfico não são
menos elucidativos.» (Corino: 2004, 14)

Mas, por outro lado, reconhece-se que uma biografia pu­


ramente literária de Musil não faria justiça ao homem, com os
seus «nove caracteres» e mais um - todos os que lhe conferem
qualidades específicas, acrescidos daquele, o mais importan­
te, que lhe permite não levar a sério tudo o que os outros no­
ve fazem, e que Ulrich, o homem sem qualidades, procura se­
guir nos seus ensaios de vida (MoE, 34) (esse homem-Musil
foi meticulosa e muitas vezes impiedosamente retratado

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João Barrento

numa outra importante obra recente de recorte biográfico, o


Musil de Herbert Kraft, saído em 2003) . Uma tal biografia não
faria justiça ao homem, nem também a um escritor de fraca
veia inventiva ou puramente efabulatória, e que, mais do que
muitos outros, quase só escreveu sobre o que viveu - acres­
centando-lhe, é certo, tudo o que pensou, para com isso er­
guer uma portentosa construção filosófico-literária. É isto
que leva o biógrafo Corino a completar os seus argumentos
nos seguintes termos:
«Uma história feita só de ideias seria certamente mais
lisonjeira para a sua pessoa, mas também desumana, na
medida em que escamotearia o indivíduo criador. É indis­
cutível que a obra de Musil se deve a muitos caprichos
pessoais, doenças, dificuldades materiais e a uma neurose
que parecia não ter fim; pode mesmo dizer-se que os últi­
mos anos se resumem a essa neurose transformada em
obra literária, que a neurose se aliou ao demónio da possi­
bilidade. Poderia pensar-se que seria fácil passar por cima
de muitas das fraquezas de Musil, como Martha, sua mu­
lher, pensa; mas a revisão sem fim dos seus textos corres­
pondia a um traço de carácter a que ele não conseguia re­
sistir. Isso evitou a conclusão da obra maior, mas ao
mesmo tempo assegurou a esse gigantesco fragmento o
lugar único que ocupa.» (Corino: 2004, 14)

A partir do momento em que a escrita interminável e não


terminada do grande projecto romanesco - de facto, a mais
radical superação do romanesco a que se assiste no século xx
- se torna obsessiva, vem também à tona a radicalidade do
homem e da obra. A decisão, tomada vinte anos antes, de se
«afirmar literariamente», parece voltar-se contra quem a to­
mou: a empresa é de tal modo excessiva que o seu tempo

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Introdução

não a comporta, ia de tal modo adiante desse tempo que


ele não dá por ela. O estatuto, escolhido e não imposto, de
outsider em que Musil se transforma será a condição da sua ac­
tualidade futura - até hoje. Uma actualidade que teve um alto
preço e é, ela também, paradoxal. O grande paradoxo é aqui o
de uma obra que, sendo consensualmente reconhecida como
«grande» (a par de outras, sempre referidas em termos com­
parativos: as de Proust, Joyce, Kafka, Thomas Mann) , não teve
repercussão em vida do autor, e depois da sua morte passou a
ser muito citada e festejada, mas, como todos reconhecem,
pouco lida - isto apesar das altíssimas tiragens alcançadas pe­
la obra original no segundo pós-guerra (mais de um milhão
em pouco mais de vinte anos, sem falar das traduções em qua­
se todas as línguas: cf. Baur: 1981) . O preço a pagar por um
autor considerado «dificil», em termos de carácter e de escrita -
mais difícil, mas também mais gratificante do que muitos ou­
tros «modernos», cujo conhecimento não nos prepara neces­
sariamente para o encontro com esta obra de polímato, que
exigia da ficção o rigor da matemática e cuja utopia última era
a de abarcar a pluralidade do real (cf. Bernstein: 2000) -,
e por uma obra que obriga o leitor a longas, mas tantas vezes
estetica e filosoficamente deslumbrantes, travessias do deser­
to, tornou-se evidente no ano do centenário do nascimento
de Musil, em 1980. A crítica perdeu uma excelente oportuni­
dade de destacar e fomentar as potencialidades reais desta
obra para criar - para gerar a partir de si própria - novos lei­
tores num tempo novo; limitou-se a dar continuidade à sua
canonização e mesmo trivialização. Ou então continuou a re­
duzir-se Musil a alimento de intelectuais e germanistas. Apa­
receram mesmo os «salvadores» d' O Homem sem Qualidades,
esse «deserto com muitos oásis» (Marcel Reich-Ranicki) que,
segundo alguns, faria todo o sentido condensar num reader's
digest só de oásis!

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João Barrento

Um quarto de século mais tarde, no entanto, o leitor musi­


liano continua aí (descubro-o hoje em sítios e blogues na Inter­
net) : espécie não muito disseminada, nem homogénea (é a
própria obra que gera esta diversidade dos seus leitores) , mas
inconfundível, um leitor que não se deixa levar à trela, porque
percebeu que o «deserto» tem uma beleza e uma atracção
muito particulares, e que é tão bom e necessário atravessá-lo
como d�sfrutar dos muitos oásis. É de novo o dualismo para­
doxal em que a obra de Musil permanentemente envolve o
leitor, o paradoxo de uma unidade última inatingível, con­
substanciada em múltiplas fórmulas musilianas, de que a da
conjunção entre «a exactidão e a alma» é uma das mais citadas
e das mais certeiras. José Bragança de Miranda prefere a da
«ideia-afecção» (num texto sobre Musil, conciso e sagaz, pu­
blicado online com o título: «Musil: De um outro movimento
das paixões») . O paradoxo Musil, um paradoxo produtivo co­
mo poucos, gera de facto nos seus potenciais leitores situa­
ções imprevisíveis. Estamos perante um daqueles autores que,
ou nos deixa frios e perplexos durante muito tempo, ou des­
perta a dado momento arriscadas e imprevisíveis paixões.
Musil tanto pode estimular como tolher nos seus leitores
qualquer raciocínio e argumento, e também desencadear fogos
de palha espalhafatosos mas inconsistentes. Num dos muitos
colóquios musilianos realizados a pretexto do centenário do
nascimento, um dos participantes (o austríaco Roman Rocek)
colocava a questão do relacionamento com um autor como
este através de uma comparação sugestiva. O admirador de
Musil encontrar-se-ia frequentemente na situação daquele
infeliz amante de uma das novelas de Boccaccio que «fica de tal
modo excitado com o abraço ansiado da amada que não con­
segue dar-lhe a prova real da sua paixão». As razões serão as
mesmas num e noutro caso: o que, em ambas as artes, leva aos

14
Introdução

melhores resultados, «não é tanto o fogo interior, mas antes


uma certa medida da distância, o calculismo técnico frio asso­
ciado a uma certa habilidade no métier>> (Musil-Forum, Ano VII
[1981], n.0 1-2, p. 143) . Ou seja: quem quiser aproximar-se de
Robert Musil e extrair dessa aproximação algum proveito e
deleite, deve fazê-lo com a dose adequada de «fogo frio», e
com a consciência de que a sua obra - em particular esse mar
de perplexidades, ironia e multiperspectivismo que é O Ho­
mem sem Qualidades, um livro que, como diz Blanchot, é fonte
de perturbação para o próprio autor, que sente que «não o
domina» (Blanchot: 1984, 146) - não serve os entusiasmos
simplistas e redutores, nem daqueles que pretendem ver nela
um expoente de realismos ideológico-críticos, da narrativa
histórica sobre o destino da Áustria habsbúrgica, de um psi­
cologismo «racionalóide» alimentado pela teoria da Gestalt
(que foi, sem dúvida, importante para Musil) , nem dos adep­
tos de misticismos sincretristas e hermafroditas. De facto, o
«realismo» de Musil não tem já nada a ver com a herança bur­
guesa do século XIX (ainda tão presente em outros, sobretudo
em Thomas Mann) , e o seu «misticismo» é o dos «místicos
sem misticismo» de que fala também Hofmannsthal num dos
Cadernos a propósito da sua «Carta de Lord Chandos» (Auf
zeichnungen, secção 4: Ad me ipsum, 1930?) . Da psicologia musi­
liana diz acertadamente Bragança de Miranda (no texto citado,
um comentário à peça Die Schwiirmer, Os Visionários, na tradu­
ção de Ludwig Scheidl) que ela «não é nenhuma psicologia, é
basicamente a tentativa de compreender a crise geral como
psicopatológica» numa era moderna em que ninguém escapa
a essa situação. E daí extrai a conclusão de que o que Musil
procura é uma nova «psicagogia», uma mestria da alma, no
sentido da psyché grega. A «alma» é, na verdade, um dos gran­
des Leitmotive da obra de Musil desde as primeiras novelas,

15
João Barrento

mas o conceito é totalmente desprovido de conotações idea­


listas e metafísicas, para se situar na confluência dos cami­
nhos dualistas, de abertura e possibilidade, de todos os «he­
róis» musilianos desde o Torless. A alma é um enigma, o
catalizador que mobiliza todas as faculdades (também as ra­
cionais, talvez sobretudo essas) , orientando-as para aquele
«sentido da possibilidade» que mina e alimenta todas as cer­
tezas e todos os comportamentos. A reacção do narrador à
«descoberta da alma» pela sonhadora Diotima em O Homem
sem Qualidades leva-o a tentar definir esse enigma (pela negati­
va, já que pela afirmativa dificilmente se chega lá) : «Ü que é a
alma? É fácil defini-la pela negativa: é simplesmente aquilo
que se esgueira à simples menção das séries algébricas! E pela
afirmativa? Parece que é aquilo que nos consegue sempre es­
capar de cada vez que a tentamos apanhar.» (MoE, 103) E no
ensaio Das hil.flose Europa («A Europa sem saída») , ao buscar o
compromisso e o equilíbrio, essenciais para Musil, entre razão
e alma ou corpo e alma, escreve: «Nós não temos intelecto a
mais e alma a menos, pomos é pouco intelecto nas questões
da alma» ( GW II, 1092) .
A obra de Musil é, assim, um universo que em si mesmo
se institui como refractário a qualquer «solução», sempre in­
satisfatória e irrelevante numa obra aberta e inacabada cujo
desfecho e destino possíveis pertencem ao mesmo reino da
pura hipótese em que o protagonista de O Homem sem Quali­
dades, Ulrich (e no fundo, já a primeira figura romanesca desta
obra, o jovem pupilo Tõrless) decide mover-se. Reino da im­
ponderabilidade e do acaso, do «homem provável» que Musil
sempre buscou e que Jacques Bouveresse transformou no te­
ma de um fascinante ensaio filosófico sobre a relação entre o
acaso, a probabilidade e a estatística (ou sobre a excepção e
a regra) na obra de Musil (J. Bouveresse, L'homme probable.
Introdução

Robert Musil, le hasard, la moyenne et l'escargot de l'histoire, de 1993) .


O que Musil parece ter para nos dizer, e no grande romance
resume na ideia e na imagem de que «nascemos para a mu­
dança num mundo criado para mudar, mais ou menos como
uma gota de água numa nuvem», não anda longe daquilo que
pensa e escreve um dos poucos autores portugueses que expli­
citamente se reclama de Musil e o traz ao seu próprio texto
- Maria Gabriela Llansol -, situando-o numa linhagem da
luminosidade e do fulgor (antagónica da da luz crua e fria da
racionalidade iluminista) e numa das vertentes de uma clivagem
- entre a sedução e o fascínio - que se abre depois da loucura de
Nietzsche e do advento do niilismo. A diferença, e o diferente
apelo, passa, para Llansol, pela linha divisória que tem de um
lado a sedução como «uma relação de captação, dispositivo
gestual e cénico de submissão de todas as vozes a uma única
voz» (voz que, acrescente-se, tanto pode ser a de um qualquer
ditador demagogo ou a dos media actuais, como a voz omnipre­
sente e omnipotente do narrador do romance realista) , e do
outro lado o fascínio, «Um acontecer imponderável sem desti­
natário possível ( ... ) , pura afirmação a criar movimento». Para
Llansol, «sob este aspecto, Musil foi bastante longe», já que,
com Kafka, mas de modo diferente dele, foi levado «a repen­
sar o livre arbítrio na estética». De facto, o grande objectivo
das personagens de Musil - a que Maria Gabriela Llansol cha­
ma «figuragens», algo entre personagens, ainda presas a uma
«convenção linear do tempo», e já figuras, se bem que «ata­
das» - e do próprio autor, nos ensaios, é essa síntese, ideal
mas nunca consumada, entre ética e estética, experiência e
conhecimento, intuição e razão, mas numa zona não «racio­
nalóide» a que, em alguns ensaios, Musil chama «o domínio
da Ideia». Llansol conclui também que, em Musil, o fascínio,
que está do lado do «luminoso», desencadeia um processo

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João Barrento

intelectivo, reflexivo, em que o pensamento se debruça sobre «a


experiência estética da alma» (Llansol: 2003, 161-162. Itálico
meu) . É uma definição lapidar do método musiliano, um méto­
do - de pensamento e de escrita, de pensamento-em-escrita e
de escrita-pensamento - através do qual se persegue uma éti­
ca «sem qualidades», aberta ao Vazio pleno de todas as possi­
bilidades, com vista a vislumbrar um «outro estado», e em que
- como no Tratado de Wittgenstein - «O que não pode ser de­
monstrado tem o mais alto valor» (TB II, 747) . A estas realida­
des não demonstráveis, mas presentes e decisivas, chamará
Llansol os «existentes não-reais» da sua obra, contrapondo-as
às personagens e aos lugares do romance realista, que nomeia
de «reais não-existentes». «A ética», escreve ainda Musil, « [é] a
tomada de consciência existencial desse outro estado» (MoE
II, 1853) .
Neste método reside, em grande parte, a modernidade
singular - e mesmo a pós-modernidade - da obra de Musil,
em especial, mas não só, de O Homem sem Qualidades. Em vez
de conexões («inenarráveis», no real sentido do termo) de fac­
tos e acontecimentos, o que nos é dado ir seguindo são esta­
dos e estádios de uma consciência estratificada: num dos
níveis (que não tem de ser o inferior) , a «alma», as pulsões
(Moosbrugger em O Homem sem Qualidades); sobre ou sob elas
a lucidez, o «círculo de luz do cérebro», já no Torless; depois, já
no horizonte do utópico, o encontro de emoção e intelecto
no «outro estado», o do misticismo do dia claro (taghelle
Mystik), «O transe sem perturbação da consciência», o equilí­
brio do Espírito ( Geist), objecto da inacabada busca de Ulrich
e Agathe. Isto significa, no plano da narrativa: à realidade só se
chega (?) através da sua reconstituição - fragmentária, contra­
ditória, como possibilidade aberta - na sala de espelhos da
consciência. Ou na câmara escura do fotógrafo, para usar uma
Introdução

associação cara a Musil, que aderiu entusiasticamente à nova


estética do cinema e coleccionava fotografias, se fascinava
com as revistas ilustradas (de duas delas retirou a figura de
Moosbrugger, o criminoso, para O Homem sem Qualidades), se
deliciava a imaginar o que de divertido poderia fazer com o
arquivo fotográfico da editora Ullstein «e algumas assinatu­
ras», reconstituía, a partir de álbuns de família, a história so­
cial do século XIX e da burguesia austríaca do Império. Como
em Proust, os contornos das suas personagens (Bonadea, Dio­
tima, o conde de Leinsdorf, mesmo Agathe) são influenciados
pelas técnicas experimentais da fotografia de então, tal como,
entre outros, Man Ray as praticava, nomeadamente através do
cruzamento e da sobreposição de imagens (no romance: de
modelos do real) . E, como também na fotografia, a constru­
ção do universo ético-estético faz-se nele de forma fisionómi­
ca, isto é, de fora para dentro. Todas aquelas personagens, as
muitas mulheres das novelas, cuja alma vai sendo dissecada
no divã literário, são casos vividos, figuras com história, rela­
ções biográficas. Nada parece ser invenção literária, tudo sur­
ge a uma luz que alguns investigadores tratam quase como
documental. É sempre assim, de um modo ou de outro, nas
grandes construções romanescas, desde Tom Jones e Werther, e
em todas as comédias humanas idealizadas pelos Balzac,
Proust, Joyce, Hesse. Em Musil, que não era um escritor de in­
venção, mais ainda. O biógrafo Herbert Kraft confirma-o
quando escreve: «Musil não era um inventor de histórias.
O que descreve é o que viveu ou ouviu ou leu. A isso acrescen­
tava a reflexão, que transforma o conhecido em literatura.
É certo que todos escrevem a partir da própria vida, mas rara­
mente alguém o fez de fo rma tão alargada como Robert
Musil. A forma literária mal consegue encobrir os bastidores
da sua própria vida» (Kraft: 2003, 55) .

19
João Barrento

Curiosamente, porém, a sensação provocada pela leitura


das obras de Musil é, a par do rigor do pensamento e da luci­
dez da análise, a de estarmos perante as ficções mais livres,
subtis e inventivas que se pode imaginar (como nas grandes
parábolas) . O paradoxo deve-se, provavelmente, à acção do
filtro da ironia musiliana sobre os factos da vida, à sua capaci­
dade de libertar esses factos, transpondo-os para um espaço
ficcional que parece antecipar as teorias actuais da «ordem
flutuante» e do caos, e, acima de tudo, ao seu projecto, intran­
sigentemente prosseguido, de - na esteira do Zaratustra de
Nietzsche - pôr os seus homens sem qualidades a «dançar
sobre os pés do acaso», num laboratório anímico onde todas as
experiências são possíveis. São qualidades de um escritor que
compensa o seu desinteresse pela mera e fácil efabulação com
uma inteligência fina, tão fina que um contemporâneo como
Walter Benjamin, um espírito não menos subtil, parece não a
suportar. Em 23 de Maio de 1933 - tinha saído pouco antes o
segundo volume de O Homem sem Qualidades -, Benjamin
escreve de Ibiza à amiga Gretel, mulher de Theodor Adorno:
«despedi-me deste autor, porque cheguei à conclusão de que
ele é mais inteligente do que realmente precisava de ser»!

O homem inactual

Esta edição, a primeira representativa e quase completa


de Robert Musil no espaço de língua portuguesa, não se pre­
tende «comemorativa» de nada, pelo menos em relação a
Musil. Surge porque tinha de surgir um dia, sem porquê como
a rosa de Silesius. E no entanto, há motivos para crermos que
ela corresponde a uma necessidade real, hoje, em Portugal.
E que, para além de ser um acto de justiça em relação a um

20
Introdução

autor maior do século xx, pouco presente e muito maltratado


no mercado português, pode ser um contributo importante
para uma tomada de consciência crítica deste tempo, nova­
mente tão cheio de «qualidades» que a ironia, mais inteligen­
te que dissolvente, de Musil poderá ajudar a pôr a nu - assim
ele seja lido. Se o for, como aconteceu no meio literário e cul­
tural português entre as décadas de cinquenta e setenta do
século passado, primeiro na tradução francesa de Jacottet
(1956) que serviu de base à portuguesa de Mário Braga (sem
data, mas saída entre 1973 e 1977) , e depois nesta, facilmente
os leitores de hoje poderão descobrir-lhe a actualidade, sem
precisarem de ir muito fundo.
Não é difícil descobrir essa actualidade num autor tão lú­
cido e prenhe de futuro como Musil. Há hoje várias «acções
paralelas», absurdas, em curso, com os seus gabinetes secretos
preparando mega-espectáculos de homenagem aos grandes e
pequenos imperadores do nosso tempo, paladinos da demo­
cracia e da construção dos novos impérios económicos que
arregimentam muitas nações, sob a égide de um novo e único
Kaiser. Neste cenário que se anuncia, e que já vem sendo en­
saiado há algum tempo, aqueles - cada vez menos - que te­
nham a pretensão de querer pensar por si serão (são) declara­
dos «homens sem qualidades» num universo ainda mais cheio
delas que o de Musil, uma espécie em vias de extinção que te­
ve a ousadia de tomar consciência e de proclamar a inabitabi­
lidade do Ser neste mundo todo feito de estratégias de des­
truição, bélicas, económicas, sociais, ambientais. É a Cacânia
musiliana elevada ao estatuto de delirante «Cancânia» (a su­
gestão está já em Maurice Blanchot, em O Livro por Vir), com
os seus sanguinários Moosbruggers (bem mais boçais do que
o original) e os seus muitos candidatos a Arnheims, mas mui­
tos degraus abaixo dele, porque lhes falta um dos dois Bs do

21
João Barrento

distinto cavalheiro de indústria do romance de Musil: pode­


rão ter o dinheiro (Besitz), mas faltar-lhes-á sempre a cultura
(Bildung).
Mas há mais e mais profundos filões na obra de Musil que
podem servir para atestar a sua utilidade hoje. O mais visível e
de maior alcance é provavelmente aquele que tem a ver com a
dicotomia «sentido de realidade - sentido de possibilidade».
Que o sentido de realidade impera hoje, de forma quase ex­
clusiva e cegante, sabemo-lo todos. O potencial de actualidade
de Musil - e nisso descobrimos mais um laço estreito entre
ele e a já referida obra de Maria Gabriela Llansol, cujo texto
frequenta como um dos seus «hóspedes de rara presença» -
passa pela sua insistência numa abertura ao sentido de possi­
bilidade presente nos muitos mundos do mundo, e que nos
vem dizer hoje que, contrariamente ao que se afirmou a certa
altura, não estamos no fi m da História nem numa pós­
-história, mas que a história nem sequer ainda começou. Um
dos sonhos de Ulrich em O Homem sem Qualidades (e uma das
ideias que orientam hoje o projecto da escrita llansoliana) é,
como lembra Bouveresse, o de «uma história a que possamos
chamar nossa e considerar como realmente humana» (Bouve­
resse: 1993, 17) . Não será coisa fácil, num tempo e num mun­
do cheio de «qualidades cada vez mais inumanas» (cf. Miran­
da: 2003) e de falsos profetas. Musil não acreditava nos
profetas e «salvadores» que pululavam pela Europa do primei­
ro pós-guerra, e ridicularizou-os na figura do profeta Mein­
gast (inspirado em Ludwig Klages, o arauto de uma nebulosa
e perigosa renovação anímica - em que o «espírito» (o Geist,
centro vibrátil da busca de Musil) surge como antagonista e
destruidor de uma «alma» de recorte fáustico-germânico - de
fundo irracionalista cósmico, atavista, ditirâmbica e extático­
-vitalista) . Num dos Cadernos de rascunhos há uma anotação

22
Introdução

em que se pergunta «Qual é a forma mais fácil de nos tornar­


mos profetas?» E a resposta é: «Dizendo baboseiras e levando
os outros a reproduzi-las ( ... ) Basta lançar uma qualquer babo­
seira no mercado» (GW II, 386) . Esta desconfiança pode tor­
ná-lo útil como aviso para uma época como a nossa, que, ain­
da na opinião de Bouveresse, «é incapaz de compreender a
situação em que se encontra e as tarefas que enfrenta, e que
aprecia, e até venera, os pensadores proféticos, porque os
erros que estes cometem e lhe agradam são essencialmente os
seus» (Bouveresse: 1993, 18) . Excelente retrato deste tempo, a
que se poderia acrescentar um outro traço, que hoje se extre­
mou numa total ausência de consciência histórica: aquilo a
que Musil chama (no fragmento ensaístico intitulado Preocu­
pações de um adepto da lentidão), «a falsa mitologização de tudo
o que está a acontecer», apoiada por teorias catastrofistas da
história, que tratam uma década como se de milénios se tra­
tasse (GW II, 1419) .

Por tudo isto, faz sentido reanimar hoje um autor que,


continuando sem dúvida a ser de hoje, não parece estar muito
presente entre nós. Mas é preciso distinguir. Paradoxalmente,
a universidade, onde se esperaria que ele estivesse mais vivo,
esqueceu um autor cuja bibliografia crítica, e mormente aca­
démica, ocupa bibliotecas. Contrariamente ao que acontece
com alguns dos seus pares maiores entre os «clássicos da
modernidade» da literatura de língua alemã (Kafka, Thomas
Mann, Brecht, Hesse, os Expressionistas) , não houve, nos úl­
timos quarenta anos, qualquer tese sobre Musil nas universi­
dades portuguesas. A última, e uma das primeiras, foi a dis­
sertação de licenciatura de Yvette Centena, O Homem sem
Qualidades - Estudo sobre Robert Musil, que data de 1962! A pre­
sença de Musil - um autor bastante lido, em francês, nos anos
João Barrento

cinquenta e sessenta do século passado - na escrita dos au­


tores portugueses é escassa, e a crítica pouco dele se tem
ocupado, a não ser a jornalística, a pretexto da saída de algu­
ma tradução (a primeira, das novelas Grigia e Tonka a partir
do francês, data de 1966, a última foi a da conferência Da Es­
tupidez, saída em 1994) . Augusto Abelaira terá sido um dos
poucos «musilianos» entre os romancistas portugueses (e
também como cronista, nomeadamente na fase da sua página
«Escrever na água», no Jornal de Letras), Maria Gabriela Llansol
faz entrar Musil, como figura, na casa do seu Texto, João Bé­
nard da Costa e Eduardo Prado Coelho trazem com alguma
frequência o romancista austríaco ao espaço das suas cróni­
cas. E pouco mais. Por isso, Maria Antónia Amarante pôde
concluir, numa breve resenha sobre Musil em tradução portu­
guesa, que «a afirmação segundo a qual Musil seria em Portu­
gal um autor importante, bem conhecido e muito citado, só
pode ser pura provocação, ou pelo menos algo que exige uma
explicação mais cabal» (Amarante: 1988, 244) .
Mas há hoje um domínio onde, sem o esperar, encontro
uma presença disseminada, epidérmica, como é próprio do
suporte, mas insistente, de Musil e dos seus textos. Uma breve
deambulação pelo universo virtual leva-me a constatar que
Musil vive e pulsa afinal... na Internet. Para além dos muitos
blogues e sítios (pessoais e institucionais) em que os seus textos
são citados e transcritos (sobretudo O Homem sem Qualidades),
descubro opiniões e comentários que, na sua ingenuidade e
superficialidade, são reveladores. O artigo de Bragança de
Miranda a que já me referi (e que encontrei no blogue do au­
tor, Reflexos de Azul Metálico) aparece transcrito em dois outros
lugares. Musil é obj ecto de uma reflexão alargada de Mendo
Castro Henriques (que lhe chama, hélas, «um romancista
alemão») ; o blogue Livros com Letras destaca o facto de

24
Introdução

Eduardo Prado Coelho ter declarado, numa entrevista, que o


«livro da sua vida» era O Homem sem Qualidades; uma mestran­
da da Faculdade de Letras de Lisboa divulga na Net um traba­
lho (para um Seminário de Miguel Tamen) sobre o ensaísmo
em Musil («Fazer sentido na "zona intermédia": Musil e o en­
saísmo») ; uma comentadora sueca do Nobel Saramago, Norra
Vasterbotten, compara-o - anedoticamente - a Musil por «es­
crever frases longas» e por isso ser «um virtuoso da língua».
E no Bloco das Musas dou com um comentário a este blogue,
assinado «m.» e datado de 3 de Janeiro de 2004, em que se diz
sobre o romance maior de Musil: «Um livro sem tops de ano»,
e sobre o autor: «Releio Musil como se o descobrisse de cada
vez. Pena não haver mais traduções por cá ... »
Haverá. A edição que começa a sair com este volume
incluirá toda a obra narrativa e ensaística de Musil, incluindo
esparsos, fragmentos e materiais do espólio, e ainda o essen­
cial dos Diários. De fora ficam apenas a correspondência e o
teatro (apenas um prólogo e duas peças, uma das quais, Os Vi­
sionários, j á tem tradução portuguesa, de Ludwig Scheidl) .
Trata-se de uma edição que, apesar de ser quase completa,
não pretende, como se disse, ser «comemorativa» (ainda que,
por razões de puro acaso, vá coincidir com os quarenta anos
da Editora que a acolheu) , mas dar a este tempo português
um Musil em corpo inteiro (como, aliás, o próprio gostaria
que tivesse acontecido no seu tempo) , sem qualquer sentido
comemorativo nem nostalgias de tempos perdidos. Musil não
foi outro Proust precisamente porque aquilo que o move não
é a recuperação nostálgica de tempos perdidos, mas a cons­
trução de um «romance do presente» (e do futuro) , embora
com materiais de um passado ainda próximo e sempre actual
(«a história repete-se», diz o título da segunda parte do Livro I
de O Homem sem Qualidades). Proust oferece a Swann, pela
João Barrento

pechincha de uma madeleine, o mundo mais ou menos intacto


da lembrança, numa entrega anestesiante que se vai tornando
perversa; Musil liberta o seu anti-herói para espaços do irrea­
lizado em que se perfilam formas de actuação humana e de
vida de um futuro utópico, mas possível.
Nesse futuro coube também a fama póstuma de Robert
Musil, um caso gritante daquela categoria de escritores que
ele inscreve no tipo dos «famosos, mas desconhecidos». Um
fragmento dos Diários sobre a «Fama» (que, diz-se, seria «O tí­
tulo de um livrinho que p o deria ter como subcap ítulos
'O grande escritor' e 'O homem do circo'»: TB I, 766) é objecto
de três glosas ligeiramente diferentes, todas elas espelho da
desilusão do autor com o mundo literário do seu tempo (e de
uma indisfarçada invej a em relação a «grandes escritores»
como Thomas Mann, que Musil via como «fenómeno de so­
ciedade» e «representante», mas não necessariamente como
«inovador») . A última dessas versões diz: «Há dois tipos de
pessoas célebres, radicalmente diferentes: as que conhecemos
e as que devíamos conhecer. A fama de umas resulta de predi­
lecções naturais, a das outras das exigências da cultura. Um
desses tipos de fama é-nos oferecido nos cafés, o outro só se
consegue com receita na farmácia. O ideal de que um dia
ambos se possam encontrar está a uma distância infinita» (TB II,
1211) . A segunda variante acrescentava ainda: «Ü facto de hoje
se confundirem as duas coisas é sinal de uma perda do con­
ceito de cultura». Descontadas as transformações entretanto
sofridas pelo «conceito de cultura», a frase aplica-se com
redobrada justeza à situação actual e ao lugar de Musil nela.
Neste contexto, ele continuaria a inserir-se no segundo tipo,
o do «escritor» sem mais (e sem as famigeradas «qualidades»
dos grandes autores) , encarnação de uma recusa da fama fácil
e de uma «negatividade sistemática» que fariam, e fazem, dele

26
Introdução

um escritor imprescindível e um homem inactual, o homem do


possível que se recusa a ser apenas o homem do provável ou o
escritor de um realismo resignado.
«Ü possível e o provável», escreve Jacques Bouveresse (Bou­
veresse: 1993, 273) , poderia ter sido o título filosófico de
O Homem sem Qualidades. E podia também assinalar as balizas
de uma vida e de uma obra como as de Robert Musil, uma
existência cheia de tensões e contradições, que se quis sem­
pre apagada (são irresistíveis, neste ponto, os paralelos com
Pessoa, com quem o homem Musil, no entanto, tem pouco ou
nada em comum) , sem qualidades dignas de registo que não
fossem as estritamente literárias, e cuja obra, algo caótica mas
coerente, desde o início, e ainda antes da publicação do pri­
meiro romance, o Torless, de 1906, parecem todas ser apenas
de experiências que preparam o grande romance-ensaio inaca­
bado (as primeiras anotações que com ele se relacionam datam
já de 1903) . Entre livros publicados, o infindável work in pro­
gress que foi O Homem sem Qualidades, os Diários e montanhas
de papéis do espólio (a sua auto-ironia, e também a necessi­
dade de lembrar que estava vivo e escrevia, levam-no a reunir
alguns deles, em 1935, com o título Espólio em Vida), Robert
Musil foi acumulando alguns dos mais significativos fragmen­
tos de literatura - nem sempre é pertinente uma categoria co­
mo a de «obra» para a sua Obra - cujos traços mais salientes
serão os da complexidade dos seus perfis anímicos (por exem­
plo nas muitas histórias de mulheres) e do rigor da observa­
ção, da análise e da reflexão - tudo isto vazado nos moldes
extravazantes de uma linguagem imagética, metafórica e re­
flectida em que, apesar do cepticismo e do niilismo reinantes,
ainda e sempre se acredita - porque, para Musil, o estilo é a
materialização do desenvolvimento rigoroso de um pensa­
mento, e a simbolicidade da linguagem o modo de conheci­
mento específico da literatura.

27
João Barrento

Num retrato-síntese, Karl Corino, autor da fotobiografia e


da última grande biografia, escreve: «Robert Musil era um ho­
mem com muitas qualidades. Para os homens (sobretudo
alguns confrades literários sobrevalorizados) , cortantemente
agressivo, para as mulheres, de uma amabilidade já quase de­
susada; sempre precisou de ajudas, mas respondia com ingra­
tidão; era certamente o mais culto autor do seu tempo, mas
dizia-se sempre ignorante. Treinou o corpo até ao fim com
uma disciplina militar, mas era um homem gravemente doen­
te aos quarenta e cinco anos. Era escritor e escrevia a contra­
gosto, embora com paixão. Homem de poucas falas, abria-se
subitamente em catadupas de ironia. Era um moralista, e pe­
sava-lhe na consciência a vida da companheira Hermine
Dietz. Defendia um modo cínico-experimental de estar na vi­
da, e vivia como um manga-de-alpaca. Estava convencido de
que o capitalismo e a burguesia não serviam, mas nunca se de­
cidiu sem reservas pelo campo dos seus adversários políticos.
Achava mais importante escrever um livro do que governar
um reino, e não conseguiu acabar a sua obra maior. Lamenta­
va-se da imperfeição da sua arte, mas estava convencido da
sua fama póstuma.» (Corino: 1988, 10)
A fama póstuma. Do «quarteto revolucionário» da prosa
das primeiras décadas do século xx - Proust, Joyce, Kafka,
Musil - só talvez Joyce (vizinho de exílio em Zurique, mas de
quem Musil nunca quis saber, também ele sempre mais citado
do que lido) o tenha superado em repercussão. Hermann
Broch ou Alfred Doblin, que publicaram quase simultanea­
mente com O Homem sem Qualidades dois romances maiores
do século - Os Sonâmbulos e Berlim, Alexanderplatz - , não alcan­
çaram o eco internacional de Musil, que afinal não gostava de
«monumentos» que não fossem os seus próprios livros. No Espó­
lio em Vida escreve (num texto de 1927, precisamente intitulado
Introdução

«Monumentos»: GW II, 506-508) que a função da generalida­


de dos monumentos não é tanto a de ser «a expressão de um
pensamento ou de um sentimento vivos», mas quase sempre a
de «suscitar uma recordação ou prender a atenção e dar aos
sentimentos um sentido devoto». Como quando se canoniza
alguém numa escrita segunda, como quando se quer levantar
um monumento a um grande autor na estreiteza de um
ensaio evocativo, ou mesmo no amplo espaço de uma grande
edição, em vez de dar uso prático - na leitura - ao seu corpo
vivo. Há uma passagem de O Homem sem Qualidades em que
Musil faz Ulrich dizer a Agathe - ironia das ironias, num pro­
tagonista de romance - que se suicidaria se a sua vida se
transformasse num livro. Mas foi e é o livro que os fez e faz
viver, a Musil e às figuras que criou. Elas estão aí de novo, nas
páginas desta edição que não quer ser monumento, mas tão
somente testemunho vivo e rigoroso de uma escrita e de um
universo mental.

29
&-0
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

Obras de R Musil

Der Mann ohne Eigenschaften (MoE) (O Homem sem Qualida­


des) , Ed. Adolf Frisé.
I: Erstes und Zweites Buch (Livros Primeiro e Segundo) ,
Reinbek, Rowohlt Taschenbuch Verlag, 1978.
II: Aus dem Nachlass (Do espólio) , Reinbek, Rowohlt Ta­
schenbuch Verlag, 1978.
Gesammelte Werke II ( GW II) : Prosa und Stücke. Kleine Prosa, Ap­
horismen. Autobiographisches. Essays und Reden. Kritik (Obras
Completas II: Prosa e Teatro. Prosa breve, aforismos. Es­
critos autobiográficos. Ensaios e Conferências. Crítica) ,
Ed. Adolf Frisé. Reinbek, Rowohlt Verlag, 2000 (ed. au­
mentada) .
Tagebücher (TB I, II) (Diários) , 2 vols. Ed. Adolf Frisé, Reinbek,
Rowohlt Verlag, 1983 (nova ed., revista e aumentada) .

Bibliografia crítica referida

AMARANTE,Maria Antónia, «Musil auf der Reise nach Portugal:


Begegnunge n u n d Zwi s c h e n stati o n e n » , in: Annette

31
João Barrento

Daigger / Gerti Militzer (eds.) , Die Übersetzung literarischer


Texte am Beispiel Robert Musil, Stuttgart, Hans-Dieter Heinz
Akademischer Verlag, 1988.
BAuR, Uwe, «A recepção de Robert Musil na Europa» (Confe­
rência, Instituto Alemão, Lisboa, 1981. Inédito) .
BERGHAHN, Wilfried, Robert Musil in Selbstzeugnissen und Bilddo­
kumenten. Reinbek, Rowohlt, 1963.
BERNSTEIN, Michael André, «Robert Musil: Precision and Soul»,
in: M.A.B., Five Portraits. Modernity and the Imagination in
20th-Century German Writing, Evanston, Ill., Northwestern
University Press, 2000.
BLANCHOT, Maurice, «Musil», in: M.B., O Livro por Vir. Lisboa,
Relógio d' Água, 1984, pp. 145-160.
BõscHENSTEIN, Bernhard / Marie-Louise Roth (eds.) , Hommage
à Musil. Genfer Kolloquium zum 50. Todestag von Robert Musil,
Berna etc., Peter Lang, 1995.
BoUVERESSE, Jacques, L'homme probable. Robert Musil, le hasard, la
moyenne et l'escargot de l'histoire, Combas, É ditions de
l' É clat, 1993.
CoRINO, Karl, Robert Musil. Leben und Werk in Bildern und Texten,
Reinbek, Rowohlt Verlag, 1988.
CoRINO, Karl, Robert Musil. Eine Biographie, Reinbek, Rowohlt,
2004.
CORREIA, Renato, «Ü Homem sem Qualidades. Robert Musil em
português», Cadernos de Literatura 11, Abril 1982.
DE ANGELIS, Enrico, Robert Musil. Biografia e profilo critico, Tori­
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KRAFT, Herbert, Musil. Viena, Paul Zsolnay, 2003.
LLANSOL, Maria Gabriela, «Ü Espaço Edénico», Versão integral
da entrevista a João Mendes (publicada com o título
«Ü espaço Llansol» no Público («Leituras») de 28 de Janei­
ro de 1995) , in: M.G.L., Na Casa de Julho e Agosto, 2.ª edição,
Lisboa, Relógio d'Água, 2003, pp. 139-168.

32
Introdução

MEHIGAN, Tim, Robert Musil, Stuttgart, Reclam, 2ooi.


MIRANDA, José A. Bragança de, «Musil: De um outro movimen­
to das paixões» (2003) [http://pwp.netcabo.pt/jbmiranda/
jbm-musil.htm].
ScHEIDL, Ludwig, «Robert Musil (1880-1942) », in: Histórias com
Tempo e Lugar. Prosa de Autores Austríacos (1900-1938), Mem
Martins, Publicações Europa-América, 1978, pp. 278-282.
ScHEIDL, Ludwig, «Robert Musil. O escritor e o seu tempo»,
prefácio a Os Visionários, Coimbra, Minerva, 1989, pp. 15-
-37.

33
Robert Musil escreveu parte deste romance, a sua obra de estreia, já
durante o período de assistente livre no Instituto Superior Técnico de
Estugarda (Outubro de 1902 a Outubro de 1903). O começo do traba­
lho iniciou-se, segundo o autor, em 1902, e o romance estaria concluí­
do em 1905, ano em que Musil o terá enviado a três editoras, que aca­
baram por não publicar a obra, identificada pelo autor como «um
romance anómalo» e «O livro de um escritor ainda desconhecido».
A primeira edição sairá em 1906, na editora vienense Wiener Verlag, e
posteriormente nas editoras Georg Müller (1911), S. Fischer (1914)
e Rowohlt (1931). Esta última edição, que serve de base à tradução por­
tuguesa, foi ainda revista e corrigida em várias passagens por Musil.

AS PERTURBAÇÕES DO PUPILO TÕRLESS
Assim que dizemos qualquer coisa, degradamo-la estranhamente. Julgamos ter
descido às profandezas dos abismos, e quando voltamos de novo à superfície a
gota de água na pálida ponta dos nossos dedos já não se parece com o mar de
onde proveio. Imaginamos ter descoberto um esconderijo com tesouros maravi­
lhosos, e quando regressamos à luz do dia vemos que só trouxemos pedras falsas
e pedaços de vidro; e, apesar disso, o tesouro continua a refulgir no escuro,
inalterado.
Maeterlinck

UMA PEQUENA nho-de-ferro


estação no troço da linha de cami­
que leva à Rússia.
Quatro carris paralelos corriam a direito e a perder de vis­
ta em ambos os sentidos, entre o cascalho amarelado do leito
da via; ao lado de cada um, como uma sombra suja, o risco es­
curo marcado no chão pela saída do vapor.
Por trás do edifício da estação, baixo e pintado a óleo,
uma estrada larga, em mau estado, conduzia à rampa de aces­
so à gare. As bermas perdiam-se no chão pisado e só eram
reconhecíveis pelos dois renques de acácias que, tristes e de
folhas sequiosas, estranguladas pelo pó e pela fuligem, deli­
mitavam a estrada de ambos os lados.
Fosse do efeito destas cores tristes, fosse da luz pálida e
esmaecida do sol da tarde a que a névoa dava um aspecto can­
sado, pegava-se às coisas e às pessoas algo de indiferente, de
morto e de mecânico, como se tivessem saído do palco de um
teatro de marionetas. De tempos a tempos, e a intervalos
regulares, o chefe da estação saía do seu gabinete, olhava com
o mesmo movimento de cabeça ao longo da linha para as casas
dos guarda-linhas, ainda sem sinais da aproximação do com­
boio rápido, que tinha sofrido um grande atraso na fronteira.
Robert Musil

Com idêntico movimento do braço, sacava então do relógio


de algibeira, abanava a cabeça e voltava a desaparecer, como
aquelas figuras que entram e saem dos antigos relógios de
torre ao bater de cada hora.
Na faixa de terreno larga, entre a linha e o edifício, passea­
va-se um grupo divertido de gente nova, caminhando à es­
querda e à direita de um casal de meia-idade que constituía o
centro da conversa, bastante ruidosa. Mas também a boa dis­
posição do grupo não era autêntica; o ruído dos risos alegres
parecia silenciar-se logo aos primeiros passos, como que des­
cendo à terra por acção de uma resistência insistente e invisí­
vel.
Frau Torless, a esposa do conselheiro - era ela a mulher,
que aparentava ter uns quarenta anos -, escondia atrás do véu
opaco uns olhos tristes, um pouco avermelhados de chorar.
Era a hora da despedida. E era difícil para ela voltar a deixar o
filho único por tanto tempo entre gente estranha, sem poder
vigiar e proteger o seu rapaz.
Esta pequena localidade ficava, de facto, bastante longe
da cidade residencial, nas províncias do leste do império, no
meio de terras agrícolas pouco povoadas e secas.
A razão por que Frau Torless teve de aceitar a ida do filho
para terras tão longínquas e inóspitas foi o facto de nessa pe­
quena cidade existir um internato de grande reputação, que
fora mantido nesse lugar distante desde o século anterior,
altura em que tinha sido construído no lugar de um antigo se­
minário, certamente para proteger a juventude em crescimen­
to das influências perniciosas da grande cidade.
Aí recebiam a sua formação os filhos das melhores famí­
lias do país, para, depois de saírem dessa instituição, entra­
rem para a universidade ou encetarem uma carreira no servi­
ço militar ou na administração. E em todos estes casos, mas

40
As Perturbações do Pupilo Tõrless

também para efeitos de relacionamento nos círculos da me­


lhor sociedade, o ter frequentado o internato de W. era tido
por excelente recomendação.
Fora essa a razão pela qual o casal Torless decidira, quatro
anos antes, corresponder à insistente ambição do rapazinho e
fazer todos os possíveis para conseguir a sua admissão nesta
escola.
Esta decisão custara-lhes, mais tarde, muitas lágrimas. Pra­
ticamente a partir do momento em que o portão da escola se
fechou irrevogavelmente atrás de si, o pequeno Torless come­
çou a sofrer de terríveis e intensas saudades de casa. Nem as
aulas, nem os jogos nos grandes relvados do parque, nem as ou­
tras diversões que a escola oferecia aos seus pupilos conse­
guiam atraí-lo; quase não tomava parte nelas. Via tudo como
que através de um véu, e era-lhe difícil, mesmo durante o dia,
reprimir os soluços obstinados; e à noite adormecia sempre
em choro.
Escrevia cartas para casa, quase diariamente, e a sua vida
estava toda nessas cartas; tudo o resto lhe pareciam ser ape­
nas acontecimentos sombrios e sem significado, etapas indi­
ferentes, como as das horas num mostrador de relógio. Mas
quando escrevia, sentia em si qualquer coisa de diferente, de
exclusivo. Do mar das sensações insípidas que o envolvia em
indiferença no dia-a-dia, nascia nele qualquer coisa como
uma ilha cheia de sóis e cores maravilhosas. E quando, no de­
correr do dia, nos jogos ou nas aulas, se lembrava de que à
noite iria escrever a sua carta, era como se tivesse uma chave
de ouro escondida e presa a uma corrente invisível, com a
qual, quando ninguém o visse, abriria o portão de jardins de
maravilha.
O mais estranho em tudo isto é que esta dedicação súbita
e absorvente aos pais tinha para ele próprio qualquer coisa de

41
Robert Musil

novo e surpreendente. Não a tinha previsto antes, tinha vindo


com gosto e de livre vontade para esta escola, tinha até rido
quando a mãe, na primeira despedida, não conteve as lágri­
mas; e só mais tarde, dias depois de ficar sozinho e se sentir
relativamente bem, aquilo surgiu nele subitamente e com
uma força elementar.
Tomou a coisa por saudades de casa, desejo de ver os pais.
Mas, na verdade, tratava-se de algo de muito mais indefinido
e híbrido. O «objecto dessa saudade», a imagem dos pais, já
não fazia parte disso. Penso num tipo de lembrança muito
particular de uma pessoa amada, lembrança plástica, não ape­
nas derivada da memória, mas física, que fala a todos os senti­
dos e que todos os sentidos guardam, de tal modo que não
somos capazes de fazer nada sem sentir o outro ao nosso
lado, silencioso e invisível. Este tipo de lembrança esvaiu-se
depressa, como uma ressonância que só ficara a vibrar durante
um instante. Nessa altura, por exemplo, de tanto dizer, quase
sempre para consigo, «queridos, queridos pais», Tõrless não
conseguia evocar a sua imagem. Quando tentava fazê-lo, o
que aparecia em seu lugar era a dor sem limites cuja nostalgia
o disciplinava e acabava também por o prender, porque as
suas chamas ardentes eram, ao mesmo tempo, causa de dor e
de fascínio. A recordação dos pais tornou-se-lhe cada vez mais
uma causa meramente circunstancial que gerava nele aquele
sofrimento egoísta que o envolvia no seu orgulho voluptuoso
como na solidão de uma capela na qual cem velas acesas e
cem olhos de imagens de santos espalhassem incenso por
entre as dores dos que a si mesmos se flagelavam ...
Quando, mais tarde, as «saudades de casa» se tornaram
menos veementes e pouco a pouco foram desaparecendo, es­
te seu modo de ser revelou-se também de forma bastante cla­
ra. O seu desaparecimento não trouxe consigo uma satisfação

42
As Perturbações do Pupilo Torless

finalmente esperada, mas deixou um vazio na alma do jovem


Torless. E foi esse nada, esse lugar não preenchido em si que
o fez compreender que não se tratara de simples saudades
que agora morriam, mas de qualquer coisa de positivo, uma
força anímica que nascera e crescera nele a pretexto da dor.
Mas agora isso tinha passado, e esta fonte de uma primei­
ra felicidade superior tinha-se feito sentir nele apenas pelo
facto de ter secado.
Por esta altura voltaram a perder-se nas suas cartas os ves­
tígios entusiásticos da alma a despertar, e em seu lugar havia
agora descrições pormenorizadas da vida no internato e dos
novos amigos.
Ele próprio se sentia empobrecido e nu, como uma arvo­
rezinha que, depois de uma floração ainda sem fruto, vive o
seu primeiro Inverno.
Os pais, porém, estavam satisfeitos. Amavam-no com uma
ternura forte, instintiva, animal. De cada vez que ele ia de fé­
rias da escola, a senhora conselheira sentia a casa de novo va­
zia e morta quando ele partia, e dias depois de cada uma des­
sas visitas ainda ela andava pela casa de lágrimas nos olhos,
tocando e acariciando aqui e ali um objecto sobre o qual te­
riam pousado os olhos do rapazinho ou que os seus dedos
teriam tocado. E ambos se teriam sacrificado até ao fim por ele.
A comoção ingénua e a tristeza funda e obstinada das car­
tas dele ocupavam-na de forma dolorosa e punham-na num
estado de grande tensão nervosa; a ligeireza alegre e contente
que se seguia voltava a alegrá-la também a ela, e na convicção
de que isso significava a superação de uma crise, ambos o
apoiavam em tudo o que podiam.
Mas nem numa coisa nem noutra reconheciam os sinto­
mas de uma determinada evolução anímica, antes tomando
a dor e a tranquilidade por uma consequência natural da

43
Robert Musil

situação em que o filho se encontrava. Escapava-lhes que tudo


isso era a primeira experiência, fracassada, de uma pessoa jo­
vem entregue a si própria, no caminho da consolidação das
suas forças interiores.

Torless sentia-se agora muito insatisfeito, e tacteava aqui e


ali em busca de algo de novo que lhe pudesse servir de apoio.

Um episódio desta época revelou-se característico daquilo


que nessa altura começava a nascer em Torless, e que iria ter
desenvolvimentos posteriores.
Aconteceu que um dia chegou ao internato o jovem prín­
cipe H., descendente de uma das mais influentes, antigas e
conservadoras famílias aristocráticas do império.
Todos os outros acharam que os seus olhos doces eram
inexpressivos e afectados; o modo como, quando estava de pé,
projectava uma das ancas e, ao falar, brincava lentamente com
os dedos, foi por todos ridicularizado como tique feminino.
Mas o que suscitou mais troça foi o facto de não terem sido os
pais a trazê-lo ao internato, mas sim o seu preceptor, um
doctor theologiae e monge regular.
Torless, porém, sentiu uma forte impressão desde o pri­
meiro momento. Talvez para isso tivesse contribuído a cir­
cunstância de se tratar de um príncipe admitido na corte; de
qualquer modo, era outro tipo de pessoa que acabava de co­
nhecer.
Parecia trazer ainda consigo o silêncio de um antigo caste­
lo da aristocracia rural e de rituais devotos. O seu andar era
feito de movimentos suaves e macios, com aquele gesto tími­
do de quem se retrai e se torna esguio, próprio do hábito de
andar direito através de salões vazios onde qualquer outro

44
As Perturbações do Pupilo Tõrless

dificilmente esbarra com as esquinas invisíveis do espaço de­


simpedido.
A relação com o príncipe tornou-se, assim, fonte de um
delicado prazer psicológico para Torless. Com ele, iniciou-se
naquele tipo de conhecimento humano que ensina a reconhe­
cer e a gostar de outra pessoa, e a adivinhar a sua personalida­
de intelectual pelo tom da voz, pela maneira como ele pega
num objecto e mesmo pelo timbre do seu silêncio e pela ex­
pressão da postura de corpo com que se integra num espaço,
em suma, pelo modo ágil, dificilmente apreensível, e afinal
próprio e pleno, de ser uma realidade psíquica e humana con­
centrada à volta do essencial, do que nela é apreensível e des­
critível, como se de um esqueleto se tratasse.
Torless viveu durante esse breve período de tempo como
num idílio. Não se chocou com a religiosidade do novo ami­
go, que para ele, que vinha de uma casa burguesa e liberal, era
de facto qualquer coisa de estranho. Aceitou-a antes sem qual­
quer reserva, e a seus olhos ela constituía mesmo uma vanta­
gem muito especial do príncipe, pois potenciava a essência
deste ser, que ele achava totalmente diferente da sua, mas tam­
bém absolutamente incomparável.
Na companhia deste príncipe sentia-se como numa capela
num desvio do caminho, de tal modo a ideia de que esse
mundo não era o seu se dissipava completamente perante o
prazer de ver uma vez a luz do dia através das janelas de uma
igreja e de deixar os olhos passear-se pelos ornatos dourados
e inúteis acumulados na alma desta criatura, até receber desta
uma imagem imprecisa, como se, sem poder pensar em nada,
fosse desenhando com o dedo um arabesco belo mas entrela­
çado segundo princípios que lhe eram estranhos.
Um dia, porém, deu-se a súbita rotura entre os dois.
Por causa de um incidente estúpido, como Torless acabou
por reconhecer depois.

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Robert Musil

Os dois tinham acabado por se envolver mesmo numa dis­


cussão sobre questões de religião. E nesse momento o que
tinha de acontecer aconteceu. De facto, como se Torless a
não pudesse controlar, a razão que em si habita caiu, descon­
trolada, sobre o delicado príncipe. Cobriu-o com o seu sarcas­
mo de ser de razão, destruiu barbaramente o edifício de fili­
grana que albergava a sua alma, e separaram-se zangados um
com o outro.
Desde esse dia não tinham voltado a trocar uma palavra.
Torless estava vagamente consciente de ter feito uma coisa
absurda, e uma intuição pouco clara, mais da esfera dos senti­
mentos, dizia-lhe que a seca medida da razão tinha destruído
na altura errada alguma coisa preciosa e encantadora. Mas fo­
ra um impulso qu e estava totalmente fora do seu controle.
Nele restaria para sempre uma espécie de nostalgia do que
acontecera, mas tinha a sensação de ter sido apanhado por
outra corrente, que o afastava cada vez mais desta.
Passado algum tempo, o príncipe saíu do internato, onde
nunca se sentira bem.
Fez-se um vazio e um tédio em volta de Torless. Mas,
entretanto, tinha crescido, e o amadurecimento sexual come­
çava a manifestar-se nele, de forma obscura e progressiva.
Nesta fase do seu crescimento travou algumas novas amiza­
des, mais consentâneas com a situação, e que mais tarde te­
riam grande importância para ele: com Beineberg e Reiting,
com Moté e Hofmeier, precisamente aqueles rapazes com
quem hoje acompanhara os pais à estação.
Curiosamente, estes eram os piores entre os da sua idade,
naturalmente talentosos e de boas famílias, mas por vezes de
uma rebeldia e indisciplina que roçava a brutalidade. O facto
de serem estas companhias as que agora atraíam Torless de­
via-se certamente à sua própria insegurança, que se tinha
As Perturbações do Pupilo Torless

agravado desde que se afastara do príncipe. Era mesmo a con­


tinuação directa desse afastamento, pois, tal como este, era
expressão de um receio de sentimentos demasiado subtis, de
que a maneira de ser dos outros companheiros, saudável, for­
te e prática, se destacava claramente.
Torless entregou-se inteiramente à sua influência, já que o
seu espírito se encontrava mais ou menos na seguinte situa­
ção: na sua idade lia-se no liceu Goethe, Schiller, Shakespea­
re, talvez mesmo os modernos. Coisas que, meio digeridas,
voltam a sair pela ponta dos dedos em forma de escrita. Sur­
gem então tragédias romanas ou poemas sentimentais que se
estendem por páginas e páginas de uma pontuação semelhan­
te a um delicado trabalho de renda: coisas em si ridículas, mas
de valor inestimável para um desenvolvimento seguro. Na ver­
dade, essas associações vindas de fora, essas emoções tomadas
de empréstimo, ajudam os jovens a caminhar sobre o terreno
anímico, perigosamente amolecido, destes anos em que te­
mos de acreditar em nós, mas em que estamos ainda demasia­
do imaturos para sermos de facto alguém com importância.
Não importa que alguns guardem mais tarde vestígios disso e
outros não; nessa altura, cada um terá de encontrar o seu ca­
minho, e o perigo está apenas nestas idades de transição. Se
nessa fase pudéssemos fazer ver a um jovem como ele é ridí­
culo, o chão abrir-se-ia debaixo dos seus pés e ele cairia como
um sonâmbulo subitamente despertado, não vendo mais que
o vazio à sua frente.
Esta ilusão, este truque que ajuda a crescer, faltava naque­
le internato. É claro que os clássicos faziam parte da bibliote­
ca, mas eram tidos por leitura aborrecida, e de resto só havia
novelas sentimentais e histórias militares de duvidoso humor.
O pequeno Torless, com a sua sede de leitura, tinha lido
tudo isso, e algumas ideias de uma sensibilidade banal, vindas

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Robert Musil

de uma ou outra novela, permaneciam ainda algum tempo no


seu espírito mas sem exercerem uma verdadeira influência
sobre a sua personalidade.
Nessa época, aliás, parecia que ele não tinha qualquer per­
sonalidade.
Sob a influência destas leituras, escrevia, por exemplo,
uma pequena história de vez em quando, ou começava a redi­
gir uma epopeia romântica. Excitado com os sofrimentos
amorosos dos seus heróis, ruborizavam-se-lhe as faces, o pul­
so acelerava e os olhos brilhavam.
Mas logo que largava a caneta, tudo acabava; podia dizer­
-se que o seu espírito só vivia com as emoções. Por isso, era
capaz de escrever um poema ou um conto em qualquer altura,
sempre que lho pedissem. Excitava-se com isso, mas acabava
por nunca levar a coisa demasiado a sério, e não dava grande
importância a esta actividade. Nada passava dela para a sua
pessoa, nem ela emanava da sua pessoa. Limitava-se a ter
emoções que, sob uma certa pressão externa, iam um pouco
além da indiferença, como um actor precisa do estímulo de
um papel para representar.
Eram reacções do cérebro. Mas aquilo a que chamamos
carácter ou alma, o perfil ou o timbre de um ser humano,
aquilo que torna os pensamentos, as decisões e as acções pou­
co marcantes, casuais ou contingentes, aquilo que, por exem­
plo, tinha levado Tõrless a aproximar-se do príncipe, para lá
de qualquer juízo racional, aquele pano de fundo último e
imóvel - tudo isso se tinha perdido em Tõrless nessa época.
Para os seus colegas, esse pano de fundo era o gosto do
desporto, qualquer coisa de animalesco, que os levava a nem
sentir essa necessidade, do mesmo modo que a relação com a
literatura se encarrega disso no liceu.
Tõrless, porém, tinha demasiados interesses espirituais
As Perturbações do Pupilo Torless

para se deixar ir por um desses caminhos, e ao outro opunha


aquela percepção aguda do ridículo de sentimentos não
autênticos que a vida no internato impõe, obrigando a uma
permanente disponibilidade para discussões e brigas. Assim, a
sua personalidade adquiriu qualquer coisa de indefinido, um
desamparo interior que não lhe permitia encontrar-se.
Ligou-se aos novos amigos porque a rebeldia deles o im­
pressionava. Como era ambicioso, tentava até de vez em
quando superá-los, embora ficasse sempre a meio caminho e
tivesse por isso de contar com a troça dos outros. E isso volta­
va a intimidá-lo. Toda a sua vida, neste período crítico, con­
sistia apenas nestes esforços renovados de imitar os amigos
rudes e mais viris, e numa indiferença profundamente arrei­
gada em relação a esses esforços.
Quando os pais agora o vinham visitar, ele ficava calado e
tímido sempre que ficavam sozinhos. Arranjava desculpas vá­
rias para se furtar às carícias da mãe, embora a sua vontade
fosse a de se entregar a elas. Mas envergonhava-se, como se os
olhos dos colegas estivessem postos nele.
Os pais tomavam isso por falta de à-vontade, própria des­
tes anos de crescimento.
Depois, à tarde, vinha o bando todo, no meio de grande
alarido. Jogavam às cartas, comiam, bebiam, contavam histó­
rias cómicas sobre os professores e fumavam os cigarros que o
conselheiro trouxera da capital.
Esta alegria animava e tranquilizava o casal.
O que eles não sabiam era que Torless vivia também horas
diferentes, nos últimos tempos cada vez com maior frequên­
cia. Tinha momentos em que a vida no internato lhe era total­
mente indiferente. Nesses momentos esboroava-se a argamas­
sa das suas preocupações diárias, e as horas da sua existência
desagregavam-se, perdiam o nexo interior.

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Robert Musil

Ficava muitas vezes sentado, mergulhado em sombrias


reflexões, como que debruçado sobre si próprio.

Também desta vez a visita fora de dois dias. Tinham comi­


do, fumado, feito um passeio de carruagem, e agora chegara a
hora de o comboio rápido levar o casal de volta à cidade.
Um leve rumor nos carris anunciava a sua aproximação, e
a sineta no telhado da estação deu sinal, inexorável, aos ouvi­
dos da esposa do conselheiro.
- Então, meu caro Beineberg, não se esqueça de tomar
conta do meu rapaz! - disse o conselheiro Torless para o jo­
vem barão Beineberg, um rapaz alto e ossudo, de orelhas mui­
to saídas, mas olhos expressivos e inteligentes.
O pequeno Torless fez uma expressão de mau humor ao
ouvir a sugestão de tutela, e Beineberg pôs um sorriso lison­
jeado e um pouco malicioso.
- Aliás - continuou o conselheiro, agora para todos os ou­
tros -, gostaria de pedir a todos que me avisem, caso aconteça
alguma coisa ao meu filho.
O que levou o jovem Torless a retorquir, visivelmente
aborrecido: - Mas, papá, o que é que me pode acontecer?! -,
embora já estivesse habituado a este excesso de preocupações
dos pais consigo em cada despedida.
Os outros, entretanto, bateram os calcanhares, muito direi­
tos, puxando os espadins para o lado, e o conselheiro acrescen­
tou ainda:
- Nunca se sabe o que pode acontecer, e o saber que pos­
so ser imediatamente avisado por todos deixa-me muito mais
tranquilo. Afinal, podias também ficar impossibilitado de nos
escrever.
O comboio entrou na estação. O conselheiro Torless abra­
çou o filho, a senhora von Torless apertou o véu contra o

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As Perturbações do Pupilo Tõrless

rosto para esconder as lágrimas, os amigos agradeceram um a


um, e o condutor fechou a porta da carruagem.
O casal viu ainda a fachada das traseiras do internato, alta e
nua, o muro espesso e longo que envolvia o parque, e por fim, à
esquerda e à direita, já só campos castanho-acinzentados e
algumas árvores de fruto isoladas.

Os rapazes tinham, entretanto, deixado a estação e se­


guiam, em duas filas, pelas duas bermas da estrada - fugindo
assim, pelo menos, ao pó mais espesso e insistente - em
direcção à cidade, sem falarem muito uns com os outros.
Passava das cinco horas, e sobre os campos descia um
manto grave e frio, como um prenúncio da noite.
Torless ia ficando muito triste.
Talvez fosse devido à partida dos pais, ou então à melan­
colia ensimesmada e sombria que agora se fazia sentir sobre
toda a natureza em volta, esbatendo as formas dos objectos,
mesmo a poucos passos, com as suas cores pesadas e parda­
centas.
A mesma monotonia, imensa, que pairara já durante a tar­
de sobre todos os lugares vinha agora rastejando pela planí­
cie, e atrás dela, como um rasto viscoso, o nevoeiro pegava-se
às terras lavradas e aos campos de beterraba, cinzentos e pe­
sados.
Torless não olhava nem à esquerda nem à direita, mas
sentia tudo isso. Passo a passo, pisava as pegadas que o rapaz
da frente abria na poeira - era assim que sentia aquilo, como
se tivesse de ser deste modo, como uma pesada inevitabilida­
de que cercava toda a sua vida e a confinava àquele movimen­
to, passo a passo, àquela linha, àquela faixa estreita que atra­
vessava o pó.
Quando pararam num cruzamento onde um segundo
Robert Musil

caminho se encontrava com o seu, num terreno circular mui­


to pisado, e uma placa de orientação, meio podre e torta,
apontava para o ar, essa linha, em clara contradição com a
paisagem, pareceu a Torless um grito de desespero.
Continuaram a andar. Torless pensava nos pais, em alguns
conhecidos, na vida. Era a hora em que as pessoas se vestiam
para algum encontro, ou resolviam ir ao teatro. E a seguir vai­
-se a um restaurante, ouve-se uma banda, fica-se um pouco
num café. Conhece-se gente interessante. Uma aventura amo­
rosa deixa no ar expectativas até ao amanhecer. A vida gira co­
mo uma roda mágica de onde saem sempre coisas novas e
inesperadas ...
Torless suspirava, absorto nestes pensamentos, e a cada
passo que o levava a aproximar-se do internato e da sua estrei­
teza, qualquer coisa se apertava sempre mais dentro dele.
Já ouvia o toque da sineta. Nada lhe incutia mais temor do
que esse sinal que determinava irreversivelmente o fim do dia,
como um brutal corte de faca.
Vivências, não as tinha propriamente, a sua vida arrastava­
-se numa monotonia sempre igual, mas aquela sineta acres­
centava ainda a isso o toque do sarcasmo, e fazia-o tremer de
irritação, impotente consigo próprio, o seu destino, mais um
dia que acabava de enterrar.
Agora, acabaram-se as experiências, durante doze horas
não terás qualquer experiência, durante doze horas estarás
morto... - era este o sentido daquele toque da sineta.

Quando o grupo dos rapazes chegou às primeiras casas


baixas, quase cabanas, este estado de vaga melancolia dissi­
pou-se em Torless. Como que tomado de um interesse súbito,
levantou a cabeça e olhou atentamente para o interior som­
brio das casas pequenas e sujas por onde passavam.

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As Perturbações do Pupilo Torless

À porta, quase sempre mulheres, de bata, blusas grossei­


ras, pés largos e sujos, braços morenos e nus.
Se eram jovens e firmes, mimoseavam-nas com algumas
piadas em língua eslava. Elas acotovelavam-se e soltavam risa­
dinhas, cochichando sobre os «jovens senhores»; por vezes,
uma ou outra gritava, quando um rapaz lhe roçava com mais
força pelos seios, ou respondia com um insulto e uma risada a
uma palmada nas coxas. Muitas limitavam-se a seguir com um
olhar grave e zangado o grupo apressado; e o camponês, quan­
do por acaso se lhes juntava, sorria embaraçado, meio inseguro,
meio benevolente.
Tõrless não participava nestes arroubos atrevidos, preco­
cemente viris, dos seus amigos.
Isso devia-se em parte a uma certa timidez em coisas do
sexo, como acontece a quase todos os filhos únicos; mas
sobretudo à natureza particular da sua sensualidade, mais
escondida, intensa e obscura que a dos seus amigos, e mani­
festando-se com maior dificuldade.
Enquanto os outros se comportavam despudoradamente
com as mulheres, talvez mais para se mostrarem «atiradiços»
do que por desejo, a alma do pequeno Tõrless, mais calado,
agitava-se e era fustigada por um despudor autêntico.
Espreitava com olhos tão ardentes pelas janelas pequenas
e pelas portas estreitas e irregulares para dentro das casas,
que sentia constantemente como que uma fina rede a dançar
à sua frente.
Crianças quase nuas rebolavam-se no esterco dos pátios,
aqui e ali a saia de uma mulher deixava ver a curva interior do
joelho, ou um peito pesado, apertado, parecia querer sair das
pregas do tecido de linho. E como se tudo isto se desenrolas­
se numa atmosfera diferente, animalesca e opressiva, da
entrada das casas vinha um ar lascivo e pesado que Tõrless as­
pirava avidamente.

53
Robert Musil

Pensava em pinturas antigas que tinha visto nos museus,


sem as entender bem. Esperava por qualquer coisa que nunca
acontecia, como diante daqueles quadros. Esperava por quê ... ?
... Por qualquer coisa de surpreendente, nunca visto; por uma
visão monstruosa, de que não podia ter a menor ideia; por
qualquer coisa de uma sensualidade terrível e animalesca, que
lhe deitasse as garras e o dilacerasse a partir dos olhos; por
uma experiência que, de uma forma ainda muito imprecisa, se
relacionasse ... com as batas sujas das mulheres, as suas mãos
rudes, a miséria das suas casas, com ... com a sujidade do ester­
co dos pátios ... Não ... não; agora sentia apenas a rede de fogo
diante dos olhos; as palavras não chegavam para o dizer; aquilo
não devia ser tão mau como as palavras o fazem; é qualquer
coisa de mudo - um nó na garganta, um pensamento quase im­
perceptível, que só se manifestaria assim se o quiséssemos ex­
primir em palavras; mas nessa altura a semelhança já é muito
longínqua, como numa gigantesca ampliação onde não só se
vê tudo mais nítido, como também se distinguem coisas que
não estão lá ... Fosse como fosse, sentia-se envergonhado.

- O menino está com saudades de casa? - perguntou de


repente, trocista, um rapaz alto e dois anos mais velho, von
Reiting, que tinha reparado no silêncio e nos olhos melancó­
licos de Torless. Este devolveu-lhe um sorriso forçado e tími­
do, e teve a impressão de que o maldoso do Reiting tinha
estado a espiar o que se passava no seu íntimo.
Não respondeu. Tinham entretanto chegado à praça da
igreja da cidadezinha, quadrada e de calçada antiga, e aqui se
separaram.
Torless e Beineberg não queriam voltar ainda para o inter­
nato, e os outros, sem licença para ficarem fora mais tempo,
regressaram a casa.

54
As Perturbações do Pupilo Tõrless

Entraram os dois na confeitaria.


Sentaram-se a uma mesa pequena, de tampo redondo,
junto de uma janela que dava para o jardim, sob um candela­
bro a gás com as luzes a fazer uma zoada baixa atrás dos glo­
bos de vidro leitoso.
Instalaram-se confortavelmente, iam bebendo diversas
aguardentes e licores, fumando, comendo bolos e saboreando
o prazer de serem os únicos fregueses. Quando muito, só nas
salas de trás haveria ainda outro cliente solitário, com o seu
copo de vinho; na parte da frente estava tudo tranquilo, e até
a dona da confeitaria, gorda e já entrada nos anos, parecia
dormir atrás do balcão.
Tõrless olhava vagamente pela janela para o jardim vazio,
onde já ia anoitecendo.
Beineberg falava. Da Í ndia. Como de costume. O pai, que
era general, prestara aí serviço no exército britânico, ainda
jovem oficial. E não se limitara, como a maior parte dos euro­
peus, a trazer de lá esculturas, tecidos e pequenos ídolos
fabricados em série; sentira e guardara também em si alguma
coisa do misterioso, bizarro e já crepuscular budismo esotéri­
co. E passara ao filho, desde a infància, aquilo que aprendera
e mais tarde ainda fora lendo sobre a matéria.
Era, aliás, um caso singular no que às leituras se refere.
Era oficial de cavalaria e não apreciava livros. Desprezava
igualmente romances e filosofia. Quando lia, não queria ser
obrigado a reflectir sobre opiniões e polémicas, mas sim, logo
ao abrir o livro, entrar, como por uma porta secreta, no âma­
go de conhecimentos específicos. Tinham de ser livros cuja
simples posse fosse já uma espécie de sinal iniciático de uma
ordem e garantia de revelações sobrenaturais. E só encontrava
isso nos livros da filosofia indiana, que para ele não pareciam

55
Robert Musil

ser apenas livros, mas revelações, coisas reais - chaves de mis­


térios, como os livros de alquimia e magia da Idade Média.
Este homem sadio e activo, que cumpria rigorosamente os
seus deveres e para além disso montava quase diariamente os
seus três cavalos, isolava-se com esses livros, quase sempre ao
cair da noite.
Escolhia então uma página ao acaso e pensava se seria
nesse dia que o seu mais secreto sentido se lhe iria revelar.
E nunca ficava decepcionado, ainda que muitas vezes tivesse
de reconhecer que não passara do propileu do templo sagra­
do.
Assim, pairava à volta deste homem enérgico, queimado
do sol e do ar livre, qualquer coisa como um mistério solene.
A sua convicção de que a cada dia se encontrava nas vésperas
de uma revelação grandiosa e retumbante dava-lhe uma secre­
ta superioridade. Os seus olhos não eram sonhadores, mas
tranquilos e duros. A sua expressão tinha sido formada pelo
hábito de ler livros em que nenhuma palavra podia ser retira­
da do seu lugar sem alterar o sentido oculto, pela ponderação
prudente e atenta de cada frase em busca de sentidos e
duplos sentidos.
Só de tempos a tempos os seus pensamentos se perdiam
num crepúsculo de agradável melancolia - por exemplo,
quando pensava no culto secreto ligado aos originais dos tex­
tos que tinha à sua frente, nos milagres que a partir deles
tinham acontecido e emocionado milhares de seres humanos
que agora, devido à grande distância que os separava dele, lhe
pareciam seus irmãos, ao passo que as pessoas à sua volta, que
ele via em todo o pormenor, lhe pareciam desprezíveis. Nes­
ses momentos ficava desalentado. Desencorajava-o a ideia de
que a sua vida estava condenada a decorrer longe das fontes
das forças sagradas, os seus esforços condenados a fracassar
devido às circunstâncias desfavoráveis. Mas quando ficava

56
As Perturbações do Pupilo Torless

algum tempo, pensativo, diante dos seus livros, nascia nele


um estado de espírito singular. A melancolia não perdia a sua
gravidade; pelo contrário, a tristeza até aumentava, mas já não
o oprimia. Sentia-se mais do que nunca abandonado e num
posto perdido, mas nessa nostalgia havia um prazer subtil, o
orgulho de fazer algo de invulgar, de servir uma divindade in­
compreendida. E então podia acontecer que, num relance,
passasse pelos seus olhos um brilho que lembrava o desvario
do êxtase religioso.

Beineberg estava cansado de tanto falar. Continuava a vi­


ver nele a imagem daquele estranho pai, como uma espécie
de ampliação distorcida. Mantivera todos os seus traços; mas
aquilo que num tinha sido originalmente apenas um capricho,
conservado e potenciado pelo seu carácter de exclusividade,
tinha chegado nele à dimensão de uma esperança fantasiosa.
Aquela particularidade do pai, que para este, no fundo, talvez
significassse apenas um certo e derradeiro refúgio da indivi­
dualidade que cada um - nem que seja só pelo vestuário que
usa - tem de ter para se distinguir dos outros, tornara-se nele
na firme crença de que poderia exercer o seu poder sobre os
outros por meio de forças espirituais invulgares.
Torless conhecia por demais estas conversas, que passa­
vam por ele sem quase deixar marca.
Tinha desviado os olhos da janela e pôs-se a observar Bei­
neberg, que enrolava um cigarro. E voltou a sentir aquela
estranha repulsa contra ele, que de tempos a tempos o assal­
tava. Aquelas mãos esguias e escuras que agora enrolavam ha­
bilmente o tabaco na mortalha eram, de facto, belas. Dedos
magros, unhas ovais e agradavelmente arqueadas: havia nelas
uma certa distinção. E também nos olhos castanho-escuro.
E a mesma distinção na magreza de todo o corpo. É certo que

57
Robert Musil

as orelhas eram demasiado espetadas, o rosto pequeno e irre­


gular, e a impressão geral da cabeça lembrava um morcego.
Apesar disso - Tõrless sentia-o claramente enquanto ia com­
parando estes pormenores -, não eram os traços mais feios
que o inquietavam de forma tão estranha, mas precisamente
os mais distintos.
A magreza do corpo - o próprio Beineberg costumava
referir como modelo as pernas firmes e esguias dos atletas ho­
méricos - de modo nenhum exercia sobre ele um efeito como
aquele. Tõrless nunca pensara muito nisso até aí, e agora não
lhe ocorria nenhuma comparação satisfatória. Gostaria de
olhar de frente para Beineberg, mas este daria logo por isso e
ele teria de encetar uma conversa qualquer. Mas assim, en­
quanto o ia olhando de lado e completando o resto da ima­
gem na sua própria imaginação, apercebeu-se da diferença.
Ao imaginar aquele corpo sem roupa, era-lhe impossível vê-lo
à luz de uma elegância serena; pelo contrário, vinham-lhe
imagens de movimentos inquietos e contorcidos, membros
tortos e espinha curvada, como nas representações dos martí­
rios ou nos espectáculos grotescos dos artistas de feira.
E as mãos, que poderia ter retido perfeitamente na ima­
gem de um qualquer gesto harmonioso, imaginava-as apenas
em movimentos nervosos dos dedos. Era precisamente nelas,
afinal a parte mais bela de Beineberg, que se concentrava
mais a sua aversão. Tinham qualquer coisa de indecente. Era
isso, esta era a comparação certa. E havia também uma certa
indecência na impressão de movimentos desengonçados que
o corpo dava. De certo modo, isso parecia concentrar-se nas
mãos e irradiar delas como o pressentimento de um contacto
que enojava Tõrless e o deixava em pele de galinha. Ele pró­
prio se espantou e assustou com a ideia que lhe veio. Já era a
segunda vez naquele dia que alguma coisa que tinha a ver com

58
As Perturbações do Pupilo Torless

o sexo lhe atravessava os pensamentos, de modo inesperado e


desconexo.
Beineberg foi buscar um jornal, e Tõrless podia agora ob­
servá-lo melhor.
De facto, não havia nele praticamente nada que pudesse
justificar minimamente a súbita associação de ideias que tive­
ra.
E no entanto, apesar de infundado, o mal-estar crescia.
Ainda não tinham passado dez minutos de silêncio entre os
dois, e já Tõrless sentia que a sua repulsa chegara ao máximo.
E nisso manifestava-se pela primeira vez um estado de espíri­
to e uma relação decisiva entre ele e Beineberg, uma descon­
fiança, que sempre existira e estivera à espreita, parecia-lhe
emergir subitamente da sensação consciente que experimen­
tava naquele momento.
A situação entre os dois tornava-se cada vez mais tensa.
Tõrless sentia necessidade de explodir em insultos para os
quais não tinha palavras. Inquietava-o uma espécie de vergo­
nha, como se entre ele e Beineberg se tivesse de facto passado
alguma coisa. Os dedos começaram a tamborilar na mesa, em
desassossego.

Finalmente, para se libertar deste estranho estado de es­


pírito, voltou a olhar pela janela.
Beineberg levantou os olhos do jornal; depois, leu uma
notícia qualquer, pôs o jornal de lado e bocejou.
O fim do silêncio quebrou também a tensão em que Tõr­
less se encontrava. Palavras de circunstância ocuparam total­
mente este instante, anulando-o; um súbito compasso de es­
pera, a que se seguiu a velha indiferença ...
- Quanto tempo temos ainda? - perguntou Tõrless.
- Duas horas e meia.

59
Robert Musil

Depois levantou os ombros, num arrepio de frio. Voltou a


sentir a força paralisante da opressão que aí vinha. O horário
escolar, o convívio diário com os amigos. Nem sequer haverá
aquela aversão a Beineberg, que, por alguns instantes, pare­
ceu criar uma nova situação.
- ... O que é o jantar hoje?
- Não sei.
- Que matérias temos para amanhã?
- Matemática.
- Ah? E há trabalhos de casa?
- Há, uns problemas novos de trigonometria; mas vais re-
solvê-los sem problemas, não é nada de especial.
- E que mais?
- Religião.
- Religião? Pois, vai ser lindo outra vez... Quando estou
nos meus dias, tenho a certeza de que sou capaz de demons­
trar que é tão certo haver um Deus como dois vezes dois se­
rem cmco...
Beineberg olhou para Torless, trocista.
- Tu és mesmo engraçado nessas coisas. Parece que te
divertes com isso, pelo menos ficas com um brilhozinho de
entusiasmo nos olhos ...
- E por que não? Não é bonito? Há sempre um determina­
do ponto em que já não se sabe se aquilo que inventámos é
mais verdadeiro do que nós próprios.
- Como assim?
- Bom, não quero dizer literalmente. Sabemos muito bem
que fantasiamos; apesar disso, há coisas que de repente nos
parecem tão plausíveis que de certo modo paramos, apanha­
dos nos nossos próprios pensamentos.
- Sim, mas o que é que te diverte tanto nisso?
- A coisa em si. Passa-nos pela cabeça um sobressalto,
uma vertigem, um susto ...

60
As Perturbações do Pupilo Tõrless

- Ora, isso são tudo brincadeiras.


- Eu não disse o contrário. Mas de todas as matérias é o
que acho mais interessante.
- Há quem goste dessa ginástica mental; mas não leva a
lado nenhum.
- Pois não - disse Tõrless, e voltou a olhar para o jardim.
Ouvia atrás de si, longe, a zoada dos candeeiros a gás. Deixou­
-se ir atrás de uma sensação de melancolia que subia por ele
como nevoeiro.
- Não leva a lado nenhum. Tens razão. Mas não podemos
dizer isso a nós próprios. De tudo aquilo que fazemos o dia
inteiro na escola, o que é que faz algum sentido? De que nos
serve? Quero dizer: de que nos serve a nós próprios, percebes?
Chegamos à noite e sabemos que vivemos mais um dia, que
aprendemos isto e aquilo, cumprimos o horário, mas conti­
nuamos vazios - por dentro, entendes? Ficamos, como direi,
com uma fome toda de dentro ...
Beineberg murmurou qualquer coisa que tinha a ver com
exercitar-se, preparar-se mentalmente ... ainda não estar pron­
to ... mais tarde ...
- Preparar-se? Exercitar-se? E para quê? É s capaz de me
dar um exemplo concreto? Tu talvez esperes chegar a algum
lugar, mas também não tens certezas sobre nada. Para mim é
isto: uma eterna espera por qualquer coisa de que não sabes
mais nada a não ser que tens de esperar ... Que tédio!
- Tédio . . . - ecoou Beineberg, lentamente, abanando a
cabeça.
Torless continuava a olhar para o jardim. Julgava ouvir o
restolhar das folhas secas que o vento juntava. E depois veio
aquele momento de silêncio mais intenso que precede sem­
pre a escuridão total.
- Escuta, Beineberg - disse Torless sem se voltar.
Robert Musil

- Quando começa a anoitecer há sempre uns momentos


muito particulares. De cada vez que observo isto vem-me a
mesma lembrança. Ainda era muito pequeno e andava a brin­
car na floresta a esta hora. A criada tinha-se afastado; eu não
sabia, pensava que ela ainda estava perto de mim. De repente,
alguma coisa me obrigou a levantar a cabeça, e percebi que
estava só. Subitamente, tudo ficou silencioso. E ao olhar à mi­
nha volta foi como se as árvores formassem um círculo, em si­
lêncio, e me olhassem. Comecei a chorar; sentia-me tão aban­
donado pelos adultos, entregue àquelas grandes criaturas sem
vida ... Que será isto? Voltei a ter muitas vezes a mesma sensa­
ção, este silêncio súbito que é como uma língua que não ouvi­
mos ...
- Não sei do que estás a falar. Mas por que é que as coisas
não haviam de ter a sua linguagem? Afinal, nem sequer pode­
mos afirmar com segurança que elas não têm alma!
Torless não respondeu. O ponto de vista especulativo de
Beineberg não lhe agradava.
Mas este voltou à carga passado pouco tempo:
- Por que é que continuas a olhar lá para fora? Que inte­
resse vês nisso?
- Continuo a pensar sobre o que poderá ser.
Na verdade, já estava a pensar noutra coisa, que, porém,
não queria confessar. Só conseguiu aguentar por um momen­
to a grande tensão, a atenção a um mistério grave e a respon­
sabilidade de se concentrar em relações ainda não definidas
da sua vida. Depois, voltou a apossar-se dele aquela sensação
de solidão e abandono que se seguia sempre a estas exigên­
cias excessivas. Pressentia que havia ali qualquer coisa ainda
muito difícil para ele, e os seus pensamentos refugiavam-se
numa outra coisa que era parte dessa sensação, mas de certo
modo só em pano de fundo, à espreita: a solidão.
As Perturbações do Pupilo Torless

Aqui e ali, uma folha dançava, vinda do jardim abandona­


do, contra a janela iluminada, traçando um risco claro na noi­
te atrás dele. Esta parecia recuar, retirar-se, para regressar ins­
tantes depois, imobilizando-se como uma parede diante da
janela. Era um mundo em si, aquela escuridão. Descera sobre
a terra como um bando de inimigos negros, deitando abaixo e
escorraçando as pessoas ou fazendo não se sabe o quê que
apagava todos os vestígios delas.
E Torless sentiu que isso o alegrava. Nesses momentos,
não gostava das pessoas, das crescidas e adultas. Nunca gosta­
va delas quando escurecia. Estava habituado a afastar as pes­
soas dos seus pensamentos nessas alturas. Depois, o mundo
parecia-lhe uma casa desabitada e sombria, e sentia um cala­
frio no peito, como se tivesse de procurar de sala em sala - sa­
las escuras, em que não se sabia o que podia sair dos seus can­
tos -, atravessar, tacte ando, soleiras de portas que mais
nenhum pé humano iria pisar depois dos seus, até que ... subi­
tamente, numa dessas salas, as portas se fechassem atrás dele
e à sua frente, e ele deparasse com a grande senhora das
legiões negras. Nesse momento fechar-se-iam também todas
as portas por onde tinha passado, e longe, diante dos muros,
postar-se-iam as sombras da noite como sentinelas, eunucos
vigilantes que mantinham as pessoas à distância.
Era esta a forma da sua solidão desde que o tinham deixa­
do sozinho na floresta, onde tanto chorou. Tinha para ele os
encantos de uma fêmea e de uma face desumana. Sentia-a
como se fosse uma mulher, mas o seu hálito oprimia-lhe o
peito, o seu rosto era a vertigem do esquecimento de todos os
rostos humanos e os movimentos das suas mãos calafrios que
lhe percorriam o corpo ...
Temia esta fantasia, pois tinha consciência do seu desre­
grado secretismo, e inquietava-o a ideia de que tais devaneios
Robert Musil

pudessem cada vez mais tomar conta dele. Mas eles assalta­
vam-no precisamente quando se julgava mais sensato e mais
liberto. Poderia dizer-se que se tratava de uma reacção a tais
momentos, em que adivinhava um saber de emoções que já se
anunciavam, embora ele fosse ainda muito novo para elas. No
desenvolvimento de toda a força moral de excelência existe
um tal ponto prematuro, em que ele enfraquece a alma, para
a qual poderá vir a ser um dia a mais ousada experiência -
assim como se as suas raízes tivessem primeiro de mergulhar
fundo, revolvendo o solo que depois irão consolidar. É por
isso que os jovens com grande futuro têm geralmente um pas­
sado cheio de humilhações.
A predilecção de Tõrless por determinados estados de
alma era o primeiro sinal de um desenvolvimento anímico que
mais tarde se revelou como talento da estupefacção. Mais tar­
de ainda, seria dominado por uma capacidade muito particu­
lar. Sentia-se muitas vezes forçado a relacionar-se com acon­
tecimentos, pessoas, coisas, até consigo próprio, como se em
tudo isso houvesse simultaneamente um enigma insolúvel e
uma afinidade inexplicável e não totalmente justificável. Tudo
lhe parecia compreensível como se fosse palpável, mas sem se
deixar traduzir por completo em palavras e pensamentos. En­
tre os acontecimentos e o seu eu, e mesmo entre os seus pró­
prios sentimentos e um qualquer eu mais íntimo que ansiava
por compreendê-los, havia sempre uma linha divisória que
recuava como um horizonte diante do seu anseio, quanto mais
ele dela se aproximava. Quanto mais rigorosamente apreen­
dia as sensações com os pensamentos, quanto mais familiares
elas se tornavam, tanto mais pareciam, ao mesmo tempo, ser­
-lhe estranhas e incompreensíveis; já nem parecia que elas lhe
fugiam, era como se ele próprio delas se afastasse sem poder
desfazer a ilusão de se estar a aproximar.
As Perturbações do Pupilo Tõrless

Este estranho e inacessível paradoxo haveria de ocupar


uma longa fase do seu desenvolvimento interior, e parecia
querer dilacerar-lhe a alma, ameaçando durante muito tempo
transformar-se no seu mais agudo problema.
Por enquanto, a dificuldade de tais lutas anunciava-se
apenas por um súbito e frequente cansaço que assustava Tõr­
less já de longe, logo que um estado de espírito mais dúbio -
como há pouco - lhe trazia um pressentimento disso. Nessas
alturas, sentia-se tão sem forças como um prisioneiro, um ser
desesperado, igualmente longe de si e dos outros; seria capaz
de gritar de vazio e desespero, . mas em vez disso afastava-se
desse ser grave e expectante, martirizado e cansado que trazia
em si, e, ainda assustado por essa súbita renúncia e já delicia­
do com o seu hálito quente e pecaminoso, ficava à escuta das
vozes sussurrantes que a solidão trazia até ele ...
De repente, Tõrless sugeriu que pagassem a conta. Os
olhos de Beineberg reluziram de compreensão; conhecia
aquele estado de espírito. A Tõrless repugnava-lhe o assenti­
mento do outro; a sua aversão a Beineberg despertou de
novo, sentia-se profanado por ter algo em comum com ele.
Mas isso já quase fazia parte da sua solidão. A ignomínia é
mais uma forma de solidão, mais uma parede escura.
E sem dizerem uma palavra meteram por um determinado
caminho.

Devia ter caído nos últimos minutos uma chuva leve - o ar


estava húmido e pesado, uma névoa com halos coloridos tre­
meluzia em volta dos candeeiros e os passeios mostravam
aqui e ali manchas brilhantes. Tõrless encostou ao corpo o
espadim que batia na calçada, mas só o ruído dos tacões lhe
provocava estranhos tremores.
Robert Musil

Passado algum tempo, o chão tornou-se macio; estavam a


afastar-se do centro da cidade e iam em direcção ao rio, por
ruas largas da aldeia.
A corrente arrastava-se, escura e indolente, deixando ouvir
sons gorgolejantes e fundos sob a ponte de madeira. Na pon­
te havia um único candeeiro, com vidros empoeirados e parti­
dos. O reflexo da luz instável, que se curvava ao sopro do ven­
to, caía de vez em quando sobre uma onda e desfazia-se na
sua crista. As vigas de madeira transversais cediam a cada pas­
so, rolando para diante e para trás ...
Beineberg parou. A margem do outro lado era densamen­
te arborizada, e, como a estrada fazia uma curva para a direita
e seguia ao longo do rio, as árvores formavam uma parede
escura, impenetrável e ameaçadora. Só ao fim de uma busca cui­
dadosa encontraram um caminho estreito e escondido que se­
guia a direito. Da vegetação baixa, densa e luxuriante, caía
uma chuva de gotas de cada vez que a roupa a roçava. Passado
algum tempo tiveram de parar de novo e acender um fósforo.
Estava tudo silencioso, nem o gorgolejar do rio já se ouvia.
Subitamente chegou até eles, de longe, um som indefinido,
interrompido. Parecia um grito, ou um aviso. Ou então o sim­
ples chamamento inarticulado de uma qualquer criatura que
podia sair a qualquer momento dos arbustos. Continuaram a
andar na direcção do som, pararam, continuaram a andar. De­
vem ter andado nisto um quarto de hora, quando, respirando
fundo, ouviram distintamente vozes altas e o som de uma
concertina.
As árvores estavam agora mais espaçadas, e após alguns
passos chegaram a uma clareira em cujo centro se erguia uma
construção quadrada, maciça, de dois andares.
Era o velho estabelecimento balnear, utilizado em tempos
pelos burgueses da pequena cidade e pelos camponeses das

66
As Perturbações do Pupilo Tõrless

redondezas para fins terapêuticos, e que há anos estava quase


vazio. Só o andar térreo abrigava ainda uma taberna de má
fama.
Os dois ficaram um instante calados, à escuta.
Torless avançava já com o pé para sair dos arbustos, quan­
do se ouviu o ranger de botas pesadas no soalho do vestíbulo
da casa e um bêbado saiu dela com passos inseguros. Atrás
dele, na sombra do vestíbulo, estava uma mulher, e ouvia-se a
sua voz, precipitada e encolerizada, sussurrando qualquer coi­
sa, como se fizesse alguma exigência. O homem ria e balança­
va, aguentando-se nas pernas. Depois, pareceu mais um pedi­
do o que se ouvia, mas também sem se entender o que a
mulher dizia. Sentia-se apenas um tom de voz mais adulador
e persuasivo. A mulher voltou a sair e pôs uma mão no ombro
do homem. A lua iluminava-a - a combinação, o casaco, o seu
sorriso suplicante. O homem olhou em frente, abanou a cabe­
ça e continuou com as mãos enterradas nos bolsos. Depois,
cuspiu e empurrou a mulher, que devia ter dito alguma coisa.
Agora já se percebia o que diziam, porque falavam mais alto:
- ... Com que então, não queres dar nada? Seu ...
- Põe-te a andar lá para cima, grande porca!
- O quê? Labrego desgraçado!
A resposta do bêbado, com movimentos pesados, foi pe­
gar numa pedra:
- Se não desapareces já, grande estúpida, parto-te os cor­
nos! - e levantou o braço para atirar a pedra. Torless ouviu a
mulher soltar mais um insulto e fugir pela escada acima.
O homem ficou ainda um instante parado, sem saber o
que fazer com a pedra. Riu, olhou para o céu, onde a Lua cor
de vinho e amarelada pairava entre nuvens negras; depois,
fixou o olhar na sebe de arbustos escuros, como se tencionas­
se dirigir-se para lá. Torless recolheu o pé, à cautela; sentia o
Robert Musil

coração a pulsar na garganta. Finalmente, o bêbado pareceu


cair em si. Largou a pedra que tinha na mão. Com uma risada
grosseira e triunfante, gritou para a janela uma indecência de
fazer corar um carroceiro e desapareceu por trás da casa.
Os dois continuavam imóveis.
- Reconheceste-a? - sussurrou Beineberg. - Era a Bozena.
Torless não respondeu; pôs-se à escuta, para se certificar
de que o bêbado não voltaria. Depois, Beineberg empurrou-o
para a frente. Com alguns saltos rápidos e cuidadosos, pas­
sando pelo cone de luz projectado pelas janelas do rés-do­
-chão, chegaram ao vestíbulo escuro. Uma escada de madeira,
curva e apertada, levava ao primeiro andar. Aí, alguém deve
ter ouvido os seus passos nos degraus que rangeram, ou talvez
um dos espadins tivesse batido na madeira - a porta que dava
para a taberna abriu-se e alguém veio ver quem andava pela
casa, enquanto a concertina de repente se calou e o ruído de
vozes se suspendeu por um instante, à espera.
Torless encostou-se, assustado, ao corrimão de uma curva
da escada. Mas, apesar da escuridão, devem ter dado por ele,
porque, enquanto a porta se fechava outra vez, ainda ouviu a
voz trocista da criada de mesa dizer qualquer coisa que provo­
cou uma galhofa geral.
No patamar da escada do andar de cima não se via nada.
Nem Torless nem Beineberg arriscavam dar mais um passo,
com medo de derrubar alguma coisa e voltar a fazer barulho.
Levados pela excitação, tacteavam, ansiosos, em busca da
maçaneta da porta.

Bozena era uma rapariga do campo que tinha ido para


a cidade trabalhar como criada, e mais tarde se tornou cama­
reira.
A princípio tudo lhe corria bem. O seu ar camponês, que

68
As Perturbações do Pupilo Torless

ela escondia tão pouco como o andar firme e balançado,


garantiram-lhe a confiança das patroas, que apreciavam a sim­
plicidade do seu cheiro a curral, e o amor dos patrões, que
viam nisso a atracção de um perfume. Possivelmente apenas
por capricho, talvez também por insatisfação e por um vago
desejo de paixão, deixou essa vida cómoda. Tornou-se criada
de mesa, adoeceu, arranjou lugar num bordel elegante, e aos
poucos, à medida que essa vida desregrada a ia desgastando,
foi sendo cada vez mais empurrada de novo para a província.
Acabou ali, onde já morava havia vários anos, não muito
longe da sua aldeia natal; de dia ajudava na taberna, e à noite
lia romances baratos, fumava e recebia de vez em quando a
visita de algum homem.
Não se tornara ainda realmente feia, mas o rosto perdera
visivelmente toda a graciosidade, e ela esforçava-se por fazer
ressaltar isso pelo modo como se comportava. Gostava de dei­
xar perceber que conhecia bem a elegância e a vida do mundo
aristocrático, mas que estava para lá de tudo isso. Comprazia­
-se em dizer que se estava nas tintas para essas coisas, para si
própria e para tudo. Apesar do desleixo a que chegara, gozava
de algum respeito entre os filhos dos camponeses dos arredo­
res. É certo que cuspiam quando falavam dela, e sentiam-se
na obrigação de serem mais brutos com ela do que com ou­
tras raparigas, mas lá no fundo tinham muito orgulho naquela
«criatura danada» que saíra do seu meio e conseguira conhe­
cer tão bem o mundo por dentro. Sozinhos e às escondidas, é
certo, eles não deixavam de vir conversar com ela. E isso dava
a Bozena um resto de orgulho e sentido para a sua vida. Mas
talvez a maior satisfação fosse aquela que lhe davam os jovens
senhores do internato. Com estes, exibia deliberadamente as
suas qualidades mais grosseiras e repugnantes, porque os
rapazinhos - como costumava dizer -, apesar disso, não dei­
xariam de vir procurá-la de rastos.
Robert Musil

Quando os dois amigos entraram, ela estava, como de cos­


tume, deitada na cama a fumar e a ler.
Ainda parado entre portas, Torless sorveu a sua imagem
com olhos ávidos.
- Meu Deus, que rapazinhos tão doces são estes? - excla­
mou, trocista, para os dois, examinando-os de alto a baixo
com desprezo. - E tu, barão? O que é que a mãezinha vai di­
zer? - Era uma entrada mesmo ao seu estilo.
- Cala-me essa ... - rosnou Beineberg, sentando-se ao lado
dela na cama. Torless sentou-se a uma certa distância; irrita­
va-o o facto de Bozena não lhe ligar e fazer que não o conhe­
cia.
As visitas a esta mulher eram nos últimos tempos a sua
única e secreta alegria. Quando se aproximava o fim da sema­
na ficava inquieto e mal podia esperar pelo domingo, quando,
à noite, se esgueirava para ir até ali. O que mais lhe ocupava
os pensamentos era precisamente o secretismo de tudo aqui­
lo. E se há pouco, por exemplo, o tipo bêbado tivesse tido a
ideia de ir atrás dele, só pelo gosto de pregar um susto ao
senhorzinho devasso? Não era cobarde, mas sabia que não se
poderia defender. O seu espadim parecia-lhe ridículo diante
daqueles punhos rudes. E depois, a vergonha e o castigo que
iria receber! Só lhe restaria fugir ou pedir misericórdia. Ou
deixar que Bozena o defendesse. A ideia causava-lhe arrepios.
Mas era isso! Só isso e mais nada! Era o medo, era a entrega
ao perigo que o atraía. Sair da sua posição privilegiada e des­
cer até às pessoas vulgares, descer mais fundo do que elas!
Não era devasso. Quando tudo passava, sobrepunha-se
sempre a repulsa pelo que tinha feito e o medo das conse­
quências. Era só a sua fantasia que seguia um caminho doen­
tio. Quando os dias da semana, como chumbo, começavam a
pesar sobre a sua vida um após outro, aqueles impulsos

70
As Perturbações do Pupilo Téirless

corrosivos começavam a atraí-lo. As lembranças daquelas visi­


tas configuravam-se numa estranha forma de tentação. Bozena
aparecia-lhe como uma criatura de uma baixeza monstruosa,
e a sua relação com ela, as sensações por que passava, eram
um ritual cruel de auto-sacrifício. Excitava-o a ideia de deixar
para trás todo aquele mundo em que vivia encerrado, a sua
posição privilegiada, os pensamentos e sentimentos que lhe
impunham, tudo aquilo que não lhe dava nada e o oprimia.
Excitava-o a ideia de fugir para junto daquela mulher numa
corrida louca, nu, despojado de tudo.
Nada que não se passasse com todos os outros rapazes. Se
Bozena fosse pura e bela e se nessa altura ele fosse capaz de
amar, talvez a tivesse mordido, para elevar a sua volúpia e a
dela até ao limite da dor. Pois a primeira paixão adolescente
não é amor por uma pessoa, mas ódio a todas as outras. Sen­
tir-se incompreendido e não compreender o mundo não são
coisas que acompanhem a primeira paixão, são, e isso não
acontece por acaso, a sua única causa. E ela própria é uma
fuga na qual o estar a dois mais não é do que uma solidão
duplicada.
Quase todas as primeiras paixões duram pouco e deixam
um travo amargo. São um erro, uma desilusão. Quando tudo
passa não nos compreendemos e não sabemos a que atribuir a
culpa. Isso acontece porque neste drama as pessoas quase
sempre se encontram por acaso: são companheiros casuais
numa fuga. Quando tudo acalma, não se reconhecem. Apon­
tam contrastes um ao outro, porque já não dão pelo que têm
em comum.
O caso de Torless era diferente por ele estar sozinho.
A prostituta, mais velha e aviltada, não conseguia despertar
tudo o que havia nele. Mas era mulher, e o bastante para, de
certo modo, trazer prematuramente à superfície partes do seu

71
Robert Musil

íntimo que, como sementes a germinar, esperavam ainda pelo


momento da fecundação.
E surgiam então as suas estranhas fantasias e as tentações
imaginadas. Mas por vezes era igualmente tentado a atirar-se
ao chão e a gritar de desespero.

Bozena continuava a não dar atenção a Torless. Parecia fa­


zê-lo por maldade, só para o irritar. De repente, interrompeu
a conversa:
- Dêem-me dinheiro, para eu ir buscar chá e aguardente.
Torless deu-lhe uma das moedas de prata que a mãe lhe
tinha deixado à tarde.
Ela foi buscar ao parapeito da janela um fogareiro amolga­
do e acendeu-o; depois desceu a escada devagar, arrastando
os pés.
Beineberg deu uma cotovelada a Torless:
- Por que é que és tão acanhado? Ela vai pensar que estás
com medo.
- Não me metas nisso - pediu Torless. - Não estou com
disposição. Conversa tu com ela. Mas por que é que ela está
sempre a falar da tua mãe?
- Desde que sabe o meu nome, afirma que serviu uma vez
em casa de uma tia minha e conheceu a minha mãe. Em parte
parece ser verdade, mas por outro lado ela mente de certeza,
só para se divertir, embora eu não perceba por que se diverte
ela tanto com isto.
Torless corou; tivera uma ideia curiosa. Mas Bozena vol­
tou com a aguardente e sentou-se de novo na cama ao lado de
Beineberg. E retomou logo a conversa anterior:
- Pois é, a tua mãezinha era uma bela rapariga. Tu não te
pareces nada com ela, com essas orelhas de abano. E também
era muito divertida. Com certeza que tinha muitos atrás dela.
Mas fez bem.

72
As Perturbações do Pupilo Torless

Depois de uma pausa, pareceu ter-se lembrado de um epi­


sódio divertido:
- O teu tio, o oficial dos dragões, lembras-te? Acho que se
chamava Karl, era um primo da tua mãe, e na altura chegou a
fazer-lhe a corte! Mas aos domingos, quando as senhoras iam
à igreja, era atrás de mim que ele vinha. Tinha de lhe levar
coisas ao quarto a toda a hora. Lá bem parecido era ele, ainda
me lembro, mas não tinha vergonha nenhuma ... - sublinhou
estas palavras com uma risada que não enganava. Depois
alongou-se sobre o assunto, que obviamente a divertia muito.
Falava num tom vulgar, e dava a cada palavra uma expressão
que parecia querer conspurcar cada uma delas. - Quero dizer,
a tua mãe também tinha um fraquinho por ele. Se ela imagi­
nasse! Acho que a tua tia me tinha posto a mim e a ele fora de
casa. As damas finas são assim, ainda mais quando não têm
homem. Querida Bozena isto, querida Bozena aquilo - era as­
sim o dia todo. Mas quando a cozinheira ficou de esperanças,
havias de as ouvir! Acho que elas pensavam que nós só lava­
mos os pés uma vez ao ano. À cozinheira não diziam nada,
mas eu bem as ouvia quando servia na sala e elas falavam do
caso. A tua mãe fazia uma cara como se só quisesse beber
água-de-colónia. E afinal, passado pouco tempo, a tua tia
tinha também uma barriga que subia até ao nariz ...
Enquanto Bozena ia falando, Torless sentia-se impotente,
incapaz de reagir às suas alusões ordinárias.
Via diante de si tudo o que ela estava a descrever. A mãe
de Beineberg tornou-se a sua própria mãe. Lembrava-se das
salas claras da casa dos pais. Dos rostos finos, limpos, inaces­
síveis que lá em casa, em certos jantares, lhe incutiam um te­
mor respeitoso. Das mãos distintas, frias, que nem a comer
pareciam esquecer a sua condição. Veio-lhe à memória um
sem número destes pormenores, e envergonhou-se de estar

73
Robert Musil

ali num quarto pequeno e malcheiroso, respondendo a tre­


mer às palavras humilhantes de uma prostituta. A evocação
das maneiras perfeitas daquela sociedade que nunca esquecia
a etiqueta tinha sobre ele um efeito mais forte do que quais­
quer considerações de ordem moral. Achou ridículas as pai­
xões obscuras que o agitavam. Viu, com uma nitidez visioná­
ria, o gesto frio, de rejeição, o sorriso chocado com que o
afastariam, como se fosse um animalzinho sujo. Apesar disso,
continuou sentado, como que amarrado à cadeira.
A cada pormenor que recordava crescia nele, com a vergo­
nha, também uma cadeia de pensamentos feios. Tinha come­
çado quando Beineberg comentara a conversa de Bozena e
Torless corou.
Na altura, não conseguiu deixar de pensar na sua própria
mãe, e agora esse pensamento não lhe dava tréguas. Tinha-lhe
passado vertiginosamente pela cabeça, no limite da consciên­
cia - como um raio, ou indistinto e longínquo, à margem,
como qu e visto apenas em voo, qualquer coisa a que mal se
podia chamar um pensamento. E logo se seguiu uma série de
perguntas que iriam encobri-lo: «Ü que é que toma possível
que esta Bozena aproxime da minha a sua existência tão bai­
xa? Que se aproxime dela no espaço estreito de um pensa­
mento? Por que razão não se curva ela e toca o chão com a
testa quando fala da minha mãe? Por que é que não fica claro,
como um abismo, que não há entre elas nada em comum? Co­
mo se passam estas coisas? Esta mulher é para mim um nove­
lo de todos os desejos sexuais, e a minha mãe uma criatura
que até agora atravessou a minha vida como um céu sem nu­
vens, claro e sem abismos, como um astro para lá de qualquer
desejo . . . »
Mas todas estas perguntas não eram o cerne do problema.
Mal o afloravam. Eram qualquer coisa de secundário; qualquer

74
As Perturbações do Pupilo Torless

coisa de que Torless só posteriormente se lembrou. Só se


multiplicaram porque nenhuma delas chamava à coisa pelo
seu nome. Eram apenas fugas, rodeios para ocultar o facto de
que, subconscientemente, de forma súbita e instintiva, se ti­
nha estabelecido uma ligação anímica que já respondera, no
pior sentido, a essas perguntas antes mesmo de elas terem
surgido. Torless saciava-se olhando Bozena, e ao mesmo tem­
po não conseguia esquecer a mãe; através dele, estabelecia-se
entre ambas uma conexão. Tudo o resto era apenas uma luta
para resistir a este cruzamento de ideias. Este era o único fac­
to real. Mas, dada a impossibilidade de se livrar dessa pressão,
tal facto tinha ganhado uma importância desmedida e indefi­
nida que, como um sorriso pérfido, acompanhava todos os
seus esforços.
Torless olhou à sua volta no quarto para se libertar de
tudo isto. Mas tudo se tinha já orientado num único sentido.
O pequeno fogão de ferro com manchas de ferrugem na tampa,
a cama com as colunas desconjuntadas e a armação pintada,
com a tinta a descascar, a roupa da cama a mostrar a sujidade
através dos buracos do lençol já gasto; Bozena, com a camisa a
escorregar de um dos ombros e a combinação de um verme­
lho gritante, o seu riso alarve e descarado; e por fim Beine­
berg, cujo comportamento, em comparação com o habitual,
parecia o de um padre devasso que, enlouquecido, misturasse
palavras dúbias com as fórmulas sérias de uma oração ... Tudo
isso se orientava no mesmo sentido, se abatia sobre ele, obri­
gando violentamente os seus pensamentos a voltarem ao mes­
mo.
Num lugar apenas o seu olhar, que fugia assustado de uns
objectos para outros, encontrou paz. Por cima da pequena
cortina, por onde as nuvens espreitavam e se via a Lua, imó­
vel.

75
Robert Musil

Foi como se saísse naquele momento para o ar fresco e


calmo da noite. Por um momento, os seus pensamentos apa­
ziguaram-se. Depois, veio-lhe uma lembrança agradável. A ca­
sa de campo onde tinham passado o último Verão. As noites
no parque silencioso. Um firmamento cintilante de estrelas,
negro aveludado. A voz da mãe do fundo do jardim, onde pas­
seava com o pai nos caminhos de saibro vagamente reluzen­
tes. Canções que a mãe entoava a meia voz. Mas cá estava ...
sentiu um calafrio pelo corpo todo ... , cá estava outra vez aque­
la comparação dolorosa. O que teriam os dois sentido nessa
altura? Amor? Não, este pensamento ocorria-lhe agora pela
primeira vez. Aliás, era uma coisa completamente diferente.
Nada para pessoas grandes e adultas, muito menos para os
seus pais. Sentar-se à noite à janela aberta e sentir-se abando­
nado, sentir-se diferente dos grandes, incompreendido por
todos os risos e olhares trocistas, não poder explicar a nin­
guém o que já sabia ser e ansiar por alguém que o compreen­
desse ... isso é que é o amor! Mas para isso temos de ser jovens
e solitários. Com os pais devia ser diferente; qualquer coisa de
mais tranquilo, mais sereno. Era apenas a mãe a cantar à noite
no jardim escuro, porque estava feliz ...
Mas isso era precisamente o que Torless não entendia. Os
planos pacientes que, imperceptivelmente, encadeiam os dias
dos adultos em meses e anos eram qualquer coisa que ele ·ain­
da não conhecia. E depois aquela apatia que já nem sequer se
interrogava quando mais um dia chegava ao fim. A sua vida
estava orientada para cada dia. E cada noite significava para
ele um nada, um túmulo, um apagamento. Ainda não tinha
aprendido a deitar-se para morrer ao fim de cada dia sem
pensar msso.
Por isso sempre pensara que por detrás de tudo isso have­
ria alguma coisa que lhe escondiam. As noites, via-as como
As Perturbações do Pupilo Ti:irless

escuros portões que davam acesso a prazeres misteriosos que


desconhecia, de tal modo que a vida continuava a ser para ele
vazia e infeliz.
Lembrava-se de ter observado numa dessas noites um
estranho riso da mãe, e como ela, brincando, apertara mais
fortemente o braço do marido. Parecia não haver dúvidas.
Também no mundo daqueles dois, intocáveis e tranquilos, te­
ria de haver uma porta que dava para outro. E agora que sabia
disso, só conseguia pensar nessas coisas com aquele sorriso
contra cuja desconfiança maliciosa em vão tentara defender-
-se ...
Entretanto, Bozena continuava a contar as suas histórias.
Torless ouvia, meio distraído. Falava de um rapaz que vinha
também quase todos os domingos ...
- Não me lembro do nome dele. Deve ser da tua idade.
- Reiting?
- Não.
- E como é ele?
- Mais ou menos da altura daquele ali. - Bozena apontou
para Torless. - Mas tem a cabeça um pouco grande de mais.
- Ah, o Basini!
- É isso, foi o nome que ele disse. É muito esquisito. E tão
distinto, só bebe vinho. E parvo também é. Gasta um dinhei­
rão, e não faz nada senão contar-me histórias. Gaba-se dos
amores que tem lá na terra de onde vem. Não sei de que
adianta isso. Dá para ver que é a primeira vez que está com
uma rapariga. Tu também ainda és menino, mas és atrevido;
mas ele é desajeitado e tem medo, por isso é que fica para aí a
contar-me histórias de como um homem sensual - foi assim
mesmo que ele disse - lida com as mulheres. Diz que as mu­
lheres não merecem mais. Mas como é que vocês podem
saber destas coisas?
Beineberg respondeu com um sorriso trocista.

77
Robert Musil

- Pois, ri-te - disse Bozena, divertida. - Uma vez pergun­


tei-lhe se não se envergonhava diante da mãe. «Mãe ... mãe?»,
disse ele. «Mas o que é isso de mãe? Isso aqui não existe. Dei­
xei-a em casa, quando vim ter contigo ... » Pois, pois, espeta
essas orelhas de abano. É assim que vocês são, filhinhos da
mamã, gente fina. Quase sinto pena das vossas mães.
Ao ouvir estas palavras, Torless voltou à ideia que antes
fizera de si próprio. Como deitara tudo para trás das costas,
traindo a imagem dos pais. E agora era forçado a reconhecer
que com isso nem sequer estava a fazer nada que o deixasse
terrivelmente só, apenas qualquer coisa de muito banal. Sen­
tiu vergonha. Mas também os pensamentos de há pouco vol­
taram. Mas eles também o fazem! Também eles te traem! São
os parceiros secretos deste jogo! Talvez com eles seja diferen­
te, mas uma coisa é certamente igual: um prazer secreto, terrí­
vel. Qualquer coisa em que nos podemos afogar com todo o
nosso medo da monotonia dos dias ... Talvez eles até saibam
mais ... ?! Qualquer coisa de invulgar? Porque durante o dia pa­
recem tão apaziguados ... E aquele riso da mãe? Era como se
fosse fechar todas as portas, num passo calmo e seguro ...
No meio deste conflito houve um momento em que Tür­
less, de coração apertado, se entregou àquela tempestade.
E precisamente nesse momento Bozena levantou-se e
aproximou-se dele.
- Por que é que o pequeno não diz nada? Está com pro­
blemas?
Beineberg sussurrou qualquer coisa e sorriu, malicioso.
- O quê? Tens saudades de casa? A mãezinha foi-se embo­
ra? E o menino mal comportado vem logo ter com uma des­
tas?
Bozena enterrou ternamente a mão, com os dedos aber­
tos, nos cabelos dele.
As Perturbações do Pupilo Torless

- Vá lá, não sejas parvo. Dá-me um beijo. As pessoas finas


também não são nenhuns torrõezinhos de açúcar. - E incli­
nou-lhe a cabeça para trás.
Torless quis dizer alguma coisa, ganhar coragem para res­
ponder com uma piada grosseira, sentia que agora o que era
preciso era dizer qualquer coisa indiferente e distante, mas
não conseguiu dizer nada. Fixou com um sorriso hirto o rosto
descomposto por cima do seu, aqueles olhos indefinidos, de­
pois o mundo à sua volta começou a ficar pequeno ... , a afas­
tar-se cada vez mais. Por um instante, viu a cara daquele cam­
ponês com a pedra na mão, parecia que troçava dele... Por
fim, ficou completamente só ...

- Acho que o apanhei - murmurou Reiting.


- Quem?
- O ladrão dos cacifos.
Torless acabara de regressar com Beineberg. Era pouco
antes do jantar e o vigilante de serviço já tinha saído. Entre as
mesas verdes tinham-se formado grupos à conversa, e um
sopro cálido de vida rumorejava pela sala.
Era uma sala de aula comum, de paredes caiadas de bran­
co, um grande crucifixo negro e os retratos do casal imperial
ao lado do quadro. Perto do grande fogão de ferro, ainda não
aceso, em parte no estrado, em parte sentados em cadeiras
viradas, estavam sentados os rapazes que nessa tarde tinham
acompanhado o casal Torless à estação. Para além de Reiting,
Hofmeier, muito alto, e Dschiusch, alcunha de um pequeno
conde polaco.
Torless sentia alguma curiosidade.
Os armários estavam ao fundo da sala e eram grandes cai­
xas com muitos cacifos que se podiam fechar à chave, e onde
os pupilos do internato guardavam as suas cartas, livros,
dinheiro e toda a espécie de quinquilharia.

79
Robert Musil

Havia muito tempo que alguns se queixavam de que lhes


faltavam pequenas somas de dinheiro, mas ninguém tinha
suspeitas concretas.
Beineberg foi o primeiro a afirmar com certeza que na se­
mana anterior lhe tinham roubado uma quantia maior. Mas
só Reiting e Torless sabiam disso.
Suspeitavam dos contínuos.
- Conta lá! - pediu Torless, mas Reiting fez-lhe logo sinal.
- Psiu! Mais tarde. Ainda ninguém sabe.
- Um contínuo? - sussurrou Torless.
- Não.
- Dá-me ao menos uma dica.
Reiting voltou costas aos outros e disse em voz baixa:
- B.
Ninguém, além de Torless, tinha entendido nada desta
conversa disfarçada. Mas a informação foi para ele um cho­
que. B.? Só podia ser Basini. Mas não era possível ! A mãe de­
le era riquíssima, o tutor era ministro. Torless nem queria
acreditar, e a história contada por Bozena atravessava-lhe os
pensamentos.
Mal podia aguardar o momento em que os outros fossem
jantar. Beineberg e Reiting ficaram para trás, a pretexto de
ainda estarem cheios por terem comido à tarde.
Reiting sugeriu que antes fossem «lá acima».
Saíram para o corredor, que se estendia interminavelmen­
te à frente da sala de aula. Os bicos de gás bruxuleantes ilumi­
navam-no apenas a espaços curtos, e os passos ecoavam de
nicho em nicho, por mais leves que fossem ...
A uns cinquenta metros da porta, uma escada levava ao
segundo piso, onde ficavam o laboratório de ciências natu­
rais, outras colecções de material didáctico e uma série de sa­
las vazias.

80
As Perturbações do Pupilo Tõrless

A partir daqui, a escada estreitava e subia, em lanços cur­


tos, ligados uns aos outros em ângulo recto, até ao sótão.
E - como acontece em casas antigas, construídas sem lógica,
com grande desperdício de recantos e escadas desnecessários
- a escada continuava ainda um bom bocado acima do nível
do soalho, de modo que, para lá da porta de ferro pesada e
fechada que a delimitava, era precisa uma escada de mão para
chegar ao sótão.
Mas do lado de lá havia um espaço perdido, com vários
metros de altura, que chegava até às vigas do telhado. Neste
espaço, a que ninguém ia, estavam armazenados cenários de
teatro provenientes de espectáculos que se perdiam no tem­
po.
A luz do dia morria nesta escada, mesmo a meio de dias
claros, numa penumbra carregada de pó, pois este acesso ao
sótão, encostado a uma das alas do imponente edifício, quase
nunca era utilizado.
Beineberg saltou do último patamar por cima da balaus­
trada e, agarrando-se às grades, deixou-se escorregar para bai­
xo por entre os cenários, no que Reiting e Torless o seguiram.
Apoiaram o pé numa caixa que aí tinha sido colocada para o
efeito, e dela saltaram para o chão.
Mesmo que os olhos de quem estivesse no cimo da escada
se tivessem já habituado à escuridão, seria impossível descor­
tinar daí mais do que um caos de cenários e bastidores angu­
losos e enfiados uns nos outros.
No entanto, quando Beineberg deslocou um deles para o
lado, abriu-se para os que estavam em baixo um corredor es­
treito, como um tubo.
Esconderam a caixa que lhes tinha servido para descerem
e entraram no espaço onde estavam os cenários.
Aqui, a escuridão era completa, e exigia um conhecimento

81
Robert Musil

pormenorizado do lugar para se poder avançar. De vez em


quando ouvia-se o farfalhar de uma daquelas paredes de lona;
quando algum deles roçava por ela, chovia lá de cima como se
alguém tivesse assustado um bando de morcegos, e levantava­
-se um cheiro a mofo de baús velhos.
Habituados a este caminho, os três tacteavam com caute­
la, passo a passo, para não tropeçarem numa das cordas que
tinham estendido sobre o soalho, como armadilhas e sinais de
alarme.
Passou algum tempo antes de chegarem a uma pequena
porta situada à direita, pouco antes da parede que dividia o
sótão.
Quando Beineberg a abriu, encontraram-se num espaço
estreito por baixo do patamar superior das escadas, e que, à
luz bruxuleante de uma pequena lanterna que Beineberg
acendera, tinha um aspecto bastante misterioso.
Naquela parte, que ficava directamente por baixo do pata­
mar, o tecto era horizontal, mas mesmo assim mal dava para
se estar normalmente de pé. Ao fundo, inclinava-se, seguindo
o perfil da escada, e terminava num ângulo apertado. O lado
da frontaria, oposto a este, era o de uma parede divisória fina
que separava o sótão da caixa da escada, e era naturalmente
delimitado no sentido do comprimento pelo muro em que se
apoiava a escada. Só a segunda parede lateral, onde se encon­
trava a porta, parecia ter sido especialmente acrescentada.
A intenção deve ter sido a de criar aqui um pequeno compar­
timento para guardar ferramentas, ou talvez se devesse apenas
a um capricho do arquitecto, a quem, ao olhar para este canto
escuro, terá vindo a ideia medieval de o murar para fazer dele
um esconderijo.
De qualquer modo, dificilmente alguém, em todo o inter­
nato, saberia da existência deste compartimento, e muito me­
nos alguém pensaria em utilizá-lo.
As Perturbações do Pupilo Torless

E assim os três tinham podido arranjá-lo à medida do seu


espírito de aventura.
As paredes estavam todas cobertas com um pano de ban­
deira vermelho-sangue que Reiting e Beineberg tinham ido
buscar a uma das divisões do sótão, e o soalho forrado com
uma camada dupla de mantas de lã como as que, no Inverno,
serviam de segundo cobertor nos dormitórios. Na parte da
frente havia caixotes baixos cobertos de pano, que serviam de
assentos; ao fundo, onde o chão se encontrava com a parede
oblíqua, tinham arranjado um lugar para dormir. Tinha espa­
ço para três a quatro pessoas, e podia ser escurecido e isolado
da parte da frente por meio de uma cortina.
Na parede, ao lado da porta, estava pendurado um revól­
ver carregado.
Torless não gostava deste cubículo. Agradava-lhe o facto
de ser pequeno e isolado, era como estar nas profundezas de
uma montanha, e o cheiro dos velhos cenários empoeirados
provocava nele sensações indefinidas. Mas o ar de esconderi­
jo, as cordas de alarme no chão, o revólver, que pretendiam
criar uma ilusão extrema de rebeldia e mistério, pareciam-lhe
ridículos. Era como se eles quisessem convencer-se de que le­
vavam uma vida de salteadores.
Na verdade, Torless só participava nisto porque não que­
ria ficar atrás dos outros dois. Mas Beineberg e Reiting leva­
vam aquelas coisas muito a sério. E Torless sabia isso. E sabia
também que Beineberg possuía segundas chaves para todas as
divisões da cave e do sótão do internato. Sabia que muitas ve­
zes desaparecia das aulas durante horas, para se esconder al­
gures - lá em cima, entre as vigas do telhado ou no subsolo,
numa das muitas caves abobadadas, labirínticas e meio arrui­
nadas - a ler histórias de aventuras à luz de uma pequena lan­
terna que trazia sempre consigo, ou meditando sobre as coi­
sas sobrenaturais.
Robert Musil

E sabia também de coisas semelhantes a propósito de Rei­


ting. Este tinha também os seus esconderijos, onde guardava
diários secretos; mas estes estavam cheios de audaciosos pla­
nos para o futuro e de anotações exactas sobre as causas, os
modos de pôr em prática e o desenrolar das muitas intrigas
que desencadeava entre os colegas. Nada dava mais prazer a
Reiting do que atiçar pessoas umas contra as outras, humilhar
um com a ajuda do outro, alimentando-se de pequenos favo­
res e adulações forçados por detrás dos quais sentisse ainda a
resistência do ódio das vítimas.
- Serve-me de exercício - era a sua única desculpa, acom­
panhada de um sorriso amável. E exercitava-se também quase
diariamente no boxe, num qualquer lugar afastado, contra
uma parede, uma árvore ou uma mesa, para fortalecer os bra­
ços e endurecer as mãos com calos.
Torless sabia de tudo isto, mas só o compreendia até um
certo ponto. Algumas vezes seguira Reiting, e também Beine­
berg, nos seus estranhos caminhos. Agradava-lhe o lado invul­
gar destas escapadelas. E também gostava de voltar depois pa­
ra a luz do dia, ficar no meio dos camaradas e da sua alegria,
enquanto no seu íntimo, nos seus olhos e ouvidos, ainda sen­
tia as excitações do isolamento e as alucinações da escuridão.
Mas quando Beineberg ou Reiting, nessas ocasiões, para te­
rem com quem falar de si próprios, lhe explicavam o que os
movia em tudo isso, ele não os entendia. Achava até que Rei­
ting era exagerado. Este gostava muito de contar que o pai fo­
ra uma pessoa muito estranha e instável e que um dia desapa­
recera. O seu nome, aliás, seria apenas um meio de esconder
o de uma linhagem muito alta. Esperava ser um dia instruído
pela mãe para tarefas ambiciosas, contava com golpes de Es­
tado e grande política, e por isso queria ser oficial.
Torless não conseguia levar a sério tais intenções. Os séculos
As Perturbações do Pupilo Tõrless

das revoluções pareciam-lhe definitivamente ultrapassados.


Mas Reiting sabia impor-se. Por enquanto, é certo, apenas em
pequena escala. Era um tirano, e sem contemplações para quem
se lhe opusesse. Os seus amigos mudavam de dia para dia, mas
tinha sempre a maioria do seu lado. Era esse o seu talento.
Dois ou três anos antes tinha declarado guerra a Beineberg, e
o desfecho foi a derrota deste. Beineberg ficou muito isolado,
apesar de não se ficar atrás do seu adversário no que respeita
aos juízos que fazia das pessoas, no sangue-frio e na capaci­
dade de despertar antipatias contra os que não lhe agrada­
vam. Mas faltavam-lhe a amabilidade e o talento para con­
quistar pessoas, que o outro tinha. A sua indiferença e a sua
conversa pretensamente filosófica suscitavam quase sempre
desconfiança. Os colegas suspeitavam de qualquer coisa de
excessivo e desagradável no fundo da sua maneira de ser. Ainda
assim, Reiting teve muitas dificuldades em vencê-lo, e isso
aconteceu quase só por acaso. Desde essa altura ficaram uni­
dos por interesses comuns.
A Tõrless, pelo contrário, essas coisas deixavam-no indife­
rente, e não tinha jeito nenhum para elas. No entanto, estava
inserido nesse mundo e tinha diariamente diante dos olhos
coisas que lhe mostravam o que significa ter o papel principal
num Estado - sim, porque num internato como aquele cada
classe é um pequeno Estado. Por isso tinha um certo respeito
e temor pelos dois companheiros. A tentação que por vezes
sentia de os imitar não passava de tentativas diletantes. Isso
levava a que a sua posição em relação a eles, em parte também
por ser mais novo, fosse a de um discípulo ou ajudante. Des­
frutava da protecção dos outros dois, mas eles também gosta­
vam de ouvir a opinião dele, porque a sua inteligência era a
mais ágil. Uma vez seguido um caminho, era extremanente fe­
cundo a imaginar as mais intrincadas combinações. E ninguém

85
Robert Musil

era tão hábil como ele a prever as diversas possibilidades de


comportamento de alguém colocado numa determinada situa­
ção. Só quando se tratava de tomar uma decisão, de assumir o
risco de escolher uma entre as várias possibilidades psicológi­
cas presentes e agir em conformidade, é que ele falhava, per­
dia o interesse e a energia. Mas agradava-lhe o seu papel de
chefe de estado-maior secreto. Tanto mais que era a única
coisa que trazia alguma animação ao seu profundo tédio inte­
rior.
Mas por vezes tomava consciência de quanto lhe podia
custar essa dependência interior. Sentia que tudo o que fazia
era para ele mero jogo. Apenas para o ajudar a suportar aque­
la existência larvar no internato, sem relação com a sua verda­
deira natureza, que só se afirmaria mais tarde, num futuro
ainda impreciso.
Quando, por exemplo, via em determinadas ocasiões
como os seus dois amigos levavam estas coisas a sério, sentia
que a sua capacidade de compreensão o abandonava. Bem
gostaria de se divertir à custa deles, mas receava que por
detrás das suas fantasias houvesse mais verdade do que ele era
capaz de entender. Sentia-se de certo modo dilacerado entre
dois mundos: um sólido, burguês, onde tudo se passava de
modo sensato e ordenado, como estava habituado em casa; e
outro aventureiro, cheio de zonas escuras e mistérios, sangue
e surpresas imprevisíveis. E um destes mundos parecia excluir
o outro. Cruzavam-se nele um sorriso trocista, que gostaria de
ostentar sempre, e um calafrio que lhe descia pela espinha.
E os seus pensamentos começavam a tremular ...
Depois, ansiava por sentir em si finalmente qualquer coisa
de mais definido, necessidades regulares que distinguissem
entre o que era bom e mau, útil e inútil; saber que era capaz
de escolher, ainda que fazendo a escolha errada - seria bem

86
As Perturbações do Pupilo Tõrless

melhor do que guardar tudo em si com excessiva sensibilida­


de ...
Quando entrou no cubículo, esta divisão interior apodera­
ra-se de novo dele, como sempre acontecia neste lugar.
Entretanto, Reiting começara a contar:
Basini devia-lhe dinheiro, já várias vezes prometera pagar,
sempre sob palavra de honra.
- Por mim, não tinha nada contra - explicou Reiting.
- Quanto mais a coisa se prolongasse, mais eu o tinha na
mão. Afinal, uma palavra de honra quebrada três ou quatro
vezes não é coisa pouca. Mas chegou a um ponto em que eu
precisava do dinheiro. Disse-lhe isso, e ele jurou por todos os
santinhos. Naturalmente, faltou à palavra mais uma vez. Disse­
-lhe que ia fazer queixa dele. Pediu dois dias, porque esperava
uma remessa do seu tutor. Mas eu entretanto fui tirando
umas informações sobre a situação dele. Interessava-me saber
se ele dependia de mais alguém; temos sempre de contar com
ISSO.

«E o que descobri não me agradou nada. Ele devia dinhei­


ro ao Dschiusch e a mais alguns. Já tinha pago uma parte,
naturalmente com o dinheiro que me devia a mim. Os outros
apertaram com ele. A coisa irritou-me. Acharia ele que eu era
o mais bonzinho? Não acho a ideia nada lisonjeira. Mas pen­
sei: vamos esperar, que não faltarão oportunidades para o fa­
zer perder esses maus hábitos. Ele mencionou uma vez em
conversa a quantia que esperava receber, para eu ficar tran­
quilo, porque era superior ao que ele me devia. Informei-me
mais exactamente com os outros, e cheguei à conclusão de
que a quantia que ele esperava nem de longe chegava para pa­
gar todas as dívidas. E então pensei: agora ele vai tentar outra
vez fugir com o rabo à seringa.
«Bem dito, bem feito: o rapaz veio ter comigo, secretamente,
Robert Musil

e pediu um pouco mais de paciência, porque os outros o


apertavam. Mas desta vez fiquei frio e disse-lhe que fosse
mendigar aos outros, que eu não estava habituado a ser
segundo. 'Mas a ti conheço-te melhor, tenho mais intimidade
contigo', tentou ele ainda. ' É a minha última palavra: ou me
trazes o dinheiro amanhã, ou sujeitas-te às minhas condi­
ções.' 'Que condições?', perguntou ele. Haviam de estar lá e
ouvir! Parecia que estava disposto a vender a alma. 'Que condi­
ções? Oh, oh! Vais ter de me obedecer em tudo o que eu fizer.'
'Se for só isso, faço-o com certeza, gosto de estar do teu lado.'
'Ah, mas não vai ser só quando te der prazer a ti; vais ter de
fazer tudo o que eu quiser, vai ser obediência cega!' Agora ficou
a olhar de lado para mim, meio a rir, meio encolhido. Não sa­
bia até onde podia ir, nem até que ponto eu falava a sério. Por
ele, tinha-me prometido este mundo e o outro, mas deve ter
receado que eu estivesse apenas a pô-lo à prova. Por fim, dis­
se, corando: 'Amanhã trago-te o dinheiro.' Eu estava mesmo
divertido, nunca tinha dado muito por ele, no meio dos
outros cinquenta. Não é verdade que ele nunca foi um dos nos­
sos? E agora chega-se assim a mim, de repente, expondo-se
até aos mais ínfimos pormenores. Eu tinha a certeza de que
ele estava disposto a vender-se, sem grande resistência, desde
que ninguém soubesse. Foi mesmo uma surpresa, e não há
nada que dê mais gozo do que quando uma pessoa se abre
subitamente desta maneira e o seu modo de vida, antes igno­
rado, de repente fica assim à vista como os movimentos de
um verme quando a madeira estala ...
«No dia seguinte trouxe-me realmente o dinheiro. Mais:
convidou-me a ir com ele ao casino tomar qualquer coisa. Pe­
diu vinho, tarte, cigarros, e disse que estava disposto a servir­
-me, em sinal de 'gratidão' por eu ter sido paciente com ele.
Só me desagradou o ar inocente com que ele disse aquilo.

88
As Perturbações do Pupilo Téirless

Como se nunca tivéssemos trocado palavras mais agressivas.


Lembrei-lhe isso; ele ficou ainda mais cordial, como se me
quisesse escapar e colocar-se ao mesmo nível que eu. Não
quis saber de mais nada, a cada segunda palavra fazia-me mais
uma declaração de amizade; mas nos seus olhos havia qual­
quer coisa que se colava a mim, como se ele temesse perder
de novo a sensação de proximidade artificialmente criada. Por
fim, já me enoj ava. Pensei: será que ele pensa que eu vou
engolir tudo isto? E pus-me a pensar em como lhe dar uma lição
de moral. Queria encontrar qualquer coisa que o ofendesse
mesmo. E lembrei-me de que o Beineberg me tinha dito de
manhã que lhe roubaram dinheiro. Foi uma ideia fugidia. Mas
passado pouco tempo voltou. E deixava-me verdadeiramente
um nó na garganta. Seria óptimo, pensei, e perguntei-lhe,
como quem não quer a coisa, quanto dinheiro ainda lhe restava.
As contas que fiz batiam certas. 'Mas quem foi o tanso que te
emprestou dinheiro?', perguntei, a rir. 'Hofmeier.'
«Acho que estremeci de alegria. O Hofmeier tinha estado
duas horas antes comigo, e pediu-me algum dinheiro empres­
tado. Aquilo que uns minutos antes me tinha passado pela ca­
beça tornou-se realidade. É como se tu por acaso pensasses, a
brincar: esta casa devia arder agora, e no momento seguinte já
as labaredas têm metros de altura ...
«Voltei a passar em revista rapidamente todas as possibili­
dades; é certo que certezas, certezas não as podia ter, mas a
minha intuição bastava-me. Inclinei-me para ele e disse, no
tom mais amável que se possa imaginar, como se lhe metesse
muito suavemente uma varinha afiada pelo cérebro adentro.
'Ouve lá, meu caro Basini, por que é que me estás a mentir?'
Quando eu disse isto, os olhos dele pareciam flutuar-lhe de
medo na cara, mas continuei: 'Talvez chegues a enganar ou­
tros, mas comigo vieste bater à porta errada. Tu sabes muito
Robert Musil

bem que o Beineberg .. .' Ele não ficou nem vermelho nem pá­
lido, parecia apenas esperar pelo esclarecimento de um mal­
-entendido. 'Bom, para abreviar as coisas', disse eu então, 'o
dinheiro com que me pagaste a dívida tiraste-o esta noite do
cacifo do Beineberg! '
«Recostei-me na cadeira, para ver a impressão que as mi­
nhas palavras causavam. Ele ficou vermelho como uma cereja;
as palavras, que o deixavam engasgado, traziam-lhe a saliva
para os lábios; finalmente, lá conseguiu falar. Foi uma chuva
de acusações contra mim, como é que eu me atrevia a dizer
uma coisas destas; onde é que eu queria chegar com uma tal
suspeita caluniosa; que eu só queria brigar com ele por ele ser
o mais fraco; que eu só fazia aquilo por irritação, por ele se ter
livrado de mim ao pagar a dívida; mas que ia falar disto à tur­
ma, ... ao tutor, ... ao director; que Deus era testemunha da sua
inocência, e assim por diante, e nunca mais acabava. Eu já es­
tava a ficar com medo de ter sido injusto com ele e de o ter
magoado sem motivo, e ele tão lindo e coradinho ali à minha
frente ... ; parecia um animalzinho maltratado, indefeso. Mas
eu não estava disposto a ceder assim sem mais. Mantive o sor­
riso trocista - de facto, quase só por embaraço - com que ti­
nha escutado toda a sua conversa. De vez em quando, abanava
apenas com a cabeça e dizia: 'Mas eu sei tudo.'
«Passado algum tempo também ele acalmou. Eu continua­
va a sorrir. Tinha a sensação de fazer dele um ladrão apenas
com aquele sorriso, mesmo que ele ainda o não fosse. 'E para
fazer as pazes', pensei, 'ainda há tempo depois'.
«Ao fim de mais algum tempo, durante o qual ele de vez
em quando me olhava de soslaio, empalideceu de repente.
Deu-se uma mudança estranha no seu rosto. Desapareceu a
graciosidade inocente que antes tinha posto no semblante, e
que o tornara belo. Foi-se, ao que parecia, com a cor. Agora,
As Perturbações do Pupilo Torless

tinha um aspecto esverdeado, descorado, inchado. Só uma vez


tinha visto uma coisa assim, quando assisti à prisão de um
assassino na rua. Também ele se passeava entre as pessoas, sem
que ninguém desse por nada. Mas quando o polícia lhe pôs a
mão no ombro, ele tornou-se outro homem. O rosto tinha-se
transformado, o olhar assustado ficou parado, à procura de
uma saída, era uma autêntica fisionomia de condenado.
«Lembrei-me disto ao ver a mudança na expressão de Ba­
sini; agora, sabia tudo e bastava-me esperar...
«E assim foi. Sem que eu dissesse mais nada, Basini - es­
gotado pelo silêncio - começou a chorar e pediu misericór­
dia. Só tinha tirado o dinheiro porque estava necessitado; se
eu não tivesse descoberto, tê-lo-ia devolvido em breve, sem
que ninguém desse por isso. Pediu para eu não dizer que ele
roubou, que só tinha feito um empréstimo às escondidas ... , e
as lágrimas impediram-no de dizer mais alguma coisa.
«Mas depois voltou a pedinchar. Estava disposto a obede­
cer-me, a fazer tudo o que eu quisesse, desde que eu não dis­
sesse nada a ninguém. Por este preço, ofereceu-se-me literal­
mente como escravo, e a mistura de astúcia e medo ansioso
que lhe ia nos olhos era qualquer coisa de repulsivo. Por isso,
limitei-me a prometer-lhe secamente que ia pensar no que fa­
zer com ele, sem deixar de acrescentar que a decisão, em últi­
ma análise, cabia a Beineberg. E agora, o que é que acham que
vamos fazer com ele?»
Enquanto Reiting falava, Torless ouvira calado, de olhos
fechados. De vez em quando sentia um arrepio até à ponta
dos dedos, e as ideias subiam-lhe à cabeça descontroladas e
desordenadas, como bolhas em água a ferver. Diz-se que é as­
sim quando vemos pela primeira vez a mulher que está desti­
nada a envolver-nos numa paixão devastadora. Afirma-se que
há momentos desses, em que nos dob ramos sobre n ó s

91
Robert Musil

mos, ganhamos forças, sustemos a respiração, momentos de


extremo silêncio e concentração interior de grande tensão
entre duas pessoas. Ninguém pode dizer o que acontece em
tais momentos. É como a sombra antecipada da futura paixão,
uma sombra orgânica, um alívio de todas as tensões anteriores
e ao mesmo tempo um estado de súbita e nova dependência
em que está contido já todo o futuro; uma incubação concen­
trada na ponta de uma agulha ... E é ao mesmo tempo um nada,
uma sensação dúbia e indefinida, uma fraqueza, um medo ...
Era assim que Torless se sentia. O que Reiting contava
sobre ele próprio e Basini parecia-lhe, ao questionar-se sobre is­
so, não ter qualquer importância. Um erro leviano e uma mal­
dade cobarde, a que se seguiria sem dúvida algum capricho
cruel de Reiting. Por outro lado sentia, com uma intuição que
o assustava, que os acontecimentos tinham tomado um rumo
pessoal que se voltava contra ele, e que neste incidente havia
qualquer coisa que o ameaçava como uma ponta aguçada.
Imaginava Basini em casa de Bozena, e olhou à sua volta
no cubículo. As paredes pareciam ameaçá-lo, abater-se sobre
ele, agarrá-lo com mãos ensanguentadas, o revólver oscilava
no seu canto ...
Pela primeira vez, alguma coisa, como uma pedra, tinha
caído na solidão indefinida das suas fantasias; estava ali, não
havia nada a fazer, era realidade. Ainda ontem Basini era co­
mo ele próprio; um alçapão abrira-se, e Basini caiu por ele
abaixo. Exactamente como Reiting tinha contado: uma mu­
dança súbita, e o ser humano já não é o mesmo ...
E isto ligava-se novamente de algum modo a Bozena. Os
seus pensamentos eram como uma blasfémia. Um cheiro ado­
cicado e podre que subira deles tinha-o deixado confuso.
E aquela profunda humilhação , aquele abandono de si, a

92
As Perturbações do Pupilo Torless

sensação de ser coberto pelas folhas pesadas, pálidas, veneno­


sas da vergonha, que tinha andado pelos seus sonhos como
imagem distante e imaterial, tinha agora, de repente, no caso
de Basini ... acontecido.
Era então qualquer coisa com que se tinha de contar, de
que tinha de se precaver, que pode saltar subitamente dos es­
pelhos silenciosos do pensamento?
A ser assim, então também tudo o resto era possível. En­
tão, Reiting e Beineberg eram possíveis. Este cubículo era
possível... Então também · era possível que do mundo claro,
quotidiano, o único que conhecera até aí, houvesse uma porta
que dava para um outro, obscuro, ardente, de paixões, despi­
do, aniquilador. Que entre aquelas pessoas cuja vida se passa
de forma ordenada entre o escritório e a família, como numa
construção transparente e sólida de vidro e ferro, e outras,
caídas, ensanguentadas, sujas e devassas, errando por confu­
sos corredores cheios de vozes aos berros, não só existe uma
passagem, mas fronteiras próximas e secretas que se tocam e a
cada momento podem ser ultrapassadas ...
Restava a pergunta: como é isso possível? Que coisas acon­
tecem em tais momentos? O que é que emerge subitamente
com um grito, e o que é que se desvanece?
Eram estas as questões que surgiam em Torless a partir
destes acontecimentos. Surgiam de forma imprecisa, de lábios
cerrados, envoltas numa sensação obscura e indefinida... uma
fraqueza, um medo.
Mas algumas das suas palavras ecoavam como que da dis­
tância, esfarrapadas e isoladas, e deixavam nele uma expecta­
tiva angustiante.
Foi neste momento que Reiting fez a sua pergunta.
Torless começou logo a falar. Obedecia a um impulso súbi­
to, a um sobressalto. Parecia-lhe que alguma coisa de decisivo

93
Robert Musil

se aproximava, e assustou-se com essa aproximação, quis des­


viar-se, ganhar tempo ... Falou, mas no mesmo instante sentiu
que o que tinha a dizer não era pertinente, que as suas pala­
vras não vinham de dentro e não exprimiam a sua verdadeira
opinião ...
Disse:
- O Basini é um ladrão - e o som decidido e duro destas
palavras fez-lhe tão bem que repetiu duas vezes « ... um la­
drão». - E um ladrão tem de ser punido, é assim em toda a
parte, no mundo inteiro. Tem de ser denunciado e expulso do
internato! Que se regenere lá fora, dos nossos é que ele já não
'!
e.
Mas Reiting disse, no tom de quem se sentia desagrada-
velmente atingido:
- Não. Para quê levar as coisas ao extremo?
- Para quê? Então não achas que é mais do que óbvio?
- De modo nenhum. Tu falas como se a chuva de enxofre
estivesse já aí para nos aniquilar a todos, se mantivermos o
Basini entre nós. E afinal a coisa não é assim tão terrível.
- Como é que podes dizer uma coisa dessas? Queres en­
tão continuar a conviver, a comer e a dormir diariamente com
uma pessoa que roubou e depois se ofereceu para teu criado,
teu escravo? Não consigo compreender isso. Nós somos edu­
cados em conjunto porque pertencemos todos a uma mesma
sociedade. Achas que te será indiferente se um dia te encon­
trares com ele no mesmo regimento ou no mesmo ministério,
se ele frequentar as mesmas famílias que tu ... , se ele, quem sa­
be, fizer a corte à tua irmã ... ?
- Olhem só se ele não está a exagerar - riu-se Reiting.
- Falas como se nós pertencessemos a uma irmandade que
prestou votos para toda a vida. Achas que vamos andar toda a
vida com um selo que diz «Frequentou o internato de W.»?

94
As Perturbações do Pupilo Tõrless

E que isso nos trará privilégios e obrigações especiais? Mais tar­


de, cada um de nós acabará por seguir o seu próprio caminho
e será aquilo que legitimamente pode ser, porque não existe
só uma sociedade. Por isso, penso que não precisamos de es­
tar já a quebrar a cabeça com o nosso futuro. E quanto ao pre­
sente, eu não disse que vamos continuar a relacionar-nos com
Basini num plano de camaradagem. Havemos de arranjar ma­
neira de manter a distância. Temos o Basini na mão, podemos
fazer com ele o que quisermos, cá por mim podes cuspir-lhe
em cima duas vezes ao dia: se ele tolerar isso, deixamos de ter
qualquer coisa em comum com ele. E se ele recalcitrar, pode­
mos sempre mostrar-lhe quem manda ... Só tens de abandonar
a ideia de que entre nós e Basini existe alguma outra coisa
que não seja a do gozo que nos pode dar o acto baixo que ele
cometeu.
Embora não estivesse muito convencido dos seus argu­
mentos, Tõrless apressou-se a responder:
- Ouve lá, Reiting, por que é que defendes tanto o Basini?
- Defender o Basini? Eu? Não vejo como. Se há quem não
tenha razões para isso, sou eu; toda esta história me é absolu­
tamente indiferente. O que me irrita é só o teu exagero. Que
ideias te passam pela cabeça? Quero dizer, que idealismo é es­
se? Esse entusiasmo fervoroso pelo internato ou pela justiça.
Nem imaginas como tudo isso é desinteressante e cheira a
moralismo. Ou será que tens - e Reiting olhou para Tõrless,
piscando o olho, em jeito de suspeita - algum outro motivo
para quereres que o Basini vá para a rua, e não queres confes­
sar o que é? Talvez uma vingançazinha antiga? Se é isso, diz.
Porque, se valer a pena, até podemos aproveitar esta oportu­
nidade favorável.
Tõrless voltou-se para Beineberg. Mas este limitou-se a
sorrir. Enquanto os outros iam falando, ele ia tirando fumaças

95
Robert Musil

de um longo cachimbo turco; sentado de pernas cruzadas, à


oriental, e, com as suas grandes orelhas de abano, parecia um
ídolo grotesco àquela luz dúbia.
- Por mim, podem fazer o que quiserem. Não quero saber
do dinheiro nem da justiça. Na Í ndia enfiavam-lhe uma vara
de bambu afiada pelas tripas acima; seria pelo menos diverti­
do. Ele é parvo e cobarde, por isso não temos de ter pena de­
le, e a mim sempre me foi indiferente o que acontece com ti­
pos desses. Eles próprios não são nada, e o que vai ser da sua
alma, não o sabemos. Que Alá conceda a sua graça à sentença
que vão pronunciar.
Torless não respondeu. Chegara ao fim das suas forças,
depois de Reiting o contradizer e Beineberg ter deixado por
resolver o diferendo. Não se sentia capaz de oferecer mais re­
sistência; sentia que já não tinha vontade de travar o que quer
que fosse que aí vinha.
Aceitaram então a sugestão feita por Reiting. Decidiram,
para já, manter Basini sob vigilância, de certo modo sob tute­
la, oferecendo-lhe assim a possibilidade de se resgatar. A par­
tir de agora, iam controlar rigorosamente todas as suas recei­
tas e despesas, e as suas relações com os outros dependeriam
da permissão que os três lhe dessem.
A decisão era aparentemente correcta e benévola. «Exem­
plarmente desinteressante», como Reiting não disse desta vez.
De facto, sem o confessarem a si mesmos, todos sentiam que
com isto estava criada uma espécie de situação transitória.
Reiting não gostaria de prescindir de uma continuação deste
caso, que o divertia, mas por outro lado não sabia ainda bem
que volta lhe dar de futuro. E Torless ficou como que paralisa­
do ao pensar que agora ia ter de se ocupar diariamente de
Basini.
Ao pronunciar antes a palavra «ladrão» sentira-se por um
As Perturbações do Pupilo Torless

momento aliviado. Fora como se tivesse posto lá fora, empur­


rado para longe de si, estas coisas que se agitavam dentro
dele.
Mas as questões que logo voltaram a surgir não podiam
ser resolvidas por essa simples palavra. Agora que já não era
preciso fugir-lhes, elas perfilavam-se com maior nitidez.
Torless olhava alternadamente de Reiting para Beineberg,
fechou os olhos, repetiu para si a decisão tomada, voltou a
abrir os olhos ... Ele próprio já não sabia se era apenas a sua
imaginação que cobria as coisas como um gigantesco espelho
deformante, ou se elas eram verdadeiras, se tudo era assim
como estava a surgir, vaga e secretamente, diante dos seus
olhos. E Beineberg e Reiting, saberiam eles destas questões?
Isto, apesar de eles se moverem desde sempre à vontade neste
mundo que de repente a ele lhe parecia tão estranho?
Torless sentia receio deles. Mas só como quem tem medo
de um gigante que sabe estúpido e cego...
Mas uma coisa estava decidida: tinha dado alguns passos
em relação ao ponto em que se encontrava um quarto de hora
atrás. Não havia possibilidade de retrocesso. Começou a sen­
tir uma leve curiosidade de saber como iriam ser as coisas,
agora que se comprometera contra sua vontade. Tudo o que
nele se agitava estava ainda envolvido em escuridão, mas co­
meçava já a sentir o desejo de olhar para o escuro e descobrir
aí configurações pelas quais os outros não davam. Esse desejo
misturava-se com um frémito cortante. Como se agora a sua
vida estivesse permanentemente coberta por um céu cinzento
e pesado - com grandes nuvens, gigantescas formas mutantes,
e sempre a pergunta nova: Serão monstros? Serão nuvens?
E esta pergunta era só dele! Um segredo, desconhecido
dos outros, proibido ...
E assim Basini começou a ganhar pela primeira vez aquela
importância que mais tarde iria ter na vida de Torless.

97
Robert Musil

No dia seguinte Basini estava sob tutela.


Não sem o seu quê de solenidade. Aproveitaram uma hora
da manhã durante a qual escaparam aos exercícios ao ar livre,
num extenso relvado do parque.
Reiting fez uma espécie de discurso, nada curto. Advertiu
Basini de que tinha posto em risco a sua existência, de que, na
verdade, devia ser denunciado, e que só por uma condescen­
dência muito especial lhe evitavam por enquanto a vergonha
de ser expulso.
Depois, expuseram-lhe as condições especiais a que iria
ficar sujeito. Reiting responsabilizou-se pelo controle da sua
execução.
Durante toda a cena, Basini estava muito pálido, mas não
disse uma palavra; pela expressão do rosto, não se poderia
dizer o que lhe ia na alma.
Torless achou que tudo aquilo era, em parte de mau gos­
to, em parte importante.
Beineberg dera mais atenção a Reiting do que a Basini.

Os dias seguintes pareceram quase fazer esquecer o inci­


dente. Reiting quase não aparecia, a não ser nas aulas e às
refeições, Beineberg andava mais calado do que nunca, e
Torless adiava continuamente a reflexão sobre o que tinha
acontecido.
Basini movia-se entre os seus companheiros como se nada
se tivesse passado.

Era um pouco mais alto do que Torless, mas de constituição


muito fraca, tinha gestos suaves e indolentes e feições femini­
nas. Era fraco de entendimento, um dos últimos na esgrima e
na ginástica, mas tinha uns modos coquetes e amáveis.
As Perturbações do Pupilo Ti:irless

Tinha ido uma vez visitar Bozena, apenas para fazer ver
que era homem. O seu desenvolvimento um tanto retardado
não deixava adivinhar nele ainda um verdadeiro desejo. Para
ele, era antes uma necessidade, algo que se esperaria dele, um
dever de dar a entender que conhecia o perfume de vivências
amorosas. O mais belo momento era o da hora em que se des­
pedia de Bozena, porque o que contava para ele era apenas
ficar com a lembrança dessa experiência.
De vez em quando mentia também, por vaidade. Assim,
depois de cada período de férias, regressava com recordações
de pequenas aventuras - fitas, madeixas de cabelo, cartinhas.
Mas quando um dia trouxe na mala uma liga, bonita, peque­
na, perfumada, azul-celeste, e depois veio a saber-se que a liga
era da sua irmãzinha de doze anos, toda a gente se riu dele
por causa destas suas bazófias.
O complexo de inferioridade moral que revelava e a sua
estupidez eram filhos da mesma cepa. Não era capaz de resis­
tir a nada do que lhe vinha à cabeça e era sempre apanhado
de surpresa pelas consequências. Nisto, era como aquelas mu­
lheres com belos caracóis caídos para a testa, que dão veneno
aos maridos, em pequenas doses a cada refeição, e depois fi­
cam muito assustadas e se admiram das palavras estranhas e
duras da acusação e da sentença de morte.

Torless evitava-o. Assim, dissipou-se também pouco a


pouco aquele sobressalto interior que nos primeiros instantes
como que o assaltara e o fizera estremecer na própria raiz dos
seus pensamentos. Torless recuperou a sensatez; a estranheza
desapareceu e foi ficando a cada dia mais irreal, como vestí­
gios de um sonho que não conseguem afirmar-se no mundo
real, sólido, banhado de sol.
Para ter a certeza de que era esse o seu estado de espírito

99
Robert Musil

no momento, relatou tudo aos pais numa carta. Omitiu ape­


nas as suas próprias emoções.
Voltara à sua ideia anterior de que o melhor seria, na pri­
meira oportunidade, conseguir a expulsão de Basini. Nem
imaginava os pais a pensarem de outro modo. Esperava deles
uma severa e indignada condenação de Basini, a sugestão do
seu rápido afastamento, como quem pegasse num insecto
nojento que não tolerariam perto do seu filho.
Não foi nada disto o que leu na carta que recebeu. Os pais
tinham-se esforçado por entender a situação e, como pessoas
sensatas, pesado todas as circunstâncias, na medida em que
podiam ter uma ideia do sucedido a partir do relato fragmen­
tário e lacunar do filho. Preferiram, em suma, fazer um julga­
mento cauteloso e reservado, tanto mais que perceberam que
teriam de contar, na exposição do filho, com alguns exageros
próprios da sua indignação de adolescente. Assim, acharam
bem a decisão de dar a Basini uma oportunidade de se rege­
nerar, e eram de opinião que não se devia estragar logo a vida
de uma pessoa por causa de um pequeno passo em falso. Tan­
to mais - e este ponto era particularmente sublinhado - que
neste caso não se tratava de um adulto já formado, mas de um
ser ainda imaturo e em crescimento. Era preciso agir com
severidade e firmeza para com Basini, mas também tratá-lo
com benevolência e tentar emendá-lo.
E sustentavam as suas opiniões com uma série de exem­
plos que Torless conhecia bem. Lembrava-se muito bem de
como, nos primeiros anos de escola, quando a direcção recor­
ria mais a medidas draconianas e limitava rigorosamente as
mesadas, muitos alunos não conseguiam deixar de mendigar
de alguns mais felizes comilões, coisa que afinal todos eram,
uma parte da merenda ou de coisas semelhantes. Ele próprio
nem sempre fugia a esta regra, embora escondesse a vergonha

100
As Perturbações do Pupilo Tõrless

praguej ando contra a malvada direcção da escola. E não


tinham sido apenas os anos, mas também os conselhos bene­
volentes dos pais que o tinham ensinado a evitar com brio tais
fraquezas.
Mas nada disso surtiu efeito desta vez.
Reconhecia que os pais tinham razão em muita coisa, e sa­
bia que era difícil emitir um juízo correcto à distância; mas
achava que faltava qualquer coisa de muito mais importante
naquela carta: a capacidade de entender que o que tinha
acontecido era qualquer coisa de irrevogável, que nunca deve­
ria passar-se entre pessoas de certo nível. Faltavam na carta o
espanto e o choque. Falavam como se se tratasse de uma coisa
habitual, que se podia resolver com tacto, sem dar muito nas
vistas. Uma mancha, tão feia, mas tão inevitável como as
necessidades diárias. Mas na carta, como em Beineberg e Rei­
ting, não havia réstia de um ponto de vista mais pessoal, mais
inquieto.
Tõrless podia ter tomado em atenção aquilo que lhe
diziam. Em vez disso, rasgou a carta e queimou-a. Era a primei­
ra vez na sua vida que revelava uma tal falta de devoção filial.
A carta produziu nele um efeito contrário ao que preten­
dia. Contrariamente ao ponto de vista simplista que lhe suge­
riam, o que ele via era de novo o lado problemático e duvido­
so do comportamento de B a s i n i . Pensou p ara consigo ,
abanando a cabeça, que era preciso ponderar o caso, embora
não pudesse dizer exactamente porquê ...
O mais estranho era quando se ocupava do problema em
sonhos, como se estivesse a reflectir. Então, Basini parecia-lhe
alguém sensato, normal, de contornos claros, como os seus
pais e amigos pareciam vê-lo; e no momento seguinte desapa­
recia, para regressar sucessivas vezes como uma figura peque­
na, diminuta, que se iluminava por alguns instantes contra
um fundo denso e muito distante ...

101
Robert Musil

Certa noite - era já muito tarde, já estavam todos a dor­


mir -, Tõrless foi acordado por alguém que o sacudia.
Beineberg estava sentado na beira da cama. A coisa era tão
inusitada que pensou que se teria passado algo de muito
importante.
- Levanta-te. Mas não faças barulho, para não darem por
nós; vamos lá para cima, quero-te contar uma coisa.
Tõrless vestiu o que tinha à mão, pôs a capa pelos ombros
e enfiou os chinelos ...
Lá em cima, Beineberg voltou a pôr no seu lugar todas as
barreiras que impediam a entrada no cubículo, e fez chá.
Tõrless, ainda meio ensonado, deixou-se invadir com pra­
zer pelo calor dourado e aromático do chá. Encostou-se a um
canto e encolheu-se; esperava pela surpresa.
Finalmente, Beineberg falou:
- O Reiting anda a enganar-nos.
Tõrless não ficou nada espantado; achou natural que toda
aquela história tivesse essa sequência; era quase como se já
esperasse por isso. Respondeu sem querer:
- Já tinha pensado nisso.
- Ah, sim? Pensado? Mas não deves ter notado nada.
É coisa que não vai contigo.
- É verdade, não reparei em nada; também não me preo­
cupei mais com o assunto.
- Mas eu reparei, e bem. Desde o primeiro dia que não
confiava no Reiting. Sabes que o Basini me pagou o que devia.
E com que dinheiro? O dele próprio? Não.
- Então achas que aí anda a mão do Reiting?
- Tenho a certeza.
No primeiro instante, Tõrless só pensou que Reiting tam­
bém podia estar envolvido nos roubos.

102
As Perturbações do Pupilo Torless

- Então achas que o Reiting, como o Basini ... ?


- Qual quê! O que o Reiting fez foi dar ao Basini o dinhei-
ro necessário para ele me pagar.
- Não consigo ver bem porquê.
- Também eu durante muito tempo não percebi. Mas tu
também deves ter reparado que o Reiting defendeu o Basini
desde o princípio. Tu tinhas razão; o mais normal seria que o
tipo fosse expulso. Mas naquela altura não me pus do teu lado
de propósito, porque pensei: não, tenho de ver o que há ainda
mais em jogo. Não sei se ele nessa altura já tinha tudo planea­
do, ou se queria esperar, depois de ter o Basini completamen­
te na mão. Mas hoje já sei como as coisas estão.
- E estão como?
- Espera, que não posso contar tudo tão depressa. Lem-
bras-te da história que se passou aqui no internato há quatro
anos?
- Que história?
- Ora, aquela!
- Só por alto. Só sei que nessa altura houve um grande
escândalo por causa de umas indecências quaisquer, e que
uma série de gente foi para a rua por causa disso.
- É essa história mesmo. Uma vez, nas férias, tirei mais
umas coisas a limpo com um que era dessa turma. Havia um
rapazinho bonito na turma, e muitos estavam apaixonados
por ele. Não te conto nada de novo, porque isto acontece
todos os anos. Mas naquela altura eles levaram a coisa longe
de mais.
- Longe de mais, como?
- Ora ... como ... ? Não faças perguntas parvas! E o Reiting
faz o mesmo com o Basini!
Torless percebeu o que se passava entre os dois, e sentiu
um aperto na garganta, como se estivesse cheia de areia.

10 3
Robert Musil

- Nunca teria imaginado uma coisa dessas com o Reiting.


- Não sabia o que dizer mais. Beineberg encolheu os ombros.
- Ele acha que nos pode enganar.
- E está apaixonado?
- Nem pensar. O tipo não é parvo. Diverte-se, no máximo
a coisa excita-o.
- E o Basini?
- Esse? ... Não reparaste como ele levanta a crista nos últi-
mos tempos? A mim, praticamente já não me obedece. É Rei­
ting para aqui, Reiting para ali - como se ele fosse o seu santo
protector. Provavelmente deve ter pensado que é melhor tole­
rar tudo deste do que um pouco de cada um. E o Reiting deve
ter-lhe prometido que o protegia se ele lhe fizesse todas as
vontades. Mas estão muito enganados, e eu vou dar uma lição
ao Basini!
- E como é que descobriste?
- Um dia segui-os.
- Para onde?
- Para ali, no sótão. O Reiting tinha-me pedido a chave da
outra entrada. Eu vim por aqui, abri o buraco com cuidado e
pus-me à coca.
Na divisória fina que separava o cubículo do sótão havia
uma brecha, com largura suficiente para deixar passar um cor­
po. Tinham-na aberto para o caso de serem surpreendidos, e
estava normalmente tapada com tijolos.
Fez-se um silêncio longo em que só se via o brilho do ta­
baco a arder.
Torless não conseguia pensar; via ... Via subitamente por
detrás das pálpebras fechadas um torvelinho louco de aconte­
cimentos, pessoas; pessoas a uma luz crua, com luzes muito
vivas e sombras móveis e muito marcadas; rostos ... um rosto;
um sorriso, ... um abrir de olhos, ... um frémito na pele; via

10 4
As Perturbações do Pupilo Torless

pessoas como nunca as vira nem sentira: mas via-as sem as


ver, sem uma ideia delas, sem imagens; assim como se apenas
a sua alma as visse; eram tão nítidas que ele era atravessado
mil vezes pela sua presença instante, mas como se elas parassem
numa soleira que não podiam atravessar, e recuassem assim
que ele procurava palavras para as dominar.
Precisou de continuar a fazer perguntas. A sua voz vibrava:
- E tu viste-os?
- Vi.
- E então ... o que é que o Basini fez?
Mas Beineberg ficou calado, e só se voltou a ouvir o crepi­
tar dos cigarros. Só passado um bom bocado Beineberg conti­
nuou a falar.
- Reflecti muito sobre o caso, e tu sabes que o meu pensa­
mento nestas coisas é muito especial. Em primeiro lugar, e
quanto a Basini, acho que não há que ter pena dele. Não im­
porta se o denunciamos já ou lhe damos uma surra, ou se, só
para nos divertirmos, o torturamos até à morte. Porque não
consigo imaginar que um indivíduo assim possa significar al­
guma coisa no maravilhoso mecanismo do mundo. Para mim,
é apenas um acidente, qualquer coisa criada fora da série.
Quero dizer, alguma coisa ele há-de significar, mas certamen­
te só qualquer coisa de muito indefinido, como um verme ou
uma pedra do caminho, e nós não sabemos se havemos de
lhes passar ao lado ou de os pisar. E isto é praticamente nada.
Porque, quando a alma do mundo quer que uma das suas par­
tes se mantenha, mostra-o claramente. Diz não e cria uma re­
sistência, faz-nos passar ao lado do verme e dá à pedra uma
tal dureza que nós não conseguimos parti-la sem ferramenta
adequada. E antes de a irmos buscar, já a alma do mundo in­
troduziu em nós a resistência de uma série de pequenos es­
clÚpulos, e se os ultrapassarmos é porque a coisa tinha desde
logo outro significado.

10 5
Robert Musil

Num ser humano ela coloca essa dureza no carácter, na


sua consciência como pessoa humana, no seu sentido de res­
ponsabilidade por ser uma parte da alma do mundo. Se uma
pessoa perde essa consciência, perde-se a si própria. Mas, se
uma pessoa se perdeu e renunciou a si, perdeu o que é pró­
prio dela, aquela singularidade pela qual a natureza a criou
como ser humano. E em nenhum outro caso como neste po­
demos estar tão seguros de que estamos a lidar com algo de
inútil, com uma forma vazia, com qualquer coisa que há mui­
to foi abandonada por essa alma do mundo.
Torless não sentia necessidade de objectar. Nem tinha da­
do atenção ao que o outro dizia. Até aí não tinha sentido in­
clinação para este tipo de meditação metafísica, e também
nunca tinha pensado por que razão um indivíduo com a inte­
ligência de Beineberg podia cair em tais reflexões. Toda esta
questão nem sequer tinha entrado no horizonte da sua vida.
Por isso, nem sequer se deu ao trabalho de pôr à prova as
explicações de Beineberg; ia ouvindo vagamente o que ele
dizia.
Só não percebia a finalidade de tanta especulação. Tudo
nele vibrava; e a circunspecção com que Beineberg ia buscar
os seus pensamentos sabe-se lá onde parecia-lhe ridícula,
inadequada, deixava-o impaciente. Mas Beineberg continuou,
imperturbável:
- Mas com Reiting a situação é outra. Também ele, com o
que fez, se entregou nas minhas mãos, mas o seu destino não
me é tão indiferente como o de Basini. Sabes que a mãe dele
não tem grande fortuna; se for expulso do internato, todos os
seus planos de vida vão por água abaixo. Continuando aqui,
ainda tem possibilidades de vir a ser alguém, caso contrário,
poucas hipóteses terá. E o Reiting nunca gostou de mim,
percebes? Odiava-me, sempre tentou prejudicar-me como

106
As Perturbações do Pupilo Tõrless

podia ... Acho que ainda hoje ficaria muito contente por se
livrar de mim. Estás a ver o que eu posso fazer estando de
posse deste segredo?
Torless assustou-se. Mas de maneira tão estranha como se
o destino de Reiting o afectasse também a ele. Olhou assusta­
do para Beineberg. Este tinha os olhos fechados, deixando
apenas uma pequena fresta aberta, e parecia uma grande ara­
nha misteriosa, quieta, à espreita na sua teia. As suas últimas
palavras soaram frias e claras como as frases de um ditado aos
ouvidos de Torless.
Não tinha acompanhado o que o outro dissera antes, só
sabia que Beineberg devia estar de novo a falar das suas
ideias, que não tinham nada a ver com a realidade; e agora
não sabia como tinham chegado àquele ponto.
A teia, que, pelo que se lembrava, teria começado algures
lá fora, no abstracto, devia ter-se fechado subitamente com
uma velocidade vertiginosa. Porque de repente era concreta,
real, viva, e uma cabeça debatia-se nela ... com um nó na gar­
ganta.
Não se podia dizer que gostasse de Reiting, mas agora
lembrava-se da maneira amável, atrevida, descuidada com que
ele aproveitava todas as intrigas. Comparado com ele, Beine­
berg parecia-lhe infame pelo modo como, a frio e com um
sorriso malicioso, enredava o outro na teia tentacular, cinzen­
ta e repulsiva dos seus pensamentos.
Torless reagiu involuntariamente:
- Não podes fazer uso disso contra ele. - Talvez também
estivesse em jogo a sua má vontade de sempre contra Beine­
berg.
Mas foi o próprio Beineberg quem, depois de uma breve
reflexão, respondeu:
- Tens razão . Para quê ? Seria mesmo uma pena.

10 7
Robert Musil

De qualquer modo, a partir de agora ele não representa qual­


quer perigo para mim, e é demasiado valioso para o fazermos
tropeçar num disparate destes. - Com isto, esta parte da
questão estava resolvida. Mas Beineberg continuou a falar,
agora sobre o destino de Basini.
- Continuas a achar que devíamos fazer queixa dele?
Torless não respondeu. Queria ouvir o que Beineberg ti­
nha para dizer, as suas palavras ecoavam como passos num
chão oco e escavado, e queria explorar a situação até ao fim.
Beineberg continuou a seguir os seus próprios pensamen-
tos:
- Acho que por enquanto é melhor deixá-lo nas nossas
mãos e castigá-lo nós mesmos. Castigo, tem de o ter, até pela
sua arrogância. A direcção do internato, quando muito, expul­
sava-o e escreveria uma longa carta ao tio; tu bem sabes como
tudo isso é feito com diplomacia. Excelência, o seu sobrinho
perdeu a noção das coisas ... deixou-se transviar. .. devolvemos­
-lhe o rapaz ... esperando que consiga ... caminho da regenera-
ção ... mas por enquanto não podemos deixá-lo com os ou-
tros ... etc. Terá um caso destes algum interesse ou valor para
eles?
- E para nós, que valor deve ele ter?
- Que valor? Para ti, talvez nenhum, porque tu um dia vais
ser conselheiro da corte ou escrever versos; tu não precisas
disso, talvez até tenhas medo. Mas imagino a minha vida bem
diferente!
Desta vez Torless ouviu com atenção.
- Para mim, Basini tem valor, muito, mesmo. Vê bem: tu
deixava-lo simplesmente ir-se embora e ficavas muito tranqui­
lo, pensando que ele é apenas mau carácter.
Torless reprimiu um sorriso.
- Isso bastar-te-ia, porque tu não tens interesse nem

108
As Perturbações do Pupilo Tõrless

lento para aprender alguma coisa com um caso destes. Mas eu


tenho esse interesse. Quando se tem à sua frente um caminho
como o meu, tem de se olhar para as pessoas de outra manei­
ra. Por isso quero ter o Basini na mão, para aprender alguma
coisa com ele.
- Mas como é que queres castigá-lo?
Beineberg esperou um momento até responder, como se
pensasse no efeito que iria produzir. Depois disse, cauteloso e
hesitante:
- Estás enganado, se pensas que eu dou uma importância
assim tão grande ao castigo. É claro que, em última análise,
podemos chamar-lhe castigo ... Mas, para abreviar, o que eu
tenho em mente é outra coisa ... , quero, digamos, torturá-lo ...
Torless evitou dizer qualquer coisa. Continuava sem per­
ceber bem, mas sentia que tudo acontecia, para ele - interior­
mente -, como tinha de acontecer. Beineberg, que não podia
aperceber-se do efeito das suas palavras, continuou:
- ... Não precisas de ficar assustado, a coisa não vai ser as­
sim tão má. Para já, como te disse, não vamos ter a mínima
consideração pelo Basini. A decisão de torturá-lo ou poupá-lo
depende apenas da nossa necessidade de fazer uma ou outra
coisa. De motivos íntimos, pessoais. Tens alguns? A moral, a
sociedade, e coisas dessas, com que vieste da última vez, isso
não conta; espero que nem tu acredites nisso. Suponho que
serás indiferente. Mas podes sempre retirar-te, se não quise­
res arriscar nada.
«Ü meu caminho, esse não vai ser para trás nem ao lado,
mas bem pelo meio. Tem de ser assim. O Reiting também não
vai desistir, porque para ele é muito importante ter uma pes­
soa na mão e servir-se dela, usá-la como um instrumento para
os seus fins. O que ele quer é dominar, e far-te-ia o mesmo
que a Basini, se fosses tu a estar nesta situação. Para mim

10 9
Robert Musil

ainda há mais coisas em jogo. É quase um dever para comigo


próprio; como é que te hei-de explicar esta diferença entre
nós? Tu sabes como o Reiting venera Napoleão; imagina en­
tão que, pelo contrário, a pessoa que a mim mais me agrada é
um qualquer filósofo ou homem santo indiano. O Reiting sa­
crificaria Basini sem se preocupar com outra coisa que não
fosse o seu interesse. Era capaz de o despedaçar moralmente
para ficar a saber com o que temos de contar em casos destes.
E, como disse, faria contigo ou comigo o mesmo que com Ba­
sini, sem que isso no mínimo o afectasse. Eu, pelo contrário,
sinto, como tu, que, para todos os efeitos, Basini é também
um ser humano. Também eu sofreria com alguma crueldade
que lhe pudesse fazer. Mas é exactamente disso que se trata!
Literalmente, de um sacrifício ! Estás a ver? Também eu me
sinto preso a dois fios. Um deles, impreciso, em contradição
com as minhas convicções claras, leva-me a uma inacção pie­
dosa; o outro, que se encaminha para a minha alma, para for­
mas de conhecimento mais íntimo, e me liga ao cosmos. Pes­
soas como Basini, já to disse antes, não significam nada - são
uma forma vazia e casual. Os verdadeiros seres humanos são
apenas aqueles que conseguem penetrar em si mesmos, seres
cósmicos capazes de mergulhar num estado de união com o
grande processo do mundo. Estes fazem milagres de olhos fe­
chados, porque sabem como usar toda a força do universo,
que é a mesma dentro e fora deles. Mas todas as pessoas que
seguem até aqui este segundo fio têm de cortar antes o pri­
meiro. Li relatos de terríveis penitências de monges, e os
meios utilizados pelos homens santos da Í ndia também não
te são estranhos. Todas as coisas cruéis que acontecem nessas
experiências têm apenas uma finalidade, a de matar os míse­
ros desejos voltados para o mundo exterior, e que, quer se tra­
te da vaidade ou da fome, da alegria ou da compaixão, apenas
afastam do fogo que cada um é capaz de acender dentro de si.

110
As Perturbações do Pupilo Torless

«Reiting só conhece o exterior, eu sigo o segundo. Agora


ele tem aos olhos de todos uma vantagem, porque o meu ca­
minho é mais lento, mas mais seguro. No entanto, eu posso
ultrapassá-lo num ápice, como a um verme. Estás a ver? Diz-se
que o mundo consiste em leis mecânicas que ninguém pode
alterar. É completamente falso, só consta dos livros escolares!
O mundo exterior é certamente resistente, e as chamadas leis
desse mundo são inalteráveis até um certo ponto, mas houve
homens que conseguiram isso. Está escrito em livros sagra­
dos, sobejamente comprovados, mas que a maior parte das
pessoas desconhece. Por eles, sei que houve pessoas que con­
seguiram mover pedras e ar e água com um simples impulso
da vontade, e cuja oração era mais forte que todas as forças do
mundo. Mas isto são apenas exemplos do triunfo exterior do
espírito. De facto, quem conseguir contemplar toda a sua alma
terá superado a vida física, que é um mero acidente; está es­
crito que tais pessoas vão directamente para um reino supe­
rior das almas.»
Beineberg falava muito a sério, com uma excitação conti­
da. Torless continuava quase sempre de olhos fechados; sen­
tia a respiração de Beineberg e aspirava-a como um anestésico
sufocante. Entretanto, Beineberg pôs fim ao seu discurso:
- Por aqui já podes ver o que me interessa. O impulso que
me diz para deixar sair o Basini vem de baixo e de fora. Tu po­
des segui-lo. Para mim, é um preconceito de que tenho de me
libertar, como de tudo o que possa desviar-me do meu cami­
nho para dentro.
«Ü facto de me custar torturar Basini - quero dizer, humi­
lhá-lo, rebaixá-lo, afastá-lo de mim - é em si bom. Exige um
sacrifício. Terá um efeito purificador. É minha obrigação
aprender diariamente com ele que ser apenas humano nada
significa - é mero mimetismo exterior, macaquice.»

111
Robert Musil

Torless não entendia tudo o que ele dizia. Parecia apenas


que um laço invisível se apertava de novo, subitamente, num
nó palpável e fatal. Ecoavam dentro dele as últimas palavras
de Beineberg: «Mero mimetismo exterior, macaquice», repe­
tia. Aquilo parecia ajustar-se à sua relação com Basini. Não era
o estranho fascínio que o outro exercia sobre ele feito de tais
visões? Simplesmente porque ele era incapaz de se imaginar a
formar uma unidade com ele, e por isso o via sempre como se
fosse em imagens desfocadas? Não estava há pouco, quando
imaginou Basini, um segundo rosto atrás do dele, que lhe fu­
gia? Um rosto com parecenças tangíveis, mas que não se liga­
vam a nada?
Assim, em vez de reflectir sobre as estranhas intenções de
Beineberg, meio atordoado com as últimas impressões, nada
usuais, Torless tentou antes lançar luz sobre os seus próprios
pensamentos. Lembrou-se daquela tarde antes de ter tomado
conhecimento do mau passo de Basini. Estas visões já se lhe
tinham mostrado então. Havia sempre alguma coisa que per­
turbava os seus pensamentos. Qualquer coisa que era ao mes­
mo tempo simples e estranha. Tinha visto imagens que não
eram imagens. Diante daquelas cabanas, e mesmo depois,
quando estava com Beineberg na confeitaria.
Eram semelhanças e diferenças insuperáveis, as duas coi­
sas juntas. E este jogo, esta perspectiva misteriosa, absoluta­
mente pessoal, tinha-o excitado.
E agora um ser humano assumia tudo isso em si. Tudo
isso estava agora corporizado numa pessoa e se tornara reali­
dade. Com isso, toda a estranheza passava agora para essa
pessoa, deixava a fantasia e entrava na vida e tornava-se amea­
çadora ...
Tanta excitação tinha deixado Torless cansado, os seus
pensamentos começavam a ficar deslaçados.

1 12
As Perturbações do Pupilo Torless

Restava-lhe apenas a lembrança de que não podia largar


este Basini, que ele estava destinado a desempenhar também
um papel importante na sua vida, ainda não muito distinto.
No meio disto, abanava a cabeça, admirado, ao pensar nas
palavras de Beineberg. Seria que também ele ... ?
Ele não pode andar em busca do mesmo que eu, e no en­
tanto foi ele que encontrou o nome certo para a coisa ...
Torless sonhava mais do que pensava. Já não era capaz de
distinguir o seu problema psicológico das fantasias de Beine­
berg. Tinha apenas uma sensação: que aquele gigantesco laço
se apertava cada vez mais em torno de tudo.
A conversa ficou-se por ali. Apagaram a luz e voltaram
cautelosamente ao dormitório.

Nos dias seguintes não tomaram qualquer decisão. Havia


muito que fazer na escola, Reiting esquivava-se a ficar a sós
com eles, e também Beineberg se furtou a uma nova conversa.
E assim aconteceu que, durantes esses dias, o que tinha
acontecido penetrou fundo em Torless, como uma corrente
impedida de continuar o seu curso, dando aos seus pensa­
mentos uma direcção irreversível.
A intenção de afastar Basini do internato tinha sido defi­
nitivamente posta de lado. Torless sentia-se agora totalmente
concentrado em si mesmo e não pensava em mais nada. Tam­
bém Bozena lhe era agora indiferente; o que sentira por ela
transformou-se numa recordação fantasiosa substituída por
algo de mais sério.
Mas o certo é que essa seriedade não parecia ser menos
fantasiosa.

Torless foi passear sozinho no parque, ocupado com os


Robert Musil

seus pensamentos. Era a hora do almoço, e o sol do Outono já


avançado depositava ténues lembranças sobre os prados e os
caminhos. Corno o seu desassossego não estimulava grandes
passeios, Tõrless limitou-se a dar a volta ao edifício e deitou­
-se na erva já descorada e a restolhar, encostado à parede late­
ral, que quase não tinha janelas. O céu abria-se acima dele, to­
do de um azul pálido e melancólico, próprio do Outono, e
pequenas nuvens brancas acasteladas passavam voando.
Tõrless estava deitado de costas, de olhos semicerrados,
sonhando vagamente por entre as copas meio desfolhadas de
duas árvores à sua frente.
Pensava em Beineberg, e em corno ele era urna pessoa es­
tranha! As palavras que dizia estariam bem num templo india­
no a desmoronar-se, na companhia de ídolos sinistros e ser­
pentes encantadas em fundos esconderijos; mas qual era o
seu lugar à luz do dia, no internato, na Europa moderna?
E apesar disso essas palavras pareciam de repente ter parado
diante de um objectivo palpável, depois de um discurso lon­
guíssimo, corno um caminho meândrico sem fim e sem hori­
zonte ...
E nisto reparou - corno se fosse a primeira vez - corno o
céu era alto.
Foi corno um sobressalto. Mesmo por cima dele brilhava
no azul urna pequena abertura incrivelmente funda entre as
nuvens.
Sentiu que tinha de ser possível subir até lá com urna esca­
da comprida, muito comprida. Mas quanto mais ele aí pene­
trava, subindo com o olhar, tanto mais o fundo azul brilhante
se retirava. E no entanto parecia que era possível alcançá-lo e
fazê-lo parar com o olhar. Este desejo tornou-se torturante­
rnente intenso.
Era corno se a visão, extremamente tensa, disparasse olhares

1 14
As Perturbações do Pupilo Torless

como flechas por entre as nuvens, e como se ela, por mais


longe que apontasse, falhasse sempre por pouco o alvo.
Tõrless pôs-se a reflectir sobre isto; tentou ficar o mais
possível calmo e pensar sensatamente. « É um facto que não
há fim», dizia para consigo, «tudo continua, continua sempre,
até ao infinito». Mantinha os olhos presos ao céu e dizia isto
como que para testar a força de uma fórmula mágica. Mas em
vão; as palavras não diziam nada, ou antes, diziam qualquer
coisa de muito diferente, como se falassem do mesmo objec­
to, mas de uma perspectiva estranha e indiferente.
«Ü infinito!» Tõrless conhecia o termo das aulas de Mate­
mática. Nunca tinha imaginado nada de especial nessa pala­
vra. Estava sempre a aparecer; alguém a teria inventado um
dia, e desde então era possível fazer cálculos com ela, tal co­
mo com outras realidades sólidas. Era exactamente aquilo
que valia no cálculo, e Tõrless nunca buscara nela nada para
além disso.
E agora estremecia, como se sentisse um choque, ao pen­
sar que aquela palavra tinha qualquer coisa de terrivelmente
inquietante. Via-a como um conceito domado, com o qual fa­
zia diariamente pequenas habilidades, e que agora, subita­
mente, se libertara. Qualquer coisa que ia para além do en­
tendimento, algo de indomável e destruidor, parecia ter
ficado adormecido no trabalho de um qualquer inventor, e
agora despertava de repente e era de novo aterrador. Estava
ali, vivo, naquele céu sobre a sua cabeça, ameaçador e sarcásti­
co.
Acabou por fechar os olhos, porque aquele espectáculo o
torturava.

Quando, pouco depois, foi acordado pelo vento que so­


prava na erva seca, mal sentia o corpo, e dos pés subia um

1 15
Robert Musil

frescor agradável que lhe deixava os membros num estado de


suave indolência. Qualquer coisa de leve e lânguido se cruzara
com o seu sobressalto anterior. Continuava a ter a sensação
de que o céu era imenso, silencioso, e o olhava lá do alto, mas
agora lembrava-se de que tinha tido a mesma impressão de
outras vezes; e, num estado entre a vigília e o sonho, deixou­
-se arrastar por essas lembranças e sentiu-se enredado na sua
atracção.
Primeiro, veio aquela recordação de infància em que as ár­
vores estavam aí, graves e silenciosas corno pessoas encanta­
das. Já devia ter sentido nessa altura o que mais tarde se repe­
tiu. Até os pensamentos despertados por Bozena tinham
qualquer coisa disso, qualquer coisa de particular, urna intui­
ção que era mais do que aquilo que esses pensamentos signi­
ficavam. Tinha sido assim aquele momento de silêncio no jar­
dim, diante das janelas da confeitaria, antes de os obscuros
véus da sensualidade se retirarem. E Beineberg e Reiting ti­
nham-se transformado muitas vezes, numa fracção de segun­
dos, em qualquer coisa de estranho e irreal; e agora Basini? Ao
pensar no que tinha acontecido com ele, Torless ficava com­
pletamente dividido: urnas vezes, tudo parecia razoável e nor­
mal, outras era atravessado por aquele silêncio fremente de
imagens, comum a todas as suas impressões, que a pouco e
pouco tinha impregnado todas as percepções de Torless e de
repente exigia ser tratado corno algo de real e vivo; exacta­
rnente corno há pouco a ideia de infinito.
Torless sentia-se agora assediado por esse silêncio, algo
assim corno forças distantes e obscuras, que certamente já o
vinham ameaçando desde sempre; mas ele habituara-se a re­
cuar instintivamente, aflorando-as apenas de vez em quando
com um olhar tímido. Agora, porém, um acaso, um aconteci­
mento, tinham aguçado a sua atenção, orientando-a para aí, e,

116
As Perturbações do Pupilo Türless

como que obedecendo a um sinal, tudo se precipitava sobre


ele, provocando-lhe uma enorme perturbação que cada mo­
mento acentuava ainda mais.
Era como se uma loucura se abatesse sobre Torless, levan­
do-o a ver as coisas, os acontecimentos e as pessoas como se
tivessem duplos sentidos. Como qualquer coisa que, por força
de um qualquer inventor, estava presa a uma palavra inocen te
e esclarecedora, e como algo de muito estranho que a cada
momento ameaçava libertar-se dela.
É verdade que existe para tudo uma explicação simples e
natural, e Torless sabia disso; mas, para seu espanto e temor,
ela parecia apenas servir para rasgar uma capa exterior, sem
pôr à vista o interior, que Torless, com olhos aparentemente
já não naturais, via sempre reluzir à distância, como uma se­
gunda presença.
Ali estava ele, deitado e completamente envolto em recor­
dações, das quais nasciam, como flores exóticas, os mais estra­
nhos pensamentos. Aqueles momentos que ninguém esquece,
situações em que se rompe o nexo das coisas que a vida de
resto faz reflectirem-se sem lacunas no nosso entendimento,
como se corressem paralelamente e à mesma velocidade - as
duas coisas ligavam-se agora, numa proximidade perturbado­
ra.
A recordação do silêncio tão terrivelmente suspenso, nas
cores melancólicas de algumas tardes, alternava com a inquie­
tação cálida e vibrante do meio-dia estival que em tempos lhe
inundava a alma ardente, como se por ela passassem os pés
rápidos de um enxame fugidio de lagartixas de pele reverbe­
rante.
Depois, lembrou-se de um sorriso do pequeno príncipe
- um olhar, um movimento, naquela altura em que, no seu ínti­
mo, se tinha desfeito a relação entre os dois - com que aquele

1 17
Robert Musil

se libertara subita e mansamente de todas as ligações que


Torless tecera à sua volta, para entrar num mundo novo e es­
tranho que se tinha aberto à sua frente, como que concentra­
do na vida de um segundo indescritível. Depois, vieram de
novo recordações da floresta, no meio dos campos. A seguir,
uma imagem de silêncio num quarto a escurecer, lá em casa,
que lhe recordara mais tarde o amigo perdido. Lembrou-se de
alguns versos de um poema ...
E há também outras coisas nas quais domina esta mesma
desigualdade entre vivência e compreensão. Mas o que acon­
tece sempre é que aquilo que vivemos num momento como
algo de indiviso e sem pergunta se torna incompreensível e
confuso quando o queremos aprisionar com as correntes do
pensamento, para o transformarmos em objecto de posse de­
finitiva. E aquilo que parece ser grande e humanamente estra­
nho enquanto as nossas palavras anseiam por alcançá-lo à dis­
tância, torna-se simples e perde o seu lado inquietante ao
entrar no âmbito de actividade da nossa vida.

Subitamente, todas estas recordações tinham em comum


o mesmo mistério. Como se estivessem todas relacionadas
umas com as outras, estavam ali à sua frente, nítidas e palpá­
veis.
No momento em que ocorreram, acompanhara-as um vago
sentimento a que ele dera pouca atenção.
E era precisamente esse sentimento que agora o ocupava.
Lembrou-se de uma vez em que estava com o pai diante de
uma daquelas paisagens e exclamou num rompante: Ah, como
isto é bonito! E de como ficou muito embaraçado quando o
pai se alegrou com a sua reacção. Podia também ter dito: é
terrivelmente triste. Era a insuficiência das palavras o que
então o torturava, uma consciência vaga de que as palavras
eram meros pretextos para aquilo que se sente.

u8
As Perturbações do Pupilo Têirless

E hoje vinha-lhe à memória a imagem, as palavras e aquela


sensação de estar a mentir sem saber como nem porquê. O seu
olhar reviu tudo novamente na lembrança, mas regressava
sempre sem a almejada redenção. Um sorriso de encantamen­
to ante a riqueza das recordações, que ainda conservava no
rosto distraído, tornou-se pouco a pouco um traço doloroso,
quase imperceptível...
Sentia necessidade de procurar sem descanso uma ponte,
uma ligação, uma comparação - entre si e aquilo que, sem
palavras, se apresentava ao seu espírito.
Mas de cada vez que se tranquilizava com uma ideia, logo
aparecia outra vez aquela admoestação: estás a mentir. Era
como se tivesse de fazer uma infindável operação de dividir que
deixava sempre um resto, ou como se os seus dedos tentassem
febrilmente desatar um nó sem fim até ficarem em ferida.
Por fim, desistiu. Tudo se fechou à sua volta e as recorda­
ções aumentaram, com uma distorção pouco natural.
Tinha os olhos novamente postos no céu. Como se pudes­
se ainda talvez arrancar-lhe o seu segredo por obra do acaso e
decifrar o que tanto o perturbava. Mas ficou cansado, e sobre
ele desceu uma sensação de profunda solidão. O céu calou-se.
E Torless sentia que estava completamente só sob aquela abó­
bada imóvel e muda, sentia-se como um pequenino ponto
vivo debaixo daquele imenso cadáver transparente.
Mas isso já pouco o assustava. Era como uma dor antiga e
já familiar que, enfim, descesse ao último dos seus membros.
Parecia-lhe que a luz tinha assumido um tom leitoso e
dançava diante dos seus olhos como uma névoa pálida e fria.
Devagar, cautelosamente, voltou a cabeça e olhou em vol­
ta para ver se realmente tudo mudara. E nisto o seu olhar pas­
sou pela parede cinzenta e sem janelas atrás da sua cabeça.
Parecia ter-se curvado sobre ele e estar a olhá-lo, silenciosa.

1 19
Robert Musil

De vez em quando descia por ela um murmúrio, e uma vida


misteriosa despertava nessa parede.
Era também assim que se punha à escuta no esconderijo,
enquanto Beineberg e Reiting desfiavam as histórias do seu
mundo de fantasia, e alegrava-se com aquele som como se
fosse o estranho acompanhamento musical de um espectácu­
lo grotesco.
Mas agora o próprio dia claro parecia ter-se transformado
num insondável esconderijo, e aquele silêncio vivo envolvia
Torless por todos os lados.
Não conseguia desviar a cabeça. A seu lado, num canto
escuro e húmido, cresciam patas-de-cavalo, de grandes folhas
abertas e transformadas em fantásticos refügios de caracóis e
lagartas.
Torless ouvia o bater do seu próprio coração. Depois veio
de novo um murmúrio leve, ciciado, a esvair-se ... E esses sons
eram a única coisa viva num mundo sem tempo, silencioso ...

No dia seguinte Beineberg estava com Reiting quando


Torless se aproximou deles.
- Já falei com o Reiting - disse Beineberg. - E já acertá­
mos tudo. Tu não te interessas verdadeiramente por estas coi­
sas.
Torless sentiu qualquer coisa como raiva e ciúme por esta
súbita mudança, mas não sabia se devia mencionar a conversa
nocturna diante de Reiting.
- Bem - disse -, vocês podiam ao menos ter-me chamado,
porque eu estou tão envolvido nisto como vocês.
- E teríamos feito isso, caro Torless - apressou-se Reiting
a responder, dando visivelmente a entender que desta vez não
estava interessado em criar mais dificuldades -, mas não te

1 20
As Perturbações do Pupilo Torless

encontrámos, e contámos com o teu assentimento. E o que é


que tens a dizer do Basini? - (Nem uma palavra de desculpas,
como se o seu comportamento fosse o mais natural deste
mundo.)
- O que tenho a dizer? Bom, acho que é um tipo nojento.
- E é mesmo. Nojento.
- Mas tu também te metes nuns belos jogos! - Torless pôs
um sorriso um tanto forçado, pois envergonhava-se por não
ficar mais furioso com Reiting.
- Eu? - Reiting encolheu os ombros. - E depois, o que é
que tem isso? Temos de experimentar tudo nesta vida, e j á
que ele é assim tão estúpido e ordinário ...
- Já falaste com ele depois disso? - interveio Beineberg.
- Já. Veio ter comigo ontem à noite, para pedir dinheiro.
Está outra vez com dívidas que não pode pagar.
- E já lho deste?
- Não, ainda não.
- Ó ptimo - disse Beineberg. - Assim temos uma boa
oportunidade para lhe dar um aperto. Podias dizer-lhe para se
encontrar contigo hoje à noite num lugar qualquer.
- E onde? No nosso cubículo?
- Acho que não. Por enquanto, ele não tem nada que
saber desse esconderijo. Mas diz-lhe que vá ao sótão, onde esti­
veste com ele daquela vez.
- E a que horas?
- Digamos ... às onze.
- Está bem. Queres ir dar uma volta?
- Está bem. Acho que o Torless ainda tem umas coisas
para fazer, não é?
Torless não tinha, de facto, mais trabalhos para fazer, mas
sentia que aqueles dois tinham mais alguma coisa que que­
riam esconder dele. Irritou-se por ficar assim indeciso e não
se intrometer.

121
Robert Musil

Ficou a olhar para eles, com inveja, imaginando tudo o


que eles podiam estar a tramar secretamente.
E reparou no modo inocente e gracioso com que Reiting
andava, direito e flexível - exactamente como quando falava.
Por outro lado, tentava imaginá-lo naquela noite com Basini,
imaginá-lo pelo lado interior, anímico. Deve ter sido como
um longo e lento afundar-se de duas almas obcecadas uma
pela outra, e depois a profundidade de um reino subterrâneo;
e no meio um momento em que os ruídos do mundo, lá em
cima, muito em cima, deixaram de se ouvir e se extinguiram.
Poderá uma pessoa, depois de ter passado por isso, ficar
outra vez assim tão divertidQ e leviano? Com certeza que para
ele aquilo não teve grande importância. Torless bem gostaria
de lhe ter perguntado. E em vez disso, limitara-se a entregá­
-lo, com timidez infantil, à teia daquele Beineberg!

Às onze menos um quarto Torless viu que Beineberg e


Reiting se esgueiravam das respectivas camas, e vestiu-se tam­
bém.
- Psst! Espera. Vamos dar nas vistas se sairmos os três ao
mesmo tempo.
Torless meteu-se outra vez debaixo da colcha.
Juntaram-se depois no corredor, e subiram com os cuida-
dos habituais a escada de acesso ao sótão.
- Onde está o Basini? - perguntou Torless.
- Vem pelo outro lado. O Reiting deu-lhe a chave.
Ficaram todo o tempo no escuro. Só lá em cima, em fren­
te da grande porta de ferro, Beineberg acendeu a sua pequena
lanterna.
A fechadura não se abriu logo. Estava perra de tantos anos
de imobilidade e não queria obedecer à segunda chave. Por

122
As Perturbações do Pupilo Têirless

fim, deu a volta com um ruído duro; o batente pesado arras­


tou-se, resistindo, na ferrugem dos gonzos e cedeu, hesitante.
Do sótão veio um ar quente e parado como o das estufas
pequenas.
Beineberg voltou a fechar a porta.
Subiram a pequena escada de madeira e acocoraram-se
junto de uma das imponentes traves do telhado.
A seu lado estava uma série de enormes talhas de água pa­
ra a prevenção de possíveis incêndios. Via-se que a água há
muito tempo que não era renovada, porque espalhava um
cheiro adocicado.
Toda a atmosfera do lugar era opressiva: o calor debaixo
do telhado, o ar abafado e a confusão das pesadas vigas, que
em parte se perdiam no escuro, subindo até ao telhado, e em
parte se agarravam ao chão, numa rede fantasmagórica.
Beineberg apagou a lanterna e ali ficaram, imóveis no es­
curo, sem dizer uma palavra, durante vários minutos.
Foi então que ouviram ranger a porta no canto oposto.
Um som baixo e hesitante. Era um ruído que lhes fazia saltar
o coração do peito, como o da primeira caça que se aproxima.

Seguiram-se alguns passos inseguros, um pontapé em tá­


buas que ecoaram; um som abafado, como o da queda de um
corpo ... Silêncio ... Novamente passos hesitantes . . . Espera ...
Uma voz humana, baixinho:
- Reiting?
Beineberg retirou a capa da lanterna e lançou um feixe de
luz largo na direcção da voz.
Algumas das vigas maiores iluminaram-se, com sombras
muito contrastadas, e de resto não se via nada, a não ser a
dança do pó num cone de luz.
Mas os passos tornavam-se mais decididos e aproxima­
vam-se.

1 23
Robert Musil

Nisto, um pé tropeçou novamente na madeira, e no ins­


tante seguinte apareceu na base larga do cone de luz, com a
cor macilenta que lhe dava a iluminação fraca, o rosto de Basi­
m.

Basini sorria, com uma expressão amável, açucarada, que


se destacava na moldura de luz, rígida como o sorriso de um
retrato.
Torless estava sentado, encostado à sua trave, e sentia os
músculos das pálpebras a tremer.
Beineberg começou a desfiar o rol dos actos infames de
Basini, num ritmo regular, com voz rouca.
Depois veio a pergunta:
E tu não te envergonhas de nada?
Depois, um olhar de Basini para Reiting, a querer dizer:
«Acho que já é altura de me ajudares.» Nesse momento, Rei­
ting deu-lhe um soco na cara, ele cambaleou, tropeçou numa
trave e caiu. Beineberg e Reiting saltaram atrás dele.
A lanterna tinha tombado e a sua luz escorria, perplexa e
indolente, pelo chão até aos pés de Torless ...
Pelos ruídos, Torless percebeu que eles estavam a tirar a
roupa a Basini e o açoitavam com qualquer coisa fina e flexí­
vel. Era evidente que já tinham preparado tudo isto. Ouvia os
gemidos e os lamentos meio abafados de Basini, que lhes pe­
dia incessantemente que parassem; por fim, já só ouviu um
soluço, como um uivo reprimido, e de permeio insultos a
meia voz e a respiração ofegante de Beineberg.
Não tinha saído do seu lugar. Logo a princípio, tinha sen­
tido um desejo animalesco de saltar e bater também, mas a
sensação de que chegaria tarde de mais e seria supérfluo tra­
vou-lhe o gesto. Uma mão pesada paralisava-lhe os membros.
Aparentando indiferença, deixou-se ficar a olhar para o

1 24
As Perturbações do Pupilo Tõrless

chão. Não apurou o ouvido para seguir os ruídos, e também


não sentia o coração bater mais depressa do que habitual­
mente. Seguia com os olhos a luz que se derramava a seus pés
como uma poça. Flocos de pó refulgiam, e também uma pe­
quena teia de aranha, feia. Um pouco mais adiante, o feixe de
luz perdia-se nas frestas entre as traves e extinguia-se num
lusco-fusco sujo e empoeirado.
Torless teria ficado assim uma hora inteira sentado, sem
sentir nada. Não pensava em nada, apesar de interiormente
estar plenamente ocupado. Observava-se a si mesmo, mas
como se olhasse para o vazio e tivesse apenas uma perspectiva
lateral, como que um reflexo indistinto. E agora começava a
emergir lentamente dessa imagem indefinida e lateral, cada
vez mais visível, um desejo que tomava conta da sua consciên­
cia.
Alguma coisa levava Torless a sorrir do que estava a sentir.
Depois, o desejo intensificou-se de novo, levou-o a abandonar
a posição sentada; ficou de joelhos no chão. Sentia vontade
de encostar o corpo às tábuas do soalho; sentia os olhos a fi­
carem maiores, como os de um peixe, sentia o coração a bater
através do corpo nu contra a madeira.
Uma excitação avassaladora tinha-se apoderado de Tor­
less, e teve de se agarrar à sua trave para resistir à vertigem
que o puxava para baixo.
Tinha gotas de suor na testa, e perguntava a si próprio,
assustado, o que significava aquilo.
Despertou da sua apatia com um sobressalto, voltou a
escutar os ruídos qu� os outros três faziam no escuro.
Fizera-se silêncio; só se ouviam os queixumes de Basini,
em voz baixa, procurando as roupas.
Torless sentia-se bem a ouvir as lamentações do outro.
Sentiu um calafrio correr-lhe pelas costas abaixo e acima,

1 25
Robert Musil

como patas de aranha; depois, passou para as espáduas, repu­


xando-lhe a pele da cabeça. Para sua grande estranheza, Tor­
less percebeu que estava num estado de excitação sexual.
Tentou recordar-se, sem saber muito bem quando aquilo te­
ria começado, mas com a certeza de que já o tinha sentido ao
rebolar-se pelo chão. Ficou envergonhado; mas não pudera
resistir àquela onda de sangue que lhe inundara a cabeça.
Beineberg e Reiting voltaram, às apalpadelas, e sentaram­
-se ao seu lado. Beineberg olhava para a lanterna.
Nesse momento Torless sentiu-se novamente puxado para
baixo. Era qualquer coisa que vinha dos olhos - percebia-o ago­
ra -, saía dos olhos como uma fixidez hipnótica e subia ao cére­
bro. Era uma pergunta, sim, uma ... não, um desespero ... ah, já o
conhecia ... : a parede, aquele jardim, as cabanas baixas, aquela
recordação de infancia ... era o mesmo, o mesmo! Olhou para
Beineberg. «Será que ele não sente nada?», pensou. Mas Beine­
berg baixou-se, para apanhar a lanterna. Torless segurou-lhe o
braço:
- Aquilo não parece um olho? - disse, apontando para o
feixe de luz derramado pelo chão.
- Não me digas que vais ficar poético agora!
- Não. Mas não és tu mesmo quem diz que há qualquer
coisa de muito especial nos olhos? Deles irradia - pensa só
nessas tuas ideias sobre o hipnotismo - em certos momentos
uma força de que nenhuma aula de Física pode dar conta; e
também é verdade que se pode conhecer muito melhor uma
pessoa pelo olhar do que pelas palavras ...
- Pois sim... e daí?
- Para mim, aquela luz parece um olho. Dirigido para um
mundo desconhecido. É como se me pedisse para eu adivi­
nhar qualquer coisa. Mas não consigo. Gostava de o poder
absorver em mim ...

126
As Perturbações do Pupilo Torless

- Agora é que estás mesmo a ficar poético.


- Não é nada disso. Isto para mim é sério. Estou desespe-
rado. Olha bem para lá, e vais sentir o mesmo. Uma necessi­
dade de te rebolares naquela poça de luz, de te pores de ga­
tas, de rastejar pelos cantos poeirentos , como se assim
conseguisses adivinhar ...
- Meu caro, isso são caprichos teus, sentimentalismo.
Agora, acaba com essas coisas, está bem?
Beineberg completou o gesto de se inclinar e voltou a pôr
a lanterna no seu lugar. Mas Torless sentiu uma alegria mali­
ciosa. Sentia que dispunha de um sentido que lhe permitia
aperceber-se de fenómenos a que os companheiros não che­
gavam.
Esperou que Basini voltasse a aparecer, e sentiu com um
secreto arrepio a pele da cabeça novamente a repuxar sob o
efeito daquelas pequenas garras de há pouco.
Agora já sabia que havia alguma coisa que estava à espera
e lhe dava sinal repetidas vezes e a intervalos cada vez mais
curtos; uma sensação que os outros não compreendiam, mas
que devia ter, obviamente, grande importância para a sua
vida.
Mas não sabia o que significava a sensualidade que a acom­
panhava; lembrava-se, isso sim, de que ela aparecia sempre
que os fenómenos começavam a parecer-lhe singulares só a
ele, e o torturavam, porque não conseguia encontrar a expli­
cação para isso.
Decidiu que na próxima oportunidade iria reflectir a ftm­
do sobre isso. Por agora, entregava-se àquele calafrio excitan­
te que precedia o aparecimento de Basini.
Beineberg tinha endireitado a lanterna, e a luz voltou a
traçar um círculo na escuridão, como uma moldura vazia.
E de repente apareceu de novo o rosto de Basini nessa

1 27
Robert Musil

moldura; exactamente como da primeira vez, com o mesmo


sorriso rígido e açucarado, como se entretanto não tivesse
acontecido nada. Com a diferença de que agora, no lábio
superior, na boca e no queixo, lentas gotas de sangue desenha­
vam um caminho vermelho e sinuoso como um verme.

- Senta-te ali! - Reiting apontou para uma grossa trave de


madeira. Basini obedeceu. Reiting começou a falar:
- Se calhar já estavas a pensar que te tinhas safado, não?
Pensaste que eu te ia ajudar? Como vês, enganaste-te. O que
fiz contigo foi só para ver até onde chega a tua baixeza.
Basini esboçou um gesto de defesa. Reiting ameaçou sal­
tar outra vez sobre ele, e Basini disse:
- Pelo amor de Deus, entendam-me. Eu não tinha outra
saída!
- Cala a boca! - gritou Reiting. - Estamos fartos das tuas
desculpas! Agora já sabemos muito bem quem tu és, e vamos
agir em conformidade ...
Fez-se um breve silêncio. De repente, Tõrless disse em voz
baixa, quase amável:
- Diz lá: eu sou um ladrão.
Basini fez uns olhos muito grandes, quase assustados; Bei­
neberg riu-se, aprovando.
Mas Basini continuava calado. Beineberg deu-lhe um mur­
ro nas costelas e gritou:
- Não ouviste? Diz que és um ladrão! E é para já!
Voltou a sentir-se um silêncio breve, quase imperceptível;
depois, Basini disse em voz baixa, de um só fôlego e num tom
o mais inocente possível:
- Eu sou um ladrão.
Beineberg e Reiting voltaram-se para Tõrless, rindo-se di­
vertidos:

128
As Perturbações do Pupilo Türless

- Bela ideia, miúdo! - E para Basini:


- E agora vais dizer também, imediatamente: eu sou um
animal, um animal ladrão, o vosso animal, ladrão e ordinário!
E Basini repetiu, sem parar e de olhos fechados.
Mas Torless já se tinha encostado outra vez, ficando no
escuro. Sentia nojo da cena, e envergonhava-se de ter revelado
aos outros a sua ideia.

Ocorreu-lhe de repente uma coisa durante a aula de Mate­


mática.
Nos últimos dias tinha seguido as aulas com um interesse
particular, porque pensou: «Se isto é realmente a preparação
para a vida, como eles dizem, então tem de haver por aí algu­
ma indicação daquilo que eu busco.»
E foi a Matemática que o fez pensar nisso, ainda por causa
daquelas ideias que lhe vieram sobre o infinito.
E de facto, no meio da aula, a questão atravessou-se-lhe na
cabeça e não o largou. Assim que a aula acabou, sentou-se a
conversar com Beineberg, o único com quem poderia falar de
coisas destas.
- Olha lá, percebeste aquilo de há bocado?
- O quê?
- Aquilo dos números imaginários.
- Percebi. Não é assim tão difícil. Tens apenas de te lem-
brar de que a raiz quadrada de menos um é a unidade de cál­
culo básica.
- Mas aí é que está! Essa raiz não existe. Qualquer núme­
ro, positivo ou negativo, elevado ao quadrado, dá sempre um
positivo. Por isso, não pode haver um número real que seja a
raiz quadrada de uma grandeza negativa.
- Tens razão. Mas por que é que não podemos tentar apli­
car a operação da raiz quadrada a um número negativo?

1 29
Robert Musil

Naturalmente que o resultado nunca poderá ser um valor real,


e é por isso que se chama imaginário a esse resultado. É como
se disséssemos: neste lugar sempre se sentou alguém; vamos
pôr também hoje uma cadeira aí; mesmo que ele entretanto
tivesse morrido, nós continuávamos a fingir que ele vinha.
- Mas como, se sabemos com certeza, com certeza mate­
mática, que isso é impossível?
- Continuamos a agir como se não fosse assim. Algum re­
sultado a coisa há-de ter. Afinal, não acontece o mesmo com
os números irracionais? Com uma divisão que tem sempre um
resto, uma fracção a cujo valor nunca se chega, por mais que
se calcule? E como é que imaginas duas linhas paralelas a
tocarem-se no infinito? Eu acho que, se formos demasiado
escrupulosos, a matemática deixa de existir.
- Nisso tens razão. Se virmos as coisas assim, elas são bem
bizarras. Mas o curioso é que, apesar de tudo, podemos fazer
cálculos reais com esses valores imaginários ou impossíveis, e
no fim obter um resultado palpável!
- Claro, para que isso aconteça, os factores imaginários
devem ter de se ir anulando mutuamente no decurso do cál­
culo.
- Claro, claro, tudo o que dizes também eu sei. Mas, ape­
sar de tudo, não fica por resolver um resto estranho? Como é
que hei-de dizer? Pensa no seguinte: num cálculo desses te­
mos a princípio números bem sólidos, que podem represen­
tar metros ou pesos ou qualquer outra coisa concreta, e que
pelo menos são números reais. E no fim do cálculo temos
também números desses. Mas estas duas grandezas estão rela­
cionadas por qualquer coisa que não existe. Não achas que é
como uma ponte que só tem pilares no começo e no fim e
que, apesar disso, podemos atravessar tão seguramente como
se estivesse inteira? Para mim, um cálculo destes tem qual-

130
As Perturbações do Pupilo Torless

quer coisa de vertiginoso; como se uma parte do caminho fos­


se sabe-se lá para onde. Mas o mais inquietante é a força que
está contida num cálculo destes, e que nos prende tanto que
acabamos por chegar mesmo ao outro lado.
Beineberg fez um sorriso irónico:
- Tu já estás quase a falar como o nosso padre: « . .Vês uma
.

maçã - são as vibrações da luz e o olho e por aí fora - e esten­


des a mão para a roubar - são os músculos e os nervos que a
põem em movimento. Mas entre ambas as coisas existe uma
outra que faz uma surgir da outra - é a alma imortal que co­
meteu um pecado ao agir assim ... Pois é, nenhuma das vossas
acções se pode explicar sem a alma, que toca em vós como nas
teclas de um piano ... » - E Beineberg imitava o tom de voz
com que o catequista costumava contar esta velha parábola.
- Aliás, toda essa história me interessa muito pouco.
- Pensei que precisamente tu te interessarias por ela. Pelo
menos, pensei logo em ti, porque isto, a ser realmente inex­
plicável, era quase uma confirmação da tua fé.
- E por que é não havia de ser inexplicável? A mim, pare­
ce-me bem possível que neste ponto os inventores da mate­
mática tenham tropeçado nos próprios pés. Se não, pensa:
por que razão é que aquilo que está para além do nosso en­
tendimento não havia de se permitir uma brincadeira com es­
se mesmo entendimento? Mas eu não perco tempo com isso,
porque estas coisas não levam a lado nenhum.

Nesse mesmo dia, Torless pediu ao professor de Matemá­


tica que o recebesse para esclarecer alguns pontos da última
aula.
No dia seguinte, durante a pausa do almoço, subiu então a
escada até à pequena habitação do professor.

131
Robert Musil

Agora tinha outro respeito pela matemática, que de re­


pente lhe parecia ter deixado de ser mais uma matéria morta
que tinha de aprender, para se transformar em qualquer coisa
de vivo. E esse respeito fez nascer nele uma espécie de inveja
do professor, que devia estar muito familiarizado com todas
aquelas relações, e tinha delas um conhecimento que usava
como se fosse a chave de um jardim fechado. Para além disso,
Torless era movido também pela curiosidade, ainda que um
pouco tímida. Nunca tinha estado no quarto de um homem
novo mas já adulto, e queria muito saber como era a vida de
uma pessoa assim, sábia, mas tranquila, pelo menos pelo que
pudesse deduzir das coisas exteriores que a rodeavam.
Em geral, era tímido e reservado na relação com os profes­
sores, e achava que não gozava de grandes simpatias entre
eles por essa razão. Por isso o pedido que fizera lhe parecia
agora um atrevimento, ao parar, excitado, diante da porta;
não tanto pela explicação que pretendia - mas que, lá bem no
fundo, duvidava que o esclarecesse -, mas mais pela impres­
são que pudesse recolher, de certo modo o outro lado da vida
do professor, o seu concubinato diário com a matemática.
Foi levado para o gabinete de trabalho. Era uma sala com­
prida, com uma só janela. Junto da j anela, uma secretária
cheia de manchas de tinta, encostado à parede um sofá forra­
do com um tecido verde, grosso e com relevo, com borlas nas
pontas. Por cima do sofá, um boné de estudante desbotado e
algumas fotografias dos tempos da universidade, em tom sé­
pia já escurecido e formato de cartão de visita. Em cima da
mesa oval, com pés em xis e cujos arabescos supostamente
graciosos mais pareciam obra de uma harmonia falhada,
havia um cachimbo e tabaco grosso. Todo o quarto cheirava a
tabaco de cachimbo barato.
Ainda Torless mal tinha assimilado estas impressões,
As Perturbações do Pupilo Torless

constatando em si um certo mal-estar, semelhante à sensação


de tocar em qualquer coisa pouco apetitosa, quando o profes­
sor entrou.
Era um homem novo, trinta anos, no máximo; louro, ner­
voso e um excelente matemático que já tinha apresentado à
Academia alguns trabalhos importantes.
Sentou-se logo à secretária, mexendo um pouco nos pa­
péis (Torless teve depois a sensação de que se tratara de uma
estratégia de fuga) , limpou a luneta com o lenço, cruzou as
pernas e fitou Torless, à espera.
Também este começara a observá-lo. Reparou que usava
meias grossas de lã, e que os atilhos das ceroulas estavam pre­
tos da pomada das meias-botas que usava.
Já o lenço do bolso do casaco era branco e bordado, e a
gravata tinha sido remendada, mas em compensação era gar­
rida como uma paleta.
Torless sentia-se ainda mais involuntariamente repelido
por estas pequenas observações; já não tinha grandes espe­
ranças de que este indivíduo pudesse realmente estar de pos­
se de conhecimentos importantes, se a sua pessoa e o am­
biente em que vivia não permitiam minimamente chegar a
essa conclusão. Lá no fundo, Torless tinha imaginado o gabi­
nete de trabalho de um matemático muito diferente deste,
com alguma coisa que remetesse para o que de terrível estava
contido nesta ciência. Ficou chocado com a vulgaridade, que
transpôs para a matemática, e o seu respeito começou a dar
lugar à resistência e à desconfiança.
Como o professor, impaciente, se mexia também na ca­
deira, sem saber como interpretar o longo silêncio e os olha­
res inquisidores, instalou-se logo entre os dois uma atmosfera
de mal-entendido.
- Então vamos lá ... diga lá ... terei muito gosto em dar-lhe
as explicações que precisar - começou o professor.

1 33
Robert Musil

Têirless expôs as suas dúvidas, esforçando-se por deixar


claro o que elas significavam para ele. Mas tinha a sensação de
ter de falar através de uma parede de névoa espessa e turva, e
as suas melhores palavras ficavam logo sufocadas na garganta.
O professor sorriu, tossicou, disse:
- Dá-me licença? - e acendeu um cigarro, fumando avida­
mente. O papel - Têirless não deixava, no meio disto, de repa­
rar em coisas que achava vulgares - ficava engordurado e en­
rolava, crepitando a cada fumaça. O professor tirou a luneta
do nariz, voltou a pô-la, abanando a cabeça ... , e não deixou
que Têirless acabasse.
- Fico muito contente, meu caro Têirless, mesmo muito
contente - disse, interrompendo-o. - As suas dúvidas mos­
tram seriedade, reflexão própria e ... hum ... , mas não é muito
fácil dar-lhe as explicações que pede ... Por favor não me inter­
prete mal.
«Üra veja: falou da intervenção de factores ... transcenden­
tes ... hum, pois ... , chamamos transcendentes aos factores ...
«Üra, eu não sei o que sente em relação a isto; as coisas
supra-sensoriais, para lá dos estritos limites do entendimen­
to, têm as suas particularidades muito próprias. Eu não me
sinto realmente muito qualificado para intervir a esse nível,
não é o campo da minha disciplina; há muitas maneiras de ver
essas coisas, e o que eu menos desejo é entrar em polémica
com quem quer que seja ... Mas, no que respeita à matemática
- e sublinhou bem a palavra matemática, como se quisesse fe­
char para sempre uma ominosa porta -, no que à matemática
diz respeito, não tenho dúvidas de que se trata de um contex­
to natural e apenas matemático.
«Mas, para me ater rigorosamente à ciência, teria de partir
de pressupostos que o senhor dificilmente compreenderia, e
também não temos tempo para isso.

1 34
As Perturbações do Pupilo Tõrless

«Sabe, não me custa admitir, por exemplo, que estes nú­


meros imaginários, que na realidade não existem, ah, ah!, de­
vem ser um osso bem duro de roer para um jovem estudante.
Tem de se contentar em compreender que tais conceitos ma­
temáticos são simplesmente necessidades inerentes ao pensa­
mento matemático. Pense bem: nos níveis de formação ele­
mentares, em que se encontra ainda, é muito difícil dar
explicações para muita coisa que temos de abordar. Felizmen­
te que só muito poucos dão por isso; mas quando alguém co­
mo o senhor hoje - mas, repito, estou muito contente com is­
so -, vem realmente pedir-nos conselho, o que temos para lhe
dizer é: 'Meu amigo, tens simplesmente de acreditar. Quando,
um dia, souberes dez vezes mais matemática do que sabes ho­
je, compreenderás. Mas por enquanto: acredita!'
«Não há outro caminho, meu caro Torless, a matemática é
um mundo imenso, e é preciso viver muito tempo com ela pa­
ra sentir tudo aquilo que nela é da ordem da necessidade.»
Torless ficou aliviado quando o professor se calou. Desde
que ouvira a porta fechar-se, tinha a sensação de que as pala­
vras se afastavam cada vez mais ... para o outro lado, o da indi­
ferença, onde se encontram todas as explicações certas, mas
que não explicam nada.
Mas estava atordoado pela cascata de palavras e pelo seu
fracasso, e não percebeu logo que era altura de se levantar.
Por isso o professor, para resolver a questão de vez, lançou
mão de um último argumento.
Em cima de uma mesa pequena estava um volume da obra
de Kant, muito bem encadernado. O professor pegou nele e
mostrou-o a Torless.
- Está a ver este livro? É filosofia, nele estão contidos os
fundamentos determinantes do nosso agir. Se pudesse enten­
dê-lo até ao fundo, depararia com muitas dessas necessidades

1 35
Robert Musil

do pensamento que determinam tudo, sem que elas próprias


possam ser aceites facilmente. É muito semelhante ao que se
passa na matemática. E, apesar disso, nós continuamos a agir
em conformidade com elas: aqui tem uma prova de como es­
sas coisas são importantes. Mas - disse, ao ver que Torless
abria mesmo o livro e o folheava - não se ponha a lê-lo por
enquanto. Quis apenas dar-lhe um exemplo de que se lem­
brasse um dia mais tarde; por enquanto, o livro ainda é um
pouco difícil para si.

Torless ficou num estado de agitação o resto do dia.


O facto de ter tido Kant nas mãos - uma situação total­
mente casual a que no momento dera pouca importância -,
tinha sobre ele agora um efeito poderoso. O nome de Kant
era-lhe familiar, e tinha para ele o valor corrente que lhe era
atribuído numa sociedade que só remotamente se ocupava
das humanidades - era a última palavra da filosofia. E esta au­
toridade tinha sido uma das razões pelas quais Torless até aí
se ocupara tão pouco de livros sérios. As pessoas muito jo­
vens, uma vez passadas as fases em que querem ser cocheiros,
jardineiros ou pasteleiros, costumam escolher o domínio da
sua missão na vida entre aqueles nos quais a sua ambição vê
mais possibilidades de realizar coisas extraordinárias. Quando
dizem que querem ser médicos, é porque viram um dia uma
sala de espera bonita e cheia, ou um armário de vidro com es­
tranhos instrumentos cirúrgicos ou coisas semelhantes; se fa­
lam da carreira diplomática, pensam no brilho e na elegância
dos salões internacionais: em suma, escolhem a profissão de
acordo com o meio em que gostariam de se ver e a pose que
mais os atrai.
O nome de Kant nunca fo ra pronunciado diante de
As Perturbações do Pupilo Tõrless

Torless senão por acaso, e como se se tratasse de um santo


misterioso. E Torless pensava, de acordo com isso, que os
problemas da filosofia tinham sido definitivamente resolvidos
por Kant, e que esta era desde então uma actividade supér­
flua, do mesmo modo que acreditava que, depois de Goethe e
Schiller, não valia a pena escrever mais.
Lá em casa, esses livros estavam no armário de vidros ver­
des no escritório do pai, e Torless sabia que este nunca era
aberto a não ser para o mostrar a alguma visita. Era como o
santuário de uma divindade de que não gostamos de nos
aproximar e que só veneramos porque ficamos contentes por
saber que a sua existência nos livrou da preocupação com de­
terminados problemas.
Esta relação ínvia com a literatura e a filosofia teve, no de­
senvolvimento futuro de Torless, aquele efeito pernicioso a
que ele devia tanta hora triste. De facto, a sua ambição viu-se
com isso afastada dos seus verdadeiros objectos; e enquanto
ele, privado do seu objectivo, buscava um outro, caiu sob a in­
fluência, brutal e decidida, dos seus companheiros. As suas in­
clinações só ocasionalmente voltavam, envergonhadas, dei­
xando sempre nele a consciência de ter feito qualquer coisa
de inútil e ridícula. Mas eram tão fortes que ele não conse­
guiu livrar-se definitivamente delas, e foi esta luta permanen­
te que roubou ao seu carácter contornos mais nítidos e o por­
te íntegro.
Mas o dia de hoje parecia ter-lhe dado entrada numa nova
fase. As ideias que procurara em vão esclarecer já não eram o
encadeamento desenraizado de uma imaginação caprichosa,
mas mexiam com o que de mais fundo havia nele, não o aban­
donavam, e ele sentia com todo o corpo que por detrás delas
pulsava uma parte da sua vida. Isto era qualquer coisa de ab­
solutamente novo para Torless. Sentia em si uma determinação

1 37
Robert Musil

que antes não conhecia. Era uma coisa quase onírica, miste­
riosa. Devia ter-se desenvolvido nele discretamente sob a
influência dos acontecimentos dos últimos tempos, e agora
batia-lhe à porta com dedos imperiosos. Sentia-se como uma
mãe que se apercebe pela primeira vez dos movimentos impo­
sitivos do fruto do seu ventre.
Foi uma tarde maravilhosa, plena de prazer.
Tõrless tirou da gaveta todas as suas tentativas poéticas.
Sentou-se com elas diante do fogão e ficou sozinho e escondi­
do atrás do grande guarda-fogo. Foi folheando um caderno
atrás do outro; rasgava-os lentamente em pedacinhos, lançan­
do-os no fogo, enquanto saboreava uma a uma as doces emo­
ções da despedida.
Queria deitar para trás das costas todo o lastro que trazia
do passado, como se o importante agora fosse, sem quaisquer
obstáculos, concentrar toda a atenção nos passos a dar em di­
recção ao futuro.
Por fim, levantou-se e foi ter com os outros. Sentia-se livre
de todos os olhares angustiados, de soslaio. O que fizera
acontecera de forma apenas instintiva; nada, a não ser a sim­
ples existência daquele impulso, lhe oferecia a garantia de a
partir de agora se poder tornar outra pessoa. «Amanhã», disse
para consigo, «amanhã vou fazer uma revisão pormenorizada
de tudo, e há-de fazer-se luz».
Andou um pouco pela sala entre as várias carteiras, olhou
para os cadernos abertos, para os dedos que corriam, diligen­
tes, deixando atrás de si pequenas sombras escuras, escreven­
do sobre as folhas de um branco cru - olhava para tudo isso
como alguém que de repente acorda com olhos novos, para os
quais tudo tem um significado mais sério.
As Perturbações do Pupilo Torless

Mas logo no dia seguinte veio a grande desilusão. De ma­


nhã tinha comprado a edição de bolso do volume que tinha
visto na mesa do professor, e aproveitou o primeiro intervalo
para começar a ler. Mas eram tantos os parênteses e as notas
que não entendeu uma palavra, e quando seguia escrupulosa­
mente as frases com os olhos, era como se uma mão ossuda
lhe fizesse girar o cérebro em espiral, arrancando-o da cabeça.
Quando, ao fim de meia hora, parou, esgotado, só tinha
chegado à segunda página, e a testa estava cheia de suor.
Mas depois cerrou os dentes e leu mais uma página, até ao
fim do intervalo.
À noite, porém, já nem lhe apetecia tocar no livro. Medo?
Náusea? Não sabia bem. Só uma coisa o torturava claramente:
que o professor, aquele indivíduo que lhe parecia tão apaga­
do, tivesse o livro bem à vista no seu quarto, como se ele fosse
o seu passatempo diário.
Foi neste estado de espírito que Beineberg o encontrou.
- Então, Tõrless, como é que foi ontem com o professor?
- Estavam os dois sozinhos, sentados num nicho de janela, e
tinham puxado para a sua frente o bengaleiro com os cabides
dos casacos, de modo que apenas ouviam um som abafado
que crescia de vez em quando, vindo da sala de aula, à luz fra­
ca da lâmpada do tecto. Tõrless brincava, distraído, com um
dos casacos pendurados à sua frente. - Estás a dormir? Ele de­
ve ter-te dito alguma coisa. Imagino que o embaraço dele não
deve ter sido pequeno, não foi?
- Porquê?
- Não devia estar preparado para uma pergunta tão estú-
pida.
- A pergunta não era estúpida, e ainda não me livrei dela.
- Não falo de ti; ele é que deve ter achado que era estúpi-
da. Eles aprendem as matérias de cor, como o padre faz com o

1 39
Robert Musil

catecismo, e quando se lhes faz uma pergunta fora do comum


ficam sempre atrapalhados.
- Bom, atrapalhado ele não ficou. Nem me deixou acabar
de falar, de tão depressa que respondeu.
- E como é que te explicou o problema?
- Na verdade, não explicou nada. Disse que eu ainda não
estava à altura de compreender, que se trata de imperativos
de pensamento que só se abrem a quem já se ocupou mais a
fundo destas coisas.
- Aí é que está o logro! Não conseguem convencer com as
suas histórias uma pessoa simplesmente inteligente. Só de­
pois de a massacrarem durante dez anos é que a coisa funcio­
na. Até lá, limitou-se a fazer milhares de vezes cálculos sobre
essa base e ergueu grandes construções que batiam certas até
ao último pormenor; depois, acredita simplesmente, como o
católico acredita na revelação, que nunca foi posta em causa ...
Nessa altura, que dificuldade há em convencer a pessoa? Pelo
contrário, ninguém conseguiria convencê-la de que a sua
construção está realmente de pé, mas que cada pedra se des­
faz em nada se quisermos tocar-lhe!
Torless sentia-se desagradavelmente tocado com o exage­
ro de Beineberg.
- A coisa não será assim tão má como tu a pintas. Eu nun­
ca duvidei de que a matemática tem razão - e os resultados
são a prova disso. Só me pareceu que aquilo ia em muitos as­
pectos contra o nosso entendimento; é bem possível que tudo
não passe de aparência.
- Bom, tu podes esperar os dez anos, talvez então tenhas
o entendimento suficientemente trabalhado ... Mas eu tam­
bém pensei nisso depois da nossa última conversa, e tenho a
certeza de que há uma armadilha no problema. Aliás, tu pró­
prio no outro dia falaste num tom diferente do de hoje.
As Perturbações do Pupilo Tõrless

- Ah, não. Continuo a ter muitas dúvidas, só não quero


exagerar, como tu fazes. Também eu acho tudo isto muito
estranho. A ideia do irracional, do imaginário, das linhas parale­
las que se encontram no infinito - portanto, num lugar qual­
quer -, tudo isso me excita. Quando penso nisso fico atordoa­
do, parece que apanhei uma pancada na cabeça - Torless
inclinou-se para a frente, para dentro da sombra, e a sua voz
ficou mais abafada e baixa. - Na minha cabeça estava tudo
claro e ordenado antes; agora parece que os meus pensamen­
tos são nuvens, e quando chego àqueles pontos críticos, te­
nho a impressão de que se abre um fosso para lá do qual há
uma amplidão infinita e indefinível. A matemática deve ter ra­
zão; mas, e a minha cabeça, e todas as outras? Será que elas
sentem o mesmo? Como é que tudo isto se lhes mostra? Ou
não chegam sequer lá?
- Acho que a resposta podia estar no teu professor. Tu,
quando se te coloca um problema desses, páras para pensar e
perguntas: como é que isto se articula com tudo o resto em
mim? Mas eles abriram no cérebro um caminho com milhares
de espirais e já só conseguem ver até à última curva que ficou
para trás, para se certificarem de que o fio que vão desfiando
ainda se aguenta. Por isso é que as tuas perguntas os deixam
embaraçados. Dessas perguntas não há caminho de volta. Co­
mo é que podes afirmar que eu exagero? Estes adultos, todos
certinhos, envolveram-se completamente numa rede em que
uma malha segura a outra, de maneira que toda essa maravi­
lha parece coisa natural; mas ninguém sabe onde está a pri­
meira malha que sustenta tudo o resto.
«Nós dois nunca falámos muito a sério sobre estas coisas;
afinal, não gostamos de gastar muitas palavras com elas. Mas
agora já vês como são vulneráveis os pontos de vista sobre o
mundo que as pessoas aceitam sem pensar. Ilusão, é o que é,
Robert Musil

engano, debilidade mental! Anemia cerebral ! O entendimen­


to nelas só dá para ir buscar à cabeça aquelas explicações
científicas; cá fora, elas congelam, percebes? Ah, ah! Todos
aqueles pontos extremos que os professores dizem que são
demasiado subtis para nós lá chegarmos agora, são coisa mor­
ta, congelada, entendes? Essas pontas de gelo, tão admiradas,
irrompem para todos os lados, hirtas, e ninguém consegue
fazer nada com elas, de tão mortas que são!»
Torless há muito tempo que se recostara novamente.
A respiração quente de Beineberg ficava presa nos casacos e
aquecia o canto. E como sempre quando se excitava, Beine­
berg deixava em Torless uma impressão penosa. Agora ainda
mais, assim inclinado para a frente, tão próximo que os seus
olhos ficavam imóveis como duas pedras esverdeadas diante
de Torless, enquanto as mãos gesticulavam na penumbra,
numa agitação estranhamente desajeitada.
- Tudo o que eles afirmam não tem fundamento. Dizem
que tudo acontece de forma natural; quando uma pedra cai, é
a força da gravidade - e por que é que não havia de ser a von­
tade de Deus, e por que é que quem for um dos Seus eleitos
não há-de um dia ser liberto do destino da pedra? Mas, para
que é que eu estou para aqui a contar-te isto? Tu hás-de ficar
sempre a meio caminho. Descobrir alguma coisa estranha,
abanar um pouco a cabeça, horrorizar-se um pouco - tu és as­
sim, e não te atreves a ir mais longe. Mas esse não é problema
meu.
- E achas que é meu? As tuas afirmações também não são
assim tão seguras.
- Como é que podes dizer uma coisa dessas? São o que há
de mais seguro. Por que é que eu havia de brigar contigo por
causa disto? Vais ver, meu caro Torless! Aposto que ainda te
vais interessar ferozmente por saber destas coisas. Por exem­
plo, quando te acontecer com o Basini o que eu ...

14 2
As Perturbações do Pupilo Tõrless

- Pára com isso, por favor - interrompeu Tõrless. - Não


quero misturar isso na nossa conversa.
- E por que não?
- Porque não. Não quero. Não gosto. Basini e estas ques-
tões são para mim coisas distintas; e não costumo meter tudo
no mesmo saco.
Beineberg fez um trejeito de irritação, espantado com a
determinação inusitada, e até grosseira, do colega mais novo.
Mas Tõrless sentia que a simples menção do nome de Basini
tinha minado toda a sua segurança, e para esconder isso fala­
va em tom irado.
- Aliás, tu afirmas certas coisas com uma tal segurança
que parece coisa de loucos. Não achas que as tuas teorias po­
dem ter pés de barro como as dos outros? Ainda são espirais
mais labirínticas, e é preciso uma boa-vontade muito maior
para as aceitar.
Curiosamente, Beineberg não ficou zangado; limitou-se a
sorrir - um sorriso um tanto amarelado, é certo, com os olhos
a brilhar de redobrada inquietação, e dizendo repetidas vezes:
- Vais ver, vais ver...
- Vou ver o quê? Quero lá saber! Está bem, vou ver, mas is-
so não me interessa nem um pouco, Beineberg! Tu não me
compreendes. Não percebes o que me interessa. Se a matemá­
tica me causa problemas e se ... - mas pensou duas vezes e não
se referiu a Basini - ... se a matemática me causa problemas, é
porque eu procuro por detrás dela coisas muito diferentes das
tuas, nada de sobrenatural. É precisamente o natural que eu
procuro, percebes? Nada fora de mim - é em mim que busco,
em mim! Qualquer coisa de natural, que, apesar disso, não
compreendo! Mas isto é precisamente o que tu não sentes,
nem o outro, o da matemática ... Ora, deixa-me em paz com as
tuas especulações!

1 43
Robert Musil

Torless tremia, todo agitado, quando se levantou.


E Beineberg continuava a repetir:
- Bom, é o que vamos ver, é o que vamos ver ...

À noite, na cama, Torless não conseguia dormir. Os quar­


tos de hora passavam como enfermeiras pela sua cama, tinha
os pés gelados e o cobertor pesava-lhe, em vez de o aquecer.
No dormitório só se ouvia a respiração calma e regular dos
pupilos que, depois das aulas, da ginástica e das corridas ao ar
livre, dormiam o seu saudável sono animal.
Torless escutava a respiração dos que dormiam. Uma era a
de Beineberg, outra a de Reiting, outra a de Basini ... Qual?
Não sabia; mas seria uma das muitas respirações regulares,
tranquilas, seguras, que subiam e desciam como um mecanis­
mo.
Uma das cortinas de linho só tinha descido até meio; por
baixo entrava a claridade da noite, desenhando no chão um
quadrado de luz fraca e imóvel. O cordão ficara preso em ci­
ma, ou soltara-se, e agora pendia, todo enredado, a sombra no
soalho parecia um verme a rastejar pelo quadrado iluminado.
Tudo isto era de uma fealdade ameaçadora e grotesca.
Torless tentou pensar em qualquer coisa de mais agradá­
vel. Lembrou-se de Beineberg. Não o tinha metido a um can­
to hoje? Tinha inflingido um golpe na superioridade do ou­
tro. Não tinha conseguido hoje pela primeira vez afirmar a
sua personalidade frente a ele? Acentuá-la de tal maneira que
o outro compreendeu a imensa diferença, na subtileza e na
sensibilidade, que separava as suas duas posições? Acaso o ou­
tro fora capaz de encontrar uma resposta final? Sim ou não?
Mas este «sim ou não» começou a crescer na sua cabeça
como bolas de sabão, e rebentou, e continuava a encher, sim
ou não? ... sim ou não?, sem parar, num ritmo marcado, como

1 44
As Perturbações do Pupilo Torless

o rolar de um comboio, como o balançar de flores com caules


muito altos, como o bater de um martelo que se ouve através
de muitas paredes finas numa casa silenciosa ... Torless achava
repugnante este «sim ou não» insistente em que se compra­
zia, a sua alegria não era autêntica, saltitava de modo tão ridí­
culo ...
E por fim, ao sobressaltar-se, parecia que era a sua cabeça
que abanava, que rodava sobre os ombros ou subia e descia a
compasso ...
Finalmente, tudo nele emudeceu. Diante dos seus olhos
havia apenas uma superfície ampla e negra que se estendia
em círculo em todas as direcções.
Duas figurinhas cambaleantes vieram então ... de muito
longe no limite desse círculo, atravessando a mesa. Viu que
eram os seus pais. Mas tão pequenos que não sentia nada por
eles.
E desapareceram novamente do outro lado.
Depois, vieram outras duas - mas, que era aquilo? Uma
outra passou por elas, vinda de trás, com passos duas vezes
maiores que o seu corpo, e em menos de nada tinha desapare­
cido por detrás do canto da mesa. Não era Beineberg? E agora
os dois: um deles não era o professor de matemática? Torless
reconheceu-o pelo lencinho pinoca que espreitava do bolso.
Mas, e o outro? Com um livro grosso, grossíssimo, debaixo do
braço, com metade do tamanho dele próprio, que mal o dei­
xava arrastar-se? ... Os dois paravam a cada passo e pousavam o
livro no chão. E Torless ouvia a vozinha fina do seu professor
dizer: «Se for realmente assim, encontraremos a resposta cer­
ta na página doze, a página doze remete-nos para a página
cinquenta e dois, mas depois temos também de levar em con­
ta o que se diz na página trinta e um, e, partindo desse pres­
suposto ... » Estavam os dois curvados sobre o livro, metendo

1 45
Robert Musil

as mãos por ele adentro e fazendo saltar as folhas. Passado


algum tempo endireitaram-se de novo e o outro fez cinco ou
seis festas na cara do professor. Avançaram mais alguns pas­
sos, e Torless voltou a ouvir a voz, exactamente como se ela
desenrolasse na aula de matemática uma demonstração como
se fosse uma bicha-solitária. Isto durou até o outro fazer nova
festa ao professor.
Aquele outro ... ? Torless franziu as sobrancelhas para ver
melhor. Não usava trança? E roupa um tanto antiquada? Mui­
to antiquada mesmo? Até calções de seda pelo joelho? Não
era ... ? Oh! E Torless acordou com um grito: Kant!
No momento seguinte sorriu; estava tudo tranquilo, o
som da respiração dos que dormiam tornara-se mais baixo.
Também ele tinha adormecido. E entretanto a cama estava
quente. Espreguiçou-se confortavelmente debaixo do cober­
tor.
«Com que então, sonhei com Kant?», pensou. «E por que
é que não sonhei um pouco mais? Talvez ele me tivesse reve­
lado alguma coisa.» Lembrava-se de uma vez, quando não ti­
nha estudado História, em que sonhou toda a noite, e tão
vivamente, com as personagens e os acontecimentos, que no
dia seguinte escrevera sobre eles como se tivesse assistido a
tudo, e saiu do exame com distinção. E agora voltou a pensar
em Beineberg, Beineberg e Kant - a conversa do dia anterior.
Pouco a pouco o sonho foi abandonando Torless lenta­
mente como uma colcha de seda que escorrega interminavel­
mente sobre a pele de um corpo nu.
Mas em breve o seu sorriso deu lugar a um estranho desas­
sossego. Teria ele verdadeiramente dado mais algum passo
em frente com a sua reflexão? Poderia ele descobrir naquele
livro uma coisa que fosse que trouxesse consigo a solução de to­
dos os enigmas? E uma vitória sua? Claro, tinha sido apenas a
sua inesperada vivacidade que levara Beineberg a calar-se ...
As Perturbações do Pupilo Torless

Mais uma vez se sentiu dominado por um profundo desâ­


nimo e mesmo por um mal-estar físico. Ficou durante alguns
minutos como que esvaziado pela náusea.
Mas depois voltou a tomar consciência de como o seu cor­
po era tocado em todos os pontos pelos lençóis macios e
mornos da cama. Virou a cabeça com cautela, devagar, com
todo o cuidado. Sim, lá estava ainda, sobre o soalho, o pálido
quadrado - com os lados já um pouco oblíquos, mas a sombra
retorcida ainda rastejava nele. Era como se ali houvesse um
perigo que ele podia observar com tranquilidade e segurança
a partir da cama, como que protegido por grades.
E despertou na sua pele, por todo o corpo, uma sensação
que de repente se transformou na imagem de uma recorda­
ção. Quando era muito pequeno - sim, sim, lá estava a ima­
gem! -, quando ainda usava vestidinhos e não ia à escola, ti­
nha alturas em que sentia um indizível desejo de ser menina.
E também esse desejo não vinha da cabeça - ah, não! -, nem
do coração, mas formigava pelo corpo todo, sob a pele. Havia
momentos em que se sentia tão vivamente menina que acre­
ditava que não podia ser de outro modo. Nessa altura, ainda
não sabia nada das diferenças físicas dos sexos, e não percebia
por que razão todos lhe diziam que ia ficar para sempre rapaz.
E quando lhe perguntavam por que é que achava que preferia
ser menina, sentia que era impossível dizer porquê ...
Hoje sentia de novo pela primeira vez algo de semelhante.
E outra vez a formigar pelo corpo, sob a pele.
Era qualquer coisa que parecia ser, ao mesmo tempo, cor­
po e alma. Perseguição e fuga, qualquer coisa que lhe batia no
corpo como milhares de antenas aveludadas de borboleta.
E simultaneamente aquela rebeldia que leva as meninas a fugir
quando sentem que os adultos não as compreendem, a arro­
gância com que se põem a cochichar e a rir dos adultos, uma

1 47
Robert Musil

arrogância temerosa, sempre pronta a fugir, e que sente que a


qualquer momento pode retirar-se para um qualquer escon­
derijo muito fundo no seu próprio corpinho ...
Torless riu baixinho e espreguiçou-se uma vez mais sob o
cobertor.
Aquele homenzinho detestável com quem tinha sonhado
- como ele folheava avidamente o livro ! E o quadrado no
chão? Lá estava. Aqueles homenzinhos inteligentes teriam
alguma vez na vida sentido tal coisa? Achava-se totalmente se­
guro contra essa gente tão esperta, e pela primeira vez sentia
que a sua sensualidade - e era a sensualidade, isso já ele sabia
há muito tempo - era qualquer coisa que ninguém lhe podia
tirar, nem imitar, qualquer coisa que, como o mais alto e es­
condido dos muros, o protegia de toda a inteligência alheia.
Será que aqueles homenzinhos inteligentes alguma vez na
sua vida - continuou a desfiar os pensamentos - se tinham
deitado à sombra de uma parede solitária, assustando-se ao
mais leve ruído que ouviam dentro da argamassa, como se
alguma coisa morta aí procurasse palavras para lhes falar? Te­
riam eles sentido alguma vez a música que o vento faz nas fo­
lhas de Outono - como se ela lhes atravessasse o corpo, e atrás
disso viesse um susto ... que lentamente, lentamente, se trans­
formava em sensualidade? Mas uma sensualidade tão especial
como a sua, que era mais como uma fuga, e depois como um
riso trocista? Ah, como é fácil ser inteligente quando não se
conhecem todas estas perguntas ...
Mas no meio disto o homenzinho parecia crescer imenso,
com o seu rosto implacável e severo, e Torless sentia como
que um choque eléctrico doloroso que lhe atravessava o corpo
a partir do cérebro. E depois despertava novamente toda a
dor de continuar diante de um portão fechado - que ainda há
pouco o pulsar quente do sangue tinha repelido -, e um
As Perturbações do Pupilo Tõrless

lamento mudo ecoou pela alma de Torless como o uivo de um


cão a ressoar pela noite da ampla planície.
Assim adormeceu. Pouco antes ainda olhou algumas vezes
para a mancha de luz junto da janela, como quem estende a
mão, num gesto mecânico, para a corda a que se segura, para
verificar se ainda está tensa. Depois surgiu, indefinido, o pro­
pósito de no dia seguinte reflectir novamente a fundo sobre a
sua vida - de preferência com papel e pena -; por fim, mesmo
no fim, apenas o calor agradável e macio, como um banho e
uma excitação dos sentidos, que agora já não era consciente,
mas se ligava, de forma pouco clara e no entanto intensa, a
Basini.
Finalmente, caiu num sono profundo e sem sonhos.

E no entanto foi esta a imagem com que acordou na ma­


nhã seguinte. Agora, teria gostado de saber o que foi que, no
fim, pensou ou sonhou sobre Basini, mas não foi capaz de o
reconstituir.
Assim, ficou apenas uma atmosfera de ternura, como a
que enche uma casa pelo Natal, quando as crianças sabem
que os presentes já chegaram, mas ainda estão fechados atrás
da porta secreta por cujas frestas passa, aqui e ali, um revérbe­
ro do brilho das luzes.
Ao fim do dia Torless permaneceu na sala de aula; Beine­
berg e Reiting tinham ido não sabia para onde, provavelmen­
te para o cubículo no sótão; Basini estava sentado à frente, no
seu lugar, com as mãos segurando a cabeça, a ler um livro.
Torless tinha comprado um caderno, e preparou cuidado­
samente a pena e o tinteiro. Depois, escreveu na primeira pá­
gina, após uma breve hesitação: De natura hominum. Achava
que a matéria filosófica merecia um título latino. Depois fez
um grande arabesco, artisticamente desenhado, à volta do tí­
tulo e voltou a recostar-se na cadeira, à espera que secasse.

1 49
Robert Musil

Mas a tinta há muito que secara e ele ainda não tinha vol­
tado a pegar na caneta. Alguma coisa o mantinha imóvel. Era
o ambiente hipnótico criado pelas grandes lâmpadas quentes,
o calor animal que emanava daquela massa de gente. Sempre
fora sensível a este tipo de situações, que nele podia até pro­
vocar estados febris e estava sempre ligado a uma extraordiná­
ria sensibilidade anímica. Era o que estava a acontecer agora.
Durante o dia, tinha já planeado tudo o que queria anotar: to­
da a série de experiências de determinado tipo que começara
na noite em casa de Bozena e continuara até estes últimos
acessos de sensualidade indefinida. Quando tudo isso estives­
se ordenado, anotado facto a facto, esperava chegar à versão
correcta e racionalmente compreensível, tal como a forma de
uma linha circundante se destaca da imagem confusa de cen­
tenas de curvas que se cruzam. E mais não queria. Mas até
agora acontecera-lhe como ao pescador que sente, no repuxar
da rede, que tem peixe grosso no anzol, mas, apesar de todos
os seus esforços, não consegue trazê-lo à luz.
Torless começou então realmente a escrever - mas preci­
pitadamente, sem atender já à forma. «Sinto», anotou «algo
em mim, mas não sei bem o que é.» Mas riscou depressa a fra­
se e escreveu em seu lugar: «Devo estar doente ... , demente!»
Sentiu um arrepio, pois a palavra era agradavelmente patética.
«Demente - senão, o que será que me faz ver como estranhas
coisas que para os outros são normais? E por que me ator­
menta essa estranheza? Por que é que ela provoca em mim a
tentação da carne?» - escolheu deliberadamente esta expres­
são de ressonâncias bíblicas, porque lhe parecia mais obscura
e consistente. «Antes, encarava isso como qualquer rapaz, co­
mo todos os meus colegas ... » Mas aqui deteve-se. «Será que é
assim?», pensou. «Com a Bozena, por exemplo, já foi assim es­
tranho; então, quando é que começou? ... Tanto faz», pensou,
«foi um dia, como sempre». Mas deixou a frase por acabar.
As Perturbações do Pupilo Torless

«Que coisas me causam então estranheza? As mais insigni­


ficantes. Quase sempre coisas inertes. De onde me vem essa
estranheza? De qualquer coisa que não conheço. Mas aí é que
está! Onde é que eu vou buscar essa 'qualquer coisa'? Sinto
que existe, actua sobre mim como se quisesse falar. Fico agita­
do como uma pessoa que quisesse ler as palavras de uma boca
deformada e não o conseguisse. É como se eu tivesse um sen­
tido a mais que os outros, mas não plenamente desenvolvido,
um sentido que existe, se manifesta, mas não funciona. Para
mim, o mundo está cheio de vozes mudas: serei então viden­
te, ou alucinado?
«Mas não são só as coisas inertes que agem sobre mim;
não, o que me deixa ainda mais perplexo são as pessoas. Até
uma certa altura, eu via-as como elas próprias se vêem. Beine­
berg e Reiting, por exemplo - têm o seu cubículo, um lugar
vulgaríssimo, escondido num sótão, porque os diverte terem
um refúgio assim. Agem de determinada maneira porque têm
raiva de alguém, fazem outras coisas porque querem evitar
que mais alguém tenha influência sobre os colegas. Tudo mo­
tivos claros e compreensíveis. Mas hoje eu vejo-os às vezes
como se fossem personagens de um sonho que eu tive. Não são
apenas as suas palavras, nem as suas acções, não, tudo neles,
associado à sua proximidade física, age sobre mim como as
coisas inanimadas. E no entanto ouço-os falar exactamente
como sempre, vejo que os seus actos e as suas palavras se­
guem os mesmos princípios ... Tudo isso me está constante­
mente a dizer que não há nada de extraordinário a acontecer,
mas constantemente alguma coisa em mim se recusa a enten­
der isso. Esta transformação, se bem me lembro, começou
quando o Basini . . . »
Aqui chegado, Torless olhou sem querer para Basini.
Este continuava curvado sobre o livro, parecia estudar.
Robert Musil

Ao vê-lo assim, o fluxo do pensamento deteve-se em Torless,


e sentiu novamente em si os excitantes tormentos que acaba­
ra de descrever. Ao tomar consciência de como Basini estava
ali, tranquilo e inocente, diante dele, sem se distinguir em nada
dos outros à esquerda e à direita, vieram-lhe ao espírito as
imagens vivas das humilhações que ele tinha sofrido. Imagens
vivas: isso quer dizer que ele estava longe de pensar, com
aquela relativa jovialidade que é apanágio da superioridade
moral, que qualquer pessoa, depois das humilhações sofri­
das, e pelo menos na sua postura exterior, tenta o mais rapi­
damente possível retomar o seu aspecto imperturbável. Não,
o que imediatamente nele se manifestou foi um movimento
círcular vertiginoso que deformava incrivelmente a figura de
Basini, voltava a desfigurá-la em esgares inauditos, de tal mo­
do que o próprio Torless sentia vertigens. Mas estas eram
apenas comparações que inventou posteriormente. De mo­
mento tinha apenas a sensação de que nele qualquer coisa
como um pião descontrolado subia do peito apertado até à
cabeça, provocando-lhe vertigens. E, cruzando-se com estas,
sensações de pontos de cor saltando como faúlhas, que em di­
versas ocasiões surgiam quando estava com Basini.
De facto, tratara-se sempre da mesma sensação. E, vendo
bem, nem sensação era. Era um tremor de terra fundo que
não provocava ondas perceptíveis, mas que fazia estremecer a
alma tão poderosamente que, ao lado das mais tempestuosas
emoções, as próprias ondas pareciam ser apenas inofensivos
encrespamentos de superfície.
E se esta sensação particular se tornara diversamente
consciente em momentos diferentes, era porque, para expli­
car essa onda que lhe inundava todo o organismo, ele apenas
dispunha das imagens que dela lhe caíam nos sentidos - co­
mo quando uma ondulação que se estende na escuridão até
As Perturbações do Pupilo Türless

ao infinito só faz saltar contra os rochedos da margem ilumi­


nada partículas soltas que logo desaparecem, sem remédio,
do círculo da luz.
Por isso estas impressões eram instáveis, mutantes, acom­
panhadas da consciência da sua natureza casual. Torless nun­
ca foi capaz de as reter, porque, ao olhar melhor, sentia que
estas manifestações de superfície eram infinitamente mais
fracas do que o ímpeto da massa obscura e informe que pre­
tendiam representar.
Nunca «via» Basini como forma física e figura viva, nunca
teve uma visão: sempre e apenas a ilusão disso, por assim di­
zer, apenas a visão das suas visões. Era sempre como se uma
imagem tivesse passado a correr sobre a misteriosa superfície,
sem que ele conseguisse apanhá-la no momento em que pas­
sava. Daí o permanente desassossego que sentia, semelhante
à inquietação provocada pelo animatógrafo, quando, paralela­
mente à ilusão do todo, não conseguimos libertar-nos da vaga
percepção de que, por detrás da imagem que recebemos,
há centenas de imagens a passar - e todas elas diferentes da­
quela.
Não sabia, porém, onde procurar exactamente, dentro de
si, esta força da ilusão - que, no entanto, e numa ínfima frac­
ção, não era nada ilusória. Tinha apenas a vaga intuição de
que estava relacionada com aquela enigmática qualidade da
sua alma, a de ser sensível também às coisas inanimadas, me­
ros objectos, que o atingiam como centenas de olhos silencio­
sos e interrogativos.
Torless ficou assim sentado, imóvel e em silêncio, olhan­
do incessantemente para Basini e totalmente enredado na­
quela louca vertigem interior. E sempre a mesma pergunta a
atravessar-se: que qualidade singular é esta que eu possuo?
Pouco a pouco até deixou de ver Basini e as lâmpadas de

1 53
Robert Musil

chama viva, nem sentia já o calor animal à sua volta, nem a


zoada e o rumor que enchem o ar quando se junta muita gente,
ainda que só sussurrem. Tudo isso circulava à sua volta como
uma massa incandescente, escura e indistinta. Sentia apenas
um ardor nas orelhas e um frio gélido nas pontas dos dedos.
Encontrava-se num daqueles estados de febre, mais anímica
que física, de que tanto gostava. Esse estado de espírito inten­
sificava-se, à mistura com emoções de grande delicadeza. An­
tes, quando se encontrava neste estado, gostava de se entre­
gar às recordações que a mulher deixa quando o seu hálito
quente roça pela primeira vez uma alma juvenil. Também
agora despertava nele esse calor de cansaço. Lá estava uma
dessas recordações ... Foi durante uma viagem ... numa peque-
na cidade italiana ... onde estava hospedado com os pais numa
estalagem não muito longe do teatro. Todas as noites repre­
sentavam a mesma ópera, e todas as noites ele ouvia distinta­
mente as palavras e a música. Mas não dominava a língua.
Ainda assim, lá estava ele todas as noites à janela, à escuta.
Deste modo se apaixonou por uma das actrizes, sem sequer a
ter visto. Nunca o teatro o tinha emocionado tanto como nes­
sa ocasião; a paixão das melodias era para ele como o bater de
asas de grandes pássaros sombrios, como se pudesse ver as li­
nhas que o seu voo traçava na sua alma. Não eram paixões hu­
manas o que ouvia, não, eram paixões que saíam voando das
pessoas, como de gaiolas demasiado acanhadas e vulgares. Na
sua excitação, nunca pensava nas pessoas que, do outro lado,
invisíveis, davam corpo a essas paixões; quando tentava imagi­
ná-las, logo via diante de si labaredas escuras, dimensões des­
comunais como corpos que crescem na escuridão ou olhos
humanos que brilham como espelhos de poços muito fundos.
O que ele amava nessa altura, sob o nome daquela actriz des­
conhecida, eram essas chamas sombrias, os olhos no escuro, o
bater de asas negras.

1 54
As Perturbações do Pupilo Torless

E quem era o autor da ópera? Não sabia. Talvez o texto


não passasse de um romance de amor enfadonho e sentimen­
tal. Teria o seu criador sentido que ele se transformava radi­
calmente com a música?
Tõrless sentiu todo o corpo oprimido por um pensamen­
to. Os adultos também serão assim? Será o mundo assim? Será
uma lei universal o existir em nós qualquer coisa que é mais
forte, maior, mais bela, mais apaixonada e mais obscura do
que nós? Qualquer coisa que nós dominamos tão pouco que
apenas podemos espalhar milhares de sementes sem objecti­
vo, até que subitamente saia de uma delas uma chama escura
que cresce muito para além de nós? E em cada nervo do seu
corpo vibrava, como resposta, um impaciente «sim».
Tõrless olhou em volta com os olhos a brilhar. As lâmpa­
das, o calor, a luz, as pessoas atarefadas, continuava tudo ali.
Mas via-se no meio de tudo isso como um eleito. Como um
santo que tem visões celestiais - da intuição dos grandes
artistas nada sabia.
Precipitadamente, com a pressa do medo, pegou na pena
e anotou algumas frases sobre a sua descoberta; uma vez mais
lhe parecia que uma luz faiscava dentro de si ... Depois, aba­
teu-se sobre os seus olhos uma chuva de cinza, e apagou-se o
brilho irisado no seu espírito ...

Mas o episódio de Kant estava praticamente superado.


Durante o dia, Tõrless já nem pensava nisso; estava demasia­
do viva nele a convicção de que não andaria longe da solução
dos seus enigmas, para se preocupar ainda com os caminhos
sugeridos por outro. Desde a noite anterior, era como se já ti­
vesse na mão a maçaneta da porta que levava ao outro lado,
mas esta lhe tivesse escapado outra vez. No entanto, como

1 55
Robert Musil

constatara que tinha de prescindir da ajuda de livros de filoso­


fia, e também não tinha muita confiança neles, ficou bastante
perplexo quanto à maneira de voltar a pôr a mão naquela maça­
neta. Fez várias tentativas para continuar com as suas anota­
ções, mas as palavras escritas continuavam mortas, uma série de
pontos de interrogação desprezíveis e mais do que conhecidos,
sem que tivesse voltado aquele momento em que olhara através
deles como para o interior de uma abóbada iluminada por cha­
mas de vela tremeluzentes.
Por isso, decidiu procurar sempre que possível aquelas si­
tuações cujo conteúdo se revelara tão peculiar; e o seu olhar
nunca deixava de pousar em Basini quando este, julgando que
ninguém o observava, andava despreocupado por entre os ou­
tros. «Alguma vez», pensava Torless, «aquilo irá voltar, talvez
mais vivo e mais nítido do que até agora». E ficava muito tran­
quilo ao pensar que, na nossa relação com essas coisas, nos
encontramos num espaço escuro e não nos resta mais do que
percorrer de novo as paredes às apalpadelas quando perde­
mos o contacto com o sítio certo.
De noite, porém, estes pensamentos mudavam um pouco.
Sentia uma certa vergonha por se ter desviado assim do seu
propósito inicial de procurar no livro que o professor lhe
mostrara a explicação que provavelmente ele continha. De­
pois, ficava em silêncio, escutando o respirar de Basini, tão
calmo no seu corpo profanado como o de todos os outros. Fi­
cava quieto como um caçador espreitando a presa, com a sen­
sação de que o tempo de espera teria a sua recompensa. Mas
logo que regressava a lembrança do livro, a dúvida começava a
roer com dentes finos a sua calma, advinha o pressentimento
de estar a fazer algo de inútil, a confissão hesitante da derrota
sofrida.
Sempre que essa sensação indefinida dominava, a sua
As Perturbações do Pupilo Tõrless

atenção perdia a tranquilidade com que se assiste à evolução


de uma experiência científica. Nessas alturas parecia-lhe que
do lado de Basini vinha uma influência física, um estímulo,
como quando dormimos próximo de uma mulher que a todo
o momento podemos destapar. Um sinal no cérebro que par­
te da consciência de que só precisamos de estender a mão.
Aquilo que leva muitas vezes os casais jovens a excessos que
vão muito para além das suas necessidades sexuais.

Consoante a vivacidade com que se lembrava de que a sua


experiência talvez lhe parecesse ridícula se soubesse tudo o
que sabiam Kant, o seu professor, todos os que acabaram os
seus estudos, conforme a intensidade desse abalo, assim eram
mais fracos ou mais fortes os impulsos do corpo que, apesar
do silêncio do dormitório, mantinham os seus olhos ardentes
e abertos. Por vezes, essas chamas acendiam-se nele com tan­
ta intensidade que apagavam todos os outros pensamentos.
Quando, nesses momentos, se entregava aos seus apelos, em
parte desejoso, em parte desesperado, acontecia com ele o
mesmo que com todas as pessoas que nunca se entregam tan­
to à sensualidade desvairada, excessiva, que lhes dilacera a al­
ma, a dilacera deliberada e voluptuosamente, como quando
sofreram um desaire que abala o equilíbrio da sua consciência
de si ...
Quando, j á depois da meia-noite, finalmente caiu num
meio sono inquieto, pareceu-lhe algumas vezes que alguém,
vindo da zona das camas de Beineberg e Reiting, se levantava,
pegava na capa e se dirigia para o lado de Basini. Depois, os
dois saíam do dormitório ... Mas também podia ser apenas a
sua imaginação ...

1 57
Robert Musil

Vieram então dois di as feriados; corno eram à segunda e


terça-feira, o director dispensou os alunos já no sábado, de
modo que tiveram quatro dias de férias. Para Torless, porém,
era pouco tempo para fazer a longa viagem até casa; por isso,
tinha esperança de que pelo menos os pais o visitassem. Mas
o pai foi retido por assuntos urgentes do ministério, e a mãe
não se sentia bem, e por isso não queria fazer sozinha a cansa­
tiva viagem.
Só quando recebeu a carta dos pais, dizendo que não vi­
nham e acrescentando palavras ternas e de consolo, Torless
sentiu que preferia que fosse assim. Para ele teria sido quase
um incómodo - pelo menos tê-lo-ia perturbado muito - ter
de encarar os pais neste momento.
Muitos dos pupilos receberam convites para passar os dias
em propriedades vizinhas. Também Dschiusch, cuj os pais
possuíam urna bela propriedade a um dia de viagem da pe­
quena cidade, tirou férias e levou consigo Beineberg, Reiting
e Hofrneier. Basini também fora convidado, mas Reiting orde­
nou-lhe que recusasse. Torless desculpou-se dizendo que ain­
da não sabia bem se os pais afinal viriam; não estava nada com
disposição para festas e conversas despreocupadas e alegres.
No sábado ao meio-dia já o grande casarão estava silencio­
so, quase abandonado.
Ao atravessar os corredores, os passos de Torless ecoavam
de urna ponta à outra; ninguém se preocupava com ele, por­
que também a maioria dos professores tinham ido à caça ou
para outros lugares. Os poucos pupilos que ficaram só se viam
às refeições, que agora eram servidas numa sala pequena ao
lado do refeitório vazio; depois de comerem, os seus passos
dispersavam-se pelos muitos corredores e salas, corno que en­
golidos pelo silêncio da casa; e todos levavam urna vida tão
ignorada corno a das aranhas e centopeias na cave e no sótão.
As Perturbações do Pupilo Têirless

Da turma de Torless só ele e Basini ficaram, com excepção


de alguns outros que estavam na enfermaria. À despedida,
Torless trocara ainda algumas palavras em segredo com Rei­
ting, a propósito de Basini. Reiting receava que Basini pudes­
se aproveitar esta oportunidade para pedir protecção a algum
professor, e recomendou a Torless que ficasse de olho nele.
Mas isso não era preciso para que Torless concentrasse a
sua atenção em Basini.
Mal acalmara a agitação das carruagens a chegar, dos cria­
dos a carregar as bagagens, das piadas dos alunos à despedida,
e já Torless estava completamente dominado pela consciência
de ficar sozinho com Basini.
Foi logo depois da primeira refeição. Basini estava senta­
do à frente, no seu lugar, a escrever uma carta; Torless tinha­
-se sentado no canto mais recuado, e tentava ler.
Era a primeira vez que voltava a pegar no tal livro, e Tür­
less tinha já imaginado a situação do seguinte modo. Basini
estava sentado à frente, ele lá atrás, de olhos postos nele, todo
concentrado nele. Era assim que queria ler. Penetrando mais
em Basini a cada página. Era assim que tinha de ser; era assim
que tinha de encontrar as verdades, sem abrir mão da vida, da
vida viva, complexa, duvidosa ...
Mas não deu resultado. Como sempre que ele planeava al­
guma coisa com demasiado cuidado. A coisa era pouco espon­
tânea, e o seu estado de espírito caía rapidamente num tédio
denso, espapaçado, que se pegava a todas as tentativas reno­
vadas e sempre forçadas.
Furioso, Torless atirou o livro ao chão. Basini voltou-se,
assustado, mas continuou logo a escrever, apressado.
E assim as horas foram passando até ao anoitecer. Torless
continuava sentado, absorto. A única coisa que lhe chegava à
consciência, elevando-se daquela disposição geral entorpecida

1 59
Robert Musil

e sussurrante, era o tiquetaque do relógio de algibeira, agitan­


do-se como um rabinho atrás do corpo vagaroso das horas.
A sala ficou imersa na penumbra ... Era impossível que Basini
ainda estivesse a escrever. .. «Ah, talvez não se atreva a acender
a luz», pensou Torless. Mas, ainda estaria sentado no seu
lugar? Torless tinha olhado lá para fora, para a paisagem despi­
da e crepuscular, e teve de acostumar os olhos à escuridão da
sala. Era ele, sim. Aquela sombra imóvel, deve ser ele. Ah, ago­
ra soluça - uma vez ... duas ... -, ou será que está dormir?
Veio um contínuo e acendeu as luzes. Basini deu um salto
e esfregou os olhos. Depois tirou um livro da gaveta e pareceu
pôr-se a estudar.
Torless estava em pulgas para lhe falar, mas para evitar is­
so saiu precipitadamente da sala.

Nessa noite Torless teve de se conter para não se atirar a


Basini, tal a violência da sensualidade que despertara nele
depois do martírio daquele dia parado e entorpecido. Felizmen­
te, o sonho veio libertá-lo a tempo.
O dia seguinte passou, sem trazer mais do que a mesma
esterilidade do silêncio. O silêncio, a expectativa, criavam em
Torless uma sobreexcitação, a atenção constante consumia
toda a sua força de ânimo, deixando-o incapaz de qualquer
pensamento.
Abatido, desiludido, insatisfeito consigo próprio e roído
de dúvidas, deitou-se cedo.
Já tinha caído há muito tempo num meio sono febril e
inquieto, quando ouviu Basini entrar.
Sem se mexer, seguiu com os olhos o vulto escuro que
passava pela sua cama; ouviu os ruídos provocados pela roupa
a cair; por fim, o roçar do cobertor ao ser puxado sobre o cor­
po.

160
As Perturbações do Pupilo Torless

Tõrless susteve a respiração, mas já não ouvia nada. E no


entanto sentia que Basini não estava a dormir, mas à escuta
no escuro, tenso como ele.
Passaram alguns quartos de hora, horas, apenas interrom­
pidas de vez em quando pelos ruídos leves dos corpos a mexe­
rem-se nas camas.
Tõrless encontrava-se num estado singular, que o manti­
nha desperto. No dia anterior tinham sido imagens de sen­
sualidade que, na sua imaginação, o puseram num estado
febril. Só no fim se haviam orientado para Basini, manifestan­
do-se pela última vez como que sob a mão implacável do sono
que as extinguiu, e disso não ficara mais que uma obscura
lembrança. Mas hoje, desde o início, só sentia o desejo pulsio­
nal de se levantar e ir até à cama de Basini. Enquanto sentiu
que Basini estava acordado e à escuta, dificilmente o pôde su­
portar; e agora que ele certamente já estava a dormir é que
sentia ainda mais uma excitação cruel que o impelia a cair so­
bre o outro como se fosse uma presa.
Tõrless sentia já em todos os músculos os movimentos do
gesto de se levantar e sair da cama. Mas não conseguia ainda
libertar-se da imobilidade.
«Afinal, o que é que eu vou fazer ali, junto dele?», pergun­
tou a si mesmo, receoso, quase em voz alta. E teve de reco­
nhecer que a crueldade e a sensualidade não tinham nele
qualquer objectivo definido. Ficaria embaraçado se se atirasse
realmente a Basini. Quereria bater-lhe? Nem pensar! Então,
de que modo iria a sua excitação satisfazer-se com ele? Sentiu,
sem querer, uma repulsa ao pensar em todos os pequenos
vícios dos rapazinhos. Expor-se assim diante de outra pessoa?
Nunca! ...
Mas à medida que a repulsa crescia tornava-se também
mais forte o desejo de ir até à cama de Basini. Por fim, Tõrless
Robert Musil

estava plenamente convencido do absurdo da ideia, mas um


impulso puramente físico parecia puxá-lo para fora da cama
como se estivesse preso a uma corda. E, enquanto todas as
imagens desapareciam da sua cabeça e ele dizia a si próprio
ininterruptamente que o melhor agora era tentar dormir, le­
vantou-se da cama num gesto mecânico, muito lentamente -
sentia claramente como este impulso interior só pouco a pou­
co vencia as resistências. Primeiro um braço ... , depois apoiou
o tronco, depois passou um joelho para fora do cobertor. .. ,
depois ... : mas, de repente, pôs-se a correr descalço, em bicos
de pés, na direcção de Basini, e sentou-se na beira da cama.
Basini dormia.
Parecia que estava a ter um belo sonho.
Tõrless ainda não controlava o que fazia. Ficou sentado
por um momento, quieto, olhando para o outro. Passavam­
-lhe pelo cérebro aqueles pensamentos breves, soltos, como
que para constatar apenas o ponto da situação, pensamentos
que surgem quando perdemos o equilíbrio, caímos ou nos ar­
rancam um objecto das mãos. Sem reflectir, agarrou Basini
pelos ombros e sacudiu-o.
O rapaz espreguiçou-se algumas vezes, e depois ergueu-se
de um salto, olhando para Tõrless com olhos tontos de sono.
Tõrless assustou-se; estava perturbadíssimo, pela primeira
vez teve consciência do seu acto, e não sabia o que fazer. Sen­
tiu-se terrivelmente envergonhado. Ouviam-se as pulsações
do seu coração. Afloravam-lhe à língua palavras de explicação,
desculpas. Quis perguntar a Basini se não tinha fósforos, se
lhe dizia as horas ...
Este continuava a olhar para ele sem entender nada.
Tõrless ia já a retirar o braço, sem dizer uma palavra, já se
deixava escorregar da cama para se retirar sem ruído para a
sua, quando Basini pareceu finalmente perceber a situação e
se levantou de um salto.
As Perturbações do Pupilo Torless

Torless continuou sentado na beira da cama, sem saber


que fazer. Basini voltou a olhar para ele como que a interrogá­
-lo e a testá-lo, saiu da cama, enfiou a capa e as pantufas e foi
andando, arrastando os pés.
Torless percebeu imediatamente que não era primeira vez
que isto acontecia.
De passagem, pegou na chave de acesso ao cubículo, que
tinha escondido debaixo da almofada ...
Basini dirigiu-se directamente para o sótão. Entretanto,
parecia conhecer bem o caminho que antes tinham escondido
dele. Segurou no caixote quando Torless subiu para ele, des­
viou os cenários com cuidado, com movimentos discretos, co­
mo um lacaio bem treinado.
Torless abriu, e entraram. Estava de costas para Basini, a
acender a pequena lanterna.
Quando se voltou, Basini estava nu à sua frente.
Deu um passo atrás sem querer. A súbita visão do corpo
nu, branco de neve, atrás do qual o vermelho das paredes pa­
recia sangue, ofuscou-o e deixou-o perplexo. Basini tinha um
belo corpo, quase sem um traço de virilidade, de uma magre­
za casta e esguia, como o de uma rapariguinha. E Torless sen­
tia a imagem desta nudez como se fossem chamas alvas e
ardentes a incendiar os seus nervos. Não pôde resistir à força
daquela beleza. Antes, não sabia o que era a beleza. De facto,
na sua idade, o que era para ele a arte? Que sabia ele dela? Até
uma certa idade, ela é realmente incompreensível e enfado­
nha para quem foi criado ao ar livre.
Mas ali viera ter com ele pelos caminhos da sensualidade.
Secretamente, de rompante. Um sopro cálido e perturbador
emanava da pele nua, aliciante, macia e cheia de sensualidade.
E havia nela também qualquer coisa de sagrado e solene.
Passada a primeira surpresa, Torless ficou envergonhado
Robert Musil

com as duas coisas. «Mas, é um homem !» Ficou indignado


com a ideia, mas sentia também que uma rapariga não seria
muito diferente.
A vergonha levou-o a invectivar Basini com rudeza:
- O que é que te passou pela cabeça? Vais já ...
Agora era Basini que parecia perplexo; hesitante, e sem ti­
rar os olhos de Torless, apanhou do chão a capa.
- Senta-te ali! - ordenou Torless. O outro obedeceu. Tür­
less estava encostado à parede, com as mãos cruzadas atrás
das costas.
- Por que é que te despiste? O que é que querias de mim?
- Bom, pensei ...
Hesitação.
- Pensaste o quê?
- Os outros ...
- Os outros o quê?
- O Beineberg e o Reiting ...
- Mas, o Beineberg e o Reiting o quê? O que é que eles te
faziam? Vais-me contar tudo! É uma ordem, estás a perceber?
Apesar de eles já me terem contado tudo. - Torless ruborizou
ao mentir assim desajeitadamente. Basini mordeu os lábios.
- Então, desembuchas ou não?
- Não, não me peças que te conte! Por favor, não me obri-
gues! Faço tudo o que tu quiseres. Mas contar, não ... Tens
uma forma tão estranha de me torturar. .. ! - Nos olhos de Ba­
sini era visível uma luta entre o ódio, o medo e a súplica. Sem
querer, Torless cedeu:
- Eu não te quero torturar coisa nenhuma! Só te quero
obrigar a dizer pessoalmente toda a verdade. Talvez no teu in­
teresse.
- Mas eu não fiz nada que valha a pena ser contado.
- Ah, não? Então por que é que te despiste?
As Perturbações do Pupilo Têirless

- Eles exigiam que eu fizesse isso.


- E por que é que tu fazias o que eles queriam? Porque és
um cobarde, um miserável cobarde!
- Não, não sou cobarde! Não digas isso !
- Cala a boca! Se tens medo de apanhar deles, vais ver co-
mo é apanhar de mim!
- Mas eu não tenho nada medo de apanhar deles.
- Então tens medo de quê?
Torless falava agora mais calmo. Já estava a arrepender-se
deste tom de ameaças rudes. Tinham-lhe saído sem querer, só
porque lhe parecia que Basini estava a armar mais com ele do
que com os outros.
- Se não tens medo, como dizes, então o que é que se pas­
sa?
- Eles dizem que se eu lhes obedecer me perdoam tudo
daqui a algum tempo.
- Os dois?
- Não, todos.
- Como é que eles te podem prometer uma coisa dessas?
E eu, não conto?
- Eles dizem que disso tratam eles.
Foi como um murro para Torless. Lembrou-se de que Bei­
neberg dissera que Reiting agiria com ele da mesma maneira
que com Basini. E se a coisa chegasse ao ponto de intrigarem
contra ele, que faria? Nisso, não estava à altura dos outros
dois. Até onde poderiam eles ir? Até ao ponto em que foram
com Basini ... ? Tudo nele se recusava a aceitar esta ideia per­
versa.
Passaram alguns minutos entre ele e Basini. Sabia que lhe
faltava coragem e resistência para tais intrigas; mas apenas
porque isso pouco lhe interessava, porque nunca sentia toda a
sua personalidade em jogo. Sempre tivera mais a perder do
Robert Musil

que a ganhar com tais coisas. Mas se um dia fosse diferente,


sentia que saberia encontrar outra dureza e outra coragem. Só
era preciso saber qual o momento para apostar tudo.
- Eles entraram em mais pormenores sobre isso ... ? Isso a
meu respeito ...
- Pormenores? Não. Só disseram que tratavam disso.
Ainda assim .. ., parecia haver algum perigo .. ., algures, es­
condido ... à espreita para o apanhar; cada passo podia ir dar a
uma armadilha, cada noite podia ser a última antes da luta.
A ideia provocava nele uma enorme insegurança. Isto já não era
o deixa-andar do costume, não era nenhum jogo com visões
enigmáticas - tinha arestas duras, era uma realidade palpável.
Retomaram o diálogo.
- E contigo, o que é que fazem?
Basini ficou calado.
- Se pensas a sério em corrigir o que fizeste, é melhor
contares-me tudo.
- Eles obrigam-me a tirar a roupa.
- Pois, pois, isso já eu vi ... E mais?
Pequena pausa, depois Basini disse:
- Várias coisas.
Dizia aquilo num tom efeminado e lascivo.
- Então, és a ... amante deles?
- Não, não! Sou amigo deles!
- Comu é que te atreves a dizer uma coisas dessas?
- São eles próprios que o dizem ...
- O quê?
- Sim, o Reiting.
- Ah, sim, o Reiting?
- Sim, é muito meu amigo. A maior parte das vezes tenho
de me despir e ler em voz alta histórias antigas, de Roma e
dos seus imperadores, dos Bórgias, de Timur Chan ... Estás a

166
As Perturbações do Pupilo Têirless

ver, só histórias destas, sangrentas e grandiosas. Nessas altu­


ras até é muito carinhoso comigo.

- E depois bate-me quase sempre ...


. . .
- D epo1s d o que' 2. ... Ah , Jª sei.,
,

- Sim, diz que se não me batesse tinha de imaginar que eu


sou um homem, e então não podia ser tão doce e carinhoso
comigo. Mas se me bate eu sou um objecto seu, e isso já não o
incomoda.
- E o Beineberg?
- Ah, o Beineberg é um bruto. Não achas também que ele
cheira mal da boca?
- Cala-te! O que eu acho ou deixo de achar não é da tua
conta! Diz lá o que é que o Beineberg faz contigo!
- Bom, o mesmo que o Reiting, só que ... Mas promete que
não vais outra vez gritar comigo ...
- Conta .. .
- Bom ... , com ele é de outra maneira. Primeiro, faz-me
grandes discursos sobre a minha alma. Diz que eu a sujei, mas
de certa forma ainda só o primeiro pátio. Comparado com o
santuário, isto não é nada, só coisa exterior. Mas tem de ser
extinto; já muitos assim passaram de pecadores a santos. Por
isso o pecado, tendo em vista objectivos superiores, não é as­
sim tão mau; só precisamos de o levar até ao extremo para o
poder quebrar. Obriga-me a sentar e a olhar para um vidro
polido ...
- Hipnotiza-te?
- Não, diz apenas que precisa de adormecer tudo o que
anda a boiar à superfície da minha alma, para lhe retirar a for­
ça. Só depois pode entrar em relação com ela.
- E como é que ele entra em relação com ela?
- É uma experiência que nunca deu resultado. Ele está
Robert Musil

sentado e eu tenho de me deitar no chão, para ele poder pôr


os pés sobre o meu corpo. Tenho de ficar bem sonolento e
mole sob o efeito do vidro. De repente, ele ordena-me que la­
dre, e descreve exactamente como: baixinho, mais como um
ganido, como um cão ladra quando está meio adormecido.
- E para quê tudo isso?
- Ninguém sabe. Também me manda grunhir como um
porco, e repete constantemente que eu tenho em mim qual­
quer coisa deste animal. Mas não como se me quisesse insul­
tar; repete-o em voz baixa e em tom amigável, para que isso,
como diz, fique gravado no meu sistema nervoso. Afirma que
provavelmente eu já fui porco numa das minhas anteriores
existências, e que é preciso atrair esse lado para o neutralizar.
- E tu acreditas em tudo o que ele diz?
- Deus me livre! Acho que nem ele. E depois, no fim, tam-
bém ele fica muito diferente. Como é que eu ia acreditar em
coisas destas? Quem é que hoje acredita na alma e em reen­
carnações? Sei muito bem que errei, mas sempre esperei po­
der redimir-me. Para isso não precisamos de todo este abraca­
dabra. E eu também não me preocupo muito em saber como
pude dar aquele passo em falso. Essas coisas acontecem num
ápice, sem nós sabermos como, e só depois é que vemos que
fizemos disparate. Mas se ele se diverte tanto a tentar desco­
brir algo de sobrenatural por detrás disso, que lhe faça bom
proveito. Por enquanto ainda tenho de lhe obedecer. Se ele
ao menos deixasse de me picar. ..
- O quê?
- Sim, com uma agulha ... Bom, não é com força, é só para
ver como eu reajo, e se ele dá por alguma coisa de anormal
nalguma parte do meu corpo. Mas não se pode dizer que não
dói. Ele diz que os médicos não percebem nada destas coisas,
não me lembro bem de como ele quer provar isso, só sei que

i68
As Perturbações do Pupilo Torless

fala muito de faquires, que, quando contemplam a sua pró­


pria alma, são insensíveis à dor física.
- Sim, essas ideias também eu as conheço. Mas tu próprio
disseste que isso não era tudo.
- E não é. Também disse que considero tudo isto um pre­
texto da parte dele. Depois passam sempre uns quartos de ho­
ra em que ele fica calado e eu não sei o que se passa. E de
repente acorda e exige os meus serviços, como um possesso,
muito pior do que o Reiting.
- E tu fazes tudo o que eles exigem de ti?
- O que é que eu posso fazer? O que eu quero é voltar a
ser uma pessoa decente e que me deixem em paz.
- Mas o que entretanto aconteceu não te é indiferente, ou
e' ".
- Eu não posso mudar as coisas.
- Agora presta atenção e responde às minhas perguntas:
como é que tu foste capaz de roubar?
- Como assim? Bom, é simples, eu precisava do dinheiro,
tinha dívidas na confeitaria, e o homem não queria esperar
mais. Depois, estava convencido de que mais dia menos dia
estaria a receber dinheiro. Não consegui que nenhum dos
nossos colegas mo emprestasse: alguns não tinham, e os mais
poupados ficam todos contentes quando alguém que não é
como eles está em dificuldades perto do fim do mês. Podes
crer que eu não queria enganar ninguém; era só um emprésti­
mo secreto ...
- Não é disso que eu estou a falar - interrompeu Torless,
impaciente com o relato, que obviamente aliviava Basini.
O que eu pergunto é: como é que tu pudeste fazer aquilo, co­
mo é que te sentiste? O que é que te passou pela cabeça nesse
momento?
- Bom, nada de especial. Foi só um instante, não senti
nada, nem pensei, aconteceu e pronto.
Robert Musil

- Mas, e a primeira vez com o Reiting? Quando ele te


obrigou a fazer aquelas coisas pela primeira vez? Estás a per­
ceber ... ?
- Lá desagradável foi. Por acontecer assim, de maneira
forçada. De resto ... , pensa só quantos não fazem essas coisas
de livre vontade, para se divertirem, sem que ninguém saiba
nada. Não pode ser uma coisa assim tão má.
- Mas tu foste obrigado. Rebaixaste-te. É como se tivesses
de rastejar no esterco, só porque o outro quer.
- Reconheço que é assim, mas não tinha saída.
- Tinhas, sim senhor.
- Eles batiam-me, ou denunciavam-me, era uma vergonha.
- Bom, cá por mim podemos esquecer o caso. Quero é
que me digas outra coisa. Ouve, eu sei que deixaste um mon­
tão de dinheiro na Bozena. Foste para lá cantar de galo, ga­
bar-te da tua virilidade. Queres mesmo ser um homem? Não
só de conversa e de ... , mas com toda a tua alma? Basta chegar
um e exigir de ti um serviço tão degradante, e tu percebes no
mesmo instante que és demasiado cobarde para dizer não.
E não te sentiste completamente arrasado? Um susto, uma
coisa indefinida, como se nesse momento qualquer coisa de
indizível estivesse a acontecer dentro de ti?
- Meu Deus, juro que não percebo o que estás para aí a di­
zer, nem sei o que queres. Não te posso dizer nada, nada.
- Então presta atenção: agora vou dar-te a ordem de tirar
a roupa outra vez.
Basini sorriu.
- E vais deitar-te no chão diante de mim. Não te rias !
É mesmo uma ordem, estás a ouvir?! Se não me obedeces ime­
diatamente, vais ver o que te acontece quando o Reiting vol­
tar!. .. Bom, assim está bem, estás a ver? Agora estás aí deitado,
nu, aos meus pés. Até estás a tremer; estás com frio? Se eu

170
As Perturbações do Pupilo Tõrless

quisesse, podia cuspir no teu corpo nu. Põe a cabeça bem


contra o chão: o pó não te parece uma coisa estranha? Como
uma paisagem cheia de nuvens e rochedos, grandes como ca­
sas? Podia picar-te com agulhas. Ainda há algumas ali no ni­
cho ao pé da lanterna. Já estás a senti-las na pele? Mas eu não
quero ... Também podia obrigar-te a ladrar, como fez o Beine­
berg, podia obrigar-te a comer o pó como um porco, podia
obrigar-te a fazer certos movimentos - sabes bem quais -, e tu
havias de suspirar: ah, minha querida mãezi ... - Téirless parou
subitamente no meio desta blasfémia. - Mas não quero, não
quero, percebes?
Basini começou a chorar.
- Estás a torturar-me ...
- Pois estou. Mas não é isso que eu quero. Só quero saber
uma coisa: quando eu espeto tudo isto em ti como uma faca,
o que é que tu sentes? O que é que te vai na alma? Sentes que
qualquer coisa salta dentro de ti? Diz lá! Subitamente, como
um vidro que se estilhaça antes mesmo de darmos por qual­
quer racha? A imagem que tinhas de ti próprio não se extin­
gue com um sopro? E não salta outra para o lugar dela, como
as imagens da lanterna mágica saltam do escuro? Não perce­
bes mesmo o que eu quero dizer? Não te posso explicar me­
lhor. Tens de ser tu a dizer-me ... !
Basini não parava de chorar. Os seus ombros efeminados
tremiam, e dizia sempre a mesma coisa:
- Não sei o que tu queres, não te posso explicar nada, tu­
do se passa num instante, e não pode acontecer de outro mo­
do. Tu próprio agirias como eu.
Téirless ficou calado. Continuou encostado à parede, imó­
vel, esgotado, a olhar em frente, para o vazio.
Basini tinha dito: «Se estivesses na minha situação, terias
agido como eu». O que aconteceu era para ele uma necessida­
de, simples, tranquila, sem máscara.
Robert Musil

A consciência de Tõrless rebelava-se vivamente contra a


mera hipótese de que assim pudesse ser. E no entanto esta re­
cusa de todo o seu ser não lhe parecia oferecer garantias sufi­
cientes ... «Eu sei que teria mais carácter do que ele», pensava,
«sei que não suportaria uma tal suposição - mas, será isso im­
portante? Será importante que por razões de firmeza de ca­
rácter, de decência, por uma série de motivos que agora são
completamente secundários, eu diga que agiria de modo dife­
rente dele? Não, não é essa a questão, a questão é que, se eu
um dia agisse como Basini, iria achar, tal como ele, que não
fora nada de especial. Este é que é o cerne do problema: a mi­
nha consciência de mim seria tão simplista e tão afastada de
qualquer dúvida como a dele ... »
Este pensamento - feito de frases fragmentárias, confusas
e repetidas -, que acrescentava ao desprezo por Basini uma
dor íntima, silenciosa, mas que tocava, mais que qualquer mo­
ral, no mais fundo do seu equilíbrio, vinha-lhe da recordação
de uma sensação recente que Tõrless não conseguia esquecer.
Quando Basini o fez tomar consciência do perigo provável
que poderia vir de Reiting e Beineberg, ficou simplesmente
assustado. Simplesmente assustado como num assalto, o que
o levou a procurar imediatamente, sem reflectir, maneiras de
aparar o golpe e se defender. Isso dera-se no momento de um
perigo real, e a sensação que teve - impulsos rápidos, irreflec­
tidos - excitava-o. Tentou, em vão, despertá-los de novo em
si. Mas sabia que eles tinham retirado ao perigo, num instan­
te, toda a sua estranheza e ambiguidade.
E no entanto era o mesmo perigo que semanas antes pres­
sentira neste mesmo lugar. Nessa altura, quando ficou tão
assustado com aquele cubículo, que lhe parecia vir de uma Ida­
de Média esquecida, à margem da vida confortável e luminosa
das salas de aula, e com Beineberg e Reiting, porque estes
As Perturbações do Pupilo Tõrless

subitamente tinham deixado de ser as pessoas que eram lá em


baixo, para se transformarem noutra coisa, sinistra e ávida de
sangue, em pessoas de uma outra vida - nessa altura dera-se,
para Torless, uma transformação, um salto, como se a imagem
do mundo à sua volta entrasse subitamente por outros olhos,
acordados de um sonho de séculos.
E no entanto era o mesmo perigo ... A ideia repetia-se sem
parar. E ele tentava sempre comparar entre si as recordações
das duas sensações diferentes ...
Entretanto, Basini já se tinha levantado havia muito tem­
po; reparara no olhar fixo e ausente do companheiro, pegou
na roupa em silêncio e afastou-se.
Torless viu-o - como através de uma cortina de névoa -,
mas deixou-o ir, sem uma palavra.
Toda a sua atenção se concentrava no esforço de voltar a
encontrar em si aquele ponto onde subitamente se tinha da­
do a mudança de perspectiva.
Mas de cada vez que se aproximava acontecia-lhe o mes­
mo que a alguém que quer comparar o que está próximo com
o que está distante: nunca conseguia apreender ao mesmo
tempo as imagens das duas sensações na memória; interpu­
nha-se sempre uma outra sensação, como um estalido, corres­
pondente no plano físico às sensações quase imperceptíveis
dos músculos que acompanham os movimentos do olhar.
E de cada vez, no momento decisivo, aquela sensação exigia
toda a atenção, o acto de comparar era superado pelo objecto
da comparação, acontecia um impulso quase imperceptível
- e tudo se suspendia.
E Torless voltava incessantemente ao princípio.
Este processo, de uma regularidade mecânica, deixou-o
sonolento, num sono hirto, desperto, frio, que o fez ficar imó­
vel no seu lugar por tempo indeterminado.

1 73
Robert Musil

Só acordou com um novo pensamento, como o leve toque


de uma mão quente. Um pensamento aparentemente tão ób­
vio que Tõrless se admirou de não lhe ter ocorrido há mais
tempo.
Um pensamento que não fez mais do que registar a expe­
riência que acabara de viver: aquilo que à distância parece ser
grande e misterioso, chega-nos sempre de modo simples, lím­
pido, em proporções naturais e quotidianas. Como se tivesse
sido traçada uma fronteira invisível em volta do ser humano.
Aquilo que se prepara fora de nós e se aproxima, vindo de
longe, é como um mar de névoa cheio de figuras gigantescas
em constante mutação; aquilo que se aproxima e passa à ac­
ção, se choca com a sua vida, é claro e pequeno, de dimensões
e linhas humanas. E entre a vida que se vive e a vida que se
sente, pressente, se vê à distância, fica, como um portão es­
treito, aquela fronteira invisível onde se acumulam as imagens
dos acontecimentos, para poderem entrar no ser humano.

E apesar disso, apesar de tudo isto corresponder à sua ex­


periência, Tõrless inclinou a cabeça, pensativo.
«Estranho pensamento ... »

Finalmente, estava de novo na cama. Não pensou em mais


nada; pensar era agora difícil e estéril. Continuava a ocorrer­
-lhe o que ouvira sobre as actividades secretas dos amigos,
mas de forma tão indiferente e morta como uma notícia que
se lê num jornal estrangeiro.
De Basini não havia mais nada a esperar. Problema dele, é
certo, mas era tudo tão vulnerável, e ele estava tão cansado e
abatido. Talvez tudo não passasse de uma ilusão.
Só a imagem de Basini, da sua pele nua e iluminada,

1 74
As Perturbações do Pupilo Tõrless

perfumava como um cacho de lilases o lusco-fusco das sensa­


ções que precede o sono. Desvaneceu-se mesmo qualquer
repulsa moral. Por fim, Torless adormeceu.
Nenhum sonho lhe perturbou o descanso, mas um calor
muito agradável estendia tapetes macios sob o seu corpo.
Acordou no meio destas imagens, e quase soltou um grito.
Basini estava sentado na beira da sua cama! E com uma rapi­
dez incrível desfez-se da camisa, enfiou-se debaixo do cober­
tor e apertou o corpo trémulo e nu contra o de Torless.
Assim que se refez do assalto, Torless afastou Basini:
- O que é que te passou pela cabeça ... ?
Mas Basini suplicou:
- Não fiques outra vez assim! Ninguém é como tu. Eles
não me desprezam como tu; só fingem, para depois poderem
ser diferentes. Mas tu? Logo tu ... , que até és mais novo que eu,
embora sejas mais forte ... Nós dois somos mais novos que os
outros ... , e tu não és tão rude nem tão gabarola como eles ...
.
Tu es meigo ... e eu amo-te ....1
,

- O quê? O que é que estás para aí a dizer? O que é que


queres? Vai-te embora ... anda, sai daqui! - Torless estendeu o
braço e empurrou o ombro de Basini. Mas a proximidade
morna da pele macia do outro perseguia-o, envolvia-o, sufoca­
va-o. E Basini continuava a dizer, sem parar:
- Sim ... , sim ... , por favor, seria um prazer para mim poder
servir-te.

Torless não sabia o que responder. Enquanto Basini fala­


va, durante os segundos de dúvida e reflexão, tinha mergulha­
do de novo nos sentidos como num mar de uma cor verde es­
cura. Só as palavras de Basini refulgiam lá no fundo, como
peixes de prata cintilando.
Continuava a empurrar o corpo de Basini com os braços.

1 75
Robert Musil

Mas sentia neles um calor húmido e pesado; os músculos


afrouxaram, esqueceu-se deles ... Só quando alguma das pala­
vras frementes o atingia de novo, acordava, porque de repente
sentia - como qualquer coisa terrivelmente inconcebível -
que nesse preciso momento, como num sonho, as suas mãos
tinham puxado Basini para junto de si.
Depois quis acordar, gritar para si próprio: Basini engana­
-te, só quer atrair-te para tu deixares de o desprezar. Mas o
grito não saiu; não se ouvia um som no casarão; em todos os
corredores pareciam dormir, imóveis, as ondas sombrias do
silêncio.
Queria voltar a si, mas aquelas ondas vigiavam todos os
portões, quais sentinelas negras.
Torless desistiu de procurar palavras. A sensualidade, que
se tinha apoderado dele pouco a pouco nos momentos do de­
sespero, despertara agora em toda a sua intensidade. Estava
ali, nua, a seu lado, e cobria-lhe a pele com o seu manto negro
e macio. E sussurrava-lhe ao ouvido palavras doces de resigna­
ção e afastava com os dedos quentes todas as vãs perguntas e
todos os deveres. E murmurava: na solidão tudo é permitido.
Só no momento em que estava a ser arrastado despertou
por um segundo e agarrou-se desesperadamente à ideia: Isto
não sou eu!. .. Não sou eu! Amanhã, só amanhã serei eu nova­
mente! Amanhã ...

Na terça-feira, ao cair a noite, começaram a regressar os


primeiros alunos. Outros só vieram com os comboios noctur­
nos. Havia uma agitação constante na casa.
Torless recebeu os amigos com maus modos e aborrecido;
não se tinha esquecido. E depois, ambos traziam lá de fora
um ar fresco e mundano que o envergonhava, a ele que agora
gostava do ar sufocante de quartos acanhados.

1 76
As Perturbações do Pupilo Tõrless

Aliás, agora sentia-se muitas vezes envergonhado. Não


tanto por se deixar seduzir - isso não é coisa assim tão rara
em internatos -, mas porque não conseguia resistir a urna es­
pécie de ternura por Basini, enquanto, por outro lado, sentia
mais do que nunca corno ele era desprezível e baixo.
Por isso se encontrava muitas vezes secretamente com ele.
Levava-o a todos os esconderijos que Beineberg lhe dera a co­
nhecer, e, corno ele próprio não era lá muito bom em fixar ca­
minhos furtivos, em pouco tempo Basini desembaraçava-se
melhor do que ele, e fazia de guia.
À noite, porém, o ciúme por Beineberg e Reiting não lhe
dava descanso.
Mas os dois mantinham-se afastados de Basini. Talvez este
já os aborrecesse. De qualquer modo, parecia que se tinha da­
do neles alguma mudança. Beineberg andava sombrio e fecha­
do; quando falava, era sempre para fazer alusões misteriosas a
qualquer coisa que estava iminente. Os interesses de Reiting,
ao que parecia, iam agora para outras coisas; tecia habilmente
as redes para mais intrigas, tentando ganhar uns com pequenos
favores, e assustando outros ao descobrir-lhes segredos com as
suas manhas.
Quando se encontravam os três, os dois insistiam em que
era preciso dar ordens a Basini para ir de novo ao cubículo ou
ao sótão.
Torless tentava por todos os meios adiar isso, mas sofria
por ter de participar destas combinações secretas.
Ainda poucas semanas antes não seria capaz de entender
este seu estado de espírito, porque as suas raízes familiares
eram fortes, saudáveis e naturais.
Mas também não se pode pensar que Basini despertava
em Torless um desejo real - ainda que tão superficial e confu­
so. De facto, acordara nele qualquer coisa corno urna paixão,

1 77
Robert Musil

mas amor seria com certeza apenas um nome casual e transi­


tório para esse sentimento, e a pessoa de Basini não passava
de um objecto simbólico e provisório desse desejo. Mesmo
quando Tõrless se juntava com ele, o seu desejo nunca se sa­
ciava nele, mas crescia para além de Basini, transformando-se
numa nova avidez sem objectivo.

A princípio fora apenas a nudez do corpo esbelto do rapaz


que o ofuscara.
A impressão não foi diferente da que teria diante das for­
mas belas de uma rapariga muito nova, ainda longe de qual­
quer atracção sexual. Um assombro. Um espanto. Foi a pureza
que involuntariamente emanava da situação que deu à sua re­
lação com Basini a aparência de uma inclinação mais forte, es­
se novo sentimento, maravilhoso e inquieto. Tudo o resto,
porém, tinha pouco a ver com isso. Esse resto para lá do dese­
jo já existia antes - com Bozena, e muito antes. Era a sensuali­
dade melancólica do adolescente a crescer, secreta, sem nor­
te, não dirigida a ninguém em especial; era como a terra
húmida, negra e fértil da Primavera, como as escuras águas
subterrâneas, às quais qualquer pretexto casual serve para
romperem as paredes que as comprimem.
A experiência por que Tõrless tinha passado fora esse pre­
texto. Por uma surpresa, um mal-entendido, a impressão erra­
da de uma sensação, os lugares ocultos em que se concentrava
tudo o que a alma de Tõrless tinha de secreto, proibido, sufo­
cante, incerto e solitário foram invadidos por uma onda, e os
seus mais obscuros impulsos foram orientados na direcção de
Basini. Aí depararam subitamente com algo de quente, que
respirava, tinha odor, era carne, qualquer coisa que deu forma
àqueles sonhos indefinidos e delirantes e participava da sua
beleza, tão diferente da fealdade cortante com que Bozena os
As Penurbações do Pupilo Tõrless

fustigara em momentos de solidão. Foi uma porta que de re­


pente se lhes abriu para a vida, e na penumbra daí resultante
tudo se confundia, desejos e realidade, fantasias delirantes e
impressões que traziam ainda os vestígios quentes da vida,
sensações que vinham de fora e chamas que ardiam ao seu en­
contro a partir de dentro e as envolviam até elas ficarem irre­
conhecíveis.
Mas em Torless tudo isso era indistinto e se tinha fundido
num sentimento único, impreciso, caótico, que, no momento
de surpresa inicial, facilmente se poderia tomar por amor.

Mas em breve ele aprendeu a avaliá-lo melhor. A partir


desse momento, apoderou-se dele um desassossego incontro­
lável. Mal tocava numa coisa, largava-a logo. Não era capaz de
conversar com os colegas sem ficar logo calado, sem motivo,
ou mudar de assunto várias vezes, totalmente distraído. Acon­
tecia até que, no meio de uma conversa, o acometia uma onda
de vergonha e ele ficava vermelho, começava a gaguejar e
tinha de se afastar ...
Durante o dia evitava Basini. Quando era obrigado a enca­
rá-lo, ficava quase sempre sóbrio. Todos os movimentos de
Basini lhe causavam nojo, as sombras incertas das suas ilusões
davam lugar a uma claridade fria e indiferente, parecia que a
alma lhe minguara até nada mais restar do que a lembrança
de um desejo antigo que agora lhe parecia incompreensível e
repugnante. Fincava os pés no chão e dobrava o corpo só para
se libertar daquela vergonha dolorosa.
Perguntava a si próprio o que diriam os outros, os pais, os
professores, se soubessem do seu segredo.
Com esta última interrogação, porém, o seu sofrimento
foi acabando pouco a pouco. Apoderou-se dele um cansaço
frio; a pele quente e frouxa do seu corpo voltou a distender-se,

1 79
Robert Musil

num arrepio que o fez sentir-se bem. Deixava agora, calma­


mente, que as pessoas passassem por ele, mas sentia por todas
um certo desprezo. Lá no fundo, desconfiava de que cada pes­
soa com quem falava tinha as piores coisas na consciência.
E, para além disso, achava que os outros não sentiam ver­
gonha. Não acreditava que sofressem como ele. Parecia que
lhes faltava a coroa de espinhos dos seus remorsos.
Ele, porém, sentia-se agora como alguém que acordou de
uma profunda agonia. Alguém tocado por mãos mudas que
traziam a solução dos problemas. Como alguém que não pode
esquecer a silenciosa sabedoria de uma doença prolongada.
Sentia-se feliz neste estado, e repetiam-se os momentos
em que ansiava por ele.
Esses momentos começavam quando conseguia olhar de
novo para Basini com indiferença e aguentar com um sorriso
o que nele havia de repugnante e vulgar. Depois, sabia que ele
se rebaixaria, mas atribuía a isso um novo sentido. Quanto
mais feio e indigno era aquilo que Basini lhe oferecia, tanto
maior o contraste com o sentimento de uma sensibilidade de­
licada e sofrida que o dominava depois.
Torless retirava-se para um canto qualquer, de onde pu­
desse observar sem ser visto. Quando fechava os olhos, crescia
nele um impulso indefinido, e quando os abria não encontra­
va nada que pudesse comparar com o que sentia. Então, subi­
tamente, vinha-lhe a lembrança de Basini, que o dominava por
completo e em breve perdia contornos definidos. Parecia já
não pertencer a Torless, nem relacionar-se com Basini. Ficava
envolto em sensações como que de mulheres lascivas, de lon­
gos vestidos fechados até acima e usando máscaras.
Torless não sabia que nome dar a nenhuma dessas sensa­
ções, nem o que elas escondiam; mas precisamente nisso

180
As Perturbações do Pupilo Tõrless

residia o seu fascínio. Já não se conhecia a si mesmo; e era


precisamente daí que lhe vinha o prazer de se entregar a
excessos degradantes, como quando numa festa galante de re­
pente as luzes se apagam e já ninguém sabe quem está a arras­
tar para o chão e a cobrir de beijos.

Mais tarde, depois de superados os acontecimentos da sua


juventude, Türless tornou-se um homem de espírito refinado
e sensível. Era uma dessas naturezas de esteta e intelectual a
quem a observação das leis e, em parte pelo menos, da moral
pública dá uma certa tranquilidade, porque isso as exime de
pensar em coisas grosseiras, muito distantes das suas subtis
vivências anímicas; são, porém, pessoas que aliam a essa gran­
de correcção exterior, um tanto irónica, uma indiferença en­
tediada sempre que se lhes pede que se interessem pelos ob­
jectos daquela moral. Nelas, o interesse que verdadeiramente
as toca concentra-se exclusivamente no amadurecimento da
alma, do espírito, ou como se lhe queira chamar, coisas que
vão crescendo em nós a partir de uma ideia entre as linhas de
um livro ou que saem dos lábios fechados de um quadro; coi­
sas que despertam quando uma qualquer melodia solitária e
insistente se afasta de nós e - perdendo-se na distância - vai
puxando, com movimentos estranhos, o fino fio vermelho do
nosso sangue, que arrasta atrás de si - mas que nunca está
presente quando redigimos documentos, construímos máqui­
nas, vamos ao circo ou nos entregamos a centenas de activida­
des como estas.
Os objectos que apenas solicitam a sua correcção moral
são absolutamente indiferentes a estas pessoas. Por isso, Tür­
less nunca se arrependeu mais tarde do que lhe acontecera.
As suas necessidades estavam tão unilateralmente orientadas
para o espírito que, se lhe tivessem contado uma história
Robert Musil

semelhante sobre os desvarios de um libertino, nem de longe


lhe ocorreria manifestar a sua indignação pelo acontecido.
Não teria certamente desprezado um indivíduo assim por ele
ser um libertino, mas por não ser melhor do que isso; não de­
vido aos seus excessos, mas pelo estado de alma que o leva a
ser assim, por ele ser estúpido ou porque faltava ao seu enten­
dimento o necessário equilíbrio interior ... : em qualquer caso,
sempre por ele ser uma figura triste, medíocre, fraca. E tê-lo­
-ia desprezado da mesma maneira, quer o seu vício fosse a de­
vassidão sexual ou o fumo ou o alcoolismo compulsivos.
E, como acontece com todos aqueles que se concentram
exclusivamente no aperfeiçoamento da sua vida espiritual,
pouco significavam para ele os impulsos lascivos e os exces­
sos. Gostava de pensar, e contava com isso, que a capacidade
de prazer, os talentos artísticos, todo o requinte da vida espi­
ritual eram um ornamento em que facilmente nos ferimos.
Achava inevitável que um indivíduo com uma vida interior ri­
ca e activa tivesse experiências que os outros não tinham de
conhecer, e recordações que guardava em gavetas secretas. E a
única coisa que exigia dele era que soubesse usá-las mais tar­
de com discrição e tacto.
Assim, quando um dia alguém a quem tinha contado a
história da sua juventude lhe perguntou se essas lembranças
não o envergonhavam, sorriu e respondeu: «Não nego que se
trata de qualquer coisa de degradante. E por que não? Já pas­
sou. Mas alguma coisa ficou para sempre: aquele grãozinho de
veneno que é necessário para que a alma não fique excessiva­
mente confiante e tranquila, conferindo-lhe qualidades mais
refinadas, argutas e tolerantes.
«Já viu o que seria pormo-nos a contar todas as horas de­
gradantes que cada paixão deixa marcadas a fogo na nossa al­
ma? Pense só nas horas de humilhação voluntária no amor!
As Perturbações do Pupilo Tõrless

Essas horas de solidão em que os amantes se debruçam sobre


poços fundos ou encostam o ouvido ao coração um do outro
para ver se ouvem lá dentro as garras dos grandes felinos a ar­
ranhar, impacientes, as paredes do cárcere. E isso apenas para
sentirem o seu próprio tremor! Só para se assustarem com a
sua solidão, acima dessas profundezas escuras que deixam
marcas! Só para, subitamente - e angustiados por ficarem a
sós com essas forças sombrias -, se refugiarem inteiramente
um no outro!
«Basta olhar bem nos olhos os casais jovens. Neles está es­
crito: Tu achas ... , mas nem sonhas com as profundezas a que
podemos descer! - Nesses olhos há uma expressão serena de
troça em relação àqueles que nada sabem de tantas dessas
coisas, e o orgulho terno daqueles que atravessaram juntos to­
dos os infernos.
«Tal como os amantes um com o outro, assim também eu
atravessei tudo isso, em tempos, comigo próprio.»

Apesar de posteriormente ter vindo a pensar assim, na al­


tura, quando se encontrava no meio do vendaval de emoções
do desejo solitário, nem sempre Tõrless sentia tal confiança
num desfecho feliz da situação. Ficara-lhe ainda, depois dos
enigmas que recentemente o haviam torturado, um vago efei­
to que ecoava como um som distante e sombrio no fundo
dessas vivências. Era qualquer coisa em que agora não lhe
apetecia pensar.
Mas por vezes não conseguia evitá-lo, e então assaltava-o
uma profunda desesperança, e outra forma de vergonha, can­
sada e sem perspectivas, tomava conta dele quando lhe vi­
nham essas lembranças.
Mesmo assim, não conseguia explicar a si mesmo tais vi­
vências.
Robert Musil

A explicação encontrava-se nas condições de vida muito


particulares do internato. Nesses lugares, onde forças jovens e
impetuosas são mantidas atrás de muros cinzentos, a imagi­
nação acumulava imagens de sensualidade que punham mui­
tos fora de si.
Um certo grau de libertinagem era até visto como qualida­
de viril, ousadia, conquista destemida de prazeres proibidos.
Especialmente quando comparada com o estilo respeitavel­
mente atrofiado da maior parte dos professores. Era então
que as exortações contidas na palavra «moral» se tornavam ri­
dículas, quando se olhava para os seus ombros estreitos, para
as barrigas salientes, as pernas finas e os olhos de carneiros
inofensivos atrás dos óculos, como se a vida não fosse mais do
que um campo cheio de flores sérias e edificantes.
Enfim, no internato ainda não se sabia nada da vida, nem
se fazia ideia de todos os graus de perversidade e libertina­
gem, até ao doentio e ao grotesco, que começam por encher
de repulsa os adultos quando ouvem falar de tais coisas.
Todas essas inibições, cujos efeitos não podemos prever
completamente, faltavam a Torless. Foi literalmente por inge­
nuidade que se deixou levar pelo vício.
Nessa altura faltava-lhe também a força de resistência éti­
ca, essa sensível faculdade do espírito que mais tarde apren­
deu a valorizar tanto. Mas, de certo modo, já se anunciava.
Torless dava um passo em falso, via primeiro as sombras que
alguma coisa ainda desconhecida em si lançava sobre a sua
consciência, e tomava-as erradamente pela realidade; mas ti­
nha uma tarefa a cumprir consigo mesmo, uma tarefa da alma
- apesar de então ainda não estar à altura de a cumprir.
Sabia apenas que tinha ido atrás de algo de indefinido,
por um caminho que levava ao mais fundo de si; e isso deixa­
va-o cansado. Tinha-se habituado a esperar por descobertas
As Perturbações do Pupilo Torless

extraordinárias, secretas, e foi dar aos estreitos e tortuosos


aposentos da sensualidade. Não por perversidade, mas como
resultado da sua desorientação anímica no momento.
Foi precisamente a infidelidade a qualquer coisa de sério
e desejado que deixou nele um vago sentimento de culpa;
nunca se libertou completamente de uma espécie de nojo in­
definido e escondido, e sentia-se perseguido por uma certa
angústia, como alguém que, no escuro, já não sabe se ainda
vai pelo caminho certo ou se já o perdeu.
Esforçava-se então por não pensar em nada. Ia vivendo,
mudo e atordoado, no esquecimento de todas as interroga­
ções anteriores. Tornara-se cada vez mais raro o prazer refina­
do que sentia pelos actos degradantes.
Apesar de ainda não ter desistido, no fim deste período,
Torless deixou de fazer objecções à proposta de decidir sobre
o destino de Basini.

Isso aconteceu alguns dias depois, quando se reuniram no


cubículo. Beineberg estava muito sério.
Reiting começou a falar:
- Beineberg e eu achamos que as coisas com o Basini não
podem continuar como estão. Acomodou-se com a obediên­
cia que nos deve, e já não sofre nada com isso; ganhou uma
familiaridade insolente, como um criado. Está na altura de
darmos um passo em frente. Concordas?
- Eu nem sei o que vocês pretendem fazer com ele.
- Nem isso é fácil de prever. Temos de o humilhar e pres-
sionar ainda mais. Quero ver até onde ele aguenta. De que
maneira? Bom, essa é outra questão. Mas tive já algumas
ideias jeitosas. Por exemplo: podíamos chicoteá-lo, e enquan­
to isso ele ia entoando salmos de louvor; acho que não seria
Robert Musil

nada mau ouvi-lo a cantar essas ladainhas, com cada som a


pôr-nos em pele de galinha. Podíamos obrigá-lo a abocanhar
as coisas mais imundas e a trazê-las, como um cão. Podíamos
levá-lo à Bozena, pô-lo a ler as cartas da mãe, e a Bozena en­
carregava-se do resto da festa. Mas tudo isto não nos foge. Po­
demos pensar calmamente, refinar as coisas, inventar outras.
Sem os devidos pormenores, tudo isto parece por enquanto
enfadonho. Talvez o entreguemos pura e simplesmente à tur­
ma. Seria o mais sensato. São tantos que, se cada um contri­
buir com uma pequena coisa, é mais do que suficiente para
dar cabo dele. Aliás, pessoalmente agradam-me esses movi­
mentos de massas. Ninguém quer fazer nada de especial, mas
a onda começa a crescer até se abater sobre todas as cabeças.
Vão ver que ninguém vai mexer uma palha, e no fim vamos ter
uma tempestade dos diabos. A mim dá-me um gozo enorme
encenar um espectáculo desses.
- Mas, o que é que querem fazer primeiro?
- Por mim, deixava tudo isso para depois; para já, acho
que basta levá-lo novamente a dizer que sim a tudo, ameaçan­
do-o ou batendo-lhe.
- E para quê? - a pergunta escapou a Tõrless, e os dois
olharam-se nos olhos.
- Ora, não finjas, que eu sei muito bem que tu estás a par
de tudo.
Tõrless ficou calado. Saberia Reiting de alguma coisa? Ou
estava apenas a tentar tirar nabos da púcara?
- Do que se passou antes. O Beineberg não te contou já as
coisas a que o Basini se presta?
Tõrless respirou aliviado.
- Então, não faças esses olhos de espanto. Daquela vez
também arregalaste assim os olhos, e afinal não é nada assim
tão grave. Aliás, o Beineberg contou-me que faz o mesmo com

186
As Perturbações do Pupilo Tõrless

o Basini. - Reiting olhou para Beineberg com um trejeito iró­


nico. Era a sua maneira de pregar uma partida ao outro, aber­
tamente e sem nenhum pudor.
Mas Beineberg não respondeu; continuou sentado, na sua
pose pensativa, e nem pestanejou.
- Então, não queres contar-nos a tua ideia? É que ele tem
uma ideia fantástica para o Basini, e quer pô-la em prática
antes de nós avançarmos com outras coisas. E olha que é bem
divertida.
Beineberg continuava com o seu ar sério; olhou para Tor­
less com uma expressão intencional, e disse:
- Lembras-te do que falámos daquela vez, atrás dos casa­
cos?
- Sim, lembro-me.
- Nunca mais voltei ao assunto, porque acho que falar por
falar não faz sentido. Mas pensei nisso, podes crer, muitas
vezes. E também o que o Reiting te disse agora é verdade. Fiz
o mesmo que ele com o Basini, talvez até mais. E fi-lo porque,
como te disse naquela altura, estou convencido de que a sen­
sualidade talvez seja a porta de entrada certa. Foi uma tentati­
va. Não encontrei outro caminho para aquilo que procurava.
Mas fazer as coisas sem planeamento não leva a lado nenhum.
Por isso reflecti, noites a fio, sobre a maneira de substituir o
que andamos a fazer por algo de mais sistemático.
«Acho que encontrei, e vamos experimentar. Agora é que
vais ver como não tinhas razão naquela altura. Tudo o que se
diz sobre o mundo é inseguro, tudo se passa de maneira dife­
rente. Antes, descobrimos isso, por assim dizer, apenas pelo
lado do avesso, ao procurarmos pontos em que toda esta ex­
plicação natural tropeçava nos próprios pés; mas agora espero
poder mostrar o lado positivo, o outro lado!»
Reiting distribuiu as taças para o chá, dando um toque a
Torless, divertido.
Robert Musil

- Presta atenção, que a ideia dele é mesmo brilhante.


Mas Beineberg apagou a lanterna com um movimento rá­
pido. No escuro, apenas a chama do fogareiro lançava reflexos
azulados sobre as três cabeças.
- Apaguei a lanterna, Torless, porque assim se pode falar
melhor destes assuntos. E tu, Reiting, podes deitar-te a dor­
mir, se fores burro de mais para chegar a certas coisas mais
profundas.
Reiting riu-se, divertido.
- Então ainda estás lembrado da nossa conversa. Tu pró­
prio tinhas encontrado na matemática aquele aspecto pecu­
liar, o facto de o nosso pensamento não assentar em solo liso,
sólido e seguro, mas saltar por cima de buracos. Fecha os
olhos, deixa de existir por um instante e acaba por ser levado
em segurança para o outro lado. Na verdade, há muito tempo
que devíamos estar desesperados, porque o nosso saber está
cheio de tais abismos em todos os domínios, são só fragmen­
tos à deriva num oceano insondável.
«E apesar disso não desesperamos, sentimo-nos tão segu­
ros como em terra firme. Se não tivéssemos esta sensação de
segurança, matar-nos-íamos, desesperados com o nosso pobre
entendimento. Ela acompanha-nos sempre, agrega-nos, pega
a cada momento no nosso entendimento ao colo como numa
criança pequena. Não podemos negar a existência de uma al­
ma desde que tomámos consciência disso. Sentimo-lo literal­
mente a partir do momento em que analisamos a nossa vida
espiritual e reconhecemos as insuficiências do entendimento.
Sentimos, percebes? Porque, se não houvesse esse sentimen­
to, nós desabaríamos como sacos vazios.
«Acontece apenas que nós desaprendemos a atenção que
temos de dar a este sentimento, que é um dos mais antigos.
Há milhares de anos, povos que habitavam a milhares de

188
As Perturbações do Pupilo Torless

milhas de distância uns dos outros já sabiam disso. Depois de


nos ocuparmos destas coisas, nunca mais as podemos negar.
Mas não quero persuadir-te com palavras; vou dizer-te apenas
o essencial, para não estares completamente impreparado.
A prova será fornecida pelos factos.
«Admitindo então que a alma existe, é óbvio que não po­
demos ter desejo mais ardente do que restabelecer o contacto
perdido com ela, familiarizar-nos de novo com ela, aprender a
aproveitar melhor as suas forças, tirar proveito de parte das
forças supra-sensíveis que estão adormecidas nas suas profun­
dezas.
«Porque tudo isso é possível, e já houve muitos que o con­
seguiram: os milagres, os santos, os hindus que chegaram à
contemplação de Deus, comprovam-no.»
- Olha lá - interrompeu Torless -, não achas que estás a
tentar convencer-te a ti próprio dessas ideias? Por isso é que
tiveste de apagar a lanterna. Mas falarias assim se estivésse­
mos lá em baixo ao pé dos outros, a estudar geografia ou his­
tória, a escrever cartas para casa, eventualmente com o tutor a
passear por entre as carteiras? Não acharias as tuas palavras
um tanto fantasiosas, mesmo presunçosas, como se nós não
pertencêssemos ao mundo deles e vivêssemos noutro, há oito­
centos anos atrás?
- Não, meu caro Torless, diria a mesma coisa. Aliás, é um
erro teu essa mania de olhar sempre para os outros; és pouco
independente. Escrever cartas para casa! Quando falas nisso,
estás a pensar nos teus pais! E quem é que te diz que eles são
capazes sequer de sieguir estas nossas conversas? Nós somos
jovens, uma geração depois da deles, talvez nos estejam reser­
vadas coisas com que eles nunca sonharam. Eu, pelo menos,
sinto isso. Mas, para quê tanta conversa? Vou apresentar-vos a
prova.
Robert Musil

Depois de um breve silêncio, Tõrless disse:


- Por que caminhos pensas seguir para tomar posse da tua
própria alma?
- Não te vou explicar tudo isso agora, já que vou ter de o
fazer diante do Basini.
- Mas podes ao menos dar-nos uma ideia.
- Está bem. A história ensina que só existe um caminho:
o mergulho em nós mesmos. Acontece que isso é o mais difícil.
Os santos, por exemplo, numa época em que a alma ainda se
manifestava através de milagres, conseguiam-no pela entrega
à oração. Naqueles tempos, a natureza da alma era outra, por­
que hoje esse caminho já não resulta. Hoje não sabemos o
que havemos de fazer; a alma transformou-se e, infelizmente,
de permeio há toda uma série de épocas em que não se deu a
devida atenção a isto e a ligação perdeu-se irremediavelmen­
te. Nós só poderemos encontrar um novo caminho através da
mais cuidadosa reflexão. Nos últimos tempos tenho-me ocu­
pado intensamente desta questão. O caminho mais fácil é
provavelmente o do hipnotismo. Mas nunca foi tentado.
O que se faz são umas habilidades vulgares, e por isso o méto­
do ainda não foi testado no sentido de se saber se pode levar
a algo de mais elevado. O que eu posso dizer para já é que não
vou hipnotizar o Basini segundo os métodos habituais, mas
seguindo os meus próprios, que, se me não engano, se aproxi­
mam de outros já aplicados na Idade Média.
- Este nosso Beineberg não é mesmo uma delícia? - disse
Reiting, rindo. - Ele devia era ter vivido na época das profe­
cias do fim do mundo, porque assim teria acabado por acredi­
tar que o mundo ainda está aí por obra e graça das suas artes
mágicas da alma.
Quando olhou para Beineberg, para ver como ele reagia à
troça do outro, Tõrless reparou que o seu rosto estava hirto e
As Perturbações do Pupilo Tõrless

desfigurado, num esforço convulsivo de concentração. No


momento seguinte sentiu-se tocado por dedos gélidos. Tür­
less assustou-se com tamanha excitação; depois, a tensão da
mão que o agarrava foi abrandando.
- Oh, não foi nada - disse Beineberg. - Foi só um pensa­
mento. Uma intuição muito especial, uma indicação sobre co­
mo proceder ...
- Estás a ver? Tu estás mesmo apanhado - disse Reiting
em tom jovial. - Mas antes era um tipo rijo, isto para ti era só
um desporto; mas agora pareces uma menina.
- Cala-te, tu não fazes ideia nenhuma do que é sentir es­
tas coisas por perto, estar cada dia à beira de as dominar!
- Não discutam por causa disso - disse Torless, que no de­
correr das últimas semanas tinha ficado muito mais seguro e
enérgico. - Cá por mim, façam o que quiserem; eu não acredi­
to em nada. Nem nas tuas torturas forçadas, Reiting, nem nas
esperanças do Beineberg. E mais não tenho para dizer. Fico à
espera do que vocês decidirem.
- E encontramo-nos quando?
Combinaram para daí a duas noites.

Torless esperou que ela chegasse sem opor resistência.


Nesta nova situação, o seu sentimento por Basini tinha tam­
bém esfriado completamente. Era mesmo uma solução feliz,
porque pelo menos o libertava de uma vez por todas daquela
oscilação entre vergonha e desejo de que não conseguia sair
por si próprio. Agora, pelo menos, sentia uma repulsa directa
e clara por Basini, como se as humilhações que se preparavam

para ele o pudessem atingir também.


De resto, andava distraído e não queria pensar em nada
seriamente; muito menos naquilo que antes o ocupava tanto.
Robert Musil

Só ao subir com Reiting a escada para o sótão, enquanto


Beineberg já tinha ido à frente com Basini, a lembrança do
que se passara com ele se tornou mais viva. Não lhe saíam da
cabeça as palavras decididas que dissera a Beineberg sobre o
assunto, e ansiava por recuperar essa autoconfiança. Hesitan­
te, parava a cada degrau. Mas as certezas de antes não volta­
vam. Lembrava-se, é certo, de todos os pensamentos que tive­
ra antes, mas eles pareciam passar por ele muito longe, como
se fossem meras sombras do que pensara antes.
Por fim, como não encontrava nada em si mesmo, a sua
curiosidade dirigiu-se de novo para os acontecimentos que
viriam de fora, e impeliu-o a avançar.
Subiu os restantes degraus a passo rápido, seguindo Rei­
ting.
Enquanto a porta de ferro se fechava, rangendo, atrás de­
les, sentiu, com um suspiro, que a ideia de Beineberg não pas­
sava de um truque ridículo, mas ao menos era qualquer coisa
de sólido e planeado, enquanto nele reinava a mais impene­
trável confusão.
Sentaram-se numa das traves laterais, numa grande expec­
tativa, como no teatro.
Beineberg já lá estava com Basini.
A situação parecia bastante favorável ao seu plano. A escu­
ridão, o ar parado, o cheiro adocicado e podre que vinha das
das talhas de água, criavam uma sensação de adormecimento,
de nunca mais acordar, uma indolência lânguida e cansada.
Beineberg ordenou a Basini que se despisse. A sua nudez
tinha agora, no escuro, um brilho azulado e bolorento, e não
era nada excitante.
De repente, Beineberg tirou o revólver do bolso e apon­
tou-o a Basini.
Até Reiting se inclinou para a frente, para poder intervir a
qualquer momento.
As Perturbações do Pupilo Torless

Mas Beineberg sorria. Estranhamente desfigurado, como


se, sem ele querer, palavras fanáticas lhe viessem à boca, dis­
torcendo-lhe os lábios.
Basini caíra de joelhos, paralisado, e fitava a arma de olhos
esbugalhados, cheio de medo.
- Levanta-te - disse Beineberg. - Se fizeres tudo como eu
vou dizer, não te acontece nada; mas se opuseres a menor re­
sistência e me perturbares, mato-te. Pensa bem nisto!
«Aliás, vou matar-te, assim como assim, mas voltarás à vi­
da. A morte não nos é tão estranha como tu pensas; morre­
mos diariamente - no sono profundo e sem sonhos.»
O sorriso transtornado de Beineberg voltou a deformar­
-lhe a boca.
- Agora, ajoelha-te ali em cima - a meia altura havia uma
trave horizontal. - Isso, bem direito, tens de ficar erecto. Me­
te as costas para dentro. E agora olha sempre para além, sem
pestanejar; tens de abrir os olhos o mais que puderes!
Beineberg colocou diante dele uma pequena lamparina,
de modo que ele tinha de inclinar a cabeça um pouco para
trás para olhar bem para ela.
Não se podia ver muito, mas passado algum tempo o cor­
po de Basini parecia ter começado a oscilar como um pêndu­
lo. Os reflexos azulados moviam-se na sua pele. De vez em
quando, Torless julgou entrever o rosto de Basini, desfigurado
pelo medo.
Ao fim de algum tempo, Beineberg perguntou:
- Estás cansado?
A pergunta foi feita no tom habitual dos hipnotizadores.
Depois, começou a falar em voz baixa e velada:
- A morte é apenas uma consequência da nossa maneira
de viver. Vivemos de pensamento em pensamento, de sensação
em sensação. Os nossos pensamentos e as nossas sensações

193
Robert Musil

não correm tranquilamente como um rio, 'ocorrem-nos',


caem em nós como pedras. Se te observares bem, sentirás que
a alma não é algo que vai mudando de cor em gradações pro­
gressivas, mas que os pensamentos saltam dela como algaris­
mos saindo de um buraco negro. Neste momento tens um
pensamento ou uma sensação, e no seguinte aparece outro,
diferente, como que saído do nada. Se deres atenção, até po­
des sentir o instante entre dois pensamentos, quando tudo se
torna negro. Esse instante, uma vez apreendido, é para nós o
mesmo que a morte.
«Pois a nossa vida resume-se a definir marcos e a saltar de
um para o outro, diariamente, passando por milhares de ins­
tantes de morte. De certo modo, vivemos apenas nos pontos
de repouso. É por isso que temos esse medo ridículo da mor­
te irreversível, porque ela é, em absoluto, o lugar sem marcos,
o abismo insondável em que caímos. Na verdade, ela é a nega­
ção absoluta daquela maneira de viver.
«Mas isto só é assim quando visto da perspectiva desta vi­
da, apenas para aqueles que não aprenderam a sentir-se de
outro modo, a não ser de instante em instante.
«Chamo a isso o mal saltitante, e o segredo está apenas
em superá-lo. Temos de despertar em nós a sensação de que a
vida é algo que desliza tranquilamente. No momento em que
isso acontecer, estamos tão próximos da morte como da vida.
Já não vivemos à luz dos nossos conceitos terrenos -, mas
-

também já não podemos morrer, pois com a vida superámos


também a morte. É o momento da imortalidade, o momento
em que a alma sai da estreiteza do nosso cérebro para entrar
nos maravilhosos jardins da sua vida.
«Agora, segue exactamente o que te vou dizer.
«Adormece todos os pensamentos, olha bem para esta pe­
quena chama; ... não saltes de um pensamento para outro ...

1 94
As Perturbações do Pupilo Türless

Volta toda a tua atenção para dentro ... Fixa a chama ... o teu
pensamento é como uma máquina girando cada vez mais
devagar. . . cada vez mais devagar. . . Olha para dentro ... até
encontrares o ponto em que te sentes a ti próprio, sem um
pensamento, sem uma sensação ...
«O teu silêncio servir-me-á de resposta. Não desvies o
olhar do teu interior ... !»
Decorreram alguns minutos.
- Sentes o ponto ... ?
Nenhuma resposta.
- Basini, ouve! Conseguiste?
Silêncio.
Beineberg levantou-se e a sua sombra esguia cresceu ao la­
do da trave. Lá em cima, o corpo de Basini, hipnotizado pela
escuridão, oscilava nitidamente para cá e para lá.
- Volta-te de lado - ordenou Beineberg. - O que agora
obedece é já só o cérebro - murmurou -, que ainda funciona
um pouco mecanicamente, até se apagarem os últimos vestí­
gios que a alma nele deixou. Ela própria está algures - na sua
próxima existência. Libertou-se dos grilhões das leis da natu­
reza ... - agora voltou-se para Torless -, já não está condenada
ao castigo de tornar pesado um corpo, de o sustentar. Basini,
inclina-te para a frente ... Isso ... devagarinho ... o corpo cada
vez mais para a frente ... Assim que o último vestígio se apagar
no teu cérebro, os músculos cederão e o corpo vazio cairá so­
bre si próprio. Ou ficará a levitar, não sei. A alma deixou o
corpo, não se trata da morte habitual, talvez o corpo fique a
pairar no ar, porque nada, nenhuma força, nem da vida nem
da morte, o sustenta ... Inclina-te para a frente ... mais ...
Nesse momento, o corpo de Basini, que por medo tinha
seguido todas as ordens, caiu com estrondo aos pés de Beine­
berg.

1 95
Robert Musil

Basini gritou de dor. Reiting deu uma grande gargalhada.


Mas Beineberg, que tinha recuado um passo, soltou um grito
de raiva abafado quando se apercebeu do logro. Com um mo­
vimento rapidíssimo, tirou o cinto, agarrou Basini pelos cabe­
los e começou a chicoteá-lo como um louco. Toda a enorme
tensão em que estivera se descarregou em sucessivos golpes
enraivecidos. E Basini soltava uivos de dor, que ecoavam por
todos os cantos como o ganir de um cão.

Torless ficara calmo durante toda a cena. Lá no fundo,


tinha alguma esperança de que talvez acontecesse qualquer
coisa que o levassse de volta ao círculo perdido das suas sen­
sações. Era uma esperança insensata, disso tinha consciência,
mas tinha conseguido prendê-lo. Agora, porém, parecia-lhe
que tudo acabara. A cena enojava-o. Sem qualquer pensamen­
to por trás, uma repulsa muda, inerte.
Levantou-se sem ruído e saiu sem dizer uma palavra. Me­
canicamente.
Beineberg continuava a bater em Basini. Bateria até se
cansar.

Já deitado, Torless sentiu que tudo tinha acabado. Qual­


quer coisa tinha chegado ao fim.
Nos dias que se seguiram cumpriu tranquilamente todas
as obrigações escolares; não pensava em nada; Reiting e Bei­
neberg bem podiam prosseguir com o seu programa ponto
por ponto, Torless desviou-se do seu caminho.
No quarto dia, quando ninguém mais estava presente,
Basini veio ter com ele. Estava com um aspecto terrível, a cara
pálida e magra, nos olhos a febre de um medo permanente.
Olhando assustado em volta, falando precipitadamente, con­
seguiu dizer:
As Perturbações do Pupilo Tõrless

- Tens de me ajudar! Só tu podes. Não aguento muito


mais tempo o que eles me fazem. Suportei tudo antes, mas
agora eles ainda me matam de pancada!
Torless sentiu um mal-estar por ter de lhe responder. Por
fim, disse:
- Não te posso ajudar; tu próprio és o culpado de tudo o
que te está a acontecer.
- Mas tu ainda há pouco tempo eras tão carinhoso comi-
go.
- Nunca fui.
- Mas ...
- Cala-te com isso. Não era eu... Era um sonho ... um capri-
cho ... Até acho que é bom a tua nova situação ter-te afastado
de mim ... É melhor assim para mim ...
Basini baixou a cabeça. Sentia que um mar de decepção,
cinzenta, fria, se tinha aberto entre ele e Torless ... Torless
estava indiferente, era outro.
Lançou-se-lhe aos pés, de joelhos, batia com a cabeça no
chão e gritava:
- Ajuda-me! Ajuda-me! Por amor de Deus, ajuda-me!
Torless hesitou um instante. Não sentia nem desejo de
ajudar Basini nem indignação suficiente para o mandar em­
bora. Seguiu a primeira ideia que lhe veio à cabeça:
- Vem hoje à noite ao sótão, quero falar contigo mais uma
vez.
No instante seguinte j á se tinha arrependido do que disse­
ra. «Para quê tocar nisto outra vez?», pensou. E, reflectindo
melhor, disse:
- Não pode ser, eles iam dar por isso.
- Não vão, a noite passada ficaram comigo até ao amanhe-
cer lá em cima. Hoje vão dormir.
- Por mim, está bem então. Mas não contes com a minha
ajuda.

1 97
Robert Musil

Torless combinara o encontro com Basini contra a sua


própria convicção, que era a de que tudo acabara e não havia
mais nada que lhe interessasse naquele caso. Só uma espécie
de pedanteria, de escrúpulos obstinados e sem esperança, o
levaram a remexer ainda nos acontecimentos.
Sentia necessidade de resolver rapidamente o assunto.
Basini não sabia como se comportar. Tinha apanhado tan­
ta pancada que mal se conseguia mexer. Todas as marcas de
personalidade se tinham extinguido nele; só nos olhos se ti­
nha refugiado um resto dela, que parecia agarrar-se a Torless,
assustado e suplicante.
Esperou para ver o que este faria.
Finalmente, Torless quebrou o silêncio. Falava depressa,
entediado, como quando temos de fazer de novo, por formali­
dade, qualquer coisa há muito tempo resolvida.
- Não vou ajudar-te. Tive, sim, um certo interesse por ti
durante algum tempo, mas isso passou. Tu realmente és mes­
mo um fraco, um cobarde. Mais nada. O que é que me havia
de ligar ainda a ti? Antes, pensava que haveria uma palavra,
um sentimento, que talvez pudesse dizer melhor o que tu és;
mas de facto não encontro mais nada, só posso dizer que és
um fraco e um cobarde. É tão simples, tão pouco, e afinal é
tudo o que há para dizer. O que antes queria de ti, já o esque­
ci, desde que começaste a insistir com os teus pedidos lasci­
vos. Eu queria encontrar um ponto, longe de ti, para te ver a
partir dele ... , era esse o meu interesse por ti; mas tu mesmo o
destruíste. Mas basta, não te devo nenhuma explicação. Só
mais uma coisa: como é que te sentes agora?
- Como é que me havia de sentir? Já não aguento mais.
- Eles com certeza que te fazem a vida negra, e isso dói-
-te?
As Perturbações do Pupilo Tõrless

- Sim.
- Só isso, simplesmente dor? Sentes que sofres e queres
fugir a isso? Só isso, sem mais complicações?
Basini não sabia que responder.
- Bom, estou só a perguntar assim por alto. Mas também
não importa. Já não tenho nada a ver contigo, corno te disse.
Já não sinto nada na tua companhia. Faz o que entenderes ...
Torless ia a sair.
Basini tirou rapidamente a roupa e agarrou-se a Torless.
Tinha o corpo cheio de marcas de cinto, urna coisa repugnan­
te. Os movimentos, tristes corno os de urna prostituta desajei­
tada. Torless voltou-lhe as costas, enojado.
Mas mal tinha dado os primeiros passos no escuro quando
deu de caras com Reiting.
- Que é isto, tens encontros secretos com o Basini?
Torless seguiu os olhares de Reiting e olhou de novo para
Basini. Precisamente no lugar onde ele se encontrava caía a
claridade do luar que entrava por urna clarabóia. A sua pele
azulada, com as marcas das feridas, parecia a de um leproso.
Torless procurou involuntariamente urna desculpa para esta
cena.
- Foi ele que me pediu.
- O que é que ele quer?
- Quer que eu o proteja.
- Ah, é? Então escolheu o homem certo.
- Talvez eu o fizesse, mas esta história já me aborrece.
Reiting ergueu os olhos, ressentido. Depois, virou-se para
Basini:
- Já te vamos ensinar a tramar intrigas contra nós! E o teu
anjo da guarda Torless vai assistir e divertir-se um bocado.
Torless já se tinha afastado, mas esta piada maldosa que
lhe era dirigida fê-lo parar quase sem pensar:

1 99
Robert Musil

- Ouve, Reiting, não vou fazer nada disso. Para mim, a coi­
sa acabou, tudo isso me mete nojo.
- Assim, de repente?
- Sim, de repente. Porque antes ainda procurava qualquer
coisa por trás de tudo isto ... - Por que razão voltava aquilo a
insistir dentro dele?
- Ah, o segundo rosto.
- Sim, mas agora vejo que tu e o Beineberg são vulgares e
grosseiros.
- Ah, não! Queremos que vejas como o Basini vai comer
esterco.
- Já não me interessa.
- Mas interessou-te ...
- Já te disse, só enquanto a situação do Basini foi para
. .
mim um emgma.
- E agora?
- Já não vejo enigmas nenhuns. Tudo acontece simples-
mente: a sabedoria é só esta. - Torless admirou-se por lhe
ocorrerem de novo comparações vindas daquele círculo de
sensações que se tinha perdido. Quando Reiting respondeu,
com ar de troça, que «não era preciso ir muito longe para en­
contrar essa sabedoria», Torless ficou irritado e sentiu uma
superioridade que o fez usar palavras mais duras. Por um mo­
mento teve tanto desprezo de Reiting que sentiu ganas de lhe
dar pontapés.
- Podes fazer a troça que quiseres, mas o que vocês agora
fazem não passa de tortura irracional, sem sentido, nojenta!
Reiting deitou um olhar a Basini, que escutava.
- Vê se tens tento na língua, Torless!
- Nojento, sujo, foi isso mesmo que eu disse.
Agora foi Reiting quem ficou furioso.
- Proíbo-te de nos insultares na presença do Basini!

200
As Perturbações do Pupilo Tõrless

- Proíbes o quê? Tu não proíbes coisa nenhuma! Já lá vai o


tempo em que eu tinha algum respeito por ti e pelo Beine­
berg, mas agora vejo o que vocês são: uns idiotas, insensíveis,
detestáveis, umas bestas!
- Cala a boca, ou ... ! - Reiting parecia querer atirar-se a
Tõrless. Este deu um passo atrás e gritou-lhe:
- Achas que vou andar à pancada contigo? O Basini não
vale isso. Faz com ele o que quiseres, e deixa-me passar!
Reiting pareceu pensar em algo de melhor do que uma
briga e afastou-se. Nem em Basini tocou. Mas Torless, que o
conhecia, sabia que aquele virar de costas significava perigo.

Dois dias depois, à tarde, Reiting e Beineberg vieram ter


com Torless.
Este reparou logo na ·expressão agressiva do olhar dos
dois. Era óbvio que Beineberg lhe atribuía o fracasso ridículo
das suas profecias, e Reiting devia tê-lo preparado.
- Pelo que ouvi, insultaste-nos. E ainda por cima à frente
do Basini. Porquê?
Torless não respondeu.
- Tu sabes que nós não toleramos isso. Mas como és tu, e
nós estamos acostumados aos teus caprichos e não lhes da­
mos muita importância, vamos deixar tudo como está. Mas
uma coisa vais ter de fazer. - Apesar das palavras amáveis, ha­
via qualquer coisa má que se anunciava nos olhos de Beine­
berg.
- Basini vai esta noite ao cubículo; nós vamos castigá-lo
por ele te ter atiçado contra nós. Quando nos vires sair, vem
atrás de nós.
Mas Torless disse que não ia.
- Façam o que quiserem, mas eu não entro mais nesse
JOgo.

201
Robert Musil

- Esta noite vamos usar o Basini pela última vez. Amanhã


entregamo-lo à turma, porque ele começa novamente a recal­
citrar.
- Façam o que quiserem.
- Mas tu vais estar lá.
- Não.
- O Basini tem de perceber na tua presença que não pode
fazer nada contra nós. Ontem já se negou a obedecer às nos­
sas ordens; quase acabámos com ele à pancada, e ele insistiu.
Temos de deitar mão de meios morais e humilhá-lo, primeiro
diante de ti e depois da turma toda.
- Mas eu não vou estar lá.
- E porquê?
- Porque não!
Beineberg respirou fundo; parecia que queria acumular
veneno nos lábios; depois, chegou-se bem perto de Torless:
- Achas que nós não sabemos porquê? Achas que não sa­
bemos até que ponto tu foste com o Basini?
- Não fui mais longe do que vocês.
- Ah, sim? E logo a ti é que ele ia escolher como anjo da
guarda, não é? Logo tu é que havias de ser o homem de con­
fiança dele? Achas que somos parvos, ou quê?
Torless irritou-se:
- Vocês podem saber o que quiserem, mas agora deixem-
-me em paz com as vossas histórias sujas.
- Já estás outra vez a ficar malcriado?
- Vocês metem-me nojo! Essa vossa perversidade não faz
sentido, é isso o que há de mais repugnante em vocês.
- Vejam só! Tu devias estar-nos agradecido pelo que fize­
mos por ti. Se pensas que podes dar-te ares de superioridade
connosco, que fomos os teus mestres, estás muito enganado.
Vens logo à noite connosco ou não?

202
As Perturbações do Pupilo Ti:irless

- Não!
- Meu caro Torless, se te voltares contra nós e não vieres,
vai-te acontecer o mesmo que ao Basini. Sabes bem em que si­
tuação o Reiting te encontrou lá em cima. Isso basta. Se nós
fizemos mais ou menos, isso vai-te servir de pouco. Vamos vi­
rar tudo contra ti. E nestas coisas tu és um parvo e um atado,
não vais saber defender-te.
«Se não te decidires a tempo, a turma vai ficar a saber que
tu estás metido nisto com o Basini. Depois, ele que te proteja.
Estamos entendidos?»
A torrente de ameaças, ora de Beineberg, ora de Reiting,
parecia uma tempestade a abater-se sobre Torless. Quando os
dois se foram embora, esfregou os olhos, como se tivesse so­
nhado. Mas conhecia Reiting; irritado, seria capaz das maio­
res baixezas, e parecia muito ofendido com os insultos e a re­
belião de Torless. E Beineberg? Parecia que estava a tremer,
com um ódio contido há anos ... E tudo só porque se tinha
posto a ridículo diante de Torless.
No entanto, quanto mais trágicos eram os acontecimen­
tos, tanto mais indiferentes e mecânicos lhe pareciam. Tinha
medo das ameaças, sim, mas mais nada. O perigo tinha-o
arrastado para o meio do torvelinho da realidade.
Foi-se deitar. Viu Beineberg e Reiting a sair, e ouviu o
arrastar dos pés cansados de Basini. Mas não foi.
Sentiu-se torturado por fantasias terríveis. Pela primeira
vez voltava a pensar nos pais com algum afecto. Percebeu que
precisava desse terreno calmo e seguro para consolidar e ama­
durecer tudo o que até aí o tinha perturbado.
Mas, concretamente, o quê? Não tinha tempo para pensar
nisso nem para meditar sobre os acontecimentos. Sentia ape­
nas uma forte nostalgia de sair daquela situação confusa e
perturbadora, um desejo de tranquilidade, de livros. Como se

20 3
Robert Musil

a sua alma fosse uma terra negra sob a qual se agitam já as se­
mentes, sem que se soubesse como iriam brotar. Veio-lhe a
imagem de um jardineiro que rega os seus canteiros todas as
manhãs, com uma bondade constante e dedicada. A imagem
não o deixava, a segurança calma que dela emanava parecia
concentrar em si toda aquela nostalgia. É assim que tudo tem
de ser. Só assim, pensava Torless. E venceu nele, para lá de to­
do o medo e de todas as dúvidas, a convicção de que tinha de
fazer tudo para atingir esse estado de alma.
Apenas não tinha ideias claras sobre o que iria acontecer a
seguir. A sua nostalgia de paz, porém, reforçou nele a repug­
nância pela trama de intrigas que estavam a preparar. E tinha
de facto medo da vingança que espreitava. Se os dois realmen­
te tentassem denegrir-lhe a imagem diante de toda a turma,
reagir contra isso ia custar-lhe muito esforço e energia, que já
lamentava ter de desperdiçar. E vinham-lhe náuseas só de
pensar nessa confusão, na necessidade de enfrentar forças
que lhe eram estranhas e desprovidas de valores mais eleva­
dos.
Lembrou-se então de uma carta que há muito tempo ti­
nha recebido de casa. Era a resposta a uma outra sua, dirigida
aos pais, e em que lhes dava conta do seu estranho estado de
alma, ainda antes de surgir o episódio da sensualidade. Era
mais uma daquelas respostas moralizadoras, cheia de uma en­
fadonha ética da rectidão, e em que o aconselhavam a con­
vencer Basini de que se devia entregar, para acabar com aque­
la situação degradante e perigosa da sua dependência.
Torless voltara a ler esta carta mais tarde, quando Basini
estava deitado a seu lado, nu, nos cobertores macios do cubí­
culo. E causara-lhe um prazer especial deixar desfazerem-se­
-lhe na boca aquelas palavras graves, simples e sóbrias, en­
quanto pensava que os pais, na sua existência demasiad o

20 4
As Perturbações do Pupilo Tõrless

cheia de luz, deviam ser cegos para a escuridão em que se es­


condia naquele momento a sua alma, como um felino silen­
cioso, de pele macia.
Hoje, porém, era noutro estado de espírito que voltava a
essa passagem.
Sentiu-se dominado por uma agradável tranquilidade, co­
mo se tivesse tocado uma mão bondosa e firme. Tinha toma­
do uma decisão nesse momento. Teve um lampejo, uma ideia
que agarrou sem pensar mais, por assim dizer sob o signo dos
pais.
Ficou acordado na cama até os três regressarem. Depois,
esperou até perceber, pela respiração regular, que estavam to­
dos a dormir. Arrancou rapidamente uma folha do bloco de
notas e escreveu, à luz fraca do candeeiro que ficava aceso à
noite, em letras grandes e irregulares:
«Amanhã eles vão denunciar-te à turma, e esperam-te coi­
sas terríveis. A única saída é seres tu mesmo a apresentares-te
ao director e contar tudo. Ele acabaria por saber de qualquer
maneira, mas antes ainda ias apanhar uma surra monumental.
«Manda as culpas todas para cima do R. e do B., e não di­
gas nada sobre mim.
«Como vês, quero mesmo salvar-te.»
Meteu o papel na mão de Basini, que dormia, e adorme­
ceu também, esgotado de tanta excitação.

Beineberg e Reiting pareciam querer dar ainda a Tõrless


mais um dia de tréguas.
Mas com Basini a situação era séria.
Tõrless reparou que Beineberg e Reiting falavam com vá­
rios colegas, que se formavam grupos à sua volta, em que to­
dos sussurravam, agitados.

20 5
Robert Musil

Por outro lado, não sabia se Basini teria encontrado o pa­


pel, e não tinha oportunidade de lhe falar, porque se sentia vi­
giado.
A princípio teve medo de que as conversas fossem também
sobre ele. Mas agora, na iminência do perigo, ficou tão tolhido
que deixaria que qualquer coisa acontecesse sem reagir.
Só mais tarde se foi misturando timidamente num dos
grupos, preparado para que todos lhe caíssem em cima a
qualquer momento.
Mas ninguém lhe deu atenção. Por enquanto só falavam
de Basini.
Torless foi-se dando conta de que a excitação aumentava.
Reiting e Beineberg talvez tivessem acrescentado umas men­
tiras ...
A princípio, os rapazes sorriam; depois, alguns iam fican­
do mais sérios, e olhares de indignação recaíam sobre Basini;
por fim, toda a turma caiu num silêncio sombrio, inflamado
de inconfessáveis desejos.
Por acaso, era um dia com a tarde livre.
Concentraram-se todos ao fundo da sala, junto dos armá­
rios, e chamaram Basini.
Beineberg e Reiting enquadravam-no como dois domado-
res.
O habitual procedimento de mandar Basini despir-se, de­
pois de terem fechado as portas e colocado vigias, provocou
uma galhofa geral.
Reiting tinha na mão um maço de cartas da mãe de Basini
para o filho, e começou a ler.
- «Meu querido menino . . . »
Gargalhada geral.
- «Sabes que, com o pouco dinheiro de que disponho co­
mo viúva . . . »

206
As Perturbações do Pupilo Torless

Risadinhas obscenas e piadas indecentes vindas do grupo.


Reiting faz menção de continuar a ler. De repente, alguém
empurra Basini. Um outro, sobre quem ele caiu, volta a em­
purrá-lo, em parte por brincadeira, em parte por irritação.
Um terceiro atira-o noutra direcção. E subitamente Basini,
nu, com a boca aberta de pavor, como uma bola em rodopio,
no meio das risadas, gritos e pancadas de todos, voa pela sala,
bate nos cantos das carteiras e fere-se, cai de joelhos, esfolan­
do-os, e acaba por cair, cheio de sangue e de pó, com olhos
esgazeados de animal, enquanto se faz de súbito silêncio e to­
dos se aproximam para o ver estendido no chão.
Torless arrepiou-se. Via diante de si a força terrível das
ameaças.
E continuava sem saber o que Basini faria.
Na noite seguinte queriam atar Basini a uma cama e chi­
coteá-lo com as lâminas dos floretes.

Mas, para espanto geral, logo na manhã seguinte, o direc­


tor entrou na sala de aula, acompanhado pelo director de tur­
ma e dois professores. Mandaram sair Basini, que foi levado
para outra sala.
O director, muito irritado, fez um discurso a propósito
das crueldades cometidas e ordenou uma severa investigação
do caso.
Basini tinha-se apresentado.
Alguém o deve ter informado sobre o que o esperava.

Ninguém suspeitava de Torless. Ficou sentado, em silên­


cio, como se nada daquilo lhe dissesse respeito.
Nem sequer Reiting e Beineberg pensaram que fosse ele o
traidor. Eles próprios não levaram a sério as ameaças que lhe

20 7
Robert Musil

tinham feito; talvez as tivessem feito apenas para o assustar,


para mostrar a sua superioridade, talvez por irritação; agora
que a raiva passara, já nem pensavam nisso. Até mesmo as
promessas feitas aos seus pais os impediriam de dar algum
passo contra Torless. Tudo isso era tão natural para eles, que
também não temiam nada da parte de Torless.
Torless não se arrependeu do que fizera. O que nisso ha­
via de dissimulado e cobarde não lhe pesava, face à sensação
de liberdade total que agora sentia. Depois de toda aquela
tensão, abria-se nele um espaço maravilhosamente claro e
amplo.
Não participou das animadas conversas sobre o que se iria
seguir; passou todo o dia tranquilamente entregue a si mes­
mo.
Quando escureceu e os candeeiros se acenderam, sentou­
-se no seu lugar e abriu o caderno em que antes tinha escrito
todas aquelas rápidas notas.
Mas não ficou muito tempo a lê-las. Passou a mão pelas
páginas e era como se delas subisse um perfume delicado, co­
mo o cheiro a alfazema de velhas cartas. Era a ternura mistu­
rada de melancolia com que encaramos as coisas definitiva­
m e n t e p a s s a d a s q u a n d o n e l a s d e s c o b ri m o s a fi n i d a d e s
esquecidas connosco próprios n a sombra leve e pálida que
delas emerge com flores de mortos na mão.
E esta sombra leve e melancólica, este perfume esmaecido
parecia perder-se numa ampla torrente, cheia e cálida - na
vida, que agora se abria à frente de Torless.
Tinha chegado ao fim uma fase da sua evolução, a alma
formara mais um anel, como uma árvore jovem, e este senti­
mento, ainda sem palavras, que o dominava, desculpava tudo
o que tinha acontecido.
Torless começou a folhear as suas recordações. As frases

208
As Perturbações do Pupilo Tõrless

em que ingenuamente ia registando o que acontecera - as


múltiplas formas de espanto e de perplexidade perante a vida
- ganharam nova vida, pareciam agitar-se, tornavam-se coe­
rentes. Estavam ali à sua frente como um caminho de luz em
que eram visíveis as marcas dos seus passos tacteantes. Mas al­
guma coisa parecia ainda faltar; não uma nova ideia, isso não,
mas não era ainda a vida plena o que se insinuava em Torless.
Sentia-se inseguro. Agora pensava no medo que iria sentir
no dia seguinte, ao ter de se justificar perante os seus profes­
sores. E como? Como ia ele explicar-lhes tudo aquilo, o cami­
nho escuro e misterioso que percorrera? Se lhe perguntassem
por que razão maltratou Basini, não saberia o que responder:
«porque estava interessado em seguir um determinado proces­
so no meu cérebro, qualquer coisa de que hoje, apesar de tudo
o que aconteceu, sei ainda pouco; qualquer coisa perante a
qual tudo o que eu possa pensar me parece insignificante.»
Este pequeno passo que ainda o separava do ponto final
deste processo espiritual, e que tinha de dar, assustava-o co­
mo um abismo monstruoso.
Ainda a noite não tinha caído, e já Torless se encontrava
num estado febril, de excitação e pânico.

No dia seguinte, quando começaram a interrogar os alu­


nos um a um, Torless tinha desaparecido.
Tinha sido visto pela última vez na noite anterior, sentado
diante de um caderno, provavelmente a ler.
Procuraram em todo o internato, Beineberg foi às escon­
didas ao cubículo do sótão, mas não o encontraram.
Perceberam então que fugira do internato, e avisaram
todas as autoridades para tentarem trazê-lo de volta sem
sanções.

20 9
Robert Musil

Entretanto, começou a investigação do caso.


Reiting e Beineberg, que julgaram que ele fugira com me­
do das suas ameaças, sentiram que era seu dever afastar dele
quaisquer suspeitas, e defenderam-no até onde puderam.
Empurraram todas as culpas para Basini, e toda a turma
confirmou que Basini era um ladrão e um infame que respon­
dera apenas com reincidências a todas as tentativas bem in­
tencionadas de o regenerar. Reiting reconheceu que tinham
errado, mas que só o fizeram porque a sua compaixão lhes di­
zia que não deviam entregar um camarada ao castigo que o
esperava antes de esgotarem todos os meios para o corrigir.
E toda a turma voltou a jurar que os maus tratos infligidos a
Basini tinham sido o resultado do sarcasmo perverso com que
ele respondera às mais nobres intenções dos colegas que an­
tes o tinham poupado.
Em suma, uma comédia bem montada, brilhantemente
encenada por Reiting, que tocou, para sua defesa, em todas as
teclas da moral que sabia soarem bem aos ouvidos dos profes­
sores.
Basini manteve-se obstinadamente calado. Sentia ainda o
susto de morte do dia anterior, e a solidão do quarto onde o
isolaram, o andamento calmo e objectivo das investigações,
foram para ele, só por si, um alívio. Só desejava que aquilo
chegasse depressa ao fim. Para além disso, Reiting e Beine­
berg não se tinham esquecido de o avisar de que podia contar
com uma vingança terrível, caso testemunhasse contra eles.
Finalmente trouxeram Torless. Tinha sido encontrado na
cidade próxima, morto de cansaço e esfomeado.
A sua fuga parecia agora ser o único enigma em todo este
caso. Mas a situação era-lhe favorável. Beineberg e Reiting ti­
nham preparado bem o terreno, falado do nervosismo que ele
mostrava nos últimos tempos, da sua grande sensibilidade

210
As Perturbações do Pupilo Ti:irless

moral, que o levara a sentir-se culpado só pelo facto de saber


tudo desde o início e não ter denunciado logo o caso, sendo,
por isso, também culpado desta desgraça.
Assim, Tõrless foi recebido já com uma certa benevolên­
cia, e os colegas prepararam-no a tempo.
Apesar disso, estava extremamente nervoso, e o medo de
não conseguir fazer-se compreender esgotou-o completamen­
te ...
Por discrição, e por receio de que pudesse haver ainda al­
gumas revelações, o interrogatório teve lugar na residência
particular do director. Presentes, além deste, o director de
turma, o professor de Religião e o de Matemática, sobre quem
recaiu, por ser o mais novo do corpo docente, a atribuição de
fazer a acta.
Tõrless ficou calado quando lhe perguntaram por que
razão tinha fugido.
Abanar de cabeça compreensivo por parte de todos.
- Muito bem - disse o director -, estamos informados das
razões. Mas diga-nos lá o que o levou a esconder o comporta­
mento de Basini.
Tõrless podia muito bem ter mentido. Mas tinha perdido
a timidez. Sentia mesmo vontade de falar de si e de tentar ver
como as suas ideias eram recebidas por aquelas cabeças.
- Não sei bem, senhor director. Quando ouvi falar disso a
primeira vez, pareceu-me uma coisa monstruosa ... , qualquer
coisa de inconcebível...
O professor de Religião abanou a cabeça na direcção de
Tõrless, satisfeito e animando-o a continuar.
- Pensei ... na alma de Basini ...
O professor de Religião estava visivelmente radiante, o
professor de Matemática limpou a luneta, assentou-a no na­
riz, piscou os olhos ...

211
Robert Musil

- Não conseguia imaginar o momento em que Basini pas­


sou a sofrer uma tal humilhação, e por isso sentia vontade de
estar com ele ...
- Pois, pois ... Quer então dizer que sentia uma certa re­
pulsa pelo erro do seu colega e que a visão do vício de certa
forma o fascinava, como se diz que acontece com o olhar da
serpente que atrai as vítimas?
O director de turma e o matemático apressaram-se a evi­
denciar com gestos expressivos a sua concordância com esta
comparação.
Mas Tõrless esclareceu:
- Não, não se tratou propriamente de repulsa. Era assim:
umas vezes eu dizia para mim mesmo que ele tinha cometido
um erro, e por isso tinha de ser entregue a quem tinha o
direito de o punir. ..
- Era isso que devia ter feito.
- ... Mas outras vezes ele parecia-me um caso tão singular
que eu nem pensava em castigo, colocava-me de um ponto de
vista totalmente diferente; de cada vez que pensava nele,
dava-se em mim como que um salto ...
- Vai ter de se exprimir de forma mais clara, meu caro
Tõrless.
- Isto não se pode dizer de outra maneira, senhor direc-
tor.
- Pode, sim. O senhor está muito nervoso, vê-se logo ...
Perturbado. O que acaba de dizer é muito confuso.
- Bom, estou perturbado, sim; noutras alturas seria capaz
de encontrar melhor as palavras. Mas vai tudo dar ao mesmo,
a essa coisa estranha que eu sentia em mim ...
- Está bem, é natural, num caso como este.
Tõrless reflectiu durante um instante.
- Talvez se possa dizer assim: há determinadas coisas que

212
As Perturbações do Pupilo Tõrless

estão destinadas a intervir nas nossas vidas, por assim dizer,


de forma dupla. Para mim, essas coisas eram pessoas, aconte­
cimentos, recantos escuros e poeirentos, um muro alto, mu­
do, que de repente ganhava vida ...
- Por amor de Deus, Torless, para onde é que o leva a sua
fantasia?
Mas Torless estava a gostar de mandar cá para fora tudo o
que ia nele.
- ... números imaginários ...
Todos olhavam alternadamente, ora uns para os outros,
ora para Torless. O matemático tossicou:
- Para melhor esclarecimento destes factos obscuros, de­
vo dizer que o pupilo Torless me foi procurar uma vez para
me pedir que o esclarecesse sobre alguns conceitos funda­
mentais da matemática que, de facto, oferecem algumas difi­
culdades a um raciocínio ainda não treinado - entre eles, os
números imaginários. Tenho mesmo de admitir que o rapaz
mostrou uma inegável agudeza mental, mas estava verdadeira­
mente obcecado apenas por coisas que, de certo modo, pare­
ciam mostrar - pelo menos para ele - uma certa lacuna no
fluxo de causalidade do nosso pensamento.
«Ainda se lembra, Torless, do que me disse nessa altura?
- Sim. Disse que, nesses pontos, me parece que o nosso
pensamento não chega para nos levar para o outro lado, mas
precisa de uma outra certeza interior, que de algum modo
nos permite fazer essa travessia. Também com Basini eu sen­
tia que o pensamento, só por si, não basta.
O director estava a ficar impaciente com este desvio filo­
sófico da investigação, mas o catequista estava muito satisfei­
to com as explicações de Torless.
- Sente-se então - perguntou - a fugir da ciência para
pontos de vista religiosos?

21 3
Robert Musil

«É óbvio que também na sua relação com Basini se passou


o mesmo - disse, dirigindo-se aos demais. - Este rapaz parece
ter um espírito predisposto a entender a mais subtil, quase di­
ria divina essência da moral, que nos transcende.»
Agora, o director sentiu-se obrigado a continuar por este
caminho.
- Diga-nos, Torless, é assim como o reverendo está a di­
zer? Tem tendência a procurar por detrás dos factos e das coi­
sas, como nos disse em termos muito gerais, um fundo reli­
gioso?
Ele próprio já ficaria satisfeito se Torless confirmasse, for­
necendo-lhe uma base segura para emitir um juízo. Mas Tür­
less respondeu:
- Não, também não era isso.
- Então diga-nos, de forma clara e sem ambiguidades -
explodiu o director -, o que era. Não podemos pôr-nos aqui a
discutir problemas filosóficos consigo.
Mas agora é que Torless resolveu ser teimoso. Ele próprio
sentia que se tinha exprimido mal, mas a contradição, bem
como a equívoca concordância com que o tratavam, geraram
nele um sentimento de superioridade arrogante para com
aqueles homens mais velhos que pareciam saber tão pouco
das coisas da alma humana.
- Não tenho culpa se não é nada disso que os senhores
disseram. Eu próprio não consigo explicar exactamente o que
sentia de cada vez; mas se vos disser o que penso agora, talvez
compreendam as razões por que não consegui libertar-me de
tudo aquilo durante tanto tempo.
Entretanto, assumira uma postura mais direita, orgulhoso
como se fosse ele o juiz; os seus olhos fitavam um ponto para
lá dos professores, pois não queria olhar de frente aquelas
figuras ridículas.

21 4
As Perturbações do Pupilo Tõrless

Lá fora, diante da janela, uma gralha estava pousada num


ramo; de resto, nada, a não ser a grande superfície branca.
Torless sentia que era chegado o momento de falar de for­
ma clara e confiante do que sentira em si, primeiro de forma
indefinida e dolorosa, depois sem vida nem força.
Não como se uma nova ideia lhe tivesse dado aquela segu­
rança e clareza; todo ele, de cabeça erguida como estava ali,
como se à sua volta só houvesse um espaço vazio, ele, o ser
humano inteiro, sentia o que tinha sentido antes, quando dei­
xara os seus olhos assombrados passear-se por entre os cole­
gas que escreviam, estudavam, trabalhavam afanosamente.
Os pensamentos são, de facto, uma coisa muito particular.
Por vezes não são mais do que acasos que desaparecem sem
deixar rasto; os pensamentos têm fases vivas e fases mortas.
Podemos ter uma ideia genial, e ela murchar lentamente nas
nossas mãos como uma flor. Fica a forma, mas faltam as cores,
o perfume. Ou seja, lembramo-nos dela palavra por palavra, o
valor lógico, o postulado que encontrámos mantém-se intac­
to, e apesar disso apenas voga sem sustentáculo à superfície
do nosso mundo interior, e não nos sentimos mais ricos por o
ter descoberto. Até que, talvez ao cabo de anos, surge de re­
pente um momento em que percebemos que neste entretem­
po não sabíamos nada dele, embora soubéssemos tudo de um
ponto de vista lógico.
É verdade, há pensamentos mortos e pensamentos vivos.
O pensamento que se move na superfície iluminada, que po­
de a cada momento ser reconstituído seguindo o fio da causa­
lidade, de modo nenhum é o pensamento vivo. Um pensa­
mento que encontramos por esta via será sempre algo de
indiferente, como um homem qualquer na coluna de solda­
dos em marcha. Um pensamento - e ele pode ter já passado
pelo nosso cérebro há muito tempo - só se torna vivo no

21 5
Robert Musil

momento em que alguma coisa que já não é pensamento, que


já não é lógica, se junta a ele, de tal modo que sentimos a sua
verdade, para lá de toda a legitimação, como uma âncora que
se soltou e nos entrou pela carne irrigada de sangue, viva...
A percepção verdadeiramente grande de alguma coisa só em
parte se dá no círculo de luz do cérebro; a outra parte situa-se
no terreno escuro do mundo interior, e é acima de tudo um
estado de alma na ponta mais extrema do qual pousa, como
uma flor, o pensamento.
Torless já só precisava de um último abalo da alma para
que este derradeiro rebento brotasse.
Sem se preocupar com os rostos espantados à sua volta,
como que falando só para si, partiu desta última imagem e co­
meçou a falar sem parar, com os olhos postos no horizonte:
- ... Talvez eu tenha ainda muito que aprender para poder
exprimir-me convenientemente, mas tentarei descrever o que
se passou. Agora mesmo senti isso em mim outra vez. Não
posso senão dizer que vejo as coisas sob duas formas. Todas
as coisas, os pensamentos também. Hoje são iguais às de on­
tem, quando me esforço por encontrar uma diferença, e logo
que fecho os olhos, elas vivem sob outra luz. Talvez eu me te­
nha enganado com os números irracionais; quando os penso,
de certo modo, por dentro da matemática, eles aparecem-me
como naturais, mas se os considerar na sua singularidade, ve­
jo-os como impossíveis. Aqui, talvez eu possa estar errado,
porque sei muito pouco sobre eles. Mas com Basini não me
enganei, não me enganei quando não conseguia desviar o ou­
vido do leve sussurro que vinha do muro alto, nem os olhos da
vida silenciosa do pó subitamente iluminado por uma lanter­
na. Não, não me enganava quando falava de uma segunda vida
das coisas, secreta e esquecida! Eu ... - não falo em sentido li­
teral -, não são as coisas que vivem, não era Basini que tinha

216
As Perturbações do Pupilo Türless

dois rostos, era em mim que havia um segundo eu que não via
estas coisas com os olhos do entendimento. Do mesmo modo
que eu sinto que um pensamento ganha vida em mim, assim
também sinto que alguma coisa em mim vive ao contemplar
as coisas, quando os pensamentos se calam. Há qualquer coi­
sa de obscuro em mim, sob os pensamentos, e que eu não
posso avaliar com o pensamento, uma vida que não se deixa
traduzir em palavras e que, apesar disso, é a minha vida ...
«Esta vida silenciosa oprimia-me, forçava-me constante­
mente a olhar para ela. E eu sofria com medo de que toda a
nossa vida fosse assim e eu só aqui e ali me apercebesse de al­
gum fragmento ... Ah, tive muito medo ... , fiquei desvairado ... »
Estas palavras e comparações, nada habituais na idade de
Torless, nasciam nele, naquele momento de excitação, num
momento de quase inspiração poética, de uma forma fácil e
quase natural. Agora, baixou o tom de voz e, como que atingi­
do pelo seu sofrimento, continuou:
- ...Agora, tudo iss o passou. Sei que me enganei. Já não
tenho medo. Sei que as coisas são as coisas e assim será sem­
pre, e que eu as verei sempre, ora de uma maneira, ora de ou­
tra. Ora com os olhos da razão, ora com os outros ... E nunca
mais tentarei comparar as duas coisas ...
Calou-se. Achou que era perfeitamente natural sair agora,
e ninguém o impediu.

Depois de ele sair, os homens entreolharam-se, perplexos.


O director abanava a cabeça, sem saber o que dizer. O direc­
tor de turma foi o primeiro a encontrar palavras:
- Pelos vistos, este pequeno profeta quis fazer-nos uma
prelecção. Macacos me mordam se o entendi. Que excitação!
Que complicação das coisas mais simples!
- Receptividade e espontaneidade do pensamento -

21 7
Robert Musil

acrescentou o matematico. - Parece que deu importância


excessiva ao lado subjectivo das nossas vivências e que isso o
perturbou e o levou a todas aquelas comparações obscuras.
Só o professor de Religião ficou calado. Tinha ouvido tan­
tas vezes no discurso de Torless a palavra «alma» que bem
gostaria de poder ocupar-se deste jovem.
Mas não sabia muito bem em que sentido ele a entendia.
O director pôs termo à discussão:
- Não sei muito bem o que vai na cabeça deste Torless,
mas ele encontra-se num estado de tal excitação que a conti­
nuação no internato não é a melhor solução para ele. Precisa
de uma cuidadosa vigilância no que respeita aos alimentos do
espírito, e nós não estamos em condições de lha dar. Não me
parece que possamos continuar a assumir esta responsabilida­
de. Torless é um caso claro de educação particular. Vou escre­
ver ao pai nesse sentido.
Todos se apressaram a concordar com esta boa sugestão
do honrado director.
- Ele era tão estranho que sou levado a crer que tem uma
predisposição para a histeria - comentou o matemático para
o seu vizinho.

Com a carta do director chegou a casa dos pais de Torless


uma outra, do filho, em que este lhes pedia para o tirarem do
internato porque achava que este já não era lugar para ele.

Basini fora entretanto expulso, e a vida na escola conti­


nuou ao ritmo normal.
Decidiu-se que seria a mãe a vir buscar Torless. Despe­
diu-se com indiferença dos camaradas. Quase começava já a
esquecer os seus nomes.

218
As Perturbações do Pupilo Ti:irless

Nunca mais foi até ao cubículo vermelho. Tudo isso lhe


parecia estar muito, muito longe.
O lugar fora esquecido depois do afastamento de Basini.
Quase parecia que este, que tinha atraído a si todas aquelas
relações, o tinha levado também consigo.
Um certo silêncio, associado a cepticismo, tinha-se apode­
rado de Torless, mas o desespero desaparecera. «Foram com
certeza apenas as coisas que fazia com Basini às escondidas
que me deixaram assim desesperado», pensava. Não encontra­
va outra explicação.
Mas e nvergonhava- s e . C o m o n o s e nvergonhamos de
manhã, quando vimos de noite, atormentados por uma febre,
erguerem-se de todos os cantos do quarto terríveis ameaças.
O seu comportamento perante a comissão parecia-lhe agora
enormemente ridículo. Que grande encenação! E eles não te­
riam razão? Por uma coisa tão insignificante! Mas havia também
outra coisa nele que retirava o espinho a essa vergonha. « É claro
que me comportei de forma irracional», ponderou. «Mas tudo
aquilo parecia ter pouco a ver com a minha razão.» Era este ago­
ra o seu sentimento. Sentia dentro de si a lembrança de uma
terrível tempestade para cuja explicação as razões que agora ain­
da encontrava em si nem de longe eram suficientes. «Então de­
ver ter sido algo de muito mais imperativo e profundo», con­
cluiu, «que não se pode explicar com a razão e os conceitos ... ».
E aquilo que existira em si antes da paixão, que só tinha sido
recoberto por ela, a essência, o problema, continuava lá. Aquela
perspectiva alternante da alma para o longe e para o perto, que
conhecera. Aquela relação incompreensível que atribui aos
acontecimentos e às coisas valorações súbitas, consoante o pon­
to de vista, incompatíveis e estranhas umas às outras ...
Isto e tudo o resto era agora visto por ele de forma curio­
samente nítida e limpa - e como coisa ínfima. Como pela

219
Robert Musil

manhã, logo que os primeiros raios de sol claros secaram os


suores de medo, e mesa e armário e inimigos e destino se re­
duzem às suas dimensões naturais.
Mas fica sempre um leve cansaço, um pendor para a medita­
ção, e o mesmo aconteceu com Torless. Agora sabia distinguir
entre dia e noite; sempre soubera, apenas um sonho pesado se
atravessara para confundir essas fronteiras, e ele envergonhava­
-se de ter passado por essas perturbações: mas a lembrança de
que as coisas podem ser diferentes, de que existem outras fron­
teiras mais subtis, facilmente desfocáveis a envolver o ser huma­
no, que há sonhos febris a rondar a alma, corroendo os muros e
abrindo caminhos inquietantes - também esta lembrança ficara
no mais fundo de si e irradiava sombras pálidas.
Não sabia explicar muitas dessas coisas. Mas a insuficiên­
cia das palavras era uma sensação deliciosa, como a certeza
do ventre fecundado que já sente no sangue a leve palpitação
do futuro. E a isso juntavam-se em Torless a confiança e o
cansaço ...
E assim esperou pela despedida, silencioso e pensativo ...
A mãe, que pensara ir encontrar um rapaz nervoso e per­
turbado, ficou admirada com a sua tranquila serenidade.
Quando iam para a estação, passaram pelo pequeno bos­
que, do lado direito, onde ficava a casa de Bozena. Pareceu­
-lhe insignificante e inofensivo, um labirinto poeirento de sal­
gueiros e choupos.
Torless lembrou-se então de como lhe custara imaginar a
vida dos pais. E olhou de soslaio para a mãe.
- O que é, filho?
-Nada, mãe, estava a pensar numa coisa.
E aspirou o cheiro levemente perfumado que subia do
regaço da mãe.

220
&-8

FICÇÃO UNIVERSAL

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PARÁBOLA DO Gonzalo Torrente Zélia Gattai
VENTRÍLOQUO Ballester CITTÀ DI ROMA
Nicholas Shakespeare FILOMENO, PARA MEU Espido Freire
O MESTRE DE DANÇA PESAR ONDE SEMPRE
Jorge Amado Gonzalo Torrente É OUTUBRO
OBRA CONJUNTA - Vol. Bailester
Jorge Amado
III A SAGA/FUGA DE J. B. OBRA CONJUNTA - Vol.
MAR MORTO Jorge Volpi X
CAPITÃES DA AREIA EM BUSCA DE TENDA DOS MILAGRES
Arturo Pérez-Reverte KLINGSOR
Jorge Amado
O CLUBE DUMAS Yasunari Kawabata OBRA CONJUNTA - Vol.
Manuel Rivas KYOTO Xl!I
O LÁPIS DO J. M. Coetzee FARDA FARDÃO
CARPINTEIRO DESGRAÇA CAMISOLA DE DORMIR
Jorge Amado NOCTURNO Camilo José Cela
OBRA CONJUNTA - Vol. INDIANO/O FIO DO A COLMEIA
XI HORIZONTE/ REQUIEM Chitra Banerjee
TEREZA BATISTA Gao Xingjian Divakaruni
CANSADA DE GUERRA UMA CANA DE PESCA CASAMENTO
Michael Crichton PARA O MEU AVÔ FORÇADO
RESGATE NO TEMPO Philip Roth Gao Xingjian
Ernest Hemingway CASEI COM UM A MONTANHA DA
VERDADE AO COMUNISTA ALMA
AMANHECER Mario Vargas Llosa
Zadie Smith
Zoé Vaidés DENTES BRANCOS A CASA VERDE
QUERIDO PRIMEIRO Andrew O'Hagan
Edmund White
AMOR OS NOSSOS AVÓS
O HOMEM CASADO
Eduardo Mendoza Mario Puzo
Jorge Amado
A CIDADE DOS A FAM Í LIA
OBRA CONJUNTA -
PROD Í GIOS
Vol. I V.S. Naipaul
Manuel Vásquez O PAÍS DO CARNAVAL UMA VIDA PELA
Montalbán CACAU METADE
OS ALEGRES RAPAZES SUOR Barbara Kingsolver
DE ATZAVARA
Pedro J. Gutiérrez A B Í BLIA ENVENENADA
Colm Tóibín
O REI DE HAVANA Manuel Rivas
O NAVIO-FAROL
Michael Ondaatje O SEGREDO DA TERRA
DE BLACKWATER
O FANTASMA DE ANIL Peter Carey
Manuel Rivas
Jorge Amado A VERDADEIRA
ALMA MALDITA ALMA
OBRA CONJUNTA - Vol. HISTÓ RIA DO BANDO
Mario Vargas Llosa DE NED KELLY
XV
A FESTA DO CHIBO
O SUMIÇO DA SANTA V. S. Naipaul
Miguel Delibes A DESCOBERTA MIGUEL STREET
O HEREGE DA AM É RICA Anita Nair
Mario Vargas Llosa PELOS TURCOS CARRUAGEM PARA
A GUERRA DO FIM
John Le Carré MULHERES
DO MUNDO
O FIEL JARDINEIRO João Ubaldo Ribeiro
Javier Marias
Salman Rushdie JÁ PODEIS DA PÁTRIA
TODAS AS ALMAS
F Ú RIA FILHOS E OUTRAS
William Faulkner
HISTÓRIAS
SANTUÁ RIO João Ubaldo Ribeiro
MIS É RIA E GRANDEZA Marcela Serrano
Jhumpa Lahiri
DO AMOR O QUE ESTÁ NO MEU
INTERPRETE DE
DE BENEDITA CORAÇÃO
ENFERMIDADES
Guillermo Cabrera Pedro Juan Gutiérrez
E�pido Freire
PESSEGOS GELADOS Infante ANIMAL TROPICAL

Sándor Márai IÍ TUDO UM JOGO Zoé Valdés

AS VELAS ARDEM DE ESPELHOS OS MISTÉ RIOS


AT É AO FIM DE HAVANA
Mario Vargas Llosa
A CIDADE E OS CÃES Yasunari Kawabata
Javier Marias
O HOMEM TERRA DE NEVE
Giuseppe Pontiggia
SENTIMENTAL Gabriel Garcia Márquez
NASCIDOS DUAS VEZES
Jorge Amado
VIVER PARA CONTA-LA
Tom Wolfe
OBRA CONJUNTA - Vol. Jonathan Franzen
1-IOOKING UP
XIV CORRECÇ Õ ES
UM MUNDO
TOCAIA GRANDE Carlos Fuentes
,\MERICANO
Mario Vargas Llosa AQUILO EM QUE
Maruja Torres ACREDITO
PANTALEÃO
E AS VISITADORAS ENQUANTO VIVEMOS Margaret Mazzantini
lsmai1 Kadaré Pierre Pelot NÃO TE MOVAS
ABRIL DESPEDAÇADO O PACTO DOS LOBOS Jeffrey Eugenides
Antonio Tabucchi J avier Marias AS VIRGENS SUICIDAS
OBRAS COMPLETAS - SELVAGENS E Zoé Valdés
Vol. II SENTIMENTAIS MILAGRE EM MIAMI
Antonio Tabucchi Jeffrey Eugenides Martin Doerry
ESTÁ A FAZER-SE CADA MIDDLESEX O MEU CORAÇÃO
VEZ MAIS TARDE FERIDO
Erin Hart
Jorge Amado
TERRA ASSOMBRADA Carlos Ruiz Zafón
OBRA CONJUNTA A SOMBRA DO VENTO
VOL. 11 a Michael Crichton
JUBIABÁ PRESAS J. M. Coetzee
ELIZABETH COSTELLO
Mario Vargas Llosa Adriaan van Dis
O PARAÍSO NA OUTRA A TERRA PROMETIDA
ESQUINA
Andy üakes
Rosa Regàs
O OLHO DO DRAGÃO
A CANÇÃO
DE DOROTEA Adam Thirlwell
João Ubaldo Ribeiro POL ÍTICA
DIÁRIO DO FAROL William Faulkner
Zadie Smith NA MINHA MORTE
O HOMEM DOS
Javier Marias
AUTÓGRAFOS
O TEU ROSTO AMAN HÃ
Jorge Amado
OBRA CONJUNTA Robert Wilson
VOL. V a O CEGO DE SEVILHA
SEARA VERMELHA Chico Buarque
Simonetta Agnello BUDAPESTE
Hornby
Monica A!i
A MENNULARA
SETE MARES E TREZE
Gil Courtemanche
RIOS
UM DOMINGO NA
PISCINA EM KJGALI J. M. Coetzee
V. S. Naipaul O MESTRE DE
PARA ALÉM PETERSBURGO
DA CRENÇA V. S. Naipaul
Elie Wiesel NUM PAÍS LIVRE
O TEMPO DOS
Jumpha Lahiri
DESENRAIZADOS
O HOMÓNIMO
Elena Ferrante
Frances Itani
OS DIAS DO
ENSURDECER
ABANDONO
Philip Roth Salman Rushdie
A MANCHA HUMANA PISAR O RISCO
Manuel Rivas Pedro Juan Gutiérrez
AS CHAMADAS O INSACIÁVEL HOMEM
PERDIDAS ARANHA

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