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Arquitectura rural e paisagens culturais no Brasil a partir de


uma abordagem transdisciplinar e da visâo de processos

Article · January 2004


Source: OAI

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1 author:

André Munhoz de Argollo Ferrão


University of Campinas
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BIBLID 1133-598X (2004) p. 133-148

ARQUITETURA RURAL E PAISAGENS CULTURAIS NO


BRASIL A PARTIR DE UMA ABORDAGEM
TRANSDISCIPLINAR E DA VISÃO DE PROCESSOS

ANDRÉ MUNHOZ DE ARGHOLLO FERRÂO


Universidade Estadual de Campinas
Faculdade de Engenharia Civil, Arquitetura e Urbanismo
argollo@fec.unicamp.br

VEGUETA 8 (2004), ISSN: 1133-598X 133


André Munhoz de Arghollo Ferrâo
Arquitetura rural e paisagens culturais no Brasil a partir de uma abordagem transdisciplinar...

Resumen: Este articulo presenta, a produtivo do café, e as respectivas


partir de una abordaje transdisciplinar y de repercussões sobre o território do estado
la visión de procesos, el arquitectura rural de São Paulo. Apresenta-se um método de
como un campo de investigación intrín- abordagem para estudos sobre o desen-
seco y necesario a: el concepción y análi- volvimento rural sustentável, e sugere-se
sis de emprendimentos sustentables; el que o enfoque adotado para o caso do café
ordenación territorial a partir del rescate no Brasil possa ser adequado ao estudo da
de la memoria y de los valores de una co- arquitetura rural (e das paisagens culturais
munidad; el desarrollo de proyectos des- relacionadas a ela) a partir de outros
tinados a la valoración de las paisajes cul- produtos agroindustriais e outros con-
turales vinculadas a la agricultura o al textos culturais. Salienta-se, por fim, que
mundo rural de un país o región. Presen- a arquitetura rural, assim como os estudos
ta-se para el caso brasileño, la arquitectu- sobre as paisagens culturais vinculadas a
ra resultante de la dinámica del comple- ela, devam, necessariamente, continuar
xo productivo del café,y las respectivas sendo realizados a partir do enfoque
repercusiones sobre el territorio de la transdisciplinar e da visão de processos.
provincia de São Paulo. Preséntase, ade- Palavras-chave: arquitetura rural,
más, un método de abordaje para inves- paisagens culturais, patrimônio cultural,
tigaciones sobre el desarrollo rural sus- ordenação territorial, desenvolvimento
tentable, y se hace el sugerencia de que sustentável, turismo rural.
el mismo enfoque adoptado para el ca- Abstract: This paper presents rural ar-
so del café en Brasil pueda ser adecuado chitecture as a discipline which must be
para las investigaciones a respecto de ar- studied from a specific viewpoint: process
quitectura rural (y de las paisajes cultura- and transdisciplinar vision. This approach
les relacionadas a ella) a partir de otros is absolutely necessary when the rural
productos agro-industriales y otros con- landscapes and the agricultural activities
textos culturales. Finalmente, se hace la are in focus. The regional planning, in-
sugerencia de que la arquitectura rural, así cluding management and cultural land-
como las investigaciones sobre las paisajes scapes projects, maintain a straight rela-
culturales vinculadas a ella, deban, nece- tionship with rural architecture when pro-
sariamente, continuar siendo conduci- ductives processes are analyzed. This ap-
das a partir del enfoque transdisciplinar proach is also important when a regional
y de la visión de procesos. planning is based on cultural heritage.
Palabras-clave: arquitectura rural, The Brazilian coffee productive process
paisajes culturales, patrimonio cultural, was presented like a case. The “architec-
ordenación territorial, desarrollo susten- ture of coffee” in São Paulo state is present-
table, turismo rural. ed. This method can be used to analyze
Resumo: Este artigo apresenta, a cultural landscapes based on rural architec-
partir de uma abordagem transdisciplinar ture. All of the agribusiness commodities
e da visão de processos, a arquitetura rural can generate a specific rural architecture
como um campo de estudos intrínseco e and this is an important element to char-
necessário à concepção e análise de em- acterize its respective cultural landscapes.
preendimentos sustentáveis; à ordenação The conclusion indicates that this kind of
territorial a partir do resgate da memória studies must be done with similar ap-
e dos valores de uma comunidade; ao proach.
desenvolvimento de projetos destinados Key-words:rural architecture, cultur-
à valorização das paisagens culturais al landscapes, cultural heritage, regional
vinculadas à agricultura ou ao mundo planning, sustainable development, ru-
rural de um país ou região. Apresenta-se ral tourism.
para o caso brasileiro, a arquitetura
resultante da dinâmica do complexo

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André Munhoz de Arghollo Ferrâo
Arquitetura rural e paisagens culturais no Brasil a partir de uma abordagem transdisciplinar...

1. ESTUDOS SOBRE ARQUITETURA • as micro-bacias hidrográficas como


RURAL NO BRASIL unidades de análise ou planejamento
integradas do ponto de vista ecológico;
Os estudos sobre arquitetura rural no • determinadas regiões dedicadas à
Brasil têm evoluído nos últimos anos de produção de café (ou a algum outro
acordo com a lógica das intensas mudanças processo agroindustrial) como unidades
por que passa o ambiente rural do País. de planejamento integradas por suas
Normalmente, ao se enfocar a arquitetura características econômicas;
rural, remete-se logo à idéia de uma pai- • regiões históricas, repletas de tradições
sagem singela, composta por pequenos culturais, ou dedicadas a produtos
sítios ou enormes glebas sem a necessária típicos fortemente vinculados ao te-
infra-estrutura física capaz de dotar o rritório onde são produzidos, a ponto de
território de elementos que otimizem a caracterizarem sua paisagem e serem
produção agropecuária e ao mesmo tempo reconhecidos por ela, numa relação
a qualidade de vida dos trabalhadores e intrínseca entre processo produtivo e
empresários rurais. organização territorial, podem ser con-
No entanto alguns pesquisadores têm sideradas como unidades de análise ou
enfocado a arquitetura rural como um planejamento integradas por suas
campo de estudos absolutamente fun- características culturais.
damental para o desenvolvimento sus-
tentável do País. Esta postura acadêmica é As três situações descritas acima
relativamente recente, intensificando-se a compreendem elementos necessários à
partir da última década. caracterização das paisagens culturais das
A paisagem rural brasileira, com seu diversas e heterogêneas regiões agrícolas
imenso patrimônio cultural, confere aos brasileiras, sendo todas elas, objeto de
estudos sobre arquitetura rural uma di- estudos da arquitetura rural.
mensão sócio-econômica importante. Os As correlações entre as técnicas
edifícios destinados à produção agro- empregadas em determinados processos
industrial compõem uma notável arqui- produtivos com a arquitetura dos res-
tetura agrícola ou, a arquitetura (da pro- pectivos espaços de produção são fun-
dução) rural abrangendo, inclusive, damentais para a compreensão das pai-
construções específicas de processos de sagens culturais da região em foco. As
produção agrícola instalados em cidades múltiplas interfaces e seu papel no
ou regiões metropolitanas (ARGOLLO chamado “sistema cidade-campo”, elevam
FERRÃO, 2003a). a arquitetura rural a uma privilegiada
Ao se estudar arquitetura rural sob o condição de disciplina de integração entre
enfoque transdisciplinar e a visão de pro- o território e o complexo sistema científico,
cessos, há que se enfocar o planejamento do tecnológico e informacional de que se
espaço físico (especialmente o espaço pro- compõe o agribusiness de um país ou uma
dutivo) das propriedades agrícolas, e os região.
valores que se pode adicionar aos processos Nas principais regiões agrícolas do
de desenvolvimento rural sustentável de um Brasil, a intensa especialização dos pro-
País ou uma região. Há que se adotar cessos de produção agroindustrial vem
unidades de análise e/ou planejamento modificando a arquitetura rural. Muitas
distintas por suas características ecológicas, cidades onde tais unidades de produção se
econômicas, ou culturais. Por exemplo: situam, passaram a abrigar uma arqui-

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tetura complexa e específica, repleta de projetadas, condomínios e assentamen-


edifícios e instalações apropriados às tos rurais de diversa índole, etc.;
diversas atividades do chamado agri- • A arquiteturaagrícola:edifícios destinados
business, como armazéns e silos de grande à produção agrícola, tais como engenhos,
porte, terminais intermodais, etc. Já o casas de máquinas, terreiros de secagem,
espaço produtivo das fazendas nor- viveiros e casas de vegetação, instalações
malmente abrange edifícios destinados à e equipamentos de produção agro-
produção agroindustrial, projetados e industrial, laboratórios, e os diversos
construídos conforme as necessidades do tipos de edificações apropriadas às
processo a que se destinam. Nas regiões cadeias de produção animal, etc.;
agrícolas mais desenvolvidas, o altíssimo • A arquitetura agro-ecológica: arquitetura
nível científico e tecnológico da agricultura específica da lavoura, das pastagens, dos
exige uma infra-estrutura física resultante próprios seres vivos (animais e plantas)
de projetos específicos de engenharia e geneticamente selecionados ou mo-
arquitetura rural. dificados, dos bosques naturais e arti-
As pequenas propriedades dedicadas à ficiais, jardins, pomares, etc.;
agricultura familiar, por sua vez loca- • O patrimônio cultural rural: elementos
lizadas em regiões menos desenvolvidas arquitetônicos e agro-ecológicos compo-
ou ambientalmente protegidas, também nentes do fabuloso patrimônio cultural
constituem universo de valiosos estudos existente no meio rural, tais como
sobre arquitetura rural. Nessas regiões há antigos casarões e senzalas, colônias e
que se levar em conta a possibilidade do casario disperso, monumentos cons-
emprego de materiais alternativos e truídos com técnicas tradicionais da
processos simplificados, eficientes do arquitetura rural ou com materiais e
ponto de vista ecológico e econômico, de técnicas alternativas de construção; toda
baixo custo e fácil manutenção. a arquitetura vernacular que possa estar
presente no espaço rural, antigas capelas
2. ARQUITETURA RURAL: CARAC- rurais, antigos engenhos e casas de
TERIZAÇÃO E VALORIZAÇÃO DAS máquinas, o próprio maquinário desa-
PAISAGENS CULTURAIS tivado, antigos equipamentos de pro-
dução de energia (monjolo, rodas d’água,
Entendemos a arquitetura rural como etc.), estruturas desativadas (como
uma disciplina transdisciplinar, integradora pontes, diques e barragens), o espaço
dos campos da arquitetura e ciências físico destinado às manifestações cultu-
agrárias, abrangendo as correlações entre rais locais (praças, terreiros, largos,
todos os elementos arquitetônicos, estru- vilarejos, etc.), enfim, todo o ambiente
turais e ambientais referentes aos vários construído que conforma o imenso
segmentos da engenharia, co-existentes na patrimônio cultural rural;
paisagem rural em que estão inseridos: • A infraestrutura física: elementos da
• A habitação rural: sedes de propriedades engenharia rural, tais como os caminhos
rurais, casas de trabalhadores, conjuntos e estradas de terra ou calçadas, barragens
habitacionais rurais implantados em e sistemas de irrigação, pontes, poços,
bairros ecológicos situados nas franjas obras de arte da engenharia, obras
urbanas das regiões metropolitanas, em hidráulicas e áreas de represa, lagos, rios,
agrovilas ou ecovilas adequadamente córregos e riachos, fontes e nascentes,

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elementos dos sistemas de eletrificação ram sucesso na Europa e nos Estados


rural, sistemas de engenharia destinados Unidos (SABATÉ & SCHUSTER, 2001).
à otimização da produção agrícola, Pode-se dizer que o patrimônio industrial,
construções diversas, o imenso patri- agrícola, e natural, correlacionando locais
mônio da engenharia, etc.; cívicos e religiosos, eventos e festivais
tradicionais, sítios e memória da
O planejamento da produção e a gestão engenharia, além da memória dos produtos
de serviços integrados em unidades e processos típicos (agricultura, artesanato
regionais definidas por micro-bacias e indústrias locais), e a própria cultura
hidrográficas constituem o método de popular, caracterizam-se como elementos
abordagem mais adequado, pois abrange de valor intrínseco ao desenvolvimento
todas as possíveis correlações nos diversos sustentável de uma região deprimida ou
âmbitos da arquitetura rural: planos de estagnada econo-micamente.
produção e comercialização agrícola e de Nos últimos 20 anos, percebe-se em
serviços não agrícolas; manejo dos recursos várias regiões do interior do Brasil que as
naturais, principalmente os recursos áreas rurais não estão mais sendo utilizadas
hídricos e florestais; ordenação territorial, apenas para atividades agropecuárias ou
planejamento ambiental e agro-ecológico; extrativistas. Atividades econômicas
e políticas de desenvolvimento rural alternativas, de cunho cultural e ecológico,
sustentável, incorporando modelos de como o turismo e o lazer mostram-se cada
gestão local, educação, assistência técnica, vez mais atraentes para os proprietários
pesquisa e extensão baseados em conceitos rurais. O repovoamento do espaço rural
de sustentabilidade e eco-eficiência. apresenta-se como alternativa viável e
Do ponto de vista da arquitetura rural, a necessária frente aos problemas cada vez
permacultura e o conjunto de técnicas de mais complexos causados pelo intenso
construção e de produção sustentáveis processo de metropolização que ocorre nas
indistintamente utilizadas no campo (ad- regiões mais desenvolvidas do País.
vindas da cidade) ou na cidade (advindas Por outro lado, é grande o número de
do campo) contribuem para o desen- proprietários rurais e trabalhadores sem
volvimento de regiões marcadas pela terra que não têm acesso ao desen-
agricultura familiar, e assentamentos de volvimento científico e tecnológico do
trabalhadores sem terra, pois dependem setor agroindustrial brasileiro. A diver-
de menor aporte de capital. sidade é uma característica marcante do
O papel da arquitetura rural como País. É possível encontrarmos numa mesma
elemento de resgate e valorização da região, arquiteturas distintas voltadas a
memória e cultura locais é fundamental processos produtivos contex-tualizados
para um desenvolvimento rural sus- por lógicas distintas: desde o mais avançado
tentável, uma vez que se caracteriza como estágio de desenvolvimento científico e
base para o reconhecimento e análise da tecnológico até o mais primitivo contexto
paisagem cultural de uma determinada rural. Em ambos os casos, os valores
região. culturais estão presentes e podem ser
A valorização dos recursos locais facilmente reconhecidos, de maneira a
vinculados ao patrimônio cultural constitui- imprimir na paisagem marcas indeléveis
se em ponto de partida de inúmeros planos originais de cada região.
de desenvolvimento regional que obtive-

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3. ARQUITETURA RURAL SOB O incorpora, em intervalos de tempo cada vez


ENFOQUE TRANSDISCIPLINAR mais curtos, novos fatos à realidade através
da tecnologia.
A arquitetura rural brasileira possui Quando propomos o estudo sobre
dois aspectos marcantes: é complexa e arquitetura rural com base no pensamento
diversa, pois diversos são os aspectos complexo, reconhecendo seu caráter trans-
pertencentes ao mundo rural, entendidos disciplinar, temos em vista o fato de que a
a partir de conceitos advindos de fontes complexidade, longe de ser um conceito
distintas, sob a visão de processos e o apenas teórico, é uma característica do
enfoque sistêmico, e pertencentes aos mundo contemporâneo que torna-se ex-
campos da arquitetura e urbanismo, plícita toda vez que se colocam questões
geografia, história, economia, adminis- sobre relações intrincadas como as que se
tração, sociologia, antropologia, turismo, dão no âmbito do “sistema cidade-campo”.
artes e cultura popular, engenharia agrí- A complexidade, de acordo com Mariotti
cola, agronomia, zootecnia, medicina (2000), corresponde à multiplicidade e à
veterinária, engenharia civil, engenharia interação dos sistemas e fenômenos que
da produção, engenharia ambiental, etc., compõem o mundo natural, e só pode ser
além de outras fontes de conhecimento que compreendida por meio do pensamento
direta ou indiretamente compõem o complexo (sistema de pensamento aberto,
universo que abrange o ambiente rural. abrangente e flexível) que procura enxergar
As chamadas fontes de conhecimento as constantes mudanças da realidade sem
não-científico (por exemplo: lendas, mitos, negar as contradições, a aleatoriedade e as
costumes, know-how popular, artesanato, incertezas inerentes a qualquer contexto
etc.) adquirem neste caso valor e peso que se enfoca no mundo contemporâneo.
significativo pois advém da cultura local, e A transição da agricultura tradicional
constituem agentes dinâmicos que impri- para o chamado agribusiness baseia-se na
mem personalidade e distinção à região integração do setor agropecuário com os
enfocada. São os casos das diversas festas setores industriais e de serviços. O incre-
e eventos baseados nas tradições populares mento de tecnologia e o aperfeiçoamento
que atraem para determinados municípios dos processos nas fazendas, que trans-
recursos e investimentos por meio de fluxos formam a agricultura num ramo da in-
sazonais de turismo e empreendimentos dústria, vêm ocorrendo de maneira he-
sustentáveis relacionados com a cultura terogênea no Brasil, aprofundando as
local. diferenças regionais, principalmente no
Quando se admite o caráter transdis- que se refere à organização dos fatores da
ciplinar no estudo de algum fenômeno, há produção e à integração com os ramos mais
que se aceitar o conhecimento advindo de dinâmicos da economia (ARAUJO;
fóruns não acadêmicos. WEDEKIN & PINAZZA, 1990). O uso da
Ao tratar a questão da transdisci- enxada pode significar inovação tecnológica
plinaridade no âmbito acadêmico, D’Am- em determinadas regiões, enquanto outras
brosio (1997) deixou claro que a fragmen- participam do que há de mais moderno no
tação do conhecimento dificilmente agribusiness mundial.
confere a seus detentores a capacidade de Nas regiões mais desenvolvidas, a
reconhecer e enfrentar situações novas, crescente industrialização da agricultura
emergentes de um mundo cuja comple- aponta para uma nítida tendência de
xidade é crescente na medida em que eliminação do produto rural, ou, da base

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rural da agricultura (GOODMANN; SORJ produtiva desenvolvem-se, principal-


& WILKINSON, 1990). Ao descrever a nova mente, numa porção do espaço bem
dinâmica da agricultura brasileira, Graziano definida, e podem, por isso mesmo,
da Silva (1996) concorda com Goodmann caracterizar um sistema espacial, como
et al. (1990), afirmando que “os complexos uma fábrica, uma oficina, um escritório, ou
agroindustriais já estão se convertendo em uma fazenda.
complexos bioindustriais”, pois as indús- Ao trabalharmos, por exemplo, com as
trias de base biológica têm lugar garantido propriedades agrícolas das principais
na indústria alimentar do futuro, devendo regiões cafeeiras do estado de São Paulo,
ampliar o seu espaço na agricultura adotamos tal abordagem e as consideramos
(indústria de sementes e matrizes, vacinas, cada uma como um sistema espacial
defensivos e fertilizantes, etc.). específico, em conformidade com a lógica
A arquitetura rural vem co-evoluindo do período enfocado e com as respectivas
com base neste contexto desde meados do relações entre técnica e arquitetura no
século XX. Dentro da fazenda tornou-se âmbito da cadeia produtiva do café. Desse
nítida a tendência de especialização na modo, as variáveis envolvidas ultrapassam
atividade fim, assim, muitos sub-processos os limites de cada propriedade.
passaram a ser realizados por terceiros. Um sistema espacial pode ser esta-
Fora da fazenda estruturou-se um moderno belecido por uma “combinação deter-
parque industrial, fornecedor de bens de minada de modos específicos de produção,
capital e insumos que abastecem o campo. de circulação, de distribuição e de consumo
Por outro lado, nas regiões agrícolas de bens materiais”, formando um grupo de
mais caracterizadas pela presença da estruturas, que se definem por objetos que
agricultura familiar em pequenas pro- se interagem obedecendo a um conjunto de
priedades e por técnicas tradicionais de regras que regulam o sistema. Desse modo,
produção agrícola, a arquitetura rural carac- o conhecimento real de um espaço não se
teriza-se como agente de resgate e dá pelas “relações”, mas pelos “processos”
manutenção da memória e dos valores que nele se realizam. Ao se falar de
culturais, contribuindo para a conformação “processo”, remete-se à idéia de tempo
da paisagem e ordenação do território. (SANTOS, 1990).
Em ambos os casos pode-se dizer que a Tomamos a fazenda de café como
paisagem cultural de uma determinada unidade de produção agroindustrial da
região agrícola é marcada fortemente por cadeia produtiva do café, e a caracterizamos
sua arquitetura rural. a partir da compreensão da evolução dos
processos que sobre ela se realizaram, o que
4. ARQUITETURA RURAL A PARTIR faz dela um espaço produtivo, tornando-
DE UMA ABORDAGEM SISTÊMICA E se necessária a abordagem sistêmica, a qual
VISÃO DE PROCESSOS: O CASO DA fornece instrumentos para a análise de um
ARQUITETURA DO CAFÉ espaço como sistema de sistemas, coman-
dado por regras próprias ao seu modo de
Quando se adota uma abordagem produção dominante, e que se adapta ao
sistêmica e a visão de processos com o meio local (ARGOLLO FERRÃO, 1998).
objetivo de caracterizar a arquitetura rural Cada sistema ou subsistema é composto
de uma determinada região, há de se ter em por elementos que estruturam o espaço,
conta que as relações entre técnica e cuja ação é necessariamente combinada
arquitetura no âmbito de uma cadeia com a dos demais. Cada elemento possui

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valores intrínsecos ou sistêmicos. Os sis- processo segue uma seqüência linear bem
temas e suas estruturas co-evoluem con- marcada, iniciando-se com a preparação da
tinuamente, principalmente pela ação terra, passando pela semeadura, limpeza
exógena de elementos do seu domínio dos campos, até a colheita, e eventualmente
sobre os elementos internos ao sistema, a estocagem (SANTOS, 1990). Portanto, ao
mas há também uma co-evolução endógena se estudar arquitetura rural deve-se
induzida pela evolução de cada elemento considerar as relações entre a produção e o
do sistema (SANTOS, 1992). lugar onde ela se dá.
O espaço do ser humano resulta de sua Ao se caracterizar a arquitetura ruralcom
produção, a qual, por meio de técnicas e base num determinado processo produtivo,
instrumentos de trabalho, intermedia sua há que se explicitar o universo em que ele
relação com a natureza. Cada atividade de se insere, cujos elementos são ora deter-
um processo produtivo (produção, cir- minantes, ora resultantes de sua evolução.
culação, distribuição e consumo) tem seu O processo co-evolui de acordo com o
lugar no tempo e no espaço, mas somente contexto que inclui a lógica das correlações
a produção relaciona-se intimamente com o entre técnica e arquitetura no âmbito do
lugar onde se realiza, particularmente em sistema em foco.
se tratando de produção agrícola, cujo

Figura 1. Abordagem sistêmica e visão de processos para o estudo da arquitetura rural

A Figura 1 apresenta esquematicamen- se pretende caracterizar, tendo em vista o


te um método de abordagem sistêmica para fato de que sua conformação segue a lógica
o estudo e a caracterização da arquitetura dos processos que interagem nesse contexto.
ruralno âmbito de uma determinada cadeia Assim, três linhas de evolução (chamarei
produtiva. de “vetores de co-evolução”) devem guiar o
Inicialmente há que se compreender o estudioso da arquitetura rural no âmbito de
contexto em que se insere a arquitetura que um complexo produtivo.

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O primeiro vetor de co-evolução diz tuamente, promovendo e sofrendo mu-


respeito à complexidade inerente ao danças a partir da lógica que os processos
contexto que se quer enxergar, ou seja, há que os compõem possui. Tais mudanças
que se procurar compreender a evolução repercutem sobre um terceiro vetor de co-
dos processos culturais que afetam e são evolução: o que representa o processo de
afetados pelo complexo produtivo que se conformação da arquitetura da produção
está analisando. Fatos da história local, do complexo em foco, ou seja, processos
regional, nacional, e mesmo mundial, de- agro-industriais ou agro-ecológicos, em se
pendendo da abrangência que se pre-tende tratando do estudo da arquitetura rural.
dar à análise; características geo-gráficas, Assim, a co-evolução do contexto em
sócio-econômicas, ecológicas, enfim, há que se inserem os “vetores” que repre-
que se procurar desenhar os processos sentam os processos culturais e os pro-
culturais que compõem o contexto que se cessos produtivos determina a evolução do
pretende estudar. vetor que representa o processo de con-
O segundo vetor de co-evolução diz formação da arquitetura da produção do
respeito a um universo particular per- cluster tomado como objeto de estudo. A
tencente ao conjunto que exprime a rea- arquitetura rural é, pois, resultante da
lidade que se procura enxergar no primeiro integração dos processos culturais e pro-
vetor: processos científicos e tecnológicos, dutivos que co-evoluem no âmbito de um
que, por considerá-los necessariamente determinado complexo agroindustrial, ou
inte-grados, passarei a chamá-los de agro-ecológico.
“processo C&T”. É óbvio que a evolução da A abordagem sistêmica da arquitetura
ciência e da tecnologia poderia compor o rural a partir de complexos produtivos
estudo a ser empreendido ao se enfocar os permite a caracterização de tipologias
processos culturais, mas, por se tratarem arquitetônicas rurais por períodos e sub-
de processos intimamente ligados entre si regiões delimitados histórica e geogra-
(a ponto de serem aqui enxergados como ficamente. Por exemplo: a arquitetura da
um único processo integrado), e ambos produção rural cafeeira em São Paulo no
serem diretamente ligados ao processo de início do século XX é diferente da arqui-
evolução da arquitetura rural, é importante tetura que se pratica contemporanea-
que eles sejam caracterizados em separado, mente (início do século XXI), ou, da
para que sua co-evolução seja mais arquitetura cafeeira na porção paulista do
facilmente reconhecida. Vale do Paraíba em meados do século XIX,
Por outro lado, o processo C&T deter- ou ainda, na região de Ribeirão Preto na
mina o contexto dos processos produtivos virada do século XIX para o século XX.
no âmbito do complexo que se pretende Pode-se, da mesma forma, falar em
estudar. Assim, o segundo vetor de co- arquitetura da produção sucro-alcooleira,
evolução representa o conjunto dos pro- arquitetura da laranja, arquitetura da
cessos produtivos integrando o processo pecuária de leite, e assim por diante. O
C&T e demais referências fundamentais estudo sobre arquitetura rural deve ser
para a compreensão do universo da pro- inexoravelmente contextualizado.
dução agroindustrial ou agro-ecológica. A mesma abordagem pode ser adotada
Ambos os vetores: o que representa a quando o foco sobre a arquitetura da
evolução dos processos culturais e o que produção deixar de ser agroindustrial ou
representa a evolução dos processos pro- agro-ecológico, e passar a pertencer a
dutivos co-evoluem afetando-se mu- qualquer outro ramo da indústria ou

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mesmo do setor de serviços. Desse modo, bem definida, compatível com a evolução
pode-se propor esta metodologia para o da infra-estrutura de apoio à economia
estudo da arquitetura da produção de cafeeira;
máquinas e implementos agrícolas, por • no nível da propriedade, a arquitetura das
exemplo, ou para a arquitetura de em- fazendas de café, em que os edifícios,
preendimentos de turismo no espaço rural, caminhos, parques, jardins, pomares,
e assim por diante. plantações e criações foram concebidos
A arquitetura da produção rural de acordo com padrões arquitetônicos
cafeeira no estado de São Paulo foi carac- específicos e compatíveis com o modo
terizada de acordo com esta metodologia. de produzir em cada sub-período do
Definiu-se o complexo produtivo da ciclo cafeeiro;
fazenda cafeeira típica como sendo o con- • no nível do edifício e do maquinário, a
junto formado por terreiro, tulha e casa das arquitetura do núcleo industrial das
máquinas (o núcleo industrial da fazenda), fazendas, dada pela composição do
mais o cafezal. Portanto, a arquitetura do conjunto “terreiro, tulha, e casa das
complexo produtivo da fazenda cafeeira máquinas”, em que o layout interno e
abrange a arquitetura do núcleo industrial externo dos edifícios era planejado para
e a arquitetura do cafezal (ARGOLLO otimizar as operações de secagem e
FERRÃO, 1998). beneficiamento do grão. Valoriza-se o
A correlação entre arquitetura e patrimônio cultural da engenharia e da
tecnologia empregadas num complexo arquitetura manifesto em cada edifício
agroindustrial torna-se nítida ao se enfocar e em cada maquinário instalado no
a co-evolução do complexo produtivo do núcleo industrial da fazenda;
café tendo em vista os aspectos arqui- • e, finalmente, no nível agro-ecológico, a
tetônicos dos centros urbanos das regiões arquitetura do cafezal, em que o plane-
por onde ele passou; a logística de abertura jamento da instalação e do manejo da
e formação das fazendas; as formas e plantação é feito de maneira a protegê-
funcionalidade de suas benfeitorias; e a la de fenômenos climáticos perniciosos,
maneira pela qual se desenhou e montou o facilitar os seus tratos culturais, e a racio-
corpo ideal do cafeeiro (ao que os gene- nalizar a colheita, preparo e transporte
ticistas chamam de “arquitetura da planta”). interno do produto. Ainda no nível agro-
Assim, a arquitetura do café, composta ecológico, há também a própria arqui-
por remanescentes físicos e culturais em tetura do cafeeiro, representada pelo
todo o estado de São Paulo, permite a trabalho de melhoramento genético, que
condução de estudos objetivos sobre vários se preocupa em desenhar e consub-
aspectos das relações entre técnica e arqui- stanciar uma planta com formato,
tetura. Dependendo de como se conduz tamanho, resistência de ramos e folhas,
uma pesquisa nesse campo, pode-se iden- inserção de flores e frutos, etc., capaz de
tificar vários níveis daquilo que deno- proporcionar alta produtividade, meca-
minamos, genericamente, de arquitetura do nização das principais práticas agrí-
café (ARGOLLO FERRÃO, 2004), quais colas, conforto para os trabalhadores
sejam: que a manejam, resistência às pragas e
• no nível regional, a arquitetura das regiões doenças, etc.
produtoras de café, estabelecida conforme
uma lógica de ocupação dos espaços A Figura 2 apresenta esquematicamente
geográficos e de planejamento urbano os níveis de abordagem para o estudo sobre

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arquitetura rural, a partir do que propusemos edifício pode ser considerado o objeto de
para os estudos sobre a arquitetura do café. estudo, assim como cada máquina, ou
Pode-se considerar 4 grandes níveis de ainda, o conjunto de máquinas abrigadas
abordagem: o nível regional, composto em cada edifício; e finalmente, o nível agro-
pela tipologia arquitetônica do conjunto de ecológico, onde se estudaria a arquitetura
unidades produtivas de uma dada região; genética das plantas que compõem a
o nível da fazenda ou da unidade lavoura ou as lavouras enfocadas nas
produtiva, composto pela arquitetura do unidades produtivas, como visto no caso
núcleo industrial mais a arquitetura da(s) da arquitetura do café com o desenho do
lavoura(s); o nível do edifício, onde cada cafeeiro e do cafezal.

Figura 2. Esquema de representaÇão dos níveis de abordagem dos estudos em arquitetura rural

Caracterizou-se a arquitetura rural cafe- ARQUITETURA RURAL NO ÂMBITO


eira a partir de cada elemento do seu DAS PAISAGENS CULTURAIS BRA-
complexo produtivo, primeiro tomado SILEIRAS
isoladamente e depois a partir de uma visão
integradora, incluindo todo o conjunto A existência no Brasil, de um excelente
arquitetônico da propriedade: a arquitetura sistema de pesquisa e extensão rural foi
dos terreiros, tulhas e casas de máquinas; fundamental para o espetacular desenvol-
os viveiros e casas de vegetação; a própria vimento da agroindústria do País, ocorrido
arquitetura do cafezal, influenciada pela ao longo do século XX. As unidades de
evolução técnica do maquinário agrícola e produção agrícola, como espaços produ-
também pelas condições locais sócio- tivos inseridos no contexto de um deter-
econômicas e ecológicas; e, finalmente, os minado complexo agroindustrial, em geral
edifícios e instalações destinados a abrigar pertencem a uma cadeia específica. Até
atividades complementares e suplemen- recentemente não se concebia outra alter-
tares da fazenda (Argollo Ferrão, 2004). nativa para os proprietários rurais que não
fosse a utilização de suas terras como
5.MULTIFUNCIONALIDADE E MUL- unidades de produção agrícola (ou
TICULTURALIDADE: O ESPAÇO DA agroindustrial para aqueles que conse-

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guiam agregar valor aos seus produtos). de do mercado imobiliário.


No entanto, desde o final da década de 1980, Há portanto, um longo caminho a
e mais intensamente a partir do início da percorrer para chegarmos, no Brasil, à
década de 1990, o meio rural começou a ser condição holandesa descrita por Vlassen-
visto como cenário de negócios voltados rood (2004). Segundo a autora, ao longo do
também para o lazer e o entretenimento. último século, toda a paisagem natural na
No Brasil é crescente o interesse pelo Holanda foi transformada em paisagem
turismo rural. Diversas propriedades rurais cultural. O território holandês está comple-
e municípios inteiros, dispersos pelas tamente urbanizado. O contraste entre
várias regiões do Brasil vêm explorando de cidade e campo leva à idéia de que ambos
maneira consciente e profissional este mer- não se encontram em lados opostos, mas do
cado que tende a se expandir. Ainda há mesmo lado. Em cada caso as transfor-
muito que fazer no sentido de se valorizar mações convergem para a integração de
o maravilhoso e extremamente rico conjun- papéis, respondendo à questão da possível
to formado pelas diversas e heterogêneas dicotomia entre expansão urbana e desen-
paisagens culturais no Brasil. De fato, trata- volvimento rural, preservando suas carac-
se de um enfoque relativamente novo, e terísticas culturais e de paisagem.
mesmo entre acadêmicos e profissionais Nos Estados Unidos, a preocupação
dos ramos ligados à cultura, arquitetura e com um possível processo dicotômico
empreendimentos civis, há que se alinhar entre expansão urbana e desenvolvimento
conceitos, construir uma linguagem, esta- rural se nota em algumas regiões desde a
belecer procedimentos de abordagem para década de 1950. Segundo Kostof (1989), os
estudos, e consolidar um cabedal transdis- economistas rurais foram os pioneiros no
ciplinar de conhecimentos afins. estudo sobre as dinâmicas relações entre
A condução de estudos que permitam a cidade e campo a partir da compreensão da
descrição das paisagens culturais de re- intensa mistura de usos agrícolas e urbanos
giões e sub-regiões, conjuntos de muni- do solo. Assim, caracterizou-se a chamada
cípios ou mesmo a de um único município, região “rurbana” como uma área heterogê-
contribui para a consolidação deste tema nea no que se refere ao uso do solo; que se
dentro do contexto acadêmico, e conse- apresenta dispersa e com baixa densidade
qüentemente, no âmbito da própria socie- de construções, contrastando com a paisa-
dade brasileira, incluindo os setores públi- gem estritamente rural ou urbana.
cos e privados em suas diversas escalas e O território brasileiro é muito grande, e
níveis de atuação. não se pretende comparar o seu contexto
Nas regiões mais desenvolvidas do com o de regiões desenvolvidas como a
Brasil as intensas transformações que Holanda, ou o norte da Itália. Por outro
sofrem as paisagens rurais e urbanas lado, não se pretende sugerir que a
normalmente carecem de planejamento. dinâmica da relação entre cidade e campo
Muito mais fortes são as pressões sócio- nas regiões mais desenvolvidas do Brasil
econômicas advindas de uma imensa possa ser comparada com a dinâmica norte
quan-tidade de trabalhadores sem terra e americana. Todavia é possível destacarem-
de empresários rurais descapitalizados. se aspectos semelhantes tanto em relação
Este contexto conduz a uma lógica de aos casos europeus, como em relação aos
expansão urbana que considera o espaço casos norte americanos. Por isso mesmo, é
rural apenas como reserva para a voracida- sempre importante a condução de estudos

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que contribuam para a construção em do nas condições culturais locais, como por
mosaico do mapa de paisagens culturais exemplo, o ciclo cafeeiro (ARGOLLO
brasileiras. FERRÃO, 2003b). É possível descrever a
A crescente incorporação dos sistemas paisagem cultural e conseqüentemente o
de engenharia sobre o meio natural, e a potencial turístico baseado nos valores
evolução dos sistemas de comunicação, culturais locais de cada município brasileiro.
com a conseqüente conformação do Há no Brasil estudos de diversos autores
chamado “meio técnico-científico-infor- para quase todas as regiões do País.
macional”, proposto por Milton Santos O imenso patrimônio cultural rural,
(1996), impedem que se estabeleça a repleto de fazendas centenárias, antigas
dissociação entre cidade e campo sem as estruturas de engenharia, ícones da história
necessárias reflexões. econômica e da história da técnica, além de
Toda atividade econômica contempo- promover o turismo rural, o turismo
rânea demanda ciência e tecnologia, cultural e o turismo ecológico, alavanca o
podendo ser indistintamente aplicada ao chamado turismo de negócios, trazendo
campo (com conhecimentos advindos da para cidades do interior conven-ções,
cidade), ou à cidade (com conhecimentos congressos, encontros profissionais, even-
advindos do campo), modificando a tos acadêmicos de diversa índole, além das
arquitetura dos sistemas espaciais “campo” chamadas excursões de demons-tração
e “cidade”, contribuindo tanto para a para produtores rurais. As festas regionais
modelagem de um novo perfil rural como (da uva, do figo, das flores, etc., ver Tabela
para a pauta das discussões sobre os rumos 1, apenas para citar algumas) são
do desenvolvimento urbano sustentável. tradicionais em todo o Brasil, muitas há
Nesse sentido, o enfoque sistêmico e a mais de 50 anos. As festas de peão, que se
visão de processos sobre a arquitetura rural transformaram num negócio milionário a
levam a trabalhos que permitem a descri- partir da incorporação do estilo country
ção do potencial turístico baseado nas (importado dos Estados Unidos), compõem
paisagens culturais de regiões inteiras, sub- este cenário de irrefutável potencial
regiões, ou municípios que tenham sofrido turístico baseado nas paisagens culturais
forte influência de algum ciclo econômico de determinadas regiões brasileiras
agro-industrial-comercial contextualiza- (ARGOLLO FERRÃO, 2003b).

Tabela 1. Algumas das principais festas típicas relacionadas a culturas locais de caráter rural no
estado de São Paulo (Brasil).

O idioma inglês possui uma expressão tradição cultural e o local (município ou


com a qual se reconhece o significado das região) onde elas ocorrem: event places.
relações entre determinadas festas de Cada vez mais a capacidade de resgate e

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valorização da memória, bem como de urbana, e com muitas construções clandes-


transmissão da informação, que esses locais tinas. O problema se agrava na medida em
com eventos associados possui tem chamado que se aumenta a concentração de pessoas.
a atenção de pesquisadores profissionais e Alguns autores, preocupados com a
acadêmicos interessados em planejamento delimitação do espaço urbano e do espaço
regional (SABATÉ; FRENCHMAN & rural, propõem como referência as ativi-
SCHUSTER, 2004). Estudiosos ligados às dades dos moradores de um determinado
áreas de socio-logia, antropologia e aglomerado em foco. Nesse sentido,
etnografia passam a conviver com o Graziano da Silva (2002) salienta a
interesse crescente de colegas de outras distinção entre população rural (residente
áreas, como turismo, engenharia de empre- na zona rural) e população agrícola
endimentos, arqui-tetura e urbanismo. (pessoas que realmente se ocupam de
As possibilidades de novos negócios no atividades agrícolas). O autor considera
campo que o estudo sobre arquitetura rural inadequado relacionar as atividades
induz a visualizar, leva à necessidade de exercidas pela população (agrícola ou não
caracterização desses negócios sob o enfo- agrícola) para caracterizar o espaço onde
que sistêmico. A multifuncionalidade do ela reside (rural ou urbano). Olga Tulik
campo tem sido objeto de interesse de (2003) procura discutir esta questão para
autores de diversas áreas do conhecimento. introduzir especialistas de outras áreas,
De fato o campo parece estar sendo iniciantes e leigos interessados no estudo
reconhecido como cenário de mudanças sobre Turismo Rural. Ambos os autores
estruturais importantes, o que reforça a reconhecem como sendo uma das tendên-
importância do papel da arquitetura rural cias mais importantes da década de 1990 o
como uma área de conhecimento trans- crescimento das atividades não agrícolas
disciplinar fundamental para a valorização nas áreas ditas rurais, verificada em países
do patrimônio cultural rural, não só no que desenvolvidos e na América Latina de
tange à restauração de edificações de valor modo geral, particularmente no Brasil
histórico (como antigos casarões, senzalas, (GRAZIANO DA SILVA, 2002; TULIK,
terreiros, tulhas e casas de máquinas, 2003).
engenhos, antigas pontes e estruturas de Em linhas gerais, por suas características
engenharia, etc.), mas também no que se intrínsecas, o campo de estudos sobre
refere à implantação (ou adequação) de arquitetura rural é essencialmente transdis-
empreendimentos nos novos nichos de ciplinar, uma vez que em seu escopo apre-
negócio que vão surgindo no meio rural a sentam-se questões complexas como:
partir do reconhecimento da complexi- • as relações do sistema cidade-campo,
dade de um contexto que nos dias de hoje • as definições e delimitações dos espaços
encontra-se em permanente estado de rural e urbano,
mudança. • o reconhecimento da tendência de
No Brasil, as margens “rurbanas” consolidação dos aspectos de multifun-
podem ser reconhecidas nas regiões mais cionalidade das propriedades rurais,
desenvolvidas como áreas que passam por • a necessidade de se projetar e construir
um intenso processo de metropolização, para atividades específicas de uma
onde a zona rural pode rapidamente se agricultura moderna,
transformar num bairro populoso, muitas • a necessidade de se projetar e construir
vezes implantado sem infra-estrutura para pequenas e médias propriedades

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rurais administradas por uma família e de Doutorado.


D’AMBROSIO, U. (1997): Transdisciplinaridade.
seus agregados.
São Paulo: Palas Athena.
FREIRE, W. J.; BERALDO, A. L. (organizadores).
Finalmente, cabe deixar explícito que o (2003):Materiais alterna-tivos e tecnologias
papel da arquitetura rural torna-se cada vez apropriadas. Campinas: Editora da Unicamp.
mais importante na medida em que cresce GOODMANN, D.; SORJ, B.; WILKINSON, J.
o debate sobre a delimitação do espaço (1990):Da lavoura às biotecnologias: agricultura
rural e do espaço urbano, e também, na e indústria no sistema internacional. Rio de
medida em que se percebe que não se pode Janeiro: Cam-pus.
GRAZIANO DA SILVA, J. (2002):O novo rural
continuar esse processo desordenado de
brasi-leiro. Campinas, Unicamp-IE.
ocupação do território. Da integração entre GRAZIANO da SILVA, J. (1996): A nova dinâmica
o meio natural e os sistemas geradores de da agricultura brasileira. Campinas: Unicamp,
ciência e informação de que se compõem as Instituto de Economia.
nações modernas, configura-se o ambiente KOSTOF, S. (1989): Junctions of town and country.
construído, rural e urbano, ou, o chamado In: Dwellings, settlements and tradition:
“meio técnico-científico-informacional”, o que cross-cultural perspectives. Berkley, Univer-
permite dizer que sua arquitetura encontra- sity Press of America, IASTE - University of
California, p.107-20.
se intimamente relacionada com o seu
MARIOTTI, H. (2000): As paixões do ego: complex-
sistema tecnológico, trazendo à tona a idade, política e solidariedade. São Paulo: Palas
importância que se deve dar ao binômio Athena.
cidade-campo no âmbito dos processos que SABATÉ BEL, J.; SCHUSTER, J. M. (Ed.) (2001):
se desenrolam num dado território. Projectant l’eix del Llobregat, Paisatge cultural i
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dinâmica de integração entre Engenharia e
Arquitetura. São Paulo: FAUUSP, 296p. Tese

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