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Espessura da Vida

Mauro Santayana (Jornal do Brasil, domingo, 16/10/2005)

Haveria um limite ao desenvolvimento tecnológico? Provavelmente, sim; provavelmente,


não. Desde que os homens começaram a medir as coisas, deles têm sido a ilusão de que
são delas senhores absolutos. Alguns pensadores associam a lógica à presunção de
domínio, e medir é ato lógico de posse. Quem conhece alguma coisa se sente dela
senhor. A ciência, no fundo, é a medição da matéria e dos fenômenos, e a tecnologia, a
combinação de semelhanças e diferenças, para a obtenção de efeitos determinados.

Estamos agora assustados com as alterações na biosfera. Raramente paramos para


refletir que a vida, tal como a conhecemos, só existe em tênue película que cobre a Terra.
Para entender e administrar a vida, nessa película tão fina, existe outra película,
igualmente débil: a da inteligência, que habita as capas cerebrais. Nos últimos três
séculos, houve veloz intervenção da inteligência na biosfera. Fenômenos como a força
motriz do vapor (descoberta de Aristarco de Samos) e o eletromagnetismo (elétron é
âmbar em grego, e o âmbar, excitado pelo calor da fricção, tem qualidades elétricas) eram
conhecidos desde a Antigüidade, mas só a descoberta de instrumentos mais precisos de
medição, e do "método" científico, com Descartes e seus contemporâneos, abriu caminho
para a desabalada carreira rumo à insensatez de nosso tempo.

Há apenas 146 anos o ferroviário Edwin Drake perfurou o primeiro poço de petróleo no
território americano, exacerbando a velocidade da revolução industrial, iniciada no século
anterior. O uso do petróleo nos motores a explosão possibilitou o deslocamento rápido e
sempre mais pesado de pessoas e mercadorias. Sem o refino do petróleo em escala
industrial, a partir do poço de Tutsville - com apenas 21 metros de profundidade -, Santos
Dumont não teria voado, há 99 anos, com um aparelho mais pesado do que o ar, e, em
conseqüência indesejada pelo brasileiro, o Enola Gay, 40 anos depois, despejou sobre
Hiroxima e Nagasaki seus ovos apocalípticos.

Drake foi inventivo, mas não era capitalista. Pensava continuar explorando as
propriedades medicinais do petróleo, como era usual na época. Não patenteou o método
de perfuração e extração. Mais esperto foi John D. Rockefeller, que, três anos depois, se
associou a Samuel Andrews, inventor de uma forma barata de refinar o óleo, para criar a
Standard Oil. Ninguém acreditava nas escavações de Drake, antes de achar o petróleo, e
seus contemporâneos as ridicularizavam, como sendo "a doidice de Drake". Ele morreu
pobre, e só não passou fome porque os legisladores da Pensilvânia lhe concederam uma
pensão vitalícia.

O que são 146 anos na História? Praticamente nada. Nesse século e meio os homens
consumiram mais do que em todo o passado. Não têm sido consumidores todos os
homens do mundo. Um habitante do Hemisfério Norte, de modo geral, consome, em
média, dezenas de vezes mais do que o habitante do Sul. Há 33 anos, em Estocolmo,
Indira Gandhi afirmava que um americano comum gastava mais energia do que 140
indianos.

Sempre que se fala em depredação da natureza, há os que culpam a fertilidade dos


pobres e, com piedosa hipocrisia, aconselham a castração dos miseráveis. De vez em
quando, como ocorreu recentemente nos Estados Unidos, e na Alemanha há mais tempo,
recomendam o aborto dos "incapazes". Nos países ricos e que começam a ter declínio
demográfico, estimula-se o nascimento, até mesmo com subsídios. Enfim: os ricos
querem multiplicar-se e excluir os pobres do usufruto da natureza. É outro aleijão da
lógica: sendo a riqueza um conceito relativo, só haverá ricos se houver pobres. Para
reduzir o número de pobres e de ricos, há um meio: diminuir as desigualdades e dissolvê-
las em uma classe média que atinja quase todo o universo social.

Os Estados Unidos, que começaram essa corrida alucinada com as aventuras de Drake e
Rockefeller, são os maiores destruidores da natureza, mas não aceitam reduzir seu
consumo de energia, a fim de conter, entre outros, o "efeito estufa" e as emissões de
gases que destroem o ozônio da atmosfera. Ainda agora se informa que imenso buraco
na camada de ozônio paira sobre o Rio Grande do Sul. Continuam sem aderir ao
Protocolo de Kyoto e sem adotar medidas internas para amenizar o futuro do homem.

Os americanos, com sua excitação pelo poder que disputam com a natureza, fazem
lembrar os lobos do Ártico, que algumas tribos esquimós caçam de forma astuta. Os
caçadores quebram lascas de gelo, de quinas agudas, e as cobrem com gordura de foca.
Os lobos, ao lamber a gordura, cortam a língua e sentem o gosto do próprio sangue, que
os excita sempre mais. Assim, morrem recheados do próprio sangue - e os caçadores
colhem as peças sem perigo. A natureza está destinada a ganhar a partida.

É provável que os acidentes climáticos dos últimos meses - maremotos, furacões,


terremotos, cheias e secas surpreendentes, como a da Amazônia - sejam espontâneos e
não tenham sido causados pela ação humana - mas disso não estamos certos. Muitos
acreditam que o deslocamento do eixo da Terra, provocado pela fissura tectônica de
dezembro do ano passado, no Oceano Índico, venha causando os transtornos
sucessivos. Já se fala em ciclones que atravessam o Atlântico e ameaçam a Península
Ibérica. É provável que esse ligeiro estremecimento haja causado os transtornos atuais, o
que acentua a fragilidade da biosfera, e recomenda tratá-la ainda com mais cuidado. A
grande inteligência do homem, capaz de construir os fantásticos engenhos modernos, e
de penetrar na intimidade dos átomos e dos genes, é convocada a encontrar os meios
para manter a vida no planeta. Mas a inteligência que serve ao capitalismo não é a
mesma que serve ao humanismo. A inteligência do humanismo cuida da política, mas os
políticos, a cada dia mais, desprezam o conselho dos humanistas, e os substituem pela
habilidade dos marqueteiros. E os marqueteiros, como vanguarda do neoliberalismo,
geralmente não se preocupam com essas coisas não rentáveis. Ao contrário. Muitos deles
têm servido, como o Duda Mendonça e o Marcos Valério, para distribuir a ração do
suborno aos políticos, a fim de que os políticos cada vez mais sirvam ao modelo imposto
pelo capital financeiro mundial.

Estamos chegando a uma encruzilhada. É consenso entre os grandes biólogos que a


natureza não tem compromisso com o homem. Seu compromisso é com a vida. Se o
homem ameaça a vida, a natureza cuidará de dispensá-lo, para que se dê continuidade a
essa fantástica aventura da matéria, iniciada por desígnio de Deus ou pelo imperscrutável
acaso. Assim, talvez outro ramo dos macacos venha a assumir o nosso lugar, com o
sentido de solidariedade para com a espécie que perdemos, e reconstrua o mundo.

Talvez, não.

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