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NO PRINCÍPIO ERA O RITMO: AS RAÍZES XAMÂNICAS DA

NARRATIVA. In: RIEDEL, Dirce. Narrativa, ficção e linguagem.


Rio de Janeiro: Imago, 1998.1

Fernando Alves da SILVA JÚNIOR (PPGLS-UFPA)


macuninfeta@gmail.com

Discorrer acerca da origem da História e da Ficção por meio de um


discurso que transporta o leitor para a “raiz xamânica” da narrativa
parece, de inicio, ser o objetivo primordial de Nicolau Sevcenko. O que
nos coloca dúvidas outras quando nos deparamos com uma abordagem
que beira a origem da fala e a organização dos grupos humanos a partir da
captação e consumo dos alimentos. Revelando a relação de poder que é o
ponto de encontro entre a liderança e o discurso que a fundamenta, sendo
o ritmo o poder conferido àquele que tem o dom de traduzir, o xamã.
A busca dessa história mais profunda do florescimento da narrativa,
evidencia o começo de uma relação entre os homens que se pauta em
conflitos de interesses voltados para o empoderamento que a posse da
fala confere ao líder e, sobretudo, para o acúmulo de poder por meio
desse instrumento que, além de mantém a liga social entre os indivíduos,
reafirma o lugar de prestígio que o elaborador dessa narrativa ocupa. Por
isso, Sevcenko se ocupará dos seguintes aspectos, que avalia ser mais

1 Resenha crítica apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Linguagens e


Saberes na Amazônia da Universidade Federal do Pará (PPGLS-UFPA), como
resultado das discussões da disciplina “Narrativa e Imaginário Amazônico”,
ministrada pela Profa. Dra. Maria do Perpétuo Socorro Galvão Simões.
importantes em termos de temporalidade que a evolução dos gêneros
narrativos: o lugar de onde se enuncia; o enunciador dessa narrativa e os
símbolos inerentes ao local e situação que a fala é emitida (SEVCENKO,
1998, p. 121).
A primeira exposição de Sevcenko, acerca do primeiro estágio da
narrativa, remete o leitor à origem da fala. Na aurora da humanidade, a
fragilidade do homem, entre outros fatores, foi ocasionada pela mudança
da anatomia do crânio e da laringe que não mais permitiu aos hominídeos
respirarem enquanto se alimentavam. Forçosamente, eles teriam que
deslocar o alimento do local da coleta a outro provido de mais segurança.
Ao estocarem esse suprimento tão necessário ao sustento do grupo, o
benefício foi a metodização das refeições por meio das horas, dos dias,
dos meses e anos. Nesses encontros, para as refeições comunais, a
sociabilização teve seu início e, com ela, a fala. A comunicação imediata
resultou do ritmo e da metodização dos momentos de agrupamento em
torno da alimentação (SEVCENKO, 1998, p. 121-122).
A obsessão pela simetria desse antepassado humano (homo erectus) não
se deu somente pelo ordenamento dos momentos das refeições, os
utensílios que ele produzia revelam certo grau de harmonia que deixa
evidente que sua relação com o mundo perpassava pelo ritmo.
O encontro desse homem primitivo com outra espécie, o Neanderthal
(homo sapiens), somado ao período glacial, os forçou a reorganizarem seus
modos de vida, sofisticando as relações sociais. Desse aprimoramento
apareceram as primeiras práticas cerimoniais, os cultos mortuários, a
crença no pós-morte e a simbolização por meio da arte abstrata, o que
seriam impossíveis caso a linguagem articulada não fosse, nesse período,
muito aprimorada. Combinou-se a linguagem ao mito e à arte.
No paleolítico superior, o encontro com o Cro-Magnon imbricou os
grupos humanos em uma complexidade de relações sociais que o
surgimento dos códigos pictóricos nas cavernas, que abrigavam esses
indivíduos, revelam um tipo de sujeito que não estava preocupado com as
intempéries ambientais e, por isso, procurou desenvolver outra forma de
manter a liga social do grupo, o ritual. A pintura mais significativa, para
Sevcenko, dessa arte das paredes rochosas, é a encontrada na caverna de
Trois Frères (França) a qual “retrata a imagem de um xamã dançando,
vestido com roupas cerimoniais, pintado pelas próprias mãos de um
xamã” (Ibid., p. 123).
A imagem inscrita em um espaço de difícil acesso, além de ter sido
confeccionada pelo próprio feiticeiro, seu lugar evidencia a preocupação
do artista com o impacto que a imagem causaria no espectador. Sevcenko
descreve que ela se encontra em uma parede rochosa no interior da
caverna que só é possível contempla-la após um longo percurso
conhecido somente pelo feiticeiro. A escuridão e estreiteza do caminho,
que leva à imagem, destoavam dos demais espaços experimentados, e a
condução se dava de uma pessoa por vez. O ambiente soturno, a ausência
de luz e o surgimento súbito da imagem do xamã sobre o visitante,
criavam um ambiente que o transportava para outra atmosfera
nitidamente distinta daquela vivida cotidianamente por ele. A experiência,
descrita pelo autor, é dramática uma vez que nosso corpo não está
acostumado às mudanças bruscas do ambiente (Ibid., p. 124).
Lógico que o autor reconhece a intencionalidade do feiticeiro em criar
tal figura para obter um fim específico.
A imagem é recortada, a visão do todo é comprometida, a busca pela
totalidade do corpo do feiticeiro em metamorfose faz com que o
observador se esgueire “através de um pequeno túnel natural e, em
seguida, subir, por uma passagem lateral, uma parede com inclinação
acentuada e escorregadia, semi-oculta”. O resultado é imediato quando ele
se depara com a imagem, o terror procurado pelo artista encontra pouso
no semblante desse primitivo que se deixa levar pelo feiticeiro. Sevcenko
esclarece que a figura, como o próprio xamã que a pintou, são a marca de
“um limiar, uma transição, uma passagem estreita como a garganta da
caverna, que liga o profano com o sagrado, o cotidiano com o
sobrenatural, o presente com o passado e o futuro, a vida com a morte”.
É um trânsito que se realiza, que coloca em evidência, não o trajeto,
mas o condutor, sem ele a viagem não seria possível, sem a firmeza dos
passos do xamã, o deslocamento do sujeito comum para outra realidade
que não a cotidiana, não seria viável. Esse deslocamento permanecerá
indelével na sua memória e o feiticeiro se empodera com isso.
O autor compara a técnica desse xamã com aquelas desenvolvidas
pelas religiões órficas e católicas, aprofundar-se na terra e ser
surpreendido com imagens que se revelam de súbito nas congregações
órficas, parece se assemelhar às catedrais cujo o objetivo do efeito
luminoso é confundir o terreno com o celeste: o entre-lugar é o lugar do
xamã, ele se revela como o elo entre dois mundos, sem ele não há
comunicação. É por isso que “cabe ao xamã imprimir nos homens as
feições indeléveis da identidade social da cultura a que pertencem”. Ele é
o condutor, o tradutor, o autorizado em proferir um discurso que é canto
e rito. O encontro com os deuses se dá pelo intermédio e o líder religioso
é o único habilitado em conduzir os iniciados, tal qual Caronte, à travessia
irreproduzível que será uma experiência única e indelével.
O xamã é a chave para se compreender o mito como uma narrativa
prenhe de rito e cerimônia, pois nem todo xamã é um pintor, mas o canto,
a dança e o contar histórias parecem ser o lugar comum desse tipo
religioso. É de suas histórias que o mito desperta como narrativa
exemplar, “sendo dela que derivam tanto a música quanto a coreografia
que a acompanha” (SEVCENKO, 1998, p. 126). Para Sevcenko, o xamã é
um “energóumenos”, um ser que permanece no entremeio, aquele
coberto de restrições e capaz de receber os deuses e comunicar os demais
com essas entidades celestes. Ele é o veículo, o meio nunca o fim, “é um
servo arrastado ao limiar da insanidade por uma comunidade que lhe
vampiriza as alucinações. Ele se vinga retirando desse seu monopólio da
loucura todo o poder que ele lhe conceda” (Ibid., p. 127).
Quando ele entoa seu canto e administra o ritual, a comunicação com
os deuses e ancestrais antecede todo o processo. A palavra dita ganha
proporção e significado outro quando entoada, quando ritmada. O ritmo
ordena o grau de convencimento do discurso porque a função da
repetição “é assegurar um reconhecimento”. Isso se explica
(SEVCENKO, 1998, p. 128) pelo ritmo empregado pelos batedores de
tambor nos rituais de possessão. A cadência, administrada por eles,
acompanha um contínuo que se desloca do mais baixo para o mais alto,
chegando à batida “7 por 9”, momento em que o “energóumeno” entra
em possessão. Quando esse transe se completa, as palavras proferidas
pelo xamã jamais serão esquecidas. É o mesmo procedimento utilizado na
caça para desnortear os animais, pois altera o ritmo natural que governa
seus passos e, na guerra, quando incita os soldados à batalha. São
experiências que não podem ser esquecidas por realizar um movimento
brusco na cadência do ritmo diário que se leva. Adentrar na caverna e ser
surpreendido com as feições do xamã impresso na rocha é experimentar o
lado oposto da humanidade, é se colocar no limiar da condição humana, é
ser a raposa perseguida ou o soldado a combater.
O ritmo regido pelo xamã se espraia para a concepção quando ele
“estimula os ciclos dessa sexualidade e estabelece os ritmos dela” (Ibid.,
1998, p. 130). Seu propósito, o crescimento em harmonia e continuidade
do grupo, daí a tradição, permeada pelo mito, pela arte, pela memória e
pelo improviso, ser seu material e instrumento.
Sevcenko coloca as três derivações desse líder religioso: o profeta, o
vidente e o poeta. Essas figuras são encontradas nas sociedades
sedentárias e amparadas pelas classes marginais, seu distanciamento do
centro de poder social, longe das classes dominantes, é resultado do
monopólio dessa elite que cerceia as manifestações que envolvem
possessão e trazes coletivos para manter, sob custódia, a herança cultural
de seu povo. Com o xamanismo esvaziado, a figura do sacerdote impera.
Exemplo de controle do Estado. Instituindo um novo líder religioso,
aquelas manifestações religiosas passarão a ser suspeitas e,
consequentemente, reprimidas. O autor coloca como exemplo, no Brasil,
as religiões que envolvem possessão, ou quase possessão, o candomblé e a
umbanda reconhecidamente marginalizadas (Ibid., p. 130).
A julgar pelo corte sagital que sofreu esse xamã: dividiu-se a parte
divina, canto ou escrita, da material, a pessoa simples que executa o
processo ritual, seja incorporando o deus ou a musa que o inspira a
escrever. Repartido, seu discurso não encontra base lógica e plausível de
veracidade, e Sevcenko coloca a fala de Platão que é reveladora dessa
repartição do xamã quando explica a racionalidade da escrita do poeta de
Ilíada e Odisseia, o que ele escrevia não partia de um fluxo de consciência
deliberada, mas de uma inspiração que vinha diretamente dos deuses,
lembrando que ele é esse entremeio, portanto, questioná-lo acerca dessa
veracidade do que diz é uma ação ilógica, o único que pondera
conscientemente acerca daquilo que emite é o filósofo (SEVCENKO,
1998, p. 131).
Com esse novo xamã, o discurso mantém a ordem e o controle por
meio “da palavra controlada” já que “o filósofo permanece um sábio, um
equivalente do xamã, do feiticeiro” (Ibid., p. 132). Se por um lado o xamã
intercambiava o conhecimento profundo dos deuses e ancestrais para
explicar os questionamentos de seus consubstanciais, por outro, os
filósofos adquiriam o mesmo estatuto quando elaboravam seus
argumentos para fundamentar suas explicações, acerca do mundo que nos
abriga, pautados na razão.
É no Renascimento (Ibid., p. 132-133), Sevcenko nota, que o
falecimento desse discurso xamânicos dá lugar a outro equivalente, a
historiografia que, coincidentemente nasce com o romance histórico,
porém distinto deste por ser amparado em uma base científica, por se
dizer neutra.
Aqui se revela o que o autor considerou no início de sua fala (Ibid., p.
120) a origem fantasmática da origem. O discurso legitimador finca suas
raízes na palavra legitimada, seja ela emitida pelo xamã, o feiticeiro que
abnega os valores cotidianos para se diferenciar e comungar com os
deuses, fonte de seu conhecimento, seja no discurso bem fundamentado
dos filósofos que se assemelham àqueles, em vista das sociedades secretas,
ou pelo simples fato de possuírem uma arma de convencimento e
organização social: a palavra. A este se soma o discurso científico que se
quer legítimo por conta da neutralidade que ele requer ao se diferenciar do
discurso literário, oposição clara entre o filósofo e o poeta. Sevcenko
parece concordar que a ordem do discurso, proposto por Foucault, seja a
chave de compreensão do efeito mágico da narrativa e do envolvimento
que ela cria, provando que a compreensão da narrativa como discurso
legitimador considera menos a evolução do gênero narrativo que a
persistência dos elementos que o sustenta.

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