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POUL ANDERSON

O Viajante das Estrelas

Tradução de
José Eduardo Ribeiro Moretzsohn

LIVRARIA FRANCISCO ALVES EDITORA S.A.

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Para Gordon Dickson

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“’Recomeça a grande era do mundo. . .”
Assim como começou um dia, e recomeçará no futuro. As
idas e vindas do homem têm suas estações.
Não mais misteriosas que o ciclo anual do planeta, tampouco
menos. Por navegarmos hoje por entre as estrelas, nos asseme-
lhamos mais aos europeus invasores da América ou aos gregos
colonizadores do litoral mediterrâneo que a nossos ancestrais de
gerações recentes. Nós também somos descobridores, pioneiros,
comerciantes, missionários, compositores do épico e da saga. Mais
que seus pais, nosso povo é hoje mais afoito, mais ambicioso e
individualista. No lado obscuro, a cobiça, a insensibilidade, a ne-
gligência para com o futuro, a violência, e até mesmo o banditismo
desenfreado, retornaram. É essa a natureza das sociedades conti-
das por fronteiras.
Mas não há duas primaveras idênticas. A civilização técnica
não é clássica nem ocidental, e à medida que se dissemina, cada
vez mais diluída, por estirões de espaço cada vez mais inimaginá-
veis, seus postos avançados, seu âmago, apreendem, para o bem
ou para o mal, aquilo que os seres não-humanos têm a ensinar:
que ela muda de maneiras imprevisíveis. Vivemos, hoje, num mun-
do impossível de ser compreendido por qualquer homem restrito
aos limites da Terra.
É possível, por exemplo, que esse homem estabeleça uma
analogia entre a Liga para a Ciência do Sol Polar e as guildas de
mercadores da Europa medieval. Descobrirá, entretanto, na pri-
meira, num exame mais detido, algo novo, herdado, de fato, de con-
ceitos do passado terrestre, embora com mutação e miscigenação
em seus vasos sangüíneos.
Impossível predizer o que dela advirá. Não sabemos para onde
vamos. E nem nos preocupamos com isso, em nossa grande maio-
ria. Basta, para nós, que estejamos em nosso próprio caminho.
Le Matelot
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ESCONDERIJO

O Capitão Bahadur Torrance recebeu a notícia como convém


a um Comandante da Irmandade Federada dos Espaçonautas. Ou-
viu-a até o fim, e interrompeu apenas com uma ou outra pergunta
inteligente. Ao final, estava calmo.
— Bom trabalho, Cidadão Yamamura. Por favor mantenha
isso em segredo até notificação posterior. Tenho que pensar para
ver o que fazer. Prossiga.
Quando, porém, o oficial engenheiro deixou a cabine — a no-
tícia não era do tipo das que se podem transmitir pelo intercomu-
nicador —, serviu-se de um uísque triplo, sentou-se e, distante,
contemplou o visor.
Já viajara distâncias, vira muito, e fora bem recompensado.
E embora, nesse tipo de trabalho tão difícil, conquistasse rápida
promoção, sentia-se ainda muito jovem e, portanto, não deixou de
congelar ao ouvir sua sentença de morte.
O visor exibia tamanha multidão de estrelas, de um brilho
duro e invernoso, que só um astronauta seria capaz de identificar
as unidades isoladas. Torrance procurou além da Via-láctea, até
detectar a Estrela Polar. E ali estava Valhala, a uns tantos graus de
distância na outra direção. Não que ele conseguisse, a essa distân-
cia, ver um sol do tipo G sem instrumentos óticos mais fortes que
os existentes na Hebe G.B. Apenas sentia-se reconfortado em saber
que seus olhos estavam apontados para a base mais próxima da
Liga (casas, naves, humanos, aninhados num vale verde de Freia),
nesse setor, ainda pouco mapeado, de nosso braço galático. E prin-
cipalmente agora, quando se esvaiu, para nunca mais, a esperança
de ali aterrissar novamente.
Em volta, a nave zunia, pulsava e se contraía, no espaço qua-
drático, a uma velocidade limite que, embora deixasse a luz bem
para trás, era ainda muito lenta para salvá-lo.
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Bem... Outra vez o capitão, tinha que pensar antes dos ou-
tros. Torrance suspirou, levantou-se. Gastou alguns instantes para
verificar a aparência; agora, mais do que nunca, o moral era im-
portante. Ao guarda-pó habitual, cinza, da tripulação, ele preferia
o uniforme completo: túnica azul, pelerine e culotes brancos, galão
dourado. E como cidadão do planeta Ramanujan, usava, na cabeça
morena, aquilina, um turbante com o broche “Nave e Sol Irradian-
te”, da Liga para a Ciência do Sol Polar.
Por um corredor, foi à suíte do proprietário. O comissário
de bordo acabara de sair, uma bandeja nas mãos. Torrance fez
sinal para que a porta permanecesse aberta, bateu os calcanhares,
curvou-se.
— Peço desculpas pela interrupção, senhor. Posso conversar
em particular com o senhor? É urgente.
Nicholas van Rijn ergueu o garrafão de dois litros que acaba-
ra de chegar-lhe às mãos. Por baixo do cavanhaque teso, palpita-
ram os diversos queixos; o ruído do sorvo encheu o aposento, des-
de a escrivaninha com papéis espalhados até a tapeçaria, de Huy
Braseal, incrustada de jóias, colocada na antepara do lado oposto.
Algo semelhante a Mozart cantava, cadenciado, melodioso, num
toca-fitas. Loura, de olhos grandes, inteiramente tridimensional,
Jeri Kofoed coleava no canapé, ao alcance daquele homem escarra-
pachado no divã. Casado, mas ausente de casa já há algum tempo,
Torrance forçou o olhar de volta para o mercador.
— Ahhh!
Van Rijn bateu a caneca de cerveja na mesa e enxugou a es-
puma do bigode.
- Pela sífilis! Pela peste bubônica! Como é boa a primeira cer-
veja da manhã! Tem um quê de gelado, de.. . Caramba! Qual é
mesmo a palavra?
O punho cabeludo golpeou a testa inclinada.
— A cada semana que passa eu fico mais desmemoriado! Ah,
Torrance, no dia em que você for um sujeito gordo, solitário, caren-
te de todas as suas forças, vai olhar para trás, vai se lembrar de
mim e desejar ter agido melhor comigo. Tarde demais, então.
Van Rijn suspirou — como um tufão ligeiro — e coçou os
cabelos do peito. Àquela temperatura quase tropical, em que fazia
questão de manter o escritório, precisou apenas enrolar um sarão
no corpanzil.
— Qual é a bobagem agora, que vai me afastar do meu traba-
lho, que já é muito, e que eu vou ter que resolver para você, hein?

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O tom era jovial. Van Rijn, de fato, estivera de bom humor
desde que conseguiram escapar da Patrulha-Cobra (Quem não
estaria? Para uma simples nave de passeio, mesmo armada com
equipamento ultrapoderoso, escapar de três cruzadores era mui-
to mais que uma façanha, era quase um milagre. Van Rijn ainda
mantinha, em gratidão, quatro velas acesas diante da estatueta de
São Dismas, feita de raízes arenosas marcianas). É bem verdade
que, algumas vezes, ele costumava jogar pratos no comissário de
bordo, quando a bebida demorava um pouco mais que o desejado,
e despedir todos a bordo ao menos uma vez ao dia. Mas isso era
normal.
Jeri Kofoed arqueou as sobrancelhas, murmurou:
— É mesmo a primeira cerveja, Nicky? Na verdade, duas ho-
ras atrás . . .
— Claro! Mas isso foi antes da meia-noite. Mesmo que não te-
nha sido à meia-noite de Greenwich, com certeza foi a de qualquer
outro planeta, nie? Portanto, hoje é um novo dia.
Na mesa, Van Rijn apanhou o cachimbo comprido, de argila
e começou a enchê-lo.
— Bem, sente-se, Capitão Torrance, fique à vontade, e me
empreste o isqueiro. Filho, você está com o aspecto de creme dina-
mitado. Os seus rapazes não têm estamina. Quando eu trabalhava
como espaçonauta, por Judas, nós tínhamos que resolver nossos
próprios problemas. Hoje em dia, juro pela morte e pelo diabo, vo-
cês vêm me perguntar até mesmo como é que vão limpar o nariz!
Eu sou o único aqui com coragem. Van Rijn bateu na barriga de
barril.
— E então, o que há de errado com o fuzuê agora?
Timothy umedeceu os lábios.
— Eu preferia conversar a sós, senhor.
E viu a cor sumir do rosto de Jeri. Ela não era covarde. Os
planetas fronteiriços, mesmo os agradáveis, como Freia, não cos-
tumavam produzir esse tipo de gente. Ela viera nessa viagem, que
sabia arriscada, pois uma chance assim — envolver-se com o prín-
cipe mercador da Companhia Solar de Condimentos & Bebidas,
uma das maiores forças em toda a Liga para a Ciência do Sol Polar
— era boa demais para ser recusada por uma garota oportunista.
Durante a luta, e a fuga subseqüente, soubera manter a calma,
embora tivesse sentido a morte de perto. Ainda estavam, porém,
muito distantes de seu planeta, entre estrelas desconhecidas, com
o inimigo a persegui-los.
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— Vá para o quarto.
Van Rijn ordenou. Jeri murmurou:
— Eu gostaria de ouvir a verdade.
Os olhos negros, pequenos, dispostos junto ao nariz adunco
de Van Rijn, fuzilaram. Ele berrou:
— Dormideirazinha petulante! Quando eu disser para pular
fora, você tem que pular fora.
De um salto, Jeri ficou de pé, revoltada. Sem se levantar, Van
Rijn deu-lhe um tapinha no local adequado, que ressoou como o
disparo de uma pistola. Em seco, chocada, Jeri inspirou um ga-
nido de indignação e irrompeu para o interior da suíte. Van Rijn
apertou a campainha, para chamar o comissário de bordo, e disse
a Torrance:
— Isso exige mais cerveja. Bem, não fique aí parado com es-
ses olhos de louco. Não tenho tempo a perder com constrangimen-
tos, ao contrário de um lerdo como você, que ganha muito mais do
que merece. Tenho que rever a programação dos preços da pimenta
e da noz-moscada para Freia, antes de chegarmos. Por Satã! Pelos
fedorentos! Aquele fabricante idiota poderia ter cobrado uns dez
por cento a mais, em vez de reduzir o volume de vendas. Eu juro!
Que meus bons santos me escutem, e ajudem este pobre homem
atrelado a trabalhadores que mais parecem caixeiros com papa de
aveia na cabeça!
Com esforço, Torrance subjugou a irritação.
— Muito bem, senhor. Acabo de receber um relatório de Ya-
mamura. O senhor sabe que recebemos um tiro de raspão durante
a luta, e que nos acertou na casa das máquinas. O conversor não
parece avariado, embora, depois que o buraco foi remendado, a
turma ainda esteja averiguando para ter certeza. E acontece que
metade dos circuitos do gerador da couraça de proteção derreteu,
e podemos repor apenas parte dele. Se continuarmos à velocidade-
limite, em cinqüenta horas todo o conversor se fundirá.
— Ah, então é isso?
Van Rijn ficou sério. O isqueiro tocou o cachimbo, e o estalido
surpreendeu, de tão alto.
— Não podemos parar e fazer os reparos? Se desligarmos a
hiper-propulsão, ficaremos tão pequenos que os fedorentos da pa-
trulha não poderão nos encontrar. E então?
— Não podemos, não senhor. Como eu disse, não temos pe-
ças de reposição suficientes. Isto é uma nave de passeio, não uma
nave de guerra.

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— Está bem. Então vamos continuar com a hiperpropulsão.
A que velocidade temos que baixar para conseguirmos chegar a
uma distância em que possamos nos comunicar com Freia antes
que nossas máquinas derretam?
— A um décimo da velocidade-limite. Levaríamos uns seis
meses.
— Não, meu caro capitão, não levaríamos tanto tempo assim.
A Patrulha nos encontraria antes disso.
— É, creio que sim. E, de qualquer modo, não temos supri-
mentos para seis meses a bordo.
Torrance olhou o painel.
— O que me ocorre agora é que, bem ... talvez possamos che-
gar a uma estrela próxima. Há uma remota possibilidade de existir
algum planeta com civilização industrial, cujo povo possa aprender
a fazer os circuitos de que precisamos. No mínimo, um planeta ha-
bitável, quem sabe?
— Nie!
Van Rijn balançou a cabeça. Sobre os ombros, giraram os
cachos de cabelo negro e oleoso.
— Homens como nós, e uma mulher, irem viver numa rocha
imunda, sem videiras? Prefiro descer numa cápsula da Patrulha,
como um cavalheiro, claro!
O comissário chegou.
— Andou cochilando por aí, não foi? Minha cerveja! Que as
pragas de Deus caiam sobre você! Preciso dela para pensar. Como
é que você quer que eu pense com a boca assim, um deserto em
pleno verão?
Torrance foi cuidadoso na escolha das palavras. Teria de lem-
brar a Van Rijn que, no espaço, a última palavra sempre cabia
ao capitão; sem antagonizá-lo, pois o velho diabo tinha a fama de
debater-se entre alternativas de um dilema.
— Eu aceito sugestões, senhor, mas não posso assumir a
responsabilidade de atrair ataque inimigo.
Van Rijn levantou-se e, pesado, arrastou-se pela cabine, fu-
megando obscenidades e nuvens vulcânicas. Ao passar pela prate-
leira de São Dismas, com os dedos, de maneira marcante, apagou
as velas, e algo pareceu despertar nele. Virou-se.
- Ah! Civilizações industriais, ja, quem sabe? Não é só a Pa-
trulha pestilenta que navega nessa região do espaço! Talvez entre-
mos no raio de detecção de alguma nave em boas condições, nie?
Mande Yamamura aumentar a sensibilidade de nosso detector até
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conseguirmos ouvir baterem as asas dos borrachudos no meu es-
critório em Jacarta, na Terra. Aqueles faxineiros são uns preguiço-
sos! Depois tomamos essa rota em frente e vamos navegá-la num
plano de vôo de sondagem, em velocidade reduzida.
— E se encontrarmos uma nave? Talvez ela seja do inimigo,
o senhor sabe.
— Vamos correr o risco.
— De todo jeito, senhor, vamos perder tempo. A perseguição
nos alcançará enquanto procuramos uma hélice de sonda. Princi-
palmente se tivermos de perder muitos dias para persuadir uma
tripulação de não-humanos, que nunca ouviu falar da raça hu-
mana, de que temos que ser levados imediatamente, e mais rápido
ainda, para Valhala.
— Quando entrarmos, queimamos a ponte. Você tem algum
esquema mais promissor?
— Bem...
Sombrio, Torrance ponderou por um momento. O comissário
entrou com um novo garrafão. Van Rijn esticou-se, apanhou-o.
— ... Talvez o senhor tenha tazão. Eu vou ... Van Rijn exul-
tou:
— Ah, virginal! Era essa a palavra que eu estava procurando!
Para a primeira cerveja do dia, seu imbecil!

A porta da cabine soou. Torrance resmungou. Esperava dor-


mir ao menos um pouco, depois de tantas horas, mais do que con-
seguiu enumerar, na cabine de comando. Mas quando a nave ron-
dava na escuridão em busca de outra que podia, ou não, existir, e
os perseguidores se aproximaram...
— Entre.
Jeri Kofoed entrou. Embasbacado, Torrance levantou-se, de
um salto, e curvou em reverência.
— Cidadã! Que ... surpresa! Posso ajudá-la em alguma coi-
sa?
— Sim, por favor.
Ela pousou a mão sobre a dele. Jeri usava uma toga de corte
espalhafatoso, sem pudores, pois fora o único tipo que Van Rijn
encontrara para oferecer a ela. Mas o olhar que ela agora lançava a
Torrance não tinha qualquer relação com isso.
— Tive que vir, Comandante. Se o senhor for um homem pie-
doso, vai me escutar.
Torrance acenou para que ela se sentasse na poltrona, ofe-

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receu cigarros, e acendeu um. A fumaça, inalada até o fundo dos
pulmões, acalmou-o um pouco. Sentou-se do outro lado da mesa.
— Se eu puder ajudá-la, Cidadã Kofoed, sabe que terei prazer
em fazê-lo. E ... e o Cidadão Van Rijn ...
— Está dormindo. Não que ele tenha qualquer direito sobre
mim, eu não assinei contrato algum, nem nada parecido.
A irritação deu lugar a um sorriso irônico.
— Bem, admito que sejamos inferiores a ele, de fato e em
status. Eu não estou propriamente transgredindo os desejos dele.
É só que ele não quer responder às minhas perguntas, e se eu não
descobrir o que de fato está acontecendo, vou ter que começar a
gritar.
Torrance ponderou alguns fatores. Uma explicação particu-
lar, mais detalhada que a exigida para a tripulação, seria, de fato,
a melhor solução para ela.
— Como quiser, Cidadã.
Torrance relatou o que acontecera ao conversor, e concluiu:
— E não temos condições de consertá-lo nós mesmos. Se con-
tinuássemos viajando à velocidade-limite máxima, iríamos derretê-
lo antes de chegarmos; e então, sem energia, logo morreríamos. E
se prosseguirmos a uma velocidade lenta, de modo a preservá-lo,
levaríamos meio ano para chegar a Valhala, tempo superior à du-
ração de nossas provisões. E, além disso, sem dúvida alguma, a
Patrulha-Cobra nos encontraria em uma ou duas semanas.
Jeri estremeceu.
—Por quê? Não compreendo.
Fitou, por um momento, a ponta do cigarro, até retomar um
certo grau de serenidade, e um certo toque de humor.
— Eu bem que poderia passar por uma garota fácil, sofis-
ticada, em Freia, Capitão. Mas, melhor do que eu, o senhor sabe
que Freia é um planeta primitivo, no último contorno da civilização
humana. Mal temos tráfego espacial, a não ser a nave mercante da
Liga. E, mesmo assim, ela não passa muito tempo no espaçoporto.
Quanto à tecnologia militar ou política, desconheço inteiramente.
Essa, para mim, não passava de uma missão de reconhecimento.
Ninguém me disse nada, e perguntar não me passou pela cabeça.
Por que a Patrulha-Cobra está tão ávida para nos pegar?
Antes de estruturar a resposta, Torrance considerou o qua-
dro geral. Como espaçonauta da Liga, deve fazer um esforço antes
de julgar a insignificância do inimigo com relação aos colonos que
pouco se afastam de seu mundo natal. O nome “Patrulha-Cobra”
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era originário de Freia, um termo de depreciação designativo dos
marginais expulsos do planeta há um século. Desde essa época,
entretanto, os freianos jamais tiveram com eles um novo contato.
Em algum lugar das profundezas inexploradas, para lá de Valhala,
os fugitivos se estabeleceram num planeta desconhecido. As gera-
ções passaram, e eles cresceram em quantidade, e também suas
naves de guerra. Mas Freia ainda era muito forte para ser invadida
por eles, e não possuía empreendimentos extraplanetarios para ser
saqueados. Freia não tinha com que se preocupar.
Torrance optou pela explicação sistemática, mesmo que ti-
vesse que repetir o óbvio.
— Bem, os homens da Patrulha-Cobra não são estúpidos. De
algum modo, procuram manter-se a par dos acontecimentos; sabem
que a Liga para a Ciência do Sol Polar deseja expandir suas opera-
ções naquela região e não querem que isso aconteça. Para eles, isso
significaria o fim dos ataques aos Planetas hoje impossibilitados
de se defender, o fim do arrocho tributário e do comércio realizado
a preços extorsivos. Não que os membros da Liga sejam santos,
pois não toleramos santos, mas apenas porque a pirataria interfere
nos lucros de nossas companhias-membros. E a Patrulha-Cobra,
portanto, lançou-se, não a uma guerra declarada contra nós, mas
a hostilidade contra nossos postos avançados para que os consi-
derássemos “mau negócio” e desistíssemos deles. A Patrulha conta
com a vantagem de conhecer o setor do espaço em que atuam, e nós
não fazemos a mínima idéia do nosso. E, na verdade, chegamos ao
ponto de apagar essa região do mapa e ir tentar em outro lugar. O
Cidadão Van Rijn quis fazer uma última tentativa, mas a oposição
foi tão grande que ele próprio teve que vir para liderar a expedição.
E você deve saber como ele agiu. Usou a arte profana do suborno
e do blefe para extrair até a última gota de informação dos prisio-
neiros que fizemos, e para juntar fatos estranhos. Conseguiu uma
pista de um segmento inexplorado, e voamos para lá. Seguindo
uma trilha de neutrinos, fomos parar num planeta colonizado por
humanos, planeta que é, com certeza quase absoluta, como você
deve saber, o mundo natal dos próprios flibusteiros. Se voltarmos
com a informação, não teremos mais problemas com a Patrulha.
Não depois que a Liga enviar para lá algumas naves de guerra do
tipo Astéria e ameaçar bombardear o planeta. E eles sabem disso.
Então, fomos detectados e atacados por muitas naves de guerra,
e tivemos sorte em conseguir escapar. As naves da Patrulha são
obsoletas e, até o momento, só temos fugido, mantendo uma boa

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distância deles. Mas não creio que tenham desistido de nos perse-
guir. E vão enviar toda a armada de cruzadores em nossa busca.
As vibrações da hiperpropulsão se transmitem instantaneamente
e podem ser detectadas a uma distância de cerca de um ano-luz.
Portanto, se alguma patrulha identificar nossa “esteira”, e entrar
nela — e nós, acidentados — será o fim.
Jeri puxou uma tragada forte no cigarro; mas permanecia
calma.
— E seus planos, quais são?
— Um contramovimento. Em vez de tentar chegar a Freia .. .
bem, quer dizer. . . vamos prosseguir em hélice-sonda a uma veloci-
dade média, forçando nossos próprios detectores. Se descobrirmos
outra nave, usaremos o último suspiro de nosso motor para abor-
dá-la. Se for um vaso-patrulha, bem, talvez possamos apreendê-lo,
ou qualquer coisa assim. Nós temos um par de armas leves em
nossa torre de tiro. Mas pode ser, também, que seja uma nave não-
humana. Os relatórios de nossa espionagem, os interrogatórios de
prisioneiros, a avaliação das observações dos exploradores, e tudo
o mais, revelam que três ou quatro espécies diferentes desta região
possuem hiperpropulsão. Os próprios homens da Patrulha-Cobra
não as conhecem todas. Esse espaço é grande demais!
— E se for mesmo não-humana?
— Então faremos o que parece mais indicado.
— Entendo...
Esperta, Jeri acenou com a cabeça. Sentou-se por um mo-
mento, sem falar, e depois fascinou-o com um sorriso.
— Obrigado Capitão. O senhor não sabe o quanto me aiu-
dou.
Torrance reprimiu um sorriso bobo.
— Foi um prazer, Cidadã.
— Eu vou para a Terra com o senhor. O senhor sabia disso?
O Cidadão Van Rijn prometeu me arrumar um bom emprego lá.
Como sempre promete, Torrance pensou.
Jeri inclinou-se, aproximou.
— Espero que tenhamos oportunidade de nos conhecermos
melhor, Capitão, durante a viagem rumo à Terra. Ou, quem sabe,
agora mesmo?
Naquele exato momento, soou a campainha de alarme.

A Hebe G.B. era uma nave de passeio, não uma fragata de


piratas do espaço. Entretanto, com Nicholas van Rijn a bordo, a
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diferença, algumas vezes, parecia algo confusa. Assim, possuía
mais esporas que as demais naves, detectores de sensibilidade in-
comum, e uma tripulação tarimbada em tática de inspeção.
A nave conseguiu detectar a hiperemissão da outra nave an-
tes que as próprias vibrações fossem observadas. E ao seguir o
objeto ainda não visível, conseguiu identificar seu plano de curso
e, portanto, despejar toda sorte de material viscoso para intercep-
tá-la. Se o estranho tivesse mantido a velocidade-limite, haveria
contato em três ou quatro horas. Em vez disso, porém, a esteira in-
dicava uma mudança de rumo, uma tentativa de fuga. A Hebe G.B
também mudou de rota, e continuou ganhando terreno em relação
à presa, de menor porte.
— Estão com medo de nós — concluiu Torrance — E não
estão voltando para o sol da Patrulha-Cobra, dois fatos que indi-
cam que eles mesmos não são de lá, mas têm motivos para temer
estranhos.
Soturno, Torrance confirmou com a cabeça, pois, durante as
investigações preliminares, inspecionara alguns planetas visitados
pelos piratas.
Ao perceber que o perseguidor encurtava a distância, o per-
seguido desligou a hiperpropulsão. E reverteu à velocidade abaixo
da luz, essencial; o conversor fechou-se até atingir a emissão mí-
nima. E a nave converteu-se num ponto infinitesimal no espaço
efetivamente infinito. A manobra costuma funcionar, pois, depois
de procurar em vão por alguns momentos, o inimigo desiste e se
retira. Mas a Hebe G.B. estava preparada. O conhecido vetor su-
perluz, em conjunto com o instante do desligamento, forneceram
aos computadores uma idéia aproximada da localização da presa.
E prosseguiu naquele volume de espaço e, em seguida, deslocou-
se de um lado para outro num plano de sondagem bem concebido,
revertendo ao estado normal, em intervalos, para colher amostras
da névoa de neutrino, emitida por qualquer motor nuclear. Os ver-
dadeiros motores nucleares conhecidos pelo nome de estrelas são
os que a emitem em maior quantidade; mas, através da análise
estatística, os computadores agora isolavam uma fonte próxima,
débil. A nave de passeio dirigiu-se para lá ... Baça, contra o céu
bruxuleante, a outra nave surgiu nas telas.
O tamanho, muitas vezes maior. Um cilindro de ogiva arre-
dondada, rombuda, e cones de propulsão maciços, com inúmeros
encaixes para embarcações auxiliares, e uma única torre de tiro.
Ditam os princípios da física que a conformação das naves feitas

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para uma mesma finalidade deve ser, grosso modo, a mesma. Qual-
quer espaçonauta, porém, perceberia que aquela nave, ali adiante,
não fora construída por membros da civilização da Liga.
Veio, então, o disparo. Mesmo com o desligamento automá-
tico do visor, Torrance ficou enceguecido por um momento. Os
instrumentos disseram-lhe que o estranho havia disparado uma
cápsula de fusão, interceptada por um míssil disparado pelos ati-
radores-robôs de Torrance. O ataque fora muito lento, muito débil.
Aquela nave não era, de modo algum, um vaso de guerra; e não
era rival para a Hebe G.B., como esta não o era para o cruzador da
Patrulha-Cobra que a perseguia.
— Muito bem — disse Van Rijn —, agora que já nos desvenci-
lha-mos dessa bobagenzinha, podemos falar de negócios. Coloque-
os no telecomunicador e estabeleça uma linguagem comum. Rá-
pido! Depois explique que não queremos prejudicá-los, queremos
apenas uma carona para Valhala.
Hesitou, num titubeio nítido, e acrescentou:
— Pagamos bem.
Torrance ponderou:
— Talvez encontremos dificuldades, senhor. Embora eles
possam identificar nossa nave como de construção humana, é pos-
sível que os únicos humanos que já tenham encontrado sejam os
da Patrulha-Cobra.
— Bem, se for necessário, podemos abordá-los e forçá-los a
nos transportar, nie? Mas ande depressa, pelo diabo! Se ficarmos
muito tempo parados, como dorminhocos vadios, vamos ser apa-
nhados.
Torrance estava prestes a deixar bem claro que a nave es-
tava em segurança quase absoluta. E que a Patrulha-Cobra esta-
va muito atrás da nave da Terra, bem mais veloz, e nem poderia
imaginar que a hiperpropulsão estivesse desligada. Que, quando
começassem a desconfiar, não haveria probabilidade mensurável
de encontrá-la. Mas lembrou-se de que o caso não era tão simples
assim. Se a parlamentação com os estranhos demorasse mais que
o esperado — mais que uma semana, na melhor das hipóteses —
os esquadrões da Patrulha-Cobra poderiam penetrar nessa região
genérica e até mesmo ultrapassá-la. E, por meses, poderiam ficar
na espreita, o que os humanos não poderiam fazer por falta de ali-
mentos. Quando a hiperpropulsão fosse ligada, eles a detectariam
e, com facilidade, alcançariam esse tão estranho mercador. A única
esperança seria conseguir, rapidamente, uma carona para Valhala,
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utilizando a dianteira já obtida para compensar a desvantagem da
velocidade reduzida.
— Estamos tentando todas as faixas, senhor. Até agora, ne-
nhuma resposta.
Preocupado, Torrance franziu o cenho.
— Eu não compreendo. Eles devem saber que os congelamos,
e devem ter recebido nossos chamados e percebido que queremos
conversar. Por que, então, não respondem? Não custa nada.
— Talvez tenham abandonado a nave — sugeriu o oficial de
comunicações. —Talvez tenham salva-vidas movidos a hiperpro-
pulsão.
— Não ...
Torrance sacudiu a cabeça.
— ... Teríamos detectado ... Continue tentando, Cidadão Be-
tancourt. Se não conseguirmos resposta em uma hora, vamos en-
costar e abordar.
As telas receptoras permaneceram vazias. Ao final, porém,
do período estipulado, no momento em que Torrance determinava
ação espacial belicosa, Yamamura relatou novidades. Aumentara
a emanação de neutrino numa fonte próxima à popa do estranho.
Algum processo envolvendo pequenas quantidades de energia en-
contrava-se em evolução.
Torrance vestiu o capacete, prendeu-o.
— Vamos dar uma olhada.
A postos, deixou uma tripulação mínima — o próprio Van
Rijn, sob veementes protestos, assumiu a ponte de comando — e
conduziu a comitiva de abordagem à câmara de ar. Suave, como o
deslizar de um tubarão (o velho suíno, afinal, era um espaçonauta
fíta-azul, o Capitão constatou algo surpreso), a Hebe G. B. entrou
numa trilha de tração e projetou-se até a nave maior.
Mas a nave maior desapareceu. A retirada fez sacudir a nave
de passeio. Van Rijn rosnou:
— Por Belzebu! Pelo botulismo! Entrou em hiper de novo,
hein? Já damos um jeito nisso!
Solicitado, o conversor ulcerado esganiçou, mas a força che-
gou aos motores. Num sopro e meio, a nave terrestre dominou
a forasteira. E tamanha naturalidade de Van Rijn ao executar a
transformação de fases fez Torrance esquecer-se de que a operação
era considerada difícil até mesmo por pilotos-mestres. Van Rijn
esquivou-se de um jato de compressão frenético e engatou a nave
ao casco maior emanando faixas indestrutíveis de força. Mais uma

20
vez, desligou a hiperpropulsão, pois o conversor não conseguiria
suportar muito mais. A Hebe G.B. deixou-se arrastar pelo campo
de força do estranho, cuja velocidade-limite foi consideravelmente
reduzida com o “rebocar” daquela massa extra. Se Van Rijn espe-
rava que a nave aprisionada desistisse e revertesse ao estado nor-
mal, ficou desapontado. Mais velozes que a luz, as duas fuselagens,
unidas, continuaram mergulhando rumo a uma constelação sem
nome.
Torrance engoliu uma promessa, convocou seus homens e
saiu.
Jamais tentara forçar a entrada numa nave hostil. Presumiu,
porém, que não deveria ser muito diferente do que abrir caminho
a fogo numa nave abandonada. Depois de escolher o local, Torran-
ce inflou um balão para conservar ar; não havia porquê dizimar a
tripulação do inimigo. As tochas de seus homens vomitavam la-
baredas; as azuis fagulhas actínicas eram expelidas para trás, em
chafariz, e dançavam na gravidade zero. Entrementes, o resto da
equipe aguardava com desintegradores e granadas.
Lá fora, os contornos das duas fuselagens pareciam sumir
no infinito. Sem os visores eletrônicos de compensação, o céu dis-
torcia-se, fantástico, pela aberração e pelo efeito Doppler, como se
os homens já estivessem mortos, como se se debatessem na outra
existência, rumo ao Juízo Final. Com firmeza, Torrance concentrou
a mente em preocupações práticas. Assim que entrasse, e aprisio-
nasse os não-humanos, como iria comunicar-se com eles? Princi-
palmente se, primeiro, tivesse que abater uns tantos?
A carcaça exterior foi desmontada. Torrance, fascinado, estu-
dou a estrutura interna das placas. Jamais vira algo assim antes.
Esta raça, com certeza, desenvolvera sua espaçonáutica de ma-
neira bem independente com relação à espécie humana. Embora
a engenharia obedecesse às mesmas leis naturais, no detalhe, en-
tretanto, era radicalmente diferente. Que substância seria aquela,
dura,cortiçosa, que revestia a cápsula interna? E os circuitos, esta-
riam embutidos nela? Torrance não os via em lugar algum.
A última defesa cedeu. Torrance engoliu em seco, e apontou
um facho de luz pelo interior adentro. A escuridão e o vácuo vieram
encontrá-lo. Ao penetrar no casco, flutuou, despojado de peso; a
gravidade artificial fora desligada. Nalgum lugar, a tripulação se
escondia. E ...
E...
Em uma hora Torrance retornou à nave de passeio. Subiu à
21
ponte e encontrou Van Rijn sentado ao lado de Jeri. A jovem come-
çou a falar, olhou detidamente a fisionomia do Capitão, e trincou
os dentes. O mercador, mal-humorado, indagou:
— E então?
Torrance pigarreou. A voz saiu, desconhecida, distante.
— Acho melhor o senhor vir dar uma olhada.
— Você descobriu em que raio de inferno se escondeu a tri-
pulação? Como são eles? E de que tipo é a nave que aprisionamos,
hein?
Torrance preferiu, em primeiro lugar, responder à última per-
gunta.
— Parece uma nave de carga interestelar, coletora de animais.
O compartimento principal é cheio de jaulas — ou melhor, compar-
timentos de controle ambiente — com uma variedade infernal de
criaturas, a maior que já vi depois do Zoológico de Luna City.
— Isso não significa coisa alguma para mim. Eu quero o co-
letor em pessoa, e seus amiguinhos caçadores!
Torrance engoliu em seco.
— Bem, senhor. A esta altura podemos afirmar que estão se
escondendo de nós. Entre os próprios animais.
Um tubo foi estendido entre a câmara de descompressão
principal da nave de passeio e o corte de entrada na outra. Por ali,
o ar era bombeado, e a fiação elétrica foi passada para iluminar a
presa. Utilizando-se de um truque extravagante no gerador graví-
tico da Hebe G.B., Yamamura forneceu à nave desconhecida cerca
de um quarto do peso-Terra; como, entretanto, não conseguisse
mantê-la em rumo uniforme, as plataformas estavam sujeitas a
inclinações violentas e súbitas.
Mesmo em tais condições, Van Rijn caminhava, pesado. Com
um salame numa das mãos e uma cebola crua na outra, lançava
um olhar feroz à ponte capturada. Só podia ser isso mesmo, embo-
ra à altura do pescoço, e não da cintura. Os visores ainda funcio-
navam; pequenos, desconfortáveis para o olho humano, revelavam,
entretanto, o mesmo desenho dos astros com, é claro, o mesmo
tipo de compensadores óticos. Um console de controle descrevia
um semicírculo ao longo da parede frontal, grande demais para ser
operada por um único homem. Mas o projetista, presumivelmente,
concebera-a para um só piloto, pois um único assento fora coloca-
do no meio do arco.
Fora colocado. Uma estaca metálica, curta, erigia-se no con-
vés. Estruturas similares eram vistas em outros pontos, e cavilhas

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indicavam os locais onde se fixavam as poltronas. Os assentos,
porém, haviam sido retirados.
Torrance arriscou:
— O piloto senta-se ao centro, suponho; isto quando não es-
tão navegando simplesmente no automático. O navegador e o ofi-
cial de comunicações... aqui e ali? Não posso afirmar. De qualquer
modo, é provável que não usem co-piloto, mas aquela estaca na
popa parece sugerir a cadeira de um oficial extra, de reserva, pron-
to, para assumir.
Van Rijn ruminava a cebola, puxava os fios do cavanhaque.
— Grande que nem a peste, este painel. Parece uma raça
desgraçada de polvos! Olha como é complicado!
E acenou o salame ao longo do meio-círculo. O console, feito,
ao que parecia, de algum polímero fluorocarbônico, possuía poucos
interruptores e botões, e uma infinidade de placas chatas, lumi-
nosas, todas de cerca de vinte centímetros quadrados. Algumas
encontravam-se comprimidas. Não havia dúvida de que eram os
controles. A experimentação cautelosa evidenciara que, para acio-
ná-los, era necessário apertar com força. Mas a experimentação
terminava ali, agora, pois a câmara de carga se abriu e boa parte do
ar se perdeu antes que Torrance conseguisse força suficiente para
apertar a placa que, como veio provar a experiência, viria lacrar
novamente a fuselagem. Não se deve brincar a esmo com o desco-
nhecido atômico, principalmente no espaço galático.
Van Rijn prosseguiu: — Eles devem ser fortes como mulas,
para manobrar esse sistema sem ficar exaustos. O tamanho das
coisas parece provar o que eu digo, nie?
— Não é bem assim, senhor — retrucou Torrance. — Os viso-
res parecem feitos para anões. Os medidores ainda mais.
Torrance apontou para um jogo de instrumentos do tamanho
de botões; em cada um deles, luzia um único número. (Ou letra,
ou ideograma, ou o quê? Pareciam, vagamente, chinês antigo). De
quando em quando, um símbolo mudava de valor.
— Um humano não conseguiria operá-los por muito tempo
sem chegar a uma grave fadiga visual. É claro que o fato de terem
olhos mais adaptados que os nossos para ver de perto não significa
que não sejam gigantes. E aquele interruptor, para ser alcançado
daqui, exige braços longos, e parece ter sido projetado para mãos
grandes.
Torrance ficou na ponta dos pés, tocou o interruptor. Uma
coisa descomunal, semelhante a uma haste dupla, estava fixa no
23
teto, bem acima do assento hipotético do piloto.
0 interruptor desprendeu-se.
Um ronco veio da popa. Torrance cambaleou para trás, puxa-
do por uma força repentina. Para firmar-se, teve que agarrar-se a
uma prateleira à frente. Ao agarrá-la, o fino metal envergou.
— Seus polvos imbecis!
Van Rijn berrou e esticou as pernas coluniformes; alcançou
o interruptor e colocou-o de volta na posição original. Cessou o
ruído. A normalidade voltou.
Torrance apressou-se até a porta da ponte, um arco bem alto,
e gritou para o interior do corredor:
— Está tudo bem! Não se preocupem! Está tudo sob contro-
le!
— O que aconteceu com esse pisca-pisca azul? — perguntou
Van Rijn, com palavras ligeiramente mais vigorosas.
Torrance dominou o leve estado de nervosismo.
— Interruptor de emergência, suponho... O tom de voz titu-
beou:
— ... Liga o campo gravítico a toda velocidade de propulsão,
sem desperdiçar força com os compensadores de aceleração. Claro
que, como estamos em hiperpropulsão, a coisa não foi muito efi-
ciente. Ocasionou apenas um impulso intrínseco menor que 1-G.
Em estado normal, teríamos acelerado, no mínimo, muitos Gs. E
para fugas rápidas e... e ...
— E você, com seu cérebro de molho de carne fermentado,
com seus dedos de banana, puxou-o com toda força!
Torrance enrubesceu.
— Como eu iria saber, senhor? Devo ter aplicado menos de
meio-quilo de força. Interruptores de emergência não são para ser
acionados por fios de cabelo, afinal! E se pensarmos na força ne-
cessária para movimentar estas placas, quem poderia pensar que
esse interruptor reagiria com tão pouco?
Van Rijn aproximou-se para uma olhadela mais acurada.
— Posso ver que este gancho aqui é para prender o interrup-
tor. Talvez o usem para passar por planetas de alta gravidade.
E viu um orifício próximo ao centro do painel, de um centí-
metro de diâmetro e de quinze centímetros de profundidade. Lá no
fundo, emergia uma pequena chave.
— Isso deve ser outro controle especial, não? É mais seguro
que aquele interruptor. Para girá-lo, são necessários alicates muito
finos.

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Van Rijn coçou os cachos tratados com creme fixador.
— Mas... e os alicates? Por que não estão à mão? Não vejo
nenhum gancho, suporte ou gaveta para guardá-los.
— Isso não faz diferença. O interior da nave está todo destru-
ído. Na sala de máquinas, tudo o que sobrou foi um montículo de
escória metálica. É... metal fundido, plástico carbonizado... reves-
timento, mobília, tudo que julgaram possíveis pistas para os iden-
tificarmos, tudo derretido numa caldeira improvisada. E usaram o
próprio conversor para gerar calor. E essa foi a causa daquele fluxo
de neutrino detectado por Yamamura. Devem ter trabalhado mais
que o diabo!
— Mas claro que não destruíram todas as ferramentas, todo
o equipamento necessário! Teria sido mais simples fazer explodir a
nave. E nós iríamos junto. Eu suei como um porco, temendo que
fizessem isso. Para mim, um velho pecador, desgraçado, não seria
uma maneira agradável de terminar meus dias, estilhaçado em ga-
ses radioativos, fedorentos, a trezentos anos-luz de distância dos
vinhedos da Terra.
— Claro que não. No exame superficial que fizemos, podemos
dizer que não chegaram a sabotar o essencialmente vital. Não te-
mos certeza absoluta, é claro. A equipe de Yamamura precisaria de
muitas semanas apenas para formar uma idéia geral de como esta
nave foi montada, excluindo os detalhes práticos de como operá-la.
Concordo, porém, que a tripulação não apresenta pendores para o
suicídio. Conseguiram nos pegar, e muito mais do que pensam. In-
defesos, acoplados no espaço — quem sabe, até mesmo, rumando
para o próprio astro-natal dessas criaturas — em ângulos quase
perpendiculares à rota que desejamos.
Torrance foi o primeiro a sair.
— Que tal irmos dar uma olhada mais acurada no zoológico,
senhor? Yamamura falou algo a respeito de montar um equipamen-
to... para ajudar-nos a identificar a tripulação dentre os animais!

O recinto principal compreendia quase a metade do volume


da imensa nave. Um corredor, por baixo, e um passadiço estrito,
por cima, estendiam-se no meio de duas fileiras de cubículos de
dois andades, que somavam noventa e seis, e eram idênticos. Cada
um com cinco metros em um dos lados, e placas fluorescentes,
ajustáveis, no teto; no chão, um plástico flexível, presumivelmente
inerte. Prateleiras e barras paralelas estendiam-se ao longo das
paredes laterais, para uso de animais que gostassem de pular e
25
escalar. À parede dos fundos, ligavam-se máquinas bem capeadas.
Yamamura, que não ousou violá-las, disse apenas que serviam,
era óbvio, para regular a atmosfera, a temperatura, a gravidade, as
condições sanitárias e outros fatores ambientais em cada “jaula”.
As paredes frontais, de frente para o corredor e para o passadiço,
eram transparentes, com câmaras de descompressão compactas,
quase da mesma altura do próprio cubículo, e motorizadas, embo-
ra controladas por rodas simples, do lado de dentro e do lado de
fora. Apenas alguns compartimentos estavam vazios.
Os humanos não haviam instalado luminárias no local, pois
eram desnecessárias. Torrance e Van Rijn atravessaram as som-
bras, por entre os animais; a luz simulada, de uns doze sóis distin-
tos, fluía à volta dos dois: vermelha, laranja, amarela, esverdeada
e azul-elétrico forte.
Algo que poderia ser um tubarão, não fossem os cachos de
pêlos a esvoaçar na cabeça, nadava num cubículo d’água em meio
a algas frondosas. Na jaula ao lado, repleta, minúsculos répteis
voadores, com escamas que faiscavam matizes prismáticos, cole-
avam e tintavam o ar. Do outro lado, quatro mamíferos estavam
agachados em meio a uma bruma amarela; belas criaturas, do
tamanho de um urso, com listras de tigre, de tons fortes, cami-
nhavam nas quatro patas e, de vez em quando, levantavam-se. E
notavam-se, nos dedos curtos, as garras retrácteis, e, nas cabeças
maciças, mandíbulas de carnívoros. Adiante, os humanos passa-
ram por umas seis feras lustrosas, semelhantes a lontras hexápo-
des, que brincavam num tanque d’água apropriado. As máquinas
ambientais deviam ter decidido que era hora da refeição, pois um
alimentador jorrava, numa canaleta, nacos de material proteínico e
as lontras refestelavam-se para cortá-los com as presas.
— Alimentação automática — observou Torrance. — É prová-
vel que o alimento seja sintetizado na hora, segundo as especifica-
ções de cada espécie, determinada por métodos bioquímicos. Para
a tripulação também. Pelo menos, não vejo nada por aqui que se
pareça com uma cozinha de bordo.
Van Rijn encolheu os ombros.
— Mas. . . tudo sintético? Não tem nem um copinho de gene-
bra holandesa para antes do jantar?
E iluminou-se:
— Ah, talvez estejamos diante de um novo mercado. E bom!
E até que eles descubram a situação, podemos cobrar preços tri-
plicados.

26
— Mas antes — emendou Torrance — precisamos encontrá-
los!
Próximo ao centro do recinto, Yamamura focava uma série de
instrumentos na direção de determinada jaula. Jeri estava ao lado,
e entregava o que ele pedia, ligando e desligando numa pequena
fonte de alimentação. Van Rijn apareceu à vista e perguntou:
— Mas o que há aqui?
O engenheiro-chefe voltou o rosto moreno na direção de Van
Rijn.
— O resto da tripulação está examinando a nave em detalhe,
senhor, e eu vou me juntar a eles assim que conseguir treinar a
Cidadã Kofoed nessa tarefa específica. Ela pode dar conta da rotina
enquanto o resto de nós usa nossas capacidades especiais para...
As palavras fugiram-lhe. Yamamura resmungou, pesaroso:
— ... para fuçar e fustigar coisas que não temos possibilidade
de compreender em menos de um mês de trabalho, com nossas
limitadas ferramentas de pesquisa.
Van Rijn interveio:
— Um mês nós não temos. Você está verificando as condições
dentro de cada jaula, isoladamente?
— Estou sim, senhor. Elas contêm medições, é claro, mas
não sabemos lê-las. Portanto, temos que traçar nossas próprias
medidas. Eu amarrei essas coisas para avaliar o valor aproximado
da gravidade, da pressão e composição atmosféricas, da tempera-
tura, do espectro de iluminação, e assim por diante. É um trabalho
lento, principalmente por causa da aritmética necessária a conver-
ter a leitura do medidor em tais informações. Por sorte, não temos
que testar cubículo por cubículo, e nem mesmo a maioria deles.
— Claro — exclamou Van Rijn. — Mesmo para um organiza-
dor sindical, é óbvio que esta nave não foi feita por peixes ou pássa-
ros. Para fazê-la, algum tipo de mão deve ter sido necessário!
— Ou tentáculos!
Com a cabeça, Yamamura apontou para o compartimento
em frente. Lá dentro, uma luz vermelha, tênue. Diversas criatu-
ras negras, afobadas, andavam de um lado para outro. Dos corpos
quadrúpedes, de membros atarracados, saíam torsos à maneira
dos centauros, que culminavam em cabeças encarapaçadas com
um certo material ósseo. Abaixo das cabeças, sem rosto, viam-se
seis braços grossos e fibrosos, dispostos em grupos de três, e dois
deles culminavam em três dedos sem articulações ósseas, embora
provavelmente fortes.
27
— Desconfio que sejam nossos amigos assustadiços — co-
mentou Yamamura. Se for verdade, vamos perder o dobro do tempo
com eles. Respiram hidrogênio a alta pressão e a gravidade tripla, a
uma temperatura de setenta graus abaixo de zero.
Torrance perguntou:
— Eles são os únicos que gostam desse tipo de clima? Yama-
mura lançou-lhe um olhar penetrante.
— Já sei aonde quer chegar, Capitão. Não, não são não. En-
quanto eu montava e testava o equipamento, encontrei três outros
cubículos com condições similares, e neles os animais são apenas
animais, cobras e outros, que jamais poderiam ter construído esta
nave.
Tímida, Jeri aparteou:
— Quer dizer, então, que esses cavalos-polvos não podem
ser a tripulação, não é mesmo? Quer dizer, se a tripulação está à
cata de animais de outros planetas, certamente não vai carregar, a
bordo, animais domésticos.
— Por que não? — observou Van Rijn. — Nós temos um gato
e um par de papagaios a bordo da Hebe G.B., nie? Além disso, exis-
tem muitos planetas com condições bem semelhantes, do tipo hi-
drogenado. A Terra e Freia, por exemplo, são planetas oxigenados,
e são muito semelhantes. Portanto, isso não prova nada.
Qual um globo em rotação, Van Rijn virou-se para Yamamu-
ra.
— Mas, veja. Se a tripulação de fato esvaziou todo o ar da
nave antes de entrarmos, por que não vamos verificar os tanques
de reserva? Se encontrarmos ar armazenado, do tipo que esses em-
bromadores aqui estão respirando...
— Eu já pensei nisso — retrucou Yamamura. — De fato, foi a
primeira coisa que pedi que meus homens procurassem. E eles não
encontraram nada. E nem acho que encontrarão. O que encontra-
ram, isso sim, foi um fole catalítico, ajustável, de muitas dobras.
Ao menos parece um fole, embora precisemos de muitos dias para
nos certificarmos. Minha suposição é de que esse fole serve para
renovar o ar expelido e agir como químiossintetizador para repor
as perdas, usando, como carga, compostos inorgânicos simples.
Antes de entrarmos, provavelmente, a tripulação sangrou todo o
ar da nave, lançou-o no espaço. Assim que sairmos, se sairmos,
vão abrir a porta da jaula em que estão, apenas um pouquinho, e
vão deixar o ar escoar pouco a pouco. O ajuste ambiental irá, au-
tomaticamente, forçar o químiossintetizador a repor o ar. Em dado

28
instante, a nave já conterá ar suficiente, do tipo de que precisam,
e eles poderão aventurar-se a sair e ajustar as coisas com maior
precisão...
Yamamura estremeceu.
— ... Isto é, se é que terão que ajustá-las! Talvez as condições
terrestres os satisfaçam plenamente.
Torrance concordou:
— É possível. Por que não damos mais uma olhada por aí
para selecionarmos as espécies que apresentem possibilidade de
inteligência?
Pesado, Van Rijn girou e acompanhou Torrance. Resmun-
gou:
— Que tipo de inteligência podem ter esses cuspidos? E por
que levar avante essa idiotice?
Seco, Torrance respondeu:
— Não foi idiotice termos trabalhado até agora. Estamos sen-
do conduzidos numa nave que não sabemos como parar. Eles de-
vem estar esperando que desistamos, ou partamos, ou então que
nos mantenhamos fora do curso até que a nave entre em sua região
natal. Nessa ocasião, é bem provável que uma astronave oficial —
ou o que quer que possuam — nos detenha, se aproxime de nós e
nos aborde para verificar o que está acontecendo.
Diante de um compartimento, Torrance fez uma pausa.
— Isso me faz pensar...
Lá dentro, o quadrúpede era do tamanho de um elefante, em-
bora com uma compleição um pouco mais delgada, o que indicava
gravidade menor que a da Terra. A pele era verde, levemente esca-
mada. Uma franja de pêlos escorria pelas costas abaixo. Os olhos
com que espiava para fora eram vigilantes e enigmáticos. A tromba,
parecida com a de um elefante, terminava num anel de pseudo-
dáctilos, fortes e sensíveis, talvez, como os dedos humanos.
Torrance falou, pensativo:
— O que poderia conseguir uma raça de um braço só? Talvez
o mesmo que nós, e talvez com a mesma facilidade. A simples força
compensaria. Essa tromba é bem capaz de envergar uma barra de
ferro.
Van Rijn rosnou, passou por um cubículo de ungulados plu-
mosos. Em frente ao cubículo seguinte, parou.
— Ah, essas feras aqui devem nos servir. Já tivemos uma
dessas lá na Terra, um dia. Como é mesmo o nome? Quintila? Go-
rila? Não, melhor chamar de chimpanzé do tamanho de um gorila.
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Torrance sentiu o coração vibrar. Duas seções contíguas abri-
gavam, cada uma, quatro animais, de um tipo que parecia bastante
promissor. Eram bípedes, de pernas curtas e braços longos. Com
dois metros de altura, e com um raio de alcance de três metros nos
braços, qualquer um deles sozinho conseguiria operar a mesa de
controle. Os pulsos, grossos, com coxas humanas, terminavam em
mãos proporcionais, de quatro dedos, incluindo um polegar ver-
dadeiro. Os pés de três dedos eram, como os pés humanos, des-
tinados ao caminhar. Os corpos eram cobertos de uma penugem
marrom. A cabeça era relativamente pequena; afílava-se até quase
formar um ponto. Por sob as sobrancelhas espessas, olhos grandes
e redondos emergiam das órbitas cavernosas. Os focinhos eram
massudos. Andavam sem rumo, de um lado para outro, e Torran-
ce percebeu que se dividiam em machos e fêmeas. Em cada lado
do pescoço, distinguiam-se dois lúmens, fechados por esfíncteres.
Envolvia-os a conhecida luz branco-amarelada das estrelas do tipo
Sol.
Torrance forçou-se a comentar:
— Não sei. Estas mandíbulas imensas devem exigir músculos
maxilares à altura, que se liguem a uma borda no topo do crânio, e
isto restringiria a capacidade craniana.
— Mas, e se tiverem os cérebros na barriga? — sugeriu Van
Rijn.
— Bem, algumas pessoas têm mesmo — murmurou Torran-
ce, e como o mercador silenciasse, acrescentou logo: — Não. Na
verdade, senhor, isto é muito difícil de acreditar. As trilhas nervo-
sas teriam que ser muito compridas, e tudo o mais. Os animais que
conheço, que possuem algum tipo de sistema nervoso central, têm
o cérebro junto aos órgãos sensitivos principais, em geral localiza-
dos na cabeça. Posso assegurar que o fato de estas criaturas terem
o cérebro relativamente pequeno, dentro de certos limites, não sig-
nifica que não sejam inteligentes. Seus neurônios podem ser muito
mais eficientes que os nossos.
— Valham-me meus bolos confeitádos! — exclamou Van Rijn.
— Suposições e suposições!
E, prosseguindo por entre outras formas estranhas.
— E tampouco podemos nos guiar pela atmosfera, ou pela
luz. Se a tripulação está se escondendo, pode fazer variar em muito
as condições normais, sem se prejudicar. E a gravidade também,
em vinte ou trinta por cento.
— Eu só espero que respirem oxigênio. Epa...

30
Torrance parou. Um instante depois, percebeu o que havia
de tão estranho naquelas tantas formas iluminadas pelo brilho ala-
ranjado. Possuíam carapaças quitinosas, pouco maiores que capa-
cetes militares, e mais ou menos da mesma forma. Quatro pernas
atarracadas projetavam-se sob o ventre: caminhavam desajeitados,
apoiados em pés providos de garras. E mais um par de tentáculos
curtos terminando num tufo de cílios. Não havia nada de especial
neles, como costuma ocorrer com os animais extraterrestres, ex-
ceto os dois olhos que fitavam fixos por baixo dos capacetes: tão
grandes e, de certo modo, tão humanos como... bem... os olhos de
um polvo.
— Tartarugas! — bufou Van Rijn. — No máximo, tatus!
— Creio que não há mal nenhum em deixar Jer. .. a Srta.
Kofoed verificar o ambiente deles também — disse Torrance.
— Perda de tempo!
— O que será que comem? Não vejo boca nenhuma.
— Aqueles tentáculos parecem capilares de sucção. Aposto
que são parasitas, ou sanguessugas superdesenvolvidas, ou algo
semelhante a um dos meus concorrentes. Venha.
— O que faremos depois de estabelecermos quais as espécies
que apresentam possibilidades de ser a tripulação? Tentar nos co-
municar com cada uma delas?
— Isso seria inútil. Eles estão se escondendo porque não que-
rem se comunicar. A menos que possamos provar a eles que não
pertencemos à Patrulha-Cobra. Mas, agora, difícil prever.
— Um momento! Afinal, por que iriam se esconder se já tives-
sem tido contato com os bandidos da Patrulha? Não iria adiantar
nada.
— Com os diabos! Vou explicar porquê. Vamos escolher um
nome para eles. Chamemos de Eksers a esta raça desconhecida.
Muito bem. Os Eksers estão viajando pelo espaço já há algum tem-
po, mas o espaço é tão grande que jamais se haviam deparado com
humanos. E, então, surge a nação da Patrulha-Cobra, neste setor
até então inatingido por seres humanos. Os Eksers tomam conhe-
cimento de que uma espécie sinistra acaba de adentrar o espaço.
E pousam nos planetas primitivos saqueados pela Patrulha-Cobra,
conversam com os nativos e instalam, talvez, câmaras automáti-
cas nos locais onde julguem que novas invasões ocorrerão. Talvez
espionem, de longe, os acampamentos da Patrulha, ou capturem
uma nave solitária desses piratas. E assim sabem qual o aspecto
dos humanos, e apenas isso; e não querem que os humanos sai-
31
bam a respeito deles, e evitam contato. Não querem confusão. Não
antes, pelo menos, de estar preparados para a guerra. Pelo inferno
escaldante! Nós temos que deixar patente a nossa boa fé para com
essa tripulação, para que ela nos leve a Freia e diga a seus líderes
que os seres humanos não são todos tão maus como os salteadores
da Patrulha! Caso contrário, um dia vamos acordar com alguns
planetas sendo atacados pelos Eksers, e antes que a batalha ter-
mine, já teremos desperdiçado bilhões de créditos.
Como um touro ferido, Van Rijn brandiu os punhos no ar e
berrou:
— E nosso dever é evitar que isto aconteça!
Ríspido, Torrance retrucou:
— Eu diria que nosso primeiro dever é chegarmos em casa
vivos. Eu tenho esposa e filhos.
— Então é melhor parar de lançar esses olhares derretidos
para Jeri Kofoed. Eu a vi primeiro.
A investigação produziu uma nova possibilidade. Quatro or-
ganismos, do tamanho de um homem, e com a compleição de lagar-
tos de pernas grossas, viviam sob uma luz esverdeada. Os corpos
eram azuis-escuros, salpicados de prata. O torso, semelhante ao
dos centauróides tentaculares, embora mais robustos, apresentava
dois braços verdadeiros. As mãos careciam de polegares, mas os
seis dedos dispostos em três quartos de círculo seriam capazes de
realizar as mesmas coisas. Isso não queria dizer que mãos adequa-
das constituíssem prova de inteligência superior; na Terra, os sí-
mios e certo número de répteis e anfíbios possuem mãos eficientes,
ainda que as do Homem sejam mais aptas, e os ancestrais simies-
cos do Homo sapiens tinham mãos tão boas como as nossas hoje
em dia. Entretanto, as cabeças desses seres, de rostos achatados
e arredondados, os olhos grandes e claros por trás de antenas em-
plumadas, de função obscura, as pequenas mandíbulas e os lábios
delicados, tudo parecia promissor.
Promissor de quê?, pensou Torrance.
Três dias terrenos depois, Torrance desceria, apressado, ao
corredor central, rumo à sala das máquinas dos Eksers.
A passagem consistia de um grande hemicilindro, revestido
com o mesmo plástico borrachoso e cinzento das jaulas; os passos,
portanto, eram silenciosos, e as palavras, quando pronunciadas,
não produziam, estranhamente, ressonância. Mas uma vibração
mais profunda a atravessava, o zumbido quase subliminar do hi-
permotor, que conduzia a nave dentro da escuridão, rumo a uma

32
estrela desconhecida, e anunciava sua presença a qualquer ca-
çador que vagasse num raio de um ano-luz dali. As luminárias
instaladas pelos humanos estavam distantes umas das outras, e
assim, quem passasse por ali, via tiras de sombras. Recintos sem
portas escancaravam-se para o corredor. Alguns, ainda repletos de
suprimento, e por mais peculiares que fossem as formas das ferra-
mentas e das embalagens, eram uma reafirmação de que ali ainda
se vivia, de que ainda não se era uma alma a bordo do Fantasma-
Voador. Entretanto, a nudez de certas cabines, antes habitadas,
fez arrepiar a pele de Torrance.
Em canto algum, havia vestígios pessoais. Restavam livros,
em folhas e microfilmes, de impressão primorosa, com a simbolo-
gia do planeta alienígena. Nas prateleiras, os lugares vazios faziam
adivinhar que os volumes ilustrados haviam sido sacrificados.
Claro, era possível perceber, nas paredes, que os locais onde se
penduravam quadros estavam danificados. Nas grandes cabines
particulares, e na maior delas, que bem poderia ter sido o com-
partimento-salão, na sala de máquinas, na oficina e na ponte, só
tinham sido deixadas as estacas onde se aparafusavam os móveis.
Nichos compridos, baixos, e cochichós, haviam sido construídos na
antepara da cabine. Mas como saber onde teria sido o dormitório
quando todo revestimento fora atirado numa caldeira branca, de
tão quente? Se é que havia dormitório! As roupas, os ornamentos,
os utensílios culinários, os talheres ou coisas do gênero, todos des-
truídos. Um dos recintos talvez tivesse sido um lavatório, embora
todas as instalações tivessem sido arrancadas. E um outro talvez
houvesse sido utilizado para estudos científicos, presumivelmente
de animais capturados. Tão desmantelado estava, no entanto, que
seria impossível a qualquer humano afirmá-lo.
“Por Deus, temos mesmo que admirá-los,” pensou Torrance.
Capturados por seres que, com toda razão, podem bem considerar
monstros sem consciência, os alienígenas preferiram não optar pela
solução mais fácil, a explosão atômica que viria aniquilar as duas
tripulações. Talvez a tivessem adotado, não fosse a possibilidade de
esta nave ser um parque zoológico. Mas mantiveram a esperança
de sobreviver, e agarraram-na com uma ousadia imaginativa só ao
alcance de poucos humanos. E agora ali permaneciam, à vista de
todos, à espera de que os monstros partissem — sem destruir a
nave por mera malevolência — ou de que uma nave de combate, de
sua própria gente, viesse socorrê-los. Não tinham meios de saber
que seus captores não eram da Patrulha-Cobra, e nem tampouco
33
de saber se o setor não estaria, em breve, pululando com esqua-
drilhas da patrulha; os bandidos ousavam, embora raras vezes,
aventurar-se a esta proximidade de Valhala. Dentro dos limites da
informação disponível, os alienígenas agiam com lógica absoluta.
Mas, para fazê-lo, só com nervos de aço!
“Eu gostaria de poder identificá-los, e travar amizade com
eles, pensou Torrance. Os Eksers dariam ótimos amigos para a
Terra — ou para Ramanujan, Freia ou toda a Liga para Ciência do
Sol Polar.” E, com um sorriso irônico, enviesado: “Aposto que eles
não são tão fáceis de enganar como pensa o Velho Nick. É mais
provável que eles o enganem. Ah, como eu gostaria que isso acon-
tecesse!”.
“Meus motivos são mais pessoais,” pensou, invadido nova-
mente pelo desânimo. “Se não esclarecermos logo este mal-enten-
dido, nem eles nem nós sobreviveremos. E tem que ser logo. Se
conseguirmos mais uns três ou quatro dias de cortesia, estaremos
com sorte.”
A passagem desembocava num vão, e rampas curvas, em de-
clive, abriam-se para os dois lados; culminavam em duas portas
automáticas. A primeira porta, Torrance sabia, conduzir à sala de
máquinas. Lá dentro, um conversor nuclear alimentava o sistema
elétrico da nave, os cones gravíticos e a hiperpropulsão; os princí-
pios com que isto era feito eram conhecidos de Torrance. As máqui-
nas, porém, eram enigmas acondicionados em metal e em símbolos
desconhecidos. Torrance abriu a outra porta, entrou na oficina.
Conseguia identificar boa parte do equipamento, embora distorcido
diante de seus olhos: um torno, uma prensa de brocar, um oscilos-
cópio e um aparelho de cristal para provas. Outras coisas, muitas,
eram um mistério. Yamamura ali estava sentado à bancada impro-
visada, montando uma peça de equipamento eletrônico. Diversos
outros aparelhos, presos em painéis de papelão, encontravam-se
próximos. O rosto de Yamamura parecia conturbado, e suas mãos
tremiam. Estivera todo esse tempo à base de estimulantes que o
mantinham acordado.
No momento em que Torrance se aproximou, o engenheiro
conversava com Betancourt, o encarregado das comunicações.
Toda a tripulação da Hebe G.B. encontrava-se sob a direção de Ya-
mamura, numa tentativa frenética de flanquear os Eksers através
do aprendizado autodidático, do modo de operar a nave.
Betancourt dizia:
— Consegui identificar a disposição elétrica básica, senhor.

34
Eles não acionam o conversor diretamente, como nós fazemos. Isto
é tão evidente quanto o fato de não terem desenvolvido nossos mé-
todos de redução. Em vez disso, usam um cambiador de calor para
movimentar um gerador imenso... é, aquilo que o senhor pensou
que fosse um dínamo do tipo induzido... onde geram a corrente al-
ternada para a nave. Quando há necessidade de corrente contínua,
a corrente alternada atravessa uma série de placas retificadoras
e, pelo que pude ver, tenho certeza de que são de óxido de cobre.
Estão descobertas, atrás de uma tela de segurança; mas estão tão
aquecidas, devido à quantidade de energia que as atravessa, que
seria difícil olhá-las de perto. Para mim, tudo isso parece meio pri-
mitivo.
Yamamura suspirou:
— Ou, quem sabe, apenas diferente. Nós usamos um conver-
sor à base de fusão de elementos leves, que apresenta a vantagem,
dentre outras, de propagar diretamente a corrente elétrica. É pos-
sível que eles tenham aperfeiçoado um tipo de usina elétrica que
utilize elementos moderadamente pesados, com pequenas frações
positivas de alimentação. Lembro-me de que isto já foi tentado na
Terra, há muito tempo, e que foi considerado impraticável. Mas
pode ser que os Eksers sejam melhores engenheiros que nós. Este
tipo de sistema apresentaria a vantagem de menor necessidade de
refinamento de combustível — o que seria uma vantagem real para
uma nave que se encontra aos tropeções em meio a planetas inex-
plorados. E isto, por si só, serviria para justificar a ingenuidade do
cambiador de calor e do sistema de retificação. Mas, na verdade,
não sabemos.
Yamamura soldava os fios e fitava-os, sacudindo a cabeça.
— Nós não sabemos droga nenhuma!
E, ao ver Torrance:
— Bem, prossiga, Cidadão Betancourt. E lembre-se, festina
lente.
— Por medo de destruir a nave? — perguntou o Capitão.
Yamamura confirmou com a cabeça:
— Os Eksers saberiam que uma nave como a nossa, peque-
na, não conseguiria gerar um campo de hiperforça capaz de rebo-
car-lhes a nave para o planeta de onde vieram. E assim resolveram
assegurar-se de que sua tripulação não seria aprisionada para re-
alizar o trabalho para nós. Se não as manusearmos com cuidado,
estas coisas poderão destruir-se como um brinquedinho de crian-
ça; e aí, como conseguiremos consertá-las? Portanto, procedemos
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com a mais absoluta cautela, com tanta cautela que não temos a
menor esperança de desvendar os controles antes que a Patrulha-
Cobra nos descubra.
— E é uma boa maneira de manter a tripulação ocupada.
— O que, por sinal, é muito bom. Ha! Ha! Bem, senhor, eu já
consegui montar quase todo o aparato básico. Segundo os testes,
tudo parece em ordem. Agora, gostaria que o senhor me dissesse
que animal o senhor prefere investigar primeiro.
Diante da hesitação de Torrance, o engenheiro explicou:
— Terei que adaptar o equipamento para a criatura em ques-
tão, principalmente se a criatura respirar hidrogênio.
Torrance balançou a cabeça.
— Oxigênio. Na verdade, as condições em que vivem são tão
semelhantes às nossas que podemos entrar nas aulas com facili-
dade. Os gorilóides. Foi assim que Jeri e eu os chamamos. Aqueles
bípedes peludos, de dois metros de altura, com cara de macaco.
Yamamura fez, ele próprio, uma careta de macaco.
— Esses brutamontes terão tanta força assim? Chegaram a
mostrar algum sinal de inteligência?
— Não. Mas você espera que os Eksers dêem qualquer sinal
que os identifique? Jeri Kofoede e eu andamos desfilando diante
de todas as espécies, pela frente das jaulas, fazendo sinais, tiran-
do fotografias, tudo o que conseguimos imaginar, na tentativa de
transmitir a mensagem de que não somos da Patrulha-Cobra, e
que o artigo genuíno está em nosso encalço. Não tivemos sorte, é
claro. Todos os animais nos lançaram um olhar interessado, com
exceção dos gorilóides... o que, talvez, venha ou não a provar algu-
ma coisa.
— Mas que animais foram esses? Eu estou tão ocupado
que...
— Bem, podemos chamá-los os macacos-tigres, os centauros
tentaculares, o elefantóide, os bichos de capacete e os lagartos-su-
ínos. Mas isso seria ampliar demais as coisas, sei disso; os maca-
cos-tigres e os bichos de capacete, são muito improváveis, no míni-
mo, e o elefantóide também não é nada convincente. Os gorilóides
possuem o tamanho ideal, e mãos de aspecto mais eficiente, além
de respirarem oxigênio, como já disse. Assim, devemos começar
com eles. O próximo, por ordem de similitude, suponho, são os la-
gartos-suínos e os centauros tentaculares. Mas os lagartos-suínos,
embora respirem oxigênio, vêm de um planeta de alta gravidade; a
pressão do ar nos deixaria imediatamente narcotizados. Os centau-

36
ros tentaculares respiram hidrogênio. Nos dois casos, teremos que
trabalhar com o escafandro espacial.
— Ora, os gorilas já vão nos dar enorme trabalho, muito obri-
gado!
Torrance olhou a bancada.
— Quais são exatamente seus planos? Estou tão ocupado
com a minha parte do trabalho que não consegui saber nada a
respeito da sua.
— Adaptei algumas peças com o estojo médico. Uma espécie
de oftalmoscópio, por exemplo. Afinal, os instrumentos da nave
usam códigos de cor e símbolos de primorosa impressão. Portanto,
é provável que os olhos dos Eksers sejam, no mínimo, tão bons
quanto os nossos. E isso aqui é um traçador de impulsos nervosos.
Detecta os fluxos sinápticos e joga a imagem tridimensional numa
caixa de cristal de corte Y, para podermos observar o funcionamen-
to de todo o sistema nervoso como um conjunto de traços lumino-
sos, que, correlacionado com a anatomia bruta permite identificar,
a grosso modo, os sistemas simpáticos e parassimpáticos, ou seus
equivalentes, espero. E o cérebro. E mais importante ainda, o grau
de atividade do cérebro, mais ou menos independente dos outros
centros nervosos. Isto é, caso o animal pense. — Yamamura enco-
lheu os ombros. — Comigo funciona. Agora, se vai funcionar num
não-humano, e principalmente num tipo diverso de atmosfera, não
sei. Mas tenho certeza de que vai nos deixar intrigados. Torrance
deitou uma citação:
— “Tudo o que podemos fazer é tentar”.
Com uma voz impaciente, Yamamura observou:
— E o velho Nick? Continua sentado, pensando? Já faz muito
tempo que não o vejo.
— Ele não tem ajudado a mim e a Jeri também. Disse-nos
que nossa tentativa de comunicação seria fútil a menos que con-
seguíssemos provar aos Eksers que sabíamos quem eles eram. E,
mesmo depois disso, segundo ele, a única comunicação inicial de-
veria estabelecer-se através de gestos feitos com uma pistola.
— Talvez ele tenha razão.
— Não, não tem não. Em termos lógicos, talvez. Mas, em ter-
mos psicológicos, não; nem morais. Ele fica lá, na suíte, com aque-
la caixa de brandy e a caixa de charutos. O cozinheiro, que muito
bem poderia estar aqui ajudando você, é mantido a bordo da nave
apenas para preparar-lhe as malditas refeições gastronômicas. Dá
para pensar que ele nem ligaria se nos visse explodir nos céus!
37
Torrance lembrou-se do juramento de fidelidade, da posição
oficial que ocupava, e tudo o mais. Agora, ali, no limiar da morte,
pareciam não fazer muito sentido. Mas o hábito é coisa muito forte.
Engoliu, e amargurou:
— Desculpe-me. Por favor, esqueça o que eu disse. Quando
estiver pronto, Cidadão Yamamura, vamos testar os gorilóides.

Jeri, juntamente com seis homens, permaneceu de pé, na


passagem, com os lança-raios apontados. Era esperença de Tor-
rance, fervorosa, que não tivessem que atirar. E, mais ainda: que,
se tivessem que fazê-lo, ele próprio pudesse escapar vivo.
Fez um gesto para os quatro tripulantes às suas costas.
— Muito bem, rapazes!
E umedeceu os lábios. O coração disparou. É muito bom ser
capitão, ser comandante, mas, num momento como esse, a gente é
obrigado a devolver todos os privilégios especiais.
Torrance girou a roda de controle externa. O motor da câma-
ra de descompressão zuniu, abriu as portas. Ele as atravessou e
entrou na jaula dos gorilóides.
Embora as diferenças de pressão não merecessem preocupa-
ção, entrar num campo com dez por cento a menos que a Terra, de-
pois de todo esse tempo a um quarto de G, foi como uma pancada.
Torrance cambaleou, quase caiu, e engoliu um ar quente, grosso,
repleto de gases malcheirosos, inomináveis. Apoiou-se de costas
contra a parede, e olhou, do outro lado, para os quatro bípedes.
Os corpos marrons, lanudos, agigantaram-se, absurdamente altos,
muito altos, até o topo das cabeças grosseiras. Olhos quase ocultos
por sobrancelhas espessas o fitavam. Torrance levou a mão à pisto-
la de estontear, embora ele, também, não desejasse dispará-la. Não
era preciso dizer que as ondas ultra-sônicas são capazes de causar
ao sistema nervoso de um não-humano; e se esses que ali estavam,
fossem na verdade a tripulação, feri-los seria a pior coisa a acon-
tecer. Mas Torrance não estava acostumado a sentir-se pequeno e
frágil. Aquela coronha nodosa era, de fato, reconfortante.
Um macho rosnou, do fundo do tórax e deu um passo à fren-
te. A cabeça pontuda projetou-se, os esfíncteres no pescoço abri-
ram-se e fecharam-se como embocaduras de sucção; as mandíbu-
las escancararam-se e exibiram dentes brancos.
Torrance recuou até o canto, e anunciou em voz baixa:
— Vou tentar separar esse dos demais. Então, peguem-no.
— Eeee ...

38
Um ajudante espacial, um nômade de Altai, robusto, de olhos
puxados, desenrolou um laço.. Atrás dele, os outros três estende-
ram uma rede confeccionada para esse fim.
O gorilóide fez uma pausa. Uma fêmea soltou um pio agudo.
Dela, o macho pareceu extrair resolução. Acenou para os demais
com um gesto estranho, quase humano e, sorrateiramente, aproxi-
mou-se de Torrance.
O Capitão sacou a pistola, apontou-a, trêmulo. Depois, reco-
locou-a no coldre, estendeu a duas mãos, e berrou:
— Amigo...
A esperança de que toda aquela encenação ruísse por terra
tornou-se, de repente, ridícula. Torrance deu um salto para trás,
na direção da câmara de ar. O gorilóide rosnou e tentou agarrá-lo.
Torrance não foi suficientemente rápido. A pata rasgou-lhe o blu-
são e deixou-lhe no peito um fio de sangue. Torrance caiu de joe-
lhos, apoiou-se nas mãos, varado de dor. O laço do altaiano, girou,
cortou o ar. Laçado nos tornozelos, o gorilóide desmoronou. O peso
fez estremecer o cubículo.
— Peguem-no! Cuidado com as patas! Aqui...
Aos tropeços, Torrance pôs-se novamente de pé. Para além
da refrega, em que os quatro homens tentavam amarrar, na rede,
aquele monstro que urrava, se debatia, viu as outras três criaturas.
Espremidas no canto oposto, uivavam num tom baixo. O compar-
timento parecia o interior de um tambor.
A voz de Torrance saiu embargada:
— Tragam-no para fora, antes que os outros ataquem!
E apontou a pistola, mais uma vez. Se fossem inteligentes,
saberiam que era uma arma. Mesmo sendo, talvez atacassem...
Com habilidade, o homem de Altai amarrou uma das patas, e pas-
sou um laço naquele torso colossal. Apertou com um nó corrediço.
A rede entrou em posição. Imobilizado pelas cordas de fibra fortes
como aço, o gorilóide foi arrastado até a entrada. Um outro macho
avançou, passo a passo. Torrance fincou pé. O ulular dos animais
e a gritaria humana envolveram-no, penetraram-no. A ferida la-
tejava. E ele percebeu, com toda clareza, aquela focinheira cheia
de dentes, que bem poderia arrancar-lhe a cabeça, aqueles olhos
pequenos, foscos, agora vermelhos de fúria, aquelas mãos, tão pa-
recidas com as suas, não fossem a pele preta, os quatro dedos, e o
tamanho enorme .. .
— Já terminamos, Capitão.
O gorilóide investiu. Atabalhoado. Torrance atravessou a câ-
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mara de descompressão. O gorilóide o seguiu. Torrance firmou-se
no corredor, e apontou a pistola. O gorilóide parou, estremeceu,
olhou em volta com um quê de espantado, e recuou. Torrance fe-
chou a câmara.
E então, sentou-se, e estremeceu.
Jeri debruçou-se sobre ele, ofegante:
— Você está bem? Oh! Você está ferido!
— Ora, não foi nada. Me dê um cigarro.
Jeri apanhou um cigarro no bolso do cinto, e disse, com a
rispidez que Torrance tanto admirava:
— Só um hematoma, e um arranhão profundo. Mas é melhor
irmos verificar, de qualquer modo, e esterilizar. Pode infeccionar.
Torrance concordou com a cabeça, mas permaneceu senta-
do, até terminar o cigarro. Um pouco mais adiante, no corredor,
os homens de Yamamura mantinham a presa trancafiada numa
armação de aço. Ileso mas inerme, o brutamontes gania e tentava
morder o engenheiro, que se aproximava com o equipamento. Co-
locá-lo de volta no cubículo, depois, seria provavelmente tão difícil
quanto o fora retirá-lo.
Torrance levantou-se. Pela parede transparente, viu um gori-
lóide fêmea rasgar, furiosa, em tiras, um pedaço de alguma coisa.
E percebeu que perdera o turbante no momento em que fora der-
rubado. Suspirou:
— Bem, nada mais a fazer até que Yamamura nos dê seu ve-
redicto. Vamos, vamos descansar um pouco.
Jeri foi firme:
— Primeiro, a enfermaria.
E tomou-o pelo braço. Dirigiram-se ao vão da entrada, atra-
vessaram o tubo e alcançaram a Hebe G.B. Quase nada foi dito
enquanto Jeri retirava o blusáo de Torrance, limpava, com desin-
fetante universal, a ferida que ardia demais, e fazia os curativos.
Depois, Torrance sugeriu um aperitivo.
Foram para o salão. Para surpresa dos dois, e para desprazer
de Torrance, Van Rijn estava lá, sentado à mesa de mogno, em-
butida, com uma blusa manchada de tabaco e o habitual sarão.
Numa das mãos, uma garrafa, na outra, um charuto. Papéis joga-
dos espalhavam-se ao redor.
Van Rijn ergueu os olhos.
— Até que enfim! O que houve?
— Estão testando um gorilóide.
Torrance deixou-se cair numa poltrona. Como o comissário

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de bordo fora recrutado para a equipe de captura, Jeri foi buscar os
aperitivos. Sua voz deixou um rastro flutuante, desafiador.
— O Capitão Torrance quase morreu na operação. Por que
você ao menos não foi dar uma espiada, Nick?
O mercador escarneceu:
— Que utilidade teria? Ficar olhando, como turista, com
olhos de hadoque? Não vamos transformar a coisa numa história
de terror. Eu já estou muito velho, muito gordo, para caçar ma-
cacos tamanho-família. E nem sou tão técnico a ponto de poder
ajudar Yamamura a girar botões.
Van Rijn tirou uma baforada do charuto. E, complacente:
— Além disso, essa não é minha função. Não sou nenhum
especialista, não tenho diplomas requintados, de universidades,
aprendi na escola dos que dão duro. E o que aprendi foi a mandar
outros fazer as coisas para mim, e a transformar o que fazem em
coisas lucrativas.
Torrance expirou, devagar e longamente. Relaxada a tensão,
começava a sentir-se terrivelmente cansado. Perguntou:
— Que é que o senhor está examinando?
— Os relatórios dos engenheiros sobre a nave Ekser. Eu disse
a todos que fizessem anotações completas sobre tudo o que ob-
servarem. Em algum lugar, nestas notas, talvez esteja a pista que
possamos utilizar. Isto se os gorilóides não forem os Eksers. Os
gorilóides são uma possibilidade, e a única maneira que vejo para
eliminá-los é através das verificações de Yamamura.
Torrance esfregou os olhos.
— Os gorilóides não são tão plausíveis assim. Boa parte do
que encontramos parece ter sido projetada para mãos grandes. Al-
gumas ferramentas, porém, são tão pequenas... Bem, na verdade,
qualquer não-humano ficaria também muito intrigado com o nosso
instrumental. Faria sentido, por exemplo, uma mesma raça usar,
ao mesmo tempo, marretas e pontas-secas?
Jeri trouxe duas doses fortes de uísque com soda. O olhar
de Torrance a acompanhou. Naquela blusa apertada, naquela saia
à altura do joelho, bem merecia ser acompanhada. Jeri sentou-se
junto a ele, e não junto a Van Rijn. Os olhos de Van Rijn, de azevi-
che, contraíram-se.
Contudo, o mercador falou com delicadeza:
— Eu gostaria que você me relacionasse, agora, aqui, as ou-
tras possibilidades, e os motivos que você tem para considerá-las.
Eu também já pensei em algumas, é natural, mas minhas idéias
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não estão ainda muito claras e, talvez, algo que tenha ocorrido a
você possa iluminá-las.
Torrance assentiu com a cabeça. Melhor mesmo seria con-
versar sobre seu trabalho, embora ele já tivesse quase esgotado o
assunto em conversas com Jeri e Yamamura.
— Bem, os centauros tentaculares parecem bastante prová-
veis. O senhor já os conhece. Eles vivem em luz vermelha, e numa
gravidade superior à metade da gravidade da Terra. O sol tênue e a
temperatura baixa talvez possibilitem a retenção de hidrogênio em
seu planeta natal, pois é exatamente isso que respiram, hidrogê-
nio e argônio. E o senhor já lhes conhece o aspecto: corpos do tipo
rinoceronte, torsos com cabeças recobertas por placas ósseas, e
tentáculos cheios de dedos. Assim como os gorilóides, são grandes
demais para dirigirem esta nave com facilidade. Todos os outros
respiram oxigênio. Os que eu chamo de lagartos-suínos — aqueles
compridos, com muitas pernas, de cor azul-prateada, com mãos
peculiares e rostos de aspecto particularmente inteligente provêm
de um mundo excêntrico. Deve ser grande. Na jaula, estão a uma
pressão de 3 G, que a esta altura dos acontecimentos, já não deve
ser mais um mar de rosas. Se estiverem acostumados a um peso
muito menor, o ajuste do fluido corporal poderá desordenar-se.
Mesmo assim, o planeta de onde vêm possui oxigênio e nitrogênio
— e não hidrogênio - a uma pressão de doze atmosferas terrestres.
A temperatura é muito alta: cinqüenta graus. Creio que o mundo
em que vivem, embora de massa quase jupiteriana, esteja tão pró-
ximo ao sol que todo o hidrogênio já se tenha evaporado, deixando,
nitidamente, um campo de evolução semelhante ao da Terra. O
elefantóide vem de um planeta cuja gravidade é apenas metade da
nossa. É aquela figura enorme, com uma tromba que termina em
dedos. O ar que respira é muito rarefeito para nós, e isto revela que
a gravidade, no cubículo em que estão, também não foi adultera-
da.
Torrance sorveu um gole demorado e continuou:
— Quanto ao resto, todos vivem em condições bastante ter-
restróides; e, por esse motivo, desejaria que fossem os mais pro-
váveis. Na verdade, porém com exceção dos gorilóides, são todos
possibilidades remotas. Os bichos de capacete...
— Que bichos são esses? — interrompeu Van Rijn.
— Você se lembra deles — interveio Jeri. — São aquelas coi-
sas, umas oito ou nove, que parecem tartarugas corcundas, não
muito maiores que sua cabeça. Arrastam-se, de um lado para o ou-

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tro; têm os pés cheios de garras. E os tentáculos, que estão sempre
acenando, terminam em filamentos, por onde comem os alimentos,
aquele caldo grosso que as máquinas jogam na canaleta. E embora
não apresentem nada que se pareça com mãos eficientes — os ten-
táculos seriam capazes de executar apenas coisas muito simples
— resolvemos dedicar um certo tempo a eles, pois parecem possuir
olhos bem desenvolvidos para ser simples parasitas.
— Parasitas não desenvolvem inteligência - observou Van
Rijn. — Possuem meios de vida mais eficazes, caramba. É melhor
certificar-se se esses bichos de capacete são, na verdade, parasitas,
em seu ambiente de origem, e se não estão escondendo as mãos
debaixo daquelas carapaças, antes de cortá-los da lista. E os ou-
tros?
— Há os macacos-tigres — respondeu Torrance. — Rajados
como gatos, são carnívoros, de compleição algo semelhante à de
um urso. Passam quase o tempo todo de quatro, mas, de vez em
quando, levantam-se e caminham com as patas traseiras. E pos-
suem mãos — malconformadas, sem polegares, com garras retrác-
teis — em todos os membros. Quatro mãos sem polegares valem
tanto quanto duas mãos com polegares? Não sei. Estou muito can-
sado para pensar.
— E é só isso, não?
Van Rijn ergueu a garrafa, levou-a aos lábios. Após demora-
do gargarejo, pousou-a, arrotou, e, pelo nariz majestoso, expeliu
fumaça.
— E se não conseguirmos nada com os gorilóides, quem será
o próximo?
— É melhor que sejam os lagartos-suínos — respondeu Jeri
— apesar da pressão do ar. Depois... Bem... os centauros tentacu-
lares, creio. E depois, talvez os. ..
— Tentativas! Tentativas! — O punho de Van Rijn golpeou
a mesa; balançaram os copos e a garrafa. — Quanto tempo vai
demorar para agarrá-los e verificar cada um deles? Horas, nie? E,
nos entretempos, outras tantas horas para ajustar o aparelho e
eliminar todas as falhas surgidas nas novas condições. Yamamura
vai ter um colapso. Ele tem que ir dormir. E que outra pessoa vai
fazer o trabalho dele? Enquanto isso, esses bandidos fedorentos da
Patrulha-Cobra estão se aproximando! Nós não temos tempo para
esse método! Se os gorilóides não vingarem, a única coisa que nos
vai ajudar será a lógica. Temos que deduzir, dos fatos que temos,
quem são os Eksers.
43
Torrance esvaziou o copo.
— Pois vá em frente. Eu vou dormir um pouco. Van Rijn ficou
roxo.
— Está bem — bufou. — Seja como os outros. Folgue, se di-
virta, dance, cante, aproveite o dia. Claro, voce sempre tem o coita-
do do velho Nicholas van Rijn para acumular trabalho e ficar com
toda a preocupação nas costas. Valha-me São Dismas! Por que o
senhor não faz ao menos uma pessoa, em todo esse Universo, que
faça alguma coisa útil.
... Torrance foi acordado por Yamamura. Os gorilóides não
eram os Eksers. Eram insensíveis à cor e incapazes de focar os
instrumentos da nave. Os cérebros eram pequenos, quase toda a
massa era dedicada a funções meramente animais. E sua inteligên-
cia não devia ser superior à de um cachorro.

O Capitão permaneceu na ponte da nave, pois conhecia o lu-


gar. Procurava acostumar-se ao fato de ser um condenado.
O espaço estava maravilhoso. Jamais o vira assim antes. Em-
bora Torrance não estivesse familiarizado com as constelações lo-
cais, o olhar treinado identificou Perseu, Auriga, Touro, sem muita
distorção, pois estavam situadas na direção da Terra. (E de Ra-
manujan, onde torres douradas emergem, por entre as brumas,
para o primeiro banho de sol, brilhando vivamente contra o azul
do Monte Gandhi). Umas poucas estrelas isoladas também podiam
ser identificadas: a rubicunda Betelgeuse, a ambarina Spica, es-
trelas-guia pelas quais navegara em toda a sua vida de trabalho.
No plano geral, o céu fervilhava de fagulhinhas congeladas, contra
a escuridão sem nuvens e sem fim. A Via-láctea era uma fria faixa
prateada; além, uma nebulosa brilhava, tênue e verde; e uma outra
galáxia girava, em espiral, no limiar misterioso da visibilidade. Nos
planetas em que estivera, mesmo em seu próprio planeta, pensava
menos do que nesta viagem que agora fazia entre eles, e que estava
prestes a terminar. Pois ela terminaria, numa explosão de violência
tão rápida que mal seria sentida. Melhor sair disto limpo, quan-
do chegassem os homens da Patrulha-Cobra, do que agonizar em
suas masmorras.
Torrance amassou o cigarro. Ao retornar, a mão acariciou as
formas dos controles, tão estimadas. Conhecia cada interruptor,
cada botão, tão bem quanto os próprios dedos. Esta nave era sua
e, de certo modo, era ele próprio. Não era como a outra, cujo painel
de controle, insensível, necessitava de um gigante e de um anão,

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cujo botão de emergência cairia com um simples toque caso não
estivesse no gancho apropriado, cujo...
Um passo leve fê-lo virar-se. De modo irracional, tão esgotado
se sentia, o coração disparou dentro do peito. Quando viu que era
Jeri, relaxou os músculos, mas a pulsação continuou rápida, no
sangue.
Devagar, Jeri aproximou-se. A luz do teto, refletia naqueles
cabelos louros e no azul daqueles olhos. Mas Jeri evitou o olhar de
Torrance, com os lábios não muito firmes.
— O que a traz aqui?
O tom veio mais suave do que Torrance pretendera.
— Ora, o mesmo que você.
Jeri contemplou o visor. Durante todo o tempo, desde que
haviam capturado a nave alienígena, ou esta a eles, uma estrela
vermelha, na direção da curvatura da vigia, crescera visivelmente.
E agora ardia, funesta, a um ano-luz de distância, Jeri fez uma
careta e voltou as costas para a estrela.
— Yamamura está reajustando o aparelho dos testes. — dis-
se, numa voz sumida. — Não há ninguém aqui que saiba o su-
ficiente para ajudá-lo, e ele já está tão exausto que não pára de
tremer, e mal consegue fazer o trabalho. E o velho Nick fica lá,
sentado naquela suíte, fumando e bebendo. Até já acabou aquela
garrafa, e começou outra. Eu não conseguia mais respirar, de tanta
fumaça. E ele não diz nada, só fala para si mesmo, em malaio, ou
qualquer coisa assim. Não pude suportar.
— Temos que esperar. Já fizemos tudo o que podíamos, até ve-
rificarmos o lagarto-suíno. Teremos que fazê-lo com nossas roupas
espaciais, na própria jaula deles. Espero que não nos ataquem.
Jeri desabafou:
— Para que nos incomodarmos com isso? Eu conheço a si-
tuação tão bem quanto você. Mesmo que os lagartos-suínos sejam
os Eksers, vamos precisar de uns dois dias para prová-lo, dadas as
condições. E eu não acho que possamos dispor de tanto tempo as-
sim. Se demoramos dois dias para seguirmos para Valhala, aposto
que seremos detectados e interceptados antes de chegarmos lá. E,
ainda, caso os lagartos-suínos sejam meros animais, não teremos
tempo para testar uma terceira espécie. Então, por que nos inco-
modarmos?
— É a única coisa que temos a fazer.
— Não. Não é não. Não essa preocupação odiosa, fútil, que
nos deixa como ratos encurralados. Por que não admitimos que
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vamos mesmo morrer, e aproveitamos o tempo para ... sermos hu-
manos de novo?
Espantado, Torrance, que olhava o céu, virou-se para Jeri.
— O que você quer dizer com isso? Os cílios de Jeri tremeram
e baixaram.
— Bem, isso vai depender do que cada um de nós prefira.
Talvez, você... bem, queira colocar os pensamentos em ordem, ou
qualquer coisa assim.
O coração de Torrance palpitava.
— E você? O que prefere?
Jeri sorriu, desconsolada.
Eu não sou uma filósofa. Sou apenas uma pessoa meio su-
perficial, e gosto de viver a vida enquanto a tenho nas mãos... Jeri
virou-se, ficando quase de costas para Torrance.
— ... Mas não consigo encontrar alguém para vivê-la comi-
go.
Torrance, ou as mãos de Torrance, tocaram aqueles ombros
nus, e viraram-na, deixando-os frente à frente. Jeri sentiu-lhe as
palmas sedosas das mãos. A voz de Torrance veio, rouca:
— Não mesmo?
Jeri cerrou os olhos e inclinou o rosto, os lábios entreabertos.
Torrance beijou-a. Um segundo depois ela retribuiu. Nicholas van
Rijn surgiu na soleira da porta.
Ali permaneceu um instante, com o cachimbo na mão, a arma
enfiada no cinto. E logo esbravejou com o mordomo, mandou-o ir
para a plataforma. Berrou:
— O que é isso?
— Oh ... — desculpou-se Jeri.
E desvencilhou-se. Torrance foi tomado por uma onda de rai-
va. Cerrou os punhos e partiu na direção de Van Rijn.
— O que é isso? — insistiu o mercador.
As anteparas pareceram estremecer com o ribombo daquela
voz.
— Seus piolhentos! Entro aqui, e o que vejo? O rabo de Satã
preso numa armadilha de ratos! Eu fico horas a fio a gastar o meu
cérebro, os meus ossos, por vocês, inúteis e, enquanto isso, seu
bastardo, filho de uma cobra caspenta com um bicho de queijo, en-
quanto isso você agarra minha própria secretária, contratada com
meu dinheiro suado. Pelas gárgulas e Gõtterdammeraung! Ajoelhe-
se, e peça perdão, ou vou esmagá-lo e vendê-lo como alimento para
cães.

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Torrance parou, a alguns centímetros de Van Rijn. Era ligei-
ramente mais alto do que o mercador, embora menos corpulento, e
pelo menos trinta anos mais jovem.
— Saia! — falou, numa voz estrangulada.
O rosto de Van Rijn mudou de cor, de sua garganta saiu um
ruído engasgado.
— Saia! — repetiu Torrance. — Eu ainda sou o Capitão desta
nave, e vou fazer o que bem entender, sem interferência de qual-
quer parasita espalhafatoso. Saia da ponte, antes que eu o bote
daqui para fora!
Van Rijn perdeu a cor das bochechas. Por uns bons segun-
dos, ficou imóvel. Depois, por fim, sussurrou:
— Pelo Diabo! Pelo Diabo e pela Morte, ao cubo! Não é que ele
tem a petulância de responder!
O punho esquerdo de Van Rijn abriu o compasso e desfe-
riu um soco. Torrance bloqueou-o, embora a força fosse tanta que
quase o desequilibrou. Torrance devolveu a esquerda no estômago
do mercador e, depois de afundar um pouco na gordura, encon-
trou músculos, e recuou a mão machucada. A direita de Van Rijn
acertou-o. À volta de Torrance, o cosmo explodiu. Torrance subiu,
caiu para trás; e caído ficou.
Quando recuperou a consciência. Van Rijn lhe acariciava a
cabeça e oferecia brandy que uma lacrimosa Jeri fora buscar.
— Aqui, rapaz. Calminha, aí. Que tal um traguinho? Vai fazer
bem. Tome, você só perdeu um dente, e, vamos dar um jeito nele
em Freia. Coloque na conta de despesa. Isso já o deixa mais anima-
do, nie? Agora, menina, Jarry, Jelly, como é mesmo o seu nome?
Me passe o estimulante. Acabaram-se os trabalhos no porão, meni-
no. E agora, levante-se, não quero que você perca o espetáculo.
Com uma das mãos, Van Rijn o pôs em pé. Por um instante,
o Capitão apoiou-se no mercador, até que o estimulante veio elimi-
nar as dores e a tonteira. Então, brusco, com os lábios inchados,
perguntou:
— Eu ouvi o senhor falar que...
— É, eu já sei quem são os Eksers. Eu tinha ido procurá-lo,
para irmos apanhá-los na jaula.
Com o polegar grande, envergado, Van Rijn cutucou Torrance
e, com a leveza de um furacão, segredou:
— Não vá contar a ninguém . .. pois, do contrário, vou ter que
brigar toda hora.. . mas eu gosto de pessoas assim como você, com
nervos de aço. Quando chegarmos em casa, estou pensando em
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transferi-lo desta nave de passeio para comandar uma frota mer-
cante. Que tal? Mas venha, ainda temos muito trabalho.
Atordoado, Torrance o acompanhou. Atravessaram a peque-
na nave, o tubo, e entraram na outra, passaram pelo corredor, pela
rampa, e chegaram ao recinto do zoológico. Van Rijn fez um gesto
para os tripulantes, ali postados em guarda para evitar que os
Eksers tentassem escapar. Os guardas sacaram as armas e junta-
ram-se a ele, com uma postura exausta, relaxada que se aprumou,
alerta, quando Van Rijn parou diante da câmara de ar.
Torrance quase explodiu:
— Não é possível! Esses aí? Caramba, eu... eu pensei que...
— Você pensou o que eles queriam que você pensasse — sen-
tenciou Van Rijn pomposamente. — O esquema era bom. E teria
dado certo, mesmo com a perseguição da Patrulha-Cobra, se não
estivesse aqui Nicholas van Rijn. Bem, mas vamos ao que interes-
sa. Vamos entrar e apanhá-los; nossas armas servirão como de-
monstração de força. Espero não ter que agir com muita severidade
com eles. Creio que não vai ser preciso, quando explicarmos a eles,
por desenhos, que já descobrimos o segredo. E eles vão nos levar a
Valhala, guiados por aqueles lindos diagramas astronáuticos feitos
pelo Capitão Torrance. Ameaçados, irão cooperar. Primeiro, como
prisioneiros. Durante a viagem, porém, podemos nos utilizar dos
meios normais para estabelecermos comunicações alimentares...
Não! Pelo terror dos impostos! Alimentares não. Queria dizer, rudi-
mentares... Bem, de qualquer modo, vamos incutir-lhes a idéia de
que nem todos os humanos são dessa perversa Patrulha-Cobra, e
que queremos ser amigos e vender-lhes, coisas. Está bem? Então
vamos.
Em passadas largas, Van Rijn atravessou a câmara de des-
compressãoo e com a manopla agarrou um bicho de capacete e
levou-o, debatendo-se, para fora da jaula.

Torrance teve que dedicar todo o tempo ao próprio trabalho.


Primeiro, a entrada que fizeram na nave aprisionada teria que ser
fechada. Enquanto isso, trariam da Hebe G.B. todos os suprimen-
tos e equipamentos. Depois, teriam de soltar a nave de passeio,
com a própria hiper-propulsão. Algumas horas antes de queimar-
se o conversor, ela talvez atraísse uma Patrulha-Cobra, que iria
em seu encalço. Aí, então, a viagem começaria, e embora os
Eksers tivessem traçado a rota indicada, deveriam ser vigiados sem
descanso para que não tentassem alguma façanha suicida. Todo

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momento livre devia ser dedicado à tarefa urgente de conseguir
estabelecer com eles uma linguagem comum e simples. Seria dever
de Torrance, também, supervisionar a tripulação, acalmar-lhe os
receios, observar o radar-detector de vasos inimigos. Se alguma
nave inimiga fosse detectada, os humanos teriam de se lançar em
hiper-propulsão e esperar poder despistar o inimigo. Isso ainda
não acontecera, mas a tensão era considerável.
De vez em quando, Torrance tirava um cochilo.
E assim não teve muita chance de conversar a fundo com
Van Rijn. Para ele, o mercador tivera apenas um palpite de sorte.
Mas deixou ficar como estava.
Até despontar Valhala, um disco minúsculo amarelo, que
brilhava mais que as outras estrelas; uma nave-patrulha da Liga
aproximou-se, e, depois das explicações, escoltou-os no trajeto
rumo a Freia, a uma velocidade subluz.
O capitão da nave-patrulha declarou que gostaria de subir a
bordo. Torrance o dissuadiu prontamente:
— Quando estivermos em órbita, Cidadão Agilik, terei muito
prazer em recebê-lo. Agora, porém, as coisas estão desorganizadas.
O senhor compreende, é claro.
E desligou o telecomunicador, que, a esta altura, já sabia
operar.
— Bem, acho que vou descer e tomar um banho. Não tomo
banho desde que deixamos a Hebe G.B. Assuma, Cidadão Lafer-
ge...
Torrance hesitou.
— Junto com... Uh... o Cidadão Jukh-Barklakh — comple-
tou.
Jukh rosnou algo. O gorilóide estava muito ocupado para
conversas, escarrapachado no lugar que antes marcava o assento
do piloto. As mãos grandes, com força, apertavam placas de con-
trole, ao conduzirem a nave numa rota hiperbólica. Barklakh, o
bicho de capacete, montado nas costas do gorilóide, não possuía
cordas vocais próprias; acenou um tentáculo e enfiou-o num orifí-
cio de proteção, para girar uma delicada chave de ajuste. O outro
tentáculo permaneceu agarrado, no mesmo lado em que estava, no
pescoço maciço do gorilóide, de onde extraía alimento da corrente
sangüínea, recebia impulsos sensoriais e emitia os comandos mo-
tores nervosos, dignos de um piloto espacial qualificado.
No começo, á combinação parecera, a Torrance, meio vampi-
resca. Porém, embora os ancestrais dos bichos de capacete deves-
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sem ter sido parasitas dos ancestrais dos gorilóides, agora já não o
eram mais. Eram simbiontes. Os bichos de capacete forneciam os
olhos e o intelecto, enquanto os gorilóides entravam com a força e
as mãos. Isoladas, as duas espécies não valiam nada. Combinadas,
eram algo muito especial. Assim que se acostumou à idéia, Tor-
rance percebeu que o fato de um bicho de capacete usar as garras
para montar o gorilóide, não era mais desagradável que o ato de
um homem, num esteréopico histórico, montar um cavalo. E assim
que os bichos de capacete se acostumaram à idéia de nem todos
os humanos eram inimigos, evidenciaram uma afeição positiva por
eles.
Eles, sem dúvida — refletiu Torrance — estão pensando que
conseguiram novos e excelentes espécimes para vender ao seu
zoológico. Torrance deu um tapinha na carapaça de Barklakh, aca-
riciou o pêlo de Jukh, e deixou aponte.
O banho de esponja, regado a essências, e a roupa limpa apa-
garam-lhe as marcas do cansaço. Pensou em ir alertar Van Rijn.
Bateu na porta da cabine que o mercador resolvera tomar como
sua.
Um vozeirão de baixo ribombou:
— Entre.
Torrance entrou num cubículo azul de tanta fumaça. Van
Rijn sentava-se num caixote vazio de brandy. Numa das mãos,um
charuto; na outra, a cabeça de Jeri, que se lhe aninhava no colo.
— Bem, sente-se. Sente-se. Veja se encontra uma garrafa no
meio da roupa suja, ali no canto — trovejou Van Rijn, muito cor-
dial.
— Eu passei para dizer-lhe, senhor, que teremos que receber
a bordo o capitão da nossa escolta, assim que entrarmos na órbita
de Freia, o que acontecerá em breve. Cortesia profissional, o senhor
sabe. É natural que ele esteja ansioso para conhecer os Ek ..., quer
dizer, os Togru-Kon-Tanakh.
Van Rijn franziu o cenho.
— Muito bem, companheiro. Coloque o tubo. Deixe-o vir a
bordo. Só peça a ele que traga a própria garrafa, e que não fi-
que muito tempo. Quero aterrissar, já não agüento mais o espaço.
Quando chegar em Freia, juro, vou correr descalço por todos aque-
les campos frescos e macios.
— Talvez o senhor queira trocar de roupa — insinuou Tor-
rance. Jeri soltou um gritinho agudo e correu para a cabine que, às
vezes, ocupava. Van Rijn recostou-se na parede, apanhou o sarão

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e cruzou as pernas cabeludas.
— O capitão quer conhecer os Eksers. Pois então que conhe-
ça os Eksers. Eu vou ficar no meu conforto. E não vou entretê-los
contando como foi que descobri quem eram eles. Isso será exclu-
sividade minha, para vender ao sindicato de notícias que fizer a
melhor oferta. Você compreende, não?
Van Rijn lançou-lhe um olhar desconcertantemente pene-
trante. Torrance engoliu em seco.
— Compreendo, sim senhor.
— Agora sente-se, rapaz. Me ajude a colocar minha estória
em ordem. Eu não tive a sua boa educação. Sempre fui um velho
pobre, e solitário, trabalhando duro desde os doze anos de idade.
Portanto, vou precisar de ajuda para que minhas palavras sejam
tão elegantes como minha lógica.
— Lógica? — Torrance ecoou, intrigado. Ergueu a garrafa,
pois, afinal, a nuvem de tabaco fazia-lhe arder os olhos. - Pensei
que o senhor tivesse adivinhado...
— Adivinhado? Você me considera tão pouco assim? Não,
não. Nada disso. Nicholas van Rijn jamais adivinha. Eu sabia.
Van Rijn apanhou a garrafa, tomou um gole vigoroso e, mag-
nânimo, acrescentou:
— Quer dizer, depois que Yamamura descobriu que os gori-
lóides, sozinhos, não poderiam ser o povo que queríamos. Então,
me sentei, juntei os pensamentos e resolvi analisar a coisa. Pois
veja, tudo aconteceu por simples eliminação. O elefantóide foi eli-
minado logo. Só havia um. Talvez, numa emergência, seria possível
a uma só pessoa pilotar esta nave. Mas não aterrissá-la, apanhar
animais selvagens, cuidar deles, e tudo o mais. E, também, se algo
acontecesse de errado, quem iria socorrê-lo?
Torrance concordou com a cabeça.
— Eu também considerei a coisa sob o prisma do espaçonau-
ta. E foi por isso que pensei em eliminar o elefantóide. Mas admito
que não percebi que a coleta de animais invalidava a hipótese de
que a expedição fosse de uma pessoa só.
— De qualquer modo, ele era muito grande. E quanto aos
macacos-tigres, eu também não os levei a sério. Talvez seus an-
cestrais fossem menores, mais bípedes. Mas a espécie parece re-
verter à postura quadrúpede. Os animais não se especializam em
tudo ao mesmo tempo. É impossível, de uma vez só, desenvolver
cérebro, tamanho, dentes carnívoros e garras felinas. E quanto aos
lagartos-suínos, estavam na minha alça de mira até que me lem-
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brei daquela vez em que você, acidentalmente, puxou aquele ace-
lerador de emergência. A menos que estivesse no gancho — e um
botão deste tipo deveria permanecer no gancho apenas em casos
especiais — cairia com muita facilidade. Com tanta facilidade que
o próprio peso o puxaria para baixo e acionaria a três gravidades
terrestres. Ou, no mínimo, o perigo de isto acontecer seria muito
grande. E ainda, aquela prateleira em que você se apoiou. Eles não
construiriam prateleiras tão leves num planeta de alta gravidade.
Van Rijn virou-se, para exalar a fumaça do charuto na dire-
ção da caldeira. Prosseguiu:
— Bem, quem sabe, então, fossem os centauros tentaculares,
o que seria ruim para nós, pois hidrogênio e oxigênio explodem. Eu
mergulhei a fundo nos relatórios de bordo, na esperança de encon-
trar algo para eliminá-los. E não é que encontrei mesmo, caramba!
Por isso, vou dar uma renda para o altar de São Dismas. Não muito
alta, é claro. Pois veja, os Eksers nos fizeram o favor de usar reti-
ficadores de óxido de cobre, expostos ao ar. O óxido de cobre e o
hidrogênio, a uma temperatura não muito alta, possível de ocorrer
com uma forte eletrificação, produzem água e cobre puro. E como
ficaria o retificador? Puf... Portanto, ergo, esta nave não foi projeta-
da para respiradores de hidrogênio.
Van Rijn resmungou:
— Você com sua educação científica tão sofisticada, esque-
ceu-se da química dos primeiros anos de faculdade.
Torrance estalou os dedos. Falha imperdoável!
— E, por eliminação, chegamos aos bichos de capacete. Só
que não poderiam ter construído a nave. Poderiam, é claro, ma-
nusear certas ferramentas, certos controles, como aquela chave
embutida; mas não todas. E, são tão lentos, tão pequenos, como
conseguiriam permanecer vivos o tempo suficiente para inventar
espaçonaves? Ainda, animais assim tão pequenos não têm espaço
suficiente para cérebros capazes. Tampouco os animais encara-
paçados, nem os parasitas. E não têm bons olhos também Mas os
bichos de capacete pareciam ter olhos muito bons, pelo que pu-
demos averiguar. Pareciam olhos humanos, de qualquer maneira.
Lembro-me que, nas cabines, existiam, ao mesmo tempo, cochi-
chós grandes e pequenos; leitos, talvez, para dois tipos de seres? E
pensei, também: o cérebro humano não é uma tartaruga só porque
possui carapaça óssea! E nem um parasita por viver de sangue
oriundo de outros lugares! Bem, algumas pessoas talvez o sejam,
mas não quero dizer quem são, como o Juan Harleman, da Com-

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panhia de Plantadores de Café e Chá de Vênus. Esse, sim, em vez
de cérebro tem a cabeça uma tartaruga parasita. Mas eu, não. Por
isso desvendei o enigma.
E completou, muito enfatuadamente:
— Q. E. D. (Como acaba de ser demonstrado.)
Rouco de tanto falar, Van Rijn apanhou a garrafa. Torrance
permaneceu sentado por alguns minutos, mas como o outro pare-
cesse ter encerrado a conversa, levantou-se para sair.
À porta, cruzou com Jeri. Num deslumbrante longo azul que
lhe deixava à mostra os ombros e os seios e se colava ao seu cor-
po como uma camada de pintura, ela era uma estrela de primeira
grandeza. Torrance estacou. Sentiu o olhar dela demorar-se nele,
como se tivesse pena de partir.
— Casacos de pele de lontra mutante — sussurrou Van Rijn,
como num devaneio. — Pedras preciosas de Marte. Um apartamen-
to de luxo na Torre das Estrelas...
Jeri lançou-se em direção ao mercador. Acariciou-lhe demo-
radamente os cabelos.
— Você está bem, Nicky querido? — ronronou. — Que é que
eu posso fazer para você?
Van Rijn piscou para Torrance:
— Naquele dia, lá na ponte, eu fiquei observando sua técnica.
Muito fraca. E depois de tudo, você não é velho, nem gordo, nem
solitário. Você tem uma família feliz, todinha para você.
— Sim... claro — gaguejou Torrance. — Claro que tenho. Dei-
xou cair a cortina e voltou para a ponte.

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54
Um truísmo, a estrutura da sociedade é basicamente determi-
nada por sua tecnologia. Não em sentido absoluto — pois é possível
que existam diferentes culturas que utilizem ferramentas idênticas
—, embora as ferramentas determinem as possibilidades: impos-
sível o comércio interestelar sem espaçonaves. Uma raça limitada
a um planeta, que possua um grande conhecimento de mecânica,
cujas máquinas básicas, de comércio e guerra, exijam, entretanto,
um grande investimento de capital, tenderão, é inevitável, para o
coletivismo, não importa o nome que ostente. A livre iniciativa ne-
cessita de espaço para manobrar.
A automação transformou a manufatura em algo barato, e
o custo da energia mergulhou de cabeça quando da invenção do
conversor de prótons. O controle da gravidade e a hiperpropulsão
abriram uma galáxia à exploração; e forneceram a válvula de segu-
rança: todo cidadão, que se julgasse oprimido pelo governo, pode-
ria emigrar para onde desejasse. O fato veio fortalecer os planetas
libertários, cuja influência, por sua vez, relaxaram as fronteiras
dos antigos mundos.
São tão grandes as distâncias interestelares, e tão próprias
as idéias de cultura das raças inteligentes, que não houve união
universal. Nem houve, tampouco, muita guerra: muito destrutiva,
com pouquíssima chance, para qualquer dos lados, de escapar à
ruína, e muito pouco por que lutar. Uma espécie não consegue ser
inteligente sem conter, em si mesma, uma quota exorbitante de
crueldade. Portanto, nem tudo foi doçura e fraternidade... entre-
tanto, o equilíbrio de poder permaneceu razoavelmente estável. E
houve uma demanda ativa para o escambo de mercadorias. Não
eram apenas as colônias que desejavam a luxúria da metrópole, e
os planetas-metrópoles que desejavam o produto colonial; os ve-
lhos mundos tiveram, também muito o que permutar.
Em tais condições, o capitalismo exuberante estava prestes
a fincar raízes. Prestes, também, a descobrir interesses mútuos, a
55
constituir alianças, a determinar esferas de influência. Poderosas
companhias juntaram-se para espremer a concorrência, para ma-
jorar os preços e, de um modo geral, para fazer, de uma coisa boa,
o melhor. Os governos foram restritos, cada um, no máximo, a uns
poucos sistemas planetários; pouco puderam fazer para controlar
seus mercadores cosmopolitas. Um a um, por suborno, coerção, ou
por mero desespero, desistiram da tentativa.
O egoísmo é uma força poderosa. Os governos dedicados,
em termos oficiais, ao altruísmo, permaneceram divididos. A Liga
para a Ciência do Sol Polar transformou-se num supergoverno,
estendendo-se de Canopo à Estrela Polar, angariando associados
de milhares de espécies. Era uma sociedade horizontal, que atra-
vessava todas as fronteiras políticas e culturais, que determinava
as próprias políticas de ação, que fazia os próprios tratados, esta-
belecia as próprias bases, combatia as próprias guerras menores;
e, enquanto ordenhava a Via-láctea, muito fez, mais que todos os
diplomatas da galáxia, no sentido de disseminar uma civilização
verdadeiramente universal e reforçar uma Pax duradoura.
Teve, contudo, seus problemas.

Margem de Lucro

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TERRITÓRIO

Joyce Davisson acordara com a sensação de que fora ferida.


O assobio chegava, mais uma vez, com força suficiente para
penetrar o revestimento, o metal e o isolamento, e chegar-lhe aos
tímpanos. No escuro, sentada, Joyce suspirou em reconhecimento.
Na última vez que ouvira aquele ganido de lince, fora em Chaban-
da; significava, então, que dois bandos caçavam-se mutuamente.
Naquela ocasião, contudo, ela se encontrava em segurança, em
vôo, num espaço-rápido, com homens armados dos lados e um
Ancião, carrancudo, a guiá-la. O que viu, e ouviu, chegou a ela am-
plificado por instrumentos que esquadrinhavam o deserto de gelo,
reluzente, lá fora. Aqueles guerreiros listrados de tigre, chacinados
e mortos, eram apenas figuras numa tela. Joyce sentira pena deles,
mas, de algum modo, eles não eram reais; apenas indivíduos que
jamais conhecera, átomos que pareciam, pois perecia o mundo em
que viviam. Ela se preocupava com o todo.
Mas, agora, o assobio atingia a estação em que estava.
Impossível!
A explosão fez pam. No tampo da mesa, ouviu coisinhas esti-
lhaçar; sentiu sacudir a cabeça. De repente, na cabeça, os glissan-
dos aumentaram, acompanhados de um rufar de batidas surdas,
de um estampido metálico, de um estridente de objetos arrancados
das prateleiras. Os agressores deviam ter explodido a porta do se-
tor das máquinas, e invadido. Onde, porém, teriam conseguido a
pólvora?
Onde, senão em Kusulongo a Cidade?
E isto significava que os Anciãos haviam decidido: melhor
para todos, que morressem os humanos. O medo da morte percor-
reu Joyce, numa onda. Ao sair, deixou espanto e dor, como a uma
criança que se choca sem motivo algum. Por que fariam isto com
ela, com ela que viera apenas ajudar?
57
Os pés batiam no corredor, bem ali fora, junto ao setor ter-
restrino do domo. A turma nativa da missão levantara-se, e agora
deixava os alojamentos, com armas na mão. Joyce ouviu gritos
selvagens. Depois, mais adiante, entre as máquinas, o combate se
desencadeou. As espadas retiniam, as machadinhas rachavam os-
sos, a pistola, que dera a Uulobu, falou com um estalido de fúria. A
turma, porém, não conseguiria manter por muito tempo a posição.
Os invasores eram, com certeza, shangas, da milícia do oásis ao
pé de Kusulongo a Montanha. Não havia outro clã próximo, e os
Anciãos jamais tomavam a iniciativa da agressão. Existiam, entre-
tanto, centenas de machos shanga no oásis, contra umas poucas
duas dúzias de t’Kelanos de confiança, com que contava a missão.
Muito bem protegida contra as condições exteriores, a área
humana não seria penetrada com a mesma facilidade com que o
setor das máquinas fora destruído. Isso, é claro, caso não abrissem
uma fenda nas paredes...
Num salto, Joyce ficou de pé. Uma das mãos, rumo ao painel
de câmbio, passou ao largo do interruptor central, e as luzes se
acenderam. Aquele recinto estreito, desordenado, local de estudo,
e de sono, parecia, de certo modo, destorcido naquele brilho alvo.
Porque estou com medo, percebeu. Estou num pesadelo vivo. Ner-
vos e músculos prosseguiram sem o cérebro. Rápida, vestiu o forro
cintado, e o uniforme fibroso, pesado. Calçou as luvas ralíssimas,
ligou a fiação à rede elétrica instalada à vestimenta principal. Ago-
ra: botas de solas de espuma de querosene; nas costas, o tanque de
renovação de ar e a fonte de alimentação; pistola e cartucheira; nos
bolsos dos cintos, rações de ferro; no bolso do peito, o minicomu-
nicador; o capacete de vitril mergulhava sobre os ombros, embora,
por enquanto, mantivesse a viseira aberta.
Verifique as pegas, o sistema de ar, o sistema de aquecimen-
to, tudo. O exterior é letal em t’Kela. A temperatura, nesta noite de
verão, nas médias latitudes, é de sessenta graus Celsius, abaixo
de zero. A pressão parcial do nitrogênio induz à narcose, a amônia
queima os pulmões. Não existe vapor d’água detectável pelos sen-
tidos; o ar o ressecará. Mas nenhum destes fatores difere tanto na
Terra a ponto de matá-lo instantaneamente. Não, se auxiliado com
conteúdo oxigênico suficiente para mantê-lo em vida, você poderá
saborear o processo por minutos a fio, até perder a consciência.
E lá fora, os shangas, ocupados, agora, em matar os assis-
tentes nativos; e possuem pólvora para derrubar as paredes.
Joyce virou-se. E o resto do pessoal? Não havia intercomuni-

58
cador; desnecessário, com apenas doze pessoas no domo. Alcançou
a porta do quarto contíguo. Nada aconteceu. Ouviu o próprio grito
abafando o ruído exterior:
— Abram, seus imbecis. Venham. Temos que fugir!
Através das almofadas, uma voz rouca, embaixo, respondeu:
— Abrir? Como? Você se trancou por dentro!
Claro, claro, titubeou o cérebro de Joyce. A pulsação e o tu-
multo crescentes da batalha quase lhe afogaram o pensamento.
Fora ela quem fechara a porta por dentro. Durante o tempo da
missão propriamente dita, não houve motivos para trancá-la. No
momento, porém, em que Van Rijn aterrissou e aquartelou-se ao
lado, ela começou a ter muitos problemas, mesmo durante o dia,
para conter as investidas ursinas do mercador... Joyce apertou o
botão.
Gingando, o mercador entrou. Como a maioria dos esperan-
cianos, Joyce era alta; mas, mesmo assim, alcançava-lhe apenas
os ombros, que preenchiam o vão da porta. O barrigão de Van Rijn
deformava o uniforme, de tecido fibroso, que lhe fora fornecido. En-
tulhado com material de sobrevivência, parecia ainda mais mons-
truoso do que quando fora encontrado, repleto de adornos de ren-
das e pregas, manchados de tabaco, a resfolegar no domo, de um
lado para outro. O imenso nariz adunco protuberava no capacete
aberto, e farejava o ar como se em busca de um rastro de sangue.
— E então, hein?
Van Rijn berrou, e olhou em volta; o cabelo oleoso, negro,
primorosamente cacheado até os ombros, balançou. Empastados,
o bigode e o cavanhaque, que pareciam chifres, ameaçavam todo
o lugar.
— Vocês são uns errados; dez vezes errados, elevados à dé-
cima potência, na base logarítmica! Pensei que você gozasse da
confiança dos nativos.
Joyce embargou:
— O pessoal... Vamos encontrá-los.
Seco, Van Rijn concordou. Estremeceram-lhe os diversos
queixos; deixou que Joyce tomasse a dianteira. No setor humano,
os aposentos pessoais davam todos para um mesmo corredor; cada
quarto apresentava uma pequena abertura na porta, e duas outras
voltadas para os quartos contíguos. O quarto de Joyce era o último
da fila. Ao fundo do corredor, o setor do depósito das máquinas.
Solteira, amante da privacidade, fora ela quem escolhera seus apo-
sentos, logo que aqui chegou pela primeira vez. O salão-clube era
59
no outro extremo do corredor, na curvatura do domo. Ao emer-
gir de seus aposentos, viu escancarar as portas, uma a uma. As
que permaneceram fechadas, pertenciam a câmaras não ocupadas
por ninguém, câmaras-extras construídas para a eventualidade de
visitas exteriores, como a comitiva de Van Rijn. Assim, todos já
haviam vestido os uniformes, e descido para o salão-clube, local
de encontro predeterminado. Joyce disparou numa corrida. Atrás
dela, o meio-trote, vigoroso, de Van Rijn, provocou ligeiro terre-
moto. Em t’Kela, a gravidade era mais ou menos a mesma que na
Terra ou em Esperança.
A única coisa igual, pensou Joyce, nervosa. Por um instante,
quase a encegueceu a lembrança de sua casa, no planeta verde
chamado Pax — um campo encapelado de trigo, montanhas azuis,
remotas, a bandeira daquele mundo soberano a tremular, verme-
lha e dourado, contra o céu lanuginoso, e todo aquele sonho de
valentia que construíra a Comunidade.
O estrondo veio de trás. Sob os pés, o chão corcoveou. Joyce
caiu; um novo estrondo, mais outro. A terceira explosão perfurou.
Seguiu-se uma saraivada concussiva.
Joyce caiu. Rolou. De um lado a outro do capacete, a cabeça
estralejou. Na boca, o gosto de sangue misturou-se ao da fumaça.
Olhou para trás e viu, no corredor, a escuridão felpuda, que ia e
vinha, diante dos olhos. A parede ao fundo, próxima ao próprio
quarto, rachava-se, quebrava-se. Figuras selvagens, sombrias, mo-
viam-se na penumbra, apoiadas em membros estruturais retorci-
dos. Joyce estava estupefata.
— Explodiram a parede!
— Feche o capacete! — gritou Van Rijn, enérgico. Ele já fecha-
ra a viseira de seu capacete, e os tons graves foram alcançar Joyce
através do amplificador, embora não conseguissem alcançar-lhe o
cérebro, tão aparvalhada estava.
Joyce insistiu. A coisa parecia muito estranha para ser real.
— Explodiram a parede!
De um salto, um nativo entrou pela fresta. Se prendesse a
respiração, conseguiria suportar o ar e a temperatura terrestres.
Atrás dele, movida pela maior pressão do exterior, a atmosfera de
t’Kela parecia brotar. A figura robusta, listrada, postou-se, tensa
como o próprio arco que apontava. Os olhos imensos, com fendas
nas pupilas, refletiam à luz dos flúores.
Correndo, um técnico esperanciano surgiu na curva do cor-
redor.

60
— Joyce! Cidadão Van Rijn! Onde.. .
O arco produziu um som cortante. A flecha farpada foi ras-
gar-lhe o uniforme. Instantes depois, o ar — parecia — já estava
repleto de flechas, dardos, lanças, atiradas da escuridão. Van Rijn
arremessou-se em direção a Joyce. O técnico deu meia-volta, nos
calcanhares, e fugiu.
O lança-raios de Van Rijn, já bem gasto, pulou-lhe nas mãos.
Deitado, disparou. A figura felpuda, na fresta, tombou de costas.
Ali atrás, as sombras sumiram de vista. A gritaria, o clangor, en-
tretanto, continuaram lá fora. A primeira fungada de amoníaco fez
arder as narinas de Joyce. Van Rijn gritou:
— Você não vai querer respirar vômito de dragão, vai? Levan-
tou-se, ficou de joelhos, e fechou-lhe a viseira. Com os olhos ne-
gros, pequenos, grudados um no outro, olharam-na, contraídos.
— Ahh. .. paralisante! É assim, não é? Muito bem, você é uma
linda menina, uma bela figura, e tudo o mais, embora não devesse
cortar o cabelo tão curto assim. Quem desperdiça o que tem, a pe-
dir vem! Vou socorrê-la, está bem?
Van Rijn arrastou-a pelo ombro. Levantou-se, ofegante, e
prosseguiu de costas, com o lança-raios a oferecer cobertura na
direção da fresta. Resmungou:
— Caramba.. . Isso não é trabalho para um homem velho,
que deveria, a esta hora, estar em seu planeta natal, num bonito
escritório, fumando um charuto e, quem sabe, tomando um ca-
licezinho de Genebra. Ainda mais sabendo que seus ajudantes,
aqueles cabeças de chaleira, irão roubá-lo até os ossos. Ja, vão de-
saparafusar-lhe os globos dos olhos, quando menos esperar. Mas
os fabricantes, em todos os postos comerciais, são tão cabeças de
cocoroca que o coitado do Nicholas van Rijn tem que vir ele mesmo,
a cem anos-luz na direção do umbigo de Órion, para sondar novas
possibilidades de comércio. Caso contrário, essa concorrência de
lobos e coelhos vai despedaçar a Companhia Solar de Condimentos
& Bebidas, e deixá-lo, já velho, como uma prostituta.. . Ah, chega-
mos. Vamos, deite... assim.
Van Rijn pousou-a no chão. Joyce sacudiu a cabeça. Já re-
tomara a plena consciência, e os joelhos já não falhavam muito.
A sala do salão-clube ali estava, bem em frente. Joyce apertou o
interruptor. O obstáculo não se moveu.
— Está trancada. . .
Van Rijn bateu até fazer tremer a porta. E berrava:
— Abram! Pelos trovões! Pelos fêmures! Que brincadeira é
61
essa? Um nativo surgiu correndo na curva do corredor. Van Rijn
virou-se. Joyce empurrou o lança-raios.
— Não! ÉUulobu!
O t’kelano deve ter gasto a pistola que usava, tê-la jogado
fora, pois, agora, trazia uma machadinha na mão; e a machadinha
pingava. Três outros autóctones estavam em seu encalço, a bran-
dir espadas e machados, com saiotes decorados com a insígnia do
quadrado circular, do clã Shanga.
— Acerte-os!
O lança-raios de Van Rijn cuspiu fogo. Um dos invasores
tombou. Os outros dois viraram-se, tentaram fugir. Uulobo uivou
atirou a machadinha. O gume afiado, de osidiana, foi acertar um
dos shangas; derrubou-o sangrando. Uulobu deu um puxão na
corda que unia a arma ao pulso, recolheu o machado, e jogou-o
novamente para terminar o trabalho.
Van Rijn voltou para a porta.
— Seus covardes! Vocês não passam de comida de cupim!
Deixem-nos entrar!
Ao notar que o vocabulário de Van Rijn tornava-se cada vez
mais melancólico, Joyce pôde perceber o que acontecera. Com os
punhos cerrados, bateu-lhe nas costas, com a mesma intensidade
com que Van Rijn batia na porta, até vê-lo parar e olhar para trás.
— Eles não nos abandonariam. Devem estar pensando que
estamos mortos. Quando Carlos nos viu, lá atrás, no corredor, nós
estávamos caídos no chão, e havia muitos projéteis no ar.. . Eles
não estão mais no salão-clube. Trancaram a porta para retardar o
inimigo, para poder tomar um caminho diferente até as espaçona-
ves.
— Ah, ja, ja, é capaz. E nós, o que faremos? Arrombar a porta
e segui-los?
Uulobu falou na língua gutural da região Kusulongo.
— Entre nós, fêmea celeste, quem não morreu, fugiu. Não há
mais luta. O ruído que ouvem agora é a pilhagem dos shangas. Se
eles nos encontrarem, vão nos encher de flechas. Não podemos im-
pedi-los, com apenas duas armas. Mas creio que, se voltarmos para
os ferros que movem, podemos sair por lá e contornar o domo.
Van Rijn perguntou:
— O que é que esse sujeito está ruminando?
Joyce traduziu, e acrescentou:
— Creio que ele tem razão. Nossa maior chance será sair pelo
setor das máquinas. No momento, parece deserto. É melhor nos

62
apressarmos.
— Melhor, então que esse felino vá na frente. Você vai atrás
de mim, e cobre minhas costas, nie?
Num trote, voltaram por onde haviam entrado. Com o frio
de t’Kela, o vapor d’água condensava-se, e a geada embranquecia
as paredes e deixava o chão escorregadiço. Qual uma boca negra,
no setor de máquinas, sem iluminação, a fenda escancarava-se.
Do outro lado das paredes, ao longe, Joyce ouvia gritos cortantes,
sufocantes, exultantes. A sua volta, despedaçava-se o trabalho de
anos. Dorida, perguntou “Por quê?”, e não obteve resposta.
Os olhos de Uulobu, mais adaptáveis à escuridão que os
olhos humanos, sondaram por entre as formas compactas. Os três
entraram na área do depósito. Os veículos ali estavam estaciona-
dos: quatro carros de superfície, e outros tantos espaço-rápidos.
Além disso, a câmara, comprida, abrigava o equipamento especiali-
zado dos estudos feitos pelos esperancianos, com vistas a descobrir
uma maneira de salvar o planeta. Agora, o equipamento ali jazia no
chão, em ruínas.
O retângulo de luz tênue, lá adiante, no alto, era a saída,
para o exterior. Joyce tenteou à frente. A bota tropeçou em algo,
um instrumento no chão, que clangorou ao chocar-se com outra
coisa qualquer.
Houve um brado de ameaça. A entrada encheu-se de dezenas
de formas, que se esgueiraram, esconderam por entre sombras e
máquinas, antes mesmo que Van Rijn tocasse o gatilho. Uulobu
ajeitou a machadinha, sacou a faca e disse, com frieza:
— Agora vamos ter que lutar para passar.
— A—ta-car!
Van Rijn saiu na frente, numa corrida. Diversos t’kelanos
o cercaram. Metal e pedra polida giraram na escuridão. O lança-
raios do terráqueo acendeu-se. Um nativo gritou. Outro segurou o
cabo da arma; puxava-o para baixo. Sacudindo-o, Van Rijn tentava
livrar-se dele. O ser não largou, apesar de utilizado, pelo humano,
como chicote contra os próprios companheiros.
Uulobu veio juntar-se ao tumulto, estocando, golpeando, em
júbilo carnívoro. E Joyce não fez por menos; sacou a pistola, um
atirador de projéteis de metal. Algo esbarrou-lhe no respirador.
Joyce viu presas, viu olhos brilhando à pouca luz. Uma lança curta
ergueu-se, perfeitamente apta a perfurar-lhe o uniforme. Mesmo
assim, puxar o gatilho foi a coisa mais difícil para Joyce. O estalo
da arma ressoou-lhe dentro do próprio crânio.
63
Depois, por alguns instantes, houve esbarrões, luta desorde-
nada, disparos e o delírio do corpo. De vez em quando, Joyce iden-
tificava o ganido de Uulobu, o grito de guerra do clã Avongo. Em
meio à gritaria, destacou-se a voz de trompete de Van Rijn:
— Valha-me São Dismas! Fora cães sarnosos!
De repente, tudo acabou. As armas foram demais. Deitada
no chão, debatendo-se em busca de fôlego, Joyce ouviu os últimos
shangas fugir.
Em algum lugar, rosnava um guerreiro ferido. Uulobu foi
cortar-lhe a garganta.
Entre um fôlego e outro, Van Rijn ordenou:
— Levante-se. Não temos tempo para dar laços nos presen-
tes.
Uulobu foi ajudar Joyce a levantar-se. Como fosse baixo de-
mais para inclinar-se Van Rijn ofereceu o braço à jovem. Cambale-
antes, os três saíram porta afora, e adentraram a noite.
Onde não existiam cercados; apenas o domo, apenas t’Kela.
Por sobre a cabeça, cintilavam constelações desconhecidas. A lua
maior, quase cheia, lá no alto, despejava, no chão, uma luz de
cobre, tênue. A oeste, ao sul, desenrolava-se um trecho da pla-
nície, com arbustos eventuais, quase semelhantes, em aspecto, à
artemísia terrestre: baixas, ramosas, de folhas prateadas. Ao norte
erigia-se a muralha negra, perpendicular, de Kusulongo a Monta-
nha, decalcada sobre a Via-láctea. A cidade entalhada a partir do
topo era vista como um simples lampejo de torres, que lembravam
dentes. Por alguns quilômetros a leste, no sopé, corria o sagrado
Rio Mangivolo. Joyce viu o jato de luar vermelho pairar na amônia
líquida. As árvores do oásis — onde acampavam os shangas —
proporcionavam uma mancha de sombra. Ao norte de Kusulongo
enfileiravam-se colinas, que refletiam, com o gelo, um esplendor
irreal. Van Rijn irritou-se.
— Depressa! Se o pessoal pensar que morremos, vai levantar
vôo mais rápido ainda!
A comitiva contornou o domo no passo titubeante da exaus-
tão. Dois cilindros afunilados tremeluziam ao luar, o grande vaso
de transporte da missão e a luxuosa nave de passeio que trouxera,
da Terra, Van Rijn e seus assistentes. Nas proximidades, jazem
alguns shangas, mortos. O vento da noite roçagava-lhes os pêlos.
Fora preciso muita luta para chegar a este ponto em segurança. A
frente, as rampas estavam contraídas, as câmaras de ar fechadas.
Van Rijn aproximou-se... os motores ganiram, estremeceram.

64
— Ei! Esperem por mim, seus cabeças de coalhada!
A nave de passeio foi a primeira a decolar; como um relâmpa-
go, subiu, rumo ao céu. A sucção de ar derrubou Van Rijn. Depois,
zarpou a embarcação de Esperança. Apanhado na orla do campo
de impulsão, Van Rijn foi levantado e arremessado a alguns metros
de distância. Depois, com estrondo,aterrissou; deitado, imóvel.
Joyce correu até ele. Engasgou:
— O senhor está bem?
Van Rijn era um velho paspalhão, detestável. Horrozizava-a,
porém, a possibilidade de ser abandonada sozinha, naquele lugar.
Van Rijn praguejou:
— Ú — ú — ú... Ah, meu São Dismas. Quando eu chegasse
em casa, ia colocar mais um vitral na sua capela. Mas, agora, o que
eu acho que vou fazer é enfiar o pé nos que já tenho.
Joyce ergueu os olhos, desolada. As espaçonaves reluziram,
súbitas, quais estrelas nascentes, e desapareceram.
— Eles não nos viram.
Van Rijn bufou:
— Não diga!
Uulobu aproximou-se.
— Os shangas devem ter ouvido. Virão para ver o que é, e nos
encontrarão. Temos que fugir.
Van Rijn nem precisou de tradução. Sacudiu-se, com caute-
la, como a evitar que algo lhe caísse das vestes. Levantou-se arras-
tando, e voltou, cambaleante, na direção do domo.
— Vamos tomar um espaço-rápido, nie?
— Os carros de superfície estão equipados para períodos
maiores — observou Joyce. — Vamos ter que sobreviver até que
alguém volte aqui.
Van Rijn ruminou:
— O quê? Com esses sujeitinhos pestilentos, irritantes, a nos
perseguir de um lado a outro? Adeus alegria irreprimida!
— Vamos para oeste — observou Uulobu —, encontrar meu
povo. Não sei onde estão os avongos, mas tenho certeza de que po-
demos encontrar outros clãs da Horda Rokulela entre os Estreitos
e os Descampados.
Os três entraram no setor das máquinas. Ao tropeçar num
corpo, Joyce estremeceu. Fora ela mesma quem o matara?
Os carros de superfície eram compridos, de formato quadra-
do; das oito rodas, as quatro traseiras corriam em trilhos. Os acu-
muladores estavam com carga plena, reserva de energia suficiente
65
para navegar milhares de quilômetros e, ainda, manter, no interior,
por um ano, condições terrenas. Os recicladores de ar e os alimen-
tos existentes manteriam dois humanos por, no mínimo, quatro
meses. Seis leitos, instalações culinárias, sanitárias, mapas, equi-
pamento de navegação, um transceptor de rádio, peças de reposi-
ção para os acessórios básicos — estava tudo ali. Tinha que estar,
quando se viajava num planeta como esse.
Para passar pela porta, que não estava trancada, Van Rijn
envergou o corpanzil. Depois, ajeitou-se no assento do piloto. Ao
lado dele, Joyce arriou. Uulobu entrou, tinha os olhos assusta-
diços, os pêlos trêmulos. Entre os t’kelanos, apenas os Anciãos
gostavam de andar nos veículos. Isso, entretanto, não constituiria
problema, Joyce lembrou-se, apática. Nas viagens de campo, assim
que se estabelecia, no interior, o ambiente terrestróide, os guias e
os guardas subiam para o topo do carro, comunicando-se através
do intercomunicador. Desta maneira, muitos quilômetros foram
cobertos, muita coisa se aprendeu, muitos planos foram traçados
para salvar o mundo. . . Mas, agora. . .
As mãos gordas de Van Rijn movimentavam-se, ágeis, nos
controles.
— Na minha empresa, usamos Landmasters. Não gosto mui-
to destes Globetrotters. Bem.. . às vezes os nossos rapazes têm
que. . . hummm . . . usar o produto do concorrente. Assim, sabe-
mos.. . Ah!
O motor ronronou, viveu. Ao passar pela porta, cujo teto era
de um metro de altura, Van Rijn preferiu, às rodas tão barulhen-
tas, usar a propulsão de campo.
Mas nem precisaria ter se dado ao trabalho. Ali no domo, as
outras portas começaram a expelir shangas. Talvez centenas deles,
pensou Joyce. Os lábios de Van Rijn retesaram, exibiram dentes.
— Querem brincar, hein?
Van Rijn acendeu os holofotes.
Um guerreiro foi apanhado no facho de luz e, tão espantado,
ali ficou imóvel, silhuetado contra a escuridão. Joyce o percorreu
com os olhos, de um lado a outro, como se algo visível pudesse
explicar por que a hostilizara. Era um t’kelano típico da localidade.
Em outras regiões, a raça era diferente. Na maioria dos planetas,
as raças costumavam variar; não tanto, entretanto, quanto as ra-
ças humanas.
Aquela forma robusta tinha um metro e cinqüenta de altura;
bastante esteatopígico para armazenar líquido numa terra resse-

66
quida. As mãos e os pés eram de forma quase humana, não fossem
as unhas grossas, azuis, e os quatro dedos por peça. 0 pêlo, que
cobria todo o corpo, era cor-de-laranja-vivo, listrado em negro; no
peito, um triângulo em branco. A cabeça era redonda, com orelhas
pontudas e olhos felinos enormes, amarelos, dois cachos carnosos
na testa, uma única narina que se estendia de um lado a outro do
nariz largo, uma boca sem lábios, repleta de dentes brancos, afia-
dos, emoldurados por cílios irrequietos. O guerreiro portava uma
espada — o chifre, em forma de lâmina, de um gondyanga, com
cabo de madeira — e um escudo circular pintado nas cores da Hor-
da Yagola, à qual pertencia o clã shanga.
Com a boca, Van Rijn fez “Bi! Bi!”,e arremessou o carro à
frente.
O guerreiro saltou de lado, na hora exata. Os outros tenta-
ram atacar. De relance, Joyce viu um deles com um apito na boca,
feito de cilindro ósseo. Os yagolas jamais usavam gritos de guerra
formais; haviam evoluído para a música. Algumas lanças se cho-
caram contra as laterais do carro. E Van Rijn conseguiu passar;
afastou-se a cem quilômetros horários, e deixou, como um cometa,
uma cauda de poeira. Perguntou:
— Para onde vamos agora? Para o outro lado da montanha.
Você disse que o pessoal lá é muito sorridente.
Joyce enrijeceu o corpo.
— Os Anciãos? Não. Devem ter sido eles que causaram tudo
isso!
— Ah, é? Por quê?
— Não sei, não sei. Sempre foram tão prestativos. Mas... só
podem ter sido eles. Eles instigaram. Ninguém mais teria feito isso.
Nós... nunca tivemos inimigos dentre os clãs. Assim que calcu-
lamos a bioquímica deles, sintetizamos alguns remédios e... e os
ajudamos.
De repente, Joyce percebeu que estava prestes a chorar.
Apoiou o capacete nas mãos, e soltou todos os controles emocio-
nais.
— Pronto, pronto. Está tudo bem.
Van Rijn acariciou-lhe o ombro.
— Você é uma menina valente; e muito bonita também. Ago-
ra, vamos. Relaxe. Divirta-se.

T’Kela girava uma vez a cada trinta horas e alguns minutos,


com oito graus de inclinação axial. Quando o carro parou, a cem
67
quilômetros de Kusulongo, ainda era noite alta. Os fugitivos baixa-
ram acampamento. Uulobu foi lá para fora com um saco de dormir.
Enquanto isso, os outros dois propiciaram as condições terrenas
para o interior do carro, descascaram-se dos uniformes e subiram
nos leitos. Apesar dos roncos de Van Rijn, Joyce dormiu.
O alvorecer veio despertá-la. O sol vermelho raiou a leste,
com o brilho de uma brasa que fenece. Embora com um diâmetro
aparente de quase uma vez e meia o diâmetro do Sol visto da Terra,
ou de Pax, visto de Esperança, a luz era opaca, aos olhos humanos.
Sombras espessas penetravam em todo declive, em toda fenda; o
horizonte, perdido na escuridão. O céu era violeta-escuro, sem nu-
vens, repleto, porém, ao sul, das plumas amarelas de uma tem-
pestade de poeira. Mais próxima, estendia-se a planície, nua, não
fossem a escassa vegetação cinza, os penedos esparsos, o campo
de gelo, tremeluzente, frio, não muito longe, ao norte. Um animal
necrófago, no alto, volteava, traiçoeiro, com asas plumosas, coriá-
ceas.
Joyce sentou-se. Todo o corpo doía. Mas ela mal o percebeu,
pois lembrar do que aconteceu provocou dentro dela um grande va-
zio. Desejou enfurnar-se nas cobertas, afundar a cabeça e dormir
de novo. Dormir até que chegasse o socorro, se chegasse.
Obrigou-se a levantar. Foi à cabine do banheiro, fez a higiene,
e trocou de roupa. Vestiu calça e blusa. Refrescada, sentiu fome.
Voltou ao compartimento central do carro e começou a trabalhar
no fogão.
O cheiro de café acordou Van Rijn.
— Ahhh...
Deitado, como uma baleia, ainda vestindo o forro, que nem se
incomodara em tirar, levantou-se do leito e apanhou uma xícara.
— Ótimo...
Desconfiado, cheirou o café.
— Mas, sem brandy? Depois de tanta confusão, precisamos
de brandy.
— Não há bebidas alcoólicas aqui — retrucou Joyce, imedia-
ta.
— O quê?...
Por algum tempo, a única coisa que o mercador conseguiu fa-
zer foi olhar para Joyce com olhos retorcidos. As papadas tomaram
a cor-de-pulga. Os bigodes tremeram. A voz embargou:
— Nada para beber? Por quê? Isso me deixa enfurecido! Quem
é o responsável? Eu juro, vou providenciar para que seja colocado

68
em todas as listas negras, daqui até a Estrela Polar.
— Temos café, chá, leite em pó e sucos de frutas. A água é
obtida do gelo lá de fora. A unidade química remove a amônia e as
outras impurezas. Quando estamos no campo, Cidadão Van Rijn,
não ocupamos espaço do depósito com bebidas alcoólicas.
— Os civilizados ocupam. Deixe-me ver o estoque de alimen-
tos. Van Rijn vistoriou o armário mais próximo. Lamentou:
— Carne defumada, legumes defumados. Tudo defumado!
Quanta morte, quanta destruição! Nem uma latinha de caviar? Vo-
cês querem me ver esfarelar?
— O senhor ainda tem que agradecer por estar vivo.
— Não nessas condições... Bem, vejo que pelo menos um cé-
rebro devia estar funcionando. Alguém colocou cigarros aqui.
Van Rijn apanhou uma mancheia, esmigalhou-os dentro de
um cachimbo de urze branca, que trouxera escondido no peito.
Acendeu. A baforada foi ter com Joyce. Ela sentiu náuseas, voltou
para o trabalho no fogão. E saiu batendo os utensílios, com maior
ferocidade que a necessária.
Sentado à mesa escamoteável, junto a um dos janelões, Van
Rijn enfiava a papa goela abaixo e espiava a paisagem escurecida.
— Ufa! Que lugar, hein? É como se fossem caldeiras de fundi-
ção no próprio inferno! Há quanto tempo você já está aqui?
Joyce preferiu ser complacente.
— Eu? Há mais ou menos um ano, como biotécnica. Mas a
missão esperanciana já está aqui há muitos anos.
— Ja, sei disso. E não sei como conseguem. Eu estava aqui
há apenas dois dias, você se lembra, quando o barulho começou.
Além disso, os planetas são coisas tão grandes, tão complicadas.
Demora muito para começar a compreendê-los. E eu tenho mais o
que fazer, não tenho tempo para investigar as coisas por aqui.
— Fiquei mesmo espantada de o senhor ter vindo para cá.
O seu negócio é condimentos, e coisas do gênero, não é? Mas aqui
não há nada que apeteça aos humanos. Poderíamos comer certas
proteínas, certos compostos biológicos — nem todos são venenosos
para nós. Mas carecem de coisas de que precisamos, como certos
aminoácidos, e têm gosto horrível.
— Minha empresa negocia com não-humanos também — ex-
plicou Van Rijn. — Há não muito tempo, minha equipe de pesqui-
sas esbarrou nos originais do relatório científico da expedição que
descobriu este planeta há quinze anos. Esta galáxia é tão gran-
de que é impossível, a qualquer um, controlar tudo o que aconte-
69
ce. Estamos sempre atrás dos acontecimentos. Mas, de qualquer
modo, havia menção a um certo vinho feito pelos nativos.
— Ah, o Kungu. Quase todos os clãs do hemisfério o fazem.
Eles cultivam uvas, e outras plantas que produzem fibra. Não que
sejam fazendeiros. São uma raça carnívora; nômade, com exceção
dos Anciãos. Mas, eventualmente, plantam algumas sementes, e,
na época oportuna, vêm para a colheita.
— Exato. Bem, como você sabe, os primeiros exploradores
vieram de Throra, um planeta bastante semelhante a este, apenas
não tão repulsivo. Acharam o kungu delicioso, e até quiseram levar
as sementes. Descobriram, entretanto, que a planta — por causa
da ecologia, e coisa e tal — só nascia neste mundo. Aí estava, pen-
sou Nicholas van Rijn, uma chance de articular um ligeiro comér-
cio com Throra. Então, por não ter, na Terra, ninguém de confiança
para mandar para cá, vim pessoalmente. Puxa, como é duro ser
assim, tão só!
Van Rijn fez boca mole, em busca do efeito. A mão cabeluda,
furtiva, atravessou a mesa e apertou a mão de Joyce.
Joyce desvencilhou-se e, de um salto, ficou de pé.
— Aí vem Uulobu!
Bem na hora, pensou; abençoados sejam seus dois cora-
ções!
Em galope ligeiro, o t’kelano atravessava a planície. Nos om-
bros, suspenso, trazia um animalzinho morto, que caçara. Uulobu
trajava-se de maneira diferente, em relação aos shangas: um colar
de conchas fósseis, e uma tanga azul, de costuras soltas, caracte-
rísticas do clã — Avongo — e da Horda — Rokulela — a que perten-
cia. Na cintura, trazia uma bolsa de couro cheia de líquido.
Joyce engrolou, esperta, algo frenética, pois Van Rijn borde-
java a mesa e vinha em sua direção.
— Veja, ele encontrou uma fonte de amônia. É para isso que
servem aqueles cachos, o senhor sabia? São sensíveis aos vestígios
do vapor de amônio. Este é um mundo muito seco. Muita água
congelada, claro. Em qualquer lugar que se vá, neste planeta, exis-
te gelo. Centenas de quilômetros quadrados, numa estirada só. A
temperatura máxima, aqui é de quarenta graus Celsius, abaixo de
zero. E o gelo não faz bem à vida indígena. De fato, isso é uma das
coisas que está matando este mundo.
Van Rijn irritou-se, foi até a janela. Uulobu chegou ao carro,
e dirigiu-se ao intercomunicador:
— Fêmea celeste, encontrei pegadas de caçadores ao largo,

70
rumando oeste, para Lubambaru. Só podem ser rokulelas. Creio
que podemos encontrá-los sem muito trabalho. E também saciei
minha sede, e consegui carne para a minha fome. E agora tenho
que oferecer aos Reais a sua quota.
— Claro — comentou Joyce. — Ofereça por todos nós.
Uulobu começou a juntar gravetos para fazer a fogueira. Van
Rijn perguntou:
— O que foi que ele disse?
Joyce traduziu.
— Está vendo? Não há nenhuma utilidade, para nós, em nos
associarmos a estes selvagens. Temos apenas que esperar por so-
corro.
Joyce estremeceu.
— Se o socorro vier. Lá em Esperança, quando souberem o
que aconteceu, enviarão uma expedição para investigar o que hou-
ve de errado. Mas talvez não se apressem, pois não sabem que
estamos vivos.
Van Rijn assegurou:
— Meu povo virá. A Liga para a Ciência do Sol Polar preocu-
pa-se com seus membros, ora. Assim que a informação chegar à
Terra, uma nave de guerra virá fazer uma investigação completa.
Dentro de um mês.
— Ahh, que bom!
Joyce respirou, relaxou e sentou-se novamente. Van Rijn
franziu o cenho. Ruminou:
— É claro que não vão conseguir procurar no planeta inteiro.
Vão saber que estive naquele lugar fedorento dos kusulongos, e vão
aterrissar lá. Creio que aqueles Velhotes, ou Senis, como é mesmo
o nome deles?, já estão tão sofisticados em questões interestelares,
que são capazes — se não estivermos por perto para estavelecer
contato — de querer iludi-los com alguma estória. Portanto... tere-
mos que permanecer na área, ao alcance do rádio. E o alcance do
rádio é muito curto, num planeta de anã vermelha, pois são fracos
os traços característicos da ionosfera. Mas, também não podemos
nos aproximar dos inimigos, já que estão nos caçando, aos gritos,
por todo o lugar. Podem ter cavado armadilhas, podem nos atirar
bombas caseiras, ou algo assim... De um modo ou de outro, podem
nos matar neste carro. Ergo, devemos nos estabelecer, com toda
força de ataque, na periferia de kusulongo. Isto significa que vamos
precisar de aliados e, assim, você tem razão; devemos, com certeza,
ir ter com os povos do seu amigo.
71
Joyce protestou:
— Mas o senhor não vai conseguir que lutem contra a própria
raça!
Van Rijn enrolou o bigode, e riu, irônico.
— Por que não?
— Quer dizer. .. eu não saberia como consegui-lo, em termos
práticos. Mas, mesmo que o senhor o conseguisse., não estaria
correto.
Por um momento, Van Rijn olhou para Joyce.
— Humm.. . Já ouvi dizer que vocês, esperancianos, são ide-
alistas. Que seus ancestrais estruturam o planeta com vistas a
uma comunidade utópica, e vocês ainda estão fazendo o bem para
todos, até hoje, nie? A missão de vocês, a de vir ajudar este planeta,
não tem objetivo de lucro. Faz, apenas, com que se sintam bem...
E, sob o feitiço da honestidade, imbuído em sua cultura,
Joyce admitiu:
— Mas é, também, uma questão de política exterior. Ao pres-
tar assistência a outras raças, conquistamos sua boa fé e os per-
suadimos, um pouco, a ver as coisas a nosso modo. Se, agindo
assim, Esperança conseguir muitos amigos, será forte e influente
sem ter que manter serviços armados.
— Pelo que vejo, duvido muito que vocês possam transformar
esses t’kelanos em conselheiros paroquiais.
— Bem... concordo. São carnívoros ao extremo. Mas o ho-
mem não começou como um primata carnívoro? E os t’kelanos des-
ta área já tiveram, certa feita, há milênios, uma civilização agrícola.
Isto é, passaram a cultivar trigo para alimentar os animais de corte.
Dessa civilização, o último remanescente é Kusulongo a Cidade. O
resto foi varrido pela idade do gelo, que deixou apenas a selvageria;
no máximo, o barbarismo. Em vista, porém, da melhoria das con-
dições, tenho certeza de que os autóctones podem recriá-la. Eles
jamais terão nações unificadas, ou coisas assim, da maneira como
as compreendemos. Não são suficientemente gregrários. Mas são
capazes de desenvolver uma ordem de mundo e adotar a tecnologia
das máquinas.
— Exceto, pelo que você me contou a respeito delas, que
aquelas cobras, acocoradas lá no alto da montanha, não querem
que isto aconteça, certo?
Joyce fez uma pausa, breve, apenas para tentar compreender
como seria possível, a uma cobra, ficar de cócoras. Depois, confir-
mou com a cabeça.

72
— É, creio que não, embora não consiga entender o porquê.
Os Anciãos, no início, sempre foram muito prestativos.
— O que significa que precisam que um pouco de juízo seja
inculcado naquelas cabecinhas ossudas. Então, para o bem eterno
de t’Kela, vamos providenciar a inculcação, você e eu.
— Bem... talvez. Mas, mesmo assim... Van Rijn acariciou-lhe
a cabeça, presunçoso.
— Deixe a filosofia comigo. Você tem apenas que cozinhar, e
ficar bonita.
Uulobu acendera a fogueira; nela, atirara os olhos da vítima.
Lúgubre, o canto aos deuses gemeu, atravessou a parede do carro.
Van Rijn estalou a língua.
— Material nada promissor, hein? Civilizem-nos vocês, se
quiserem. Eu me contento em chegar em casa sem ser espetado
por aquelas lanças tão afiadas.
E reacendeu o cachimbo. Sentou-se ao lado de Joyce.
— Para agir, preciso compreender a situação. Que tal você
explicar? Alguma coisa você já me contou, mas não há mal algum
em repetir...
Acariciou-lhe o joelho.
— ... e, enquanto você fala, posso apreciar seus lábios, e tudo
o mais.
Joyce levantou-se, foi apanhar mais uma xícara de café.
Quando voltou, sentou-se mais longe. Forçou-se a usar um tom
impessoal.
— Bem, para começar, este planeta é bem incomum. Não em
termos físicos. Quer dizer, não há nada de estranho no fato de uma
estrela anã, do tipo M, possuir um planeta a uma distância de me-
tade de uma U.A., com uma massa de cerca de quarenta por cento
superior à da Terra.
— Tanto assim? Deve ser densidade baixa, então. Falta de
metal.
— É. O sol é muito velho. Poucos átomos pesados estavam
disponíveis à época em que se formou, com seus planetas. A gra-
vidade específica total de t’Kela é de apenas quatro vírgula quatro.
Existe, é claro, um pouco de ferro, um pouco de cobre. E o senhor
deve saber, estou certa, que a vida, nestes mundos, começa bem
devagar. Os sóis emitem tão pouco ultravioleta, mesmo nos perío-
dos de incandescência, que os materiais orgânicos primordiais não
dispõem de energia para interagir com rapidez. Mesmo assim, a
vida começa, num dado momento, nos oceanos de amônia líquida.
73
— Ja. E costuma ter continuidade para, em seguida, desen-
volver a fotossíntese, usando amônia e dióxido de carbono, e fabri-
car carboidratos, e o nitrogênio que os animais respiram.
Van Rijn deu um tapinha na testa inclinada.
— É tanta coisa que eu tenho aqui dentro desta sineta velha
e estúpida! Mas por que, de vez em quando, a evolução ocorre de
maneira diferente, com aqui e em Throra?
— Ninguém sabe ao certo. Algum agente catalítico, talvez.
Em todo caso, mesmo nestas temperaturas baixas, nem toda água
é sólida. Há uma certa quantidade presente nos oceanos, como
parte das moléculas de hidróxido de amônio. As células vegetais
t’kelanas ou throranas têm seu análogo para a clorofila, que de-
sempenha a mesma função: a de usar o dióxido de carbono gasoso
e água “dissolvida” para obter carboidratos e liberar oxigênio. Os
animais invertem o processo, da mesma maneira como o fazem na
Terra, embora não desprendam a água liberada, que permanece
nos tecidos, conservada, livremente, por uma molécula especia-
lizada. Sempre que um organismo morre, ou apodrece, esta água
é novamente absorvida pelas plantas. Em outras palavras, aqui o
H—dois—O tem ação bastante semelhante à ação do material orgâ-
nico nitrogenoso no nosso tipo de planeta.
— E o oxigênio, desprendido pelas plantas, ataca a amônia.
— Isso. O processo é lento, especialmente em vista do fato
de que a amônia sólida é mais densa que a fase líquida. Ela desce
para o fundo dos oceanos e fica, assim, protegida contra a ação do
ar. Mesmo assim, há uma conversão gradual. Através de uma série
de passos, a amônia e o oxigênio produzem nitrogênio livre e água.
A água congela. Os mares encolhem; o ar torna-se mais carente de
oxigênio; aumentam as áreas desérticas.
— Isso eu aprendi em Throra. Embora, lá, o equilíbrio tenha
sido atingido. As bactérias fixadoras de nitrogênio evoluíram e a
ressecagem foi interrompida, há bilhões de anos. Foi o que me dis-
seram, certa feita.
— Thora teve sorte. É um planeta pouco maior que t’Kela,
não é? A atmosfera é mais densa e, portanto, há maior conservação
de calor. Nesses mundos, o efeito de estufa depende do dióxido de
carbono e do vapor de amônia. Bem, há milhares de anos, t’Kela
atravessou uma fase crítica. Bastou que se perdesse uma certa
quantidade de amônia para que o efeito de estufa se reduzisse con-
sideravelmente. Com a queda da temperatura, quantidades cada
vez maiores de amônia líquida solidificavam-se, iam para o fundo,

74
onde estavam protegidas da liquefação. Isso ocasionou uma mu-
dança climática catastrófica, de tão súbita. As temperaturas caí-
ram tanto que até o dióxido de carbono passou a liquefazer-se, ou
mesmo solidificar-se, durante parte do ano. Ainda existe algum
vapor na atmosfera, em equilíbrio, mas muito pouco. O efeito de
estufa caiu de verdade!
— Como o senhor pode imaginar, a vida vegetal ficou muito
abalada. Sem o dióxido de carbono e a amônia, necessárias a cons-
truir-lhes os tecidos, não pode desenvolver-se. E, com ela, foi-se a
vida animal. Áreas do tamanho de um continente terrestre torna-
ram-se inteiramente áridas, quase de um dia para o outro. Eu já
mencionei que a civilização agrícola nativa foi dizimada. Mas, pior
que isso, a geologia nos ensina que as bactérias fixadoras de nitro-
gênio foram destruídas. Completamente. Não conseguiram sobrevi-
ver às temperaturas do inverno. Portanto, já não há mais qualquer
força para equilibrar a oxidação da amônia. Por todo lugar, os de-
sertos aumentam, ano após ano... e o ano de t’Kela é apenas seis
décimos do ano-padrão. A evolução tem trabalhado muito, tentan-
do adaptar a vida à mudança, mas já não consegue acompanhar-
lhe o passo. Estimamos que, dentro de mais um milênio, todos os
animais superiores, incluindo os nativos, estarão extintos. Em dez
mil anos não haverá mais um único ser vivo por aqui.
Embora Joyce já convivesse, há meses, com a constatação,
falar no assunto sempre a chocava. De tanto bater na borda da xí-
cara de café, os dedos feriram-se. Pela janela, viu passar a nuvem
de poeira. Procurava conter o choro.
Por um instante, em silêncio, Van Rijn exalou nuvens espar-
sas de fumaça. Depois, quase gentil, murmurou:
— Mas vocês já têm um programa de cura elaborado, ja?
— Já... já. Temos sim. A pesquisa está pronta e já estamos
em vias de convocar os engenheiros.
Prosseguir, reconfortou-a.
— A solução definitiva, claro, é reintroduzir as bactérias fixa-
doras de nitrogênio. Nossos laboratórios projetaram uma espécie
extremamente produtiva, que irá necessitar, entretanto, para so-
breviver, de uma ecologia apropriada. E isto significa muito tra-
balho para a química de solos, um programa microagrícola. Mas
podemos apressar as coisas, com métodos menos sutis, e já, dentro
de uma década, começar a apresentar resultados. E, de fato, tere-
mos que fazê-lo pois, do contrário, o processo de morte sobrepujará
todas as conquistas das bactérias. Vamos desmanchar a água, e
75
liquefazê-la. O oxigênio poderá ser liberado diretamente para o ar,
refrescando-o. Parte dele, porém, servirá para a queima do hidro-
carboneto local. t’Kela é muito rico em petróleo. A queima irá gerar
dióxido de carbono e, desta maneira, fortalecerá o efeito de estufa.
E a energia química liberada poderá igualmente suplementar as es-
tações de energia nuclear que instalaremos, para realizar a eletró-
lise a ativar a combinação do hidrogênio da água com o nitrogênio
da atmosfera e, por fim, recriar a amônia.
— Trabalho bastante dispendioso, não?
— Muito. O maior já empreendido por Esperança. Mas os
planos e as estimativas já estão elaborados. Sabemos que podemos
fazê-lo.
— Isto se os nativos, a título de exercício após as refeições,
não resolverem praticar nos engenheiros.
Joyce baixou a cabeça.
— É verdade. Isto inviabilizaria o projeto. Temos que contar
com a boa vontade deles, em todas as regiões. Terão que coope-
rar, trabalhar conosco e entre si, num esforço conjunto de todo o
planeta. E Kusulongo a Cidade tem influência sobre um quarto de
todo este mundo! Não sei o que houve. Pensei que fossem nossos
amigos...
— Talvez possamos — insinuou Van Rijn — arranjar alguns
guerreiros para acertá-los com flechas até gostarem de nós.

O carro prosseguiu, ligeiro, mesmo em terreno tão irregu-


lar. Depois de uma hora de iniciado o trajeto, Uulobu gritou, lá do
assento do teto. Pela clarabóia, os humanos viram-no inclinar-se
sobre o pára-brisa da guarda e apontar. Ao olhar na direção do
local apontado, viram uma nuvem de poeira no horizonte noroeste,
maior e mais baixa que a que haviam visto ao sul. Uulobu disse:
— Animais pastoreados. Naveguem para lá, povo celeste.
Joyce traduziu. Van Rijn moveu a alavanca naquela direção,
e observou:
— Pensei que você havia dito que eles eram apenas caçado-
res. Mas... pastores?
— A economia do povo da Horda tem algo dos antigos criado-
res de gado mongóis e dos caçadores de bisonte ameríndios. Atual-
mente, não fazem uso doméstico dos izirus nem dos bambalos. Já
os utilizaram, outrora, antes da era glacial. Agora, porém, a terra
já não comportaria tamanha concentração de pastores. As Hordas
ainda, de fato, exercem algum controle sobre as migrações dos re-

76
banhos; selecionam-nos e os protegem contra os predadores.
— Hummm... Mas, o que são estas Hordas?
— Seria difícil descrevê-las. Nenhum humano as entende, na
verdade. Não que a psicologia t’kelana seja incompreensível; mas é
não-humana, e nossa.missão tem andado tão ocupada angariando
informações planetográficos que ainda não teve tempo para reali-
zar estudos psicológicos em profundidade. Palavras como “bando”,
“clã” e “Horda” são traduções grosseiras de termos nativos — im-
precisas, com certeza — assim como “t’Kela” é um nome arbitrário
pelo qual nos referimos a todo o planeta. Na língua Kusulongo,
“t’Kela” significa “esta terra”.
— Está bem, não há necessidade de me embromar com as
obviedades. Já entendi. Mas, escute, Cidadã Davisson... Ou posso
chamá-la de Joyce?
Van Rijn amanteigou o tom.
— Nós estamos no mesmo barco, para afundar ou nadar, se
existisse água. Portanto, por que não travarmos amizade?
E inclinou-se insinuante, na direção de Joyce.
— E você pode me chamar de Nicky.
Joyce afastou-se, para o lado, e disse, com a voz mais conge-
lada que conseguiu emitir:
— Eu não posso evitar que o senhor se dirija a mim como
queira, Cidadão Van Rijn.
— Ha! Ha! Quem me dera ser jovem de novo, não tão adipo-
so assim! Mas, que sou eu? Todo velho solitário tem que engolir a
tristeza.
Van Rijn suspirou, num furacão autopiedoso.
— E, a propósito de “engolir”, por que é que não tem pelo me-
nos uma caixa de cerveja aqui? Uma caixa só? Uma hora ou duas
de goles, para fazer sentar as tempestades de areia na minha goela
de múmia. Será que é pedir muito?
— Mas, não tem mesmo!
Joyce contraiu os lábios. A viagem prosseguiu, em silêncio.
Atualmente, cultivavam rebanhos: o iziru, corcovado, de cau-
da espinhosa, do tamanho do gado terreno. Atingiam os milhares,
Joyce estimara, segundo experiências anteriores. A vegetação tão
escassa exigia que se espalhassem por muitos quilômetros.
Dois nativos, a uma certa distância, viram o carro e vieram
a galope. Montavam dois basai, que lembravam antílopes gran-
des, corpulentos, com focinhos de anta, um chifre comprido. Os
t’kelanos usavam tangas semelhantes às de Uulobu; em vez de co-
77
lares de concha, porém, medalhões de couro.Van Rijn parou o car-
ro. Os nativos frearam, e puseram armas a postos, o arco esticado
e a flecha curta.
Uulobu pulou do teto e aproximou-se, as mãos espalmadas.
Saudou-os, por ordem formal de importância.
— Sorte na caça, força, saúde e prole! Eu sou Uulobu, filho
de Tola, Avongo, Rokulela, e agora acompanho o povo celeste.
O guerreiro mais velho, grisalho, foi frio.
— Estou vendo.
O mais jovem rosnou e, num floreio elaborado, recolheu o
arco. Uulobu firmou a mão na machadinha. O velho fez um gesto
algo conciliador, e Uulobu relaxou um pouquinho.
Atento, Van Rijn estivera a observar.
— O que é que estão dizendo? Quero saber palavra por pala-
vra. O que foi aquela bobagem com as armas?
Inauspiciosa, Joyce respondeu:
— Aquilo foi um insulto que o arqueiro lançou a Uulobu. De-
sarmar-se antes de realizadas as cerimônias de paz. Significa que
Uulobu não é temível o bastante para que se preocupem com ele.
— Ah, então é isso! Valentões, hein? Não há garantia de paz
nem mesmo dentro das próprias Hordas. Ha! E por que a grosseria
com Uulobu? Ele não goza de prestígio por trabalhar para vocês?
— Receio que não. Já perguntei isso a ele uma vez. Ele é o
único t’kelano a quem me atrevo a perguntar essas coisas.
— Ja? Por quê?
— Dentre os nativos, ele foi o único que, pode-se dizer, che-
gou a ser amigo íntimo do pessoal da missão. Nós o salvamos de
uma morte horrível. Acabáramos de descobrir a cura para o equi-
valente local do tétano, no momento em que ele foi infectado. Ele é
grato a nós, embora exista, também, um motivo de ordem econô-
mica. Nossos assistentes regulares estão, ou melhor, estiveram ar-
ruinados, certa feita. Ou por causa de uma seca que lhes dizimou
a caça no território, ou então foram desapropriados. Foi qualquer
coisa assim.
Joyce mordeu os lábios.
— Eles... eles nos juraram lealdade... à maneira tradicional...
e o senhor bem sabe que lutaram por nós com muita bravura. Mas
o fizeram em nome da própria honra. Em termos de afeição real,
porém, o único a demonstrar algo do gênero, com relação aos hu-
manos, foi Uulobu.
— É estranho, já que vocês vieram aqui para ajudá-los. Mas,

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caramba! Vocês são mesmo um monte de cabeças de sororoca. Vo-
cês deveriam ter começado, em primeiro lugar, com a psicologia
profunda. Aquela planetografia idiota poderia esperar. Suas soro-
rocas podres, fedorentas, que, ainda por cima, ficam azuis na es-
curidão!
O rosnado de Van Rijn afunilou-se num sussurro. Ele se sa-
cudiu e exigiu que a tradução prosseguisse. Joyce relatou:
— O mais velho se chama Nyraronga, chefe do bando. O
outro, é claro, é um de seus filhos. Pertencem ao Gangu, clã da
mesma Horda que o Avongo, de Uulobu. As formalidades já foram
concluídas, e fomos convidados a ir compartilhar do acampamento
deles. Essa gente se torna muito hospitaleira, à moda deles, depois
que percebem as boas intenções.
Os dois partiram, em disparada. Uulobu regressou, e infor-
mou, pelo interfone:
— Eles têm que andar depressa. O sol vai brilhar, hoje, e
cobrir-se ainda é uma boa maneira de proteção. É melhor que os
sigamos bem de perto, para não estourarmos os animais, fêmea
celeste.
Ágil, Uulobu subiu para o teto. Enquanto Van Rijn ligava o
carro, Joyce transmitia as palavras de Uulobu.
— Uma coisa de cada vez — interrompeu o mercador — como
disse aquele sujeito, um dia ao cumprimentar um polvo. Diga-me
tudo o que tem a dizer, mas, para começar, vamos voltar ao por que
os nativos não são gentis com os que trabalham na missão.
— Bem, pelo que pude depreender, através de Uulobu, os que
nos procuraram eram todos expatriados. Isto é, não mais se man-
tinham nas terras de caça de seus ancestrais, o que é uma grande
perda de respeitabilidade. Depois, também, confessou — muito en-
vergonhado — que o prestígio dos que nos ajudavam decaía porque
não os envolvíamos em guerra alguma. Espalhava-se a acusação
de que eram covardes.
— Cultura guerreira, hein?
— Não. De maneira alguma. Eis o paradoxo. Eles não têm
guerras, vendettas, no sentido em que as conhecemos. Embora
aconteçam com freqüência, as guerras são questões menores. Creio
que isto seja fruto da organização política. Será que é? Nas regiões
remotas de t’Kela, percebemos a mesma coisa entre sociedades da
cultura Horda de características inteiramente diferentes.
— Explique e, enquanto isso, faça a gentileza de me fazer um
sanduichezinho de quatro andares.
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Joyce mordeu os lábios, engoliu a contrariedade e foi até o
aparador do fogão.
— Como disse, nós nunca chegamos a desenvolver, mesmo
em termos locais, pesquisas xenológicas intensivas. Sabemos, en-
tretanto, com certeza, que a unidade social básica é a mesma em
todas as regiões deste mundo. E o que chamamos de bando, e se
origina do fato de que a proporção sexual é de três fêmeas para
cada macho. Vivendo juntos, nós temos o macho mais velho, as
esposas, e os rebentos de idade subadulta. Todos os machos, e
todas as fêmeas desimpedidas de encargos maternais, participam
na caça, embora apenas os machos participem das lutas com ou-
tros t’kelanos. Os pequenos... quer dizer... as crianças ajudam no
trabalho do acampamento. E também as viúvas do pai do líder, que
este, porventura, tenha acolhido. Um bando desses tem, mais ou
menos, uns vinte elementos, quantidade capaz de viver numa área
que possa ser coberta a pé, neste planeta deserto.
— Entendo. O bando t’kelano corresponde à família huma-
na. É tão universal quanto ela, também, não? Quanto às unidades
maiores, talvez se organizem de maneira diferente, conforme a cul-
tura.
— Exato. O bando é o máximo de organização atingido pe-
los selvagens mais atrasados. A sociedade Kusulongo, porém, ou,
como a chamamos, o povo da Horda — a cultura maior, e a mais
avançada, ocupando mais da metade do hemisfério — possui uma
superestrutura mais elaborada. Dez ou vinte bandos formam o que
chamamos de clã, um grupo cooperativo que alega descendência
de um macho ancestral comum, e que controla um vasto territó-
rio por onde pastoreiam os rebanhos selvagens. Os clãs, por sua
vez, são livremente confederados em Hordas, e cada um deles re-
aliza sua reunião anual, em algum oásis tradicional, para efetuar
as permutas, socializar-se, tratar dos casamentos — os machos
recém-adultos compram esposas e dão início a novos bandos — é
isso mesmo, e para julgar as disputas, por arbítrio ou combate. Há
muitas rixas entre os clãs, sobre questões de honra ou assuntos
práticos, como as fontes de amônia. Todos quase sempre se casam
dentro da própria Horda. Cada Horda tem sua própria indumentá-
ria, seus costumes, deuses, e assim por diante.
— E não há guerra entre as Hordas?
— Não, a menos que você queira chamar de guerra as coi-
sas terríveis que costumam acontecer durante o Völkerwanderung.
Normalmente, embora unidades isoladas, das diferentes Hordas,

80
possam entrar em choque, não existe campanha organizada. Creio
que por não possuírem excedentes econômicos que lhes permita
manter exércitos no campo.
— Hummm... Eu desconfio, eu, que o motivo é mais pro-
fundo. Quando os humanos querem fazer guerra, não deixam que
questõezinhas menores os interrompam. E eu duvido que os fkela-
nos sejam diferentes. Hummm...
A mão livre de Van Rijn pôs-se a puxar o cavanhaque.
— Talvez seja esta a chave que irá abrir o cadeado e resolver
nosso problema, se conseguirmos descobrir corno enfiá-la no ca-
deado.
— Bem, os Anciãos são antibelicosos. Costuman mediar as
disputas inter-Hordas, dentre outras coisas.
— Ah, claro, aqueles sujeitos das montanhas. Fale a respeito
deles. Joyce terminou de fazer o sanduíche, deu-o a Van Rijn, que
o devorou, ruidoso. Joyce sentou-se, contemplou a cena: arbustos,
penedos e a poeira em remoinho, à luz rude, vermelha, a massa es-
cura do rebanho ao largo, um cavaleiro voltando, a galope, para re-
colher os desgarrados. Lá, bem mais adiante, via-se o Lubambaru,
uma cordilheira de gelo, picos pontiagudos que tremeluziam contra
o céu crepuscular. Indistintos, para ela, por sobre o murmúrio do
motor, vieram os gritos, o frear dos animais. O carro chacoalhou,
bateu. Joyce sentiu a superfície nos ossos. Disse:
— Os Anciãos são sobreviventes da civilização perdida. Per-
maneceram em sua cidade, e mantiveram as artes, esquecidas pe-
los demais. Esse tipo de vida não é espontâneo, para a maioria dos
t’kelanos. Eu presumo que, ao curso de milênios, aqueles que não
gostaram do lugar tenham saído para ir-se juntar aos nômades,
enquanto alguns nômades eventuais, para quem a cidade talvez
apresentasse conveniências, escalavam a montanha e eram adota-
dos pelo grupo. A seleção genética, desta maneira, estaria assegu-
rada. Os Anciãos são um tipo psicológico distinto. São muito mais
reservados e — creio que você diria... mais intelectuais — que todo
o resto.
Pelos vãos da boca cheia, Van Rijn perguntou:
— E como vivem?
— Fornecem serviços e mercadorias, e recebem em espécie.
São escribas, registram ocorrências; são médicos, metalúrgicos
qualificados, tecelões de tecidos finos; são fabricantes de pólvo-
ra, que vendem apenas fogos de artifício, pois possuem, para uso
próprio, apenas alguns canhões. E atribuem-se, a eles, poderes
81
mágicos, claro, principalmente por preverem as incandescências
solares.
— E até ontem eram amistosos?
— À sua maneira arredia, secreta. Já deviam estar plane-
jando atacar-nos há algum tempo, instigando os shangas e forne-
cendo-lhes a pólvora para explodir nosso domo. Ainda não consigo
atinar o porquê. Tenho certeza de que acreditaram em nós quando
explicamos que viemos para salvar-lhes a raça da extinção.
— Ja, sem dúvida. Só que, no início, talvez, não tenham per-
cebido todas as implicações.
Van Rijn terminou de comer, arrotou, limpou os dentes com
a unha e caiu num silêncio cismático. Joyce procurou não demons-
trar a saudade desesperada que sentia de casa.
Bom tempo depois, Van Rijn tanto futucou o painel de con-
trole que a coisa estalou. Gritou:
— Caramba! Faz sentido!
Joyce aprumou-se na cadeira.
— O quê?
— Mas ainda não sei como irá funcionar.
— A que o senhor se refere?
— Cale-se, Cidadã.
Van Rijn voltou aos pensamentos. As horas passaram-se,
lentas.

Ao fim da tarde, uma floresta surgiu-lhes à frente, encobrin-


do o sopé de Lubambaru, por onde corria, ralo, um rio de amônia,
e a infiltração, um pouco, umedecia o solo. As árvores eram baixas,
retorcidas, de troncos azuis, espinhosos, e uma densa folhagem de
folhinhas cinza-esverdeadas. Entre elas, arbustos compridos for-
mavam moitas. Os cavaleiros apressaram seus iziru bosque aden-
tro, colocaram alguns piquetes de vigia, e rumaram norte, num
grupo compacto, de quinze, ao todo, sem contar os animais de car-
ga e uns dois infantes felpudos, armados. As fêmeas eram mais
robustas que os machos, com rostos narigudos. Embora peludos e
homeotérmicos, os t’kelanos não eram mamíferos; as mães regurgi-
tavam o alimento para os pequenos que ainda não haviam cortado
as presas.
O velho Nyaronga chefiava o grupo; ao lado do corpo, a espa-
da retinia; na mão, a lança, no braço, o escudo; os olhos amarelos,
imensos, pisca-piscavam ao longo da paisagem. Os filhos crescidi-
nhos flanqueavam a comitiva; nos arcos, flechas armadas. O carro

82
rolava. Van Rijn seguia-lhes a trilha.
— Esperam encrenca?
Joyce irrompeu dos pensamentos soturnos.
— Eles sempre esperam encrenca. Eu falei, não falei?, que
eles eram uma raça briguenta? Não fazem guerra, mas costumam
ter encontros muito sangrentos. Hoje em dia, porém, essa precau-
ção é pura rotina. É óbvio que irão baixar acampamento com os
outros bandos do clã. Para controlar um rebanho desse tamanho
são necessários todos os gangus.
— Você disse que eles são caçadores, e não pastores.
— E são mesmo, na maior parte do tempo. Mas entenda que
os iziru e os bambalo estouram com o incandescer do sol, e mui-
tos chegam a morrer de tão queimados. Isto talvez se deva ao fato
de não terem desenvolvido qualquer proteção contra o ultravioleta
desde que a atmosfera começou a mudar. Como norma, os animais
grandes, de gerações duradouras, evoluem mais devagar que os
pequenos. Os clãs não podem se dar ao luxo de perdê-los e, assim,
numa época de incandescência como essa, observam de perto os
rebanhos e os conduzem a locais onde haja sombra e onde a vege-
tação rasteira impeça que fujam, em pânico.
O polegar de Van Rijn sacudiu, gesticulou, zombeteiro, ao
disco vermelho que baixava.
— Ora, essa brasa não tem energia para machucar nem mes-
mo uma borboleta doente!
— Se a borboleta for oriunda da Terra, não. Mas você conhe-
ce as anãs do tipo M. Elas incandescem, e, quando incandescem,
aumentam de luminosidade muitos centos por cento. Hoje em dia,
em t’Kela, o teor de oxigênio decresceu a tal ponto que a camada de
ozônio já não consegue bloquear tanto ultravioleta quanto deveria.
Além disso, um planeta como esse, com um centro carente de me-
tal, possui um campo magnético fraco. Algumas partículas do sol,
carregadas, também atravessam, e acrescentam-se ao cenário já
rico em raios cósmicos. A coisa não incomoda a mim, nem a você,
pois a humanidade evoluiu no sentido de suportar radiação bem
maior do que a norma por aqui.
— Ja, entendo. E talvez um dos fatores seja também a ausên-
cia de muitos minerais radioativos. Em Thora, a incandescência
não os perturba. Para eles, é até dia de festa. Mas é como você dis-
se, o mundo de t’Kela não teve tanta sorte quanto o de Throra.
Joyce estremeceu.
— O cosmo é cruel. É assim que pensamos em Esperança:
83
combater o universo, todos juntos.
— Uma bela filosofia, exceto que nem todos os seres foram
feitos para isso. Você é uma menina muito meiga, alguém já lhe
disse isso?
Van Rijn pousou, leve, o braço no ombro de Joyce. Ela perce-
beu que a coisa não a incomodava tanto assim, com a escuridão e
a tempestade de estrelas, que se formava lá fora.
Mais uma hora, e chegaram ao acampamento. Tendas de
couro, corcoveadas, circundavam um campo plano, onde havia
uma fonte de amônia. A frente das porteiras, guardadas por jo-
vens, ardiam fogueiras. As mulheres estavam agachadas mexendo
tigelas de comida; os homens, de um lado para outro, as mãos nas
empunhaduras das armas, bravateavam. A chegada do carro fez
com que todos viessem observar, sem correr, com um ar de estu-
dada indiferença.
Ou será mesmo só aparência? Joyce pensava. Lá fora, viu
a multidão, uns duzentos rostos não-humanos, com olhos a bri-
lhar, as setas das lanças a cintilar, os pêlos amassados pelo vento
chorado, sem, contudo, quase um único som de alguém. Sempre
agiram assim, todos os clãs, todas as Hordas, em todos os lugares
em que os encontramos: no início, a fascinação selvagem diante
de nosso aspecto, nossas máquinas; depois, um lapso, e a cortesia
formal e fria, como se, para o bem ou para o mal, tanto fizéssemos.
Sempre nos agradeceram, não muito calorosos, pelos favores que
lhes pudéssemos fazer, e insistiam em pagar, mas jamais nos con-
vidaram para as festas comemorativas, nem para os rituais; e as
crianças, às vezes, nos jogavam pedras.
Nyaronga ladrou. Era uma ordem. O bando começou a armar
o próprio acampamento. Os outros, gradualmente, se afastaram.
Van Rijn olhou o sol.
— Eles têm certeza de que vai incandescer hoje?
Joyce assegurou.
— Claro. Se os Anciãos disseram que vai, então vai. Não é
difícil predizê-lo, com vidro fume e um telescópio primitivo que per-
mitam observar a superfície do astro. A luz é tão débil que os fe-
nômenos das manchas e da incandescência podem ser observados
com facilidade — ao contrário das estrelas do tipo G — e os padrões
são muito característicos. Qualquer astrônomo de segunda é capaz
de predizer, com dias de antecedência, a incandescência das anãs
de classe M. Os sinais heliográficos transmitem, de Kusulongo, a
mensagem para todas as Hordas.

84
— Creio que esses Velhos Caducos herdaram, aos tempos
primitivos, o conhecimento empírico; afinal, os babilônios já co-
nheciam os movimentos planetários, ja... Caramba, e por falar no
diabo, lá vem ele!
O sol não estava muito acima das cordilheiras ocidentais,
que, contra aquele disco intumescido, apresentavam-se negras.
Uma labareda rala, de um vermelho mais claro, desprendeu-se,
lenta, de um dos lados. Os basai recuaram, guincharam. Um ronco
percorreu o povo do clã. Os machos agarraram as rédeas dos ani-
mais, imobilizaram-nos. As fêmeas apanharam as tigelas, as crian-
ças, e entraram nas tendas.
A labareda expandiu-se, clareou. A luz jorrou ao longo das
colinas sombreadas, e por trás delas, ao longo das planícies. O céu
começou a empalidecer. O vento fortaleceu-se, malhou os bosques
no contorno do acampamento.
Com força, os t’kelanos puxaram as feras, aterrorizadas, e
levaram-nas a um abrigo de couro, comprido, estendido sobre es-
tacas. Um deles negaceou. Um guerreiro girou o laço, lançou, e der-
rubou a criatura, com estardalhaço, no chão. Dois outros ajudaram
a carregá-la para dentro do abrigo. No disco solar, a protuberância
continuava a aumentar, a concentrar luminosidade, minuto a mi-
nuto. Ainda não muito brilhante para que os olhos humanos não a
pudessem enxergar desprotegidos, Joyce viu formar-se, nele, uma
teia de aranha que se alastrava em alças feéricas. Uma gota de ra-
diância brotou, morreu, renasceu. Embora já tivesse presenciado
o espetáculo antes, Joyce percebeu-se agarrando o braço de Van
Rijn. O mercador socou o cachimbo e exalou baforadas impertur-
báveis.
Uulobu desceu do carro. Joyce ouviu-o perguntar a Nyaron-
ga:
— Posso ajudá-lo a fitar o Real zangado?
— Não — respondeu o patriarca. — Entre na tenda com as
mulheres.
Reluziram os dentes de Uulobu. Nas costas, o pêlo eriçou-se.
À cintura, Uulobu desenrolou a machadinha.
No intercomunicador, Joyce gritou:
— Não! Nós somos visitantes!
Por um momento, os dois t’kelanos fuzilaram-se mutuamen-
te. A lança de Nyaronga apontava para a garganta de Uulobu. O
avongo fez ligeira reverência, a voz veio embargada:
— Somos visitantes... Noutra ocasião, Nyaronga, vamos re-
85
solver isso.
— Quem? Você, um sem-terra?
O líder se conteve.
— A paz foi estabelecida entre nós, e agora não há tempo
para desdizê-la. Mas nós, gangus, defenderemos nossos próprios
rebanhos e pastos. Não precisamos de ajuda.
Com as pernas endurecidas, Uulobu entrou na tenda mais
próxima. O último basai acabara de ser colocado lá dentro. A aba
da tenda encontrava-se fechada com um laço, de modo a deixá-los
numa escuridão apaziguadora.
A protuberância intumesceu-se. Era, agora, uma lâmina de
fogo, rombuda, próxima ao disco solar, quase do mesmo tamanho
que ele, despejando quase tanta luz quanto ele, porém, de um ma-
tiz alaranjado. E continuava a crescer, a avivar, a amarelecer. O
vento aumentava.
Os chefes dos bandos caminharam até o centro do acam-
pamento, devagar. Formaram um círculo. À volta deles, os jovens
não-casados formaram um círculo maior. O próprio Nyaronga em-
punhou uma trombeta de metal e tocou. As lanças ergueram-se,
as espadas e as machadinhas sacudiram. Os t’kelanos começaram
a dançar, sempre mais rápidos, à medida que aumentava a radi-
ância. Nyaronga, de repente, tocou novamente a trombeta. Uma
nuvem de flechas zuniu na direção do sol.
— O que fazem? — perguntou Van Rijn. — Exorcizam o de-
mônio?
— Não. Eles não acreditam nisso. Trata-se de um desafio, de
um desafio, que sempre fazem, para que desça e lute. E, por sinal,
ele não é um demônio, é um deus.
Van Rijn concordou com a cabeça, e disse, mais para si mes-
mo:
— Isto se ajusta aos padrões. Toda vez que um deus aban-
dona seus deveres de justiça, não devemos bajulá-lo para que se
contenha. Devemos ameaçá-lo. Ja, a coisa se ajusta mesmo.
Os machos terminaram a dança; caminharam para as ten-
das, numa lentidão arrogante. As abas das portas foram desenla-
çadas. Sob o sol, o acampamento estava deserto.
De um salto, Van Rijn ficou de pé.
— Ahhh! Minhas juntas!
— Hein?
Joyce fitou-o. Tanto se acostumara à luz vermelha, pálida,
deste dia de viagem, que a nuança, que agora entrava pela janela,

86
parecia horrível nas bochechas de Van Rijn.
— Vou lá fora — disse Van Rijn. — Em vez de ficar aí parada,
com a língua embasbacada,vá apanhar minha roupa!
Joyce se percebeu obedecendo a Van Rijn. Quando aquela
forma rude acabou de se enfeitar, o sol já se encontrava no topo
das colinas, e triplicara a radiância. A labareda era, agora, como
se fosse uma outra estrela, porém já não arredondada, e sim flami-
forme, quase branca. As sombras compridas oscilavam no mundo,
que, agora, adquirira uma cor bronzeada, nada natural. O vento
soprou a poeira e as folhas mortas no chão, nivelou as fogueiras, e
fez estremecer as tendas, que troaram.
— Agora, quando eu acenar, você aumenta todo o volume do
intercomunicador, de modo que todos a ouçam. Depois, diga àque-
les supostos machos que olhem para mim, se tiverem coragem.
Van Rijn lançou um olhar fixo para Joyce.
— E fale com grosseria, entendeu?
Antes que Joyce retrucasse, Van Rijn entrara na câmara de
ar. Um minuto depois, já a atravessara, às pedaladas, e agora pi-
sava, pesado, no campo, e parava no meio do acampamento. Fez
um sinal, breve.
Joyce umedeceu os lábios. O que aquele idiota pensava es-
tar fazendo? Há um mês, nem mesmo ouvira falar deste planeta.
E estava aqui há menos de uma semana. E tudo o que conhecia a
respeito do planeta, fora através das informações que ela lhe trans-
mitira nas últimas dez ou quinze horas. E esse homem já saberia
como se comportar? Porque, se não lhe fizessem muitos furos na-
quela barriga gorda, com ferro afiado, significaria a mais completa
falta de justiça no universo. E ele achava que ela se deixaria afun-
dar com ele?
Uma imensa, negra silhueta desenhava-se contra o céu in-
candescente. Mais uma vez, Van Rijn sacudiu o braço.
Joyce ligou o intercomunicador, bem alto, e disse, no verná-
culo:
— Os gangus que forem valentes, observem! Olhem para o
macho dos lugares longínquos. Ele está só, debaixo do sol enfure-
cido!
As infexões ribombaram, ocas, ao vento. É possível que Van
Rijn tenha acenado. Ela, agora devia esgueirar o olhar até lá para
ver o que ele fizera. Por causa do contraste, e não por causa da
claridade propriamente dita, que ainda representava um baixo per-
centual em relação à atingida na Terra. A incandescência, porém,
87
a uma temperatura efetiva de um milhão de graus, ou mais, emitia
em freqüências às quais seus olhos eram sensíveis. E o ultraviole-
ta, também — pensou num dos cantos do cérebro — tão fraco, não
daria para avermelhar nem mesmo a pele de um bebê humano;
mas era forte o bastante para trazer a dor, e até a morte, a estes
pobres habitantes de Hades.
Van Rijn sacou o lança-raios. Com muita determinação, dis-
parou diversos raios contra o astro. Os jatos luminosos, os ruí-
dos, pareceram insignificantes diante de tanta ira desfechada lá
de cima.
— E agora, qual...? Joyce gritou.
— Nãao!
Van Rijn abriu a viseira. E ostentou o fato, esticou o rosto
para fora do capacete, à plena luz. Grotesco, dançou em círculos,
colocou o polegar na ponta do nariz escarpado e fez pouco do céu.
Mas...
O mercador terminou com um gesto irreproduzível, fechou o
capacete, disparou mais dois jatos e, de pé, permaneceu de braços
cruzados, enquanto o sol, no horizonte, baixava.
A protuberância ainda demorou-se, à vista, por um momen-
to, uma lâmina de radiância espectral, por sobre as árvores. Van
Rijn atravessou a penumbra, voltou para o carro. Joyce abriu-lhe
a passagem. Van Rijn abriu o capacete, ofegante; chorava de dor, e
blasfemava em dez línguas diferentes. O gelo começava a formar-se
no uniforme. Lamentou-se:
— Caramba! E nem uns centimetrozinhos cúbicos de uísque
para consolar minhas pobres membranas lamacentas!
Joyce sussurrou:
— O senhor poderia ter morrido!
— Não. Nada disso. Não é assim que Nicholas van Rijn irá
morrer. Aos cento e cinqüenta anos, pretendo morrer com um tiro
de um marido enfurecido. Não estava tão frio assim, nos poucos
minutos que consegui prender a respiração. Mas, quando inspirei
aquela amônia... Pelo terror dos impostos!
Van Rijn foi à cabine do banheiro, aos bamboleios e, bufando
alto, jogou água no rosto.
Afundou-se a última luz do incandescer. O céu, ainda turvo
com a aurora, exibia apenas as estrelas mais vividas. As partículas
carregadas, mais penetrantes, ainda demorariam horas. Lá fora,
tudo tranqüilo. Um a um, os t’kelanos emergiram, cutucaram as
lareiras, que crepitaram, reluziram na escuridão.

88
Van Rijn voltou.
— Estou pronto. Agora, vista o uniforme e vamos lá fora. Va-
mos conversar com eles.

Para entrar no círculo circundado pelos contornos chamus-


cados das tendas, Joyce teve que forçar passagem por entre fêmeas
e crianças. A roda que formavam, à sua passagem, fechava-se. Ela
viu, naqueles olhos, o reflexo do brilho de fogo, e percebeu que es-
tava encurralada. Reconfortaram-na a proximidade do corpanzil de
Van Rijn e, atrás, o plac-plac Uulobu.
Tênue conforto, entretanto, quando viu os machos que es-
peravam junto à fonte de amônia. Reuniram-se assim que viram
aproximar-se os humanos. Para a visão de Joyce, eram como uma
única sombra; como a noite, atrás deles. Dos dois lados, as foguei-
ras, que, para os t’kelanos, quase fabricavam a luz do dia, para ela,
mal iluminavam a primeira fila. De vez em quando, uma labareda
subia com o vento, ia alto, fagulhas despencavam em samambaias,
e o brilho opaco da fumaça projetava-se na direção do grupo. Em
seguida, Joyce viu uma seta de obsidiana, farpada, uma espada
feita de chifre, um machado ou uma adaga de ferro faiscar. Para
lá do acampamento, a floresta murmurava, Joyce ouviu os gritos
assustados dos iziru; às cegas volteavam na escuridão. A boca se-
cou.
Os pais dos bandos postavam-se à frente. A maioria era bem
jovem; a velhice não era muito comum no deserto. Nyaronga, nes-
te aspecto, parecia privilegiado. Ali estava ele, a lança na mão, as
presas expostas nas mandíbulas entreabertas, os cachos agitados.
Com o ar irrequieto, a tanga esvoaçava.
Diante dele, Van Rijn parou. Joyce postou-se próxima a Van
Rijn, deparou-se com o olhar atento de Nyaronga. Aos pés de Joyce,
Uulobu acocorou-se. Um murmúrio, como o suspiro que antecede
a tempestade, percorreu os guerreiros.
Mas o terráqueo, imperturbável, esperou para que, por fim,
Nyaronga quebrasse o silêncio.
— Por que você desafiou o sol? Nenhum ser celeste jamais fez
isso antes.
Joyce traduziu, num balbucio apressado. Van Rijn entufou o
peito, emergiu, visível, apesar de uniformizado.
— Diga a ele que cheguei há pouco tempo. Diga que nenhum
de vocês achou que valia a pena fazer o desafio, mas que eu achei
que valia.
89
Joyce implorou:
— O que é que você tem em mente? Um passo em falso e se-
remos mortos.
— Verdade. Mas se não fizermos nada, aí mesmo é que se-
remos mortos, ou então morreremos de fome por não tentarmos
entrar no raio de alcance do rádio da nave de socorro. E então?
Van Rijn acariciou a mão de Joyce.
— Droga de luvas! Seria mais gostoso sem elas. Mas, em todo
caso, confie em mim, Joyce. Nicholas van Rijn não teria envelhe-
cido, nem engordado, por esses tantos planetas turbulentos, não
fosse ele suficientemente esperto para resistir a todos. Correto?
Isso mesmo. Portanto, diga a eles tudo o que eu disser, e use um
tom áspero. Nada de insultos imperdoáveis, mas demonstre irrita-
ção, está bem?
Joyce engoliu em seco...
— Está bem, mas não sei por que, é melhor você falar pri-
meiro. Se...
Joyce conteve o medo, virou-se para os t’kelanos, que espe-
ravam:
— Este macho celeste, aqui comigo, não pertence à minha
equipe. É da mesma raça que eu, mas vem de um povo mais pode-
roso que o meu. Ele quer que eu diga a vocês que, embora nós, o
povo celeste, jamais tenhamos nos dignado, até agora, a desafiar o
sol, ele julga que fazê-lo não está abaixo de suas possibilidades.
Alguém retrucou:
— Vocês jamais se dignaram? Como assim? Joyce improvi-
sou:
— O brilho do sol não é ameaça para nosso povo. Nós já dis-
semos isto por diversas vezes. Há alguém aqui que já nos tenha
solicitado?
A quietude pairou novamente, por um momento, até que um
patriarca de um olho só, com uma cicatriz, vituperou:
— Eu os ouvi no ano passado, quando você... ou alguém
como você... esteve na terra de meu bando curando alguns reben-
tos adoentados.
— Então — Joyce acrescentou — vocês, agora, puderam ver
que é verdade.
Van Rijn puxou-lhe a manga do uniforme.
— Ei, o que está havendo? É melhor deixar que eu fale, pois,
do contrário, vamos desperdiçar nossa última chance por causa de
alguma bobagem.

90
Joyce não ousou enraivecer-se, apenas recontou a conversa.
E ele a deixou espantada, ao dizer:
— Me desculpe, menina. Você estava indo muito bem. Mas eu,
agora, tenho algo a dizer. Você traduz frase por frase, está bem?
Van Rijn inclinou-se à frente e apontou o dedo indicador em
riste, bem abaixo do nariz de Nyaronga, repetidas vezes, ao enun-
ciar, áspero:
— Vocês me perguntam por que eu me expus ao sol incan-
descente? Foi para mostrar-lhes que não tenho medo do fogo que
ele produz. Posso muito bem cuspir no seu sol, e ele irá rechinar,
ou, talvez, apagar. Meu sol poderia comer o seu de sobremesa e
ainda pedir bis, caramba! A luz dessa bolota aí não dá nem para
enxergar, e não serve nem como espantalho de criança, entre meu
povo.
Os t’kelanos rosnaram; em linha, aproximaram-se, apron-
tando armas. Indignado, Nyaronga revidou.
— É, eu já pude observar, por diversas vezes, que vocês, do
povo celeste, são quase cegos.
— Vocês conseguem ficar na frente dos holofotes de nossos
carros? Ficariam cegos, se tentassem, nie? Vocês não agüentariam
a Terra. Iriam virar pipoca, iriam crepitar e subir numa nuvenzinha
pastosa de fumaça.
Aquilo os fez retroceder. Nyaronga cuspiu.
— Vocês têm que se enfardar todos para se proteger do ar.
— Vocês viram, eu coloquei a cabeça do lado de fora. E que
tal vocês irem dar uma fungada no meu ar, para variar? Eu os de-
safio!
Um bramido percorreu os guerreiros, meio de ira, meio de
apreensão. Com uma das mãos, Van Rijn dava cuteladas de des-
prezo no ar.
— Estão vendo? Vocês são mais fracos que nós...
Um dos chefes, grande, jovem, deu um passo à frente. Os
pêlos eriçaram-se.
— Eu aceito o desafio.
— Muito bem. Concedo-lhe uma fungada. Van Rijn voltou-se
para Joyce.
— Me ajude com esse desgraçado desse equipamento de ar.
Não quero nem mais um pingo desse veneno de besouro, que eles
chamam de ar, dentro do meu capacete.
— Mas... mas...
Joyce obedeceu, impotente. Desaparafusou a válvula da uni-
91
dade de reciclagem, situada a meio-caminho entre um ombro e
outro. Van Rijn ordenou:
— Jogue o ar no rosto dele!
O guerreiro manteve o arco esticado. Joyce pensou na dor
que iria sofrer, e não conseguia apontar a mangueira. Van Rijn
gritou:
— Ande logo!
Joyce apontou. A atmosfera terrestre saiu, num jato.
O guerreiro uivou, cambaleou de costas. Esfregou o nariz e
os olhos lacrimejantes. Por um minuto, esteve aos tropeços, de um
lado para outro; depois, prostrou-se nos braços de um assecla.
Joyce recolocou a válvula no lugar. Van Rijn caçoava.
— Eu sabia. Muito quente. Oxigênio demais; principalmente,
muito vapor d’água. Se afeta os throranos, por que não faria mal
também, eu tinha certeza, a estes companheiros. Diga a eles que o
guerreiro estará bem em alguns instantes.
Joyce tranqüilizou-os. Nyaronga sacudiu-se.
— Já ouvi algumas estórias a respeito disso. Por que tiveram
que mostrar a este pobre-coitado o que todos já sabíamos, que vo-
cês respiram veneno?
Van Rijn respondeu, através de Joyce:
— Para provar que somos tão fortes quanto vocês e, de certo
modo, um pouco mais. Se quisermos, poderemos tratá-los como
cachorros e mandá-los, às chicotadas, para seus canis.
A observação provocou alarido. Pedras pontiagudas relampe-
jaram no ar. Nyaronga ergueu os braços, a pedir silêncio. Que veio,
num murmúrio, num resmungo, e num suspiro das fêmeas que as-
sistiam da escuridão. Num orgulho lívido, o velho chefe proferiu:
— Sabemos que vocês dominam armas que não dominamos.
Isto significa que possuem artes que não possuímos, o que jamais
negamos. Mas não significa que sejam mais fortes. Um t’kelano não
é mais forte que um bambalo só porque possui um arco que pode
matá-lo â distância. Somos um povo de caça, e vocês não, quais-
quer que sejam suas armas.
— Diga a eles — ordenou Van Rijn — que lutarei desarmado
com o homem mais forte deles. Já que usarei o uniforme, que me
protegerá contra mordidas, ele pode usar armas. Afinal, elas vão
perfurar apenas o tecido de corda! Portanto, nada mais justo, nie?
Joyce protestou:
— Ele irá matá-lo!
Van Rijn lançou a Joyce um olhar de malícia.

92
— Se eu morrer, morrerei pela mulher mais linda do plane-
ta... A voz baixou.
— ... Aí, então, você talvez sinta remorso de não ter sido mais
boazinha para com um pobre velho.
— Não! Recuso-me a dizê-lo!
— Você vai dizer, sim!
Van Rijn apertou-lhe os pulsos com tanta força, Joyce teve
de encolher-se.
— Eu sei o que estou fazendo, entendeu?
Entorpecida, Joyce transmitiu o desafio. Van Rijn sacou o
lança-raios e jogou-o aos pés de Nyaronga.
— Se eu perder, o vencedor pode ficar com isso.
Aquilo os tocou. Uns dez machos selvagens, jovens, saltaram,
gritaram, vieram para a luz da fogueira. Nyaronga berrou, e, aos
murros, recolocou-os em ordem. Olhou de um em um e brandiu a
lança na direção de um deles.
— Eis meu próprio filho, Kusalu. Ele defenderá a honra do
bando e do clã.
O t’kelano era mais baixo que Van Rijn, embora de mesma lar-
gura. Debaixo dos pêlos, os músculos serpentearam; ele avançou,
as presas brilharam; na mão direita, a machadinha; na esquerda,
a adaga de ferro. Os outros machos abriram a roda, formando um
círculo de olhos e armas envenenadas. Uulobu puxou Joyce para
o lado. Com o pulso trêmulo, ela pôde senti-lo no próprio braço,
sussurrou:
— A única coisa que posso fazer é lutar com ele eu mesmo.
Kusalu deslizava, cercando, Van Rijn virava-se, majestoso
como um planeta. Dos ombros arqueados, pendem os braços, como
os de um macaco. As fogueiras iam tingir-lhe as feições grosseiras,
que porventura, ali dentro do capacete, estivessem à mostra. Sol-
tou um grito:
— Haaah!
Kusalu praguejou, atirou a machadinha com força estilha-
çante. A mão esquerda de Van Rijn, numa velocidade impossível,
apanhou-a no ar. Van Rijn atirou-se de costas. A correia esticou-
se. Kusalu veio, caiu de rosto no chão. Van Rijn investiu para ata-
cá-lo.
Kusalu rolou no chão e levantou-se a tempo. A lâmina esto-
cou. Van Rijn desviou-a com o pulso direito, agarrou a correia e
deu um novo puxão, Kusalu caiu num joelho. Nas costas, o braço
de Van Rijn torceu. Os t’kelanos gritaram.
93
Kusalu chicoteou a correia. Cuspiu, de um salto aprumou-
se, ereto de novo, e atacou. Van Rijn desfechou-lhe um pontapé
preciso na barriga, e retirou o pé antes que fosse agarrado. Kusalu
cambaleou. Van Rijn fechou sobre ele com uma cutelada de caratê
ao lado do pescoço.
Cambaleante, Kusalu permanecia de pé. Van Rijn quase nem
conseguiu esquivar-se da ponta da faca. Recuou. Kusalu perma-
neceu parado, por um momento, para retomar o fôlego e, depois,
arremessou-se num movimento atabalhoado.
Coisas aconteceram. Ao investir sobre Van Rijn, Kusalu foi
agarrado; arremessado por cima dos ombros do mercador, foi ma-
lhar o chão num ribombo surdo. Van Rijn esperou. Kusalu, ainda
empunhando a adaga, levantou-se, parou bem próximo, com san-
gue a escorrer do nariz.
Van Rijn entoou:
— Là ci darem la mano...
Kusalu preparou-se para estocar, o terráqueo agarrou-lhe o
braço direito, girou-o, enganchou-o.
Kusalu guinchou, Van Rijn espetou-lhe o joelho nas costas.
Ofegava.
— Diga “titio”!
Joyce deplorou.
— Ele morre, mas não diz.
— Então, vamos adotar o caminho mais difícil.
Depois de forçá-lo a largar a faca, Van Rijn chutou-a para
longe e soltou Kusalu, que, mal se levantava, e já recebia um direto
enluvado no estômago. Kusalu cambaleou. Implacável, Van Rijn
insistiu, soco por soco, até fazer vergar o guerreiro.
O mercador afastou-se para o lado. Joyce fitava-o, horroriza-
da. Van Rijn acalmou-a
— Está tudo bem. Eu não o invalidei para sempre.
Nyaronga ajudou o filho a levantar-se. Outros dois levaram
Kusalu dali. Um entusiasmo surdo varreu os t’kelanos apinhados.
Joyce jamais vira algo igual.
Van Rijn e Nyaronga confrontaram-se. Devagar, o nativo dis-
se:
— Você deu provas de si mesmo, macho celeste. Para alguém
sem terra, você luta bem, e foi bom não tê-lo matado.
Aos soluços, Joyce traduziu. Van Rijn respondeu:
— Diga que não matei o jovem porque não há necessidade
disso. Depois diga que eu tenho muita terra.

94
Van Rijn apontou para cima; lá, as estrelas cintilavam no céu
ventoso, brumoso.
— Diga que ali estãos meus campos de caça!
Depois de digerir a resposta, Nyaronga perguntou, quase la-
muriento:
— Então o que quer ele em nossa terra? O que ele ganha com
isso?
— Nós viemos ajudar...
Joyce se conteve, passou a pergunta a Van Rijn.
— Ah! Agora estamos falando de coisas sérias!
O terráqueo vangloriava-se. Ococorou-se junto a uma das fo-
gueiras. Os pais do bando juntaram-se a ele; os filhos achegaram-
se, apertados, para escutar.
—Uulobu respirou, aliviado:
— Fomos considerados amigos!
Num tom oleaginoso, Van Rijn informou:
— Não viemos roubar suas terras, sua caça. Não, viemos ape-
nas fazer negócio, com bons lucros para os dois lados. Estes povos,
com certeza, comerciam uns com os outros. Caso contrário, não
teriam as tantas coisas que têm.
Débil, Joyce instalou-se ao lado de Van Rijn.
— Ah, claro que comerciam. E a relação que mantêm com a
cidade é essencialmente de troca, como já lhe disse antes.
— Então irão entender a barganha proposta. Diga que aque-
les velhotes da montanha têm inveja de nós. Diga que incitaram os
shangas a atacar nosso acampamento. Diga, toda a verdade, e não
envernize demais.
— Como? Eu pensei... Quer dizer, o senhor não pretende dar
uma demonstração de força? Vamos admitir que estamos foragi-
dos?
— Bem, diga que tivemos que fazer uma... Como é mesmo
que aqueles comunicados militares costumam dizer, quando levam
uma surra no traseiro? ... um avanço à ré, ordenado, por motivos
estratégicos, para posições previamente preparadas.
Joyce disse. Os cachos eriçaram-se nas cabeças nativas, as
pupilas contraíram-se, e as mãos, novamente, brandiram armas.
Nyaronga intrigou-se.
— Vocês querem refúgio entre nós?
— Não. Diga a ele que viemos alertá-los, pois se forem dizi-
mados não poderemos realizar bons negócios lucrativos. Diga que
os shangas apossaram-se das armas que vocês tinham no domo, e
95
que virão, com os clãs amigos, rumo ao território Rokulela.
Joyce ouvira bem?
— Mas nós não... não.. . nós trouxemos apenas algumas pou-
cas armas pessoais, portáteis. E, na retirada, cada um deve ter ido
para um lugar diferente.
— E estas pessoas sabem disto?
— Bem... irão acreditar em você?
— Minha linda, bondosa loura, de curvas em lugares tão ade-
quados, dou-lhe a minha palavra, de Nicholas van Rijn, de que isto
seria a única coisa em que acreditariam.
Joyce, de modo truncado, proferiu a mentira. A reação foi
horrível. Por todo o acampamento, efervesceram, saltaram de um
lado para outro, empunharam lanças e, qual lobos, uivaram. Só
Nyaronga permaneceu sentado, embora com o pêlo arrepiado. A
pergunta veio como um suspiro nasalado.
— Isto é verdade mesmo?
Van Rijn replicou:
— Que outro motivo teriam os shangas para nos atacar com
a ajuda dos Anciãos?
Joyce interveio.
— Você sabe muito bem qual é. Foram subornados pelos An-
ciãos, que se utilizaram das superstições dos shangas e, é bem pro-
vável, ofereceram a eles o nosso metal para a confecção de facas.
— Ja, sem dúvida. Mas transmita a minha retórica a esse ve-
lho demônio, exatamente como eu disse. Pergunte a ele se não faz
sentido que os shangas tenham nos atacado em busca de lança-
raios e lança-projéteis, já que os velhotes devem tê-los incitado a
isso e fornecido a pólvora? Depois, diga a ele que os Grisalhos de-
vem estar do lado da própria Horda dos shangas... qual é mesmo
o nome?
— Yagola.
— Isso. Diga a ele que você ouviu coisas que dão a você bons
motivos para acreditar que o clã shanga vai libertar a Yagola, vai
rumar oeste e expulsar a Rokulela desta terra boa.
Nyaronga, e os demais, num silêncio sinistro durante a fala de
Joyce, não tiveram problemas em perceber a conceituação. Como
já dissera a Van Rijn, a guerra não era uma instituição t’kelana.
Mas a idéia que transmitia era, não a de uma guerra de gala, mas
sim a de um Volkerwanderung em busca de novos campos de caça.
E estas coisas eram bem freqüentes neste planeta moribundo, pois
quando uma região chega à aridez absoluta, seus habitantes pro-

96
curam desalojar outras Hordas, para, em último caso, morrer na
tentativa.
A diferença, agora, era que os Yagolas, que não passavam
fome e nem haviam sido expulsos de seu território, procuravam,
presumivelmente, antecipar-se ao acontecimento e, de posse das
armas roubadas, agarrar mais terras e conquistar a superioridade
absoluta.
— Não pensei que fossem tamanhos monstros — ponderou
Nyaronga.
— E não são — protestou Joyce, em Ânglico, dirigindo-se a
Van Rijn. — Isto é uma terrível calúnia. Eles...
— Bem, bem. No amor e na propaganda, vale tudo. Propo-
nha a Nyaronga que voltemos a Kusulongo, angariando reforços no
caminho, para verificar se tudo isto é verdade ou não, e utilizar a
vantagem numérica enquanto dispomos dela.
— O senhor vai jogar uns com os outros. Me recuso a tomar
parte numa coisa dessas. Prefiro morrer.
— Escute, minha batatinha-doce, ninguém morreu ainda. E
talvez ninguém morra. Talvez, depois, eu possa explicar melhor.
Mas, agora, temos que atacar enquanto o toucinho está na brasa.
Eles estão excitados, quase fanáticos. Não vamos dar-lhes a chan-
ce de acalmar-se antes de ter decidido seguir viagem.
O homem pousou a mão sobre o coração.
— Você acha mesmo que esse velho, meio covarde, Nicholas
van Rijn, já sem fôlego, amante do conforto, iria querer partici-
par da guerra? Pense bem. Uma poltrona, macia, daquelas que
se amoldam ao corpo, um aperitivo, refrescante, num copo longo,
um charuto venusiano, Eine Kleine Nachtmusik no gravador; isso
é tudo o que ele quer, a bordo de um queche, navegando pelos
Estreitos de Sunda com um monte de dançarinas. É pedir muito?
Portanto, seja boazinha, seja gentil. Ajude-me a incitá-los à luta.
Tomada pela própria perplexidade, Joyce deixou-se levar. Na-
quela mesma noite, cavaleiros foram enviados com mensagens a
outros clãs Rokulela que se sabiam localizados nas proximidades.

Rumo a leste, o primeiro avanço ocorreu na escuridão, para


evitar o sol, que ainda incandescia. Quase todos os machos, cresci-
dos, meio-crescidos, seguiram viagem em suas montarias; as fême-
as e as crianças permaneceram no acampamento. Usavam túnicas
e albornozes largos, os basai eram forrados, como proteção contra
a violenta coceira que atacava os t’kelanos expostos nestes perío-
97
dos. Boa parte das partículas carregadas do astro atacavam o lado
do dia do planeta; havia, entretanto, campo magnético suficiente
para levar algumas delas para o hemisfério oposto. Mesmo assim,
a comitiva desenvolveu boa velocidade. No carro, Joyce espiava pe-
las janelas, e os via, de relance, sob as duas luas, formas amorfas,
sombrias, deslizando no terreno áspero; de vez em quando, um
reflexo das setas das lanças. Em meio ao ronrom débil do motor,
ouvia-os chamando uns aos outros, e o plaque-plaque surdo de
cascos sem ferraduras.
Van Rijn fez uma preleção.
— Entenda, estou há pouco tempo neste mundo, mas já es-
tive em muitos outros, e já li relatórios sobre outros tantos. Isto é
necessário, na minha linha de negócios, pois sempre estabelecem
paralelos. Fazendo analogias, consegui pistas suficientes, sobre os
t’kelanos, para adivinhar-lhes o padrão básico das mentes. Vocês,
de Esperança, neste aspecto, não têm muita experiência. Como as
demais colônias, vocês estão muito isolados do curso central da
galáxia e, assim, não conseguem manter-se au courant das coisas,
como, por exemplo, das modernas técnicas de exploração. Isto es-
tava óbvio, em vista do fato de não terem vocês realizado, como
primeira coisa, os estudos psicológicos profundos. Não, em vez dis-
so, aceitaram a avaliação superficial. Não faça mais isso, Joyce.
É necessário morder a moeda que a alimenta, pois esse mundo é
difícil, e perverso.
— Você parece saber o que quer, Nick. — Joyce admitiu.
Van Rijn sorriu, levou a mão de Joyce de encontro a seus
lábios. Ela balbuciou algo confuso, a respeito de ir esquentar café,
e retirou-se. Não queria ferir-lhe os sentimentos. Debaixo daquela
crosta, era um bom velho.
Quando voltou para o assento dianteiro, já estava fora de
alcance.
— Bem, conte qual o padrão que você deduziu. Como funcio-
na a mente deles?
— Você presumiu que eles se assemelhavam a humanos pri-
mitivos, belicosos, dos dias primevos da Terra. Até aí, em termos
superficiais, está correto. Eles são inteligentes, possuem língua;
sabem raciocinar e conversar. E isto fez com que parecessem fa-
cilmente compreensíveis. O que você esqueceu, creio eu, é que a
inteligência consciente é apenas uma pequena parte de todo o eu.
O que ela faz, apenas, é ajudar-nos a conseguir o que queremos.
Mas, o querer em si — alimento, moradia, sexo, tudo... os nossos

98
motivos — provêm de profundezas maiores. Não há razão lógica
nem mesmo para se estar vivo. Mas o instinto diz que fiquemos
vivos, então, passamos a querer viver. E o instinto já vem numa
evolução muito antiga. Éramos animais, muito antes de nos tor-
narmos pensadores e de...
Os olhos de conta de Van Rijn giraram, piegas, até o teto.
— ... de recebermos alma. Temos que pensar no modo de evo-
lução de uma raça, para aturá-la... quer dizer, para compreendê-
la.
— Os humanos, porém, dizem os especialistas, começaram
há muito tempo, como macacos que caminhavam pelo chão, e que
se transformaram em carnívoros quando as florestas murcharam
na África durante milhões de anos. E foi a partir daí que come-
çaram a caminhar eretos, para sempre, e desenvolveram mãos
suficientemente aptas ao fabrico de armas porque, ao contrário
dos leões, não possuíam garras nem dentes. Muito bem, portanto,
somos uma estirpe daninha, nós Homo sapiens, de instintos as-
sassinos. Mas não somos exclusivistas. Ainda somos omnívoros;
se precisarmos, somos capazes de sobreviver à base de couve de
Bruxelas. Se somos! Nossos ancestrais eram pacíficos comedores
de castanhas, e viveram das próprias pulgas por muito tempo, por
muito mais tempo do que foram caçadores. Parece. Os t’kelanos,
por sua vez, são carnívoros desde quando ainda andavam nas qua-
tro patas. Não muito bons carnívoros. Não eram especializados,
não possuíam garras e, mesmo que mais forte que o dos humanos,
possuíam um aparelho de mordedura bem fraco. E foi por isso que
também desenvolveram mãos, que fabricaram ferramentas, o que
os levou a possuir cérebros maiores. Mas não possuem, de maneira
alguma, como nós, ancestrais vegetarianos. E têm instintos assas-
sinos muito mais poderosos que nós. E não são gregários. Os car-
nívoros não podem ser gregários. Se houver grande concentração
de carnívoros num só local, o jogo termina. O café está pronto?
— Acho que está.
Joyce estendeu a mão, apanhou-o. De um gole só, Van Rijn
bebeu-o, sem nem se incomodar com a temperatura, que possivel-
mente queimaria o palato de Joyce. Enquanto bebia, dirigia com o
pé chato, descalço.
Aumentava a curiosidade de Joyce.
— Começo a entender. Foi por isso que jamais desenvolveram
nações verdadeiras ou travaram guerras de verdade. Para eles, as
grandes organizações são coisas inteiramente artificiais, que não
99
exigem lealdade. Não se luta, não se morre pela Horda, assim como
nós, humanos, não entramos em guerra por nosso clube de brid-
ge.
— Humm... Eu já presenciei muito olhar sanguinário em
mesa de bridge. Mas, ja, creio que você percebeu a coisa. O bando,
por aqui, é uma coisa natural; é como a família humana. O clã,
com laços sangüíneos, é apenas menos um degrau. O clã está para
os brios dos t’kelanos assim como, talvez, este mundo aqui esteja
para os humanos. E quanto às Hordas, então! Nem se fala. É um
arranjo de mera conveniência. Não que o bando e o clã sejam a
bondade terna e o açúcar cândi. Os humanos têm rusgas familia-
res e guerras civis. Os t’kelanos possuem instintos de luta ainda
mais fortes que nós. Muita porfia, muita carnificina. Em pequena
escala, porém, e não são levadas muito a sério. Você me diz que
não há vendettas por aqui. Isto significa que matar alguém não é
um mal. Na verdade, aquele que não luta — macho, é claro — é
considerado não-natural, é como se fosse inferior ao normal.
— É por isso que jamais se prepararam para nos atacar?
Quer dizer, a missão esperanciana?
— Em parte. Não que esperassem que vocês lutassem em
determinado momento específico. Ninguém sai por aí a arrumar
encrenca com você se você não ofendeu ninguém e, ainda por cima,
se é útil. O comportamento de vocês, porém, no conjunto, trans-
formou-se em algo que não conseguiram compreender, imagina-
vam que havia algo de errado com vocês, e sentiam um desprezo
complacente. Eu tinha que provar que era tão forte quanto eles,
ou mais forte ainda. Isto lhes satisfez os instintos que, logo depois,
adormeceram, e permitiram que eles me ouvissem com mais res-
peito.
Van Rijn pousou a xícara vazia, apanhou o cachimbo.
— Outra coisa que faltava a vocês era o território. Até mesmo
os animais da Terra possuem o instinto para demarcar e defen-
der um pedaço de terra para si próprios. Todo humano possui.
Mas, nos carnívoros, este instinto tem que ser muito, muito, muito,
muito poderoso, pois se forem afastados da caça, não conseguirão
sobreviver à custa de raízes e amoras. Morrem. Vocês viram, com
os próprios olhos, que os nativos que foram procurá-los, por não
conseguir manter o lugar de caça no solo ancestral, são despreza-
dos. E o que vocês, esperancianos, possuíam? Apenas um domo
numa nesguinha de terra inútil. E foram por aí, a pregar que não
queriam a terra de ninguém. Ha! Eles tinham mesmo que pensar

100
que vocês, ou estavam mentindo — e talvez este seja um dos mo-
tivos que levaram os shangas a atacá-los — ou então eram uns
fracos anormais.
— Mas será que não poderiam nos compreender? — pergun-
tou Joyce. — Por que esperavam que nós, que nem nos parecemos
com eles, pensássemos como eles?
— Se os t’kelanos fossem sofisticados, civilizados, talvez ti-
vessem percebido a coisa. Contudo, vocês estavam lidando com
bárbaros ingênuos.
— Exceto os Anciãos. Tenho certeza de que percebem...
— Talvez. É bem possível. Mas vocês os ameaçaram mortal-
mente, não perceberam? Eles sempre foram os escribas, doutores,
artesãos de alto nível, os especialistas em questões solares, por
eras e mais eras. Vocês chegam e começam a fazer as mesmas coi-
sas, só que de maneira muito melhor que eles. O que queriam que
fizessem? Que lhes beijassem os pés? Que lhes beijassem partes
da anatomia? Eles? Jamais! Eles são carnívoros também. Partem
para a luta.
— Mas jamais pensamos em desalojá-los!
Van Rijn sacudiu a haste do cachimbo na direção de Joyce.
— Lembre-se, a razão é precisamente a falta de instinto. Os
velhotes são mais sutis que os demais. Eles conseguem permane-
cer sentados num só lugar, entre paredes. Não caçam. Não reivin-
dicam, para si, milhares de quilômetros quadrados. E isto signi-
ficaria, por acaso, que não possuem instinto de territorialidade?
Ha! Muito improvável. Sublimaram-no, apenas. O trabalho deles
— quer dizer, o território deles — vocês avançaram nele.
Joyce permaneceu sentada, estupefata; contemplava a noite.
0 tempo passou. Depois, ela protestou:
— Mas nós explicamos a eles... tenho certeza de que compre-
enderam... explicamos que, sem nossa ajuda, este planeta morre-
rá.
— Ja, ja. Mas todo lutador nascido por meios naturais receia
menos a morte que as outras espécies de animais. Além disso, a
morte foi programada para daqui a mil anos; não foi você quem dis-
se isso? E mil anos é muito tempo para ser preenchido com emo-
ções. A ameaça que significavam para eles era real, estava aqui, e
agora.
Van Rijn acendeu o cachimbo.
— Outra coisa, sua pregação de uma cooperação a nível
de planeta parece não ter caído bem. Duvido que conseguissem
101
compreendê-la a fundo. Os carnívoros só cooperam numa esca-
la bastante rudimentar. A coisa não é prática para eles, pois não
possuem tais instintos. Aposto que as Hordas — que, de maneira
alguma, você se lembra, não são nações — jamais conseguiram en-
tender o que vocês diziam. O altruísmo, além dos horizontes men-
tais destes povos, fez apenas com que desconfiassem de vocês. Os
Anciãos talvez façam uma idéia vaga de seus motivos, mas, nem de
leve, compartilham deles. É impossível organizar este povo. É mais
fácil construir um carrossel nos anéis de Saturno. A coisa, em si,
não permite que seja realizada.
Joyce exclamou em aflição:
— Mas você conseguiu organizá-los para a luta!
— Não. Apenas dei a eles um objetivo, por enquanto. Acre-
ditaram no que contei sobre as armas deixadas no domo. Com as
mentes que têm, seria a coisa mais fácil de acreditar. Vocês teriam
que ter um arsenal. Todos têm. E o teriam usado também, se tives-
sem oportunidade. Quem não usaria? Ergo, a oportunidade esca-
pou, pois os shangas agiram com rapidez, e capturaram as armas.
O resto da estória, a trama de Yagola contra Rokulela, parece lógica
a eles, ao menos o suficiente para que resolvessem ir investigar
melhor.
Joyce já não conseguia conter as lágrimas.
— Mas o que você quer que eles façam? Que derrubem a
montanha? Eles não conseguem viver sem os Anciãos.
— Claro que conseguem. Basta que os humanos os substi-
tuam.
— Não... não podemos... não devemos...
— Talvez não tenhamos que fazê-lo. Quando chegarmos, te-
nho que apurar meu ouvido, de couve-flor de lata. Veremos.
Van Rijn pousou o cachimbo, ao lado.
— Vamos, vamos. Não fique tão triste assim, mas, se quiser,
chore à vontade. Depois Papai Nicky lhe enxuga os olhinhos, sopra
o narizinho...
Van Rijn curvou o braço, ofereceu-o a Joyce. Joyce achegou-
se, afundou o rosto na parte lateral do ombro do mercador, e cho-
rou até dormir.

Kusulongo a Montanha ergueu-se, monstruosa, na planície,


colina sobre colina, lúgubre, nos vãos encostas escarpadas, gelei-
ras, até surgir, contra o disco solar, as cúspides entalhadas no
topo. Poucas vezes, como agora, Joyce sentiu o frio, a escuridão

102
deste mundo, ao subir a trilha, rumo à cidade, montada num ani-
mal cornígero, obrigatoriamente forrado contra o calor desprendido
pelo uniforme humano. No céu vazio, escuro, o vento esganiçava,
contornava os penhascos e, como punhos cerrados, ia fustigá-la
e fazer estalar a bandeira que Uulobu, em sua montaria, adiante,
carregava num mastro. Joyce olhou para trás, ali embaixo o arco
de pedra, que provocava vertigens, e viu Nyaronga, e seis outros
chefes que receberam permissão de acompanhar a comitiva. A vol-
ta deles, os mantos esvoaçavam; com o andar das montarias, lan-
ças subiam e desciam. A cor dos pêlos perdia-se na luz quase lúgu-
bre, mas julgou compreender-lhes as carrancas. Muito lá embaixo,
no sopé da montanha, estavam os asseclas quinhentos rokulelas,
armados, zangados, escondidos, porém, pela penumbra, que, caso
ela morresse ali nas alturas, poderiam oferecer a ela apenas a vin-
gança que não desejava.
Joyce estremeceu, e encostou seu basai no outro que bufava,
rosnava, suportando o peso de Van Rijn. Tocaram-se os joelhos.
— Ao menos temos companhia.
A informação fora tola, Joyce sabia, mas tivera a intenção de
fazer algo que pudesse abafar o vento.
— Que bom que a incandescência terminou logo!
— Ja. Viemos em bom tempo. Só três dias de Lubambaru até
aqui, é menos do que eu esperava. E conseguimos muitos aliados
pelo caminho!
Tristonha, Joyce preferiu reunir-se à caravana. Van Rijn pas-
sara o tempo divertindo-os, e obteve êxito, mais do que ela espe-
rava. Mas, agora, haviam chegado, e os shangas avançavam mon-
tanha acima, um piso à frente da bateria Rokulela. Os agressores
haviam batido em retirada, indesejosos de enfrentar um canhão,
já que existia uma chance de evitá-lo. Concordaram em realizar
uma conferência, cujo fim, para Joyce, que não conseguia ver ou-
tra saída, viria com derramento de sangue. Era possível — ou não
— que os Anciãos mantivessem a promessa e deixassem o grupo
partir incólume, mas mesmo que isso acontecesse, muitos guerrei-
ros despedaçados, antes do pôr-do-sol, estariam à disposição das
aves carniceiras. Claro, Joyce admitiu, também tenho medo do que
poderá acontecer comigo se voltar para Esperança com vida. Ins-
tigação à guerra! Se tiver sorte, dez anos de detenção corretiva... a
menos que fuja com Nick e jamais, jamais, jamais volte. Mas con-
duzir estes caçadores jovens, tão alegres, para a morte?
Joyce sacudiu as rédeas, um tanto decidida a fugir trilha
103
abaixo e embrenhar-se no deserto. Por baixo de Joyce, a fera desli-
zou. Van Rijn agarrou-a pelo ombro. Berrou:
— Calma, calma por favor. Temos que vencê-los no blefe lá
em cima. Eles vão ser muito mais difíceis de engrupir do que esses
bárbaros.
Joyce suplicou.
— Conseguiremos? Eles podem se defender contra qualquer
aproximação. Tenho certeza de que têm estoques para longos cer-
cos, mais longos do que... do que poderemos suportar.
— Se conseguirmos contê-los por um mês, será o suficiente,
pois a nave da Liga chegará.
— Mas eles têm meios de pedir ajuda. Podem usar os helió-
grafos. Joyce apontou para cima, para uma das pontes estruturais.
Naquela luminância vermelha, o espelho refletia, opaco. Só mesmo
um t’kelano seria capaz de perceber os demais, espaçados em mui-
tas direções, pelas planícies, pelas colinas.
— Ou então um mensageiro poderá furar nossas linhas — de
tão espalhados, estaremos muito rarefeitos — e levantar toda a
Horda Yagola contra nós.
— Talvez sim. Talvez não. Veremos. Agora, baixe o facho, pre-
ciso pensar.
Trotaram em silêncio, não fosse o vento. Uma hora depois,
depararam-se com um muro construído de um lado ao outro da
trilha. Nos dois lados, trechos de detritos, escarpas intransponí-
veis. A passagem, em arco, contava com dois canhões primitivos.
Quatro elementos da guarnição da cidade ali estavam postados;
tochas tremeluziam junto ao detonador. No topo do muro, guardas
postavam-se com seus capacetes de couro, em corseletes, armados
de arcos e piques. O reflexo do ferro atravessava as sombras.
Uulobu avançou, arrogante com o respeito que acabara de
conquistar junto aos clãs. Exigiu:
— Deixem passar o poderoso povo celeste, que condescendeu
em vir falar com seus patriarcas.
Buff!
O bufido partiu do capitão do posto.
— O povo celeste jamais teve o espírito de um corajoso yan-
gulu.
Uulobu retrucou:
— Eles sempre tiveram o espírito de um makovolo furioso.
Uulobu percorreu, com o polegar, o gume da adaga.
— Se vocês querem provas, pensem em quem ousou enjaular

104
os Anciãos na própria montanha.
Num ruído confuso, o guerreiro recolheu-se, e afirmou, em
voz alta:
— Vocês têm permissão de passar, então, e permanecer a
salvo enquanto a paz entre nós não for silenciada.
Van Rijn interveio, ríspido.
— Já chega de conversa fiada. Nós queremos passar; se não,
vamos tomar-lhes as espingardinhas de estalinho, e enfiá-las num
lugar em que não costumam caber muito bem.
Joyce absteve-se de traduzir. Nick possuía qualidades tão
boas. Mas tivera uma vida tão dura, coitado. Ninguém jamais dera
qualquer ajuda a ele... Van Rijn passou bem pelo meio do desfila-
deiro e prosseguiu trilha acima.
Que desembocava num terraço amplo, diante da muralha da
cidade. Outras sentinelas armadas franziram os cenhos para os
que se aproximavam. Dois soldados de elite marchavam em ron-
da, com mais disciplina que a habitual entre as Hordas, os olhos
de Joyce dirigiram-se às três formas no portal. Usavam túnicas
brancas, lisas, e a idade já lhes acinzentara os pêlos. Entretanto,
lançavam olhares arrogantes aos recém-chegados.
Joyce hesitou. Começou...
— Este é o escriba-chefe...
— Não — protestou Van Rijn. — Não quero ser apresentado a
secretárias e mensageiros. Quero ir direto ao chefão.
Joyce umedeceu os lábios
— O chefe do povo celeste exige o início imediato da conferên-
cia. Um dos Anciãos respondeu, numa voz incolor:
— Que seja. Mas terão que deixar as armas aqui.
Nyaronga arreganhou os dentes. Joyce observou:
— Não podemos fazer nada. Você sabe, tão bem quanto eu,
que, segundo a lei dos pais, somente os Anciãos e os guerreiros
nascidos na cidade podem atravessar esta porteira armados.
Os coldres de Joyce e Van Rijn já estavam vazios.
Joyce quase viu encolher os corações dos rokulelas, e lem-
brou-se do que o terráqueo dissera sobre os instintos. Desarmar
um t’kelano era uma emasculação simbólica. Com a expressão
atrevida, pousaram os implementos no chão, com alarde, e des-
montaram, caminharam, de costas retas, nos calcanhares de Van
Rijn. Mas Joyce percebeu-lhes os olhos piscando incessantes, como
os olhos de animais apanhados em armadilhas, ao atravessar a
porteira.
105
Kusulongo a Cidade edificava-se em fileiras quadradas, ne-
gras e maciças sob as torres de vigia. As ruas eram calhas estreitas
que coleavam no interior, cheias de vento e de ruídos do martelar
proveniente do quarteirão dos ferreiros. Os moradores, que ali ha-
bitavam por direito de nascença, afastaram-se para o lado, para a
passagem dos bárbaros, e trespassaram as túnicas, como a evitar
o contato. Os três conselheiros não disseram palavra; a quietude
pairava, por todo lugar, ao se aprofundarem, na cidadela, e Joyce
teve vontade de gritar.
No meio da cidade, um prédio erguia-se, de uns bons vinte
metros de altura, sem janelas de ventilação, apenas a porta e os
respiradouros. Os guardas levantaram espadas e assoviaram, em
saudação ao hierarcas, no momento em que atravessam a porta
de entrada. As suas costas, Joyce ouviu um ligeiro rosnado. Os
rokulelas acompanhavam os humanos adentro, desceram por um
corredor sinuoso; mas não teriam utilidade, Joyce pensou, pois
aquela gruta, iluminada por tochas, fora projetada, de modo bas-
tante inteligente, para solapar os nervos de qualquer caçador.
Seis decanos, em túnicas brancas; sentavam-se num tabla-
do semi-circular. Atrás deles, na parede, vivido apesar de toda a
penumbra nervosa, um mosaico de um sol incandescente. A res-
piração de Nyaronga chiou entre dentes. Acabara de lembrar-se
do poder dos Anciãos. E bem verdade, Joyce disse a si mesma,
que Nyaronga sabia que os humanos poderiam assumir-lhes as
funções. Hábitos antiquíssimos, entretanto, não se quebram com
facilidade.
Os guias dos Anciãos estavam igualmente sentados. Os re-
cém-chegados permaneceram de pé. Joyce engoliu em seco, diver-
sas vezes.
— Falo por Nicholas van Rijn, patriarca do povo celeste, que
se associou aos clãs rokulelas. Viemos exigir justiça.
No meio do tablado, o macho ossudo retorquiu:
— Aqui há justiça. Eu, filho de Oluba, Akulo, de ascendência
Anciã, chefe do conselho, falo por Kusulongo a Cidade. Por que
vocês ergueram espadas contra nós?
Van Rijn riu, ao ser informado da pergunta.
— Ra! Ra! Pergunte a esse velho hipopótamo por que foi que
iniciaram toda essa confusão.
Joyce, automática:
— Você quer dizer “hipócrita”, não?
— Eu quero dizer o que eu quero dizer. Vamos, ande. Eu sei

106
muito bem o porquê, mas vamos ouvir o que ele está escondendo.
Joyce colocou a pergunta. Akulo girou os cachos carnosos,
gesto de ceticismo, e murmurou.
— Muito estranho. Os Anciãos jamais tomaram parte nas dis-
putas abaixo das montanhas. Quando vocês atacaram os shangas,
oferecemos refúgio a eles. Mas é um Costume antigo. Ouviremos,
de bom grado, a questão que mantêm contra eles, e estabelecere-
mos uma solução justa. Mas esta briga não é nossa.
Joyce antecipou-se a Van Rijn. Retrucou num rompante de
indignação:
— Eles explodiram as paredes de nossa nave. Quem, senão
vocês, poderiam ter-lhes fornecido os meios para fazê-lo?
Akulo acariciou os pêlos do rosto.
— Claro, claro. Compreendo seu modo de pensar, fêmea ce-
leste. É muito natural. Bem, como era desejo deste conselho ex-
plicar, caso outros transportadores de seu povo viessem para nos
acusar, nós, de fato, vendemos fogos de artifício, para mágicas e
comemorações. Os shangas compraram grande quantidade, e não
perguntamos por quê. Não há normas para regular o quanto pode
ser adquirido de uma vez. Por conta própria, devem ter retirado a
pólvora, para usá-la contra vocês.
— O que ele disse? — exigiu Van Rijn.
Joyce explicou. Nyaronga resmungou, corajoso, pois os An-
ciãos escutavam:
— Claro que os pais do bando shanga vão confirmar a estó-
ria. Uma inverdade é um preço muito barato comparado ao valor
das armas.
Um dos conselheiros interrompeu.
— Que armas são essas?
Nyaronga vomitou:
— As armas que o povo celeste possuía, e que os shangas
capturaram para usar contra minha Horda.
E a boca retorceu: .
— Será que é muito, para o desinteresse dos Anciãos?
— Não! Claro que não!
Akulo inclinou-se à frente, a voz já não tão suave quanto
antes.
— É verdade que Kusulongo a Cidade nada fez para desen-
corajar a possibilidade de ataque ao acampamento do povo celeste.
Eles são fracos, não têm sangue... são presas legítimas. E ainda,
estavam causando inquietação entre os clãs, minando as maneiras
107
dos pais...
— Maneiras que engordaram Kusulongo a Cidade — acres-
centou Joyce.
Akulo franziu o cenho para Joyce, e continou dirigindo-se a
Nyaronga.
— Com este ataque, os shangas apuraram, de fato, valio-
sa bagagem de metal. Possuirão facas muito boas. Mas não serão
acréscimo suficiente à força atual dos shangas, que lhes permita
invadir novas terras, já que não estão assolados pelo desespero.
Também pensamos nisso, aqui na montanha, e não quisemos que
isto acontecesse. A preocupação dos Anciãos foi a de sempre pre-
servar o equilíbrio justo das coisas. Se o povo celeste fosse embo-
ra, este equilíbrio que ameaçavam, acabaria sendo restaurado. Um
pouco mais de metal nas mãos dos yagolas não constituiria pertur-
bação maior. O povo celeste jamais foi visto com armas, senão com
algumas poucas armas de mão. E dessas foi que levaram na fuga.
Não havia arsenal, no domo, que pudesse ser apreendido pelos
shangas. Vocês, rokulelas, temiam por nada.
Em sotto voce, Joyce traduzira para Van Rijn, que concordou
com a cabeça.
— Muito bem. Agora diga a eles o que eu lhe disse para di-
zer.
Já fui muito longe para recuar, Joyce percebeu, desolada.
Proferiu, num impulso:
— Mas nós tínhamos armas de reserva. Muitas, centenas,
caixas repletas, que não tivemos oportunidade de usar. E, depois,
o ataque nos expulsou de lá.
O silêncio fendeu-se. Os conselheiros olharam-na, horroriza-
dos. Saltaram as labaredas das tochas e as sombras, pelas paredes,
procuraram-se umas às outras. Os chefes rokulelas observaram,
austeros, aquilo que lhes devolvia um pouco de autoconfiança.
Akulo, por fim, balbuciou:
— Mas... mas vocês disseram... eu mesmo perguntei uma
vez, e vocês negaram... negaram que possuíssem mais que umas
poucas...
— Claro — insistiu Joyce — nossa força principal foi mantida
em reserva, não revelada.
— Os shangas não revelaram nada disso.
— E vocês esperavam que revelassem?
Joyce deixou-os afundar-se, antes de continuar.
— E nem irão encontrar-lhes o esconderijo, mesmo que pro-

108
curem por todo o oásis. Não resistiram ao nosso ataque com fogo,
portanto as armas não devem estar nessas vizinhanças. É mais
provável que alguém as tenha levado imediatamente para as terras
yagolas, para que fossem distribuídas depois.
— Iremos verificar...
Um outro Ancião encurtou as palavras.
— Guarda!
Uma sentinela atravessou a porta e parou no túnel de aces-
so.
— Vá apanhar o porta-voz dos convidados de nosso clã. En-
quanto esperavam, Joyce colocou Van Rijn a par dos acontecimen-
tos. O mercador exultou:
— Ótimo. Até aqui, está indo bem. Mas a parte das cócegas
está para chegar, e não vai ser tão divertida quanto fazer cócegas
em você.
Joyce afastou-se, levantou-se; o rosto pegava fogo.
— Não diga! Você é mesmo impossível!
— Não. Sou apenas improvável... Bem, lá vamos nós, de novo.
Um t’kelano reverente, em indumentária shanga, marchou recinto
adentro. Cruzou os braços e olhou irritado para os rokulelas. Akulo
apresentou.
— Este é Masotu, filho de Batuzi.
O t’kelano curvou-se, tão tenso quanto os colegas.
— O povo celeste diz que vocês levaram, de seu acampamen-
to, muitas armas terríveis. É verdade?
Masotu começou:
— Claro que não! Lá havia apenas aquela arma de mão, des-
carregada, que mostrei ao senhor, quando foi nos ver lá embaixo,
na alvorada.
Na comitiva de Van Rijn, a voz áspera de um t’kelano:
— Quer dizer, então, que os Anciãos estão mesmo em liga
com os shangas?!
Levemente desconcertado, Akulo recolheu-se, e disse, num
tom de aço:
— Muito bem. Não há por que negar, afinal. Kusulongo a
Cidade procura o bem de todo o mundo, que é o próprio bem de
Kusulongo. E esses estranhos ardilosos traziam novos métodos
que faziam apodrecer os velhos costumes. Será que não estariam
aliciando vocês para invadir o próprio povo? Que outro motivo te-
riam para perambular por suas terras? Que outro motivo teriam? É
verdade, este Conselho instou os shangas a varrê-los daqui, como
109
bem merecem.
Joyce ainda conseguiu traduzir para Van Rijn, mesmo com
as batidas do coração a quase afogar-lhe as palavras. Os lábios do
mercador contraíram-se.
— E agora confessam bem na nossa cara. E já têm estórias
prontas para justificar o roubo de naves dos terráqueos e para fa-
zer com que os humanos jamais desejem retornar. Eles não têm
intenção de nos deixar descer a colina vivos, para que, depois, não
discutamos as contradições.
Mesmo assim, Van Rijn não pronunciou, para Joyce, pala-
vras a serem repassadas aos nativos.
Akulo apontou para Masotu.
— Você nos diz, então, que o povo celeste mentiu, que você
não encontrou arsenal algum?
— Digo!
O shanga trocou olhares com Nyaronga, e deduziu, perspi-
caz:
— Ah, seu povo estava preocupado a considerar que usarí-
amos aquelas armas para tomarmos seus pastos? Não há o que
temer. Voltem em paz, e nós concluiremos as negociações com os
estrangeiros.
— Nós não tememos. — Nyaronga corrigiu, e lançou, mesmo
assim, um olhar duvidoso aos humanos.
Impaciente, um Ancião remexeu-se no tablado.
— Já chega disso. Acabamos de presenciar mais um caso de
fomento bélico do povo celeste. Chamem os guardas, eles os fuzila-
rão. Que a paz seja declarada entre os shangas e todos os rokule-
las. Que todos vão para casa. E está feito.
Joyce terminava de traduzir, apressada, quando Akulo abriu
a boca. Van Rijn explodiu.
— Pelo botulismo! Pelos burocratas! Não tão rápido assim,
meu caro.
Van Rijn estendeu a mâo às costas e, embaixo do tanque de
reciclagem, apanhou o lança-raios.
— Fiquem onde estão!
Nenhum t’kelano se mexeu, embora um sibilo os percorresse.
Van Rijn recuou até a parede, para cobrir também a porta. Sorriu.
— Agora podemos conversar mais amistosos.
— A lei foi quebrada — expeliu Akulo.
— Da mesma forma que vocês quebraram a trégua declarada
entre nós! — Joyce interveio, embora toda cultura desse planeta

110
considerasse a quebra de promessa uma simples falta leve.
Joyce quase desmaiou de alívio. Não que o lança-raios fosse
resolver muitos problemas, pois não os tiraria daquela cidade que
pupulava de arqueiros e lanceiros. Mas...
— Quieta!
Van Rijn ribombou. De uma parede a outra, de pedra, os ecos
tocaram. Duas sentinelas chegaram apressadas. Estancaram, ao
ver a arma.
— Entrem. Cheguem-se à festa — convidou o terráqueo. —
Ainda existem muitos espaços vazios, e carga de energia para to-
dos.
Para Joyce, disse:
— Muito bem. Agora é que vamos descobrir se somos sufi-
cientemente inteligentes para não sermos heróis. Diga a eles que
Nicholas van Rijn tem um discurso a fazer, e traduza à medida que
vou falando.
Fracamente, Joyce repassou a mensagem. Um lampejo de re-
laxamento exibiu-se naqueles corpos tigrinos, diante dela. Juntos,
Akulo, Nyaronga e Masotu concordaram com a cabeça, O Ancião
disse:
— Vamos ouvi-lo. Sempre haverá tempo para lutar depois.
— Ótimo!
A forma gigantesca de Van Rijn deu um passo à frente. Num
gesto retórico, moveu o cano da arma de um lado ao outro.
— Em primeiro lugar, quero que saibam que armei todo esse
tumulto para que pudéssemos conversar. Se viesse só, vocês me
acertariam com suas pedrinhas pontudas, o que não seria bom
para nenhum de nós. Ergo, tive que vir acompanhado. Nyaronga
poderá dizer-lhes que sou capaz de brigar como um credor esfo-
meado, se necessário. Mas, desta vez, talvez não seja necessário,
não é mesmo?
Joyce transmitiu as palavras, frase por frase, e esperou que
o pai do bando gangu confirmasse que os humanos eram, na ver-
dade, clientes rigorosos. Van Rijn aproveitou-se da surpresa geral
e deflagrou rápida ofensiva verbal.
— Temos a situação nas mãos. Vamos supor que os shangas
estejam mentindo, que tenham manufaturado um arsenal moder-
no, em cobre, que lhes conceda tanto poder que mesmo esta cidade
se torne um simples cliente, e não mais, como antes, um primus
inter pares. Nie? Para evitar que isto aconteça, necessário se faz
estabelecer uma causa comum entre os Anciãos, os rokulelas e
111
nós, humanos, pois podemos conseguir armas de maior porte para
conter os yagolas, assim que nossa nave de socorro chegar.
Masotu insistiu:
— Mas não existe tal acordo entre nós!
— É o que você diz!
Joyce começava a entender o plano de Van Rijn.
— Anciãos, rokulelas, vocês estariam dispostos a aceitar a
palavra deste homem numa questão de tal porte?
A indecisão crescia no tablado. Van Rijn prosseguiu.
— Agora vamos supor, por outro lado, que o mentiroso seja
eu, que não existiam armas mortíferas no domo. Então, os shan-
gas e os Anciãos devem continuar trabalhando juntos. Para a nave
de meu povo, que virá de meu próprio território — o céu cheio de
estrelas — alguma estória tem que ser inventada para explicar a
destruição do domo. Os únicos que conseguiram escapar fomos eu
e essa linda bonequinha ao meu lado e, assim, eles saberão que os
shangas fizeram o trabalho. Meu povo ficará zangado por ter per-
dido uma boa oportunidade de realizar lucros, oportunidade por
que vem lutando há muito tempo. Colocarão a culpa nos Anciãos,
por utilizar os shangas como fantoches, e talvez estilhacem esta
montanha, a menos que inventemos, de antemão, uma estória con-
vincente, que seja confirmada pelos shangas de modo a eximir os
Anciãos. Correto? Ja. Muito bem. Então, daqui para a frente, por
muitos anos, os shangas — e através deles, todos os yagolas — es-
tarão em contato estreito com a cidade kusulongo, e não vão querer
ser acusados de falta de pagamento, não é verdade? Muito bem. E
vocês, rokulelas; pensam que os Anciãos agirão com imparcialida-
de com vocês? Como poderão ser imparciais, se estarão expostos a
ser chantageados pelos shangas? Para manter um certo equilíbrio,
vocês precisarão da presença de humanos aqui.
Uulobu trincou os dentes.
— É verdade!
Joyce, porém, observava Nyaronga. Por longo tempo, o chefe
ponderou, trocou olhares com os colegas.
— É, isto talvez aconteça. No mínimo, não vamos querer cor-
rer o risco de sermos enganados quando tivermos de vir aqui para
o julgamento de alguma disputa. Também, a terra de Yagola talvez
se depare com anos ruins à frente, quando, então os yagolas terão
que se deslocar... e uma única falha na previsão de uma incandes-
cência poderia nos enfraquecer a todos e expor o país a invasões.
A quietude alastrou-se. A antena do fone de Joyce enviava

112
a ela apenas o crepitar das tochas e, do lado de fora da porta, o
ribombar do vento. Akulo fitava o cano da arma de Van Rijn, sem
um único movimento sequer. Disse, por fim:
— Você semeia a discórdia com grande habilidade, estranho.
Pensa que poderemos deixar alguém tão perigoso, ou mesmo estes
pais de bando que você transformou em aliados, sair daqui vivos?
Complacente, Van Rijn respondeu através de Joyce.
— Ja. Porque eu, na verdade, não criei confusão alguma, ape-
nas provei, em benefício de vocês mesmos, que vocês não podem
confiar uns nos outros, e que precisam de pessoas humanas para
manter a ordem. Pois, vejam vocês, com os humanos por aqui, com
suas armas, interessados na paz dos clãs e das Hordas, os yagolas,
com as poucas armas que possuem, nada poderão realizar. Ou se,
na verdade, nem possuírem armas, ainda assim não haverá motivo
para que a cidade trabalhe unha e carne com eles, se os humanos
se manifestarem pacíficos, sem desejo de vingança pelo domo. De
qualquer modo, portanto, estará restabelecido o equilíbrio correto
entre os pastores e a cidade. Q.E.D.
Akulo argumentou:
— Mas, por que o povo celeste desejaria estabelecer-se aqui?
Teriam, por acaso, o objetivo de assumir as funções de justiça de
Kusulongo a Cidade? Para isso, terão que nos matar a todos na
montanha.
— Não há necessidade disso. Obteremos nosso lucro de ou-
tras maneiras. Enquanto viajávamos para cá, perguntei, à senhori-
ta ao meu lado, sobre os fatos, e ela os uniu de maneira primorosa.
Bem, Joyce, assuma... Não sei qual a melhor maneira de transmitir
a idéia, já que eles não têm qualquer noção de teoria química.
Joyce ficou de queixo caído.
— Quer dizer, Nick, que você tem a solução? Van Rijn esfre-
gou as mãos, radiante.
— Ja, ja, ja! Elaborei tudo direitinho. Veja só. Minha própria
empresa assume as operações em t’Kela. Vocês, esperancianos,
nos ajudam no início, é natural; mas, depois, podem ir investir seu
dinheiro em qualquer outro planeta deteriorado... enquanto Nicho-
las van Rijn vai fazer dinheiro neste aqui mesmo.
— O que... O que você tem em mente?
— Escute, eu quero o vinho kungu, e também seria bom
manter um comércio paralelo de peles. De todas as regiões, os clãs
virão trazer-me estes materiais. Em troca, venderemos, para eles,
amônia e nitratos produzidos nas usinas de fixação de bactéria
113
que construiremos. Precisarão delas para adubar os solos, e tam-
bém para cultivar as bactérias fixadoras de nitrogênio, da maneira
como você os ensinou a fazer, de modo a aumentar a produção das
colheitas para que possam comprar mais amônia, mais nitratos. E
farão isso, principalmente, para obter excesso de crédito que lhes
possibilite adquirir aparelhos modernos. Armas, em especial. Nin-
guém, com instintos de caça, consegue resistir à compra de armas,
mesmo que, para isso, tenha que se transformar em fazendeiro
de meio expediente. E meus fabricantes irão vender-lhes, também,
ferramentas, máquinas e coisas assim, que farão com que se tor-
nem, lentamente, gente civilizada, exatamente como você deseja
que sejam. E em toda essa negociação, a Solar de Condimentos &
Bebidas terá ótimos lucros.
— Mas não viemos aqui para explorá-los!
Van Rijn sacudiu os ombros, riu. Ergueu a mão, foi torcer o
bigode, deu uma pancada no capacete, fez uma careta,
— Talvez vocês, esperancianos, não tenham vindo para isso.
Mas eu, com certeza, vim. E veja, eles saberão compreender isso,
os clãs. A caridade não faz parte dos instintos deles, mas o lucro
faz. E sentir-se-ão bem em nos roubar no preço do vinho. Não ha-
verá mais “pé atrás” nem desconfiança com relação aos humanos,
não quando sabem que os humanos vieram apenas em busca de
dinheiro. Entendeu?
Algo aturdida, Joyce concordou com a cabeça. Em Esperan-
ça, não iriam gostar nem um pouquinho. A Comunidade procurava
manter-se numa posição moral elevada em relação à Liga para a
Ciência do Sol Polar, sem, no entanto, muito fanatismo, principal-
mente se houvesse apenas uma única maneira de realizar o traba-
lho; mas... um momento! Joyce objetou:
— E os Anciãos? Como você irá conciliar as coisas com eles?
Ao apresentar-lhes tantos elementos novos, é provável que destrua
a base de toda a economia deles.
— Já elaborei a coisa. Nós vamos precisar de muitos repre-
sentantes, muitos funcionários nativos, gente esperta capaz de es-
criturar livros, de expandir nossos territórios de mercado, e coisa e
tal. Isto resolverá o problema de muitos Anciãos jovens... que nome
bobo! Quanto ao resto, manter a unidade de poder e prestígio da
cidade, também conseguiremos resolver. Lembre-se, há poços de
óleo a ser estudados e usinas de eletrólise a ser construídas. As
usinas de eletrólise venderão hidrogênio às usinas de amônia, e as
instalações de queima de óleo poderão vender eletricidade. Então,

114
muito bem. Eu construo essas fábricas de óleo, de eletrólise, e as
entrego à gerência dos Anciãos, e deixou que as comprem de mim
em amortizações a longo prazo. Utilidades tão lucrativas, tão es-
senciais, os deixarão contentes, nie?
Pensativo, Van Rijn olhou para um dos cantos escuros do
recinto.
— Hummm... Será que consigo uma rentabilidade de vinte
por cento ao ano, composta, ou terei que baixar para quinze?
Joyce respirou fundo, por alguns instante para começar a
procurar por expressões kusulongos.

Desceram a montanha, rumo ao pôr-do-sol. Atrás, salvas;


lá embaixo, fogueiras cintilavam no acampamento, para dar-lhes
as boas vindas. O que via, de algum modo, pareceu, para Joyce,
mais vivido que nunca. E havia beleza naquela planície ilimitada,
a oeste, onde um povo livre perambulava pelas próprias vidas. As
próximas semanas, poucas, à espera da nave, não serão nada más,
pensou. Seriam, na verdade, bem divertidas.
Van Rijn acrescentou, presunçoso:
— Uma outra vantagem é que transformar isso tudo numa
operação lucrativa para todos é garantir, com maior segurança,
que o trabalho continuará por tempo suficiente para salvar o pla-
neta. E você, que pensava que seu governo seria capaz de salvá-lo?
Bah! Os governos são umas chateações! Qualquer mudança de ide-
ologia, ou até mesmo de humor, e... pronto! Lá se vai todo o projeto!
A ação privada, porém, onde todos os envolvidos são necessários
aos ganhos de todos os demais, é estável. A política, vai e vem, mas
a ganância é imortal.
Joyce contestou:
— Não, não pode ser!
— Bem, no carro teremos muito tempo para discutir, sobre
isso e tudo o mais. Creio que posso fazer umas pequeninas mano-
bras para extrair álcool do kungu. E, depois, colocá-lo nos sucos
de frutas e fazermos uma espécie de vinho para tomarmos às refei-
ções, como verdadeiros seres humanos, caramba!
— Bem... eu... eu não posso, Nicky. Quer dizer, nós dois...
sozinhos...
— A gente só é jovem uma vez. Você está me dizendo que
eu, um pobre velho, é quem vai ter que mostrar a você como ser
jovem?...
Van Rijn mal conseguiu evitar o olhar manhoso.
115
— ... Bem, de minha parte, eu aceito.
Joyce empalideceu, afastou o olhar. Teria que ficar de olho
nele até chegar a nave, pensou. E em si própria, por falar nisso.
Claro, pois, se relaxasse, um pouquinho que fosse... afinal,
ele era, de fato, uma pessoa muito interessante...

116
Argo mais soberbo singra o alto-mar,
Carregando uma presa mais recente;
Outro Orfeu canta, novamente,
E ama, chora, e morre.
Um novo Ulisses deixa, mais uma vez,
Calipso, rumo à praia natal.

Shelley

117
118
A CHAVE MESTRA

Antigamente, houve um rei que se colocou acima dos merca-


dores estrangeiros. O que ele fez não importa agora; já foi há muito
tempo, e em outro planeta; e, além disso, o freqüentador de bordéis
já morreu. Harry Stenvik e eu o penduramos, pelo fundilho das
calças, no minarete mais alto, de sua propriedade, à vista de todo
o povo, e o nome da Liga para a Ciência do Sol Polar era grandioso
na terra. Depois, fizemos incursões no estoque comercializável do
fornecedor da Companhia Solar de Condimentos & Bebidas, e ju-
ramos fraternidade imorredoura.
Bem, há aqueles que sustentam que Nicholas van Rijn possui,
no espaço usado pelo ser humano comum para abrigar o coração,
um computador criogênico. Talvez seja verdade. Mas ele jamais se
esquece de um bom trabalhador. E não sei de nenhum motivo que
o levasse a me convidar para jantar, a não ser pela presença de
Harry e, já que, de todas as minhas viagens de negócios à Terra,
esta era a mais curta, talvez não tivéssemos outra oportunidade
para nos encontrar.
O espaço-rápido deixou-me no topo do Cruz Alada, onde Van
Rijn mantém o que acredita, honestamente, ser um pequeno e mo-
desto apartamento de cobertura. A penumbra do verão suavizava
a massa de edifícios menores que se estendia até o horizonte, e
depois dele. A oeste, Vênus já acordara; o Integrado de Chicago
abria luzes numerosas. Nesta altura, apenas a vibração surda de
uma máquina atingia meus ouvidos. Por entre rosas e jasmins,
caminhei para a porta. Quando a porta me detectou, e dilatou,
Harry já estava à espera. Nos jogamos nos braços um do outro, e
rogamos a Deus com tantas violações, em voz alta, de Seu terceiro
mandamento.
Depois, nos afastamos, nos olhamos. Ele mentiu:
— Você não mudou quase nada. Zangado e feio, como sem-
119
pre. O metano do ar deve fazer bem para você.
Eu o corrigi.
— Amônia, por onde tenho andado. OFICIAL DE ADMINIS-
TRAÇÃO TRABALHISTA: tiros eventuais e barganhas incessantes.
Você está revoltante, de tão charmoso, tão alegre. Como vai Si-
grid?
Como é dever de todos os homens, a domesticidade o atingi-
ra também. No caso dele, ainda durava; construíra uma casa nas
colinas, em cima do Fiorde Hardnager, criara mastins e filhos. E a
mim... mas isso também é irrelevante.
— Está ótima. Manda lembranças, e uma caixa de biscoitos,
que ela mesma fez. Da próxima vez, dê um jeito de ficar mais tem-
po, e venha nos visitar.
— E os meninos?
— A mesma coisa...
0 sotaque escandinavo estava um pouquinho mais áspero.
— ... Per teve alguns problemas, mas já estão se arrumando.
Ele está aqui, hoje.
— Ora, que ótimo!
A última vez que tivera notícias do filho mais velho de Harry,
ele trabalhava como aprendiz numa das naves de Van Rijn, em
algum ponto da região Hércules. Mas já faziam tantos anos, e, na
Liga, quem consegue sobreviver ascende rápido.
— A esta altura já deve ter obtido o grau de mestre.
— Já, há bem pouco tempo. Sem contar o fêmur artificial e
uma estória para contar. Venha, vamos juntar-nos a eles.
Hum, pensei, então o velho Nick está de novo economizando
suas pedras de matar passarinho. Possuía tantas anedotas pró-
prias que não precisava colecioná-las, a menos que tivessem algu-
ma utilidade especial para ele. Talvez um gesto de bondade deva
ser introduzido neste encontro.
Atravessamos o vestíbulo, alguns anos-luz de tapete de pê-
los de felino, e chegamos à outra extremidade da sala de estar.
Três homens sentavam-se junto à parede do visor, transparente,
no momento, para o céu, para a cidade. Apenas um deles levantou-
se. Estava sentado um pouco de lado, numa espécie de alerta à
vontade, característico dos tigres. Para mim, um estranho, escuro,
curvo, com um lança-raios, na cintura, que já presenciara muito
serviço.
Nicholas van Rijn afundou ainda más o corpanzil na espre-
guiçadeira, ergueu a caneca de cerveja, de barro, e roncou:

120
— Ha! Bem-vindo, Capitão! Quem sabe você não aceita um
aperitivo antes do jantar, como eu?
Depois, puxou o cavanhaque, resmungou:
— Acho que Gabriel vai estrilar, e eu não vou conseguir me
comunicar com essa canequinha nesse desgraçado de Ânglico.
Acho que acabei de pedir um aperitivo para mim.
Curvei-me, como convém diante de um príncipe mercador,
virei-me, e estendi a mão para Per Stenvik.
— Peço desculpas por não me levantar.
O rosto de Per ainda estava pálido, magro. Recuperava a saú-
de, mas a juventude... nunca mais.
— Tive um machucadinho.
— Eu soube. Não se preocupe, você vai ficar bom. Nem gosto
de pensar em quanta coisa já foi substituída em mim; mas, se as
partes importantes permaneceram...
— Claro, eu vou ficar bom. Graças a Manuel. Bem, Manuel
Felipe Gomez y Palomares, de Novo México. Meu alferes.
Apresentei-me com grande formalidade, pelo que conhecia
dos costumes daqueles colonos pobres e arrogantes do extremo de
Arcturo. Ele igualou-me em cortesia, antes de virar para assegurar-
se de que o cobertor estava bem preso nas pernas de Per. E nem
voltou ao assento, nem à taça de clarete antes que Harry e eu nos
sentássemos. Um criado humano — macho, neste estabelecimento
específico de Van Rijn — trouxe-nos os pedidos, akvavit para Harry
e martini para mim. Per brincava com um copinho de vermute de
Ansan.
Um pouco depois da ligeira conversa, perguntei à ele:
— Quanto tempo você vai ficar em casa?
— O tempo que for necessário! — respondeu Harry, rápido.
— Mas nem um minuto mais! — acrescentou Van Rijn, na
mesma velocidade. — Não irá mandriar nem um milimomento a
mais que a natureza possa suportar; e ele é jovem, forte.
— Descupe-me, señor... — Com delicadeza e deferência. Ma-
nuel interveio. — Não desejo desmentir meus superiores. Mas meu
dever é saber a respeito de meu capitão, e os médicos estão enga-
nados. Ele deve repousar nunca menos que até o Dia dos Mortos;
e depois, com certeza, com o Natal tão próximo, o señor não irá
negar-lhe os feriados em casa, pois não?
Van Rijn jogou as mãos para o alto, queixando-se.
— Todos, eles me chamam de fera apocalíptica, e eu não pas-
so de um velho solitário num mar de ressentimentos, que tenta,
121
com dificuldade, manter-se na superfície. Encontro um bom meni-
no, que promete, e o observo desde antes que suas calças sequem,
pois conheço-lhe a estirpe. Dou a ele uma educação cara, na espe-
rança de que não se transforme em mais uma cabeça de coalhada
e, quando menos espero, ele baixa enfermaria, e meu novo planeta,
tão bonito, é atirado aos lobos.
Per riu, irônico.
— Benditos sejam os lobos! Não se preocupe, senhor. Estou
ansioso para voltar, tanto quanto o senhor.
— Não, eu não. Eu não vou. Estou muito velho, muito gordo.
Você, você pensa que tem problemas? Ah, pois então espere que o
tempo o corroa, e o transforme num velho asmático, como eu, que
não tem mais nenhum prazer. Abdul! Abdul, seu perna de geléia,
traga bebida, você quer que eu resseque, que pife? ... O quê? Sou o
único pronto a repetir a dose?
Com o olhar fixo em Van Rijn, Harry perguntou a Per:
— Você tem certeza de que quer ver aquele Helheim de
novo?
— Claro, por Judas! Ele está lá, à espera do homem certo.
Um mundo inteiro, papai! Não se lembra?
O olhar atravessou a parede, Harry concordou com a cabeça.
Apressei-me a intrujar naquele silêncio.
— O que você procurava lá, Per?
— Tudo — respondeu o jovem. — É como eu disse, é o plane-
ta inteiro. Nem um por cento da superfície foi ainda mapeada.
— O quê? Nem mesmo da órbita?
A expressão de Manuel veio mostrar-me o que os dois pensa-
vam a respeito de mapas-orbitais.
— Mas, para um iniciante — acrescentou Per — o que nos
atraiu, em primeira instância, foram as peles e as ervas.
Em silêncio, Manuel apanhou uma caixinha no bolso, abriu-a
e estendeu-a para mim. Lá dentro, um pó de folhas, verde-azulado.
Provei. Era de um sabor acre-doce, de nuanças silvestres, e o aro-
ma penetrou na parte mais velha, mais profunda, de meu cérebro,
e despertou reminiscências que eu nem sabia que perdera.
Van Rijn troou à volta do charuto que acendia.
— São produtos químicos que ainda não conseguimos com-
preender, nem sintetizar. Bah! Tudo o que meus químicos sabem
fazer é jogar joguinhos divertidos no laboratório de álcool! E, e as
peles, ja! Deixei Lupescu, da Peleteria, vulcanizando as que irá
comprar de mim. Ele até bajula os espiões. É, ele mesmo, ele tem

122
a ética de uma doninha paranóide. Só ele gastou, no mês passado,
quinze mil, para tentar descobrir onde fica o planeta.
Afável, Harry perguntou:
— Como você soube o quanto ele gastou?
Van Rijn procurou parecer arrogante e magoado ao mesmo
tempo.
Per foi cuidadoso.
— É melhor nem eu mesmo mencionar as coordenadas. É no
caminho de Pégaso. Uma estrela anã, G-9, com cerca de metade da
luminosidade do Sol. Oito planetas, um deles terrestróide. Bran-
der esbarrou nele durante uma pesquisa, julgou-o interessante, e
desceu para saber mais detalhes. Teve tempo apenas para gravar a
língua da localidade onde acampara, para realizar a plahetografia
superbásica e os levantamentos biônicos. Mas, quanto às peles e
às ervas, conseguiu descobri-las. E, então, fui mandado para lá
para estabelecer um posto comercial.
— É o primeiro cargo de chefia de Per — disse Harry, o que,
de fato, não interessava a ninguém, senão a ele mesmo.
— Teve problemas com os nativos? — perguntei.
Van Rijn interveio.
— Problema não é bem a palavra exata. A palavra exata não
se ajusta a ouvidos educados.
E mergulhou na caneca de cerveja; voltou, resfolegando.
— Depois de tudo o que fiz por eles, os santos ainda me dão
um chute desses na alma.
— Mas, ao que parece, já os derrotamos — disse Per.
Van Rijn sacudiu-lhe o dedo indicador, cabeludo.
— Ah, você acha? Pois deveríamos querer nos assegurar dis-
so, menino, antes de enviar para lá naves caras, e talvez até perdê-
las.
— Y algunos hombres buenos.
Manuel adiu, tão baixo que mal foi ouvido. Uma das mãos
caiu sobre o cabo da arma.
— Andei lendo os relatórios do pessoal de Brander — disse
Van Rijn. — E os seus também. Talvez eu consiga estabelecer um
padrão. Quando já se andou tanto quanto eu, trapaceando por aí
em tantos planetas, meu novo capitão, conseguiremos os análogos
para seus dados, para quase todas as novidades... Ah, o cansaço é
o pior de tudo!
O anel de fumaça, exalado por Van Rijn, foi localizar-se nos
cachos brilhosos de Per.
123
— Mas, mesmo assim, não podemos ter certeza. Acho que
Deus, de vez em quando, gosta de pregar peças em nós, pobres
mortais, quando nos tornamos muito confiantes. Portanto, não
quero tomar conclusões afoitas antes de ouvir, de seus próprios
dentes, o que foi que aconteceu por lá. Relatórios, a própria fita de
gravação da visita, têm o sabor de produto vendido pela concorrên-
cia. Através de você, posso reviver as lutas, as travessuras, tudo
que eu, caduco, já deixei muito para trás.
Isto dito pelo conquistador solitário de Borthu, Diomedes e
t’Kela!
Per enrubesceu, atrapalhou-se com o corpo.
— Bem... Não há, na verdade, muito o que dizer, o senhor
sabe. Quer dizer, vocês, cidadãos, já passaram por coisas muito
mais importantes do que... do que, bem, um episódio tão bobo...
Harry fez um gesto para as pernas recobertas.
— Não há nada de bobo nelas. Os lábios de Per repuxaram.
— Desculpe. O senhor tem razão. Seres humanos morre-
ram.
Principalmente porque não é muito bom insistir por muito
tempo com pessoas que perderam o comando que lhes pertencia,
eu disse. Como é o planeta? Dizer que é “terrestróide”, é piada. As
pessoas se sentam num escritório numa das faces da Terra, e, se
conseguem respirar o ar, chamaram-na assim.
— E se não caem da gravidade, dizendo Uff!, por, no mínimo,
meia hora, e não esperam, durante todo o ano, que não tenham
macacos de bronze por ancestrais.
O meneio de Van Tijn fez com que seus cachinhos negros
esvoaçassem de um ombro ao outro.
Harry reclamou:
— Eu, de um modo geral, sempre fui enviado a lugares onde
os macacos de metal costumavam derreter.
— Bem, nas latitudes baixas — disse Per — Caim não é tão
mau assim.
O rosto relaxou, as mãos avivaram em gestos rápidos que me
lembraram sua mãe.
— Tem quase o tamanho da Terra, e raio orbital médio um
pouco superior a uma U.A. A atmosfera é mais densa, no entanto,
em cerca de quinze por cento, responsável por efeito estufa maior.
Período de vinte e quatro rotações; não há luas. Trinta e dois graus
de inclinação axial, o que complica sobremodo as estações. Mas
estivemos a 1540 norte, em colinas razoavelmente baixas, e era

124
verão. Um lago próximo congelava-se toda manhã, e os bancos de
neve permaneciam nas encostas; na verdade, entretanto, nada mal
para um planeta de uma estrela G-9.
— Brander chamou-a de Caim? — perguntei.
— Chamou. Não sei porquê. Mas, no fim, foi um nome apro-
priado. Apropriado demais.
O vazio, novamente. Manuel apanhou o copo vazio de seu
capitão e afastou-se. Voltou momentos depois, com o copo cheio.
Per bebeu, apressado.
— Sempre haverá problemas — afirmou Van Rijn. — Você irá
aprender.
Per protestou.
— Mas a missão ia bem. Até mesmo a língua e todas as infor-
mações pareciam... fluir na minha cabeça, na viagem de volta. De
fato, toda a tripulação aprendeu com muita facilidade.
E voltou-se para mim.
— Éramos vinte na Miriam Knight. Ela era uma beleza.
Transporte à altura de Chelândia, construído mais para velocidade
do que para capacidade, vocês sabem. Mais que isso seria des-
necessário, pois esperávamos apenas instalar o primeiro posto e
transmitir, para os autóctones, a idéia da existência de comércio
regular. Leváramos a nossa linha habitual de mercadorias, tecidos,
ferramentas, armas, e coisas de casa, como tesouras e moedores
de carne. Poucos ornamentos, porque os xenólogos de Brander não
chegaram a elaborar qualquer padrão consistente para o item. Os
caimitas pareciam vestir-se e enfeitar-se ao bél-prazer. Na área de
Ulash, pelo menos, a única sobre a qual contávamos com detalhes
em mãos.
— E muito poucos - murmurou Harry. — Bem, como sem-
pre.
— Agricultura? — inquiri.
— Um pouco de cultura primitiva. Pequenos lotes, como ex-
tensão da floresta, cultivados pelos lugais. Em Ulash, há um ar-
remedo de metalurgia, cobre, ouro, prata; mas eles, também são
essencialmente neolíticos. E essencialmente caçadores — quer di-
zer, os yildivanos — juntamente com os lugais que empregam para
ajudá-los. O alimento principal é a caça. De fato, a melhor parte da
cultura porventura existente é destinada à fabricação de tecidos.
— E com que se parecem, estes povos?
— Tenho uma fotografia comigo.
Dentro da túnica, Per apanhou uma fotografia e estendeu-a
125
a mim.
— Esse é o velho Shivaru, logo no começo de nossa amizade.
É provável que estivesse com medo da câmara, mas duvido que o
admitisse. Perceba que o lugal, ao lado dele, está roxo de pânico.
Estudei a imagem com interesse crescente. Ao fundo, uma
encosta plutônica, áspera, onde a grama, de um turquesa-amare-
lado, pálido, crescia entre penedos escuros. À direita, porém, vis-
lumbrei um vale arborizado, denso. Acima, o céu estava exangüe, e
a luz do sol, laranja, distorcia as cores.
Shivaru, de pé, empinado, rijo, olhava fixo para a lente. Tinha
quase dois metros de altura, Per dissera, de uma compleição física
bastante semelhante à de um homem de pernas compridas, de tó-
rax cavado. Os pêlos castanho-claros, malhados, até a extremidade
da elegante cauda. A cabeça era menos antropóide: no topo, um
penacho escuro, os olhos verdes apresentavam pupilas fendidas,
orelhas redondas, móveis, o nariz chato lembrava um felino até
mesmo pelos cilios que os circundavam, boca de lábios grossos
com presas protuberantes nos cantos, e a mandíbula afunilando
em V. Usavam uma espécie de tanga, tingida com espalhafato, e
um colar de pedras semipreciosas, brutas. A mão esquerda um
machado de batalha, com lâmina de obsidiana; no cinto, uma faca
comercial, de aço.
— São mamíferos, mais ou menos, apesar das tantas dife-
renças em anatomia e química, como seria de esperar. E eles não
suam. No sangue, um sistema complicado de reações exo e endo-
térmicas regula a temperatura.
— Suar não é muito comum nos terrestróides frios — obser-
vou Van Rijn. — Sempre descobrimos análogos para as coisas que
já vimos antes, se procurarmos com insistência. A evolução traça
suas paralelas.
— E suas oblíquas também - acrescentei. — Quer dizer, en-
tão, que Brander trouxe cadáveres para dissecar?
— Bem, nenhum yildivano. Brander, entretanto, conseguiu,
junto aos yildivanos, muitos cadáveres de lugais, tantos quanto
quis. E, é obvio, os lugais pertencem ao mesmo gênero eles...
Per estremeceu.
— ... Espero que não tenham matado lugais exclusivamente
para esse fim!
Minha atenção desviara até a criatura agachada atrás de Shi-
varu. Era uma versão atarracada, de pernas curtas, de pêlos mar-
rons, do outro caimita. A testa e o queixo eram maldesenvolvidos,

126
e o focinho ainda não se transformara em nariz. O ser estaria nu
não fossem a sacola pesada, a aljava de flechas, o arco, e as duas
lanças empilhadas nas costas musculosas. Pude ver a carne viva,
os calos deixados pelo fardo. Apontei.
— Aquele ali é um lugal?
— É. Veja você, existem, no planeta, duas espécies correla-
tas, uma mais evoluída que a outra. É como se o Australopithecus
tivesse sobrevivido até os dias de hoje na Terra. Os yildivanos es-
cravizaram os lugais: em Ulash, com certeza, e, pelo que pudemos
constatar através de verificações aleatórias, em todas as demais
regiões de Caim.
— Bem maltratados, não estes pobres-diabos? — comentou
Harry. — Eu não confiaria em escravos armados.
— Mas os lugais são de inteira confiança. Como os cães. Fa-
zem o trabalho pesado, monótono. Os yildivanos — machos e fême-
as — são os caçadores, artistas, mágicos, tudo o que interessa. Ou
seja, toda a cultura existente é yildivana...
Per franziu o cenho, fitou o aperitivo.
— ... Não sei quão significativa seria esta “cultura” naquelas
paragens.
Van Rijn ergueu as sombracelhas bem acima dos pequeninos
olhos negros.
— Como assim?
— Bem... eles, os yildivanos, não possuem nada que se as-
semelhe a nação, tribo, ou a qualquer espécie de comunidade. Os
grupos familiais dividem-se quando os filhotes atingem idade sufi-
ciente para prover o próprio sustento. O macho jovem estabelece-
se nalgum lugar, livra-se dos que porventura se aproximem e, no
fim de um tempo, uma ou duas fêmeas vêm juntar-se a ele. Os
lugais que possuem grudam neles, espontaneamente — de novo,
como cães. Pelo que pude aprender, as famílias mantêm contatos
meramente casuais. Escambos eventuais, formação eventual de
grupos provisórios para a caça de animais muito grandes, confron-
tos eventuais entre indivíduos, e é só, praticamente.
Objetei.
— Um momento. As raças inteligentes necessitam mais do
que isso. Algo que seja o transmissor da tradição, algo para estimu-
lar a evolução do cérebro, uma maneira que permita aos indivíduos
comunicar idéias entre si. De outro modo a inteligência não teria
qualquer função biológica.
— Também já me preocupei com isso. Já conversei muito
127
com Shivaru, Fereghir, e com outros que surgiam no acampamento
quando bem entendiam. Muito nos esforçamos para nos compre-
endermos. Estavam tão curiosos a nosso respeito, quanto nós a
respeito deles, e com a mesma rapidez perceberam as vantagens
mútuas das relações comerciais. Foi um trabalho e tanto! Um
planeta inteiramente diferente — dois ou três bilhões de anos de
evolução em separado. E, para começar, contávamos apenas com
rudimentos de Ulash, um vocabulário limitado que o pessoal de
Brander havia aprendido. Não podíamos nos aprofundar nas suti-
lezas, principalmente porque eles, é claro, jamais questionaram o
próprio modo de vida. Mais para o final, porém, comecei a vislum-
brar uma certa luz.
“Acontece que, apesar da aparência aparvalhada, os lugais
não são bobos. Talvez, de uma maneira diferente, sejam tão inteli-
gentes quanto seus senhores; mas, definitivamente, não são muito
inferiores. Ainda, em cada um dos grupos familiais — organizações
patriarcais, em cavernas, choças, no íntimo da floresta — há muito
mais lugais que yildivanos. Todo membro da família, até mesmo
os guris, possuem uma quantidade de escravos. Assim, talvez não
existam clãs ou tribos yildivanas, mas, entre os lugais, talvez exista
o equivalente numérico. E os lugais são enviados em expedições
a outras reservas yildivanas, com mensagens, mercadorias para
escambo, e coisas assim, e, de volta, trazem as novidades. E são
comerciados. Os yildivanos os cultivam com este propósito, com
seu conhecimento prático, engenhoso, de genética. E, ao que pare-
ce, os lugais recebem, com freqüência, permissão para perambular
sozinhos, quando não há trabalho a fazer — fazemos o mesmo com
nossos cães — e realizar cerimônias rituais próprias. Mas não se
deve pensar que sejam maltratados. Na verdade, o são, segundo
nossos padrões, mas Caim é um lugar cruel, e os yildivanos já não
levam uma vida muito fácil.
“Todo lugal inteligente é valioso, colocam-no a chefiar tur-
mas de seus iguais, a ensinar, aos jovens yildivanos, habilidades,
canções especiais, e coisas tais, e a opinar, algumas vezes, por
solicitação do proprietário, sobre a maneira de resolver determi-
nada situação. E soube que algumas famílias os deixam fazer as
refeições e dormir em suas próprias residências. E lembrem-se, a
lealdade é devida estritamente aos patrões. O que façam, ou não, a
outros lugais, não significa nada para eles. De bom grado, ajudam
a selecionar os mais fracos, punir os preguiçosos, tudo. Bem, para
ser objetivo, creio que esta é a resposta à sua dúvida. Os yildivanos

128
possuem, de fato, vida comunitária, uma sociedade mais ampla.
Porém, indiretamente, através dos lugais que possuem. Os yildiva-
nos são os criadores, os inovadores. E eu me atreveria a dizer que
a relação já existe há tanto tempo que até mesmo condicionou a
evolução biológica das duas espécies.
— Você fala tão bem deles — comentou Harry, intimidado —
que parece ter-se esquecido do que fizeram a você.
— Mas, no início, eram pessoas muito decentes...
Pude sentir, na voz de Per, quão magoado estava pelo que
acontecera.
— ... Orgulhosos como Satã, insensíveis, mas não cruéis. Ho-
nestos e generosos. Sempre que chegavam, traziam presentes, sem
pensar em paga. Dois ou três deles nos perguntaram se quería-
mos que nos cedessem trabalhadores lugais. Não era necessário,
nem viável, pois leváramos máquinas; mas eles não entenderam,
na ocasião. Quando entenderam, logo compreenderam a idéia ge-
ral, e ficaram muito impressionados. Creio. É difícil dizer, pois não
conseguiam, e nem admitiriam, que alguém pudesse ser superior
a eles. Isto é, cada indivíduo se considerava tão bom quanto qual-
quer um no mundo. E parece que nos consideravam seus iguais,
e nem tentei explicar de onde vínhamos. Para os fins práticos, de
“outro país” parecia suficiente.
“Shivaru demonstrou-se muito interessado em nós. Era de
meia-idade, os filhos já quase todos crescidos, já se haviam ido.
Rico, em termos locais, progressista — vinha experimentando criar
animais de corte, como suplemento à caça — e seus conselhos
eram muito procurados pelos demais. Levei-o pára um passeio no
espaço-rápido, e ele parecia uma criança, de tão feliz, tão emo-
cionado; da outra vez, trouxe três companheiros para que se pu-
dessem divertir também. Acabamos fazendo caçadas juntos. Meu
Deus, vocês deveriam vê-lo correndo atrás daquelas feras corní-
geras, saltar-lhes nas costas, e desmiolá-las com um único golpe
daquele tremendo machado! Seus lugais, depois, cortavam a caça
e levavam-na para o acampamento. A carne era muito saborosa,
acreditem. A bioquímica caimita carece de algumas vitaminas nos-
sas, mas, quanto ao resto, qualquer humano pode viver bem lá. E
como conversávamos!
“Creio que isto não deva ser novidade para vocês cidadãos,
mas eu nunca havia passado horas a fio com outro ser, trabalhan-
do juntos, tentando construir um vocabulário, uma compreensão,
e nos acrescentávamos tanto que esquecíamos de comer, não fos-
129
sem Manuel, ou Cherkez — o chefe lugal de Shivaru, um sujeito
rude, engraçado, que me fazia lembrar dos gnomos dos meus livros
de contos de fadas, da infância — virem nos chamar. Às vezes eu
divagava e, quando voltava ao chão, percebia que estivera o tempo
todo ali, sentado, a admirar-lhe a beleza. Os yildivanos são como
os felinos. Muito graciosos, e de forma muito agradável, como uma
boa arma. E igualmente mortíferos, quando queriam sê-lo. Eu des-
cobri isso pessoalmente!
“Tínhamos nosso local preferido, no contravento de um pene-
do, do tamanho de uma chácara, nas colinas para lá do acampa-
mento. Às nossas costas, a rocha era quente; ainda mais quando eu
olhava para aquele sol encolhido, pálido, e exalava fumaça branca
contra o céu violáceo. Lá no alto, bem lá no alto, eu costumava ob-
servar o volteio, o mergulho súbito das aves de rapina — naquele ar
espesso, eu ainda ouvia-lhes o assovio das plumas aladas —, que,
depois, desapareciam, iam pousar nas copas das árvores lá embai-
xo no vale. As folhas possuíam milhões de tonalidades diferentes,
como se fossem um outono incessante. Shivaru ficava de cócoras,
com o rabo enrolado nos joelhos; ao lado, no chão, o machado.
Cherkez e mais um ou dois lugais permaneciam, a uma distância
respeitável, agachados, sem que os olhos jamais abandonassem
seu yildivano. Por vezes, Manuel vinha juntar-se a nós, quando não
estava ocupado a chefiar uma ou outra etapa da construção. Você
se lembra, Manuel? Não sei por que você ficava tão quieto!
— O silêncio era conveniente, Capitão — respondeu o natural
de Novo México.
— Bem, a voz cavernosa de Shivaru não parava. Possuía mui-
tos planos para o futuro. Nada de tratados comerciais — não havia,
para nós, organização com que se pudesse assinar tratados; mas
ele antevia seu povo trazendo, para nós, o que queríamos, em troca
pelo que oferecíamos. E ele era suficientemente inteligente para
perceber que seriam afetados pela existência de um tal mercado, de
um tal local de convergência comum. Seriam iniciados mais empre-
endimentos conjuntos. A idéia de cooperação estreita criaria raízes.
E ele esperava por isso, dentro dos estreitos limites que conseguia
conceber.
“Por exemplo, o trabalho conjunto de muitos yildivanos pode-
ria tirar bom proveito da desova anual, que costuma ocorrer no alto
do Rio Mukushyat. Em grandes canoas, poderiam aventurar-se por
alguns estreitos que conhecia, e abrir novos campos de caça. Todo
esse tipo de coisa. E então num tique-taque, as orelhas ficariam de

130
pé, os pêlos do rosto vibrariam, e ele começaria a fazer perguntas
sobre meu povo. Que tipo de país habitávamos? Como era a caça?
Como eram nossos casamentos, nossos métodos de criação de fi-
lhos? Como conseguimos produzir coisas tão bonitas? Caramba,
ele tinha todo o cosmos por explorar! Pouco a pouco, à medida que
crescia meu vocabulário, as perguntas tornaram-se menos práti-
cas e mais abstratas. E as minhas também, é natural. Estávamos
penetrando nas bases psicológicas de cada um, e estávamos ambos
fascinados.
“Não fiquei surpreso em saber que a cultura de Shivaru não
possuía religião, e, de fato, era difícil para ele tentar compreender
minhas perguntas sobre o assunto. Eles praticavam a magia, que,
para eles, era apenas uma espécie de tecnologia. Não havia ani-
mismo, nem equivalente do antropomorfismo. Qualquer yildivano
sabia muito bem que era superior às plantas, aos animais. Acho,
embora não tenha certeza, que eles possuíam um certo conceito,
vago, de reencarnação. Mas a coisa não lhes interessava muito, ao
que parece, e o problema das origens não lhes havia ocorrido. A
vida era apenas o que você tinha, aqui e agora. O mundo era uma
série de fenômenos, com que tínhamos que conviver, ou que nos
derrotariam, conforme o caso. Shivaru me perguntou por que eu
perguntara a ele sobre algo tão evidente.
Per sacudiu a cabeça. O olhar desceu, foi ao cobertor, sobre
o colo, e, rápido, retomou.
— Talvez esse tenha sido meu primeiro erro. Manuel inter-
veio, com toda delicadeza.
— Não, meu Capitão. Como o senhor iria saber que eles não
possuíam alma?
— Não possuem mesmo? — balbuciou Per.
— Vamos deixar isto para os teólogos — observou Van Rijn.
— São pagos para decidir essas coisas. Prossiga, rapaz.
Vi Per firmar-se. Prosseguiu, sem tom.
— Tentei explicar a ele a idéia de Deus. Tenho certeza de que
fracassei. Shivaru pareceu intrigado e... perturbado. Logo depois,
foi-se. Já lhe disse que os yildivanos de Ulash usam tambores para
comunicações de longo alcance? Bem, durante toda a noite, ouvi o
cochicho dos tambores no vale, e o eco das colinas. Durante uma
semana, ninguém nos procurou. Manuel, porém, que costumava
inspecionar a área, disse ter encontrato trilhas, vestígios. Estáva-
mos sendo observados. Senti-me aliviado, no início, com a volta de
Shivaru. Com ele, vinham uns dois mais, Fereghir e Tulitur; como
131
ele próprio, machos importantes. Atravessaram a colina e vieram
ter diretamente comigo; eu supervisionava os toques finais no nos-
so sistema de corte de madeira, pois usaríamos a madeira local em
boa parte de nossas construções. O corte e a apara seriam feitos
na própria floresta, com pistolas de raios; depois, em trenós, carre-
garíamos os troncos até a serraria, e os arrastaríamos, em seguida,
diretamente, através das cubas de endurecimento, até a obra, onde
as fundações já estavam dispostas. O ar estava repleto de rangeres,
rachados, roncos e ribombos, no vento que cortava como laser. Eu
mal podia ver a nave, e nem as barracas, tal a poeira tingida de
sangue ao sol.
“Os três se aproximaram, aqueles três caçadores, todos altos;
atrás deles, uns doze lugais armados, inquietos. Venha, ele disse,
aí não é lugar para yildivanos. Olhei-o nos olhos, e pareciam reco-
bertos por uma película, como se Shivaru usasse uma máscara de
vidro, que nos separava. Para falar a verdade, minha pele arrepiou.
Eu estava desarmado — todos estávamos, exceto Manuel; vocês
conhecem os novos-mexicanos — e temi precipitar as coisas se
tentasse apanhar minha arma. Inclusive, falei em Ulash ao dizer a
Tom Bullis que assumisse meu posto e a Manuel que viesse comigo
até a colina. Se os autóctones pensavam que queríamos fazer-lhes
mal, não seria conveniente falarmos numa língua que desconhe-
ciam. Não falamos palavra até sairmos da poeira, da balbúrdia, e
chegarmos ao velho lugar junto ao penedo, que, hoje, não estava
nada caloroso. Nada estava.
“Dou-lhes as boas-vindas”, disse aos yildivanos, “e convido-
os a jantar e pernoitar conosco”. É a fórmula educada com que se
recebem os visitantes. Não ouvi a mesma resposta de costume.
Tulitur, que carregava uma lança, ergueu-a, e perguntou — não de
modo grosseiro, apenas com o timbre algo trêmulo — “o que vocês
vieram fazer em Ulash?” Gaguejei: “Por quê? Você sabe. Viemos
comerciar”. “Não, espere, Tulitur...” Shivaru interrompeu-o. “Sua
pergunta é vaga”. Ele voltou-se para mim: “Vocês foram enviados?
“ E o que eu gostaria de perguntar a vocês, algum dia, cidadãos, é
se faz algum sentido dizer que determinada voz saiu “preta”? Não
me ocorreu nenhuma maneira de contornar as coisas.
“Algo dera errado, e eu não fazia a menor idéia do que teria
sido Uma mentira, um pretexto? Provável, a priori, que viessem
tornar as coisas piores que a verdade. Vi a luz do sol brilhar ao
longo da lâmina escura do machado, senti-me diabolicamente bem
por ter Manuel ao meu lado. Mesmo assim, o ruído do acampa-

132
mento já era débil, distante. Ou era o vento que sibilava mais alto?
Fiz com que olhasse para mim novamente. Disse: “Você sabe que
estamos aqui em nome de outras pessoas de meu planeta, iguais
a mim”. Debaixo dos pêlos de Shivaru, os músculos enrijeceram
ainda mais. E também... bem, eu não sei ler as expressões não-
humanas muito bem, mas os lábios de Fereghir estavam retesados,
exibindo os dentes, como se confrontrasse um inimigo.
“Tulitur pousara a lança, a seta para baixo. Segundo os rela-
tórios de Brander, um yildivano jamais faria isso diante de um ami-
go. E Shivaru, então, foi o mais difícil de entender. Eu poderia jurar
que ele estava magoado. Ele perguntou: “Foi Deus quem o man-
dou?” Aquilo veio culminar toda a loucura. Cheguei a rir, embora
não estivesse achando nada engraçado. Minha cabeça fazia clique,
clique, clique. Consegui identificar uma questão de semântica. O
Ulash estabelece certas distinções claras entre diversos tipos de
imperativo. A ordem de um pai para o filho pequeno é inteiramente
diferente — tanto em palavra como em conceito — de uma ordem
dada a um yildivano derrotado em combate; e esta, por sua vez, é
diferente de uma ordem dada a um lugal, e assim por diante, numa
gama muito ampla que nossos psicolingüistas ainda não consegui-
ram mensurar.
“Shivaru desejava saber se eu era escravo de Deus. Bem, a
hora não estava para explicações sobre a história da religião, e, de
qualquer modo, quem era eu para explicá-la? Apenas respondi que
não, que não era; que Deus era um ser em Cuja existência alguns
de nós acreditávamos, mas nem todos, e, com certeza, não me dera
qualquer ordem direta. Aquilo os abalou. A respiração de Shivaru
sibilou por entre as presas; o penacho eriçou-se, a cauda chico-
teou as pernas. Ele quase gritou: “Então, quem o enviou? “, o que
traduzi por “Quem é seu proprietário? “ Por todo o lado do corpo,
ouvi um roçagar, Manuel soltou a arma no coldre. Atrás dos três
yildivanos, os lugais firmaram machados e lanças a postos. Escolhi
as palavras, vocês imaginam por que, não? “Estamos aqui por livre
vontade, como parte de uma associação”. A palavra que usei talvez
significasse “comunhão de interesses”, mas eu não estava também
para explicações sobre economia. “Em nosso país natal, não somos
lugais. Vocês viram nossos apetrechos, eles trabalham para nós.
Não temos necessidade de lugalidão.
“Ahhh”, Fereghir suspirou, e ergueu a lança. A arma de Ma-
nuel soltou-se, num estrépito. “É melhor vocês irem embora”, ele
disse, “antes que haja luta. Não queremos matá-los.”
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“Brander gostava de exibir armas, para conquistar posições,
e nós tivemos de fazê-lo também. Ninguém se mexeu, durante um
certo tempo que durou, eterno, ao vento de Fimbul. Nos lugais,
o cabelo estava em pé. Estavam prontos para, a uma só palavra,
precipitar-se e morrer. Mas isto não estava tão próximo assim. Os
três yildivanos, por fim, trocaram olhares. Numa voz inanimada,
Shivaru falou: “Vamos considerar as coisas”. Deram meia-volta, e
partiram, atravessaram a relva extensa, sibilante, com as sacolas
grudadas às costas.
“Os tambores tocaram, dias, noites.
“Nós, de nosso lado, consideramos as coisas em profundida-
de. O que acontecera, afinal? Os yildivanos eram primitivos, nada
sofisticados segundo os padrões da Comunidade, mas não eram
bobos. Shivaru não se surpreendera com as diferenças entre nos-
sos povos. Por exemplo, o fato de vivermos em comunidades, e não
em famílias isoladas, fora apenas uma nova singularidade entre
nós, intrigante mas não chocante. E, como já lhes disse, mesmo
que a cooperação em larga escala fosse incomum entre os yildiva-
nos, eles a praticavam de vez em quando.
“Portanto, o que havia de errado em agirmos desta maneira?
Igor Yuschenkoff, o capitão da Míriam, fez uma ponderação ra-
zoável: “Se eles pensam que somos escravos, nossos patrões, então
devem ser ainda muito mais poderosos. Será que pensam que es-
tamos preparando uma base para invasão? “ Respondi: “Mas eu já
disse a eles, taxativamente, que não somos escravos. Igor estendeu
o dedo ao longo do nariz. “Sem dúvida... mas, será que acreditaram
em você?”
“Bem, passei a noite, vocês devem imaginar, de um lado para
o outro na barraca. Deveríamos levantar acampamento, procurar
uma nova área e começar tudo de novo? Seria o mesmo que arran-
car dali quase tudo o que fizéramos. E o problema, menor de todos,
seria o de termos que aprender uma língua inteiramente nova. Por
outro lado, mudar não resolveria as coisas necessariamente, pois
as expedições dos espaço-rápidos revelaram, com insistência, que
o padrão de vida básico era o mesmo em todas as regiões de Caim,
como ocorreu, na Terra, na era paleolítica. Assim, talvez tivésse-
mos incorrido nalgum erro fundamental, e não apenas numa ques-
tão de tabu local.
“Eu não sabia o que fazer. E duvido que Manuel tenha dormi-
do mais de duas horas por noite. Andou muito ocupado reforçando
o esquema de segurança, treinando os homens, rondando a vizi-

134
nhança, mantendo-os alerta.
“Nosso contato seguinte, entretanto, foi pacífico, ao menos
na superfície. Numa bela alvorada, uma sentinela me veio acordar,
disse que havia um punhado de nativos lá fora. A noite anterior
fora de neblina, que viera transformar o mundo numa fumaça cin-
zenta e úmida, que nos impedia de enxergar além de três metros.
Quando saí, ouvi o pingo de um trator estacionado nas imediações,
o único som nítido em todo aquele abafamento. Tulitur, e um outro
yildivano, encontravam-se no limiar do acampamento; atrás deles,
uns cinqüenta lugais. A água reluzia-lhes nos pêlos, as armas es-
tavam cobertas de geada. Manuel disse: “Devem ter viajado à noi-
te, Capitão, para garantir a cobertura. Com certeza, outros devem
estar por aí, fora de nossa vista”. Juntos, lideramos um esquadrão
de homens.
“Dei as boas-vindas aos yildivanos, em obediência ao ritu-
al, como se nada houvesse acontecido. Mas não recebi qualquer
ritual de volta. Tulitur disse, apenas: “Viemos negociar. Por suas
mercadorias, daremos as peles e as plantas que desejam”. Aquilo
era uma certa precipitação, pois nosso posto encontrava-se ape-
nas parcialmente construído. Mas eu não poderia recusá-la, já que
poderia transformar-se num ramo de oliveira. Então, disse: “Muito
bem. Venham, vamos comer enquanto conversamos”. Movimento
esperto, pensei. Aceitar o alimento de alguém, em Ulash, gera o
mesmo tipo de obrigação que na Terra. Tulitur e o companheiro —
Bokzahan, agora me lembro do nome — não agradeceram. Mesmo
assim, entraram na nave, sentaram-se à mesa desarrumada. Cal-
culei que aquele ambiente seria mais cerimonioso, que impressio-
naria mais que se fôssemos para uma barraca. E, por outro lado,
não estaríamos expostos ao frio cortante, brutal. Pedi algo na linha
de ovos com bacon, de que, sabíamos, os caimitas gostavam.
“Eles foram direto ao assunto: “Quanto vocês têm para trocar
conosco?” Para igualar-lhes o lacônico, eu disse: “Isto depende de
o que você quer, e o que você tem para dar em troca”. Bokzahan
disse: “Não trouxemos nada conosco, pois não sabíamos se vocês
fariam negócio”. “E por que não faríamos? “, perguntei. “Foi para
isso que vim. Entre nós não há discórdia. Ou há? “ Fuzilei-o com
a pergunta. Aqueles olhos verdes, gelados, nem piscaram. Tulitur
respondeu: “Não, não há. E de nossa parte, queremos comprar ar-
mas”. “Isto não podemos vender”, informei, sem acrescentar, jul-
guei melhor, que nossa política nos permitiria fazê-lo caso tivés-
semos um nível razoável de certeza de que a venda não resultaria
135
em nenhum malefício para nós. “Mas temos facas para trocar, e
também muitas ferramentas úteis.”
“Ficaram um pouco zangados, mas não discutiram. Lança-
ram-se ao trabalho, de imediato, e puseram-se a debater os termos.
Queriam de tudo que tínhamos e, quanto ao preço, não barga-
nharam muito. Queriam apenas crédito. Precisavam das coisas já,
disseram, mas levariam algum tempo para reunir as mercadorias
para a paga.
“A proposta, é óbvio, deixou-me em apuros. Por um lado, os
yildivanos sempre haviam agido com muita honra, e, pelo que pude
verificar, sempre falaram a verdade. E eu não desejava antagonizá-
los. Por outro lado... bem, este vocês o preencham como quiserem.
Gabo-me de ter dado a eles uma resposta diplomática. Não que
duvidássemos, por um instante sequer, das boas intenções deles,
eu disse. Sabia que os yildivanos eram boa gente. Mas, acidentes
acontecem, e, caso acontecessem, nos desfalcaríamos de uma im-
portância razoavelmente galática.
“Tulitur deu um tapa na mesa, bufou: “Já contávamos com
tais receios. Muito bem, deixaremos nossos lugais com vocês até
completarmos o pagamento. Eles têm grande valor. Mas, neste
caso, vocês devem levar as mercadorias para o local onde as qui-
sermos”. Decidi que, nestes termos, deixá-los-ia levar metade da
quantidade acertada entre nós, imediatamente.
Per silenciou, mordeu o lábio. Harry inclinou-se, acariciou-
lhe a mão. Van Rijn berrou:
- Ja! Puxa, ninguém pode antever tudo o que vai dar errado.
Podemos apenas ter certeza de que haverá algo de errado, por me-
nor que seja. Você agiu bem, rapaz... Abdul, mais bebida, ou você
está pensando que estamos em Marte?
Per suspirou. Prosseguiu:
— Colocamos a mercadoria no trenó. A titulo de precaução,
Manuel acompanhou-a num espaço-rápido armado. Nada acon-
teceu, porém. A uns cinqüenta quilômetros, mais ou menos, do
acampamento, os yildivanos disseram a nossos homens que de-
sembarcassem junto a um rio. Havia canoas ancoradas na margem
e, junto a elas, uns tantos yildivanos mais. Estava claro, eles de-
sejavam transportar a mercadoria, por rio, para mais adiante, por
conta própria. Manuel chamou-me, para saber se eu tinha alguma
objeção. Eu disse: “Não. Não faz diferença! Desejam manter a des-
tinação em segredo. Não confiam mais em nós”. Atrás dele, na tela,
vi Bokzahan. Ele observava.

136
“Os nossos comunicadores sempre haviam fascinado nossos
visitantes. Desta vez, porém, seria verdade o que eu via? Um sor-
riso zombeteiro no rosto de Bokzahan? Andei ocupado arranjando
acomodações, rações para os lugais. E um guarda ou dois, nada
indiscreto. Não que eu esperasse confusão, pois ouvira seus pa-
trões dizerem: “Fiquem aqui, e façam o que mandar os erziran até
voltarmos para apanhá-los”. Era meio constrangedora, no entanto,
a presença daqueles seres caninos no acampamento. Eles se ins-
talaram, à sua maneira animal. Naquela noite, quando recomeça-
ram os tambores, ficaram irrequietos, andaram de um lado a outro
no pavilhão que destináramos a eles, e vagiram numa língua não
gravada por Brander. Na manhã seguinte, porém, estavam bem
mansos, e um deles até perguntou se poderia ajudar no trabalho.
Ri, só de pensar num lugal diante de um painel de controle de um
trator de quinhentos quilowatts, e disse não, agradeci, que eles
apenas passassem o tempo, que nos observassem. Para mandriar,
eram excelentes.
“Por algumas vezes, nos três dias que se seguiram, tentei
puxar conversa, sem nenhum resultado, e embora não nos respon-
dessem no estilo deferente que usavam para com os yildivanos, não
eram insolentes. Mas o que falavam não fazia sentido. Eu pergun-
tava: “Onde você vive?”, e o escravo respondia: “Na floresta, bem
longe”, olhando para os dedos, “E que tipo de tarefas vocês têm
que cumprir? “ — “As que meus yildivanos estabelecerem”. Desisti.
Mesmo assim, não eram bobos. Jogavam um tipo de jogo que en-
volvia figuras desenhadas na terra; não consegui desvendá-lo. Em
todo pôr-do-sol, formavam fileiras e cantarolavam, um canto es-
tranho, em tom menor; e os improvisos muitas vezes fizeram arre-
piar meus nervos. Na maior parte do tempo, dormiam, ou ficavam
sentados a olhar coisa alguma; uma ou outra vez, porém, muitos
acocoravam-se em círculo, com as mãos nos ombros uns dos ou-
tros, e segredavam.
“Bem ... para encurtar a estória, fomos atacados pouco antes
da alvorada do quarto dia. Vim a saber, depois, que a tropa contava
com uns cem machos yildivanos, e só Deus sabe quantos lugais.
Vinham de todo lado. Encontraram-se naquele extraordinário ter-
ritório chamado Ulash, exortados pelos tambores e, provavelmente,
pelos mensageiros que não paravam de correr, dia e noite, pelas flo-
restas. Sabiam, os guias, onde estavam nossos piquetes e, assim,
crivaram os locais com saraivadas de flechas enquanto o grosso da
tropa atravessou pelo meio, correndo. No mais, não tenho muito a
137
dizer. Meu caso foi um acidente ...
A expressão de Per contorceu-se.
— Que coisa mais imbecil que me foi acontecer! Logo no meu
primeiro posto de comando!
Harry insistiu:
— Prossiga. Você ainda não contou os detalhes.
Per encolheu os ombros.
— Não há muitos. Acordei com os primeiros gritos, os pri-
meiros rugidos. Coloquei o blusão, enfiei os pés nas botas e, com a
mão livre, abotoei o cinturão. Àquela altura, as sirenas já esgani-
çavam bem alto, mas, mesmo assim, ouvi o chiado de um raio que
passou junto à minha barraca. Aos tropeços, saí para o cercado.
Tudo era uma só chaleira negra, em ebulição, do inferno. Os lança-
raios zuniam, zumbiam, as sirenas ululavam, e as vozes gritavam
guerra. O frio me cortava. A luz das estrelas refletia nos montes de
neve, e a geada, nas colinas. Ainda, por um instante, pensei em
quantas estrelas estavam a brilhar ali fora, tanto, sem uma única
imprecação.
“E foi então que Yuschenkoff acendeu os refletores na torre
da Míriam. De repente, um sol artificial ali estava, sobre nossas
cabeças, brilhante demais para ser contemplado. O que teriam
pensado os caimitas? Uma incandescência branco-azulada, talvez?
Por entre nossas barraças e máquinas, eles pululavam, caçadores
altos, com peles de leopardo, gnomos marrons, acocorados, nas
mãos machados, clavas, lanças, arcos, bodoques, e nossas pró-
prias adagas. Vi apenas um homem, estatelado no chão, com a
arma ainda entre os dedos, a cabeça rachada de pânico. Levei o
microfone de comando à boca — sempre o usara no pulso, por
questão de doutrina — e despejei ordens. Ao mesmo tempo, arre-
meti na direção da nave, pois podíamos contar com o átomo a nos-
so favor, embora fôssemos apenas vinte, não, dezenove ou menos,
contra Ulash. Nossos dispositivos estavam programados para ação
defensiva. Dois homens dormiam na nave, e os outros, em barra-
cas à volta dela. Os seis que se encontravam de vigia haviam sido
dizimados, mas o resto encontrava-se na nave, à espera de uma
retirada inexpugnável.
“O que deveríamos fazer, entretanto, era correr em socorro
daqueles guardas, e rápido. Se já não fosse muito tarde. Vi os ra-
pazes emergir das posições fortificadas pendurados nas cordas de
desembarque. Até hoje me lembro que Zerkowsky se esquecera de
amarrar o forro. Parecia uma comédia pastelão, aquelas fraldas

138
batendo contra o traseiro dele. A gente repara em cada detalhe,
nessas horas! Os caimitas estavam às tontas, ofuscados pela luz.
Não esperavam por isso, nem pela sirena. Que coisa terrível para
se ouvir de perto! Muitos deles já estavam esparramados, mortos
ou moribundos. E então... se bem que, para mim, tudo não passou
de um vagalhão de gritos, ganidos e garras, que me atropelou por
trás.
“Eu caí, debaixo de muitas pernas, que me pisaram o corpo
todo e me deixaram nas mãos de um lugal. Ele se sentou no meu
peito e, com dentes e mãos, avançou na minha garganta. Por Ju-
das, era uma criatura muito forte. Ele fechava sobre mim, centí-
metro por centímetro, contra todo meu esforço de empurrá-lo, de
arrancar-lhe os olhos. De repente, mais um deles entrou em cena.
Com uma clava, que deve ter apanhado de algum caimita morto,
bateu em mim, no local mais à mão que encontrou, que, por acaso,
era minha canela esquerda. Daí por diante, até surgir a bendita
escuridão, tudo foi dor e ódio.
“O que ocorreu, na verdade, foi que nossos reféns lugais sub-
jugaram os guardas e se soltaram. Mesmo sem ter recebido ordens
específicas, não permaneceriam imóveis vendo seus patrões em
luta. É evidente, porém, que receberam ordens antecipadas. Tuli-
tur e Bokzahan enganaram-nos direitinho. Primeiro, conseguiram,
de graça, uma ótima consignação de nossas mercadorias de troca,
e, segundo, plantaram reforços bem dentro de nossa própria cerca.
Mesmo assim, o esquema não funcionou. Os yildivanos não ha-
viam, de fato, compreendido nossa força. Como iriam compreendê-
la?
“O próprio Manuel derrubou os dois lugais que estavam em
vias de me matar, para o que precisou de apenas dois tiros. Nos-
sos rapazes dispararam uma rajada de fogo, e o inimigo derreteu-
se. Mas nossas baixas foram muitas. Quando voltei a mim, estava
na enfermaria da Miriam. Manuel estava debruçado sobre mim,
espreitanto; parecia um corvo. Acho que perguntei... “Como nos
saímos?” Ele disse: “O señor deve descansar, e Deus me perdoe...
Pedi ao médico que lhe desse uma pílula para acordá-lo, pois preci-
samos imediatamente de uma decisão sua. Temos muitos homens
feridos. Dois estão mortos. Três desaparecidos. O inimigo voltou
para a selva, creio que com prisioneiros”. Ele me ergueu, colocou
numa cadeira de rodas, levou-me lá fora. Eu não sentia dor física,
mas sentia a cabeça leve, e meio maluco. Vocês sabem como a
gente fica quando nos entopem com estimulol. Manuel foi direto,
139
disse-me que meu osso da perna estava bastante pulverizado, mas,
na hora, parece que não liguei muito... Isto é, “parece” não. Não
liguei mesmo! Afinal, Gower e Muramoto haviam morrido, e Bullis,
Cheng e Zerkowsky estavam desaparecidos.
“Sob o sol alaranjado, o acampamento apresentava uma
quietude nada natural. Enquanto estive inconsciente, meus ho-
mens haviam vistoriado as redondezas. Em filas, dispuseram os
cadáveres dos inimigos. Vinte e três yildivanos — este número me
vai perseguir pelo resto da vida! — e não sei ao certo quantos lu-
gais, talvez uns cem. Pedi que Manuel me empurrasse para que eu
olhasse aqueles rostos sangrentos, imóveis, um depois do outro.
Mas não reconheci ninguém. Os prisioneiros que fizemos, os em-
pacotamos na escavação que nos servia de porão principal. Uns
duzentos lugais, mas só dois yildivanos, feridos. Os outros feridos
haviam sido levados pela própria gente, o que não fora muito difícil
de fazer, com tanta construção, tantas máquinas a oferecer cober-
tura. O ataque dos reféns, Manuel explicara, fora interceptado com
pistolas de estontear. É uma das melhores armas, pois uma sim-
ples ameaça de morte não basta para fazer com que um lugal pare
de lutar por seu patrão. Num dos cantos do buraco, os yildivanos
fuzilavam olhares para os guardas armados lá em cima. Um deles
eu não conhecia. Apresentava uma queimadura feia, provocada por
um raio. Nossos médicos, depois de fazer-lhe um curativo, haviam-
no sedado, e, portanto, ele se encontrava meio fora de esquadro.
O outro, porém, eu reconheci. Estava ileso, fora apanhado por um
raio de estontear. Era Kochilir, um filho adulto de Shivaru que,
como o pai, visitara-nos uma ou duas vezes. Nós nos entreolhamos
por algum tempo, ele e eu. Por fim, perguntei: “Por quê? Por que
vocês fizeram isso? “.
“Porque são traidores, assassinos e ladrões por natureza, eis
porquê”, disse Yuschenkoff, também em Ulash. A equipe de Brander
tivera, naturalmente, o cuidado de descobrir se existiam palavras
correspondentes aos conceitos de honra e ao oposto. Não creio que
a Liga jamais se esqueça da semântica darboriana! Yuschenkoff
cuspiu em Kochihir: “Agora vamos perseguir sua raça como os ver-
dadeiros animais que são”. Gower era cunhado de Yuschenkoff.
“Nada disso”, tratei dizer, em Ulash, pois o rugido que se er-
gueu entre os lugais foi tamanho que algo insano poderia ter ocor-
rido. “Não fale mais desta maneira! “ Yuschenkoff calou-se, e uma
espécie de rumorejo percorreu aqueles corpos apinhados, peludos,
como o vento que fenece no oceano. Eu disse: “Mas, Kochilir, seu

140
pai era um bom amigo meu. Pelo menos, eu pensava que fosse. De
que modo ofendemos a ele e a seu povo? “.
“Kochihir eriçou o penacho, a cauda foi chicotear-lhe os tor-
nozelos. Rosnou: “Vocês devem partir, e jamais regressar. Se não,
vamos pilhá-los nas florestas, emboscá-los nas encostas, estourar
as feras cornígeras por seus acampamentos, envenenar os poços, e
queimar a relva onde quer que pisem. Vão, e não ousem regressar”.
Minha própria paciência já se esgotava... minha cabeça rodopiava,
latejava, como se eu estivesse febril. Eu disse: “Nós não sairemos
daqui se nossos amigos prisioneiros não nos forem devolvidos. Eu
tenho tambores aqui no acampamento, dados por seu pai, antes de
nos ter traído. Use-os para chamar seu povo, Kochilir, e diga que
tragam nosso povo de volta. Depois, talvez, possamos conversar.
Mas antes, não!” Sem responder, ele escarneceu. Fiz sinal para
Manuel. “Não faz sentido ficarmos aqui parados, sem necessidade.
Vamos organizar uma defesa cerrada aqui, não seremos apanha-
dos de surpresa duas vezes. E temos que ir salvar nossos homens.
Envie espaço-rápidos para procurá-los. A comitiva de guerra não
deve estar muito longe”. É melhor que você mesmo conte sobre
nossa discussão, Manuel. Você disse que enviar espaço-rápidos
era desperdiçar uma energia muito necessária em outros locais,
não foi?
O novo-mexicano pareceu encabulado.
— Não era meu desejo contradizer meu Capitão. . .
Aqueles dedos estranhos, de tão delicados, enroscavam-se
uns nos outros, sobre o colo. Manuel contemplava a noite que ca-
íra, lá fora.
— Mas, na verdade, julguei que as expedições aéreas não
iriam encontrar viv’alma por muitos e muitos hectares de colinas,
ravinas, água e floresta. Talvez já se tivessem dispersado, aqueles
demônios. E se estivessem juntos, não estariam tão aglomerados a
ponto de ser percebidos, através das copas das árvores, por nossos
detectores infravermelhos. Mesmo assim, não gostei de contradizer
meu Capitão.
— Ora, mas você contradisse.
O canto da boca de Per se retorceu.
— Eu estava meio louco na ocasião. Gritei, descarreguei em
você, não foi? Disse que não contestasse, que obedecesse às ordens
e enviasse os espaço-rápidos. Você fez continência e afastou-se,
e eu o chamei de volta. Que não fosse pessoalmente, era muito
valioso no acampamento. Isso mesmo, isto significa que eu estava
141
retendo o único homem cuja experiência da selva permitir-lhe-ia
identificar rastros, mesmo lá de cima. Mas meu cérebro parecia
rodopiar, afundar nas paredes de um turbilhão, e eu disse: “Veja
se consegue a cooperação desse bastardo peludo!”.
Com delicadeza, Manuel confessou:
— Para mim, foi um tanto doloroso ver meu Capitão apontar
para aquele que o havia torturado. Embora, de tempos em tem-
pos, em diversos planetas, sempre que houve muita necessidade...
Bem, não importa.
— Eu tinha idéia de como quebrar o moral entre nossos pri-
sioneiros. Fazendo um retrospecto, a cooperação deles teria sido
indiferente, mesmo se tivessem tocado os tambores, conforme pe-
díramos. Os caimitas não possuem a mesma solidariedade de gru-
po que nós. Se Kochilir e o amigo caíram em nossas mãos, tanto
pior para eles. Mas Shivaru e os seus conheciam-nos a psicologia
com astúcia suficiente para saber que o fato de terem aprisionado
três dos nossos causava grande influência sobre nós. Olhei para
Kochilir, ali embaixo; dentes reluziram. Ele não perdera uma só
sílaba, um só gesto, e, mesmo que não soubesse nada de Ânglico,
deve ter compreendido muito bem o que se passava. Agora, porém,
como um bêbedo, eu mascava as palavras, e as escolhia, também
como um bêbedo, com extremo cuidado. “Kochihir, mandei nos-
sos espaço-rápidos atrás de seu povo, para apanhar os nossos que
vocês capturaram. Os yildivanos não conseguirão derrotar nossa
máquina voadora, e nem lutar contra os raios que as armas lança-
rão do alto. Não conseguirão esconder-se de olhos que vêem de um
extremo ao outro do horizonte. Seu povo pagará caro se não devol-
ver nossos homens por bem. Toque os tambores, Kochilir, e diga
isso a eles. Se não, você vai pagar caro. Dei ordens para que meus
homens façam o que for necessário para dobrá-lo”. Foi um discur-
so muito perverso, não? Mas Gwer e Muramoto haviam sido meus
amigos, e Bullis, Cheng e Zerkowsky ainda o eram, se estivessem
vivos. Além disso, eu estava prestes a desmaiar, o que aconteceu
a caminho da nave. Ouvi o Doutor Leblanc resmungar algo a res-
peito de como seria possível tratar de um paciente cujo sistema já
fora maltratado com tantas drogas, que dariam para endoidar um
camelo, e, depois, as palavras, parece, dispersaram-se num gar-
rular infindável, que continuava, continuava, subia e descia, até
que pensei que me tivesse transformado num eléctron,e que me
encontrava preso num osciloscópio... e a escuridão ficou verde e...
disseram-me que estive inconsciente por cinqüenta horas. Daí por

142
diante, a estória é de Manuel.

A esta altura, Per parecia grasnar. Ao afundar no sofá, vi


que estava bastante lívido. Uma das mãos mexeu no cobertor, e o
vermute derramou, ao erguer o copo. Harry o observava, com uma
raiva impotente, latente, de Van Rijn.
— Pronto, pronto — interveio o mercador. — Assim que for
operado, peço a ele que nos dê uma palestra. Que tal? Já está qua-
se na hora do jantar, e não há remédio melhor que um verdadeiro
rijstaffel. Logo ele estará andando, irá à minha casa em Jacarta
para uma bela orgia, ao estilo antigo.
Per explodiu, num sussurro:
— Pelo fogo do inferno! Por que vocês tentam fazer com que
eu me sinta bem? Eu estraguei o espetáculo!
— O que é isso, filho — aventurei-me a dizer. — Você estava
de tão bom humor há meia hora; e daqui a meia hora já estará no-
vamente. Reviver os maus momentos é um castigo muito violento,
mais que o que o próprio Jeová seria capaz de infligir. Eu já passei
por isso também.
Ofuscado, aquele olhar triste procurou o meu.
— Escute, Per — eu disse — se o Cidadão Van Rijn pensasse
mesmo que o fracasso da missão fora culpa exclusivamente sua,
você não estaria aqui hoje sorvendo a bebida dele. Você estaria
vendendo carne para os canibais.
O fantasma de um sorriso irônico veio gratificar-me.
Van Rijn falou:
— Bem, Dom Manuel, agora ouçamos o que você tem para
contar, nie?
Cortês, acadêmico, sem, porém, a mínima humildade, o no-
vo-mexicano respondeu:
— Por favor, señor, eu não sou Dom. Meu pai foi um caçador
em Sierra de los Bosques Secos, e eu, como mercenário, viajei pelo
espaço com os Piratas de Rogers, onde me tornei sargento antes de
vir trabalhar para o senhor. Nada mais que isso.
Manuel hesitou.
— E quanto aos acontecimentos em Caim, também não há
muito que possa contar.
— Deixe de bobagem!
Van Rijn terminava o terceiro ou quarto litro de cerveja desde
que cheguei; e com um sinal, pediu mais. A minha taça também
andara cheia, tanto que as estrelas, e as luzes da cidade, come-
143
çavam a dançar na escuridão lá de fora. Soquei o cachimbo para
ajudar-me a relaxar.
Van Rijn prosseguiu.
— Eu li os relatórios oficiais da expedição. São a escória do
tédio. Eu preciso de detalhes, daquelas coisinhas que ninguém ja-
mais pensa em registrar, e que Per descreveu com todo seu conhe-
cimento de Lawrence. Preciso construir um planeta real para mim,
antes que meu próprio cozinheiro, esse velho rachado, descubra o
padrão. Pois, por minha experiência nos tantos planetas em que
eu, eu mesmo, Nicholas van Rijn, tive que esfregar meu nariz no
chão — e, caramba, ele precisa de muito chão — é que estabele-
ci meus padrões. As evoluções têm paralelas, e oblíquas também,
como alguém já disse hoje, nesta sala. Quais são as paralelas da
evolução de Caim? Fale, Alferes Gomez y Palomares. Conte van-
tagens. Conte piadas, cante, equilibre uma cadeira na cabeça, se
quiser, mas... fale!
Por um minuto, o homem moreno permaneceu sentado.
Mantinha os olhos fixos em nós, exceto nos momentos em que os
lançava na direção de Per, e voltavam. Começou. Durante toda a
narração, manteve um tom uniforme; o sotaque, entretanto, não
conseguia evitar que cantasse.
— Quando levaram meu Capitão, fiquei pensativo até ouvir
Igor Yuschenkoff dizer: “Bem quem irá com os espaço-rápidos?” Eu
respondi: “Ninguém”, e ele disse: “Mas recebemos ordens”. Respon-
di que o Capitão estava ferido, perturbado. Não deveríamos tê-lo
despertado. E perguntei aos que estavam próximos: “Vocês não
acham?”. Depois de uma ligeira discussão, concordaram. Inclinei-
me sobre o buraco e perguntei a Kochihir se iria tocar os tambores
para nós. Ele disse: “Não, não importa o que façam!”. Eu disse: “Não
vamos fazer nada por enquanto. Por ora, vamos apenas alimentá-
los”. O que foi feito. Pelo resto do dia, tão curto, perambulei entre
os remendos de neve na relva. Caramba, que terra árida, a que
mergulhava vale adentro e, depois, subia novamente até perder-se
de vista naqueles desfiladeiros dentados, violetas. Pensei na minha
casa, e numa certa Dolores que conhecera há muito tempo.
“Os homens não executavam nenhum trabalho; apenas
amontoavam-se sobre as armas, a dizer quase nada; a respiração,
com o anoitecer, começou a congelar em volta dos capuzes dos
forros. Um a um, conversei com eles, e os selecionei para as tare-
fas que tinha em mente. Eram todos bons com as mãos, embora
poucos já tivessem caçado, a não ser por esporte. Eu mesmo não

144
conseguiria seguir, por muito tempo, a trilha dos caimitas pois, ao
descer, haviam passado por uma larga extensão de rocha nua, e,
assim que chegaram à floresta, apagaram as pistas, Hamud ibn
Rashid e Jacques Ngolo, em sua época, entretanto, haviam sido
Ienhadores. Preparamos o necessário.
“Entrei na nave e olhei meu Capitão... quão imóvel estava! Fiz
uma refeição leve, tirei uma soneca. Quando voltei ao buraco, já
escurecera. Os quatro homens que ali montavam guarda pareciam
sombras profundas contra as estrelas que povoam o céu. “Podem
ir”, eu disse, e saquei meu lança-raios. Passos farfalharam, indo.
As formas que granulavam a escuridão do poço mexeram, balbu-
ciaram. Uma voz sibilou, para o alto: “Você voltou, Ohé, para me
atormentar?”. Os caimitas enxergavam na escuridão, com olhos de
coruja. Cheguei a pensar que devem ter zombado de nós ao nos
ver às cegas depois do pôr-do-sol. Eu respondi: “Não, vim render o
guarda, para vigiá-los”. Ele mofou: “Você sozinho?”. Bati o lança-
raios contra a coxa. “Eu e isto aqui”. O frio me corroía as entranhas.
Creio que os caimitas não o sentiam tanto assim. Lá no alto, as
estrelas rolavam, lentas, e eu comecei a perder as esperanças com
relação a meu plano. E não fossem os cochichos que percorriam os
prisioneiros, o som daquele mundo estaria inerte, congelado.
“Quando a coisa aconteceu, aconteceu com a pressa dos dia-
bos. Por uns momentos, os lugais andaram de um lado para outro,
como se irrequietos e, de repente, já estavam em cima de mim. Um
deles subiu no ombro de um outro e pulou. Para a morte, como
pensaram. Mas, errei o tiro, um fulgor rápido; nele, o arquejo sur-
preso por ainda estar vivo. Se eu não tivesse errado, teria matado
muitos antes que me derrubassem. Mas, da maneira como ocor-
reu, dois deles pularam em cima de mim. Abaixei-me, afastando
as mãos deles de minha garganta com um desengate judoca, em-
bora ainda me mantivessem agarrado. Punhos rijos acertavam-me
na cabeça, na barriga. Encobrindo minha boca, uma mão abafava
meus gritos. Enquanto isso, os prisioneiros, ajudando-se uns aos
outros, fugiram. Consegui, por fim, soltar uma perna, e dar uma
joelhada num deles, que caiu, rolando de dor, num rufo gutural
estrepitoso. Girei por cima do outro e acertei-o na parte inferior
do crânio com o cutelo da mão. Ele bambeou, eu dei um salto e
gritei. As sirenas e os refletores reviveram. Os homens pularam,
saindo da nave, das barracas. “Voltem”, gritei.”Não venham para
o escuro!” Muitos lugais ainda não haviam escapado, e assim que
nossa tropa chegou, voltaram, rosnando, para o outro extremo do
145
poço. Com os corpos, protegeram o yildivano ferido, contra nossa
artilharia; mas havíamos atirado, em vão, naqueles que haviam de-
saparecido de vista. Os guardas colocaram-se em volta do buraco.
Catei, pela terra, em busca de meu lança-raios, que desaparecera.
Alguém o apanhara. Se não foi Kochihir, talvez um lugal que, logo,
o entregaria a ele. Jacques Ngolo se aproximara, e, ao perceber o
que ocorrera, exclamou: “Isto é mau!”. Uma virada da sorte, admi-
to, mas tínhamos que prosseguir, de um jeito ou de outro.
“Levantei-me, tirei o macacão. Por baixo, o capacete e o torso
do uniforme espacial, que me haviam protegido durante a luta;
joguei-os no chão, pois, de agora em diante, iriam apenas atrapa-
lhar. Vesti novamente o macacão. Hamud ibn Rashid juntou-se a
nós. Trouxe minha fonte de alimentação, meus controles e um ou-
tro lança-raios. Apanhei-os e demos início à perseguição. Graças a
Deus, ainda não tivéramos oportunidade de testar nossas viseiras
noturnas neste local. Clareavam o mundo, embora imprimissem
nele um fulgor, como nos sonhos; o indicador infravermelho, de
Ngolo, era nossa bússola, cuja agulha tremia na direção da massa
de caimitas que subia a encosta adiante. Por um instante, pude-
mos vê-los. ao atravessar a encosta descampada, e entrar e sair
por entre os penedos arredondados. Nós permanecemos abaixados,
para que não nos pudessem ver contra o céu. Caminhando de ga-
tinhas, sentia a grama áspera em meu rosto; por botas e luvas, a
terra sugava calor. Nalgum lugar, o grito de uma fera em caça.
“Chegamos ofegantes à orla do arvoredo, mas teríamos que
prosseguir nas sombras antes que os caimitas se distanciassem
além do alcance da bússola, que já oscilava, tantos eram os tron-
cos, as moitas, a emitir radiação. Até ali, porém, o inimigo ainda
não parara para apagar as pegadas. Nos arbustos rasteiros, mo-
víamos com mais cuidado que os inimigos. Eu levava as pernas
à frente, separava os galhos, e, com as mãos, os afastava para os
lados do corpo — segundo o livro da vegetação esmagada e dos
galhos rachados. Uma hora depois, já estávamos no fundo do vale.
Árvores altas reluziam por toda a volta. O céu estava escuro, e
tive que ajustar a unidade fotomultiplicadora em minha viseira.
O livro estava no fim. Os caimitas moviam-se num passo natural,
confiantes de que haviam escapado, sem qualquer esforço especial
para deixar pouco rastro. E já que estavam menos ansiosos, e mais
alertas, teríamos que segui-los bem atrás. A detecção infraverme-
lha, assim, já não tinha mais utilidade. Chegamos, por fim, a uma
ravina, e o capim amassado evidenciava que haviam parado ali

146
para uma pausa. E percebemos o que eu temia: a comitiva se havia
dividido em três ou quatro, e cada uma seguira por um caminho
diferente .”Por qual optamos? “, perguntou Ngolo. “Somos três, são
três trilhas”, eu disse. “Bismillah!”, rosnou Hamud. “Com lança-
raios, ou sem lança-raios, eu não faço muita questão de encontrar
essa turma sozinho. Mas, o que tiver que ser, será.”
“Tanto demoramos para analisar as pistas oferecidas pela flo-
resta que, antes mesmo de partirmos, o leste já estava cinzento. Os
lugais, definitivamente, haviam tomado o rumo da região de seus
patrões; os escravos de Kochihir, por sua vez, o acompanharam. E
era Kochihir que queríamos, e tudo levava a crer que sua comitiva
fosse a maior, pois o mais provável era que a primeira fuga tivesse
ocorrido sob suas ordens diretas, com seus próprios lugais, cujas
capacidades conhecia. Esta trilha, escolhi para mim, pessoalmen-
te. Hamud e Ngolo também a queriam, mas usei minha graduação
para conceder-me a honra, pois não poderia dar àquele povo de
Novo México a chance de dizer que faltasse coragem a um Gomez.
“Já estávamos a uma distância muito grande deles, e não ha-
via motivo para não usarmos nossos rádios para falar uns com os
outros e com o pessoal no acampamento, o que era reconfortante,
tal o longo tempo que pesava sobre mim. Afinal, perseguir aqueles
caçadores astutos da mata, em sua própria terra, demorava, demo-
rava. E não creio que o conseguisse, fossem eles apenas yildivanos
e lugais tais usados regularmente para a caça. Fora fácil perceber,
entretanto, que o ataque fora reforçado com a convocação de ou-
tros lugais, dos campos, das minas, das tarefas domésticas, menos
aptos.
Mais tarde, naquela manhã, Ngolo chamou, e disse: “Meu
pessoal acaba de chegar a uma gruta, a uma série de abrigos na-
turais. Estou sentado numa árvore, e os vejo ser recebidos por
algumas fêmeas e alguns yildivanos crescidinhos. Eles se desven-
cilham e se dirigem para as próprias tocas. Creio que vivem aqui,
e aqui ficarão. Devo voltar à ravina e tomar outra trilha? “. “Não”,
eu disse, “já deve estar muito frio. Recue para um local em que não
possa ser visto, e mande um espaço-rápido ir apanhá-lo.” Horas
depois, o coração pulou em meu peito, pois deparei-me com uma
árvore chamuscada por disparos, inconfundíveis, de lança-raios.
Kochihir andara treinando. Chamei Hamud e perguntei onde es-
tava. “Na margem de um rio”, ele respondeu, “olhando o local por
onde atravessaram. Rio difícil de atravessar, esse!”
“Não prossiga”, eu disse. “Estou na trilha certa. Mande que o
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apanhem e levem para o acampamento.”
“O quê? Não vamos nos juntar a você agora? “
“Não, não sei ao certo quão próximo estou deles. Se estiver
muito próximo, poderão ver o espaço-rápido descer, e se colocar
alertas. Fique na escuta.”
“Confesso, foi uma ordem solitária, aquela. Parei algumas
vezes para comer e descansar. Com estimulantes, porém, seguia
caminho, de um tal modo que até mesmo a minha presa, que me
menosprezava, surpreender-se-ia. Ao anoitecer, o rastro pareceu
novamente tão fresquinho que moderei o passo e, com cautela dig-
na de uma cobra, prossegui. Ali embaixo, depois do pôr-do-sol, não
faz tanto frio quanto lá em cima; mesmo assim, as folhas deixavam
refletir a geada, atravessada pela luz das estrelas. Não era noite
alta ainda, e meu detector infravermelho começou a registrar uma
fonte muito forte, impossível de se originar em seres vivos. Sussur-
rei a notícia no rádio, e mandei que as comunicações fossem inter-
rompidas até nova ordem, pois, do contrário, nos escutariam.
“Deslizei à frente. A minha volta, a floresta farfalhava, rangia;
nalgum lugar distante, um animal pesado irrompia, ferido, em vôo
espavorido, as asas zuniam por sobre a cabeça. Mas, Santa Maria!,
ao mesmo tempo quanto silêncio, quanta solidão! Até que cheguei
à orla de uma pequena clareira, onde uma fogueira jorrava som-
bras na parede de uma choça imensa, de troncos, sem janelas, que
se aninhava, do outro lado, debaixo das árvores. Dois yildivanos
apoiavam-se nas lanças. Na chaminé, uma luz cintilava. Com toda
a suavidade, saquei minha pistola de estontear. O raio chispou
duas vezes, e, compassados, os dois caíram.
“Sem esperar, correndo, atravessei o descampado, agachei-
me à sombra, junto àquela parede áspera, e esperei. Ninguém me
ouvira; assim, deslizei até a porta, onde apenas uma cortina de
couro bloqueava-me a visão. Torci-a para o lado, o suficiente para
espiar lá dentro. Com a visão obnubilada pela fumaça, pude ver
que se tratava de um único aposento, comprido. Nada simples,
tal a beleza das peles penduradas, estendidas por todo o lugar.
Mais ou menos uns vinte yildivanos, na maioria machos adultos,
em círculo, acocoravam-se à volta de uma fogueira que, ardendo
num escavado, destacava-lhes as fisionomias chapadas, graves, na
escuridão. Arqueados, num canto, muitos lugais também; entre
eles reconheci Cherkez, e fiquei contente que tivesse sobrevivido
à batalha. Os lugais da comitiva de Kochihir devem ter sido man-
dados para os galpões. Kochihir, em pessoa, narrava a fuga ao pai

148
Shivaru.
“Mas ainda faltava muito para a felicidade, e prometi acender
muitas velas para os santos. Pois a situação estava como eu espe-
rara. Kochihir não fora para o próprio acampamento, mas, sim, vie-
ra para este local de encontro previamente combinado. Ali estavam
Zerkowsky, Cheng e Bullis, sentados num outro canto, do outro
lado do aposento, a tossir com a fumaça, com peles trespassadas
nos corpos a protegê-los contra o frio.
“Kochihir terminou a narração, olhou para o pai em busca de
aprovação. A cauda de Shivaru chicoteou, para frente, para trás:
“Estranho que se tenham preocupado tão pouco com vocês”. Ko-
chilir escarneceu. “Ora, eles não passam de filhotes cegos!” O ve-
lho yildivano murmurou: “Não estou tão certo assim. Grande é o
poder que possuem. E... bem sabemos o que fizemos no passado”.
Então, de repente, Shivaru enrijeceu, e o sussuro veio como uma
faca: “Será que fizeram mesmo? Conte-me, mais uma vez, Kochihir,
como foi que o patrão deu uma ordem e os outros fizeram outra coi-
sa?”. Outro yildivano, grisalho, com uma cicatriz, interveio: “Ora,
ora, isto não quer dizer nada. O que temos que planejar agora é
uma utilidade para nossos prisioneiros. Você acha que eles talvez
troquem nossos lugais e gumushes que, segundo Kochihir, eles
ainda mantêm presos, por três de sua gente. Mas, por que fariam
isso, pergunto? Em vez disso, por que não deixamos os corpos num
local em que os erziran possam encontrá-los, numa tal condição
que sirva para afastá-los. Bokzahan, que eu podia ver agora, na
penumbra, interveio. “Isso mesmo. Tulitur e eu provamos que eles
são uns fracos, uns bobos.” Shivaru o conteve: “Vamos, primeiro,
tentar barganhar. Se não der certo...”. As presas de Shirvaru reful-
giram à luz da fogueira. Kochihir estava zangado. “Use um deles
como exemplo, antes de conversarmos. Eles ameaçaram fazer o
mesmo comigo.”
“Um rugido os percorreu, como se estivessem dentro da jau-
la de uma fera, no zoológico. Aterrorizado, pensei no que poderia
acontecer, pois, como meu Capitão já lhes disse, os yildivanos não
possuem autoridade uns sobre os outros. Quaisquer que sejam
seus desejos, Shivaru não pode impedi-los de fazer o que quei-
ram. Eu tinha que decidir, imediatamente, que rumo tomar. Os
raios não poderiam destrui-los em tempo hábil que os impedisse
de atirar as armas, que tinham à mão, contra mim, a menos que
eu regulasse a arma para um ângulo aberto, o que mataria nossos
próprios homens. A pistola de estontear seria melhor, mas, mesmo
149
assim, não os conseguiria derrotar antes que aqueles machados e
clavas me derrubassem.
“Ali permanecendo, naquele lado, poderia mantê-los encur-
ralados lá dentro, mas Bullis, Cheng e Zerkowsky continuariam
como reféns.
“O que eu fiz, então, foi, sem dúvida, uma estupidez, pois
não sou meu Capitão. Esgueirei-me de volta até a orla da floresta
e convoquei o pessoal do acampamento.” “Venham o mais rápido
que puderem!” E deixei o rádio aberto, para que se orientassem.
Dei uma volta pelo lugar, e descobri uma árvore envergada sobre a
choça. Subi e, por um galho, desci até o teto coberto de limo, por
onde cheguei à chaminé. Embora as viseiras me protegessem os
olhos, as narinas ressecavam com os vapores que dali jorravam.
Enchi os pulmões de ar puro e inclinei-me para espiar. Teria sido
melhor que tivessem ido dormir, pois poderia tê-los paralisado um
a um enquanto dormiam, sem risco. Mas ainda estavam senta-
dos a discutir o que fazer com os prisioneiros, pobres homens que
tentavam ser valentes diante daquele roncar medonho que os en-
volvia, diante daqueles olhos fendidos que se voltavam para eles,
com mãos acariciando facas. E eu, que ainda não terminara de
rezar o rosário, na minha mente, fui despertado pelo trovão. Qual
gaviões, nossos espaço-rápidos desceram pelos céus. Os yildivanos
roncaram, dois ou três deles dispararam porta afora a ver o que
acontecia. Consegui derrubá-los com a pistola; antes disso, porém,
um deles gritou “Os erziran estão aqui!” Olhei de volta pela chami-
né. Lá embaixo, um tumulto. Kochihir gritou, sacou o lança-raios.
Disparei... errei. Havia muitos corpos entre eu e ele, señores. Não
tenho como me desculpar.
“Abocanhei a arma, agarrei-me à borda da chaminé e tomei
impulso, balançando, estirando-me ao máximo, e soltei. Caí no chão
de terra, bem junto à fogueira, rolei, pulei, fiquei de pé. Cherkez
saltou na minha garganta, dei-lhe um chute na barriga, ele camba-
leou, apanhei minha arma e disparei à minha volta. Naquela mul-
tidão barafustada entre paredes, não se via Kochihir. Forcei passa-
gem até os prisioneiros, e o machado de Shivaru desceu, zunindo.
Graças a Deus, consegui esquivar-me, dei meia-volta e disparei; ele
ficou paralisado. Entre dois outros, debati-me. Um terceiro pulou
nas minhas costas. Dei-lhe uma cabeçada na boca, senti a carne
ceder; ele soltou. Com o braço com que segurava a arma, e com
a mão livre, empurrei um lugal para o lado e vi Kochihir. Ele fora
ter com os prisioneiros, acuados, impossibilitados de lutar, de tão

150
estupefatos. Ele me viu pelo canto do olho e girou. O lança-raios
estrondou, a chama cortou a escuridão. Eu me abaixara, apoian-
do-me num joelho. Puxei o gatilho. O raio veio crestar o capuz de
meu forro. Kochihir desmoronou. Saltei, apanhei-lhe o lança-raios,
e girei, postando-me à frente de minha gente. Bokzahan “ergueu
o machado, atirou-o. Desintegrei-o no ar, e matei Bokzahan. Para
outros casos, usei a pistola de estontear. E, mais um minuto ou
dois, estava tudo acabado. Uma granada veio derrubar a parede
frontal da choça. Os caimitas caíram diante de uma verdadeira
barragem de raios paralisantes. Deixamos a todos ali, para que
acordassem oportunamente, e regressamos ao acampamento.

O silêncio pairou novamente. Manuel perguntou se poderia


fumar, com educação, recusou o charuto oferecido por Van Rijn,
e apanhou um cigarro marrom, de aspecto estranho, no próprio
estojo, um objeto adorável, grotesco, bordado em prata em algum
planeta que não soube identificar.
Van Rijn bufou:
— Uff! Mas a estória não termina aí, segundo os seus escri-
tos. Eles foram vê-los antes de vocês partirem.
— Foram sim.
Per concordou com a cabeça. Uma dose de força ressurgira
nele.
— Mal acabáramos os preparativos e Shivaru, em pessoa,
surgiu com outros dez yildivanos e seus lugais. Devagar, entraram
no cercado, com penachos eretos e caudas rijas, sem olhar nem
para a esquerda nem para a direita. Creio que não se surpreende-
riam se os fulminássemos. Mandei que os rapazes que os cobriam
colocassem as armas nos coldres, e, na minha cadeira de rodas,
fui cumprimentá-los com a devida formalidade. Com a mesma gra-
vidade, Shivaru correspondeu e, em seguida, parece ter ficado de
língua presa. Não conseguia desculpar-se. O Ulash não contém
expressões de desculpa: Acenou para Cherkez, que disse: “Vocês
foram bondosos em libertar os prisioneiros”.
Per sacudiu os ombros.
— O que mais poderíamos fazer? Mantê-los conosco, e ali-
mentá-los? Cherkez entregou uma sacola de couro a Shivaru, e
disse, dirigindo-se a mim: “Trouxe um presente”. Abriu, e retirou
a cabeça de Tulitur. Prometeu: “As mercadorias que ele roubou de
vocês, devolveremos todas que encontrarmos; e, se nos concederem
tempo, pagaremos em dobro pelo resto”. Depois de todo o sangue
151
que rolara e, ao contrário do que seria esperado, aquele presente
não fora, afinal, para mim, tão revoltante! Apenas vociferei que não
exigíramos tais arras. “Mas nós sim”, ele disse, “para limpar nossa
honra.” Convidei-os para a refeição, mas eles declinaram. Shivaru
apressou-se em explicar que não seria correto aceitar nossa hos-
pitalidade até que tivessem liquidado a dívida para conosco. Eu
disse que estávamos de partida, o que, embora parecesse óbvio
em vista do estado do acampamento, deixou-os espantados. De-
pois, eu disse que voltaríamos, nós, ou alguém como nós, mas que,
antes, era necessário levar os feridos para nosso planeta. Outro
erro meu, pois lembrá-los do que nos haviam feito os deixou de tal
modo aborrecidos que apenas balbuciaram quando lhes perguntei
por que o haviam feito. Preferi não insistir na questão, pois a situ-
ação ainda era delicada, e então partiram, com o alívio estampado
em suas fisionomias. Poderíamos ter permanecido um pouco mais,
pois precisávamos desvendar o equívoco antes de consignar mais
homens e equipamentos para Caim. Caso contrário, bem provável,
as coisas incendiariam de novo. Mas, diante do fato de estarmos
com pouco pessoal, e de contarmos com dois companheiros que
necessitavam de atendimento médico especializado, não podería-
mos nos demorar. Durante todo o trajeto de volta, pensamos, dis-
cutimos. O que fizéramos de errado? E o que, depois, viera acertar
as coisas. Até hoje ainda não sabemos.
Na direção de Per, brilharam os olhos de Van Rijn, que exi-
giu:
— Você elaborou alguma teoria a respeito?
Per espalmou as mãos.
— Ahh ... A mesma que a de Yuschenkoff, mais ou menos.
Eles temiam que fôssemos os pontas-de-lança de uma invasão.
Quando agimos com razoável decência, não maltratando os pri-
sioneiros — graças a Manuel — e usando pistolas de estontear em
vez de raios na operação de resgate, julgaram que estavam enga-
nados.
Manuel não movera um só músculo, no rosto, no corpo, pelo
que pude ver. Mas Van Rijn apontou-lhe o nariz, que mais parecia
a proa de um navio de guerra, e o mercador riu.
— Quem sabe você não nos apresenta uma idéia diferente?
Vamos, desembuche!
— Meu lugar não é o de contradizer meu Capitão — respon-
deu o novo-mexicano.
— Por que, então, naquele dia, em Caim, você contornou as

152
ordens? Se você sabe o que aconteceu, caramba, é seu dever nos
contar onde estamos enfiando as cabeças.
— Já que o señor ordena... Mas não sou homem de conhe-
cimento. Não possuo conhecimento livresco dos estudos de psico-
nomia. Só que... só que eu creio conhecer os yildivanos. Eles não
parecem muito diferentes do povo da terra dos barrancos, lá no
meu país, e nem dos Piratas.
— Como assim?
— Estes povos vivem muito próximos da morte, por toda a
vida. Coragem e habilidade na luta, é de que mais precisam para
sobreviver, e o que mais prezam. Ao nos ver usar armas, máqui-
nas que matam a distância, ao nos ver cegos à noite, e, boa parte
de nós, ineptos na floresta, ao ouvir-nos contar como vivemos em
nosso planeta, pensaram que não tínhamos cojones, e, então fi-
zeram pouco de nós. Não nos deviam nada, pois não possuíamos
espíritos e jamais poderíamos compreender-lhes o próprio espírito.
Servíamos apenas como presas; primeiro, de sua astúcia, depois,
de suas armas.
Os ombros de Manuel aprumaram. A voz ressoou tanto, que
pulei da cadeira.
— Quando descobriram que os homens são terríveis, e que
eles é que são os fracos, nos transformamos, a seus olhos, de men-
digos em reis!
Ruidoso, Van Rijn sugou o charuto. Perguntou:
— Mais teorias de marinheiro de água doce?
— Não senhor — respondeu Per. — Estas foram as duas úni-
cas escolas de pensamento.
Van Rijn soltou uma gargalhada.
— Ah, que ótimo! Tranqüilizem-se, cidadãos. Cabeças de al-
finete não têm massa para. raciocinar. Relaxem, bebam. Os dois
estão errados.
Harry interpôs, ríspido:
— Peço mil desculpas, mas você não estava lá.
Van Rijn bateu na barriga.
— Em carne-e-osso, não. Seria muita carne! Mas, esta noite,
estive em Caim, nesse velho cérebro aqui em cima, enferrujado,
flutuando em álcool, que já armazenou tanta informação sobre o
universo, muito mais do que o próprio universo acredita ter ar-
mazenado. Já percebo quais são as paralelas. Xanadu, Dunbar,
Tametha, Desembarque Calamitoso... Ora, o análogo nunca é pre-
ciso, e, em Caim, a coisa em que estou pensando já se desenvolveu
153
muito ... mesmo assim, ainda consigo estabelecer o padrão, e o
que aconteceu, faz sentido. Não que tenhamos que ter um análo-
go. São tantas as pistas que vocês nos deram, aqui, que resolvi o
quebra-cabeças usando apenas a lógica. Mas os análogos ajudam
e, ainda por cima, mostram que minha conclusão, além de correta,
é possível.
Van Rijn fez uma pausa. Fizera tanto espalhafato, na espe-
rança de ser elogiado, que Harry e eu, ao refrescarmos nossos ape-
ritivos, nos demoramos na encenação. Van Rijn ficou roxo, chiou
por momentos. Preferiu manter a calma, à espera de ocasião me-
lhor, e entoou, jubiloso:
— Muito bem, vocês venceram. Serei rápido, e rasteiro, e logo
estará na hora do jantar, caso o cozinheiro não tenha caído dentro
do curry. A psicologia formal, estudem-na depois. Os lugais são a
chave do problema. Vocês os chamavam de escravos, e foi aí que
erraram. Eles não são escravos. São animais domésticos.
Sentado, Per aprumou-se, como um raio.
— Impossível!... Senhor... Eles possuem língua e...
— Ja, ja, ja! E talvez trabalhem com álgebra matricial. Mas,
ainda assim, são animais domésticos. O que é um escravo? É um
homem que tem que fazer o que outro homem quer, de bom ou
mau grado. Certo? Harry disse que jamais confiaria num escra-
vo que portasse armas, e eu também não, porque a história está
repleta de revoltas de escravos, de escravos fugitivos, de escravos
que arrastam os pés, e toda essa bobageira. E em seus cães, Harry,
tão caros, tão zangados? Eles têm dentes, e você confia neles, nie?
Quando seus filhos ainda eram pequeninos, ainda faziam pipi nas
calças, você os deixava no quarto e um cão os vigiava. Eis a dife-
rença. O escravo pode, ou não, obedecer. Mas o animal doméstico
tem que obedecer; os genes não o deixarão agir de forma diferente.
Bem, para vocês, os yildivanos cuidaram dos lugais durante todo
esse tempo, enxertando-os em busca dos traços que desejavam, e
isto alterou a natureza dos lugais. Talvez seja isso, pois, do contrá-
rio, os lugais seriam escravos, e não animais, e nem sempre seriam
aqueles seres leais que vocês conheceram. E concluíram, também,
por adivinhação, que os próprios yildivanos foram afetados; o pen-
samento é inteligente, só que vocês deveriam tê-lo aprofundado.
Afinal, tudo o que vocês contam vem provar que, por natureza, os
yildivanos são animais selvagens. São selvagens, como os tigres, os
búfalos. Não possuem os genes da obediência; obedecem apenas
aos pais, quando pequenos. E até agora cultivaram os lugais para

154
desempenhar o trabalho sujo — antes que se tornem inteligen-
tes, como fazem as formigas com os afídeos; pois, lembrem-se, vo-
cês não encontraram sequer um lugal não-domesticado. Qualquer
gene agregador dentre os yildivanos, qualquer desejo congênito de
ser chefiados, esfarelou-se. Isto é possível. Do contrário, a partir de
variações normais em habilidade, a hierarquia poderia formar-se
entre os yildivanos, nie? E isso, Per Stenvik, destrói sua teoria do
receio de invasão. Se não possuem conceitos de tribo, de exérci-
to, como podem ter noção do que seja a conquista? E os animais
selvagens, Manuel Gomes y Palomares, não se humilham ao ser
espancados, como você pensa. Mesmo um homem com complexo
de superioridade é capaz de lamber-lhe as botas se você provar
que é superior a ele; mas, antes de mais nada, o carnívoro não-
domesticado nem possui este tipo de orgulho. Ele é, simplesmente,
definitivamente, independente em relação a você. Bem, então, o
que foi que se passou naquelas cabeças? Vamos recapitular. Os
humanos desembarcam, estabelecem-se para negociar; e, fora do
planeta, os yildivanos não possuem qualquer experiência a res-
peito de raças. Assim, é natural que presumam que todos pensem
como eles. Em função do fato, creio que seria a única coisa que
poderiam imaginar, mesmo que alguém contasse a eles. E as des-
cobertas que vocês fizeram sobre sua estrutura cultural demonstra
que a meia-simbiose com os lugais é igualmente psicológica; eles
são especializados nos cérebros, e não são tão complicados, nem de
perto, quanto o homem. Mas, à medida que se familiarizam, o que
percebem? Pessoas recebendo ordens. Como é possível, se os yildi-
vanos jamais receberam ordens, salvo para salvar a própria vida,
debaixo de um inimigo que lhe aponta uma coisa pontiaguda. Ahh!
Quer dizer, então que alguns seres, dentre os estrangeiros, são do
tipo dos lugais? ! E o velho Shivaru decidirá, logo, que todos são
lugais, com exceção de Stenvik, pois todas as ordens partem dele.
Outros, como Manuel, não passam de chefes de turma, talvez, mas
nada mais que isso. Animais domésticos. E, nesse momento, Per
menciona a idéia de Deus.
Van Rijn fez o sinal da cruz, numa piedade algo irritante.
— Não é blasfêmia! Mas, todos sabemos que o quadro que
fazemos de Deus provém, em parte, de nossos reis. Se quiserem
saber de que maneira, nos dias antigos, alguém se dirigia aos reis
orientais, basta olhar no livro litúrgico. Mesmo hoje em dia, ad-
mitimos que Ele seja o Senhor, e devemos satisfazer Sua vonta-
de, e esperamos que Ele não leve muito a sério algumas coisinhas
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que costumam acontecer às pessoas, como raiva, orgulho, inveja,
gula, luxúria, preguiça, e todo o resto que diverte a vida. Bem, Per
disse aquilo. Portanto, admitia possuir um patrão. Ora, então, ele
também deve ser um lugal... um animal. E um yildivano jamais
confessaria possuir nem mesmo um mestre místico, evidenciado
pelo fato de não possuir religião, embora os lugais, ao que parece,
possuam-no. O velho Shivaru merece crédito. Voltou, com alguns
amigos, para saber mais. E o que aprendeu? Sabia que todos os
demais eram lugais, em vista da obediência. E agora Per dizia a
ele que não era melhor que o resto, o que confirmava que Per era
também um lugal. E o que tocou fogo no estopim foi quando Per
disse que nem ele, nem ninguém, em nosso planeta, têm dono!
Calma, calma, meu jovem. Como é que você iria adivinhar; sempre
descobrimos as coisas pelo caminho mais difícil. Como os pobres
yildivanos! Eles estavam mesmo preocupados, como vocês bem po-
dem imaginar. Até mesmo os cães, de vez em quando, enganam
os homens, e um ou outro lugal, com certeza, em Caim, não age
corretamente e causa grandes problemas antes de ser morto. Os
yildivanos puderam presenciar alguns de seus poderes, sabiam
que vocês eram perigosos... e sua raça lugal deve ter enlouquecido
e matado seus yildivanos. De que outra maneira você poderiam ser
lugais e não ter donos? Portanto, meus amigos, o que vocês fariam,
e eu também, se vivêssemos em pacatas casas de campo e soubés-
semos que um monte de cães selvagens, assassinos de gente, se
estabeleceu na vizinhança?
Van Rijn gargarejou a cerveja garganta abaixo. Todos ponde-
ramos, por um momento.
— Parece muito forçado — observou Harry.
As bochechas de Per arderam de emoção.
— Não! A coisa se ajusta. O Cidadão Van Rijn acaba de de-
finir o que eu sempre senti desde que comecei a me aproximar de
Shivaru. Uma certa estreiteza de pensamento... como se ele fosse
incapaz de perceber certas coisas, de perceber certas idéias, embo-
ra possuísse faculdades de raciocínio que, intrinsecamente, eram
tão boas quanto as minhas. Claro...
Confirmei com a cabeça, dirigindo-me a meu cachimbo, que
estivem comigo em momentos em que entrei em conflito com seres
ainda mais estranhos que aqueles.
— Então, dois deles trataram de aproveitar-se de você —
acrescentou Van Rijn — para tomar o que conseguissem levar an-
tes do ataque, pois não sabiam se o ataque funcionaria. Não há

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vergonha nisso. Como animais, vocês não estavam inseridos no
conceito de honra. Animais cujos ancestrais haviam assassinado
toda uma raça de verdadeiros humanos, sob o ponto de vista de-
les. Assim, aqueles machos alarmados quiserem esfolá-los. Como
tivessem falhado, esperavam, talvez, poder usar os prisioneiros que
fizeram como uma alavanca para expulsá-los do mundo que lhes
pertencia. Só que Manuel os enganou.
— Mas, por que teriam mudado de idéia a nosso respeito —
perguntou Per.
Van Rijn sacudiu o dedo.
— Ah! Vocês tiveram sorte. Você havia dado uma ordem cla-
ra, importante, e seus homens a desobedeceram inteiramente. Si-
nal de que os lugais talvez tivessem enlouquecido e fossem dizimar
os yildivanos, embora tão acostumados a ser mandados que talvez
não conseguissem resistir ao líder por muito tempo. Ou, se o con-
seguissem, talvez fosse por ser muito loucos e, portanto, incapazes
de pensamentos certeiros. Manuel, porém, pensava certeiro, como
um cano. A estratégia dele funcionou cinco-quatro-três-dois-um-
zero. E, além disso, seu povo matou apenas a quantidade neces-
sária de yildivanos, ao contrário do que fariam os lugais loucos.
Assim, vocês não poderiam ser animais domésticos, afinal, quer
tenham agido com erro ou não, e, portanto, teriam que ser animais
selvagens. A mente caimita — uma mente estreita, como você dis-
se — é incapaz de imaginar que algum touro especial possua um
terceiro chifre. Já que provaram não ser do tipo lugal, só poderiam
ser do tipo yildivano. Indicações em contrário, como a maneira com
que você parecia aceitar ordens de um Senhor, ou admitir-lhe a
existência, devem ter sido consideradas, por parte dos caimitas,
como mal-entendidos. Assim que teve tempo de pensar a respeito,
percebeu que seu povo foi sujo com vocês. Em parte, sentiu-se
mal, na alma, se é que tem alguma alma escondida nalgum lugar.
Os yildivanos possuem conceitos de comportamento elevado, em
relação a outros yildivanos. Além disso, Shivaru não queria perder
uma única oportunidade de acesso às suas excelentes mercadorias
de troca. Convenceu os amigos. E eles fizeram o que de melhor pu-
deram para emendar o erro.
Em regozijo, Van Rijn esfregou as palmas das mãos. Berrou:
— Ra! Ra! Ra! Serão ótimos clientes!
A digerir a idéia, permanecemos sentados por mais algum
tempo, até que o mordomo veio anunciar o jantar. Manuel ajudou
Per a levantar-se. O jovem falou:
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• — Teremos que orientar a todos que se dirigirem a Caim.
Isto é, para que não dêem continuidade à idéia de que somos ani-
mais selvagens, mas, sim, à de que somos humanos.
Com a cabeça erguida, Manuel insistiu:
— Mas, Capitão, nós somos selvagens.
Van Rijn parou, olhou-nos por um instante. Em seguida, sa-
cudiu a cabeça com violência, arrastou-se, pesado, até o visor, e
grunhiu:
— Não, apenas alguns de nós o somos. Harry intrigou-se.
— Como assim?
— Nós, que estamos aqui nesta sala, somos selvagens. Fa-
zemos o que fazemos porque queremos fazê-lo. Ou então porque o
julgamos acertado. Nenhum outro motivo, nie? Se vocês nos escra-
vizassem, não seriam tolos a ponto de nos deixar próximos a algu-
ma arma. Mas, na longa história da Terra, quantos escravos foram
considerados “de confiança” do patrão? Muitos! Houve até mesmo
exércitos de escravos, como os Janízaros. E quantas pessoas, hoje
em dia não são, no íntimo, animais domésticos? Que desejam que
outra pessoa diga-lhes o que fazer, que tome conta de suas neces-
sidades, e que as proteja, não apenas contra os companheiros de
espécie, mas contra si mesmas? Porque toda sociedade humana
livre teve duração tão curta? Não seria por que os homens “animais
selvagens” nascem às vezes tão sentimentais?
Van Rijn contemplou o outro lado da cidade, que piscava,
cintilava, debaixo das estrelas, ao longo da curvatura do planeta,
e, de um grito:
— Vocês pensam que isso aí é livre?
A mão de Van Rijn cortou o ar, com uma cutelada, fazendo
pouco.

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