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De acordo com uma antiga estória medieval, em 22.07.1209, à beira dos portões recém
conquistados de Béziers, localidade da atual França onde prosperava a heresia cátara,
teria sido inquirido Arnold Amaury, monge cisterciense comandante da cruzada formada
para eliminar os hereges daquela cidade, sobre como seria possível separar os infiéis dos
bons cristãos, no calor da invasão. A resposta se tornou célebre pela praticidade
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A ATUAÇÃO DO STJ NO EXAME DO JUSTO VALOR
COMPENSATÓRIO DOS DANOS MORAIS - Como
adicionar objetividade a partir de duas propostas de
método
inversamente proporcional à sua justiça: “Caedite eos. Novit enim Dominus qui sunt
eius”, ou seja, “Matem todos. Deus saberá quem são os seus”. Mais tarde, em carta ao
Papa Inocêncio III, Amaury afirmou textualmente que cerca de 20 mil pessoas, incluindo
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jovens, mulheres, idosos e crianças, foram passados no fio das espadas naquele dia.
Assim, o monge Amaury entraria para a história ao demonstrar que o modo mais
eficiente de contornar a necessidade de um método objetivo para a resolução de um
problema é, simplesmente, ignorar que o problema existe. Ora, 803 anos depois, alguém
que analise a forma como o STJ aborda os pedidos de revisão de compensação por
danos morais poderia chegar exatamente à mesma conclusão, porque o Tribunal afirma
ter desenvolvido uma solução para esses casos, mas essa solução passa muito longe de
ser obtida a partir da aplicação de um método claramente delineado. E as
consequências, na prática, são as mesmas previstas pelo ilustre monge – “matam-se”
milhares de recursos especiais a partir da aplicação de um discurso padronizado, e só
Deus consegue distinguir quem ganhou o que merecia.
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Com efeito, a onipresente Súmula 7 (MIX\2010\1261) do STJ - enunciado cujo sentido
preciso, por causa do uso reiteradamente indevido, tem se tornado tão fluido quanto o
conceito de liberdade do famoso poema de Cecília Meireles, algo que “não há ninguém
que explique e ninguém que não entenda” – tem feito as honras da espada dos cruzados
quando se trata de analisar, em recurso especial, o valor fixado pelas instâncias
ordinárias como compensação pelos danos morais. De forma muito resumida, parte-se
da premissa de que, nessas hipóteses, é necessário buscar uma correlação entre as
peculiaridades do caso e um valor que, de forma estimativa, compense aquela específica
agressão sofrida, conquanto inviável a transposição perfeita de medidas entre uma
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ofensa a um direito intangível (como a honra) e uma reparação de natureza pecuniária.
Essa correlação, por sua vez, deve ser traçada tanto em face de questões jurídicas
(existência de culpa concorrente, por exemplo) como, principalmente, a partir das
circunstâncias fáticas que delineiam o evento, o que leva a uma primeira conclusão no
sentido de que cada caso de danos morais é (ou deveria ser) um caso único.
Tal conclusão, por sua vez, gera dois desdobramentos diretos: (a) afasta a possibilidade
de que haja um tabelamento puro e simples das indenizações, atribuindo-se
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aprioristicamente a uma previsão abstrata A o valor fixo B; e (b) quando enfrentada a
questão da correlação entre dano e indenização no âmbito do recurso especial, surgiria
intransponível a dificuldade derivada da forte imbricação existente entre os fatos e o
resultado do julgamento, ficando claro que a alteração deste demandaria,
necessariamente, o reexame daqueles próprios elementos de prova – o que estaria
vedado pela citada Súmula 7 (MIX\2010\1261) do STJ. Em outras palavras, para se
revisar o valor, seria necessário afirmar que o Tribunal a quo não procedeu a uma
correta avaliação das circunstâncias fáticas, o que seria inadequado porque a função
institucional do STJ é unificar a interpretação do direito e não funcionar como Tribunal
revisor propriamente dito.
Ocorre que, na prática, a Súmula 7 (MIX\2010\1261) do STJ não tem sido aplicada com
a uniformidade que seria de se esperar. Para desgosto dos que se dedicam ao problema,
são pouquíssimos os que explicam e menos ainda os que entendem os motivos que
levam à existência de processos que sobrevivem a uma degola supostamente indistinta,
pelo menos a partir do que seria esperado se a argumentação supracitada fosse
coerentemente aplicada.
Dois meses antes, porém, em 11.03.1997, a 4.ª Turma já havia dado um passo
importante no REsp 74.532/RJ, rel. Min. Sálvio de Figueiredo Teixeira, ao fixar desde
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logo, com base no art. 257 do RISTJ (LGL\1989\44), a indenização devida por danos
morais, após constatar a necessidade de reforma de acórdão proferido pelo TJRJ que
havia julgado improcedente o pedido. A rigor, a 4.ª Turma poderia ter optado por
remeter os autos novamente ao Tribunal de Justiça para que este estabelecesse o valor,
analisando as circunstâncias fáticas envolvidas na controvérsia; a fundamentação do
acórdão demonstra que a Turma preferiu a primeira alternativa, porque esta daria
“solução definitiva ao caso” e evitaria “inconvenientes e retardamento da solução
jurisdicional”. Dois, portanto, os argumentos utilizados: o primeiro, de natureza objetiva,
referiu-se à busca de presteza jurisdicional, duplamente mencionada nas expressões
“solução definitiva” e “retardamento”; e o segundo, bastante singelo e de difícil
apreensão, resumido à expressão “evitar inconvenientes”. Evidentemente, entre tais
“inconvenientes” não pode estar a delonga processual, mencionada separadamente por
duas vezes; qual seria, então, sua natureza? Talvez aqui se encontre a gênese de uma
ideia então ainda indistinta, mas que viria a tomar forma muito rapidamente nos dois
anos posteriores a esse acórdão, conforme se verá a seguir. Por enquanto, porém, há
um segundo ponto relevante nesse julgado que não pode ser desperdiçado: uma vez
estabelecida a possibilidade de resolução direta do conflito, com base no art. 257 do
RISTJ (LGL\1989\44) (não citado expressamente neste caso, mas mencionado no REsp
135.202/SP, 4.ª T., j. 19.05.1998, Min. Sálvio de Figueiredo Teixeira, em idênticas
circunstâncias), é interessante notar como o STJ passou a trabalhar a questão dos
critérios de definição do valor da indenização; a essa altura, o STJ consignou a tese de
que “o arbitramento em tela deve operar-se com moderação, proporcionalmente à culpa
concorrente estabelecida [era esta a hipótese do caso], ao nível socioeconômico dos
autores, a perspectiva de vida da menor vitimada, sua futura ajuda e, ainda, ao porte da
empresa recorrida”, texto-padrão que passaria a ter ampla divulgação nos anos
posteriores.
qual foi constitucionalmente cometida tão relevantes missões, forneça disciplina e exerça
controle, de modo que o lesado, sem dúvida alguma, tenha reparação, mas de modo
também que o patrimônio do ofensor não seja duramente atingido. O certo é que o
enriquecimento não pode ser sem justa causa”. Em voto-vista, o Min. Menezes Direito
entendeu que “esta Corte tem o dever de examinar a questão posta no recurso quanto à
fixação do dano moral, tudo para evitar o cometimento de abuso. À medida que o
Tribunal se vê diante de uma fixação que foge a qualquer parâmetro e que violenta o
razoável, é evidente que a sua intervenção se faz necessária, até mesmo pela função
política que tem a Corte Superior, qual seja, a de estabelecer um padrão de
razoabilidade para a fixação do dano moral”. E foi assim, com a somatória da vontade de
“evitar inconvenientes” da 4.ª Turma, com a “função política” da 3.ª, que o STJ afrouxou
as correntes de um animal perigoso que, hoje, ameaça morder a mão do seu dono.
Mas o verdadeiro ponto de inflexão parece ter sido o REsp 269.407/RJ, 4.ª T., j.
28.11.2000. Há algo extraordinariamente incomum na repercussão obtida pelos votos
proferidos nesse caso, pois, como só muito raramente acontece, dois posicionamentos
proferidos em termos notadamente dúbios e altamente subjetivos acabaram se
perpetuando de forma massiva. Do voto vencido do Min. Sálvio de Figueiredo Teixeira
(que dava provimento parcial ao recurso para reduzir a indenização), constou que:
No voto vencedor do Min. Ruy Rosado de Aguiar, por sua vez, ficou registrado:
“Não conheço do recurso, porque, como tenho dito outras vezes, a intervenção do STJ
há de se dar quando há o abuso, o absurdo: indenizações de um milhão, de dois
milhões, de cinco milhões, como temos visto; não é o caso. Aqui, ficaríamos entre 500,
350, 200, 250, 100 reais a mais, 100 salários a menos. Não é, portanto, um caso de
abuso na fixação, é uma discrepância na avaliação. Temos de ponderar até que ponto o
STJ deve interferir na definição de um valor de dano moral, que é matéria de fato, para
fazer uma composição mais ou menos adequada. Não sendo abusiva ou iníqua a opção
do tribunal local, não se justificaria a intervenção deste Tribunal. Se não for assim,
teremos de enfrentar todas as avaliações de dano moral feitas no país, porque em todas
elas poderemos encontrar uma disparidade de 10%, 20%, e essa não é a nossa função”.
Destaque-se esse pequeno trecho ao final: “Se não for assim, teremos de enfrentar
todas as avaliações de dano moral feitas no país”; no contexto do voto, essa
(im)possibilidade – melhor seria “indesejabilidade” – é tomada como pressuposto para
que sejam aceitas com naturalidade eventuais “discrepâncias de avaliação”; e a ideia
como um todo é apresentada como se fosse algo tão óbvio que sequer necessitaria de
fundamentação, ou seja, como se fosse notório que o Tribunal, deliberadamente, não
deseja e nem precisa analisar todos os casos que lhe são apresentados. Com essa
consideração, o julgamento do REsp 269.407/RJ aparou todas as arestas deixadas pelos
precedentes anteriores, pois, ao mesmo tempo em que consolidou a válvula de escape
de que o Tribunal precisava para alterar certos valores, promoveu um retorno
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COMPENSATÓRIO DOS DANOS MORAIS - Como
adicionar objetividade a partir de duas propostas de
método
A partir desse ponto, a única certeza que o STJ fez questão de garantir é a de que os
mortos, realmente, permanecem mortos – porque a Súmula 7 (MIX\2010\1261) do STJ
passou a ser contornada facilmente para a discussão de valores, mas jamais quando o
segundo grau de jurisdição, ao invés de errar na fixação do montante, acaba por se
equivocar em um ponto relativo ao próprio delineamento da responsabilidade civil, como
na definição da autoria do evento danoso. Quanto a esse tipo de equívoco – quiçá bem
mais grave – jamais se abriu exceção.
2. CRÍTICAS À JURISPRUDÊNCIA CONSOLIDADA. NECESSIDADE DE UMA NOVA
ABORDAGEM
estados podem ser e não ser ao mesmo tempo, sem que um juízo negue o outro. Com
efeito, até que o Ministro relator decida por aplicar a primeira posição ou a segunda –
aparentemente a partir de um puro ato de vontade, por absoluta falta de especificação
de um critério melhor – e publique a decisão, a pretensão recursal pode ou não estar sob
óbice da Súmula 7 (MIX\2010\1261) do STJ, o que é pitoresco para uma tese de física
avançada, mas certamente desagradável para qualquer recorrente que paga impostos
nada teóricos esperando em troca, ao menos, uma prestação jurisdicional minimamente
objetiva.
O STJ tem agido como o átomo quântico que decai e não decai ao mesmo tempo. A
jurisprudência do STJ é pródiga em exemplos de recursos especiais providos para
provocar uma alteração quase insignificante no valor original, e de recursos especiais
aos quais se negou seguimento, apesar de apresentarem distorções muito maiores.
ajuda daqueles termos cujo conteúdo significativo no contexto dado resulta apenas do
ordenamento jurídico, especialmente com base numa coordenação tipológica, numa
‘ponderação’ de pontos de vista divergentes ou numa valoração jurídica nos quadros de
uma pauta carecida de concretização. Questão de facto é o que as partes disseram
aquando da celebração do contrato e o que a esse respeito uma e a outra pensaram; é
questão de direito saber com que significado deve cada uma das partes deixar que valha
a sua declaração, a questão da interpretação normativa das declarações de vontade. Se
A causou um acidente por ter patinado numa curva numa estrada molhada, a questão de
facto é o estado do pavimento e a velocidade com que A conduzia na curva; se o seu
modo de condução foi, nestas circunstâncias, ‘negligente’ é questão de direito”. Logo
adiante, acrescenta ainda, em trecho que parece guardar total pertinência com a crítica
formulada no presente trabalho: “Nalguns casos, porém, a questão de facto e a questão
de direito estão tão próximas entre si que não é possível, na prática, levar a cabo a sua
separação. Este é o caso, desde logo, quando uma situação de facto não pode ser de
todo em todo descrita de outro modo senão com aqueles termos que contêm já uma
valoração jurídica. Se alguém deu origem a um ‘ruído perturbador do repouso’, não se
tendo medido exactamente a intensidade, é difícil descrevê-lo de outro modo senão com
a indicação de que, de facto, o repouso foi perturbado de modo considerável. O juízo de
que o ruído foi ‘perturbador do repouso’ contém ao mesmo tempo a descrição do
acontecimento, tal como é necessária para a colocação da questão de facto, e a sua
apreciação jurídica, no sentido de uma valoração. É diferente de quando se mediu a
intensidade sonora e a questão a decidir é então, se uma tal intensidade sonora deve ser
considerada como ‘perturbadora do repouso’. Neste caso, a ocorrência está, já antes da
sua apreciação jurídica, exactamente determinada mediante conceitos físicos; a questão
de como se há de julgar isto, no sentido do critério legal do julgamento, (‘perturbador do
repouso’), é uma questão de direito”.
Salvo melhor juízo, a questão do valor dos danos morais tem como precedente remoto
uma questão que em si mesma já possui natureza fático-jurídica, que é a existência dos
danos morais, cujo juízo positivo impõe a análise de uma segunda camada de normas e
critérios jurídicos sobre o substrato predefinido da responsabilidade civil, para que se
defina um valor financeiro reparatório da agressão configurada. Desta segunda etapa,
participam novas e velhas questões de fato, que, uma vez fixadas, permitem a
incidência de outras normas jurídicas, e a definição de um valor. O cerne do presente
trabalho está em demonstrar que, uma vez estabelecida essa segunda rodada de
situações de fato, seu eventual exame para adequação da justiça da indenização ao caso
concreto, em recurso especial, não esbarra em revisão de provas; apenas parte destas
como dados consumados. É isso que faz o STJ, por exemplo, quando considera aplicável
o art. 257 do RISTJ (LGL\1989\44) e fixa diretamente a compensação, após reverter o
julgamento de improcedência do pedido de danos morais.
Para demonstrar que não há revisão obrigatória de provas, façamos referência aos
critérios comumente utilizados pela doutrina para o estabelecimento dos danos morais,
conforme citados pelo Min. Paulo de Tarso Sanseverino, em obra de grande valor sobre o
tema:
Essa escolha, criticável pelos desvios processuais e de mérito que incorpora, gera ainda
outras consequências colaterais que não são notadas à primeira vista, mas que são
extremamente severas, conforme será examinado nas partes seguintes deste artigo.
Propõe-se, portanto, que todo valor compensatório deve estar sob o crivo do STJ, em
qualquer recurso que atenda às demais regras de admissibilidade e supere outros óbices
do gênero. Cabe ao Tribunal, por dever de coerência – e se quiser continuar alterando
valores em certos casos que, de especiais, nada possuem – afirmar, sempre que não
houver necessidade de readequação, que a manutenção do acórdão é questão de justiça,
porque não se verifica qualquer violação a dispositivo de lei federal.
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Tome-se, agora, como ponto de partida o recebimento, pelo STJ, de um recurso especial
em que o recorrente manifesta uma insatisfação quanto ao valor fixado pelas instâncias
ordinárias, sem que exista algum óbice intransponível ao conhecimento desse recurso.
A seleção proposital do pior argumento possível só pode ser explicada pela influência de
uma distorção poderosa na estrutura do sistema. Essa distorção, salvo melhor juízo,
nada mais é do que um efeito colateral do erro de aplicação da Súmula 7
(MIX\2010\1261) do STJ. Sabe-se, conforme já demonstrado, que os recursos especiais
precisam superar uma barreira que, correta ou incorretamente, foi erguida pela
jurisprudência como uma verdadeira Linha Maginot, de dimensões imponentes como a
original, mas na prática tão contornável quanto – muito embora não se saiba ao certo
como, pois o próprio Tribunal nunca estipulou de forma clara e objetiva o que leva certo
processo de danos morais a ser considerado “especial” a ponto de ser provido, enquanto
outros processos idênticos são destinados à vala comum. Como consequência direta do
desconhecimento quase absoluto sobre o inimigo, recorre-se dramaticamente ao apelo
ao passado, que tem a seu favor tanto a vantagem da simplicidade estrutural quanto a
aposta implícita em um suposto dever de coerência do STJ aos seus próprios julgados,
muito embora, como já examinado, coerência e danos morais, na jurisprudência do STJ,
sejam opostos que não se atraem.
Desde que nada mude em essência, seria possível, ao menos, alterar a forma e obter
algum proveito com isso? A última parte do trabalho se destina a propor uma alteração
sutil na abordagem dos recursos especiais relativos à fixação dos danos morais, o que
seria possível mesmo no contexto da jurisprudência atual, ou seja, sem que se supere a
aplicação randômica da Súmula 7 (MIX\2010\1261) do STJ.
Percebe-se, claramente, três grandes fatores que prejudicam a análise dos recursos
especiais, sob a ótica da comparação de valores entre acórdãos distintos.
O segundo grave problema de (falta de) método diz respeito à ausência de atenção, na
citação dos precedentes, quanto às peculiaridades processuais que eventualmente foram
determinantes para a fixação daquele valor específico. Em muitos casos, nota-se que
valores comparativamente muito baixos não são abonados pelo STJ como justos em si, e
sim mantidos porque o recurso especial foi interposto pelo ofensor, que pretende ver
reduzido ainda mais um valor que já se encontra abaixo da média. E, inexistindo
possibilidade de aumentar a condenação sem recurso do interessado, o STJ incrementa
ainda mais a confusão ao se contentar em repetir o mantra segundo o qual não se
revisam valores que não são “irrisórios nem exagerados”, ao invés de afirmar,
peremptoriamente, que o valor é desproporcional, mas fica mantido em face da
proibição à reformatio in pejus. Trata-se de um segundo efeito colateral perverso da má
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Por isso, seria importantíssimo descrever, para cada acórdão selecionado, (a) o valor
fixado pelo acórdão proferido pelo segundo grau de jurisdição, (b) quem dele recorreu e
(c) se houve ou não provimento no STJ. Com isso, seria possível descartar alguns
acórdãos extremamente discrepantes a partir de uma justificativa objetiva e segura. O
AgRg no REsp 493.641/SP, 3.ª T., de relatoria do Min. Paulo de Tarso Sanseverino, DJe
11.02.2011, mencionou o problema ao transcrever trechos de sua obra anteriormente
citada, segundo os quais “a análise de mais de 150 acórdãos da Corte Especial relativos
a julgamentos realizados nos últimos 10 anos, em que houve a apreciação da
indenização por prejuízos extrapatrimoniais ligados ao dano morte, denota que ainda
existem divergências no STJ acerca do que se pode considerar como um valor razoável
para essas indenizações”, mas “os recursos especiais providos, para alteração do
montante da indenização por dano extrapatrimonial, são aqueles que permitem
observar, com maior precisão, o valor que o STJ entende como razoável para essa
parcela indenizatória”.
Por fim, o terceiro ponto que desperta atenção é a constatação de que a perplexidade na
fixação dos danos morais decorre muitas vezes do fato de que, realmente, há
indenizações por morte em montante igual ou menor do que outras concedidas para
eventos que seriam menos graves, como — para usar de um exemplo que será mantido
durante toda a exposição — a lesão corporal que leva à perda de um dedo.
A questão a ser discutida, aqui, diz respeito à natureza do bem jurídico ofendido em
cada caso. Trata-se de analisar a premissa, muito utilizada na prática (conforme se
verifica pela argumentação geralmente desenvolvida nos recursos especiais), de que o
evento morte deveria ser estabelecido como o “padrão máximo” de indenização, a partir
do qual as demais indenizações se desdobrariam naturalmente, em parcelas inferiores.
Analisando o argumento, parece não haver dúvida de que ele decorre de uma percepção
do bem jurídico “vida” como o direito mais importante; assim, a violação a esse bem
deveria levar à maior indenização possível, acima de todas as demais violações a outros
bens jurídicos. Enquanto individualmente considerado, o conceito é, ao mesmo tempo,
de fácil compreensão e de difícil recusa; porém, sua aplicação aos casos de dano moral
não pode se dar de forma isolada, sem a percepção de outros fatores que influenciam a
equação. Aquela perplexidade tão decantada nas razões de recurso especial, quando um
dedo parece valer mais do que uma vida, é, geralmente, simples decorrência da
ausência de um prévio exame acerca da titularidade do direito moral perseguido em
juízo, pois esta distinção, quando previamente estabelecida, mostra-se suficiente para
provar a mera aparência de desnivelamento entre as reparações.
Em outras palavras, é necessário verificar que o autor de uma ação por danos morais
motivada por evento morte não é o titular do bem jurídico “vida” que foi ofendido. O
direito material violado perseguido em juízo se refere, nesses casos, à privação precoce
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do convívio com um ente querido, por ato imputável a terceiro. É evidente que o bem
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jurídico “vida”, nesse contexto, não pode ser mais tutelado em juízo por seu titular. Se
não se discute que a vida é o bem mais importante, há que se estabelecer,
paralelamente, quem é o titular desse direito violado, o que basta para verificar que o
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A partir dessa constatação, há que se completar o arco iniciado na primeira parte deste
estudo, o que se dá pela retomada daqueles elementos estipulados pela jurisprudência
como vetores para a definição do justo valor indenizatório, aos quais se fez referência no
item 2 supra. No contexto da tutela ao bem jurídico ofendido, verifica-se que, mesmo
diante de todas as desnecessárias limitações impostas pelo equívoco da Súmula 7
(MIX\2010\1261) do STJ e da prevalência do espartano critério puramente comparativo
como fundamento das razões de recurso especial, seria possível, ainda, analisar a real
importância de certos fatores que doutrina e jurisprudência vêm indicando como
relevantes para a estipulação da compensação, como o padrão econômico da vítima e do
ofensor. Ora, se o dano a ser indenizado (no caso de morte) é a privação do convívio, há
pouca pertinência, com a devida vênia, na invocação das condições financeiras da vítima
e do ofensor como parâmetro para fixação dos danos morais sofridos por terceiro
completamente alheio às circunstâncias fáticas do evento danoso.
Por outro lado, retome-se o exemplo paradigma, de alguém que perde um dedo em
acidente. O autor da ação de danos morais será, nesse caso, uma das pessoas
diretamente envolvidas no evento e que, nessa condição, é o próprio titular do bem
jurídico “integridade física” que foi diretamente violado. Mas é ele também titular de
diversos outros direitos atingidos pelo evento, e os danos morais, na verdade, dizem
respeito tanto a estes quanto àquele. Só a partir de um exame, no caso concreto, da
ocorrência de violação a todos esses direitos, seria possível estabelecer o alcance de
uma reparação adequada. Aqui, portanto, aqueles critérios antes apontados pela
doutrina, relativamente às circunstâncias subjetivas dos envolvidos, passam a ter a
maior relevância. O trauma provocado pela perda de um dedo da mão de um músico é
de se supor muito maior do que o provocado em um advogado, porque o dano frustrará
totalmente o desenvolvimento de uma carreira planejada, ao passo que o advogado
ainda poderá exercer sua profissão. Podem os danos morais, porém, eventualmente ser
igualados, se provado que o advogado desenvolvia como atividade paralela algum tipo
de atividade manual que ficará prejudicada. Em resumo, portanto, as circunstâncias do
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caso e as qualificações dos envolvidos tomam, aqui, posição central.
Portanto, embora seja um senso comum que a vida é mais importante do que a
integridade física, não há identidade de sujeitos quando se busca a reparação de tais
bens por ofensa moral. Em consequência, a importância dos vários critérios comumente
usados para o cálculo da indenização pode variar de forma intensa. Por isso, é equívoco
afirmar-se que um dedo não pode, jamais, valer mais do que uma vida. Na verdade, não
há comparação possível, e, se esta fosse realizada, seria entre um dedo e o convívio
com um ente querido, não entre um dedo e um defunto.
No REsp 1.044.416/RN, 2.ª T., DJe 16.09.2009, o Min. Mauro Campbell, ao analisar
hipótese de disparo de arma de fogo em quartel que causou tetraplegia em militar,
abordou tangencialmente o tema, nos seguintes termos: “Na hipótese dos autos,
diferentemente dos casos de morte, é à própria vítima do evento que se visa reparar. O
policial que passou, num instante, de jovem com 30 anos à época do evento, saudável,
forte, à pessoa portadora de necessidades especiais, sem poder mover suas pernas, mal
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podendo mover os braços e sem a capacidade para, sozinho, lidar até mesmo com sua
higiene pessoal. Nesta hipótese, toda a sua vida, da forma como a conhecera,
modificou-se, tornando-se limitada pela abrupta perda de grande parte de seus
movimentos, capacidade sexual e controle sobre as funções urinárias e intestinais. Sua
vida estará, tanto do ponto de vista subjetivo, como do ponto de vista objetivo,
irremediavelmente modificada. Da mesma forma, não é possível medir a dor dos
familiares próximos do recorrido, ao vê-lo naquela condição. Seus pais e irmãos, que
dele cuidarão todos os dias, também terão de aceitar essa nova condição. Para todos os
envolvidos, portanto, a situação é grave. Não creio que, numa hipótese como esta, seja
razoável reduzir a indenização fixada para os patamares usualmente praticados por esta
Corte para ilícitos dos quais decorre a morte da vítima. A possibilidade de pagamento do
quantum indenizatório somado à profunda gravidade da lesão, recomendam que, deste
caso, mantenha-se o valor fixado, qual seja, R$ 500.000,00 (quinhentos mil reais)”
(destaques no original).
Há, também, um precedente da 3.ª Turma (REsp 1.011.437/RJ, Min. Nancy Andrighi,
DJe 05.08.2008), que reconheceu a possibilidade de indenizar a lesão corporal grave em
valores maiores dos que os ordinariamente concedidos em caso de morte, consignando
que “a dor decorrente da perda de um ente querido diferencia-se da dor sofrida pela
própria vítima de um acidente grave”.
Por fim, salvo melhor juízo, não haveria contradição entre o entendimento supra e
precedente da Corte Especial que reconhece a transmissibilidade do direito à indenização
por danos morais aos herdeiros do falecido (AgRg no EREsp 978.651/SP, Min. Felix
Fischer, DJe 10.02.2011), pois a situação, aqui, diz respeito ao dano moral sofrido em
vida, cujo direito à reparação é transmissível, assim como ocorre com qualquer direito
patrimonial.
5. CONCLUSÕES
Em conclusão, a elaboração deste trabalho indica que o objetivo a ser atingido — qual
seja, a previsibilidade dos valores de indenização por danos morais no STJ — é
providência que pode ser aprimorada por mais de um caminho. A possibilidade mais
traumática, e mais correta, exige a revisão completa da jurisprudência consolidada do
STJ, abolindo-se a aplicação da Súmula 7 (MIX\2010\1261) do STJ como apoio ao
julgamento da maioria dos casos; a possibilidade mais conservadora, mas não destituída
de utilidade, oferece algumas balizas de sistematização e uniformização de práticas
simples para a comparação entre acórdãos e, consequentemente, para a discussão dos
valores. Dentro dessa segunda perspectiva, cuja adoção certamente enfrentaria menores
resistências, sugere-se a seguinte abordagem: (a) localização de precedentes que
tenham base fática similar, desconsiderando-se o “padrão-morte” como parâmetro
absoluto para todos os casos; (b) descarte dos precedentes que tiveram a análise do
valor indenizatório prejudicada por questões processuais, notadamente pela proibição da
reformatio in pejus; e (c) atualização, para valores presentes, dos valores históricos
admitidos nos precedentes que superem os passos supra.
6. BIBLIOGRAFIA
Larenz, Karl. Metodologia da ciência do direito. 4. ed. Trad. José Lamego. Lisboa:
Fundação Calouste Gulbenkian, 2005.
Moraes, Maria Celina Bodin de. Danos à pessoa humana: uma leitura civil-constitucional
dos danos morais. Rio de Janeiro: Renovar, 2009.
Santana, Héctor Valverde. A fixação do valor da indenização por dano moral. Revista de
Informação Legislativa. n. 175. p. 21-40. Brasília: Senado Federal, jul.-set. 2007.
Santos, Mário Ferreira dos. Lógica e dialética: lógica, dialética, decadialética. São Paulo:
Paulus, 2007.
cem mil reais (R$ 100.000,00). Registre-se que, de acordo com o referido Projeto de Lei,
havia possibilidade de o juiz elevar ao triplo o valor de indenização em caso de
reincidência ou ‘indiferença do ofensor’” (Santana, Héctor Valverde. A fixação do valor da
indenização por dano moral. Revista de Informação Legislativa 175/21-40.
3) Juízos particulares afirmativos (I): alguns S são P. Por exemplo: Alguns brasileiros
são baianos.
4) Juízos particulares negativos (O): alguns S não são P. Por exemplo: Alguns homens
não são brasileiros. (…)
Relações entre os juízos. Juízos contraditórios são os que, referindo-se a uma situação
idêntica, um afirma e outro nega. São juízos contraditórios entre si o universal
afirmativo (A) e o particular negativo (O); e o universal negativo (E) e o particular
afirmativo (I), cuja relação contraditória é recíproca. ‘Todo S é P’ é contraditório de
‘alguns S não são P’, e reciprocamente” (Santos, Mário Ferreira dos. Lógica e dialética:
lógica, dialética, decadialética. São Paulo: Paulus, 2007. p. 51-52, destaques do
original).
7 O art. 944, parágrafo único, do CC/2002 (LGL\2002\400), segundo o qual: “Se houver
excessiva desproporção entre a gravidade da culpa e o dano, poderá o juiz reduzir,
equitativamente, a indenização”, é uma regra inovadora que, isoladamente, já mereceria
um trabalho autônomo para investigação de seu alcance e profundidade; no que diz
respeito aos danos morais, as relações possíveis são ainda mais complicadas,
justamente porque, como princípio, sequer existe a correlação tradicional entre dano e
reparação que é típica dos danos materiais. Em resumo — apenas para propor o
problema, dado que sua solução não é compatível com o objeto deste trabalho — como
reduzir equitativamente uma indenização que já é efetivamente fixada por equidade?
Haveria uma “equidade da equidade” nesses casos? Todas as variáveis são em tese
possíveis como resposta a esse problema, inclusive a própria negação da incidência
dessa regra aos danos morais, como afirmam — sem contudo desenvolver a ideia —
Judith Martins-Costa e Mariana Souza Pargendler, em relação ao caput do dispositivo
(segundo o qual “a indenização mede-se pela extensão do dano”), porque “nesse caso
[de dano moral] o que cabe é uma ponderação axiológica, traduzida em valores
monetários” (Usos e abusos da função punitiva — Punitive damages e o direito brasileiro.
Revista do CEJ 28/15-32).
8 Todo os trechos entre aspas foram retirados de Larenz, Karl. Metodologia da ciência do
direito. 4. ed. Trad. José Lamego. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2005. p.
433-438.
10 Embora não seja objeto deste trabalho discutir os critérios geralmente aceitos para o
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A ATUAÇÃO DO STJ NO EXAME DO JUSTO VALOR
COMPENSATÓRIO DOS DANOS MORAIS - Como
adicionar objetividade a partir de duas propostas de
método
Janeiro: Forense, 2003. vol. V, t. II, p. 354-355, destaque do original). Os danos morais
pela morte de ente querido, portanto, são diretos, porque titularizados por terceiro
alheio ao evento danoso.
13 A afirmação se refere à tutela ampla do direito pelo seu titular em nosso sistema
jurídico. Deve ser feita a ressalva, porém, de que há sistemas jurídicos que reconhecem
o dano pela perda da vida. Nesse sentido: “(…) o dano, em si e por si, não é nem
ressarcível nem irressarcível (nem ‘justo’, nem ‘injusto’). A decisão — ética, política e
filosófica, antes de jurídica — deverá ser tomada pela sociedade em que se dá o evento.
Assim é que há danos que são passíveis de indenização em determinados países e não o
são em outros, embora se trate de sistemas jurídicos da mesma família e muito
semelhantes entre si. É o que ocorre, por exemplo, com o chamado ‘dano morte’ ou
‘dano à perda da vida’, em relação ao qual não há, entre nós, qualquer compensação —
ao contrário do que ocorre, por exemplo, em Portugal” (Moraes, Maria Celina Bodin de.
Op. cit., p. 21-22).
14 Segundo Judith Martins-Costa (op. cit., p. 342-343), “em regra o dano estético é de
palmar constatação, mas o dano psíquico e o dano ao projeto de vida o são por
inferência: o juiz tem o dever de ponderar sobre o que ‘comumente acontece’; porém,
examinando todos os dados concretos, a singularidade da pessoa atingida, a vítima em
todas as suas circunstâncias”, acrescentando que caracteriza-se como atentado ao
projeto de vida “aqueles danos que impedem ou dificultam o livre desenvolvimento da
personalidade na carreira projetada, nos projetos que caracterizam cada pessoa na sua
singularidade, no seu próprio mundo — o de sua escolhas de vida” (grifos no original).
Por sua vez, Maria Celina Bodin de Moraes (op. cit., p. 310-311) sustenta que: “Cada
perda e cada dano deverão ser avaliados separadamente, valorizados em relação à
pessoa da vítima (pessoalmente, quase se poderia dizer), de modo que de nada servirá
produzir uma tabela, por assim dizer fixa, do que hoje se procura não chamar de ‘preço
da dor’. Claro está que, considerando todas as circunstâncias do caso concreto,
tampouco será possível afastar-se demais de algum valor médio, que será resultado da
repetição de valores atribuídos a casos semelhantes, controlados pela instância superior.
Esta perspectiva, também chamada de ‘abordagem consequencial’ da reparação do dano
moral, gera diversos efeitos no que se refere à valoração e à reparação dos danos à
pessoa humana. Assumir como centro da análise a consequência danosa, e não o fato ou
evento culposo, na reparação do dano moral, significa dar maior relevo aos bens
imateriais, distinguindo-os em diferentes ‘itens’ ou ‘situações’, o que permite,
considerando no máximo possível as singularidades da vítima, ressarcir com maior
justiça e mais adequadamente o que se sofreu (o que se perdeu) e contemplar as
atividades que se terá que deixar de realizar. Em outro exemplo, trazido também por
Perlingieri, considera-se especial o dano ao ouvido de um mergulhador que adora nadar,
mesmo que o faça amadoristicamente, ou para quem se dileta a ouvir música”.
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