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TECNOLOGIAS DO IMAGINÁRIO

Da cultura das
mídias à
cibercultura: o
advento do pós-
humano JÁ ESTÁ SE TORNANDO lugar-comum afirmar
que as novas tecnologias da informação
e comunicação estão mudando não
RESUMO apenas as formas do entretenimento
Este artigo trata da questão do desenvolvimento das e do lazer, mas potencialmente todas
tecnologias da informação e da comunicação e sua implicação as esferas da so ci e da de: o trabalho
em todas as esferas da sociedade. (robótica e tecnologias para escritórios),
gerenciamento político, atividades militares
ABSTRACT e policiais (a guerra eletrônica), consumo
This text discusses the evolution of information and communic (transferência de fundos ele trô ni cos),
ationtechnologies and its effect upon society. comunicação e educação (aprendizagem
a distância), enfim, estão mudando toda a
PALAVRAS-CHAVE (KEY WORDS) cultura em geral. Para Robins e Webster
- Tecnologias (Technologies) (1999, p. 111), se as forças do capital
- Complexidade (Complexity) corporativista e os interesses po lí ti cos
- Cultura das mídias (Media cultures) forem bem-sucedidos na introdução
sistemática dessas novas tecnologias – da
robótica aos bancos de dados, da internet
aos jogos de realidade virtual, então a vida
social será transformada em quase todos
os seus aspectos. O desenvolvimento
estratégico das tecnologias da informática
e comunicação terá, então, reverberações
por toda a estrutura social das sociedades
capitalistas avançadas.
Tendo em vista a relevância das
reverberações que já se fazem presentes
e da que las que estão por vir, tenho
defendido a idéia de que nós, intelectuais,
pesquisadores e mestres, devemos nos
dedicar à tarefa de gerar conceitos que
sejam capazes de nos levar a compreender
de modo mais efetivo as complexidades
com que a re a li da de em mutação nos
desafia. Este trabalho que aqui apresento
é parte do esforço que tenho desenvolvido
para ir ao encontro dessa tarefa. Prova
desse esforço está no meu livro recém-
lançado Culturas e Artes do Pós-Humano.
Lúcia Santaella Da cultura das mídias à cibercultura (2003).

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As idéias que apresentarei a seguir fazem 1 As formações socioculturais
parte dos argumentos que de sen vol vi
nesse livro. Para compreender essas passagens de
A bem da verdade, esse livro recente uma cultura à outra, que considero sutis,
funciona como uma espécie de segundo tenho utilizado uma divisão das eras
volume de um livro anterior, sob o título de culturais em seis tipos de formações: a
Cultura das Mídias, cuja primeira edição cultura oral, a cultura escrita, a cultura
foi lançada em 1992. Foi ousado para impressa, a cultura de massas, a cultura
aquela época o título escolhido. Ousado das mídias e a cultura digital. Antes de
não ape nas por que a palavra “mídias” tudo, deve ser de cla ra do que essas
ainda não havia se disseminado, mas divisões estão pautadas na convicção
prin ci pal men te porque devo confessar de que os meios de comunicação, desde
que, naquele momento, não tinha perfeita o aparelho fonador até as redes digitais
clareza do significado exato que estava atuais, não passam de meros canais
dando para a ex pres são “cul tu ra das para a transmissão de informação.
mídias”. Sabia que se tratava de formas Por isso mesmo, não devemos cair no
culturais com uma lógica distinta da cultura equívoco de julgar que as transformações
das massas, mas não podia ainda precisar culturais são devidas apenas ao advento
sua natureza com exatidão. Foi a leitura, de novas tecnologias e novos meios de
em 1997, do livro Culturas híbridas, de comunicação e cultura. São, isto sim, os
Néstor Garcia Canclini (pu bli ca do em tipos de signos que circulam nesses meios,
1990, com tradução brasileira de 1997) os tipos de mensagens e processos de
que trouxe uma primeira luz para precisar comunicação que neles se engendram
minhas idéias. Depois disso, a explosão os verdadeiros responsáveis não só por
cada vez mais impressionante das redes e moldar o pensamento e a sensibilidade
a emergência indisfarçável da cibercultura dos seres humanos, mas também por
ou cultura do virtual permitiram-me chegar propiciar o surgimento de novos ambientes
a uma noção mais clara do sentido que, socioculturais.
no início ainda obscuro, desejava imprimir Certamente, há algo de McLuhan
para a expressão “cultura das mídias”. nes sa minha postulação. Entretanto,
Hoje, com as idéias mais ajustadas, diferentemente de McLuhan, ou daquilo
posso definir com mais precisão o que que se passou a se considerar como sendo
tenho entendido por cultura das mídias. mcluh ni a no, creio que devemos tirar a
Ela não se confunde nem com a cultura ênfase que se costuma colocar nos meios e
de massas, de um lado, nem com a cultura nas mídias em si para trazer à baila outras
virtual ou cibercultura de outro. É, isto sim, determinações que tendem a ser ocultadas
uma cultura intermediária, situada entre pelo fetiche das mídias. Entre essas
ambas. Quer dizer, a cultura virtual não determinações, aquela que é central à
brotou diretamente da cultura de massas, comunicação e à cultura é a determinação
mas foi sendo semeada por processos da linguagem.
de produção, distribuição e consumo Nem mesmo McLuhan, com sua
comunicacionais a que chamo de “cultura célebre provocação O meio é a mensagem
das mídias”. Esses processos são distintos (1964), tão criticada há algumas décadas
da lógica massiva e vieram fertilizando e hoje trans for ma da em axioma para
gra da ti va men te o terreno sociocultural todos os “plugados”, chegou ao nível de
para o surgimento da cultura virtual ora em obliteração da linguagem que o fetiche das
curso. mídias tem alcançado. Ao contrário, com
sua afirmação, McLuhan estava justamente
se desviando da tendência comum nas

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teorias da comunicação de sua época, que cima, considerar que as mediações sociais
separavam, de um lado, o modo como a vêm das mídias em si é incorrer em uma
mensagem é transmitida, de outro lado, ingenuidade e equívoco epistemológicos
o conteúdo da mensagem. Ao colocar básicos, pois a mediação primeira não vem
ênfase nos meios, McLuhan insistia na das mídias, mas dos signos, linguagem e
impossibilidade de se separar a mensagem pensamento, que elas veiculam (Santaella,
do meio, pois a mensagem é determinada 1992 [2003a], p. 222-230).
muito mais pelo meio que a veicula do que O segundo aspecto fundamental que
pelas intenções de seu autor. Portanto, em o fe ti che das mídias oblitera encontra-
vez de serem duas funções separadas, o se no fato de que quaisquer mídias, em
meio é a mensagem (Lunenfeld, 1999a, p. função dos processos de comunicação que
130). propiciam, são inseparáveis das formas
Do mesmo modo que essa frase de de socialização e cultura que são capazes
McLuhan foi denegrida pelos amantes dos de criar, de modo que o advento de cada
conteúdos semânticos, sem que esses novo meio de comunicação traz consigo
crí ti cos tivessem se dado ao trabalho um ciclo cultural que lhe é próprio e que
de bem compreendê-la, hoje se fala fica impregnado de todas as contradições
de mídia de maneira atabalhoada, sem que caracterizam o modo de produção
a preocupação e compromisso com o econômica e as conseqüentes injunções
escrutínio das complexidades semióticas políticas em que um tal ciclo cultural toma
que as constituem. corpo. Considerando-se que as mídias são
Ora, mídias são meios, e meios, como conformadoras de novos ambientes sociais,
o pró prio nome diz, são simplesmente pode-se estudar sociedades cuja cultura se
meios, isto é, suportes materiais, canais molda pela oralidade, então pela escrita,
físicos, nos quais as linguagens se mais tarde pela explosão das imagens na
corporificam e através dos quais transitam. revolução industrial-eletrônica etc.
Por isso mesmo, o veículo, meio ou mídia Tendo isso em vista, cumpre ainda
de co mu ni ca ção é o componente mais alertar para uma outra questão. Embora
superficial, no sentido de ser aquele que a divisão que estabeleço de seis eras
primeiro aparece no processo comunicativo. culturais refira-se, de fato, a eras, prefiro
Não obstante sua relevância para o estudo também chamá-las de formações culturais
desse processo, veículos são meros canais, para transmitir a idéia de que não se trata aí
tecnologias que estariam esvaziadas de de períodos culturais lineares, como se uma
sentido não fossem as mensagens que era fosse desaparecendo com o surgimento
nelas se configuram. Conseqüentemente, da próxima. Ao contrário, há sempre um
processos co mu ni ca ti vos e formas de processo cumulativo de complexificação:
cultura que nelas se realizam devem uma nova formação comunicativa e cultural
pressupor tanto as diferentes linguagens vai se integrando na anterior, provocando
e sistemas sígnicos que se configuram nela reajustamentos e refuncionalizaçõe
dentro dos veículos em consonância com o s. É certo que alguns elementos sempre
potencial e limites de cada veículo quanto desaparecem, por exemplo, um tipo de
devem pressupor também as misturas entre suporte que é substituído por outro, como
linguagens que se realizam nos veículos no caso do papiro, ou um aparelho que
híbridos de que a televisão e, muito mais, a é substituído por outro mais eficiente, o
hipermídia são exemplares. caso do telégrafo. É certo também que,
Embora sejam responsáveis pelo em cada período histórico, a cultura fica
crescimento e multiplicação dos códigos sob o domínio da técnica ou da tecnologia
e lin gua gens, meios continuam sendo de comunicação mais recente. Contudo,
meios. Deixar de ver isso e, ainda por esse domínio não é suficiente para asfixiar

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os princípios semióticos que definem as quando se trata de interpretar fenômenos
formações culturais preexistentes. Afinal, cuja complexidade nos desafia, a paciência
a cultura comporta-se sempre como um do conceito é imprescindível. Isso não
organismo vivo e, sobretudo, inteligente, significa recusar o caráter congenitamente
com poderes de adaptação imprevisíveis e polissêmico dos nossos discursos, fruto da
surpreendentes. natureza complexa e contraditória tanto
A divisão em seis eras pode parecer das nossas mentes, de um lado, quanto
ex ces si va, mas, se não as levarmos daquilo que chamamos de realidade, do
em con si de ra ção, acabamos perdendo outro. Justamente o contrário, porque
especificidades importantes e reveladoras. sabemos que há uma imprecisão congênita
Por exem plo: a cultura impressa não em tudo que dizemos, nossos esforços,
nasceu diretamente da cultura oral. Foi tanto de observação empírica quanto de
antecedida por uma rica cultura da escrita clareza conceitual, devem se redobrar se
não alfabética. A memória dessas escritas pretendemos trazer alguma contribuição
trouxe gran des contribuições para a para a compreensão menos superficial da
visualidade da arte moderna. Ela sobrevive complexidade que nos rodeia.
na imaginação visual da profusão dos tipos
gráficos hoje existentes. Sobrevive ainda
nos processos diagramáticos do jornal, na 2 Da cultura das mídias à ciber-cultura
visualidade da poesia, no design atual de
páginas da Web. Enfim, de certa forma, Isso posto, passo a explicitar que
ela continua viva porque ainda se preserva fe nô me nos tenho designado com
na memória da espécie. Assim também, a expressão “cul tu ra das mídias”.
embora a grande maioria dos autores Fenômenos, aliás, que só pude melhor
esteja vendo a cibercultura na continuidade compreender après-coup, quando a cultura
da cultura de mas sas, considero que digital ou cibercultura decididamente se
o reconhecimento da fase transitória impôs. Por volta do início dos anos 80,
entre elas, a saber, o reconhecimento da começaram a se intensificar cada vez mais
cultura das mídias, é substancial para se os casamentos e misturas entre linguagens
compreender a própria cibercultura. e meios, misturas essas que funcionam
Com bastante imprecisão, muitos têm como um multiplicador de mí di as.
se referido a todo o complexo contexto Estas produzem mensagens híbridas
atual sob o nome de “cultura midiática”. como se pode encontrar, por exemplo,
Essa generalização cobre o território com nos suplementos literários ou culturais
uma cortina de fumaça. É claro que tudo especializados de jornais e revistas, nas
é mídia, até mesmo o aparelho fonador. revistas de cultura, no radiojornal, telejornal
Quais são elas, como se inserem na etc.
dinâmica social, em quais delas o capital Ao mesmo tempo, novas sementes
está investindo, como impõem sua lógica começaram a brotar no campo das mídias
ao conjunto da cultura? São todas questões com o surgimento de equipamentos
irrespondíveis se não fizermos o esforço e dis po si ti vos que possibilitaram o
de precisar nossos conceitos. A confusão apa re ci men to de uma cultura do
conceitual é proporcional à confusão dos disponível e do transitório: fotocopiadoras,
modos como nos aparecem os fatos que videocassetes e aparelhos para gravação
pretendemos com pre en der. O cultivo de vídeos, equipamentos do tipo walkman
da ambigüidade e o es prai a men to das e walktalk, acom pa nha dos de uma
neblinas de sentido são tarefas da poesia remarcável indústria de vi de o clips e
que nos traz maneiras de sentir e ver videogames, juntamente com a expansiva
que, sem ela, seriam impossíveis. Porém, indústria de filmes em vídeo para serem

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alugados nas videolocadoras, tudo isso p. 362-367) descreve em detalhes os
culminando no surgimento da TV a cabo. processos que, a meu ver, constituem
Essas tecnologias, equipamentos e as a cultura das mídias. Uma passagem,
linguagens criadas para circularem neles citada pelo autor, extraída de um artigo de
têm como principal característica propiciar F. Sabbah, escrito em 1985, é capaz de
a escolha e consumo individualizados, em sintetizar à perfeição o perfil identificador
oposição ao consumo massivo. São esses dessa formação cultural, como se segue:
processos comunicativos que considero
como cons ti tu ti vos de uma cultura das “Em resumo, a nova mídia determina
mídias. Foram eles que nos arrancaram uma audiência segmentada,
da inér cia da re cep ção de mensagens di fe ren ci a da que, embora maciça
impostas de fora e nos treinaram para a em termos de números, já não é
busca da informação e do entretenimento uma audiência de massa em termos
que desejamos encontrar. Por isso mesmo, de si mul ta nei da de e uniformidade
foram es ses meios e os processos de da mensagem re ce bi da. A nova
recepção que eles en gen dram que mídia não é mais mídia de massa
prepararam a sensibilidade dos usuários no sentido tradicional do envio de
para a chegada dos meios digitais cuja um número limitado de mensagens
marca principal está na busca dispersa, a uma audiência ho mo gê nea de
alinear, fragmentada, mas certamente uma massa. Devido à multiplicação de
busca individualizada da mensagem e da men sa gens e fontes, a própria
informação. audiência torna-se mais seletiva. A
A proliferação midiática, provocada audiência visada tende a escolher
pelo surgimento de meios cujas suas mensagens, assim aprofundando
mensagens tendem para a segmentação sua seg-mentação, intensificando
e di ver si fi ca ção, e a hibridização das o relacionamento individual entre o
mensagens, pro vo ca da pela mistura emissor e o receptor”.
entre meios, foram sin crô ni cas aos
acalorados debates dos anos 80 sobre 3 A cultura digital e a moeda
a pós-modernidade. Por isso mesmo, corrente da informação
em contraposição a alguns autores que
consideram a pós-modernidade como a Enfim, cultura de massas, cultura das
face identificadora da cibercultura, tenho mídias e cultura digital, embora convivam
concebido as discussões sobre a pós- hoje em um imenso caldeirão de misturas,
modernidade como sinais de alerta críticos apresentam cada uma delas caracteres
para um período de mudanças profundas que lhes são próprios e que precisam ser
que se insinuavam no seio da cultura e distinguidos, sob pena de nos perdermos
que, naquele momento, anos 80, estavam em um labirinto de confusões. Uma
sendo encubadas pela cultura das mídias e diferença gritante entre a cultura das mídias
pelo hibridismo tanto nas artes quanto nos e a cultura digital, por exemplo, está no fato
fenômenos comunicativos em geral que muito evidente de que, nesta última, está
essa cultura propicia. ocorrendo a convergência das mídias, um
Embora sem estabelecer as distinções fenômeno muito distinto da convivência das
da cultura das mídias em relação à cultura mídias típica da cultura das mídias.
de massas, de um lado, e a cultura digital, Se, de um lado, é preciso perceber
de outro, no capítulo sobre “A cultura da distinções, de outro lado essas distinções
virtualidade real”, no tópico sob o título não po dem nos levar a negligenciar o
de “A nova mídia e a diversificação da fato de que hoje vivemos uma verdadeira
au di ên cia de massas”, Castells (2000, con fra ter ni za ção geral de todas as

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formas de co mu ni ca ção e de cultura, dependem do computador e das redes de
em um caldeamento denso e híbrido: a telecomunicação, estes, na verdade, os
comunicação oral que ainda persiste com grandes pivôs de toda essa história.
força, a escrita, no design, por exemplo, a Diante disso, Lunenfeld (1999b)
cultura de massas que também tem seus deve estar com a razão quando diz que
pontos positivos, a cul tu ra das mídias, não importa o quanto as mídias digitais
que é uma cultura do dis po ní vel, e a podem, à primeira vista, assemelhar-se às
cibercultura, a cultura do acesso. Mas é a mídias analógicas - foto, cinema, vídeo etc.
convergência das mídias, na coexistência -, elas são fundamentalmente diferentes
com a cultura de massas e a cultura das delas. Por isso mesmo, os teóricos da
mídias, estas últimas em plena atividade, comunicação, cultura e sociedade devem
que tem sido responsável pelo nível de fazer um esforço para criar modelos de
exacerbação que a produção e circulação análise ade qua dos a essa emergência
da informação atingiu nos nossos dias que transcendam os modelos que eram
e que é uma das marcas registradas da aplicáveis a mídias anteriores e que
cultura digital. transcendam prin ci pal men te os refrões
De fato, como afirma Hayles (1996b, sobre consumo e recepção, típicos da era
p. 259, 270), a informação se tornou a televisiva.
grande palavra de ordem, circulando como Questões resultantes da maneira
moeda corrente. Genética, assuntos de como o computador está recodificando
guerra, en tre te ni men to, comunicações, as linguagens, as mídias, as formas de
produção de grãos e cifras do mercado arte e estéticas anteriores, assim como
financeiro es tão entre os setores da criando suas próprias, a relação entre
sociedade que passam por uma revolução imersão e velocidade, a dinâmica frenética
provocada pela en tra da no paradigma da WWW, com seus sites que pipocam e
informacional. Uma diferença significante desaparecem como flores no deserto, a
entre informação e bens du rá veis está vida ciborg, o potencial das tecnologias vs.
na replicabilidade. Informação não é uma a viabilidade do mercado, os mecanismos
quantidade conservada. Se eu lhe dou de distribuição, a dinâmica social dos
informação, você a tem e eu tam bém. usuários, a contextualização desses novos
Passa-se aí da posse para o acesso. Este processos de comunicação nas sociedades
difere da posse porque o acesso vasculha do capitalismo globalizado são alguns dos
padrões em lugar de presenças. temas que aparecem na ponta do iceberg,
É por essa razão que a era digital deixando entrever as complexidades que aí
vem sendo também chamada de cultura residem.
do acesso, uma formação cultural está Realmente, essas complexidades
nos colocando não só no seio de uma têm cha ma do a atenção de muitos
revolução técnica, mas também de uma estudiosos, tam bém no Brasil, onde
sublevação cultural cuja propensão é se alguns têm lançado alarmes críticos em
alastrar tendo em vista que a tecnologia relação às con se qü ên ci as filosóficas,
dos computadores tende a ficar cada vez psíquicas e político-sociais da era digital
mais barata. Do mi na da pelo microchip, (para nos limitarmos aos livros, ver, por
essa tecnologia dobra aproximadamente exemplo, Rüdiger, 2002; Trivinho, 1999,
de poder a cada 12 a 18 meses. À medida 2001), enquanto outros têm apresentado
que cresce seu poder, seu preço declina e panoramas detalhados das no vas
seu mercado aumenta. Esse crescimento paisagens ciber, colocando-nos a par das
é um indicador fun da men tal por que a raízes históricas e das linhas de força
produção, o arquivamento e a circulação comunicacionais e socioculturais que lhes
da moeda corrente da in for ma ção são próprias (ver, por exemplo, Lemos,

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2002a, 2002b; Costa 2002). No panorama “Nenhuma dessas três posições nos ajuda
internacional, o número de estudos sobre o a fazer sentido do que está acontecendo”,
assunto cresce assombrosamente a cada Heim conclui.
dia, o que torna praticamente impossível Para que possamos enfrentar
qualquer tentativa de levantamento do os de sa fi os do presente, ele propõe a
estado da arte dessa questão. O que se posição dialética de um realismo virtual
pode delinear, de modo muito simplificado, como posição mediadora entre o realismo
são algumas tendências que têm marcado ingênuo e o ide a lis mo das redes. “Só
esses estudos. assim se pode sustentar a oposição como
a polaridade que continuamente produz
as faíscas do diálogo, e o diálogo é a vida
4 Reações à ciberealidade do ciberespaço.” (ibid., p. 41) “O realismo
virtual vai ao encontro do destino sem
Uma avaliação detalhada das reações que ficar cego às perdas que o progresso traz.”
a ciberealidade tem provocado em seus (ibid., p. 45)
comentadores foi feita por Heim (1999, p. Esse texto de Heim está
31-45). Para ele, o impacto do computador prioritariamente voltado para uma avaliação
sobre a cultura e a economia tem dividido das posições, digamos, epistemológicas
os críticos em três tipos de reação. De um que têm sido assumidas frente ao mundo
lado, os realistas ingênuos. Estes tomam digital. O que fal ta nessa avaliação é
a re a li da de como aquilo que pode ser alguma indicação do conteúdo das críticas
experienciado imediatamente e alinham os que são levantadas pelos comentadores,
computadores com os poluidores que são sempre realistas, mas nem sempre tão
jogados no terreno da experiência pura, ingênuos quanto o retrato de Heim os
não mediatizada. Quando dá voz a suas pintou.
inquietações, o realista ingênuo faz soar A maioria das críticas está preocupada
alarmes que estão em agudo contraste com o fato - inolvidável - de que o mundo
com os bons augúrios dos idealistas das digital nasceu e cresce no terreno das
redes. Estes con si de ram o mundo das formações socioeconômicas e políticas do
redes o melhor dos mundos e apontam capitalismo globalizado. Do que reclamam
para os ganhos evolutivos da espécie. “São os críticos? Da separação que muitas
otimistas e, nos maus dias, exibem uma apreciações sobre a era digital estabelecem
felicidade preocupada.” Para o autor (ibid., en tre o mundo lá fora, esquecido, e o
p. 38), tanto os realistas ingênuos quanto mundo virtual, como se a turbulência
os idealistas são os dois lados da mesma social e política do nosso tempo - o conflito
moeda. “Enquanto o idealista avança com étnico, o ressurgimento do nacionalismo, a
otimismo sem reservas, o realista pisa para fragmentação urbana, a miséria e a fome
trás movido pelo desejo de nos assentar nas periferias do mundo - não tivesse nada
fora da tecnologia.” a ver com o espaço virtual (Robins, 2000,
Além dos realistas e idealistas, p. 79).
Heim encontra um terceiro grupo, o dos Querem, portanto, chamar atenção
céticos. Convictos de que as tentativas para a evidência de que, mesmo que o
para compreender o processo, não importa ciberespaço possa ser significantemente
quão inteligentes elas possam ser, são di fe ren te de outras mídias culturais,
inócuas, eles insistem que o ciberespaço seus pro gra mas, re a li da des virtuais e
está atra ves san do um processo de experiências dos usu á ri os estão tão
nascimento muito confuso. Trata-se de um firmemente en rai za dos no capitalismo
ceticismo que resulta em uma atitude de contemporâneo quanto qual quer outra
deixar acontecer para ver como é que fica. forma de cultura. “Aqueles que promovem

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seu caráter revolucionário muitas vezes se cultura contemporânea - trabalho, arte,
esquecem de considerar as dificuldades ciência e educação -, na verdade toda a
de se transcender formas e convenções gama de interações sociais, é impensável.”
culturais estabelecidas em tecnologias e (Aronowitz, 1995, p. 22) Buscar apagar
práticas culturais que se originam nessa essa re a li da de através da denegação
mesma cultura.” (Hayward, 1993, p. 187). implica, acima de tudo, uma recusa do
Não obstante a relevância dessas pensamento.
crí ti cas, não obstante também as A cibercultura, tanto quanto quaisquer
constatações ins pi ra das e iluminadoras outros tipos de cultura, são criaturas
de muitos da que les que, no dizer de humanas. Não há uma separação entre
Heim, não passam de idealistas, o que uma forma de cultura e o ser humano.
deve ser evitado, a meu ver, é a adesão Nós somos essas culturas. Elas moldam
aos extremos. Na me di da em que as nossa sensibilidade e nossa mente, muito
telecomunicações e os modos acelerados es pe ci al men te as tecnologias digitais,
de transporte estão fazendo o planeta com pu ta ci o nais, que são tecnologias
encolher cada vez mais, na medida mesma da inteligência, conforme foi muito bem
em que se esfumam os parâmetros de desenvolvido por Lévy e De Kerckhove.
tempo e espaço tradicionais, assume-se, Por isso mesmo, são tecnologias auto-
via de regra, que as tecnologias são a evolutivas, pois as má qui nas estão
medida de nossa salvação ou a causa de ficando cada vez mais inteligentes. Mas,
nossa perdição. De um lado, celebrações tanto quanto posso ver, não há por que
pós-modernas das tecnologias asseveram desenvolver medos apocalípticos a respeito
que estas são tão benéficas que serão disso. As máquinas vão ficar cada vez
ca pa zes de re a li zar proezas que os mais parecidas com o ser humano, e não
discursos humanistas nunca conseguiram o contrário. É nessa direção que caminham
atingir. De outro lado, elegias sobre a morte
as pesquisas atuais em computação. Mas,
da natureza e os perigos da automação e ao mesmo tempo, também não se trata de
desumanização contrariam as expressões desenvolver ideologias salvacionistas a
salvacionistas. respeito das tecnologias. Se elas são crias
nossas, inevitavelmente carregam dentro
de si nossas contradições e paradoxos.
5 Desafios do pós-humano Dentro desse espírito, as reflexões
que desenvolvi no livro buscam contribuir
No livro que publiquei recentemente, com sugestões de respostas às questões
Culturas e artes do pós-humano. Da cultura que estão no centro da atenção daqueles
das mídias à cibercultura, busquei evitar que têm sido movidos pelo desejo da
os ex tre mos. Nem esposar cegamente pesquisa sobre os temas do ciberespaço,
o “con su me ris mo” ou o apelo esnobe cibercultura e ciberarte: O que está
do high tech, de um lado, nem cair nos acontecendo à in ter fa ce ser humano-
lamentos nostálgicos, chorando a perda máquina e o que isso está significando
do paraíso, de outro. De resto, o lamento para as comunicações e a cul tu ra do
não traz nenhuma con se qü ên cia, além início do século 21? As respostas que
de soar histérico, es pe ci al men te neste encontro para essas perguntas, respostas
momento em que as novas relações entre são sempre tentativas em tempos de
a tecnologia e os humanos se tornaram incerteza, pretendem repensar o humano
sumamente complexas. “A tec no lo gia neste alvorecer do vir-a-ser tecnológico
não apenas penetra nos eventos, mas do mundo. É justamente da necessidade
se tornou um evento que não deixa nada desse repensamento que advém a
intocado. É um ingrediente sem o qual a expressão pós-humano. Os meios para

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isso vou buscar na história das novas 6). Vem daí a im por tân cia que tenho
tecnologias, da filosofia, da psicanálise, da dado às metamorfoses, no mais das
comunicação e semiótica e, sobretudo, da vezes invisíveis, do corpo humano e às
arte. transformações na sensibilidade que vêm
De fato, a arte, não a arte que se sendo exploradas pelos artistas.
con for ta no estabelecido, mas a arte Atendendo à sugestão de
que cria problemas, tem sido para mim o Featherstone e Burrows (1996, p. 2), não
território privilegiado para o exercício da são apenas as reconstituições da vida social
ousadia do pensamento que não teme e da cultura que procuro levar em conta,
abraçar sínteses, fazendo face aos enigmas mas também o impacto dessas mudanças
e desafios do emergencial, um território no corpo hu ma no. É nesse aspecto
privilegiado, en fim, para dar margem à que os de sen vol vi men tos tecnológicos
imaginação que ausculta o presente, nele apontam para as pos si bi li da des de
pressentindo o fu tu ro. É na ambiência formas de existência pós-humanas que,
conjectural de uma reflexão pouco servil à no seu visionarismo, Roy Ascott (2003a)
severidade das exigências superegóicas vem chamando de pós-bi o ló gi cas na
que tenho desenvolvido minhas idéias. emergência de uma era úmida (moist)
A hipótese que tem me norteado é que nascerá da junção do ser humano
que, em tempos de mutação, há que ficar molhado (wet) com o silício seco (dry),
perto dos artistas. Pelo simples fato de especialmente a partir do desenvolvimento
que, pa ra fra se an do Lacan, eles sabem das nanotecnologias que, bem abaixo da
sem saber que sabem. Semelhante a pele, passarão silenciosamente a interagir
este, há um dictum de Goethe que vale com as moléculas do corpo humano.
a pena mencionar: há um empirismo Estou ciente de que a expressão
da sensibilidade que se identifica muito “pós-humano” é perturbadora. De fato,
intimamente com o objeto e assim se torna, essa expressão pode trazer muitos mal-
propriamente falando, teoria. É, de fato, en ten di dos. O primeiro significado que
uma espécie de teoria não-verbal e poética costuma vir à mente das pessoas é o de
que os artistas criam na sua aproximação que o humano já era, foi-se, perdeu-se no
sensível dos enigmas do real. Por isso, golpe dos acontecimentos. Não se trata
sou movida pela convicção de que, nesta disso. O termo pós-humano vem sendo
entrada do terceiro ciclo evo lu ti vo da empregado especialmente por artistas ou
espécie (argumento de Donald, 1991), teóricos da arte e da cultura desde o início
te mos de prestar atenção no que os dos anos 90. A expressão tem sido usada
artistas estão fazendo. Pressinto que são para sinalizar as grandes transformações
eles que estão criando uma nova imagem que as novas tecnologias da comunicação
do ser humano no vórtice de suas atuais estão trazendo para tudo o que diz respeito
transformações. São os artistas que têm à vida humana, tanto no nível psíquico
nos colocado frente a frente com a face quanto social e antropológico. Há alguns
humana das tecnologias. autores que até defendem a idéia de
A rápida evolução do computador que se trata de um passo evolutivo da
com pa ra da com aquela de tecnologias espécie. Uso a expressão deliberada e
an te ri o res, quando contrastada com a estrategicamente para cha mar atenção
ausência de evolução na forma humana, para o fato de que não podemos nos furtar
levou o teórico e artista da realidade virtual à reflexão sobre as modificações por que o
Myron Krueger a prever que a interface ser humano vem passando, modificações
última entre o computador e as pessoas não apenas mentais, mas tam bém
estará vol ta da para o corpo humano e corporais, moleculares .
os sentidos humanos (apud Hillis, 1999:

Revista FAMECOS • Porto Alegre • nº 22 • dezembro 2003 • quadrimestral 31


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