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a) Móbil: organizado por Ega para homenagear Jacob Cohen, o Director do Banco
Nacional, de cuja mulher era amante, funcionando, ainda, como o primeiro
contacto de Carlos com a sociedade lisboeta.
c) Questões debatidas:
Traços representativos:
c.1.1. a crítica literária e os seus cânones: Alencar revela dois vícios da crítica
literária de conotações académicas: a mera preocupação com questões formais e a
obsessão com o plágio. Esgotados os argumentos, segue-se o ataque pessoal, a
injúria e a verdadeira cena de pugilato entre este e Ega, que, como Craft bem
observa, faz parte dos hábitos da crítica em Portugal.
c. 2 . as finanças nacionais:
«Para além, dos dois lados da tribuna real forrada de um baetão vermelho de mesas
de repartição, erguiam-se as duas tribunas públicas, com o feito de traves mal
pregadas como palanques de arraial. A da esquerda, vazia, por pintar, mostrava à luz
as fendas do tabuado. Na da direita, besuntada por fora de azul-claro, havia uma fila
de senhoras quase todas de escuro encostadas ao rebordo. […]»
◘ Caracterização do espaço social (pp. 315- 316): participam nas corridas a alta
burguesia e os burocratas do Estado, a aristocracia e o próprio Rei. Contudo, é flagrante
a percepção de que envergam sinais de um chique que não integra os seus hábitos de
sociabilidade e que não conseguem interpretar satisfatoriamente. Este facto revela-se,
sobretudo, no contraste entre a indumentária e a atitude das senhoras, que usavam
«vestidos sérios de missa», e a ocasião festiva em que tomam parte, com o recato
próprio de quem assiste a uma procissão do Senhor dos Passos. Também a sua lassidão
e carência de vitalidade física, sublimada na metáfora «é um canteirinho de camélias
meladas», parece sugerir a apatia que se vai apossando de todos e que impõe o tédio,
como expressão do desinteresse pelo próprio evento, como nota dominante, referida,
por exemplo, nas páginas 322 e 337.
Síntese: As corridas propiciam, de novo, uma visão panorâmica sobre a alta sociedade
lisboeta, perspectivada novamente por Carlos, em acrescido contacto com esse
universo social dominado pela monotonia e pela improvisação. No cenário que, em
princípio, devia ostentar a exuberância e o colorido normais num acontecimento
mundano como as corridas de cavalos, destaca-se a impressão dominante de um
provincianismo indesmentível, também evidente no desacordo entre o traje e a ocasião.
E isto é tanto mais significativo quanto é certo que o clima humano respirado no
hipódromo era, também ele, dominando por uma carência de vitalidade e motivação
evidentes. Para além destas características de conjunto patenteadas pelo cenário físico
e humano das corridas, verifica-se um desinteresse geral pelo próprio fenómeno
desportivo que elas constituem. Mas o acontecimento mais significativo ocorre quando
uma desordem estala mesmo junto à tribuna real, que põe a nu […] a contradição
entre o ser e o parecer, a inadequação da atmosfera cosmopolita e mundana das
corridas ao universo social português.1
1
Cf. REIS, Carlos, Introdução ao estudo de «Os Maias», Coimbra, Almedina, 1995, pp. 69-70.
A crónica de costumes em Os Maias, de Eça de Queirós
◘ Temas abordados:
◘ Espaço social: a classe política e os altos funcionários do Estado, representados pelo Conde
de Gouvarinho e por Sousa Neto, constituem-se como alvos principais da crítica demolidora que
no seio do episódio tem lugar e que resulta na constatação da visceral incultura, ignorância e
provincianismo dos mais altos dignatários do Estado, encarregues de governar o país.
A radical dispersão dos temas, aliada a pormenores grotescos como as falhas de
memória de Gouvarinho, incapaz de concluir um raciocínio, como de decifrar o alcance das
ironias de Ega, esbanjando, com ar grave, banalidades, ou a mediocridade de Sousa Neto
revelam bem a carência de visão histórica desta classe, a sua incapacidade cultural, facto que,
impedindo-a de argumentar e sustentar uma discussão inteligente, se revela nos juízos
formulados sobre:
Em síntese, como sugere Carlos Reis, «a contradição entre o ser e o parecer» constitui a
nota dominante do episódio, traduzindo, igualmente, a essência de Gouvarinho, «personagem
representativa da alta política e do poder instituído. Estamos perante o governante
periodicamente responsável, de acordo com as oscilações do rotativismo partidário, pelo destino
do país. Atravessando episodicamente o vasto universo da crónica social de Os Maias, é quase
sempre retratado de forma irónica: no teatro de São Carlos, pronunciando banalidades muito
acima dos homens; em sua casa, apertando as mãos muitas vezes, com calor, ao amante de sua
mulher, amante a quem chama o seu querido Maia, ou, nas corridas, abraçando-o ternamente
pela cintura; em sociedade, proclamando, de modo magistral, que ser prendada significa, para
uma mulher, mergulhar no idealismo medíocre, ou que a civilização das colónias portuguesas se
completaria com teatros líricos; finalmente, protestando surdamente contra o inofensivo lirismo
social. Em Gouvarinho, encontramos assim expressas as limitações fundamentais dos
políticos do constitucionalismo regenerador: a retórica oca, as escassas e medíocres
referências culturais, […] a imodéstia obtusa. Politicamente incompetente, o que nele
sobressai é a sua incapacidade de análise política e a sua mediocridade mental.»2 Do
mesmo modo, em Sousa Neto, típico burocrata, reconhecem-se a ignorância e a mediocridade,
mas também a verborreia e vaidade dos oficiais do Ministério de Instrução Pública.
«Não, nas revistas críticas: ou então nos jornais – que fossem jornais, não
papeluchos volantes, tendo em cima uma cataplasma de política em estilo mazorro
ou em estilo fadista, um romance mal traduzido do francês por baixo e o resto cheio
com anos, despachos, parte de polícia e lotaria da Misericórdia […] (p.575)».
♦ o desinteresse pelo evento literário, evidente na canseira que às senhoras desperta a ideia de
uma noite toda de «poesia e literatura» (p.595), e pelo debate ideológico (vd. p. 604);
♦ o desconhecimento da música de Beethoven, cuja «Sonata Patética» é equivocamente
designada de «Sonata Pateta»;
♦ o desinteresse ruidoso com que os presentes agraciam a actuação de Cruges, músico de talento,
que o país ignora. É notório o desrespeito pela sua figura e pela música que interpreta, de tal
modo que a progressiva desordem que se vai instalando o faz tocar as «notas em debandada» e é
com alívio que o público assiste ao fim da sua actuação;
♦ a lassidão, a monotonia e a sonolência que se vão apossando do público e o fazem debandar,
quando Prata, outro dos oradores do serão, se dispõe a falar sobre «o estado agrícola da província
do Minho» (vd. pp. 599, 601 e 605);
c3. o atropelo dos valores morais, uma vez que o sarau é também o microcosmo onde se
projecta a imoralidade da sociedade contemporânea, em que esposos e amantes se
cumprimentam cortesmente, no âmbito daquilo que Ega, ironicamente, designa de «bonito
mundo» (vd. p. 604);
c4. o provincianismo e a falta de requinte na organização do espaço (vd. pp. 601: « […] Um
cartão em grossas letras … anuncia um “intervalo de dez minutos” como num circo.»)