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Marguerite Duras
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Penso frequentemente nesta imagem que sou a única a ver ainda e de que
nunca falei. Está sempre aí no mesmo silêncio, deslumbrante. É, de todas, a que me
agrada de mim própria, onde me reconheço, onde me encanto.
Muito cedo na minha vida foi tarde de mais. Aos dezoito anos era já tarde de
mais. Entre os dezoito e os vinte e cinco anos o meu rosto partiu numa direção
imprevista. Aos dezoito anos envelheci. Não sei se é assim com toda a gente, nunca
perguntei. Parece-me ter ouvido falar dessa aceleração do tempo que nos fere por
vezes quando atravessamos as idades mais jovens, mais celebradas da vida. Este
envelhecimento foi brutal. Vi-o apoderar-se dos meus traços um a um, alterar a
relação que havia entre eles, tornar os olhos maiores, o olhar mais triste, a boca
mais definitiva, marcar a fronte de fendas profundas. Em vez de me assustar, vi
operar-se este envelhecimento do meu rosto com o interesse que teria, por exemplo,
pelo desenrolar de uma leitura. Sabia também que não me enganava, que um dia
ele abrandaria e retomaria o seu curso normal. As pessoas que me tinham
conhecido aos dezessete anos aquando da minha viagem a França ficaram
impressionadas quando me voltaram a ver, dois anos depois, aos dezenove anos.
Conservei esse novo rosto. Foi o meu rosto. Envelheceu ainda, evidentemente, mas
relativamente menos do que deveria. Tenho um rosto lacerado de rugas secas e
profundas, a pele quebrada. Não amoleceu como certos rostos de traços finos,
conservou os mesmos contornos mas a sua matéria está destruída. Tenho um rosto
destruído.
Tenho quinze anos e meio e não há estações neste país, estamos numa
estação única, quente, monótona, estamos na longa zona quente da terra, não há
Primavera, não há renovação.
me dos cursos de contabilidade para o meu irmão mais novo. A escola Universal,
todos os anos, em todos os níveis. É preciso recuperar, dizia a minha mãe. Durava
três dias, nunca quatro, nunca. Deixava-se a escola Universal quando se mudava de
posto. Recomeçava-se no seguinte. A minha mãe aguentou dez anos. Sem
resultado. O irmãozinho tornou-se um pequeno contabilista em Saigão. Como não
havia escola Violet na colónia, devemos-lhe a partida do meu irmão mais velho para
França. Durante alguns anos ficou em França para tirar o curso da escola Violet.
Não tirou. A minha mãe não se devia deixar iludir, mas não tinha alternativa, era
preciso separar aquele filho dos outros dois. Durante alguns anos deixou de fazer
parte da família. Foi na sua ausência que a minha mãe comprou a concessão.
Terrível aventura, mas para nós, os filhos que ficavam, menos terrível do que teria
sido a presença do assassino dos filhos da noite, da noite do caçador.
Muitas vezes me disseram que era o sol demasiado forte durante toda a
infância. Mas não acreditei. Disseram-me também que era a reflexão em que a
miséria mergulhava as crianças. Mas não, não é isso. As crianças-velhas da fome
endémica, sim, mas nós, não, nós não tínhamos fome, nós tínhamos vergonha, nós
vendíamos os móveis, mas não tínhamos fome, nós tínhamos um boy e comíamos
por vezes, é certo, porcarias, aves pernaltas, pequenos jacarés, mas essas
porcarias eram cozidas por um boy e servidas por ele e por vezes até as
recusávamos, dávamo-nos ao luxo de não querer comer. Não, passou-se qualquer
coisa quando tinha dezoito anos que fez este rosto acontecer-me. Devia ser de
noite. Tinha medo de mim, tinha medo de Deus. De dia, tinha menos medo e a morte
parecia menos grave. Mas não me deixava. Queria matar o meu irmão mais velho,
queria matá-lo, queria vencê-lo uma vez, uma vez só e vê-lo morrer. Era para tirar da
frente da minha mãe o objecto do seu amor, esse filho, castigá-la por o amar tanto,
tão mal, e sobretudo para salvar o meu irmão mais novo, acreditava que era também
isso, o meu irmão mais novo, o meu filho, da vida viva desse irmão mais velho a
pesar sobre a dele, desse véu negro sobre o dia, dessa lei representada por ele,
ditada por ele, um ser humano, e que era uma lei animal, e que a cada instante de
cada dia da vida daquele irmão mais novo trazia o medo a essa vida, medo que uma
vez atingiu o seu coração e o fez morrer.
Escrevi muito sobre esta gente da minha família, mas quando o fazia eles
ainda eram vivos, a mãe e os irmãos, e escrevi à volta deles, à volta destas coisas
sem ir ao centro delas.
A história da minha vida não existe. Isso não existe. Nunca há um centro. Não
há caminho, nem linha. Há vastos lugares onde se faz crer que havia alguém, não é
verdade, não havia ninguém. A história de uma pequeníssima parte da minha
juventude, escrevi-a já mais ou menos, enfim, quero dizer, dei uma idéia, falo
justamente desta, da travessia do rio. O que faço aqui é diferente, e semelhante.
Antes, falei dos períodos claros, dos que estavam iluminados. Aqui falo dos períodos
ocultos dessa mesma juventude, de certas dissimulações que teria operado sobre
certos factos, sobre certos sentimentos, sobre certos acontecimentos. Comecei a
escrever num meio que me impelia ao pudor. Escrever, para eles, era ainda moral.
Escrever, agora, dir-se-ia que muitas vezes já não é nada. Por vezes sei isto: que a
partir do momento em que escrever não é, todas as coisas confundidas, ir à
vacuidade e ao vento, escrever não é nada.
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Agora vejo que muito jovem, aos dezoito anos, aos quinze anos, tive esse
rosto premonitório daquele que apanhei depois com o álcool na meia-idade da
minha vida. O álcool preencheu a função que Deus não teve, teve também a de me
matar, de matar. Este rosto do álcool veio-me antes do álcool. O álcool veio
confirmá-lo. Tinha em mim o lugar para aquilo, soube-o como os outros mas,
curiosamente, antes da hora. Tal como tinha em mim o lugar do desejo. Tinha aos
quinze anos o rosto do prazer e não conhecia o prazer. Este rosto via-se muito.
Mesmo a minha mãe devia vê-lo. Os meus irmãos viam-no. Tudo começou para mim
desta maneira, por este rosto clarividente, extenuado, estes olhos pisados
adiantados ao tempo, aos factos.
É no decurso desta viagem que a imagem se teria destacado, que teria sido
roubada ao conjunto. Ela poderia ter existido, uma fotografia poderia ter sido tirada,
como outra, algures, noutras circunstâncias. Mas não foi. O objecto era demasiado
insignificante para a provocar. Quem se teria lembrado disso? Só poderia ser tirada
se alguém pudesse ter previsto a importância deste acontecimento na minha vida,
esta travessia do rio. Ora, enquanto esta se dava, ignorava-se até a sua existência.
Só Deus a conhecia. É por isso que esta imagem, e não podia ser de outra maneira,
não existe. Foi omitida. Foi esquecida. Não foi destacada, retirada ao conjunto. É a
este não ter sido feita que deve a sua virtude, a de representar um absoluto, de ser
justamente o seu autor.
Desço do carro. Vou à amurada. Olho o rio. A minha mãe dizia-me às vezes
que nunca, em toda a minha vida, voltarei a ver rios tão belos como aqueles, tão
grandes, tão selvagens, o Mékong e os seus braços que descem para os oceanos,
estes territórios de água que vão desaparecer nas cavidades dos oceanos. Na
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planura a perder de vista, estes rios vão depressa, vertem como se a terra se
inclinasse.
Como ele chegou até mim, esqueci. Não vejo quem mo teria dado. Creio que
foi a minha mãe que mo comprou e a meu pedido. Única certeza, eram saldos
saldados. Como explicar esta compra? Nenhuma mulher, nenhuma rapariga, usa um
chapéu de feltro de homem nesta colónia, nesta época. Nem nenhuma mulher
indígena. Isto é o que deve ter acontecido, experimentei este chapéu a brincar, olhei-
me no espelho do vendedor e vi: sob o chapéu de homem, a magreza ingrata, esse
defeito de infância, tornou-se outra coisa. Deixou de ser um dado brutal, fatal, da
natureza. Tornou-se, ao contrário, uma escolha que a contrariava, uma escolha do
espírito. Subitamente, essa magreza era escolhida. De repente vejo-me outra, como
outra seria vista, lá fora, posta à disposição de todos, à disposição de todos os
olhares, na circulação das cidades, das estradas, do desejo. Fico com o chapéu, já
não me separo dele, tenho isto, este chapéu que me faz só por si inteira, não o largo
mais. Quanto aos sapatos, deve ter sido mais ou menos a mesma coisa, mas depois
do chapéu. Contradizem o chapéu, como o chapéu contradiz o corpo frágil, logo são
bons para mim. Também já não os deixo, vou para todo o lado com estes sapatos,
este chapéu, para a rua, com qualquer tempo, em todas as ocasiões, vou para a
cidade.
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Encontrei uma fotografia do meu filho aos vinte anos. Está na Califórnia com
os seus amigos Erika e Elisabeth Lennard. É magro, tão magro, dir-se-ia um
ugandês branco. Também ele. Achei-lhe um sorriso arrogante, um pouco o ar de
quem se está nas tintas. Quer dar de si uma imagem desleixada de jovem
vagabundo. É assim que gosta de si, pobre, com esta expressão de pobre, este
andar desmanchado de jovem magro. É esta fotografia a que está mais próxima da
que não foi tirada à rapariga da barcaça.
A que comprou o chapéu cor-de-rosa de abas direitas e fita preta larga é ela,
essa mulher duma certa fotografia, é a minha mãe. Reconheço-a melhor ali do que
em fotografias mais recentes. É o pátio duma casa sobre o Pequeno Lago de Hanói.
Estamos juntos, ela e nós, seus filhos. Tenho quatro anos. A minha mãe está no
centro da imagem. Bem vejo como ela está mal sentada, como não sorri, como
espera que a fotografia acabe. Pelas suas feições cansadas, por uma certa
desordem da sua aparência, pela sonolência do seu olhar, sei que faz calor, que
está extenuada, que se aborrece. Mas é pela maneira como estamos vestidos, nós,
seus filhos, como uns infelizes, que reencontro um certo estado em que a minha
mãe por vezes caía e de que já, na idade que temos na fotografia, conhecemos os
sinais prenunciadores, essa maneira, justamente, que ela tinha, de repente, de já
não conseguir lavar-nos, de já não nos vestir, e por vezes mesmo de já não nos
alimentar. Este grande desencorajamento de viver, atravessava-o a minha mãe
todos os dias. Às vezes perdurava, às vezes desaparecia com a noite. Tive esta
sorte de ter uma mãe desesperada de um desespero tão puro que mesmo a
felicidade da vida, por mais viva que fosse, às vezes, não chegava a distraí-Ia
completamente. O que ignorarei sempre é o género de factos concretos que a
faziam todos os dias deixar-nos assim. Desta vez, talvez seja aquele disparate que
acaba de fazer, esta casa que acaba de comprar - a da fotografia - de que não
tínhamos qualquer necessidade e isto quando o meu pai está já muito doente, tão
perto de morrer, a poucos meses. Ou talvez tenha acabado de saber que está
também ela doente com a doença de que ele vai morrer? As datas coincidem. O que
ignoro, como ela devia ignorar, é a natureza das evidências que a trespassavam e
faziam surgir-lhe aquele desencorajamento. Era a morte do meu pai já presente, ou
a morte do dia? As dúvidas sobre aquele casamento? Aquele marido? Aqueles
filhos? Ou outra, mais geral, de tudo isto?
Era todos os dias. Disto tenho a certeza. Devia ser brutal. A um dado
momento do dia este desespero mostrava-se. Depois seguia-se a impossibilidade de
avançar ainda, ou o sono, ou por vezes nada, ou por vezes ao contrário as compras
de casas, as mudanças, ou por vezes este humor, só este humor, este abatimento
ou por vezes, uma rainha, tudo o que lhe pediam, tudo o que lhe ofereciam, esta
casa sobre o Pequeno Lago, sem qualquer razão, o meu pai já moribundo, ou este
chapéu de abas direitas, porque a pequena o queria tanto, ou estes sapatos de lamé
dourado ou idem. Ou nada, ou dormir, morrer.
Nunca vi nenhum filme com essas índias que usam estes mesmos chapéus
de aba direita e tranças caídas para o peito. Nesse dia também tenho tranças, não
as prendi ao alto como habitualmente faço, mas não são as mesmas. Tenho duas
longas tranças caídas para o peito como essas mulheres do cinema que nunca vi,
mas são tranças de menina. Desde que tenho o chapéu, para poder pô-lo, já não
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apanho o cabelo ao alto. Há já algum tempo que estico o cabelo com força, penteio-
o para trás, gostaria que fosse liso, que se visse menos. Todas as noites o penteio e
refaço as tranças antes de me deitar como a minha mãe me ensinou. Os meus
cabelos são pesados, flexíveis, dolorosos, uma massa acobreada que me chega aos
rins. Dizem muitas vezes que é o que tenho de mais bonito e eu acho que isso
significa que não sou bonita. Estes cabelos tão vistosos hei-de mandá-los cortar aos
vinte e três anos em Paris, cinco anos depois de ter deixado a minha mãe. Disse:
corte. Ele cortou. Tudo num único gesto, para desbastar, a tesoura fria roçou a pele
do pescoço. Caíram no chão. Perguntaram-me se os queria, que os embrulhavam.
Disse que não. Depois disso já não disseram que tinha um cabelo bonito, quer dizer
nunca mais o disseram com tanto ênfase, como antes me diziam, antes de o cortar.
Depois, diziam: tem um belo olhar. O sorriso também não está mal.
Poderia enganar-me, julgar que sou bonita como as mulheres bonitas, como
as mulheres olhadas, porque realmente me olham muito. Mas sei que não é uma
questão de beleza mas doutra coisa, por exemplo, de espírito. O que quero parecer,
pareço, bela também, se é o que querem que seja, bela ou bonita, bonita por
exemplo para a família, mas só para a família, posso ser tudo o que quiserem de
mim. E acreditam que sou. Acreditar que também sou encantadora. Desde que
acredite, que isso se torna verdade para quem me vê e quer que eu seja segundo o
seu gosto, também o sei. Assim, em plena consciência posso ser encantadora
mesmo se estou obcecada pela execução do meu irmão. Para a morte, uma única
cúmplice, a minha mãe. Digo a palavra encantadora como a diziam à minha volta, à
volta das crianças.
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Já sei muito. Sei uma coisa. Sei que não são os vestidos que fazem as
mulheres mais ou menos bonitas, nem os cuidados de beleza, nem o preço dos
cremes, nem a raridade, o preço dos enfeites. Sei que o problema está algures. Não
sei onde. Sei só que não está onde as mulheres julgam. Olho as mulheres nas ruas
de Saigão, nos postos do mato. Há-as muito belas, muito brancas, têm um cuidado
extremo com a sua beleza, sobretudo nos postos do mato. Não fazem nada,
guardam-se apenas, guardam-se para a Europa, os amantes, as férias em Itália, as
longas licenças de seis meses, de três em três anos; quando poderão finalmente
falar do que se passa aqui, desta existência colonial tão particular, do serviço desta
gente, destes boys, tão perfeitos, da vegetação, dos bailes, destas vivendas
brancas, grandes a ponto de nos perdermos nelas, onde estão alojados os
funcionários nos postos afastados. Esperam. Vestem-se para nada. Olham-se. Na
sombra dessas vivendas, olham-se para mais tarde, julgam viver um romance, têm
já longos armários cheios de vestidos a que não sabem que fazer, coleccionados
como o tempo, a longa seqüência dos dias de espera. Algumas ficam loucas.
Algumas são trocadas por uma jovem criada que se cala. Abandonadas. Ouve-se
esta palavra atingi-Ias, o barulho que faz, o barulho da bofetada que ele dá. Algumas
matam-se.
Não havia que atrair o desejo. Ele estava naquela que o provocava ou não
existia. Ou estava lá desde o primeiro olhar ou então nunca existira. Era a
inteligência imediata da relação de sexualidade ou então não era nada. Isso soube-o
eu antes do experiment.
Estou muito tempo sem ter vestidos meus. Os meus vestidos são uma
espécie de saco, feitos de antigos vestidos da minha mãe que são por sua vez uma
espécie de saco. À excepção dos que a minha mãe manda a Dó fazer-me. É a
governanta que nunca deixará a minha mãe mesmo quando ela voltar para França,
mesmo quando o meu irmão mais velho a tentar violar na casa do posto de Sadec,
mesmo quando já não lhe pagarem. Dó foi educada pelas freiras, borda e faz
pregas, cose à mão como já não se cose há séculos, com agulhas finas como
cabelos. Como ela borda, a minha mãe manda-a bordar lençóis. Como ela faz
pregas, a minha mãe manda-a fazer-me vestidos com pregas, vestidos com folhos,
uso-os como sacos, estão fora de moda, sempre infantis, duas filas de pregas à
frente e gola redonda ou nervuras na saia, ou folhos bordados em viés para armar à
alta costura. Uso estes vestidos como sacos, com cintos que os deformam, tornam-
se então eternos.
Quinze anos e meio. O corpo é delgado, quase frágil, seios de criança ainda,
pintada de rosa-pálido e vermelho. E depois esta vestimenta que podia fazer rir e de
que ninguém ri. Bem vejo que tudo se joga aí. Tudo se joga aí e nada está ainda
jogado, vejo-o nos olhos, tudo está já nos olhos. Quero escrever. Já o disse à minha
mãe: o que eu quero é isso, escrever. Não há resposta da primeira vez. E depois
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pergunta: escrever o quê? Digo livros, romances. Ela diz asperamente: depois do
curso de matemática escreves o que quiseres, já não tenho nada com isso. Ela é
contra, não é digno, não é trabalho, é uma brincadeira - dir-mo-á mais tarde: uma
idéia de criança.
Respondi-lhe que o que eu queria antes de tudo era escrever, mais nada,
nada. Está ciumenta. Não há resposta, um olhar breve logo desviado, o ligeiro
encolher dos ombros, inesquecível. Seria a primeira a partir. Será preciso esperar
ainda alguns anos para que ela me perca, para que perca esta, esta filha. Quanto
aos filhos não havia que temer. Mas esta, um dia, ela bem o sabia, partiria,
conseguiria sair. Primeira em francês. O reitor diz-lhe: a sua filha, minha senhora, é
a primeira em francês. A minha. mãe não diz nada, nada, descontente porque não
são os seus filhos que são os primeiros em francês, que chatice, minha mãe, meu
amor, pergunta: e em matemática? Dizem: ainda não é, mas há de lá chegar com o
tempo. A minha mãe pergunta: mas quando? Respondem: quando ela quiser, minha
senhora.
Minha mãe meu amor, meu incrível andar desengonçado com as meias de
algodão passajadas por Dô, nos trópicos e ainda julga que se tem de usar meias
para ser a senhora directora da escola, os seus vestidos lamentáveis, disformes,
remendados por Dó, vem ainda directa da sua quinta da Picardia povoada de
primas, usa tudo até ao fim, julga que é preciso merecer, merecer tudo, os sapatos,
os sapatos estão cambados, anda de lado, com uma dor de cão, os cabelos
esticados e apertados num carrapito de chinesa, faz-nos vergonha, faz-me vergonha
na rua diante do liceu, quando chega no seu B 12 diante do liceu toda a gente olha,
ela nunca se apercebe de nada, nunca, boa para meter no manicómio, bater, matar.
Olha-me, diz: talvez te consigas safar. Dia e noite essa idéia fixa. Não é que seja
preciso chegar a qualquer coisa, o que é preciso é sair da situação em que se está.
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O elo com a miséria está também no chapéu de homem porque lá terá de ser
que o dinheiro entre em casa, duma maneira ou de outra, terá de entrar. À volta dela
é o deserto, os filhos são o deserto, não farão nada, as terras salgadas também, o
dinheiro continuará perdido, acabou de vez. Resta aquela pequena que cresce e que
saberá talvez um dia como fazer entrar dinheiro naquela casa. É por esta razão,
embora não o saiba, que a mãe deixa a sua filha sair naquela figura de criança
prostituída. E é por isso também que a criança sabe já muito bem como fazer para
desviar a atenção que lhe dão a ela para a que ela dá ao dinheiro. Isso faz sorrir a
mãe.
A mãe não a impedirá de o fazer quando ela procurar dinheiro. A filha dirá:
pedi-lhe quinhentas piastras para o regresso a França. A mãe dirá que está bem,
que é quanto é preciso para se instalar em Paris, dirá: com quinhentas piastras já te
governas. A filha sabe que o que ela faz é o que a mãe teria escolhido que a sua
filha fizesse, se tivesse ousado, se tivesse força para tal, se o mal que essa idéia lhe
fazia não estivesse presente dia após dia, extenuante.
Nas histórias dos meus livros que se relacionam com a minha infância, já não
sei de repente o que evitei dizer, o que disse, creio ter dito o amor que tínhamos pela
nossa mãe mas não sei se disse o ódio que também lhe tínhamos e o amor que
tínhamos uns pelos outros e o ódio também, terrível, nesta história comum de ruína
e de morte que era a desta família em todos os casos, no do amor como no do ódio
e que escapa ainda ao meu completo entendimento, que me é ainda inacessível,
escondida no mais profundo da minha carne, cega como um recém-nascido no
primeiro dia. Ela é o lugar à entrada do qual o silêncio começa. O que aí se passa é
justamente o silêncio, este lento trabalho para toda a minha vida. Ainda estou lá,
diante destas crianças possessas, à mesma distância do mistério. Nunca escrevi,
julgando fazê-lo, nunca amei, julgando amar, nunca fiz nada senão esperar diante da
porta fechada.
estuários, já não vamos nem à floresta nem às aldeias das plantações de pimenta.
Tudo cresceu à nossa volta. Já não há crianças nem em cima dos búfalos nem em
parte alguma. Somos atingidos por uma sensação de estranheza e a mesma
lentidão que se apoderou da minha mãe apoderou-se também de nós. Não
aprendemos nada, a não ser a olhar a floresta, a esperar, a chorar. As terras baixas
estão definitivamente perdidas, os criados cultivam as parcelas de cima, deixamos-
lhes o arroz com casca, e eles ficam lá sem salário, aproveitam as boas palhotas
que a minha mãe mandou construir. Amam-nos como se fôssemos membros da sua
família, fazem como se guardassem o bungalow e guardam-no. Não falta nenhuma
peça do pobre serviço de louça. O telhado apodrecido pelas chuvas continua a
desaparecer. Mas os móveis estão limpos. E a forma do bungalow continua
inalterável como um desenho, visível da estrada. As portas são abertas todos os
dias para que o vento passe e seque a madeira. E fechadas à noite, aos cães
vadios, aos contrabandistas da montanha.
Como vêem, não é pois na cantina de Réam, como tinha escrito, que
encontro o homem da limusina preta, é depois do abandono da concessão, dois ou
três anos mais tarde, nesta luz de bruma e de calor.
É um ano e meio depois deste encontro que a minha mãe regressa a França
connosco. Venderá todos os seus móveis. Depois irá uma última vez à barragem.
Sentar-se-á na varanda face ao poente, olharemos ainda uma vez para o Sião, uma
última vez, nunca mais, mesmo quando ela deixar de novo a França, quando mudar
outra vez de idéias e voltar mais uma vez à Indochina para se reformar em Saigão,
nunca mais ela irá diante daquela montanha, diante daquele céu amarelo e verde
por cima daquela floresta.
Sim, dir-vos-ei ainda, já tarde na sua vida, ela recomeçou. Abriu uma escola
de língua francesa, a Nouvelle École Française, que lhe permitirá pagar uma parte
dos meus estudos e sustentar o filho mais velho enquanto viveu.
Diz-lhe que o chapéu lhe fica bem, muito bem mesmo, que é... original... um
chapéu de homem, porque não? Ela é tão bonita que se pode permitir tudo.
Ela olha-o. Pergunta-lhe quem ele é. Ele diz-lhe que regressa de Paris onde
fez os seus estudos, que vive também em Sadec, justamente junto ao rio, a grande
casa com grandes terraços de balaustradas de cerâmica azul. Ela pergunta-lhe o
que é que ele é. Ele diz-lhe que é chinês, que a sua família é originária da China do
Norte, de Fu-Chuen. Permite-me que a leve a sua casa, em Saigão? Ela concorda.
Ele diz ao motorista que tire as bagagens da rapariga do carro e as ponha no
automóvel preto.
Chinês. Pertence a essa minoria financeira de origem chinesa que detém todo
o imobiliário popular da colónia. Ele é aquele que passava no Mékong nesse dia em
direcção a Saigão.
embacia, mas só ligeiramente. Uma surdez muito ligeira também, um nevoeiro, por
todo o lado.
Não voltarei a fazer a viagem no carro dos indígenas. Doravante, terei uma
limusina para ir ao liceu e voltar ao pensionato. Jantarei nos sítios mais elegantes da
cidade. E estarei sempre a lamentar tudo o que faço, tudo o que deixo, tudo o que
agarro, o bom e o mau, o carro, o motorista do carro com quem ria, as velhas que
mascavam tabaco nos lugares de trás, as crianças no porta-bagagens, a família de
Sadec, o horror da família de Sadec, o seu silêncio genial.
Ele falava. Dizia que tinha saudades de Paris, das adoráveis parisienses, das
estúrdias, das farras, isso é que era vida, da Coupole, da Rotonde, eu da Rotonde
prefiro as boites, dessa vida "espantosa" que levara durante dois anos. Ela ouvia,
atenta às referências da conversa que podiam informá-la quanto à sua riqueza, que
teriam podido dar-lhe uma indicação sobre o montante dos milhões. Ele continuava
a contar. A mãe morrera, era filho único. Só lhe restava o pai detentor do dinheiro.
Mas sabe como é, vive agarrado ao cachimbo de ópio frente ao rio há dez anos,
gere a sua fortuna da cama. Ela diz que está a ver.
A imagem começa muito antes de ele ter abordado a menina branca junto da
amurada, no momento em que saiu da limusina preta, quando começou a
aproximar-se dela, e que ela, ela sabia, sabia que ele tinha medo.
Desde o primeiro instante ela sabe qualquer coisa deste género, ou seja, que
ele está à sua mercê. Logo, que outros além dele poderiam ficar também à sua
mercê, se a oportunidade surgisse. Sabe também outra coisa, que doravante
chegou sem dúvida o tempo em que não pode escapar a certas obrigações que tem
para consigo própria. E que a mãe não deve saber nada disso, nem os irmãos,
sabe-o também nesse dia. Desde que entrou no automóvel preto, soube-o, está à
margem daquela família pela primeira vez e para sempre. A partir daqui não devem
mais saber o que vier a ser dela. Que lha tirem, que lha levem, que lha magoem,
que lha estraguem, já não devem sabê-lo. Nem a mãe nem os irmãos. A partir daqui
cada um seguirá o seu destino. É já caso para choros na limusina preta.
A criança agora tem de se haver com este homem, o primeiro, o que surgiu
na barcaça.
Aconteceu muito depressa nesse dia, uma quinta-feira. Ele veio todos os dias
buscá-la ao liceu para a levar ao pensionato. E depois, uma vez, veio uma quinta-
feira à tarde ao pensionato. Levou-a no automóvel preto.
Então ele também não faz qualquer gesto, não se despe, diz que a ama como um
louco, di-lo muito baixo. Depois cala-se. Ela não lhe responde. Poderia responder-
lhe que não o ama. Não diz nada. De repente sabe, ali, nesse instante, sabe que ele
não a conhece, que nunca a conhecerá, que não tem maneira de conhecer tanta
perversidade. E ao fazer tantos e tantos desvios para a agarrar, não poderá nunca.
Cabe-lhe a ela saber. Sabe. A partir da ignorância dele, ela sabe de repente; já na
barcaça ele lhe agradava. Ele agrada-lhe, a coisa só dependia dela.
Ela diz-lhe: preferia que não me amasse. Mesmo que me ame gostaria que
fizesse como habitualmente faz com as mulheres. Ele olha-a como que apavorado,
pergunta: é isso que quer? Ela diz que sim. Ele começou a sofrer ali, no quarto, pela
primeira vez, já não mente acerca disso. Diz-lhe que já sabe que ela não o amará
nunca. Ela deixa-o dizer. Primeiro diz que não sabe, depois deixa-o dizer.
Ele diz-lhe que está só, atrozmente só, com esse amor que tem por ela. Ela
diz-lhe que também ela está só. Não diz com quê. Ele diz: seguiu-me até aqui como
teria seguido outro qualquer. Ela responde que não pode saber, que nunca seguiu
ninguém a quarto nenhum. Ela diz que não quer que lhe fale, o que ela quer é que
ele faça como habitualmente faz com as outras mulheres que leva àquele
apartamento. Pede-lhe que o faça assim.
E a chorar fá-lo. Primeiro há a dor. E depois esta dor é por sua vez possuída,
transformada, lentamente arrancada, levada até ao gozo, abraçada a ela. O mar,
sem forma, simplesmente incomparável.
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Não sabia que se deitava sangue. Ele pergunta-me se me doeu, digo-lhe que
não, ele diz ainda bem.
Ele lamenta-me, eu digo-lhe que não, que não sou de lamentar, que ninguém
o é, excepto a minha mãe. Ele diz-me: vieste porque tenho dinheiro. Digo-lhe que o
desejo assim com o seu dinheiro, que quando o vi ele já estava naquele carro,
naquele dinheiro, e que portanto não posso saber o que teria feito se fosse de outra
maneira. Ele diz: gostaria de te levar, partir contigo. Digo-lhe que não poderia ainda
deixar a minha mãe sem morrer de desgosto. Ele diz que decididamente não teve
sorte comigo, mas que de qualquer modo me dará dinheiro, que não me preocupe.
Deitou-se de novo. De novo nos calamos.
Lá fora o dia está no fim, sabemo-lo pelo barulho das vozes e pelos passos
cada vez mais numerosos, cada vez mais misturados. É uma cidade de prazer que
atinge o auge à noite. E a noite começa agora com o pôr do Sol.
A cama está separada da cidade por estas persianas, por este estore de
algodão. Nenhum material duro nos separa das outras pessoas. Eles, ignoram a
nossa existência. Nós, captamos qualquer coisa da sua, a soma das suas vozes,
dos seus movimentos, como uma sirena que lançasse um apelo quebrado, triste,
sem eco.
Disse-me que eu tinha dormido, que ele tomara um duche. Mal sentira o sono
vir. Ele acendeu um candeeiro numa mesa baixa.
Digo-lhe que venha, que deve possuir-me de novo. Ele vem. Cheira bem a
cigarro inglês, a perfume caro, cheira a mel, à força a sua pele apanhou o cheiro da
seda, da seda aromática do tussor de seda, do ouro, desejo-o. Digo-lhe este desejo
dele. Ele diz-me que espere um pouco. Fala-me, diz que soube logo, desde a
travessia do rio, que eu seria assim com o primeiro amante, que amaria o amor, diz
que sabe já que o hei-de enganar e também que hei-de enganar todos os homens
com quem virei a estar. Diz que, no seu caso, foi ele o instrumento da sua própria
infelicidade. Estou feliz por tudo o que ele me anuncia e digo-lho. Ele torna-se brutal,
está desesperado, deita-se a mim, come os seios de criança, grita, insulta. Fecho os
olhos àquele prazer tão forte. Penso: ele está habituado, é o que ele faz na vida,
amor, só isso. As mãos são experientes, maravilhosas, perfeitas. Tenho muita sorte,
é evidente, é como uma profissão que ele tivesse, sem o saber teria o saber exacto
do que se deve fazer, do que se deve dizer. Chama-me puta, porca, diz que sou o
seu único amor, e é isso que ele deve dizer e é isso que diz quando deixamos o
dizer fazer-se, quando deixamos o corpo fazer e procurar e encontrar e agarrar o
que ele quer, e aí tudo é bom, não há desperdícios, os desperdícios são cobertos de
novo, vai tudo na torrente, na força do desejo.
O ruído da cidade está tão próximo, tão perto, que o ouvimos roçar contra a
madeira das persianas. Ouvimos como se eles atravessassem o quarto. Acaricio o
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seu corpo neste ruído, nesta passagem. O mar, a imensidade que reagrupa, se
afasta, regressa.
Tinha-lhe pedido que o fizesse mais e mais. Que me fizesse aquilo. Fizera-o.
Fizera-o na untuosidade do sangue. E isso fora de morrer. Foi de morrer.
Ele acendeu um cigarro e deu-mo. E muito baixo contra a minha boca falou-
me.
Porque ele não sabe digo-lho por ele, em vez dele, porque ele não sabe que
traz em si uma elegância cardinal, digo-o por ele.
É a noite que chega agora. Diz-me que me lembrarei toda a vida desta tarde,
mesmo quando tiver esquecido até o seu rosto, o seu nome. Pergunto se me
lembrarei da casa. Ele diz-me: olha-a bem. Digo-lhe que é como qualquer outra. Ele
diz-me que sim, que é isso, como sempre.
que faziam? Digo-lhe que estávamos fora, que a miséria fizera ruir os muros da
família e que nos tínhamos encontrado todos fora de casa, cada um a fazer o que
queria. Estávamos desonrados. É assim que estou aqui contigo. Ele está em cima
de mim, abisma-se mais uma vez. Ficamos assim, pregados, a gemer no clamor da
cidade ainda exterior. Ainda o ouvimos. E depois deixamos de o ouvir.
Os beijos pelo corpo fazem chorar. Dir-se-ia que consolam. Em família não
choro. Neste dia neste quarto, as lágrimas consolam do passado e também do
futuro. Digo-lhe que um dia me separarei da minha mãe, que mesmo para a minha
mãe um dia já não terei amor. Choro. Ele põe a cabeça sobre mim e chora de me
ver chorar. Digo-lhe que na minha infância a desgraça da minha mãe ocupou o lugar
do sonho. Que o sonho era a minha mãe e nunca as árvores de Natal, sempre só
ela, quer seja a mãe em carne viva da miséria ou a outra, fora de si, que fala no
deserto, quer seja a que tenta arranjar comida ou a outra que interminavelmente
conta o que lhe aconteceu a ela, Marie Legrand de Roubaix, ela fala da sua
inocência, das suas economias, da sua esperança.
Peço-lhe que me diga como é que o pai é rico, de que maneira. Ele diz que o
aborrece falar de dinheiro, mas que se eu insisto ele está disposto a dizer-me o que
sabe da fortuna do pai. Tudo começou em Cholen, com os compartimentos para
indígenas. Mandou construir trezentos. Várias ruas lhe pertencem. Fala francês com
um sotaque parisiense ligeiramente forçado, fala do dinheiro com uma desenvoltura
sincera. O pai tinha prédios que vendeu para comprar terrenos de construção, ao sul
de Cholen. Foram também vendidos arrozais, julga ele, em Sadec. Faço-lhe
perguntas sobre as epidemias. Digo-lhe que vi ruas inteiras de compartimentos
interditos, de um dia para o outro, portas e janelas pregadas, por causa da epidemia
20
da peste. Ele diz-me que há menos aqui, que as desratizações são muito mais
freqüentes do que no mato. De repente conta-me uma grande história sobre os
compartimentos. O seu custo é muito menos elevado do que o dos prédios ou das
moradias individuais e respondem muito melhor às necessidades dos bairros
populares do que as habitações separadas. A população aqui gosta de estar junta,
sobretudo esta população pobre que vem do campo e também gosta de viver ao ar
livre, na rua. Não se deve destruir os hábitos dos pobres. O pai acaba justamente de
fazer uma série de compartimentos com galerias cobertas que dão para a rua. Isso
torna as ruas muito claras, muito aprazíveis. As pessoas passam os dias nessas
galerias exteriores. Também lá dormem quando faz muito calor. Digo-lhe que eu
também teria gostado de morar numa galeria exterior, que quando era criança isso
me parecia ideal, dormir ao ar livre. Subitamente tenho uma dor. Mal a sinto, é muito
leve. É o bater do coração deslocado para ali, para a ferida viva e fresca que ele me
fez, ele, aquele que me fala, aquele que fez o prazer desta tarde. Já não ouço o que
ele diz, já não escuto. Ele vê, cala-se. Digo-lhe que continue a falar. Assim faz.
Escuto de novo. Diz que pensa muito em Paris. Acha que sou diferente das
parisienses, muito menos delicada. Digo-lhe que aquele negócio dos
compartimentos não deve ser assim tão rentável. Ele já não me responde.
Digo-lhe que a sua estada em França lhe foi fatal. Ele concorda. Diz que em
Paris comprou tudo, as mulheres, os conhecimentos, as idéias. Tem mais doze anos
do que eu e isso assusta-o. Ouço como ele fala, como se engana, como me ama
também, numa espécie de teatralidade simultaneamente convencional e sincera.
Digo-lhe que o vou apresentar à minha família, ele quer fugir e eu rio.
Ele não pode exprimir os seus sentimentos a não ser pela paródia. Descubro
que ele não tem força de me amar contra o seu pai, de ficar comigo, de me levar.
Chora muitas vezes porque não encontra forças para amar para além do medo. O
seu heroísmo sou eu, o seu servilismo é o dinheiro do pai.
Quando falo dos meus irmãos cai logo nesse medo, fica como que
desmascarado. Julga que toda a gente à minha volta espera o seu pedido de
casamento. Sabe que está já perdido aos olhos da minha família, que para ela não
pode senão perder-se ainda mais e perder-me a mim em consequência.
Diz que foi tirar um curso comercial a Paris, diz finalmente a verdade, que não
fez nada, que o pai lhe cortou a mesada, que lhe mandou o bilhete de regresso, que
foi obrigado a deixar a França. Este regresso é a sua tragédia. Não acabou o curso
dessa escola comercial. Diz que pensa acabá-lo aqui com lições por
correspondência.
convidar para os grandes restaurantes chineses que eles não conhecem, onde
nunca foram.
Estas noites passam-se todas da mesma maneira. Os meus irmãos nunca lhe
dirigem a palavra. Nem sequer para ele olham. Não podem olhá-lo. Não seriam
capazes de o fazer. Se pudessem fazer isso, o esforço de o ver, seriam capazes
também de fazer os seus estudos, de se vergar às regras elementares da vida em
sociedade. Durante estes jantares só a minha mãe fala, fala muito pouco, sobretudo
os primeiros tempos, diz algumas frases sobre os pratos que trazem, sobre o seu
preço exorbitante, e depois cala-se. Ele, das duas primeiras vezes, atira-se de
cabeça, tenta abordar o tema das suas aventuras de Paris, mas em vão. É como se
ele não tivesse falado, como se não tivessem ouvido. Os meus irmãos continuam a
devorar. Devoram como nunca vi ninguém devorar em parte alguma.
Paga. Conta o dinheiro. Pousa-o no pires. Toda a gente olha. Da primeira vez,
lembro-me, alinha setenta e sete piastras. A minha mãe está prestes a ter um ataque
de riso. Levantamo-nos para sair. Não há um obrigado, de ninguém. Nunca se diz
obrigado pelo óptimo jantar, nem adeus até qualquer dia, nem como está, nunca se
diz nada.
Os meus irmãos nunca lhe dirigem a palavra. É como se não o vissem, como
se não fosse suficientemente denso para ser perceptível, visto, ouvido por eles. Isso
porque ele está aos meus pés, que parte do princípio de que não o amo, que estou
com ele por dinheiro, que não posso amá-lo, que é impossível, que ele poderia
suportar tudo de mim sem chegar nunca ao limite desse amor. E isso porque é um
chinês, não é um branco. A maneira que aquele irmão mais velho tem de se calar e
de ignorar a existência do meu amante deriva de uma tal convicção que é exemplar.
Seguimos todos o exemplo do irmão mais velho face àquele amante. Também eu, à
frente deles, não falo com ele. Na presença da minha família não devo nunca dirigir-
lhe a palavra. Salvo quando lhe transmito um recado da parte deles, então sim. Por
exemplo depois do jantar, quando os meus irmãos me dizem que querem ir beber e
dançar à Source, sou eu que lhe digo que queremos ir à Source beber e dançar.
Primeiro faz como se não tivesse ouvido. E eu, na lógica do meu irmão mais velho,
não devo repetir o que acabo de dizer, reiterar o meu pedido, se o fizesse, seria um
erro, condescenderia com a sua queixa. Acaba por me responder. Em voz baixa que
pretenderia ser íntima, diz que gostaria muito de estar só comigo por um momento.
Di-lo para pôr fim ao suplício. Nessa altura, devo ouvi-lo ainda mal, como uma
traição mais, como se assim ele quisesse acusar o golpe, denunciar a conduta do
meu irmão mais velho a seu respeito, portanto, devo continuar a não lhe responder.
Ele continua ainda, diz-me, atreve-se: a sua mãe está cansada, olhe para ela. Com
efeito a nossa mãe cai de sono no fim dos jantares fabulosos dos chineses de
Cholen. Continuo a não responder. É então que ouço a voz do meu irmão mais
velho, ele diz uma frase muito curta, cortante, definitiva. A minha mãe dizia dele: dos
três, é ele o que melhor fala. Tudo pára: reconheço o medo do meu amante, é o
mesmo do meu irmão mais novo. Ele não resiste. Vamos à Source. A minha mãe
também vai à Source, vai adormecer na Source.
Na presença do meu irmão mais velho ele deixa de ser meu amante. Não
deixa de existir mas já não é nada. Torna-se terra queimada. O meu desejo obedece
22
ao meu irmão mais velho, rejeita o meu amante. Sempre que os vejo juntos, julgo
nunca mais poder suportar essa visão. O meu amante é negado justamente no seu
corpo fraco, nessa fraqueza que me arrebata de prazer. Perante o meu irmão ele
torna-se um escândalo inconfessável, um motivo de vergonha que é preciso
esconder. Não posso lutar contra aquelas ordens mudas do meu irmão. Posso,
quando se trata do meu irmão mais novo. Quando se trata do meu amante não
posso nada contra mim própria. Só de falar nisso agora me vem à lembrança a
hipocrisia da expressão, do ar distraído de alguém que olha para outro sítio, que tem
mais em que pensar mas que, no entanto, vê-se pelos maxilares ligeiramente
cerrados, está irritado e sofre por ter de suportar aquilo, aquela indignidade, só para
comer bem, num restaurante caro, o que deveria ser perfeitamente natural. À volta
da recordação, a claridade lívida de noite do caçador tem um som estridente de
alerta, de grito de criança.
Mandamos todos vir Martel Perrier. Os meus irmãos bebem o deles imediatamente e
mandam vir outro. A minha mãe e eu damos-lhes os nossos. Os meus irmãos
depressa ficam bêbados. Nem por isso falam com ele, mas caem na recriminação.
Sobretudo o meu irmão mais novo. Queixa-se de que o sítio é triste e não tem
pegas. Há muito pouca gente nos dias de semana na Source. Danço com ele, com o
meu irmão mais novo. Danço também com o meu amante. Nunca danço com o meu
irmão mais velho, nunca dancei com ele. Sempre impedida pela sensação
perturbante de um perigo, o dessa atracção maléfica que ele exerce sobre todos, o
da aproximação dos nossos corpos.
O Chinês de Cholen fala-me, está à beira das lágrimas, diz: o que é que eu
lhes fiz. Digo-lhe que não se deve preocupar, que é sempre assim, também entre
nós, em todas as circunstâncias da vida.
Nunca bom dia, boa noite, bom ano. Nunca obrigado. Nunca falar. Nunca
necessidade de falar. Tudo fica mudo, longe. É uma, família de pedra, petrificada
numa espessura sem qualquer acesso. Todos os dias tentamos matar-nos, matar.
Não só não nos falamos como não nos olhamos. A partir do momento em que somos
vistos, não podemos olhar. Olhar é ter um movimento de curiosidade para, por, é
descer. Nenhuma pessoa olhada vale o olhar sobre ela. É sempre desonroso. A
palavra conversa é banida. Creio que é ela que melhor aqui reflecte a vergonha e o
orgulho. Qualquer comunidade, seja ela familiar ou outra, é-nos odiosa, degradante.
Estamos juntos numa vergonha de princípio que é ter de viver a vida. É aí que
estamos no mais profundo da nossa história comum, a de sermos os três filhos
23
daquela pessoa de boa fé, a nossa mãe, que a sociedade assassinou. Estamos do
lado dessa sociedade que reduziu a minha mãe ao desespero. Por causa do que
fizeram à nossa mãe tão simpática, tão confiante, odiamos a vida, odiamo-nos.
A nossa mãe não previa aquilo em que nos tornámos a partir do espectáculo
do seu desespero, falo sobretudo dos rapazes, dos filhos. Mas tivesse-o ela previsto,
como poderia ter calado o que se tornara a sua própria história? Fazer mentir o seu
rosto, o seu olhar, a sua voz? O seu amor? Poderia ter morrido. Suprimir-se.
Dispersar aquela comunidade invivível. Fazer com que o mais velho fosse
completamente separado dos dois mais novos. Não o fez. Foi imprudente,
inconsequente, irresponsável. Foi tudo isso. Viveu. Amámo-la os três para além do
amor. Por isso mesmo, por ela não ter podido, porque não podia calar-se, esconder,
mentir, por muito diferentes que tenhamos sido os três, amámo-la da mesma
maneira.
Foi muito tempo. Durou sete anos. Começou tínhamos dez anos. E depois
fizemos doze anos e depois treze anos. E depois catorze anos, quinze anos. E
depois dezasseis anos, dezassete anos.
Durou todo este tempo, sete anos. E depois finalmente a esperança foi
deixada. Foi abandonada. Abandonadas também as tentativas contra o oceano. À
sombra da varanda olhamos a montanha de Sião, muito escura em pleno sol, quase
negra. A mãe está finalmente calma, emparedada. Nós somos crianças heróicas,
desesperadas.
nenhuma sepultura, nenhuma memória. Só ela. O irmão mais velho continuará a ser
um assassino. O irmão mais novo morrerá por causa desse irmão. Eu parti,
arranquei-me. Até à sua morte, o irmão mais velho teve-o só para ele.
O irmão responde à mãe, diz-lhe que tem razão em bater na criança, a voz
dele é velada, íntima, acariciadora, diz-lhe que têm de saber a verdade seja a que
preço for, que têm de saber para impedir que essa menina se perca, para impedir
que a mãe fique desesperada com essa perdição. A mãe bate com toda a força. O
irmão mais novo grita à mãe que a deixe em paz. Vai para o jardim, esconde-se, tem
medo que eu morra, tem medo, tem sempre medo desse desconhecido, o nosso
irmão mais velho. O medo do irmãozinho acalma a minha mãe. Chora pelo desastre
da sua vida, pela sua filha desonrada. Choro com ela. Minto. Juro pela minha vida
que não me aconteceu nada, nem sequer um beijo. Como é que tu queres, digo eu,
com um chinês, como é que tu queres que eu faça isso com um chinês, tão feio, tão
enfezado? Sei que o irmão mais velho está colado à porta, escuta, sabe o que a
minha mãe está a fazer, sabe que a miúda está nua, e espancada, gostaria que
durasse mais e mais até ao perigo. A minha mãe não ignora esse desejo do meu
irmão mais velho, obscuro, aterrador.
todo o lado. O mais novo, por assistir impotente a este horror, a esta disposição do
irmão mais velho.
Creio que só do filho mais velho a minha mãe dizia: o meu filho. Chamava-lhe
algumas vezes assim. Dos outros dois dizia: os mais novos.
A ele também lhe acontecia rir, às vezes, mas nunca tanto como nós.
Esqueço tudo, esqueço-me de dizer isso, que éramos crianças risonhas, o meu
irmãozinho e eu, gostávamos de rir até perder o fôlego, a vida.
Vejo a guerra com as mesmas cores que a minha infância. Confundo o tempo
da guerra com o reinado do meu irmão mais velho. É também sem dúvida porque é
durante a guerra que o meu irmão mais novo morre: o coração, como já disse,
cedera, abandonado. O irmão mais velho, creio bem nunca o ter visto durante a
guerra. Já não me importava saber se estava vivo ou morto. Vejo a guerra como ela
era, a espalhar-se por todo o lado, penetrar em todo o lado, roubar, meter na prisão,
estar em toda a parte, sempre ali, misturada com tudo, enredada, presente no corpo,
no pensamento, na vigília, no sono, o tempo todo, presa da paixão embriagante de
ocupar o território adorável do corpo da criança, do corpo dos menos fortes, dos
povos vencidos, isto porque o mal está aí, à porta, contra a pele.
Às vezes não vou dormir ao pensionato, durmo junto dele. Não quero dormir
nos seus braços, no seu calor, mas durmo no mesmo quarto, na mesma cama. Às
vezes falto ao liceu. Vamos comer à cidade à noite. Ele dá-me banho com o
chuveiro, lava-me, enxagua-me, adora, pinta-me e veste-me, adora-me. Sou a
favorita da sua vida. Vive no pânico de que eu encontre outro homem. Eu não tenho
medo de nada do género, nunca. Tem também outro medo, não porque eu seja
branca, mas porque sou tão nova, tão nova que ele poderia ser preso se
descobrissem a nossa história. Diz-me que continue a mentir à minha mãe e
sobretudo ao meu irmão mais velho, que não diga nada a ninguém. Continuo a
mentir. Rio-me do seu medo. Digo-lhe que somos demasiado pobres para que a
mãe possa sequer pôr um processo, que além disso todos os processos que ela
moveu, perdeu-os, contra o cadastro, contra os administradores, contra os
governadores, contra a lei, ela não sabe conduzi-los, manter a calma, esperar,
esperar mais, não pode, grita e deita a perder as suas possibilidades. Com este
seria a mesma coisa, não vale a pena ter medo.
Mallarméen, no original.
Marie-Claude Carpenter. Eu olhava muito para ela, quase o tempo todo, ela ficava
constrangida mas eu não me podia conter. Olhava-a para descobrir, descobrir quem
era, Marie-Claude Carpenter. Porque estava ali e não noutro lado, porque era de tão
longe, de Boston, porque era rica, porque ignorávamos rigorosamente tudo sobre
ela, ninguém, nada, porquê essas recepções como que forçadas, porquê, porquê
nos seus olhos, dentro, muito ao longe, no fundo da vista essa partícula de morte,
porquê? Marie-Claude Carpenter. Por que tinham os seus vestidos todos em comum
um não sei quê que escapava, que os fazia não exactamente seus, mas que
poderiam ter vestido da mesma maneira um outro corpo. Vestidos neutros, estritos,
muito claros, brancos como o Estio no coração do Inverno.
pelas traças, velhas lontras, a sua beleza é assim, rasgada, friorenta, soluçante, e
de exílio, nada lhe fica bem, tudo é grande de mais para ela, e é bonito, ela bóia,
demasiado magra, nada se lhe ajusta e, no entanto, é bonito. É feita assim, na
cabeça e no corpo, de modo que cada coisa que a toca participa desde logo,
indefectivelmente, dessa beleza.
Ela recebia, Betty Fernandez, tinha um dia. Fomos lá umas vezes. Uma vez
estava Drieu Ia Rochelle. Sofria visivelmente de orgulho, falava pouco para não
condescender, numa voz dobrada, numa língua como que traduzida, incómoda.
Talvez também lá estivesse Brasillach, mas não me lembro, tenho muita pena.
Nunca estava Sartre. Havia poetas de Montparnasse, mas já não sei nenhum nome,
nem nada. Não havia alemães. Não se falava de política. Falava-se de literatura.
Ramon Fernandez falava de Balzac. Tê-lo-íamos escutado até ao fim das noites.
Falava com um saber quase completamente esquecido, de que não devia ter ficado
quase nada de completamente verificável. Dava poucas informações, dava antes
opiniões. Falava de Balzac como o faria de si próprio, como se tivesse uma vez
experimentado ser, ele também, isso mesmo, Balzac. Ramon Fernandez tinha uma
civilidade sublime até no saber, um modo ao mesmo tempo essencial e transparente
de se servir do conhecimento, sem nunca fazer sentir a sua obrigação, o peso. Era
uma pessoa sincera. Era sempre uma festa encontrá-lo na rua, no café, ficava
contente por nos ver, e era verdade, cumprimentava-nos com prazer. Bom dia tem
passado bem? Isto à inglesa, sem vírgula, num riso e no tempo desse riso a própria
guerra se tornava uma brincadeira assim como todo o sofrimento forçado que
decorria dela, tanto a Resistência como a Colaboração, a fome como o frio, o
martírio como a infâmia. Ela só falava nas pessoas, Betty Femandez, das que via na
rua ou das que conhecia, de como estavam, das coisas que ainda havia para vender
nas montras, das distribuições dos suplementos de leite, de peixe, das soluções que
mitigavam as faltas, o frio, a fome constante, estava sempre no pormenor prático da
existência, mantinha-se ali, sempre com uma amizade atenta, muito fiel e muito
terna. Colaboradores, os Femandez. E eu, dois anos depois da guerra, membro do
PCF. A equivalência é absoluta, definitiva. É a mesma coisa, a mesma piedade, o
mesmo pedido de socorro, a mesma debilidade do juízo, a mesma superstição,
digamos, que consiste em acreditar na solução política do problema pessoal.
Também ela, Betty Femandez, olhava as ruas vazias da ocupação alemã, olhava
Paris, as praças de orquídeas em flor como essa outra mulher, Marie-Claude
Carpenter. Tinha também os seus dias de receber.
o dia, deixa-se correr o serão um pouco como se quiser, como querem as jovens
vigilantes. Somos as únicas brancas do pensionato do Estado. Há muitas mestiças,
a maior parte delas foram abandonadas pelo pai, soldado ou marinheiro ou pequeno
funcionário da alfândega, dos postos, das obras públicas. A maioria vem da
Assistência. Também há algumas cabritas. Hélène Lagonelle acredita que o Governo
francês as educa para fazer delas enfermeiras nos hospitais ou então vigilantes nos
orfanatos, nas leprosarias, nos hospitais psiquiátricos. Hélène Lagonelle acha que
também as mandam para os lazaretos de coléricos e atacados de peste. É o que
Hélène Lagonelle acredita e chora porque não quer nenhum desses empregos, fala
sempre em fugir do pensionato.
Fui falar com a vigilante de serviço, também ela uma jovem mestiça, que olha
muito para nós, para Hélène e para mim. Diz: não foi ao liceu e não dormiu aqui a
noite passada, vamos ser obrigados a informar a sua mãe. Digo-lhe que não pude
fazer outra coisa mas que a partir dessa noite, daqui para o futuro, tentarei vir dormir
todas as noites ao pensionato, que não vale a pena informar a minha mãe. A jovem
vigilante olha-me e sorri-me.
Voltarei a fazê-lo. A minha mãe será informada. Virá falar com a directora do
pensionato e pedir-lhe-á que me deixe livre à noite, que não controle a hora a que eu
entro, e que também não me obrigue a ir passear ao domingo com as pensionistas.
Diz: é uma criança que sempre foi livre, senão fugiria, eu própria, sua mãe, não
posso nada contra isso, se quero que ela fique comigo tenho de a deixar livre. A
directora aceitou porque eu sou branca e que por causa da reputação do
pensionato, na massa de mestiças tem de haver algumas brancas. A minha mãe
disse também que eu trabalhava bem no liceu mesmo sendo tão livre e que o que
lhe acontecera com os seus filhos era tão terrível, tão grave, que os estudos da
pequena eram a única esperança que lhe restava.
Volto para junto de Hélène Lagonelle. Está deitada num banco e chora porque
julga que vou deixar o pensionato. Sento-me no banco. Estou extenuada com a
beleza do corpo de Hélène Lagonelle estirado contra o meu. Este corpo é sublime,
livre debaixo do vestido, ao alcance da mão. Os seios são como nunca vi nenhuns.
Nunca os toquei. Ela é impudica, Hélène Lagonelle, não se dá conta disso, passeia-
se toda nua pelos dormitórios. O que há de mais belo, de todas as coisas dadas por
Deus, é este corpo de Hélène Lagonelle, incomparável, este equilíbrio entre a
estatura e a maneira como o corpo oferece os seios, fora dele, como coisas
separadas. Nada é mais extraordinário que esta rotundidade exterior dos seios
oferecidos, esta exterioridade estendida para as mãos. Mesmo o corpo de pequeno
coolie do meu irmãozinho desaparece perante este esplendor. Os corpos dos
homens têm formas avaras, fechadas. Também não se estragam como as de Hélène
Lagonelle que, essas, nunca duram, talvez apenas um Verão, quando muito, é tudo.
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Ela vem dos altos planaltos de Dalat, Hélène Lagonelle. O seu pai é funcionário dos
postos. Chegou em pleno ano escolar há pouco tempo. Tem medo, põe-se ao nosso
lado, deixa-se ali estar sem dizer nada, muitas vezes a chorar. Tem a pele rosada e
morena da montanha, reconhecemo-la sempre aqui onde todas as crianças têm a
palidez esverdeada da anemia, do calor tórrido. Hélène Lagonelle não vai ao liceu.
Ela não sabe ir à escola, Hélène L. Ela não aprende, não retém. Freqüenta os
cursos primários do pensionato mas não serve de nada. Chora contra o meu corpo,
e eu faço-lhe festas no cabelo, nas mãos, digo-lhe que ficarei com ela no
pensionato. Ela não sabe que é muito bela, Hélène L. Os pais não sabem o que hão-
de fazer dela, procuram casá-la o mais depressa possível. Ela teria todos os noivos
que quisesse, Hélène Lagonelle, mas não os quer, não se quer casar, quer voltar
para o pé da mãe. Ela. Hélène L. Hélène Lagonelle. Acabará por fazer o que a mãe
quiser. Ela é muito mais bonita do que eu, do que esta do chapéu de palhaço,
calçada de lamé, infinitamente mais casável do que ela, Hélène Lagonelle, ela,
pode-se casá-la, estabelecê-la na conjugalidade, assustá-la, explicar-lhe o que lhe
faz medo e ela não compreende, ordenar-lhe que se deixe estar ali, que espere.
Hélène Lagonelle, ela, ela não sabe ainda o que eu sei. Ela tem, no entanto,
dezassete anos. É como se eu o adivinhasse, ela nunca há-de saber o que eu sei.
Quero levar comigo Hélène Lagonelle, àquele lugar em que todas as noites
de olhos fechados deixo que me dêem o gozo que faz gritar. Quereria dar Hélène
Lagonelle a esse homem que faz isso em mim para que o faça, por sua vez, nela.
Isto na minha presença, que ela o faça de acordo com o meu desejo, que ela se dê
aí onde me dou. Seria pelo desvio do corpo de Hélène Lagonelle, pela travessia do
seu corpo que o gozo me chegaria dele, então definitivo.
De morrer.
Vejo-a como sendo da mesma carne que esse homem de Cholen, mas num
presente irradiante, solar, inocente, numa eclosão repetida dela própria, em cada
gesto, em cada lágrima, em cada uma das suas falhas, em cada uma das suas
ignorâncias. Hélène Lagonelle, ela é a mulher desse moço de fretes que me torna o
gozo tão abstracto, tão duro, esse homem obscuro de Cholen, da China. Hélène
Lagonelle. Não esqueci esse moço de fretes. Quando parti, quando o deixei, fiquei
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dois anos sem me aproximar de nenhum outro homem. Mas essa misteriosa
fidelidade devia ser a mim mesma.
Ainda estou nesta família, é aí que habito com exclusão de todos os outros
lugares. É na sua aridez, na sua terrível dureza, na sua maleficência que estou mais
profundamente segura de mim, no mais profundo da minha certeza essencial, a
saber, que mais tarde escreverei.
É esse o lugar a que me hei-de agarrar mais tarde, uma vez abandonado o
presente, à exclusão de qualquer outro lugar. As horas que passo no apartamento
de Cholen fazem aparecer esse lugar sob uma luz fresca, nova. É um lugar
irrespirável, paredes-meias com a morte, um lugar de violência, de dor, de
desespero, de desonra. E tal é o lugar de Cholen. Do outro lado do rio. Uma vez
atravessado o rio.
Que vos diga também o que era, como era. É isto: ele rouba aos boys para ir
fumar ópio. Rouba à nossa mãe. Rebusca nos armários. Rouba. Joga. O meu pai
comprara uma casa em Entre-deux-Mers antes de morrer. Era o nosso único bem.
Ele joga. A minha mãe vende-a para pagar as dívidas. Não basta, nunca basta. Em
nova, tenta vender-me a clientes da Coupole. É por ele que a minha mãe ainda quer
viver, para que ele coma ainda, que durma no quente, que ainda ouça chamar o seu
nome. E a propriedade que ela lhe comprou perto de Amboise, dez anos de
economias. Numa noite hipotecada. Ela paga os juros. E o produto todo do corte dos
bosques que vos contei. Numa noite. Roubou minha mãe moribunda. Era uma
pessoa que revistava os armários, que tinha faro, que sabia procurar bem, descobrir
as boas pilhas de lençóis, os esconderijos. Roubou as alianças, esse tipo de coisas,
muitas, as jóias, a comida. Roubou a Dó, aos boys, ao meu irmãozinho. A mim,
muito. Era capaz de a ter vendido, a ela, à sua mãe. Quando ela morre manda
imediatamente chamar o notário, na emoção da morte. Sabe aproveitar-se da
emoção da morte. O notário diz que o testamento não é válido. Que ela beneficiou
de mais o seu filho mais velho à minha custa. A diferença é enorme, risível. É
preciso que, com inteiro conhecimento de causa, eu o aceite ou o recuse. Certifico
que aceito: assino. Aceitei-o. O meu irmão, de olhos baixos, obrigado. Chora. Na
emoção da morte da nossa mãe. É sincero. Na libertação de Paris, sem dúvida
perseguido por actos de colaboração no Sul, já não sabe para onde ir. Vem para
minha casa. Nunca soube muito bem, ele foge de um perigo. Talvez tenha entregue
pessoas, judeus, tudo é possível. Está muito afável, afectuoso como sempre depois
dos seus assassínios ou quando precisa dos nossos serviços. O meu marido está
deportado. Ele lastima. Fica três dias. Esqueci-me, quando saio não fecho nada. Ele
faz uma busca. Guardo, para o regresso do meu marido, o açúcar e o arroz das
minhas senhas. Faz uma busca e apanha-os. Revista ainda um armário do meu
quarto. Encontra. Leva a totalidade das minhas economias, cinquenta mil francos.
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Não deixa uma única nota. Abandona a casa, com os roubos. Quando o voltar a ver,
não lhe falarei nisto, a vergonha por ele é tão grande, não serei capaz. Depois do
falso testamento, o falso castelo Luís XIV é vendido por dez réis de mel coado. A
venda foi falsificada, como o testamento.
Depois da morte da minha mãe, ele fica só. Não tem amigos, nunca teve
amigos, teve algumas vezes mulheres que ele fazia "trabalhar" em Montpamasse, às
vezes as mulheres que não fazia trabalhar, pelo menos ao princípio, às vezes
homens mas que, esses, lhe pagavam. Vivia numa grande solidão. Esta aumentou
com a velhice. Era apenas um vadio, as suas causas eram fracas. Fez medo à sua
volta, mais nada. Connosco perdeu o seu verdadeiro império. Não era um gangster,
era um patife familiar, um tipo que revistava os armários, um assassino sem armas.
Não se comprometia. Os patifes vivem assim como ele vivia, sem solidariedade,
sem grandeza, no medo. Ele tinha medo. Depois da morte da minha mãe leva uma
existência estranha. Em Tours. Só conhece os empregados de café para os
"contactos" das corridas e a clientela vinosa dos pôqueres nas salas das traseiras.
Começa a parecer-se com eles, bebe muito, fica com os olhos injectados, a boca
torpe. Em Tours já não tem nada. As duas propriedades liquidadas, mais nada.
Durante um ano vive num armazém de móveis alugado pela minha mãe. Dorme
durante um ano num sofá. Fazem o favor de o deixar entrar. Aí fica um ano. E depois
é posto fora.
A minha mãe nunca falou desse filho. Nunca se queixou dele. Nunca falou a
ninguém daquele que revistava os armários. Viveu essa maternidade como um
delito. Tinha-a escondida. Devia achá-la ininteligível, incomunicável a quem quer que
não conhecesse o seu filho como ela o conhecia, diante de Deus e apenas diante
Dele. Dizia a seu respeito pequenas banalidades, sempre as mesmas. Que, se
tivesse querido, teria sido o mais inteligente dos três. O mais "artista". O mais
esperto. E também o que tinha amado mais a sua mãe. O que, em definitivo, a tinha
compreendido melhor. Eu não sabia, dizia ela, que se pudesse esperar isto de um
rapaz, uma tal intuição, uma ternura tão profunda.
Voltámos a ver-nos uma vez, ele falou-me do irmãozinho morto. Disse: que
horror aquela morte, é abominável, o nosso irmãozinho, o nosso pequeno Paulo.
pousa o garfo, olha só para o meu irmão. Olha-o durante muito tempo e depois diz
de repente, muito calmo, algo terrível. A frase é sobre a comida. Diz-lhe que deve ter
cuidado, que não deve comer tanto. O irmãozinho não responde nada. Ele continua.
Lembra-lhe que os bocados grandes de carne são para ele, que não se deve
esquecer disso. Senão, diz ele. Eu pergunto: porquê para ti? Ele diz: porque é assim
mesmo. Eu digo: queria que tu morresses. Não consigo comer. O irmãozinho
também não. Ele espera que o irmãozinho se atreva a dizer uma palavra, uma única
palavra, os seus punhos fechados já estão prontos em cima da mesa para lhe
esmurrarem a cara. O irmãozinho não diz nada. Está muito pálido. Entre as
pestanas, o começo do choro.
Ela pediu que aquele filho fosse enterrado com ela. Já não sei em que sítio,
em que cemitério, sei que é na região do Loire. Estão os dois na cova. Só eles dois.
É justo. A imagem é de um intolerável esplendor.
O crepúsculo caía à mesma hora todo o ano. Era muito curto, quase brutal.
Na estação das chuvas, durante semanas, não se via o céu, estava envolto num
nevoeiro uniforme que nem a luz da Lua atravessava. Na estação seca, em
contrapartida, o céu estava nu, descoberto na sua totalidade, cru. Até as noites sem
Lua eram iluminadas. E as sombras estavam igualmente desenhadas no chão, nas
águas, nos caminhos, nas paredes.
Lembro-me mal dos dias. A luz solar embaciava as cores, esmagava. Das
noites, lembro-me. O azul estava mais longe que o céu, estava atrás de todas as
espessuras, recobria o fundo do mundo. O céu, para mim, era esse rasto de puro
brilho que atravessa o azul, essa fusão fria para além de toda a cor. Às vezes, era
em Vinhlong, quando a minha mãe estava triste, mandava aparelhar o tilburi e íamos
para o campo ver a noite da estação seca. Tive essa sorte, para essas noites,
aquela mãe. A luz caía do céu em cataratas de pura transparência, em trombas de
silêncio e de imobilidade. O ar era azul, apanhávamo-lo na mão. Azul. O céu era
essa palpitação contínua da brilhância da luz. A noite iluminava tudo, todos os
campos de cada margem do rio até aos limites da vista. Cada noite era particular,
cada uma podia chamar-se o tempo da sua duração. O som das noites era o dos
cães do campo. Uivavam ao mistério. Respondiam uns aos outros de aldeia em
aldeia até à consumação total do espaço e do tempo da noite.
Uma vez ele não está em frente do liceu. O motorista está só no automóvel
preto. Diz-me que o pai está doente, que o senhor voltou para Sadec. Que ele, o
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dos filhos. Acho que me caberia saber quando o dia chegasse, e não aos meus
irmãos, porque os meus irmãos não saberiam avaliar esse estado.
Povoei a cidade toda com aquela pedinte da avenida. Todas as pedintes das
cidades, dos arrozais, as das pistas que orlavam o Sião, as das margens do
Mékong, povoei-a com todas elas, ela que me fez medo. Ela veio de todo o lado.
Chegou sempre a Calcutá, donde quer que tivesse vindo. Sempre dormiu à sombra
das macieiras-caneleiras do pátio de recreio. A minha mãe esteve sempre lá junto
dela, a tratar-lhe do pé roído pelos vermes, cheio de moscas.
Ela está no declive dos arrozais que orlam a pista, grita e ri a bandeiras
despregadas. Tem um riso de ouro, de fazer acordar os mortos, de fazer acordar
quem quer que oiça rir as crianças. Posta-se diante do bungalow dias e dias, há
brancos no bungalow, ela lembra-se, eles dão de comer aos mendigos. Depois uma
vez, enfim, acorda de manhãzinha e põe-se a caminhar, um dia vai-se embora, vá-
se lá saber porquê, obliqua para a montanha, atravessa a floresta e segue os
carreiros que seguem ao longo das cristas da cadeia do Sião. À força de ver, talvez,
de ver um céu amarelo e verde do outro lado da planície, ela atravessa-a. Começa a
descer para o mar, para o fim. Desce na sua grande passada magra as encostas da
floresta. Ela atravessa, atravessa. São as florestas pestilenciais. As regiões muito
quentes. Não há o vento salubre do mar. Há a algazarra estagnante dos mosquitos,
as crianças mortas, a chuva todos os dias. E depois os deltas. São os maiores
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deltas da terra. São de lodo negro. Para os lados de Chittagong. Deixou as pistas,
as florestas, as rotas do chá, os sóis vermelhos, e percorre sempre em frente a
abertura dos deltas. Toma a direcção do redemoinho do mundo, essa sempre
longínqua, envolvente, do este. Um dia está em frente do mar. Grita, ri no seu
cacarejar miraculoso de pássaro. Por causa do riso, encontra em Chittagong um
junco que a leva ao outro lado, os pescadores querem levá-la, atravessa com
companhia o golfo de Bengala.
Um dia chego, passo por lá. Tenho dezassete anos. É o bairro inglês, os
parques das embaixadas, é a monção, os ténis estão desertos. Ao longo do Ganges
os leprosos riem.
No recreio, ela olha para a rua, sozinha, encostada a um pilar do pátio. Não
conta nada disto à mãe. Continua a vir para as aulas na limusina preta do Chinês de
Cholen. Elas vêem-na ir. Não haverá excepção. Nenhuma delas lhe dirigirá mais a
palavra. Este isolamento fez erguer-se a pura recordação da Senhora de Vinhlong.
Tinha feito, nessa altura, trinta e oito anos. E a criança, dez. E depois, agora,
dezasseis, ao recordar-se.
Fôra ao fim da noite que ele se matara, na grande praça do posto cintilante de
luz. Ela dançava. Depois chegara o dia. Tinha contornado o corpo. Depois, com o
passar do tempo, o sol tinha esmagado a forma. Ninguém tinha ousado aproximar-
se. A polícia fá-lo-á. Ao meio-dia, após a chegada das lanchas da viagem, não
haverá nada, a praça estará limpa.
A minha mãe disse à directora do pensionato: não faz mal, nada disso tem
importância, já viu? Aqueles vestidinhos usados, o chapéu cor-de-rosa e os sapatos
dourados, como lhe ficam bem? A mãe fica louca de alegria quando fala dos filhos e
então o seu encanto é ainda maior. As jovens vigilantes do pensionato ouvem a mãe
apaixonadamente. Todos, diz a mãe, andam de roda dela, todos os homens do
posto, casados ou não, andam de roda daquilo, querem a pequena, aquilo, ainda
não muito definido, olhem, ainda uma criança. Desonrada, dizem as pessoas? E eu
digo: como é que a inocência se poderia desonrar?
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Esperou muito tempo antes de me falar outra vez, depois fê-lo, com muito
amor: Sabes que acabou? Que nunca te poderás casar aqui na colónia? Encolho os
ombros, rio-me. Digo: posso casar-me em qualquer lado, quando eu quiser. A minha
mãe acena que não. Não. Diz: aqui sabe-se tudo, aqui já não podes. Ela olha-me e
diz-me coisas inesquecíveis: agradas-lhes? Respondo: é isso, agrado-lhes mesmo
assim. É então que ela diz: agradas-lhes também por causa do que tu és.
Ainda me perguntou: é só pelo dinheiro que estás com ele? Hesito e depois
digo que é apenas pelo dinheiro. Ela olha-me ainda muito tempo, não me acredita.
Diz: eu não era como tu, tive mais dificuldades nos estudos e eu cá era muito séria,
fui-o durante tempo de mais, tarde de mais, perdi o gosto do meu prazer.
Eu via-a adormecer.
De vez em quando a minha mãe decreta: amanhã vamos ao fotógrafo.
longamente como outras mães, outros filhos. Compara as fotografias entre si, fala do
crescimento de cada um. Ninguém lhe responde.
A minha mãe só tira fotografias aos filhos. A mais nada. Não tenho fotografias
de Vinhlong, nem uma, do jardim, do rio, das avenidas direitas, orladas pelas
tamareiras da conquista francesa, nem uma, da casa, dos nossos quartos de asilo
caiados, com as grandes camas de ferro pretas e douradas, iluminadas como salas
de aula com as lâmpadas avermelhadas das avenidas, os quebra-luzes de chapa de
ferro verde, nem uma, nem uma imagem desses lugares incríveis, sempre
provisórios, para além de toda a fealdade, de fugir, onde a minha mãe acampava à
espera, dizia ela, de se instalar verdadeiramente, mas em França, nessas regiões de
que falou a vida toda e que se situavam, conforme o seu humor, a sua idade, a sua
tristeza, entre o Pas-de-Calais e Entre-deux-Mers. Quando ela parar para sempre,
quando se instalar no Loire, o seu quarto será a réplica do de Sadec, terrível. Ela
terá esquecido.
Quando ficou velha, de cabelos brancos, também ela foi ao fotógrafo, foi lá
sozinha, e fez-se fotografar com o seu belo vestido vermelho-escuro e as suas duas
jóias, o cordão e o broche de ouro e jade, um pequeno cilindro de jade embutido em
ouro. Na fotografia está bem penteada, nem uma ruga, uma imagem. Os indígenas
endinheirados iam, também eles ao fotógrafo, uma vez na vida, quando viam que a
morte se aproximava. As fotografias eram grandes, todas do mesmo formato,
encaixilhadas em belas molduras douradas e penduradas junto ao altar dos
antepassados. Todas as pessoas fotografadas, e vi muitas, davam quase a mesma
fotografia, a sua semelhança era alucinante. Não é só que os velhos se
assemelhem, é que os retratos eram retocados, sempre, e de tal modo que as
particularidades do rosto, se ainda as havia, eram atenuadas. Os rostos eram
preparados da mesma maneira para enfrentar a eternidade, eram alisados,
uniformemente rejuvenescidos. Era o que as pessoas queriam. Essa semelhança
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Nunca mais falam disso. É um caso arrumado que ele tentará mais nada junto
do pai para casar com ela. Que o não terá piedade nenhuma do filho. Não tem de
ninguém. Todos os emigrantes chineses que detêm o comércio do posta, o das
varandas azuis é o mais terrível, o mais rico, aquele cujos bens se estendem mais
longe para lá de Sadec, até Cholen, a capital chinesa da Indochina francesa. O
homem de Cholen sabe que a decisão de seu pai e a da menina são as mesmas e
que são sem apelo. Em menor grau, começa a compreender que a partida que o há-
de separar dela é a sorte da história deles. Que esta não é das que se casam, que
fugiria de todos os casamentos, que será preciso abandoná-la, esquecê-la, voltar a
dá-Ia aos brancos, aos seus irmãos.
Desde que ele estava louco pelo corpo dela, a rapariguinha já não sofria com
ele, com a sua magreza e, também, estranhamente, a sua mãe já não se
preocupava como dantes, como se tivesse descoberto, ela também, que aquele
corpo era no fim de contas plausível, aceitável, tanto como qualquer outro. Ele, o
amante de Cholen, julga que o crescimento da rapariga branca sofreu com o calor
demasiado forte. Também ele nasceu e se desenvolveu nesse calor. Descobre que
tem com ela esse parentesco. Diz que todos os anos ali passados, naquela
intolerável latitude, fizeram com que ela se tornasse uma jovem desse país da
Indochina. Que tem a finura dos pulsos deles, os seus cabelos espessos de que se
diria que tomaram para si a força toda, compridos como os deles e, sobretudo,
aquela pele, aquela pele de todo o corpo que vem da água da chuva que aqui se
guarda para o banho das mulheres, das crianças. Diz que as mulheres de França,
ao lado destas, têm a pele do corpo dura, quase áspera. Diz ainda que a
alimentação pobre dos trópicos, feita de peixes, frutas, também tem algo a ver com
isso. E também os tecidos de algodão e as sedas de que a roupa é feita, sempre
largos esses fatos que deixam o corpo longe deles, livre, nu.
Ele olha-a. Com os olhos fechados ainda a olha. Respira o rosto dela. Respira
a menina, de olhos fechados respira a sua respiração, esse ar quente que sai dela.
Discerne cada vez menos claramente os limites desse corpo, aquele não é como os
outros, não está acabado, cresce ainda no quarto, não tem ainda formas definidas,
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faz-se a cada momento, não está apenas ali onde ele o vê, também está algures,
estende-se para lá da vista, para o jogo, a morte, é elástico, parte inteiro para o gozo
como se fosse grande, em idade, sem malícia, duma inteligência assustadora.
Possuía-a como possuiria a sua filha. Era assim que possuiria a sua filha.
Brinca com o corpo da filha, volta-a, cobre com ele o rosto, a boca, os olhos. E ela,
ela continua a abandonar-se na direcção exacta que ele tomou quando começou a
brincar. E de súbito é ela que lhe pede, não diz o quê, e ele, ele grita-lhe que se
cale, grita-lhe que já não a quer, que já não quer ter prazer com ela, e ei-los de novo
presos, aferrolhados entre si no horror, e eis que esse horror se desfaz mais uma
vez, que lhe cedem mais uma vez, em lágrimas, no desespero, na felicidade.
abandonados. O corpo não está deitado com compostura como o das outras
raparigas, as pernas estão dobradas, não se lhe vê a cara, a almofada escorregou.
Adivinho que ela me deve ter esperado e depois adormecido assim na impaciência,
na cólera. Também deve ter chorado e depois caído no abismo. Queria acordá-la e
que conversássemos baixinho. Já não falo com o homem de Cholen, ele já não fala
comigo, preciso de ouvir as perguntas de H. L. Ela tem essa atenção incomparável
das pessoas que não compreendem o que se lhes diz. Mas não é possível que eu a
acorde. Uma vez acordada assim, a meio da noite, H. L. não consegue voltar a
adormecer. Levanta-se, apetece-lhe sair, e fá-lo, desce as escadas, anda pelos
corredores, pelos grandes pátios vazios, corre, chama-me, está tão contente, não se
pode nada contra isso, e quando a privamos do passeio sabemos que era disso que
ela estava à espera. Hesito e afinal não, não a acordo. Debaixo do mosquiteiro o
calor é sufocante, quando o fecho parece impossível de suportar. Mas sei que é
porque venho de fora, das margens do rio onde faz sempre fresco de noite. Estou
habituada, não me mexo, espero que passe. Passa. Nunca adormeço logo de
seguida, apesar daqueles novos cansaços na minha vida. Penso no homem de
Cholen. Deve estar numa boâte para os lados da Source, com o motorista, devem
beber em silêncio, é a aguardente de arroz quando estão sós. Ou então voltou para
casa, adormeceu na luz do quarto, sempre sem falar com ninguém. Nessa noite já
não aguento pensar no homem de Cholen. Já não aguento pensar em H. L. Parece
que têm uma vida preenchida, que isso lhes vem do exterior deles mesmos. Parece
que não tenho nada semelhante. A mãe diz: aquela nunca ficará satisfeita com coisa
nenhuma. Acho que a minha vida começou a mostrar-se-me. Acho que já sei dizer-
mo, tenho vagamente vontade de morrer. Esta palavra, já não a separo da minha
vida. Creio que me apetece vagamente estar sozinha, tal como me apercebo de que
já não estou só desde que deixei a infância, a família do Caçador. Vou escrever
livros. É o que vejo para além do instante, no grande deserto sob a aparência do
qual me surge a vastidão da minha vida.
Desde o momento em que ele morreu, ele, o irmãozinho, tudo devia morrer a
seguir a ele. E por ele. A morte, em cadeia, partia dele, a criança.
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Ninguém via claro senão eu. E a partir do momento em que acedi a esse
acontecimento, tão simples, a saber, que o corpo do meu irmãozinho era também o
meu, devia morrer. E morri. O meu irmão amalgamou-me a si, puxou-me a si e morri.
Este amor insensato que lhe tenho permanece para mim um insondável
mistério. Não sei por que o amava ao ponto de querer morrer da sua morte. Estava
separada dele há dez anos quando aconteceu e só raramente pensava nele. Amava-
o, parecia, para sempre, e nada de novo podia acontecer àquele amor. Tinha-me
esquecido da morte.
Essa viagem durava vinte e quatro dias. Os navios das linhas eram já cidades
com ruas, bares, cafés, bibliotecas, salões, encontros, amantes, casamentos,
mortos. Formavam-se sociedades de acaso, eram forçadas, sabíamo-lo, não o
esquecíamos, e por isso mesmo tornavam-se vivíveis, e mesmo, às vezes, de
inesquecível encanto. Essas eram as únicas viagens das mulheres. Para muitas
delas sobretudo mas também para certos homens às vezes, as viagens para
chegarem à colónia eram a verdadeira aventura. Para a mãe sempre tinha sido, com
a nossa infância, o que ela chamava "o melhor da sua vida".
Ainda íamos todos os dias à casa de Cholen. Ele fazia como habitualmente,
durante toda uma época ele fazia como habitualmente, dava-me banho com a água
das talhas e levava-me ao colo para a cama. Chegava-se a mim, deitava-se também
mas tinha-se-lhe ido a força toda, impotente. A data da partida, mesmo que ainda
longínqua, uma vez fixada, ele já nada podia fazer com o meu corpo. Tinha
acontecido brutalmente, sem ele ter consciência disso. O seu corpo já não queria
esta que ia partir, trair. Dizia: já não posso possuir-te, pensava que ainda podia, mas
já não posso. Dizia que estava morto. Desculpava-se com um sorriso muito meigo,
dizia que talvez aquilo nunca mais lhe voltasse. Eu perguntava-lhe se ele tinha
querido que as coisas se passassem assim. Ele quase ria, dizia: não sei, neste
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momento talvez sim. A sua meiguice tinha ficado inteira na dor. Não falava dessa
dor, nunca dissera uma palavra sobre ela. Às vezes o seu rosto estremecia, fechava
os olhos e cerrava os dentes. Mas calava-se sempre sobre as imagens que via por
trás dos olhos fechados. Dir-se-ia que amava aquela dor, que a amava como me
amara, com muita força, talvez até morrer, e que agora a preferia a mim. Às vezes
dizia que queria acariciar-me porque sabia que me apetecia muito e que queria olhar
para mim quando o gozo viesse. Fazia-o, olhava para mim ao mesmo tempo e
chamava-me como sua filha. Tínhamos decidido não nos vermos mais mas não era
possível. Todas as noites o encontrava diante do liceu no seu automóvel preto, a
cabeça voltada da vergonha.
Ela também, fora quando o barco lançara o seu primeiro adeus, quando
tinham recolhido a passadeira e os rebocadores começado a puxá-lo, a afastá-lo da
terra, que tinha chorado. Tinha-o feito sem mostrar as suas lágrimas, porque ele era
chinês e não se devia chorar esse género de amantes. Sem mostrar à mãe e ao
irmãozinho que sofria, sem mostrar nada, como era habitual entre eles. O grande
automóvel dele estava lá, comprido e negro, no banco da frente o motorista fardado
de branco. Estava um pouco afastado do parque de automóveis da Companhia
Marítima, isolado. Ela tinha-o reconhecido por esses sinais. Era ele na parte de trás,
essa forma quase invisível, que não fazia qualquer movimento, abatido. Ela estava
encostada à amurada como da primeira vez na barcaça. Ela sabia que ele olhava
para ela. Ela também o olhava, já não o via mas ainda olhava para a força do
automóvel preto. E depois, por fim, tinha deixado de o ver. O porto apagara-se, e
depois a terra.
Não, ao escrever isto, ela não vê o barco mas um outro lugar, o lugar em que
ouviu contar a história. Era Sadec. Era o filho do administrador de Sadec. Ela
conhecia-o, ele também andava no liceu de Saigão. Ela lembra-se dele, muito alto, o
rosto muito meigo, moreno, óculos de tartaruga. Não se tinha encontrado nada na
cabina, nenhuma carta. A idade ficou na memória, aterrorizante, a mesma,
dezassete anos. O barco voltara a pôr-se em funcionamento ao alvorecer. O mais
terrível era isso. O nascer do Sol, o mar vazio, e a decisão de abandonar as buscas.
A separação.
À sua volta as pessoas dormiam, cobertas pela música mas não acordadas
por ela, tranqüilas. A rapariga pensava que acabava de ver a noite mais calma que
alguma vez existira no oceano Índico. Julga que também foi nessa noite que viu
chegar ao convés o seu irmãozinho com uma mulher. Ele tinha-se encostado à
amurada, ela tinha-o enlaçado e tinham-se beijado. A rapariga escondera-se para
ver melhor. Reconhecera a mulher. Ela e o irmãozinho estavam já sempre juntos.
Era uma mulher casada. Tratava-se dum casal morto. O marido parecia não se
aperceber de nada. Durante os últimos dias da viagem o irmãozinho e essa mulher
ficavam o dia todo no camarote, só saíam à noite. Nesses mesmos dias o
irmãozinho olhava a mãe, e a irmã sem as reconhecer, poder-se-ia dizer. A mãe
tornara-se irritável, silenciosa, ciumenta. Ela, a menina, chorava. Estava feliz,
achava ela, e ao mesmo tempo tinha medo do que aconteceria mais tarde ao
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irmãozinho. Acreditava que ele as abandonaria, que se iria embora com essa
mulher, mas não, tinha-se-lhes juntado à chegada a França.
Ela não soube quanto tempo depois da partida da rapariga branca ele
executou a ordem do pai, quando fez aquele casamento com a rapariga designada
pelas famílias há dez anos, também ela coberta de ouro, de diamantes, de jade.
Uma Chinesa, também ela oriunda do Norte, da cidade de Fu-Chuen, que veio
acompanhada pela família.
Deve ter ficado muito tempo sem poder estar com ela, sem conseguir dar-lhe
o herdeiro das fortunas. A recordação da menina branca devia estar ali, deitada, o
corpo, ali, atravessado na cama. Ela deve ter permanecido muito tempo a soberana
do seu desejo, a referência pessoal à emoção, à imensidão da ternura, à sombria e
terrível profundidade carnal. Depois chegou o dia em que isso deve ter sido possível.
Justamente aquele em que o desejo da pequena branca devia ser tal, insustentável
a um ponto tal que ele poderia ter encontrado a sua imagem completa como uma
febre grande e forte e penetrar a outra mulher desse desejo dela; da menina branca.
Deve ter-se reencontrado pela mentira, dentro dessa mulher, e pela mentira, fazia o
que as famílias, o Céu, os antepassados do Norte esperavam dele, a saber, o
herdeiro do nome.
Anos depois da guerra, depois dos casamentos, dos filhos, dos divórcios, dos
livros, ele veio a Paris com a mulher. Telefonara-lhe. Sou eu. Ela reconhecera-o logo
pela voz. Ele dissera: queria só ouvir a sua voz. Ela dissera: sou eu, bom dia. Ele
estava intimidado, tinha medo como dantes. A sua voz tremia de repente. E com o
tremor, de repente, ela voltara a encontrar a pronúncia da China. Ele sabia que ela
tinha começado a escrever livros, soubera-o pela mãe dela que voltara a ver em
Saigão. E depois dissera-lho. Dissera-lhe que era como dantes, que ainda a amava,
que nunca poderia deixar de a amar, que a amaria até à morte.