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E.

MAGALHÃES NORONHA
DIREITO PENAL VOL. 1

ÍNDICE GERAL

INTRODUÇÃO

CONCEITO DO DIREITO PENAL

1.
Denominação.....................................................................
.............................................. 3
2.
Definição.......................................................................
................................................... 4
3.
Caracteres......................................................................
................................................. 4
4.
Conteúdo........................................................................
................................................. 7
5. Direito penal objetivo e direito penal
subjetivo................................................................
7
6. Caráter
dogmático.......................................................................
.................................... 8
7. Direito penal comum e direito penal
especial.................................................................
9
8. Direito penal substantivo e direito penal
adjetivo........................................................... 10

RELAÇÕES DO DIREITO PENAL


9. Relações do direito penal com as ciências jurídicas
fundamentais.............................. 11
10. Relações do direito penal com os outros ramos
jurídicos............................................. 12
11. O direito penal e a
criminologia....................................................................
................. 14
12. A
penologia.......................................................................
............................................. 16
13. A política
criminal........................................................................
................................... 17
14. O direito penal e as disciplinas
auxiliares......................................................................
18

EVOLUÇÃO HISTÓRICA DAS IDÉIAS PENAIS


15. Tempos
primitivos......................................................................
.................................. 20
16. Vingança
privada.........................................................................
................................. 20
17. Vingança
divina..........................................................................
................................... 21
18. Vingança
pública.........................................................................
.................................. 22
19. Período
humanitário.....................................................................
................................. 24
20. Período
criminológico...................................................................
................................. 26

DOUTRINAS E ESCOLAS PENAIS


21. Correntes
doutrinárias....................................................................
.............................. 28
22. A Escola
Clássica........................................................................
................................. 30
23. A Escola
Correcionalista.................................................................
.............................. 33
24. A Escola
Positiva........................................................................
.................................. 34
25. A Terceira
Escola..........................................................................
............................... 39
26. A Escola Moderna
alemã...........................................................................
................. 40
27. Outras escolas e tendências.
Conclusão.....................................................................
41

AS FONTES DO DIREITO PENAL


28. Fontes de produção ou materiais e fontes de conhecimento ou
formais.................... 45
29. Fonte imediata: a lei. A lei penal. Caracteres e classificação.
Norma penal em
branco..........................................................................
..................... 46
30. Fontes mediatas: a) o costume; b) a eqüidade; c) os princípios gerais do
direito;
d) a analogia. A doutrina. A jurisprudência. Os tratados e
convenções....................... 50

HISTÓRIA DO DIREITO PENAL BRASILEIRO


31. O
aborígine.......................................................................
.......................................... 54
32. Brasil
Colonial........................................................................
.................................... 55
33. O
Império.........................................................................
.......................................... 56
34. A
República.......................................................................
........................................ 59

PARTE GERAL
DA APLICAÇÃO DA LEI
I
ANTERIORIDADE DA LEI PENAL
35. Direito penal liberal. Reação ao
princípio................................................................
69
36. Interpretação da lei penal. Necessidade. O sujeito. Os meios.
Os
resultados......................................................................
...................................... 72
37. A analogia. A analogia in bonam partem
............................................................... 74

II
A LEI PENAL NO TEMPO
38. Irretroatividade da lei penal. Retroatividade
benéfica........................................... 77
39. A lei mais
benigna.........................................................................
........................ 78
40. Ultratividade da lei penal. Norma penal em
branco............................................... 80
41. Do tempo do crime. Delitos permanentes e
continuados...................................... 82

lll
A LEI PENAL NO ESPAÇO E EM RELAÇÃO ÀS PESSOAS.
DISPOSIÇÕES FINAIS DO TÍTULO I
42. Direito penal internacional. Os
princípios............................................................
84
43. Territorialidade. Lugar do
crime...........................................................................
85
44.
Território......................................................................
........................................ 86
45.
Extraterritorialidade...........................................................
.................................. 89
46. A lei penal em relação às pessoas e suas
funções............................................ 91
47.
Extradição......................................................................
..................................... 93
48. Disposições finais do Título
l...............................................................................
94

DO CRIME
I
CONCEITO DO CRIME
49. Conceitos do
crime...........................................................................
................... 96
50. O conceito
dogmático.......................................................................
................... 97
51. A
ação............................................................................
.................................. 98
52. A
tipicidade......................................................................
................................. 99
53. A
antijuridicidade................................................................
.............................. 100
54. A
culpabilidade...................................................................
.............................. 103
55. A
punibilidade....................................................................
.............................. 105
56. Pressupostos do crime e condições objetivas de
punibilidade........................ 106
57. Ilícito penal e ilícito
civil...........................................................................
......... 107

II
DIVISÃO DOS CRIMES
58. Quanto à
gravidade.......................................................................
................... 108
59. Quanto à forma de
ação............................................................................
....... 110
60. Outras
categorias......................................................................
........................ 111

III
OS SUJEITOS E OS OBJETOS DO DELITO
61. O sujeito
ativo...........................................................................
......................... 113
62. O sujeito
passivo.........................................................................
...................... 114
63. O objeto
jurídico........................................................................
....................... 115
64. O objeto
material........................................................................
...................... 115

IV
RELAÇÃO DE CAUSALIDADE
65. A ação e a omissão
causais.........................................................................
..... 117
66. O
resultado.......................................................................
................................. 118
67. As
teorias.........................................................................
................................. 119
68. A teoria do Código. O nexo
causal...................................................................
120
69. Superveniência
causal..........................................................................
........... 122

V
DO CRIME CONSUMADO E DA TENTATIVA
70. A
consumação......................................................................
........................... 124
71. O iter
criminis........................................................................
............................ 124
72. A
cogitação.......................................................................
................................ 125
73. Atos preparatórios e atos de
execução...........................................................
125
74. Elementos da
tentativa.......................................................................
............. 127
75. A pena da
tentativa.......................................................................
................... 127
76. Inadmissibilidade da
tentativa.......................................................................
.. 128
77. Desistência voluntária, arrependimento eficaz e arrependimento posterior....
130
78. Crime impossível. Crime de flagrante preparado. Crime
provocado............... 133

VI
O DOLO E A CULPA
79. O
dolo............................................................................
................................... 136
80. Espécies de
dolo............................................................................
.................. 138
81. A
culpa...........................................................................
................................... 140
82. Espécies de
culpa...........................................................................
.................. 143
83. A fórmula do
Código..........................................................................
............... 144
84. Compensação da
culpa...........................................................................
......... 145
85. O preterdolo. Agravação pelo
resultado..........................................................
146
86. A responsabilidade
objetiva........................................................................
..... 147
87. A excepcionalidade do crime
culposo..............................................................
148
88. Actio libera in
causa...........................................................................
.............. 149

VII
DA CULPABILIDADE
A) O ERRO
89. Erro e ignorância. Erro de direito e erro de fato. Erro de tipo e erro
de
proibição.......................................................................
............................... 150
90. Erro de
tipo............................................................................
........................... 151
91. Da inescusabilidade do desconhecimento da lei. Erro de
proibição................ 152
92. Erro determinado por terceiro e erro sobre a
pessoa...................................... 154
93. Erro na
execução........................................................................
..................... 155
94. Descriminantes putativas
fáticas.....................................................................
158

VIII
DA CULPABILIDADE
B) COAÇÃO IRRESISTÍVEL E OBEDIÊNCIA HIERÁRQUICA
95. Coação física e coação
moral..........................................................................
160
96. Causa excludente da
culpabilidade.................................................................
161
97. Estrita
obediência......................................................................
....................... 162
98. Causa de exclusão de
culpa...........................................................................
. 163

IX
DA CULPABILIDADE
C) DOENÇA MENTAL E DESENVOLVIMENTO MENTAL
INCOMPLETO OU RETARDADO
99. Imputabilidade e
responsabilidade................................................................
.. 164
100. Inimputabilidade. Os
critérios.......................................................................
.. 165
101. Doença mental. Desenvolvimento mental incompleto ou
retardado............... 166
102. Imputabilidade
diminuída.......................................................................
......... 167
103. Medidas de
segurança.......................................................................
............... 169

X
DA CULPABILIDADE
D) A MENORIDADE
104. Menor
infrator........................................................................
............................ 170
105. A legislação
pátria..........................................................................
................... 173
106. Estatuto da criança e do Adolescente (Lei n.8.069, de 13-07-
1990)................ 174
107. Legislação
tutelar.........................................................................
..................... 176

XI
DA CULPABILIDADE
E) A EMOÇÃO E A PAIXÃO
108. A emoção e a
paixão..........................................................................
............... 179
109. A posição do
Código..........................................................................
................ 179
110. Actio libera in
causa...........................................................................
............... 180
XII
DA CULPABILIDADE
F) A EMBRIAGUEZ
111. O
alcoolismo......................................................................
................................ 182
112. A orientação do
Código..........................................................................
........... 183
113. O fundamento: actio libera in
causa..................................................................
184

XIII
DA ANTIJURIDICIDADE
A) O ESTADO DE NECESSIDADE
114. Conceito e
fundamento......................................................................
............... 188
115.
Requisitos......................................................................
.................................... 189
116. Exclusão do estado de
necessidade................................................................
192
117. Causas do estado de necessidade. Estado de necessidade
putativo............. 193
118. Casos legais de estado de
necessidade.........................................................
194

XIV
DA ANTIJURIDICIDADE
B) A LEGÍTIMA DEFESA
119. Definição. Fundamento e natureza.
Requisitos................................................ 195
120. Agressão atual ou iminente e
injusta...............................................................
196
121. Direito próprio ou
alheio..........................................................................
......... 198
122. Moderação no emprego dos meios
necessários.............................................. 200
123. Legítima defesa de terceiro, recíproca e putativa.
Legítima defesa e
tentativa.......................................................................
......... 201
124. Estado de necessidade e legítima
defesa.........................................................
202
XV
DA ANTIJURIDICIDADE
D) ESTRITO CUMPRIMENTO DE DEVER LEGAL.
EXERCÍCIO REGULAR DE DIREITO
125. Estrito cumprimento de dever
legal...................................................................
204
126. Exercício regular de direito. O
costume............................................................
205
127. Consentimento do ofendio. Violência nos desportes. Intervenção
médico-
cirúrgico.......................................................................
......................... 206

XVI
DA ANTIJURIDICIDADE DO EXCESSO PUNÍVEL
128. Do
excesso.........................................................................
............................... 208
129. Do excesso punível no estado de
necessidade................................................ 208
130. Do excesso punível na legítima
defesa............................................................
209
131. Do excesso punível no estrito cumprimento de dever legal e no
exercício regular de
direito.........................................................................
....... 210

XVII
DO CONCURSO SE PESSOAS
132.
Noções..........................................................................
.................................... 211
133. As
teorias.........................................................................
................................. 212
134. A teoria do
Código..........................................................................
.................. 214
135. Causalidade física e
psíquica........................................................................
... 214
136. Co-participação e
culpa...........................................................................
......... 216
137. Co-participação e
omissão.........................................................................
...... 217
138. Da punibilidade. Causas de redução da pena: pequena participação
e desvios subjetivos entre os
partícipes.............................................................
217
139. Requisitos: concurso necessário e concurso
agravante................................... 220
140. Comunicabilidade das
circunstâncias................................................................
220
141. Co-participação e inexecução do
crime.............................................................
222
142. Autoria
incerta.........................................................................
........................... 222
143. A multidão
delinqüente.....................................................................
................. 223

DA PENA
I
CONSIDERAÇÕES GERAIS
144. Teorias. Conceito. Fundamento.
Fins................................................................
225
145. Caracteres e
classificação...................................................................
.............. 227
146. A pena de
morte...........................................................................
..................... 230

II
CLASSIFICAÇÃO ATUAL
147. Antecedentes
históricos......................................................................
............... 232
148. Classificação
atual...........................................................................
.................. 233

III
DA PENA PRIVATIVA DE LIBERDADE
149.
Natureza........................................................................
.................................... 234
150. Formas de andamento. Sistema
progressivo....................................................
235
151. Sistemas penitenciários. Sistemas
clássicos.....................................................
236
152. Do trabalho e
remuneração.....................................................................
.......... 237
153. Detração
penal...........................................................................
..................... 238
154. Direitos e deveres do
preso...........................................................................
.. 239
155. O problema
sexual..........................................................................
................. 240
IV
DA PENA RESTRITIVA DE DIREITO
156. Natureza
jurídica........................................................................
...................... 242
157.
Características.................................................................
................................. 243
158.
Espécies........................................................................
.................................. 244

V
DA PENA DE MULTA
159.
Natureza........................................................................
.................................. 247
160. Pagamento. Conversão.
Revogação................................................................
248

VI
DA APLICAÇÃO DA PENA
161. Arbítrio
judicial........................................................................
.......................... 250
162. O art.
59..............................................................................
............................. 251
163. A personalidade do agente e a gravidade objetiva do
crime........................... 251
164. Circunstâncias
legais..........................................................................
............. 253
165. Fixação da
pena............................................................................
................... 254

VII
CIRCUNSTÂNCIAS AGRAVANTES
166. Considerações
gerais..........................................................................
............. 257
167. Circunstâncias
agravantes......................................................................
......... 259
168. A
reincidência....................................................................
............................... 264

VIII
CIRCUNSTÂNCIAS ATENUANTES
169. Circunstâncias
atenuantes......................................................................
......... 266

IX
CONCURSO DE CRIMES
170. Considerações
gerais..........................................................................
............. 270
171. Concurso
material........................................................................
.................... 271
172. Concurso
formal..........................................................................
.................... 271
173. Crime
continuado......................................................................
...................... 273
174. Sistemas de aplicação de
penas.....................................................................
276
175.
Multa...........................................................................
.................................... 277
176. Limite das
penas...........................................................................
.................. 277
177. Concurso de
leis............................................................................
................. 278

X
SUSPENSÃO CONDICIONAL DA PENA
178. Considerações
gerais..........................................................................
........... 282
179.
Histórico.......................................................................
................................... 283
180. Definição e
natureza........................................................................
................. 284
181.
Pressupostos....................................................................
................................ 285
182.
Condições.......................................................................
................................. 286
183.
Revogação.......................................................................
................................ 287
184. Inexecução da
pena............................................................................
............. 288

XI
LIVRAMENTO CONDICIONAL
185. Considerações
preliminares....................................................................
......... 290
186. Definição. Natureza.
Histórico.......................................................................
... 291
187.
Pressupostos....................................................................
................................ 292
188. Concessão do livramento
condicional...............................................................
294
189. Revogação do livramento
condicional..............................................................
296
190. Incompatibilidade do livramento condicional. A expulsão
de
estrangeiro.....................................................................
............................... 297

XII
DOS EFEITOS DA CONDENAÇÃO
191. Considerações
gerais..........................................................................
.............. 299
192. A sentença penal
condenatória....................................................................
..... 300
193. A sentença penal
absolutória.....................................................................
........ 301
194. Efeitos genéricos.
Indenização.....................................................................
...... 303
195.
Confisco........................................................................
...................................... 304
196. Registro da
condenação......................................................................
............... 306
197. Efeitos
específicos.....................................................................
......................... 307

XIII
DA REABILITAÇÃO
198. Considerações gerais.
Conceito........................................................................
. 309
199. Pressupostos.
Revogação.......................................................................
........... 311

DAS MEDIDAS DE SEGURANÇA


200.
Histórico.......................................................................
........................................ 313
201. Medida de segurança e
pena............................................................................
.. 314
202. Legalidade da medida de
segurança...................................................................
315
203.
Pressupostos....................................................................
................................... 316
204.
Espécies........................................................................
....................................... 317

DA AÇÃO PENAL
I
CONSIDERAÇÕES GERAIS
205. Considerações
preliminares....................................................................
............. 318
206. Notictia
criminis........................................................................
........................... 320
207. Espécies de
ação............................................................................
.................... 321
208. Procedimento ex
officio.........................................................................
.............. 321

II
A AÇÃO PÚBLICA
209. O Ministério
Público.........................................................................
................... 323
210. Da iniciativa da
ação............................................................................
............... 327

III
A AÇÃO DE INICIATIVA PRIVADA
211. Natureza e
fundamento......................................................................
................ 331
212. A queixa. Espécies de ação de iniciativa
privada.............................................. 333
213. O ofendido e a ação
penal...........................................................................
...... 336
214. Decadência. Renúncia.
Perdão.........................................................................
338
215. A ação penal no crime
complexo.......................................................................
342

DA EXTINÇÃO DA PUNIBILIDADE
I
CONSIDERAÇÕES GERAIS
216. Extinção da
punibilidade....................................................................
................ 345
217.
Classificação...................................................................
................................... 346
II
DA EXTINÇÃO DA PUNIBILIDADE
A) MORTE DO AGENTE
218. Morte do acusado e do
condenado....................................................................
349

III
DA EXTINÇÃO DA PUNIBILIDADE
B) DA CLEMÊNCIA SOBERANA
219. Considerações
preliminares....................................................................
........... 352
220.
Anistia.........................................................................
........................................ 353
221. Graça e
indulto.........................................................................
.......................... 355

IV
DA EXTINÇÃO DA PUNIBILIDADE
C) DECURSO DO TEMPO
222. Novatio
legis...........................................................................
............................ 358
223. Prescrição. Decadência.
Perempção.................................................................
358

V
DA EXTINÇÃO DA PUNIBILIDADE
D) DECURSO DO TEMPO
PRESCRIÇÃO
224. Conceito e
fundamento......................................................................
................ 361
225. Penas e
prescrição......................................................................
...................... 363
226. Prescrição
retroativa......................................................................
................... 364
227. Termo inicial da
prescrição......................................................................
.......... 366
228. Causas
suspensivas.....................................................................
...................... 369
229. Causas
interruptivas...................................................................
........................ 370
230. Crimes de
imprensa........................................................................
.................... 372
231. Crimes
falimentares....................................................................
........................ 373

VI
DA EXTINÇÃO DA PUNIBILIDADE
E) REPARAÇÃO
232.
Retratação......................................................................
.................................... 376
233. Subsequens
matrimonium.....................................................................
............. 377

VII
PERDÃO JUDICIAL
234.
Conceito........................................................................
..................................... 380
235. Natureza
jurídica........................................................................
........................ 380
236. Extinção da
punibilidade....................................................................
............... 381

BIBLIOGRAFIA....................................................................
...................................... 383

INTRODUÇÃO
CONCEITO DO DIREITO PENAL

SUMÁRIO: 1. Denominação. 2. Definição. 3. Caracteres. 4. Conteúdo. 5. Direito


penal objetivo e direito penal subjetivo. 6. Caráter dogmático. 7. Direito penal
comum
e direito penal especial. 8. Direito penal substantivo e direito penal adjetivo.

1. Denominação. A denominação direito penal não é antiga. Segundo


Mezger, parece que o primeiro a emprega-la foi um Conselheiro de Estado,
Regnerus Engelhard,
discípulo do filósofo Christian Wolff, em 1756.
Atualmente, na Alemanha, é largamente usada. Omesmo se diga da Itália,
não obstante o emprego também da expressão direito criminal, não sendo ocioso
lembrar
que a monumental obra de Carrara lhe deu preferência.
Na Espanha e na França, parece-nos que as denominações derecho penal e
dróit pénal são mais freqüentes que derecho criminal e droit criminel.
Outros nomes tem sido lembrados: direito repressivo (Puglia), princípios
de criminologia (De Luca), direito protetor dos criminosos (Dorado Monteiro),
direito
restaurador ou sancionador (Valdés), direito de defesa social (Martinez),
denominação adotada pelo Código de Cuba. Outras expressões são ainda invocadas.
Dentre as denominações tradicionais - direito penal e direito criminal -
oscilam as preferências. Argumentam alguns que a primeira é imprópria, por não
abranger
as medidas de segurança cuja natureza preventiva as distingue da pena. Revidam
outros que a punibilidade é a parte mais importante, de maior proteção e de
efeitos
mais graves.
Consagradas pelo uso, qualquer uma das expressões pode ser empregada na
denominação de nossa disciplina. Optamos, entretanto, pela de direito penal, em
consonância
com o Código, sendo marcante essa preferência dada pelo legislador, visto haver
rejeitado a adotada por Alcântara Machado, em seu Projeto de Código Criminal.
Isso
dizemos, não abstante reconhecermos que esta última expressão é mais
compreensiva.
2. Definição. Numerosas são as definições do direito penal,
freqüentemente imperfeitas, lembrando-nos o famoso brocardo latino.
Sinteticamente, Von Liszt define-o como "conjunto das prescrições
emanadas do Estado, que ligam ao crime, como fato, a pena como conseqüência".
Não se afasta
muito dessa definição a de Mezger: " Direito Penal é o conjunto de normas
jurídicas que regulam o poder punitivo do Estado, ligando ao delito, como
pressuposto,
a pena como conseqüência". Bem mais ampla é a de Asúa: "Conjunto de normas y
disposiciones jurídicas que regulan el ejercicio Del poder sancionador y
preventivo
Del Estado, estabeleciendo el concepto Del delito como presupuesto de la acción
estatal, así como la responsabilidad del sujeto activo, y asociando a la
infracción
de la norma una pena finalista o una medida aseguradora".
Realmente, não se pode dizer que o direito penal se ocupa somente com o
crime e a pena. Não só outras conseqüências oriundas do delito apresentam, como
também
mais vasto é o campo dessa disciplina. Aliás, o próprio Mezger, em seguida à sua
definição, acentua que o direito penal do presente saltou o marco dessa
denominação
e que seu conteúdo se estende mais além dos limites que lhe assinala o sentido
gramatical do nome. Já não se pode falar só da pena como conseqüência jurídica
do
crime.
Resumidamente: direito penal é o conjunto de normas jurídicas que
regulam o poder punitivo do Estado, tendo em vista os fatos de natureza criminal
e as medidas
aplicáveis a quem os pratica.

3.Caracteres. Pertence o direito penal ao direito público. Violada a


norma penal, efetiva-se o jus puniendi do Estado, pois este, responsável pela
harmonia
e estabilidade sociais, é o coordenador das atividades dos indivíduos que
compõem a sociedade.
Os bens tutelados pelo direito penal não interessam exclusivamente ao
indivíduo, mas a toda coletividade. A relação existente entre o autor de um
crime e
a vítima é de natureza secundária, já que ela não tem o direito de punir. Mesmo
quando exerce a persecutio criminis, não goza daquele direito, pois o que lhe se
transfere unicamente é o jus accusationis, cessando qualquer atividade sua com a
sentença transitada em julgado.
O delito é, pois, ofensa à sociedade, e a pena, conseqüentemente, atua
em função dos interesses desta. Logo é o Estado o titular do jus puniendi, que
tem,
dessarte, caráter público.
É o direito penal ciência cultural normativa, valorativa e finalista.
Na divisão das ciências em naturais e culturais, pertence ele a esta
classe, ou seja, à das ciências do dever ser e não à do ser, isto é, à das
ciências
naturais.
É ciência normativa, pois tem por objeto o estudo da norma, contrapondo-
se a outras que são causas-explicativas. Tem a norma por objeto a conduta ou o
que
se deve ou não fazer, bem como a conseqüência advinda da inobservância do que
impõe.
As ciências causais-explicativas podem também estudar a norma, mas
ocupam-se com o porquê e como de sua gênese, com os efeitos sociais, a causa de
seu desaparecimento
etc., como escreve Grispigni.
É também o direito penal valorativo. Como efeito, o direito não empresta
às normas o mesmo valor, porém este varia, de conformidade com o fato que lhe dá
conteúdo. Nesse sentido, o direito valoriza suas normas, que se dispõem em
escala hierárquica. Incumbe ao direito penal, em regra, tutelar os valores mais
elevados
ou preciosos, ou, se quiser, ele atua somente onde há transgressão de valores
mais importantes ou fundamentais para a sociedade.
Outro caráter seu é ser finalista. Embora alguns, como Kelsen, sustentem
que o fim não pertence ao direito, mas à política ou à sociologia, tem o direito
um escopo que se resume na proteção do bem ou interesse jurídico. Bem é tudo
quanto pode satisfazer uma necessidade humana, e interesse é a relação que se
estabelece
entre o indivíduo e o bem. É freqüenteque as duas expressões sejam empregadas
como sinônimas, o que não acarreta prejuízo, pois, se o interesse é o resultado
da
avaliação que o indivíduo faz da idoneidade de um bem, é claro que a norma,
protegendo o bem, tutela igualmente o interesse.
Esses bens e enteresses pertencem não só ao indivíduo, mas à sociedade,
e de sua coordenação e harmonia resulta a ordem jurídica.
É o direito penal sancionado. A origem desta opinião parece ter sido
Rousseau, ao dizer que "as leis criminais, no fundo, antes que uma espécie
particular
de leis, são sanções de todas as outras".
Não estamos, entretanto, em zona pacífica: numerosos autores afirmam ser
ele constitutivo.
Cremos, com Grispigni e outros, que o preceito primário penal é
complemento e reforço de um extrapenal. Isso não importa que ele suceda sempre a
este, no
tempo, mas sim que lhe é logicamente posterior. Trata-se de sentido lógico e não
cronológico. Acrescenta esse autor que bem se compreende que, por princípio de
economia
do direito, quando o Estado pode combater um mal com sanção menos grave, como a
civil, não irá lançar mão da mais severa, que é a penal - a qual, lembramos nós,
pode chegar até a supressão da vida humana.
Conseqüentemente, compreende-se que, sob ponto de vista lógico-
sistemático, a sanção penal seja posterior a outras.
Reforçando seu ponto de vista, observa o eminente autor que todos os
Códigos Penais contêm disposição excludente da antijuridicidade: quando o fato é
praticado
no exercício regular do direito (CP, art. 23, III ). Ora, se não há crime,
quando o fato é praticado nessas condições, é porque, principalmente, ele há de
ser vedado
por outro ramo jurídico.
Em suma: parece-nos difícil sustentar que um crime não é sempre um
ilícito extrapenal. Há uma relação de mais para menos.
Não obstante isso, não se lhe nega autonomia normativa, como escreve
Maggiore: "In conclusione, dunque l'ordinamento penale há sempre valore
sanzionatorio,
perchè de sue norme, aderiscono o no a precetti posti da altri rami Del diritto,
agiscono mediante quella particolare sanzione Che è la pena. Nè in tal modo esce
menomata l'autonomia Del diritto penale, perchè in ogni caso la sanzione imprime
uma nuova forma al precetto, anche se attinto ad altro ordinamento giuridico".
O mesmo diz Grispigni:"Essa autonomia, no sistema das normas jurídicas,
resulta, de um lado, do caráter específico da própria sanção (sanção criminal)
e.
de outro lado, do fato de que o Direito Penal determina, de modo todo autônomo,
quais são as ações que constituem crime, os elementos deste etc., determinando,
pois,
com inteira autonomia o próprio Ipraeceptum legis".
4. Conteúdo. Não somente o crime e a pena dão corpo ao direito penal. A
esses elementos outros se acrescentam, como o delinqüente. Erraria quem pensasse
que a consideração do homem criminoso como objeto do direito penal é profissão
de fé positivista. O crime é sobre tudo um fato humano, e, no estudo deste, não
se
pode olvidar o homem, para se permanecer em contemplação abstrata e formal da
espécie delituosa. Ao contrário, há de se fazer o estudo jurídico do sujeito
ativo
e das situações jurídicas por ele criadas.
Por outro lado, o direito penal não se exaure com o fim repressivo, mas
deve valer-se de medidas de caráter preventivo. Mesmo quando pertencentes a
outro
ramo do direito, devem por ele ser consideradas.
Ressalte-se também a importância que hoje têm as medidas de segurança,
mesmo que sejam consideradas como sanções punitivas, compreendidas no conceito
unitário
da pena.
E as próprias conseqüências que tradicionalmente são de natureza civil,
como a indenização do dano causado pelo delito, superam a concepção
exclusivamente
privada, para adquirirem valorização nova que as aproxima de instituições de
caráter público, pois o problema social que contêm transcende ao mero interesse
individual,
já pelo objetivo da prevenção, já como procedimento geral, para solucionar a
questão econômica-social criada pelo conjunto dos prejudicados pela
delinqüência.
5. Dirieto penal objetivo e direito penal subjetivo. Já tivemos ocasião
de reproduzir definições de direito penal subjetivo, de Von Liszt, Mezger e Asúa
(n. 2). Em resumo, constitui-se ele de preceitos legais que regulam a ação
estatal, definindo crimes e impondo penas e outras medidas.
Direito penal subjetivo é o jus puniendi, que se manifesta pelo poder de
império do Estado. É este seu titular, o que se justifica por sua razão
teleológica,
que é a consecução do bem comum, em que pese às arremetidas do anarquismo puro,
do anarquismo cristão de Tolstoi e do anarquismo conciliador de Solovief e
Kropotkin,
quiméricos e insuficientes.
Compete ao Estado o direito de punir, porém não é este elimitado ou
arbitrário. A limitação está na lei. Ao mesmo tempo em que ele diz ao indivíduo
quais
as ações que pode ou não praticar, sob ameaça de sanção - restringindo,
dessarte, os interesses e faculdades individuais, em benefício da coletividade -
vincula-se
juridicamente a si mesmo. Com efeito, há autolimitação por ele ditada, através
da lei, pois, quando baixa uma norma, impondo determinada conduta,
concomitantemente
está ditando o seu comportamento em relação a ela e criando direitos individuais
contra ele mesmo.
O direito penal subjetivo delimita-se, portanto, com o direito penal
objetivo.
6. Caráter dogmático. Como ciência jurídica, tem o direito penal caráter
dogmático, não se compadecendo com tendências causais-explicativas.Não tem por
escopo
considerações biológicas e sociológicas acerca do delito e do delinqüente, pois,
como já se escreveu, é uma ciência normativa, cujo objeto é não o ser, mas o
dever
ser, o que vale dizer, as ordenações e os preceitos, ou antes, as normas legais,
sem preocupações experimentais acerca do fenômeno do crime.
Seu método é o técnico jurídico, cujos meios nos levam a conhecimento
preciso e exato de norma. Orienta-nos no estudo das relações jurídicas, na
elaboração
dos institutos e formulação do sistema. Tal método é de natureza lógico-
abstrata, o que bem se compreende, já que, se a norma jurídica tem por conteúdo
deveres,
para conhece-los bastam sua consideração e estudo, nada havendo para observar
ou experimentar.
Cumpre, entretanto, evitar excessos do dogmatismo, pois a verdade é que,
como reação ao positivismo naturalista, que pretendia reduzir o direito penal a
um capítulo da sociologia criminal, excessos se têm verificado, entregando-se
juristas a deduções silogísticas infindáveis, a distinções ociosas, a questões
supérfluas,
a temas de todo estranhos à teologia penal, a discussões terminológicas etc.,
desumanizando o ramo mais humano da ciência do direito. De que vale - pergunta,
por
exemplo, Massimo Punzo - escrever páginas e páginas, para se demonstrar ser a
pena de morte desapropriação por utilidade pública? Esses exotismos, técnico-
jurídicos
é que devem cessar.
Não aplaudimos, entretanto, os que trilham caminho oposto, reduzindo a
dogmática penal à contemplação estática e estéril dos textos legais. Certo é que
ela
tem por objeto o jus positum, porém não se deve circunscrever a um positivismo
jurídico mofino e débil. Não lhe está vedado o devassar de horizontes com o fim
de
propor meios mais eficazes de combate a criminalidade. A faina renovadora, que
se verifica em outros ramos jurídicos, não teria razão de ausentar-se do direito
penal.
Com oportunidade, lembra Asúa que a dogmática é a reconstrução científica do
direito vigente, não da simples lei.
Devemos ter presente que o direito penal, mais que qualquer outro ramo
jurídico, está em íntimo contato com o indivíduo e a sociedade, o que, se não
basta
para autorizar as extremadas pretensões do positivismo naturalidade desautoriza
também os acanhados limites do raquítico positivismo jurídico.
As reconstruções dogmáticas são formas jurídicas de conteúdo humano e
social, donde o jurista não há de olvdar a realidade da vida, com suas
manifestações,
exigências e vibrações sócias.
7. Direito penal comum e direito penal especial. Delimitando o conceito
do direito penal, os autores distinguem-no em comum e em especial, apresentando
este
várias subdivisões. A primeira é o direito penal disciplinar. É exercido pela
administração e supõe, no destinatário da norma, relação de dependência de
caráter
administrativo ou de subordinação hierárquica, empregando sanções de caráter
meramente corretivo. Ao contrário do direito penal comum, não se exterioriza em
figuras
típicas, mas as infrações são previstas de modo vago ou genericamente.
Fala-se também em direito penal administrativo, conjunto de disposições
que , mediante uma pena, tem em vista o cumprimento, pelo particular, de um
dever
seu para com a administração. Apontam alguns, como seu capítulo mais importante,
o direito penal fiscal ou financeiro.
Direito penal militar, aplicável somente a determinada classe de pessoas
e por órgãos próprios. Direito penal político, em que atua justiça
especialíssima,
como no caso do impeachment. (CF, art. 86).
Enumeram-se ainda o direito penal econômico, próprio dos regimes
autoritários ou de economia dirigida; direito penal do trabalho ou corporativo,
muito em
voga no fascismo, mas desaparecido com ele; direito penal industrial e
intelectual, a que se quis dar injustificada amplitude, abrangendo toda a
propriedade intelectual,
nas suas manifestações industrial, intelectual e artística; direito penal da
imprensa, de autonomia não justificada, pois compreende crimes que apenas de
diferenciam
pelo modo de execução; direito penal eleitoral, cuja consideração à parte não
procede, já porque sua justiça é constituída quase toda por juízes da comum, já
porque
os próprios crimes eleitorais são complementares da legislação penal ordinária.
Geralmente, os autores se pronunciam pela autonomia do direito penal
disciplinar, militar, político e administrativo. Asúa não aceita a deste.
A nosso ver, o melhor critério que estrema o direito penal comum dos
outros é o da consideração do órgão que os deve aplicar jurisdicionalmente. Como
escreve
José Frederico Marques: " Se a norma penal objetiva somente se aplica através de
órgãos constitucionalmente previstos, tal norma agendi
tem caráter especial; se sua aplicação não demanda jurisdições próprias, mas se
realiza através da justiça comum, sua qualificação será a de norma penal comum".
8. Direito penal substantivo e direito penal adjetivo. Desde há muito,
autores de renome, como Feuerbach e Carmignani, consideram o direito penal
processual,
então chamado adjetivo ou formal, como integrante do direito penal ou
substantivo.
A consideração não nos parece exata. Tem ele autonomia. Se mantém estreita
relação com o direito penal, também íntima, senão talvez maior, é a com o
processual
civil. Não se deve esquecer, aliás, que ele se ocupa também de direitos
essencialmente substantivos como o de ação.
Consoante escreve Asúa, o fato de, em algumas Universidades, serem
lecionadas ambas as disciplinas na mesma cátedra tem sido o motivo dessa
conceituação; porém
o direito penal processual possui indiscutível personalidade e conteúdo próprio,
não podendo ser considerado elemento integrante do direito penal stricto
sensul6.

RELAÇÕES DO DIREITO PENAL!

SUMÁRIO: 9. Relações do direito penal comas ciências jurídicas


fundamentais. 10. Relações do direito penal com outros ramos jurídicos. 11. O
direito penal
e a criminologia. 12. A penologia. 13. A política criminal. 14. O direito penal
e as disciplinas auxiliares.

9. Relações do direito penal com as ciências jurídicas fundamentais.


Vincula-se o direito penal à filosofia do direito, pois esta lhe fornece
princípios que
não só circunscrevem seu âmbito como lhe definem as categorias e conceitos. Como
lembra Maggiore, as noções de delito, pena, imputabilidade, culpa, dolo, ação,
causalidade,
liberdade, necessidade, acaso, normalidade, erro, e outros, são conceitos
filosóficos antes de serem categorias jurídicas!.
Quando a filosofia do direito descobre novas relações jurídicas, revela
também novos objetos para a função punitiva. Acentuado, como foi, o caráter
sancionador
do direito penal, difícil é que transformações ou modificações de importância na
legislação de um povo não atinjam também seu Código Penal.
Exato é, outrossim, que não se pode elaborar o preceito penal, sem prévio
juízo de valor - e por isso já se apontou também o caráter valorativo do direito
penal - o que é operação ética, prendendo-se ele, igualmente, à filosofia moral.
Por fim sabido é que a "filosofia entra em casa sem ser convidada", como
lembra aquele jurista e, portanto, vão será qualquer esforço para se repudiar a
filosofia
jurídica no estudo do direito penal.
Relação mantém ele com a teoria geral do direito, pois esta elabora
conceitos e institutos jurídicos comuns a todos os ramos do direito. Há,
portanto, entre
eles, a relação que existe entre a ciência geral e a particular.
Serve ela de vínculo entre a filosofia jurídica e o direito positivo, por ser
por seu intermédio que a primeira coordena e sistematiza os princípios básicos
do segundo.

Tal se opera, sem identificação matemática de todos os conceitos


jurídicos. O sentido de um conceito pode variar nos diversos ramos jurídicos,
sem se quebrar
a unidade substancial dos princípios gerais.
Compreende-se o liame entre o direito penal e a sociologia jurídica. Esta
estuda o ordenamento jurídico nas causas e na função social. Tem por objeto o
estudo
do fenômeno jurídico como fato social e resultante de processos sociais,
ocupando-se ainda dos efeitos das normas jurídicas na sociedade.
Concebe-se a relação entre eles quando se reflete que as normas penais
outra coisa não são que realidades sociais, revestidas de forma jurídica.

10. Relações do direito penal com outros ramos jurídicos. Com o direito
constitucional apresenta o penal afinidades no tocante aos conceitos de Estado,
direitos
individuais, políticos, sociais etc. Subordina-se, evidentemente, ao
Constitucional, já que um Código Penal não pode fugir à índole da Constituição.
Se esta é liberal,
liberal também será ele. Tal dependência é tão íntima que leva Asúa a dizer que
toda nova Constituição requer novo Código Penal.
O delito político sofre remarcada influência da Constituição do Estado.
Nos regimes liberais não é ele tratado com a severidade dos autoritários.
Entre nós, a Constituição Federal é fonte formal das normas penais,
quando, v. g., dispõe sobre a amplitude de defesa (art. 5.°, LV) e o juiz
natural (art.
5.°, LIII), a individualização da pena (art. 5.°, XLVI) e sua retroatividade
(art. 5.°, XL), sua personalidade (art. 5.°, XLV) etc. Outros preceitos de
índole liberal
podiam ainda ser apontados.
Relações também se manifestam entre os dois direitos, quando a
Constituição dispõe sobre a competência da União para legislar sobre o direito
penal, para conceder
anistia etc.
Estreito é o liame quando o Código Penal passa a definir os crimes contra
o Estado e seus órgãos. Por outro lado, a Constituição Federal genericamente se
refere
a numerosos delitos, como os comuns, dolosos contra a vida, políticos etc.
Enfim, tutelando os direitos fundamentais do homem e cuidando do funcionamento
dos órgãos da soberania estatal, a Constituição traça limites, além dos quais as
leis
- e, portanto, as penais - não poderão ir, sob pena de inconstitucionalidade.
Direito penal e direito administrativo também se conjugam, pois a função
de punir é eminentemente administrativa, já que a observância da lei penal
compete
a todos e é exigi da pelo Estado.
São suas relações manifestas porque, não poucas vezes, ambos tratam e se
ocupam dos mesmos institutos. Assim, no tocante à execução das sanções impostas
pela
lei penal. Aliás, as medidas de segurança são, para muitos, providências de
cunho administrativo - misure amministrative de sicurezza, dizem os italianos -
não obstante
serem capituladas nos Códigos Penais.
Finalmente, a lei penal não olvida punir fatos em defesa da ordem e
regularidade da administração pública, como ocorre entre nós.
Íntima é a relação com o direito processual. Aliás, nas legislações de
antanho, preceitos penais e processuais penais apareciam juntos.
Divide-se o direito processual em civil e penal. Mesmo com o primeiro
relaciona-se nossa disciplina, pois, não obstante a diferença de procedimento -
penal
e civil - ambos possuem normas comuns, como o ato processual e a sentença.
Mais íntima é a relação com o processo penal. Enquanto no direito penal se
consubstancia o jus puniendi, o processual o realiza com o se ocupar com a
atividade
necessária para apurar, nos casos concretos, a procedência da pretensão punitiva
estatal.
Defendendo a função dos órgãos encarregados daquela realização, o direito
penal comumente pune fatos que a podem molestar ou ofender, ora se referindo
exclusivamente
ao processo penal (arts. 339, 340 e 341), ora ao civil (art. 358) e ora a ambos
(arts. 342, 344, 346, 347 e 355). Com esse objetivo, os Códigos Penais costumam
dispor
de todo um capítulo que trata dos crimes contra a administração da justiça. Com
a promulgação da Lei n. 10.028, de 19 de outubro de 2000, foi alterada a redação
do art. 339 e acrescentou-se o Capítulo IV ao Título XI do Código Penal, com a
denominação específica "Crimes contra as Finanças Públicas", complementando-se a
tutela
em relação às ofensas à administração da justiça.
Em suma, é freqüente que problemas da maior importância interessem a ambos
os ramos jurídicos, tal qual acontece com a tipicidade, cuja influência no
terreno
processual, hoje, não é lícito negar.

Com o direito internacional público, relaciona-se também o penal, tanto


que alguns autores chegam a falar num direito penal internacional, quando se
trata
de capítulo de direito internacional privado (n. 42).
Atinências entre eles se verificam no tocante às leis penais no espaço.
Cumpre, por fim, salientar o objetivo universal da luta contra a criminalidade,
exigindo
a conclusão de acordos de caráter internacional, como os relativos ao tráfico de
brancas, objetos obscenos, extradição etc.
Não é necessário acentuar a conjugação do direito penal com o
penitenciário, chamado também executivo penal, considerado por muitos como
ciência jurídica que
se apartou daquele. Compõe-se de normas jurídicas que regulam a execução das
penas e das medidas de segurança, desde o momento em que se toma exeqüível o
título
que legitima sua execução, consoante Novelli, o grande defensor de sua
autonomia, reconhecida, aliás, pelo Congresso Penal Internacional de Palermo, em
1932.
Nega-lhe Asúa o título de direito, que, ademais, segundo ele, estaria em
elaboração.
Vincula-se também o direito penal ao direito privado, pois, de natureza
sancionatória, ele reforça a proteção jurídica contra os atos ilícitos.
Títulos do Código Penal há em que o caráter sancionador do direito privado
se patenteia, como ocorre nos crimes patrimoniais: furto, esbulho possessório,
alteração
de limites, apropriação indébita, estelionato, fraude no pagamento por meio de
cheque, duplicata simulada, emissão irregular de warrant, fraudes ou abusos na
fundação
ou administração de sociedade por ações, para só citar alguns.
Como conseqüência da intervenção estatal, tendente a evitar os excessos e
desmandos do liberalismo econômico, protegendo o fraco contra o forte, é
compreensível
que se amplie cada vez mais o campo da ilicitude punível, passando para sua
órbita o que dantes se confinava na esfera do ilícito civil.
Tal se dá não apenas nos domínios econômicos. Vejam-se, por exemplo,
figuras delituosas como o abandono de família (art. 244) e o perigo de contágio
(art.
130), não considerados ilícitos penais pelos estatutos de 1830 e 1890.
Contato íntimo com o direito privado revela quando nele vai o penal buscar
conceitos para a definição de crimes: casamento, parentesco, direitos autorais,
títulos de crédito, concorrência desleal, sociedades comerciais etc.

11. O direito penal e a criminologia. Delito, delinqüente e pena não são


estudados exclusivamente sob o ponto de vista jurídico. Outras ciências com eles
se
ocupam e, dentre elas, a criminologia, denominação que comumente se atribui a
Garofalo, mas que parece ter sido primeiramente empregada pelo antropólogo
francês
Topinard.
É ela ciência causal-explicativa. Estuda as leis e fatores da
criminalidade e abrange as áreas da antropologia e da sociologia criminal. Com o
objetivo de
estudar o delito e o delinqüente, encara os fatores genéticos e etiológicos da
criminalidade, ao mesmo tempo que considera o crime em função da personalidade
do
criminoso.
Acreditamos que sinceramente não se pode negar o valor da criminologia.
Não só é uma realidade a existência de leis que regem a criminalidade, bem como
real
é também a influência de fatores individuais na gênese do delito.
Existe conexão entre ela e a dogmática penal, como relação existe entre as
ciências causais-explicativas e as de conteúdo ético, a cujo encargo fica o
juízo
valorativo, pois aquelas não firmam juízos de valor sobre o seu objeto, deixando
essa função às ciências de natureza ética.
Com o advento da primeira lei específica de execução penal (Lei n. 7.210),
a criminologia ganhou a condição de matéria legislada com a introdução do exame
criminológico. O binômio delito-delinqüente, numa interação de causa e efeito,
em sentido investigatório, passou a ser elemento essencial para a execução da
pena,
como se constata dos arts. 5.° e S. da lei específica. O citado art. 5.° fala em
classificação dos condenados, para efeito de individualização da execução penal,
"segundo seus antecedentes e personalidade", isto é, através do exame
criminológico e do exame de personalidade.
Vários outros dispositivos também se servem da criminologia como, a título
de exemplo, o art. 112, parágrafo único, relativo ao regime para a execução da
pena
privativa de liberdade.
A criminologia, como escreve López Rey y Arrojo, estuda a causação do
crime, ficando a cargo do direito penal a causalidade, compreendida aquela como
etiologia
ou estudo das causas da delinqüência, e entendida esta como o processo de
realização do delito, o estudo da relação que existe entre a manifestação da
vontade e
o evento produzidos.
Em suma, embora ambos estudem o crime, fazem-no em campos diferentes,
acentuando-se, contudo, que, não obstante ser autônoma, recebe a criminologia do
direito
penal o juízo valorativo do fato delituoso.
Da criminologia, destaca-se a antropologia criminal que estuda o homem
delinqüente. Deve-se seu aparecimento a César Lombroso. Hoje é também denominada
biologia
criminal.
Tem por finalidade, com o estudo dos caracteres fisiopsíquicos do
delinqüente, em conjunto com a influência externa, esclarecer a gênese do fato
delituoso.
Estudando o homem delinqüente, na sua unidade de corpo e espírito, ela se
divide em três partes: morfologia (estudo dos caracteres orgânicos),
endocrinologia
(estudo dos caracteres humorais) e psicologia criminal (estudo dos caracteres
psíquicos)6, não se vendo razão de destacar esta última, como coisa distinta, já
que
é antropologia criminal. Certo é que avulta em sua importância, mas não nos
parece que se deva estremá-la da antropologia, como faz Asúa.
Ocupa-se ela ainda com as influências físicas e sociais (fatores
exógenos), já que o homem deve ser considerado juntamente com o meio em que
vive.
Capítulo importante da criminologia é a sociologia criminal, que tem por
objeto o estudo do delito como fenômeno social. Deve-se o nome a Enrico Ferri,
que
sustentou ser ela a ciência enciclopédica do crime, concepção inaceitável mesmo
por ardentes positivistas-naturalistas.
Enquanto a antropologia estuda o crime atribuído ao indivíduo ou como fato
individual, a sociologia ocupa-se com a criminalidade global, atribuída à
sociedade
em que se verifica. Aquela é a ciência do delinqüente; a outra é a da sociedade
em relação ao delito, ou, como escreve Grispigni: "La scienza che studia Ia
società
daI punto di vista dei fenomeni criminosi che in essa si verificano".
É, pois, a sociologia criminal o estudo da criminalidade como fenômeno
social. Seu método é o estatístico.

12. A penologia. Como ramo da criminologia apontam ainda alguns a


penologia. É que, como acentua Roberto Lyra, o estudo filosófico e sociológico
da pena adquiriu
tal vulto que se sustenta a necessidade de uma ciência que a encare não só sob
aqueles prismas, mas ainda quanto ao histórico, científico e jurídico. Não se
ocuparia
somente da pena, mas também das medidas de segurança e das instituições
destinadas à readaptação dos egressos.
O vocábulo penologia foi empregado pela primeira vez em 1834 por Francis
Lieber, publicista germânico que viveu nos Estados Unidos. Todavia não se
definiu
ainda com toda a precisão seu âmbito ou conteúdo. Alguns a denominam ciência
penitenciária, que teria por objeto os sistemas penitenciários e as espécies de
pena
e de medida de segurança.
Cremos, entretanto, que razão têm os que, como Asúa, lhe negam o caráter
de ciência, por lhe faltar conteúdo próprio, já que, se a pena é encerrada sob o
aspecto
sociológico, compete à sociologia criminal seu estudo, como querem alguns, ou à
sociologia penal, como propugna Grispigni; se é tomada como conseqüência do
crime,
entra no campo do direito penal; se se tem em vista sua execução, é objeto do
direito penitenciário; se, enfim, se cogita da apresentação de iniciativas e
providências
para reforma do sistema punitivo, a matéria pertence à política criminal.

13. A política criminal. Tem ela tido maior desenvolvimento na Alemanha,


conquanto geralmente se aponte como seu berço a Itália.
Consideram-na alguns como o estudo dos meios de combater o crime depois de
praticado; outros, entretanto, ampliam-lhe o conteúdo, para a conceituarem como
crítica e reforma das leis vigentes. A maioria nega-lhe caráter científico,
reduzindo-a antes à arte de legislar em determinado momento, segundo as
necessidades
do povo e de acordo com os princípios científicos imperantes.
É ela crítica e reforma. Crítica quando examina e estuda as instituições
jurídicas existentes, e reforma quando preconiza sua modificação e
aperfeiçoamento.
Vincula-a Grispigni à criminologia: deve ela, "com fundamento nas
conclusões da Antropologia e da Sociologia Criminal, sugerir os meios mais
idôneos para a
prevenção e repressão dos crimes"". Entretanto, Asúa12, com exatidão, tem-na
como parte do direito penal, visto ser corolário da dogmática, e exemplifica,
dizendo
que, se um dogmático, examinando o Código Penal de um país e não encontrando aí
esposado o sursis, e, ciente de sua necessidade e eficácia pela dogmática,
propuser
a adoção, estará fazendo política criminal. Para o citado autor, ela é a arte de
"traspasar en un momento determinado, a Ia legislación positiva, Ia aspiración
proveniente
de los ideales, ya realizable", finalizando por dizer não ser uma ciência,
tampouco a moderna e promissora disciplina que Franz von Liszt pretendeu criar.
Compreende-se sua estreita relação com a dogmática penal, porque pertence
a esta a crítica objetiva da legislação vigente, e é dela que se há de partir
para
novas concepções e mesmo para a criação de um novo direito.

14. O direito penal e as disciplinas auxiliares. Ao lado do direito penal,


disciplinas apresentam-se que lhe auxiliam a realização ou aplicação das normas.
A medicina legal é considerada, por Afrânio Peixoto, como aplicação de
conhecimentos científicos e misteres da justiça, advertindo o eminente professor
que
não é uma ciência autônoma, mas conjunto de aquisições de vária origem para fim
determinado.
Palmieri discorre, definindo-a como a aplicação de noções médicas e
biológicas às finalidades da justiça e à evolução do direito. Compreende
concomitantemente
o estudo das questões jurídicas, que podem ser resolvidas exclusivamente com os
conhecimentos biológicos e principalmente médicos, e o estudo dos fenômenos
biológicos
e clínicos que servem à solução dos problemas judiciários.
Valioso é seu concurso no estudo dos crimes contra a vida, nos sexuais
etc. Aplicações suas diariamente temos na investigação de crimes, com o exame
das manchas,
impressões, pegadas, sinais e outros. De sua importância, entre nós, fala bem
alto a existência da cadeira de Medicina Legal, em nossas Faculdades de Direito.

A psiquiatria forense, a rigor, integra-se na medicina legal; porém, dado


seu desenvolvimento, é, hoje, considerada à parte.
Tem por escopo o estudo dos distúrbios mentais, em face dos problemas
jurídicos. Dupla é a tarefa do psiquiatra, ora colaborando com o legislador, na
definição
e solução de problemas do direito, ora com o magistrado, na aplicação da lei ao
caso concreto.
Quanto à segunda, deve limitar-se a, pelo estudo e observação do
delinqüente psicopata, oferecer elementos seguros e necessários ao juiz, para
decidir, e nunca
opinar sobre a responsabilidade jurídica, tarefa do julgador.
Com a adoção das medidas de segurança, mais se ampliou o campo da
psiquiatria forense.
A psicologia judiciária, ramo da psicologia aplicada, distingue-se da
psicologia criminal (estudo dos caracteres psíquicos do delinqüente, a influírem
na
gênese do delito), e tem por objeto a obtenção da verdade no desenrolar do
processo. Com esse fito, ocupa-se do acusado, juiz, ofendido, testemunhas etc.
Sua importância, hoje, avulta, após os numerosos e acurados estudos da
psicologia do testemunho, mostrando-nos suas imperfeições, deficiências etc., e,
assim,
patenteando a relatividade desse meio probatório.
De modo geral, compreende-se sua importância para a avaliação da prova.
A estatística criminal mantém íntima relação com a sociologia criminal.
Tem por objeto revelar, por meio de dados numéricos, as relações causais entre
os fatores
endógenos e, principalmente, os exógenos e a criminalidade.
Tem valor, entretanto, relativo, mesmo porque há elementos que influem na
delinqüência e escapam de seu campo.
A polícia científica consiste, segundo Grispigni: "No estudo dos meios
sugeridos por diversas ciências como os mais adequados aos fins da polícia
judiciária
de apuração do crime e da autoria". Com essa finalidade, ela se vale dos
conhecimentos que outras disciplinas, como a medicina legal, lhe fornecem. Asúa
considera-a
como ramo da criminalística, disciplina mais ampla, que não se circunscreve ao
estudo dos métodos e meios de elucidar o crime e individualizar o autor, pois se
ocupa
dos conhecimentos que devem possuir todos os que intervêm na administração da
justiça criminal, membros da polícia, advogados criminalistas etc. Capítulo de
inegável
importância da criminalística é o da especialização dos juízes do crime.

EVOLUÇÃO HISTÓRICA DAS IDÉIAS PENAIS

SUMÁRIO: 15. Tempos primitivos. 16. Vingança privada. 17. Vingança divina. 18.
Vingança pública. 19. Período humanitário. 20. Período criminológico.

15. Tempos primitivos. A história do direito penal é a história da


humanidade. Ele surge com o homem e o acompanha através dos tempos, isso porque
o crime,
qual sombra sinistra, nunca dele se afastou.
Claro é que não nos referimos ao direito penal como sistema orgânico de
princípios, o que é conquista da civilização e data de ontem.
A pena, em sua origem, nada mais foi que vindita, pois é mais que
compreensível que naquela criatura, dominada pelos instintos, o revide à
agressão sofrida
devia ser fatal, não havendo preocupações com a proporção, nem mesmo com sua
justiça.
Em regra, os historiadores consideram várias fases da pena: a vingança
privada, a vingança divina, a vingança pública e o período humanitário. Todavia
deve
advertir-se que esses períodos não se sucedem integralmente, ou melhor, advindo
um, nem por isso o outro desaparece logo, ocorrendo, então, a existência
concomitante
dos princípios característicos de cada um: uma fase penetra a outra, e, durante
tempos, esta ainda permanece a seu lado.

16. Vingança privada. Como se observa nas espécies inferiores, a reação à


agressão devia ser a regra. A princípio, reação do indivíduo contra o indivíduo,
depois,
não só dele como de seu grupo, para, mais tarde, já o conglomerado social
colocar-se ao lado destes. É quando então se pode falar propriamente em vingança
privada,
pois, até aí, a reação era puramente pessoal, sem intervenção ou auxílio dos
estranhos.
Entretanto, o revide não guardava proporção com a ofensa, sucedendose, por
isso, lutas acirradas entre grupos e famílias, que, assim, se iam debilitando,
enfraquecendo
e extinguindo. Surge, então, como primeira conquista no terreno repressivo, o
talião. Por ele, delimita-se o castigo; a vingança não será mais arbitrária e
desproporcionada.
Tal pena aparece nas leis mais antigas, como o Código de Hamurabi, rei da
Babilônia, século XXIII a.C., gravado em caracteres cuneiformes e encontrado nas
ruínas de Susa. Por ele, se alguém tira um olho a outrem, perderá também um
olho; se um osso, se lhe quebrará igualmente um osso etc. A preocupação com a
justa retribuição
era tal que, se um construtor construísse uma casa e esta desabasse sobre o
proprietário, matando-o, aquele morreria, mas, se ruísse sobre o filho do dono
do prédio,
o filho do construtor perderia a vida. São prescrições que se encontram nos § §
196, 197, 229 e 230.
Outras legislações também adotaram o talião. Veja-se, por exemplo, a
hebraica: o Êxodo (23, 24 e 25), o Levítico (17 a 21) e outros a consagrarem o
"olho por
olho, dente por dente, mão por mão, pé por pé".
Conquista igualmente importante foi a composição, preço em moeda, gado,
vestes, armas etc., por que o ofensor comprava do ofendido ou de sua família o
direito
de represália, assegurando-se a impunidade.
Adotaram-na o Código de Hamurabi, o Pentateuco, o de Manu e outros,
podendo dizer-se que permanece até hoje entre os povos, sob a forma de
indenização, multa,
dote etc.

17. Vingança divina. Já existe um poder social capaz de impor aos homens
normas de conduta e castigo. O princípio que domina a repressão é a satisfação
da divindade,
ofendida pelo crime. Pune-se com rigor, antes com notória crueldade, pois o
castigo deve estar em relação com a grandeza do deus ofendido.
É o direito penal religioso, teocrático e sacerdotal. Um dos principais
Códigos é o da Índia, de Manu (Mânava, Dharma, Sastra). Tinha por escopo a
purificação
da alma do criminoso, através do castigo, para que pudesse alcançar a bem-
aventurança. Dividia a sociedade em castas: brâmanes, guerreiros, comerciantes e
lavradores.
Era a dos brâmanes a mais elevada; a última, a dos sudras, que nada valiam.
Revestido de caráter religioso era também o de Hamurabi. Aliás, podemos
dizer que esse era o espírito dominante nas leis dos povos do Oriente antigo.
Além
da Babilônia, Índia e Israel, o Egito, a Pérsia, a China etc.
Ao lado da severidade do castigo, já apontada, assinalava esse direito
penal, dado seu caráter teocrático, o ser interpretado e aplicado pelos
sacerdotes.

18. Vingança pública. Nesta fase, o objetivo é a segurança do príncipe ou


soberano, através da pena, também severa e cruel, visando à intimidação.
Na Grécia, a princípio, o crime e a pena inspiravam-se ainda no sentimento
religioso. O direito e o poder emanavam de Júpiter, o criador e protetor do
universo.
Dele provinha o poder dos reis e em seu nome se procedia ao julgamento do
litígio e à imposição do castigo.
Todavia seus filósofos e pensadores haveriam de influir na concepção do
crime e da pena. A idéia de culpabilidade, através do livre arbítrio de
Aristóteles,
deveria apresentar-se no campo jurídico, após firmar-se no terreno filosófico e
ético. Já com Platão, nas Leis, se ante vê a pena como meio de defesa social,
pela
intimidação - com seu rigor - aos outros, advertindo-os de não delinqüirem.
Dividiam os gregos o crime em público e privado, conforme a predominância
do interesse do Estado ou do particular.
Certo é que, ao lado da vingança pública, permaneciam as formas anteriores
da vindita privada e da divina, não se podendo, como é óbvio, falar em direito
penal.
Entretanto, situam, em regra, os historiadores, na Grécia, suas origens remotas.
Roma não fugiu às imposições da vingança, através do talião e da
composição, adotadas pela Lei das XII Tábuas. Teve também caráter religioso seu
direito penal,
no início, no período da realeza. Não tardaram muito, entretanto, a se separarem
direito e religião, surgindo os crimina publica (perduellio, crime contra a
segurança
da cidade, e parricidium, primitivamente a morte do civis sui juris) e os
delicta privara.
A repressão destes era entregue à iniciativa do ofendido, cabendo ao
Estado a daqueles. Mais tarde surgem os crimina extraordinaria, interpondo-se
entre aquelas
duas categorias e absorvendo diversas espécies ou figuras dos delicta privara.
Finalmente, a pena se torna, em regra, pública.
É inegável, então, que, apesar de não haverem os romanos atingido, no
direito penal, as alturas a que se elevaram no civil, se avantajaram a outros
povos.
Distinguiram, no crime, o propósito, o ímpeto, o acaso, o erro, a culpa leve, a
lata, o simples dolo e o dolus malus. Não esqueceram também o fim de correção da
pena: "Poena constituitur in emendationem hominum" (Digesto, Tít. XLVIII, Paulo
- XIX, 20).
Como acentuam os autores, revelou o direito penal em Roma, sobretudo,
caráter social.
No direito germânico, o crime é a quebra da paz. Esta é sinônimo de
direito.
Conheceram os germânicos o talião e a composição, variando esta consoante
a gravidade da ofensa. Compreendia o Wehrgeld, indenização do dano, segundo uns;
verdadeiro ato de submissão do ofensor ao ofendido, segundo outros; a Busse,
preço pelo qual o agressor comprava o direito de vingança do agredido ou de sua
família;
e o Fredus, devido ao soberano. Os dois primeiros distinguiam-se em que aquele
se destinava aos crimes mais graves.
Pena de caráter severo era a da perda da paz, em que, proscrito o
condenado, fora da tutela jurídica do clã ou grupo, podia ser morto não só pelo
ofendido
e seus familiares como por qualquer pessoa.
O uso da força para resolver questões criminais foi do agrado dos povos
germânicos, estando presente até nos meios probatórios. Conseqüências,
certamente,
do caráter individual desse direito, em contraposição ao princípio social do
direito romano.
Característico ainda das leis bárbaras é o relevo do elemento objetivo do
crime. Não há grande preocupação com a culpa (sentido amplo), ou com o elemento
subjetivo
do delinqüente; decide o dano material causado.
Caminho diverso trilharia o direito canônico, quer se opondo à influência
da força como prova judiciária, quer salientando o elemento subjetivo do cnme.
Contra a vingança privada, criou o direito de asilo e as tréguas de Deus.
Combatendo aquela, sem dúvida, fortalecia o poder público.
Justo é também apontar-se, além do elemento voluntarístico do crime, já
mencionado, a finalidade que empresta à pena, objetivando a regeneração ou
emenda do
criminoso, pelo arrependimento ou purgação da culpa. Punições rudes ou severas
tolerou, mas com o fim superior da salvação da alma do condenado.
Trouxe o grande benefício da consagração do princípio da ordem moral,
ditado pelo Cristianismo, pois, até então, predominava o princípio social do
direito
romano ou o individual do germânico.
Esses três direitos, não obstante seus fundamentos diversos, iriam
juntamente contribuir para a formação do direito penal comum, que predominou
durante toda
a Idade Média, e mesmo posteriormente, em vários países europeus.
Maior foi a influência do direito romano, máxime quando a obra dos
glosadores, através do comentário e da exegese dos velhos textos, viria a
revigorá-Io.
A eles sucedem os pós-glosadores, cujos ensinamentos se inspiram nos
deixados pelos precedentes. Finalmente, os práticos: embora presos à casuística,
seus
comentários, tendo por base o direito romano e sentindo a influência do
germânico e do canônico, constituíram os primeiros delineamentos sólidos do
direito penal.
Não exagera Aníbal Bruno quando diz que, até hoje, nos escritos de um Júlio
Claro ou de um Próspero Farinacio, se encontra abundante material de experiência
e judiciosa
observação, para o estudo técnico do direito penal.
Não obstante, ainda não se saíra da fase da vingança pública. A
preocupação era a defesa do soberano e dos favorecidos. Predominavam o arbítrio
judicial, a
desigualdade de classes perante a punição, a desumanidade das penas (a de morte
profusamente distribuída, como entre nós vemos nas Ordenações do Livro V, e dada
por meios cruéis, tais quais a fogueira, a roda, o arrastamento, o
esquartejamento, a estrangulação, o sepultamento em vida etc.), o sigilo do
processo, os meios
inquisitoriais, tudo isso aliado a leis imprecisas, lacunosas e imperfeitas,
favorecendo o absolutismo monárquico e postergando os direitos da criatura
humana.
19. Período humanitário. Tal estado de coisas suscitava na consciência
comum a necessidade de modificações e reformas no direito repressivo.
Intérprete desse anseio foi Cesare Bonesana, Marquês de Beccaria. Nasceu
em Milão, em 1738. Ao invés de se entregar à vida despreocupada e cômoda, que
sua
posição e mocidade lhe proporcionavam, preferiu volver suas vistas para os
infelizes e desgraçados que sofriam os rigores e as arbitrariedades da justiça
daqueles
tempos.
Escreveu seu famoso livro Dei delitti e delle pene (1764), que tanta
repercussão iria causar. Não era um jurista, mas filósofo, discípulo de Rousseau
e Montesquieu.
Sua obra assenta-se no contrato social e logo, de início, chama a atenção para
as vantagens sociais que devem ser igualmente distribuídas, ao contrário do que
sucedia.
No § 11, afirma que as penas não podem passar dos imperativos da salvação
pública. A seguir, sustenta que só às leis cabe cominar penas e somente o
legislador as
pode elaborar.
Diante do arbítrio judicial, impugna a interpretação da lei pelo
magistrado, acrescentando que "nada mais perigoso do que o axioma comum, de que
é preciso
consultar o espírito da lei", o que evidentemente é insustentável, mas que se
explica como reação à arbitrariedade e à injustiça reinantes. Investe contra a
obscuridade
das leis, que deviam ser escritas em linguagem vulgar e não em latim, como era
de costume. Firma bases para a apreciação da prova exigida para a prisão,
ponderando
que, diante dos rigores desta, aquela devia ser abundante e de bases sólidas.
Lembra a seguir que, quando a desumanidade e a crueldade deixassem de reinar nas
masmorras,
então poder-se-ia contentar com indícios mais fracos para a prisão.
No § VII, detém-se na consideração da prova do delito e na forma do
julgamento. Divide aquela em perfeita e imperfeita, declarando que quando a
última ocorrer
é mister que muitas se apresentem para haver condenação. Bate-se pela
publicidade dos julgamentos.
São pontos também analisados: o testemunho humano, opondo-se à interdição,
então reinante, de testemunhar um condenado, e as acusações secretas, invocando
Montesquieu: "As acusações públicas são conformes ao espírito do governo
republicano, no qual o zelo pelo bem geral deve ser a primeira paixão dos
cidadãos".
Nos parágrafos seguintes, combate a tortura nos interrogatórios e
julgamentos; fala sobre a duração dos processos, que deve variar conforme a
importância do
crime, e bate-se pela moderação das penas. Opõe-se à execução capital, que deve
ser substituída pela prisão perpétua; defende o banimento e impugna o confisco e
as penas infamantes. Prega a celeridade e certeza do castigo, o que constitui
verdade incontestável: "Quanto mais pronta for a pena e mais de perto seguir o
delito,
tanto mais justa e útil ela será"; aconselha a proporção entre ela e o delito; e
passa a examinar, em sucessivos capítulos, diversas figuras delituosas (lesa-
majestade,
violências, injúrias, duelos, roubo, contrabando, falência e infrações contra a
tranqüilidade pública).
Não esquece a prevenção do crime e a profilaxia social. Escreve acerca da
ociosidade e do suicídio e fala sobre delitos difíceis de provar: o adultério, o
infanticídio, a pederastia, achando quanto a estes que melhor fora não defini-
Ios como crimes: "Não pretendo enfraquecer o justo horror que devem inspirar os
crimes
de que acabamos de falar. Eu quis indicar suas fontes e penso que me será
permitido tirar daí a conseqüência geral de que não se pode chamar precisamente
justa ou
necessária (o que é a mesma coisa) a punição de um delito, que as leis não
procuraram prevenir com os melhores meios possíveis e segundo as circunstâncias
em que
se encontra uma nação". O argumento é interessante, mas improcedente.
Nos últimos capítulos, ocupa-se de fontes gerais de erros e injustiças nas
legislações, do espírito de família, do espírito do fisco e dos meios de
prevenir
os crimes.
Conclui sua obra, sintetizando-a em poucas palavras: "De tudo o que
acaba de ser exposto, pode deduzir-se um teorema geral utilíssimo, mas conforme
ao uso,
que é legislador ordinário das nações: 'É que, para não ser um ato de violência
contra o cidadão, a pena deve ser essencialmente pública, pronta, necessária, a
menor
das penas aplicáveis nas circunstâncias dadas, proporcionada ao delito e
determinada em lei"'.
É a essência da obra: defesa do indivíduo contra as leis e a justiça
daqueles tempos, que se notabilizaram; aquelas, pelas atrocidades; e esta, pelo
arbítrio
e servilismo aos fortes e poderosos.
Tem-se increpado à obra de Beccaria falta de originalidade, de nada mais
ser que repetição dos enciclopedistas e que, antes dela, outras já se haviam
feito
ouvir na defesa do acusado.
Não há mesmo profundidade no livro, que também não é original, pois suas
idéias, inspiradas no Iluminismo, movem-se na corrente dos tempos. Seu sucesso,
sua
grande repercussão (penetrando na Declaração dos Direitos do Homem, traduzido em
vários idiomas e aceito por Códigos, como o francês de 1791), deve-se ao momento
em que veio à luz; era o livro que a sociedade esperava.
Nem por isso é menor o desassombro do marquês; nem por isso se há de negar
o extraordinário débito da humanidade para com ele. Foi o mais potente brado que
se ouviu em defesa do indivíduo. Com Beccaria raiava a aurora do direito penal
liberal.
Outro nome que não deve ser olvidado é John Howard. Em terreno mais
prático e noutro cenário - a Inglaterra - encabeçou o movimento humanitário da
reforma
das prisões. Percorreu as enxovias e calabouços da Europa e relatou os horrores
que presenciou. (Aliás, ele mesmo já estivera preso.) Fê-lo em 1770, em seu
livro
The state of prisons in England; anos depois, escrevia outro trabalho.
Propugna Howard um tratamento mais humano do encarcerado, dandolhe
assistência religiosa, trabalho, separação individual diurna e noturna,
alimentação sadia,
condições higiênicas etc.
Aos seus livros outros se seguiram, na Inglaterra, pregando melhor
tratamento para os condenados. Por muitos é John Howard considerado o Pai da
Ciência Penitenciária.

20. Período criminológico. Após o período humanitário, novos rumos para o


direito penal são traçados e que se ocupam com o estudo do homem delinqüente e a
explicação causal do delito.
Quem primeiro os apontou foi um médico: César Lombroso. Em 1875, escreve seu
livro L'uomo delinquente, que bastante repercussão tem, granjeando adeptos e
provocando
opositores.
Ao invés de considerar o crime como fruto do livre arbítrio e entidade
jurídica, tem-no qual manifestação da personalidade humana e produto de várias
causas.
A pena não possui fim exclusivamente retributivo, mas, sobretudo, de defesa
social e recuperação do criminoso, necessitando, então, ser individualizada, o
que evidentemente
supõe o conhecimento da personalidade daquele a quem será aplicada.
O ponto nuclear de Lombroso é a consideração do delito como fenômeno
biológico e o uso do método experimental para estudá-lo. Foi o criador da
antropologia
criminal. A seu lado surgem Ferri, com a sociologia criminal, e Garofalo, no
campo jurídico, com sua obra Criminologia, podendo os três ser considerados os
fundadores
da Escola Positiva.
Não é exato dizer que Lombroso só se preocupou com os fatores endógenos na
gênese do delito. Os exógenos também lhe mereceram a atenção. De modo
insuspeito,
depõe Mezger: "Ya 10 dicho hasta ahora muestra que el influjo de Ias causas
externas y sociales en el nacimiento deI delito no falta en absoluto en Ia tesis
lombrosiana".
Certo é que Lombroso cometeu exageros, máxime no que diz respeito aos
caracteres morfológicos do criminoso e no querer reduzir este a uma espécie à
parte do
gênero humano. Sua classificação de delinqüentes não resistiu por muito tempo à
análise dos estudiosos.
Todavia ele tem um mérito que não desaparecerá: o de haver iniciado o
estudo da pessoa do delinqüente. Com ele, este deixou de ser considerado
abstratamente.
Foi a antropologia criminal que pôs em evidência a pessoa do criminoso,
procurando investigar as causas que o levavam ao delito, ao mesmo tempo que
forcejava por
indicar os meios curativos ou tendentes a evitar o crime.
Era, sem dúvida, uma estrada aberta na selva selvagem da luta contra a
criminalidade. Nesse novo caminho, é exato que Lombroso se perdeu por veredas
tortuosas
e se equivocou ao fincar ou plantar marcos que o assinalariam, mas, como quer
que seja, abriu nova estrada que seria doravante palmilhada por outros que a
melhorariam
e a tornariam mais firme.
Ele e Beccaria, embora em rumos diversos, foram os dois césares no estudo
do crime e da pena. Na frase incisiva de Hafter, o marquês de Milão proclamou ao
mundo: "Homem, conheça a Justiça!" - O médico de Verona diria: "Justiça, conheça
o Homem!".

DOUTRINAS E ESCOLAS PENAIS

SUMÁRIO: 21. Correntes doutrinárias. 22. A Escola Clássica. 23. A Escola


Correcionalista. 24. A Escola Positiva. 25. A Terceira Escola. 26. A Escola
Moderna alemã.
27. Outras escolas e tendências. Conclusão.
21. Correntes doutrinárias. Expostas já as concepções do Iluminismo, que,
no direito penal, encontra em Beccaria seu representante máximo, e de passagem
pelo
Jusnaturalismo (Grocio, De jure belli ac pacis), com a concepção de um direito
imutável e eterno, resultante da própria natureza humana e superior às
influências
históricas, vê-se que a investigação do fundamento de punir e dos fins da pena
distribui-se por três correntes doutrinárias: as absolutas, as relativas ou
utilitárias
e as mistas.
As teorias absolutas baseiam-se numa exigência de justiça: pune-se porque
se cometeu crime (punitur quia peccatum est). Grande vulto dessa corrente foi
Kant.
Para ele, a pena é um imperativo categórico. Exigem-na a razão e a justiça. É
simples conseqüência do delito, explicando-se plenamente pela retribuição
jurídica.
Ao mal do crime, o mal da pena, imperante entre eles a igualdade. Só o que é
igual é justo. Alega-se, dessarte, que, sob certo aspec to, o taUão seria
a expressão
mais fiel dessa corrente.
Regel foi também outro grande representante seu.
Em geral, as teorias absolutas negam fins utilitários à pena, que se explica
tão-só pela satisfação do imperativo de justiça. É ela um mal justo, oposto ao
mal injusto
do crime (malum passionis quod infligitur ob malum actionis). Separam-se seus
adeptos quanto à natureza dessa retribuição que, para uns, é de caráter divino;
para
outros, moral; e, para terceiros, de caráter jurídico.
Outros grandes nomes podem ser apontados entre os adeptos dessas doutrinas
(Binding, Sthal, Kohler, Kitz etc.) , convindo notar, entretanto, que nem sempre
coincidem em suas construções.
Justo é dizer que seus defensores depuram-nas, afastando a idéia de
retribuição da de vingança.
As teorias relativas assinalam à pena um fim prático: a prevenção geral ou
especial. O crime, a bem dizer, não é causa da pena, mas ocasião para que seja
aplicada.
Ela não se explica por uma idéia de justiça, mas de neces sidade social
(punitur ne peccetur).
Foram seus grandes vultos Feuerbach, Bentham e Romagnosi.
O primeiro, apontado por alguns como o Pai do Direito Penal moderno, e por
outros como precursor do Positivismo Penal, funda-se em que a finalidade do
Estado é a
convivência humana, de acordo com o direito. Como o crime é a violação deste,
está ele na obrigação de impedi-lo. Tal função é conseguida mediante a coação
psíquica
e também pelafísica, através da pena.
O fim desta é, pois, a intimidação de todos para que não cometam crimes; é
a ameaça legal. Caso o delito seja praticado, deve essa ameaça ser efetivada,
com
o que ainda aqui se intimida o cidadão. A essência da doutrina de Feuerbach é,
portanto, a intimidação da coletividade, através da coação psicológica,
conseguida
por meio da pena, cominada em abstrato na lei, e executada quando a cominação
não foi suficiente. Deve-se a ele a formulação do famoso princípio nulla poena
sine
lege, nulla poena sine crimine, nullum crimen sine poena legale, sintetizado
depois paranullum crimen, nulla poena sine lege.
Bentham considera a pena um mal para o indivíduo, que a sofre, e para a
coletividade, que lhe suporta os ônus. Justifica-se, entretanto, por sua
utilidade.
O fim principal é a prevenção geral. Deve ela, ao ser aplicada, advertir ao
delinqüente em potência que não pratique o delito. Recomenda, com esse fim, em
especial
a pena de prisão, impugnando os excessos punitivos daquelas épocas.
Não se esquece também da prevenção particular, que se deve dirigir a
três fins: impedir o réu de praticar danos, intimidá-Io e corrigi-Io.
Sua principal obra, Teoria das penas e das recompensas, foi publicada em
1818. Antes, porém, escrevera outros trabalhos, que não deixaram de influir na
Revolução
Francesa.
Como lembra Basileu Garcia, Bentham entregou-se também a criações
práticas, sendo o idealizador do Panopticum, estabelecimento presidiário em
círculo, permitindo,
assim, a observação de todas as celas de um ponto central da construção.
Caráter utilitário também tem a obra de Romagnosi, Genesi del diritto
penale. No § 263, declara que, se depois do primeiro delito se tivesse certeza
moral
de que não se seguiria outro, a sociedade não teria direito de castigá-Io.
Para ele, o direito penal é um direito de defesa contra a ameaça
permanente do crime. Não se funda no Contratualismo, antes o combate, negando
que os homens
se hajam reunido em sociedade por um pacto. O direito não preexiste à sociedade,
mas sucede a ela, como meio de proteção e tutela, e, assim, essa é a finalidade
do direito penal. A pena não é vingança, mas deve incutir temor no criminoso,
para que não torne a delinqüir. A sua medida regular-se-á pela qualidade e
intensidade
do impulso delituoso (spinta criminosa); ela é a controspinta. Deve, entretanto,
ser empregada em último caso, cedendo lugar aos meios preventivos.
É Romagnosi antecipação à Escola Positiva.
Do entrechoque das teorias absolutas e relativas, como geralmente
acontece, deviam surgir as mistas, participando da natureza de ambas.
Sustentam a índole retributiva da pena, mas agregam os fins de
reeducação de delinqüente e de intimação.
Essa corrente, dentre os seus iniciadores, conta como expoente Pelegrino
Rossi. Afirma o caráter de retribuição da pena, mas aceita sua função
utilitária.
Somente esta - diz ele, em seu Traité de droit pénal - não a justifica, pois nem
sempre o que é útil é moral, e este deve prevalecer sobre aquele.
As Escolas Ecléticas inspiram-se nas teorias mistas, que atualmente
bastante se difundiram.

22. A Escola Clássica. Essas correntes, a que nos referimos, constituíram


o que foi chamado de Escola Clássica pelos Positivistas, que, para combate-las
mais
facilmente, as fundiram ou reuniram sob essa denominação, aliás dada em sentido
pejorativo.
Nela, portanto, se contêm tendências diversas, que, por sinal, até
porfiavam, antes do aparecimento da Escola Positiva, o que bem se explica, não
só por sua
orientação diversa - tais quais as doutrinas absolutas e relativas como também
porque apresentavam nuanças e matizes próprios, advindos da natural influência
da
personalidade de quem as defendia, do país onde eram expostas etc.
Claro é que havia entre elas princípios básicos e caracteres comuns,
salientando-se por sua índole filosófica e orientação humanitária ou liberal.
Na Escola Clássica, dois grandes períodos se distinguiram: o filosófico ou
teórico e o jurídico ou prático. No primeiro, destaca-se como figura de
incontestável
realce - bastando para isso ter sido o iniciador - Cesare e Beccaria; no
segundo, é seu expoente Francisco Carrara, justo sendo, entretanto, lembrar
também o nome
de J. A. Carmignani, antecessor de Carrara na cátedra de Pisa, seu professor e
que sobre ele exerceu notória influência. Se Beccaria é o pioneiro do direito
penal
liberal, Carrara pode ser tido como o da dogmática penal.
É o mestre de Pisa, sem qualquer contestação, o maior vulto da Escola
Clássica. Diversas foram suas obras - Programma dei corso di diritto criminale,
Opuscoli,
Reminiscenze di catedra e foro etc. - mas é a primeira a maior, a em que melhor
expõe seu pensamento e que remarcada influência logrou, a ponto de, ainda hoje,
diversos
de seus ensinamentos constituírem ponto de partida obrigatório para o estudo e
compreensão de institutos jurídico-penais. Como já se falou, os dizeres de
Carrara
parecem ter ficado gravados no mármore homônimo.
Em suas obras, defende a concepção do delito como um ente jurídico,
constituído por duas forças: a física e a moral; a primeira é o movimento
corpóreo e o
dano causado pelo crime; a segunda é a vontade livre e consciente do
delinqüente.
Define o crime como sendo "a infração da lei do Estado, promulgada para
proteger a segurança dos cidadãos, resultante de um ato externo do homem,
positivo
ou negativo, moralmente imputável e politicamente danoso".
Com a infração da lei do Estado, consagra o princípio da reserva legal: só
é crime o que infringe a lei. Mas esta há de ser promulgada, isto é, jurídica,
porque
"Ia legge morale e rivelata all'uomo dalla coscienza. La legge religiosa e
rivelata espressamente da Dio". Tem a lei a finalidade de proteger os cidadãos
(a sociedade)
, e o crime infringe essa tutela e, conseqüentemente, a lei. Daí o dizer ser ele
um ente jurídico. Devia a violação resultar de um ato humano externo, positivo
ou
negativo, e, conseqüentemente, só o homem podia praticar esse ato (afastada a
possibilidade de o irracional delinqüir); externo, porque a mera intenção não
era punível,
o que, aliás, Ulpiano, em sua célebre máxima, já afirmara (Cogitationis nemo
poenam patitur). Positivo ou negativo o ato, advertindo, portanto, que a
omissão, tanto
quanto a ação, constituiria o delito; noutras palavras, este podia ser comissivo
ou omissivo. Moralmente imputável, pois, se o livre-arbítrio é fundamento
indeclinável
da Escola Clássica, há de ser moralmente imputável o ato praticado, já que "Ia
imputabilità morale e il precedente indispensabile della imputabilità politica"
.
E politicamente danoso, elemento que, embora implicitamente contido na segurança
dos cidadãos, é repetido para esclarecer que o ato deve perturbar a
tranqüilidade
destes, provocando, dessarte, um dano imediato, isto é, o causado ao ofendido, e
o mediato, ou seja, o alarma ou repercussão social.
Em rápidas palavras, esse o pensamento de Carrara acerca do delito.
Exposto isso, concomitantemente estão declarados quase todos os
fundamentos e caracteres da Escola Clássica.
Vale-se ela do método dedutivo ou lógico-abstrato. Assentam os Clássicos
suas concepções sobre o raciocínio. Como escreve Asúa: "EI Derecho penal es para
el
clasicismo un sistema dogmático, basado sobre conceptos esencialmente
racionalistas". É uma ciência jurídica, nada tendo que ver com o método
experimental.
Para eles, como já se viu, crime não é um ente de fato, mas entidade
jurídica; não é uma ação, mas infração. É a violação de um direito. Tal
princípio é básico
e fundamental na escola. Fórmula sacramental de que deveriam dimanar todas as
verdades do direito penal. E assim escreveu Carrara: "Acreditei ter achado essa
fórmula
sacramental; e pareceu-me que dela emanavam, uma a uma, todas as grandes
verdades que o direito penal dos povos cultos já reconheceu e proclamou nas
cátedras, nas
academias e no foro. Expressei-a, dizendo - o delito não é um ente de fato, mas
um ente jurídico. Com tal proposição, tive a impressão de que se abriam as
portas
à espontânea evolução de todo o direito criminal, em virtude de uma ordem lógica
e impreterível. E esse foi o meu Programa".
Outro característico da Escola Clássica, e também fundamental, é o
relativo à pena. Esta é o meio de tutela jurídica. O crime é a violação de um
direito e,
portanto, a defesa contra ele deve encontrar-se no próprio direito, sem o que
ele não seria tal. Conseqüentemente, ela não pode ser arbitrária, mas há de
regular-se
pelo dano sofrido pelo direito. É retributiva. Deve importar também em coação
moral que detenha os possíveis violadores do direito.
Não é exato que, na Escola Clássica, a pena não tenha a finalidade de
defesa. Tem-na, embora em sentido exclusivamente especulativo. Aliás, já vimos
isso com
as teorias relativas, citando em especial Feuerbach, Bentham e Romagnosi.
Finalmente, outro postulado da escola: a imputabilidade moral. É o
pressuposto da responsabilidade penal. Funda-se no livre-arbítrio, elevado por
ela à altura
de dogma. Quem nega a liberdade de querer - diziam os Clássicos - nega o direito
penal. Só o livre-arbítrio pode justificá-Io.
Negar o extraordinário valor da Escola Clássica seria vã arremetida de
sectarismo cego. Enorme foi sua influência na elaboração do direito penal,
dando-lhe
dignidade científica. Por outro lado, menor não foi sua ascendência sobre as
legislações, já que a quase-totalidade dos Códigos e das leis penais, elaborados
no
século passado, inspiram-se totalmente em suas diretrizes, a que também
permanecem fiéis Códigos de recente promulgação.
Registre-se que ela foi a intrépida defensora do indivíduo contra o
arbítrio e a prepotência daqueles tempos.

23. A Escola Correciona/ista. Alguns autores dão autonomia a esta corrente


que denominam Correcionalista. Ela aparece com Carlos Davi Augusto Roeder,
professor
de Heidelberg. Afirmam diversos autores que sua inspiração é clássica.
Concebe Roeder o direito como conjunto de condições dependentes da vontade
livre, para cumprimento do destino do homem.
É, pois, norma de conduta indispensável à vida humana, tanto externa como
interna, e daí incumbe ao Estado não só a adaptação do criminoso à vida social
como
também sua emenda íntima. Com Roeder, o direito penal começa a olhar o homem e
não apenas o ato. Não o homem abstrato, como sujeito ativo do crime, mas o homem
real,
vivo e efetivo, em sua total e exclusiva individualidades.

No tocante à pena, o professor alemão avançou muito. Se o fim é corrigir a


vontade má do delinqüente, deve ela durar o tempo necessário - nem mais, nem
menos
- para se alcançar esse objetivo. Será conseqüentemente indeterminada.
Admitia Roeder que a execução da pena findasse, demonstrada que estivesse
sua desnecessidade.
É inegável que, no terreno das idéias penais, reinantes na terceira década
do século XIX, ele foi um revolucionário.
Suas concepções, entretanto, não tiveram grande influência na Alemanha. É
principalmente na Espanha que vão encontrar entusiástica acolhida. Dorado
Montero
e Concepción Arenal são dois destacados nomes do Correcionalismo.
Entre as numerosas obras do primeiro, surge EI derecho protector de los
criminales. Mas nela os postulados correcionalistas conjugam-se com os
positivistas.
Concebe um direito penal sem pena. A finalidade dele é o tratamento e a
recuperação do delinqüente. Com ser direito protetor dos criminosos, também o é
da sociedade,
que assim é defendida e protegida. Em certos casos, as medidas contra aqueles
podem mesmo assumir aspectos severos, sem, entretanto, o caráter de castigo.
Preconiz_ o direito penal do futuro, dizendo que os juízes do sistema
penal preventivo, higienistas e médicos sociais, não devem ter (como não as têm
os higienistas
e médicos do corpo) leis que impeçam sua obra; não devem ter outras limitações,
como não as têm ainda os médicos, senão as que lhes ditarem sua prudência,
honradez
e competência científica, que devem ser grandes.
De Concepción Arenal é conhecida a frase: "Não há criminosos incorrigíveis
e, sim, incorrigidos". Traduzem tais palavras a esperança na correção de todos
os
delinqüentes.
Dorado Montero fez numerosos discípulos. Entres eles cite-se, como figura
de singular projeção, Luís Jiménez de Asúa, um dos mais brilhantes penalistas da
atualidade.
Sem embargo do fim superior traçado ao direito penal, parece-nos que o
direito protetor dos criminosos, politicamente, leva às suas últimas
conseqüências os
postulados da Escola Positiva, o que - consigne-se - é avançar muito. Esse
direito penal não é o mesmo para os nossos dias.

24. A Escola Positiva. Inspirando-se no Iluminismo, a Escola Clássica


exalçara, no campo penal, o princípio individualista, com esquecimento da
sociedade. Contra
ela se ergueria a Escola Positiva, que se dizia socialista.
Por essa época, a filosofia e a ciência tomavam novos rumos, com o
positivismo de Augusto Comte e o evolucionismo de Darwin e Spencer. Da
sociologia daquele
surgiria a sociologia criminal. Do segundo, Lombroso tiraria sua concepção do
atavismo no crime. Spencer forneceria elementos aplicáveis à psicologia, à
sociologia
e à ética. O fundamento biológico da tese da defesa social provém das concepções
da luta pela existência e da adaptação ao meio.
A nova escola proclamava outra concepção do direito. Enquanto para a
Clássica ele preexistia ao homem (era transcendental, visto que lhe fora dado
pelo Criador,
para poder cumprir seus destinos), para os Positivistas, ele é o resultante da
vida em sociedade e sujeito a variações no tempo e no espaço, consoante a lei da
evolução.
Como deixamos dito do n. 20, seu pioneiro foi o médico-psiquiatra César
Lombroso. A concepção básica é a do fenômeno biológico do crime e a do método
experimental
em seu estudo.
Primeiramente, pretendeu explicar o delito pelo atavismo. O criminoso é um
ser atávico, isto é, representa uma regressão ao homem primitivo ou selvagem.
Ele
já nasce delinqüente, como outros nascem enfermos ou sábios. A causa dessa
regressão é o processo, conhecido em Biologia como degeneração, isto é, parada
de desenvolvimento.
Dito criminoso apresenta os sinais dessa degenerescência, com deformações
e anomalias anatõmicas, fisiológicas e psíquicas. Caracterizavam o delinqüente
nato
a as simetria craniana, a fronte fugidia, as orelhas em asa, zigomas salientes,
arcada superciliar proeminente, prognatismo maxilar, face ampla e larga, cabelos
abundantes etc. A estatura, o peso, a braçada etc. seriam outros caracteres
anatômicos.
Notar-se-iam, também, insensibilidade física, analgesia (insensibilidade à
dor), mancinismo (uso preferencial da mão esquerda) ou ambidestrismo (uso
indiferente
das mãos), disvulnerabilidade (resistência aos traumatismos e recuperação
rápida), distúrbios dos sentidos e outros característicos fisiológicos.
Importantes são os caracteres psíquicos: insensibilidade moral,
impulsividade, vaidade, preguiça, imprevidência etc.
Advertia, entretanto, Lombroso que só a presença de diversos estigmas é
que denunciaria o tipo criminoso, pois pessoas honestas e de boa conduta
poderiam apresentar
um ou outro sinal. Além disso, necessário era ter presente que criminosos, como
os ocasionais e passionais, podiam não apresentar anomalias.
Todavia isso não explicava a etiologia do delito. Era necessário achar a
causa da degeneração, pensando encontrá-Ia Lombroso na epilepsia, que ataca os
centros
nervosos e perturba o desenvolvimento do organismo, produzindo regressões
atávicas.
Finalmente, uma terceira explicação o médico italiano apresenta: a loucura
moral, sob a influência dos estudos de Maudsley. Ela aparentemente deixa íntegra
a inteligência, porém suprime o senso moral. Seria, ao lado daquelas outras
causas, explicação biológica do crime.
Conseqüentemente, o criminoso, para o iniciador da Escola Positiva, é um
ser atávico, com fundo epiléptico e semelhante ao louco moral.
Cumpre ressaltar que, ao lado do delinqüente nato, Lombroso admite outras
espécies. Justo é também salientar que ele, por fim, encarou os fatores exógenos
ou sociais na gênese do delito, a que Perri deu importância capital.
Para a Escola Positiva, o crime longe está de ser o ente jurídico da
Clássica, mas é um fato humano, oriundo de fatores individuais, físicos e
morais.
Não se restringiria a nova escola às concepções de Lombroso. Com efeito,
ao lado destas que caracterizam a fase antropológica, outras se apresentam: a
sociológica
e a jurídica, já mencionadas no n. 20.
É Enrico Perri o criador da sociologia criminal, com seu livro de idêntico
nome, surgido em 1880, mas com o título de I nuovi orizzonti dei diritto e delta
procedura penale. Seria ela a ciência enciclopédica do crime, da qual o direito
penal constituiria um capítulo, o que não nos parece procedente (n. 11).
Incontestavelmente, é, entretanto, Ferri o maior vulto da Escola Positiva.
Mais do que qualquer outro, deu expansão ao trinômio causal do delito - fatores
antropológicos, sociais e físicos. Pregou a responsabilidade social em
substituição à moral: o homem só é responsável porque vive em sociedade; isolado
em uma ilha,
não tem qualquer responsabilidade. Respondia assim à objeção dos Clássicos, de
que, negado o livre-arbítrio, o determinismo levava à impunidade, pois iníquo
seria
punir quem/atalmente praticaria crimes. Acrescentava Perri que, assim como o
homem não é livre, também não o é o Estado, na sua necessidade de reprimir o
crime,
para defesa do direito e da sociedade .
Mais do que à repressão, deu ele importância à prevenção, sugerindo,
então, medidas que denominou substitutivos penais, destinadas a modificar
condições mesológicas,
principalmente as sociais e econômicas, de efeitos criminógenos.
Prega que a pena deve ser indeterminada, adequada ao delinqüente, e
visar ao reajustamento para o convívio social.
Classificou os criminosos em cinco categorias: nato, louco,
habitual,ocasional e passional.
O primeiro é o já considerado por Lombroso e cujo traço
característico, para Ferri,é a atrofia do senso moral.
O criminoso louco, do fundador da escola, permanece na classificação de
Ferri, contrariando os postulados clássicos, para os quais a expressão era
contraditória,
pois o louco não pode ser delinqüente, mas compreensível na Escola Positiva,
para a qual a responsabilidade é social. A espécie, aliás, abrangia também os
matóides,
ou indivíduos situados na zona que se estende entre a sanidade e a enfermidade
psíquica.
O delinqüente habitual é sobretudo produto do meio: mais do que os fatores
endógenos, influem nele os exógenos. Em regra, inicia sua vida criminosa bem
cedo
e por pequenos delitos, a que correspondem penas de curta duração; cumpre-as em
prisões inadequadas, onde, em contato com outros delinqüentes, mais se corrompe.
Reincide genérica ou especificamente, mas, de ordinário, passa de pequenos
delitos para mais graves.
O criminoso ocasional é fraco de espírito, sem firmeza de caráter e
versátil. É impelido pela ocasião, criada por fatores diversos, como a miséria,
influência
de outrem, esperança de impunidade etc.
O passional, em regra, é honesto, mas de temperamento nervoso e
sensibilidade exagerada. Seu crime geralmente ocorre na juventude. Age sem
premeditação e sem
dissimular. Confessa o delito e arrepende-se, pelo que, freqüentemente, se
suicida.
Dividindo as paixões em sociais e anti-sociais, o eminente autor, para
aquelas, preconiza tratamento excessivamente brando, que raia pela impunidade, o
que
encontrou resistência dos próprios adeptos da escola. Lembra-se ainda que, na
prática forense, esse tipo de delinqüente é desvirtuado, porfiando-se, com
discursos
mais ou menos hábeis, por que assim seja considerado todo matador de mulher.
A classificação de Ferri não é a única. Garofalo e Liszt também as
tiveram. Modernamente, Benigno di Tullio apresenta a sua: ocasionais,
constitucionais e
enfermos mentais, compreendendo estes os delinqüentes loucos e os loucos
delinqüentes. Entre nós, aceita pelo Instituto de Biotipologia Criminal, existe
a classificação
do Prof. Hilário Veiga de Carvalho mesocriminoso, mesocriminoso preponderante,
mesobiocriminoso, biocriminoso preponderante e biocriminoso - que obedece à
prevalência
do fator mesológico ou biológico.
Ferri procurou consagrar em lei suas concepções, embora condicionadas aos
imperativos dela, elaborando em 1919 um "Projeto de Código Penal para os
delitos",
como Presidente da Comissão de que faziam parte Garofalo, Berenini, Florian,
Ottolenghi etc., sendo secretários Grispigni, Ricci, Santoro e outros.
Diversos são os trabalhos de Ferri, sendo o último os Princípios de
direito criminal, exposição doutrinária de um sistema jurídico-penal, segundo as
idéias
fundamentais da escola,com que ele encerrou a sua operosa e brilhante carreira
científica.
Rafael Garofalo é o iniciador da fase jurídica.Sua obra principal é
Criminologia. É o sistematizador das aplicações da antropologia e da sociologia
ao direito
penal. Divide seu livro em três partes - o delito, o delinqüente ea repressão
penal. Énesta última que se observa o labor jurídico.
Buscando um conceito uniforme de crime, que pirasse acima das legislações,
procura criar o delito natural, que é "a ofensa feita á parte do senso moral
formada
pelos sentimentos altruístas de piedade e probidade - não,bem entendido, à parte
superior e mais delicada deste sentimento, mas à mais comum, à que se considera
patrimônio moral indispensável de todos os indivíduos em sociedade".
Para ele, o delinqüente não é um ser normal, mas portador de anomalia do
sentimento moral. Embora limitadamente, aceita a influência do ambiente social
na
gênese da criminalidade.
Da concepção de anomalia moral, chega à conclusão de que o critério da
medida penal deve ser apericolosità, expressão usada em Della mitigazione delle
pene
nei reati di sangue, trabalho publicado em 187715. Define-a como a perversidade
permanente e ativa do criminoso e a quantidade do mal previsto que se deve temer
por parte dele.
Desse conceito de Garofalo advém o de periculosidade ou perigosidade que
hoje é tido em grande monta.
Estranhamente, no tocante à repressão, afasta-se da escola: o fim da
medida penal é principalmente a eliminação, seja pela pena de morte, seja pela
deportação
ou relegação.
Com justiça, é Garofalo considerado o jurista dos primeiros tempos
da Escola Positiva.
Outros grandes nomes se contam nessa corrente: Fioretti, Puglia,
Berenini, Magno, Altavilla, Florian, Grispigni etc.
De todo o exposto, podemos apontar como fundamentos e caracteres dessa
escola os seguintes: a) método indutivo; b) o crime como fenômeno natural e
social,
oriundo de causas biológicas, físicas e sociais; c) a responsabilidade social
como decorrência do determinismo e da periculosidade; d) a pena tendo por fim a
defesa
social e não a tutela jurídica.
O método empregado pela escola é o indutivo. Foi ela até chamada de
Experimentalista. O crime e o criminoso devem ser expostos à observação e à
análise experimental,
como os fenômenos naturais. O delito não é um ente jurídico, como queriam os
Clássicos, mas um fato humano, resultante de fatores endógenos e exógenos, que
deve
ser estudado sobretudo à luz da criminologia, ou, mais precisamente, pela
antropologia e sociologia criminal. Não podia a escola, determinista que era,
aceitar a
responsabilidade moral: o homem é responsável por viver em sociedade, e a medida
penal é dada pela periculosidade. Finalmente, a pena tem por escopo a defesa
social,
não havendo, por conseguinte, correspondência precisa entre ela e o crime. A
sanção pode ser aplicada mesmo antes da prática delituosa, como sói acontecer
com certas
condutas compreendidas no estado perigoso: ociosidade, embriaguez,
desonestidade, falta de decoro etc.
Erros podem ser apontados na orientação positivista, como já deixamos
dito. Não apenas em Lombroso, mas em Ferri, Garofalo e seus seguidores.
Entretanto, são
inegáveis o mérito da escola, as altas contribuições suas na luta contra a
criminalidade e na elaboração de institutos jurídicopenais. Disse bem José
Frederico Marques:
"Mesmo que se não abrace a orientação que o positivismo italiano imprimiu aos
estudos penais - só um extremado sectarismo poderia pretender obumbrar ou
diminuir
a repercussão e valor do movimento científico inaugurado por Lombroso e toda a
nuova scuola".

25. A Terceira Escola. Procurando conciliar as posições extremadas da


Escola Clássica e do Positivismo Naturalista, surgem correntes ecléticas, em
diversos
países europeus.
Na Itália, comAlimena, Carnevale e Impallomeni, aparece a Terza Scuola,
também denominada Positivismo Crítico.
Situando-se entre aquelas duas, aceita os dados da antropologia e da
sociologia criminal, ocupando-se do delinqüente; mas, dando a mão ao
Classicismo, distingue
entre o imputável e o inimputável.
Consoante Roberto Lyra, os pontos básicos dessa corrente podem sintetizar-
se: I) respeito à personalidade do direito penal, que não pode ser absorvido
pela
sociologia criminal; 2) inadmissibilidade do tipo criminal antropológico,
fundando-se na causalidade e não-fatalidade do delito; 3) reforma social como
imperativo
do Estado, na luta contra a criminalidade.
Do Positivismo, aceita a negação do livre-arbítrio, a concepção do delito
como fato individual e social, o princípio da defesa da sociedade, que éo fim da
pena, a qual, entretanto, não perde o caráter aflitivo.
Concorda com a Clássica, admitindo a responsabilidade moral, embora não a
fundamentando no livre-arbítrio. Distingue o imputável do inimputável, como já
se
disse, pois, consoante Alimena, a imputabilidade surge da vontade e dos motivos
que a determinam, tendo por base a dirigibilidade do indivíduo, ou seja, a
capacidade
para sentir a coação psicológica. Somente éimputável o que é capaz de sentir a
ameaça da pena. Advoga, entretanto, para o inimputável, medidas de cunho
notoriamente
positivista.
Foi preocupação dessa escola evitar as discussões metafísicas do
livrearbítrio e do determinismo, que freqüentemente olvidavam as exigências
reais e impostergáveis
do direito penal.

26. A Escola Moderna alemã. Ec1ética também é esta escola, surgi da na


Alemanha, por sinal antes da de Alimena, devido à iniciativa de Von Liszt. Sua
denominação
varia. Chamam-na uns, na Alemanha, de Escola Moderna; outros de Positivismo
Crítico; e terceiros, de Escola Sociológica, segundo Sauer "equívocamente
entendida y
no de modo muy c1aro"18. Asúa prefere a denominação Escola da Política Criminal,
embora reconheça que não se lhe dá esse nome na Germânia.
Apregoa a necessidade de estremar o direito penal da criminologia, devendo
aquele limitar-se à dogmática dos textos legais, valendo-se do método lógico.
Finalidade
diversa é a da criminologia, que estuda cientificamente o delito no seu aspecto
externo e nos fatores anteriores, sem o que será inócua a aplicação da pena.
A finalidade principal dessa escola alemã foi a adoção de medidas e
providências de ordem prática no interesse da repressão e prevenção do delito, o
que conseguiu,
introduzindo nas legislações diversos institutos.
Considera o crime um fato jurídico, mas não esquece que também apresenta
os aspectos humano e social. Não aceita o criminoso nato de Lombroso, nem a
existência
de um tipo antropológico de delinqüente; porém considera real a influência de
causas individuais e externas - físicas e sociais - com predominância das
econômicas.
A pena, para Liszt e seus seguidores, tem função preventiva geral e
especial, aquela advertindo a todos, esta quando recai sobre o delinqüente.
Conferem à
pena, sem o desprezo de outras providências, papel de relevo: "Puesto que el
tratamiento eficaz resulta primeramente en Ia aplicación de Ia pena, fue
reclamada Ia
sentencia indeterminada (cfr. más adelante § 32). En el transcurso de Ia lucha
se formuló: No se ha de castigar el hecho sino aI autor".
São caracteres dessa escola: a) método lógico-jurídico para o direito
penal e experimental para as ciências penais; b) distingue o imputável do
inimputável,
sem se fundar, porém, no livre-arbítrio, e sim na determinação normal do
indivíduo; c) aceita a existência do estado perigoso; d) tem o crime como fato
jurídico,
mas também como fenômeno natural; e) a luta contra o crime far-se-á não só pela
pena, mas também com as medidas de segurança.
Teve Von Liszt notáveis seguidores, como M. E. Mayer, Kohlrausch,
Radbruch, Graf zu Dohna, Exner, Eberhard Schmidt, Kantorowicz e outros.
Essa escola foi fecunda no terreno das realizações práticas, pregando a
necessidade de adotarem, as legislações, institutos como o das medidas de
segurança,
livramento condicional, sursis etc.
Para a propagação e adoção dessas providências, muito contribuiu a União
Internacional de direito penal, criada por Von Liszt, Prins e Von Hamel.
Dessa escola diz Asúa: "... si en el aspecto teórico es poco estimable,
por su falta de firme criterio unitario dirigente, es, en cambio, muy fecunda en
el
área legislativa, puesto que ha logrado inspirar los códigos que se han puesto
en vigencia últimamente y los numerosos proyectos de Europa y algunos de
América".

27. Outras escolas e tendências. Conclusão. Longa seria a exposição de


outras escolas e tendências penais, sem qualquer proveito e, talvez, criando
confusões
acerca das já mencionadas, mesmo porque não cremos que elas possam ser
consideradas verdadeiramente escolas, representando posição filosoficamente
definida. Nas
mais das vezes são variações da Clássica ou da Positiva.
Assim é que se fala em Neoclassicismo, abrangendo a chamada Escola
Humanista e, para muitos, a Técnico-Jurídica; em Neopositivismo, com as
denominadas Escola
Constitucionalista italiana, Socialista, Pragmática e do Idealismo Atualístico,
sendo duvidosa a exatidão da situação dessas correntes, que, aliás, apresentam
diferenças
de vulto, tal seja o representante invocado.
Das mencionadas, a que maior influência tem tido, nos últimos tempos, é a
Técnico-Jurídica.
Dizem-na oriunda da Escola Clássica, inspirada principalmente em Carrara,
porém sofrendo influência da doutrina germânica, máxime de Binding. A
Vicente Manzini, Asúa atribui a paternidade, embora acrescente que "por su
mayor dinamismo, Arturo Rocco fue el más notorio creador de esta escuela".
Não obstante filiável ao Classicismo, sendo mesmo reação contra o
Positivismo, registre-se que daquele se afasta pelo repúdio à intervenção da
filosofia no
direito penal.
É inegável ser o Tecnicismo Jurídico-Penal a corrente, hoje, dominante na
Itália. Inspirando-se nele o Código Penal italiano e considerando o prestígio
deste,
é explicável a influência que tem tido também na doutrina penal de outros
países.
Em que pese à sua origem e à posição de combate ao Positivismo
Naturalista, não fugiu ele à influência de concepções deste, como
periculosidade, o fato humano
e social do crime, as medidas de segurança e outras, o que leva diversos autores
a acentuar seu colorido eclético.
De modo geral, são caracteres do Tecnicismo Jurídico-Penal: a) negação das
investigações filosóficas; b) o crime como relação jurídica de conteúdo
individual
e social; c) responsabilidade moral, distinguindo entre os imputáveis e
inimputáveis; d) pena retributiva e expiatória para os primeiros e medida de
segurança para
os segundos.
Ponto básico é a autonomia do direito penal, estremado das chamadas
ciências penais. Ele se reduz ao Positivismo Jurídico e o método empregado em
seu estudo
é o que se denominou técnico-jurídico. Noutras palavras, direito penal é o que
está na lei; só com este o jurista deve preocupar-se. Seu estudo se faz
exclusivamente
pela exegese, que dá o sentido verdadeiro das disposições integrantes do
ordenamento jurídico; pela dogmática, que investiga os princípios que norteiam a
sistemática
do direito penal, fixando os elementos de sua integralidade lógica; e pela
crítica - restrita, como não podia deixar de ser - que orienta na consideração
do direito
vigente, demonstrando seu acerto ou a conveniência de reforma.
O Tecnicismo Jurídico-Penal não é bem uma escola, mas orientação, direção
no estudo do direito penal: é renovação metodológica no estudo desta disciplina.
Pode definir-se tal orientação como o estudo sistemático do direito penal, com
referência à lei promulgada pelo Estado.
Seu fim é a delimitação do objeto de nossa disciplina e das ciências
penais, no que está certo. Com efeito, o crime - quer queiram ou não - é um ente
jurídico;
porém é igualmente um fato biológico e social. É ente jurídico porque é o
direito que valoriza o fato, é a lei que o considera crime. Mas é também - e
isso não se
pode negar - um fenômeno natural e social, isto é, oriundo de fatores biológicos
e sociais.
O que é necessário fazer, então, é delimitar as zonas, caracterizadas por
objetos diferentes. O direito penal não tem preocupações causais-explicativas;
estas
situam-se no setor da antropologia e da sociologia criminal. Ele tem conteúdo
dogmático e se vale do método técnico-jurídico; naquelas, o conteúdo é causal-
explicativo
e o método é experimental.
É o que proclama o Tecnicismo Jurídico-Penal.
Por último, haveria que falar ainda no ecletismo de Longhi e Sabatini,
procurando - debalde, como é notório - coordenar "os princípios das doutrinas
opostas"
"em uma unidade orgânica superior". É a concepção unitária, ou Escola Unitária.
Em poucas palavras, é o que nos dizem as Escolas do Direito Penal. Posição
definida, característica de escola, só duas apresentam: a Clássica e a Positiva.
As outras ou são ecléticas, buscando a conciliação das duas, ou ramificações
delas, com alguns matizes mais ou menos acentuados e roupagens novas.
Deu-se importância exagerada ao debate entre as escolas, Volumes e volumes
foram escritos com a finalidade única de demonstrar a perfeição ou supremacia
dos
postulados e princípios de uma sobre a outra.
A verdade é que qualquer delas, por si só, não pode satisfazer aos
imperativos sociais, diante do fenômeno do crime. A ortodoxia é inconciliável
com o conteúdo
e a finalidade do direito penal.
O que sobretudo interessa ao indivíduo e à sociedade é o direito
normativo, e este não se pode rigorosamente encerrar nos limites impostos por
qualquer escola,
mas há de recolher de todas elas tudo quanto de útil e real oferecem, sem se
deixar empolgar por concepções ditadas pelo sectarismo estéril. Os exageros
metafísicos
da Escola Clássica, os excessos naturalistas da Positiva e as demasias técnico-
jurídicas não podem passar para o terreno legal, que é onde o direito se
exterioriza
e adquire sua força para atender às exigências individuais e sociais,
Um Código não se deve escravizar a preconceitos de escolas. Por isso,
disse bem a Exposição de Motivos de nosso diploma que nele os postulados
clássicos fazem
causa comum com os princípios da Escola Positiva.
Muito mais que para as discussões e contendas filosóficas, que não devem
transpor o pórtico da lei, necessita o legislador atentar para o problema
político,
aparando as arremetidas do direito penal autoritário, que asfixia o indivíduo em
proveito dos poderosos do momento, postergando direitos que são vitais e
inerentes
à própria condição humana.

AS FONTES DO DIREITO PENAL

SUMÁRIO: 28. Fontes de produção ou materiais e fontes de conhecimento ou


formais. 29. Fonte imediata: a lei. A lei penal. Caracteres e classificação.
Norma penal
em branco. 30. Fontes mediatas: a) o costume; b) a eqüidade; c) os princípios
gerais do direito; d) a analogia. A doutrina. A jurisprudência. Os tratados e
convenções.

28. Fontes de produção ou materiais e fontes de conhecimento ou formais. No


vernáculo, fonte é o lugar onde perenemente nasce água. Em sentido figurado é
sinônimo
de origem, princípio e causa. Fonte do direito penal é, pois, aquilo de que ele
se origina ou promana.
Duas são as classes de suas fontes: as de produção, materiais ou
substanciais, e as de conhecimento, cognição ou formais.
Fonte de produção é o Estado. Se o direito penal tem caráter público, como
já acentuamos, só aquele é fonte material. Antigamente, a Igreja, as sociedades,
o pater familias podiam apresentar-se como fontes.
Entre nós, diz a Constituição Federal, no art. 22, I, que compete à União
legislar sobre direito penal; esta é, portanto, fonte substancial.
Todavia o Estado não legisla arbitrariamente. As leis não nascem de
fantasia ou capricho seu. Em regra, é a vida social, em seus imperativos e
reclamos, é
a civilização, é o progresso, são outros fatores e situações que o solicitam a
ditar o direito. Tudo isso, ainda que vago e impreciso, porém presente e
antecedente
à atividade estatal legislativa, é também fonte de produção.
As fontes formais ou de conhecimento revelam o direito penal; são a
maneira por que ele se exterioriza e objetiva. Pode a fonte de cognição ser
mediata ou
imediata. Esta última é a lei. Como fonte mediata, grande número de autores
aponta os costumes. Outros há, ainda, que colocam nessa espécie também a
doutrina, a
eqüidade e os princípios gerais do direito, a jurisprudência, a analogia e os
tratados, havendo ainda os que incluem as providências administrativas, os
regulamentos,
as instruções, circulares, posturas, recomendações, advertências da autoridade
policial etc.1.
29. Fonte imediata: a lei. A lei penal. Caracteres e classificação. Norma
penal em branco. É a lei a única fonte formal imediata do direito penal. A
função
penal sobrepuja as demais pelo valor dos bens que tutela - vida, honra,
liberdade etc. - e pela severidade da sanção - a mais grave que a humanidade
conhece - donde
a necessidade de precisão e certeza, que somente ela pode proporcionar.
Trata-se da lei material, do jus scriptum, único modo por que o Estado
pode definir crimes e cominar penas. Triunfante o princípio da reserva legal
nul/um
crimen, nul/a poena sine lege, a lei penal, sob o ponto de vista político, vem a
ser, como escreveu Von Liszt, a Charta Magna do delinqüente. Com ela o indivíduo
adquire o direito de não ser punido, desde que sua conduta não seja típica, isto
é, não apresente tipicidade, ou ainda não se ajuste ao tipo que ela descreve, e
ainda: presente que seja a tipicidade, tem, por via da lei, o direito de não ser
punido mais do que ela dita. Conseqüentemente, não só é a lei fonte do direito
penal
como também sua medida.
Tão preponderante é o papel desempenhado por ela, que forte corrente de
autores afirma ser a fonte exclusiva do direito penal, não tendo nenhuma
influência
as fontes mediatas, ditas também indiretas ou primárias.
Conseqüentemente, a norma penal descreve condutas ilícitas, a que comina
pena. Compõe-se por isso de duas partes: o preceito e a sanção. No primeiro,
declara-se
qual a objetividade jurídica ou bem-interesse tutelado; na segunda, a punição
pela violação desse objeto.
A interdição imposta só o é indiretamente: os Códigos Penais não declaram "não
matar", porém, "matar alguém, pena de tanto". A regra proibitiva, por
conseguinte,
é implícita; só a sanção é que é expressa. Isso porque, na primeira parte, a
preocupação é descrever a conduta típica, à qual se há de ajustar a ação (em
sentido
amplo) do delinqüente, para haver lugar a sanção. Diante disso, Binding
formulou, no seu Compêndio, a teoria de que o delinqüente não viola a lei penal,
mas antes
atua de acordo com ela. Quem, por exemplo, furta não transgride a regra
positiva, porém age de conformidade com esta, violando, apenas, a norma "não
furtarás". Como
também escreve Prins, seu seguidor: "O agente que comete uma infração não viola
a lei penal; viola o princípio que deu origem ao artigo do Código. Assim, por
exemplo,
o indivíduo que comete um crime de morte não transgride o texto do art. 393 do
Código Penal; este texto, pelo contrário, adapta-se aos fatos praticados. O que
ele
viola é o princípio que proíbe matar".
Binding distingue, por este modo, a norma da lei: aquela contém o
princípio proibitivo e esta é mera descrição da conduta, conferindo ao Estado o
direito de
punir, desde que haja violação da norma.
Mais certo parece-nos dizer que a lei é que revela a norma; ela é fonte
desta.
Kelsen falou que, de um simples jogo de palavras, Binding constrói uma
teoria.
É inegável, assim nos parece, que ela se apega demais à técnica
legislativa. Não é exato que a lei penal não contenha implicitamente o princípio
proibitivo.
Tanto faz dizer: "Não matarás", como "Se matares serás castigado".
Observa-se que o jurista germânico considera na lei penal o preceito
separado da sanção, quando, na verdade, são inscindíveis: "11 frazionamento
della norma
nei due nuclei regola - coazione, che si rinviene nelle dotrine deI Thon e deI
Binding, e, pero, inaccetabile. Invero, i concetti di comando, precetto, regola,
imperativo,
da una parte, e di sanzione, pena, dall'altra, sono termini che non riesce
possibile pensare isolatamente, ma che concettualmente s'integrano e s'implicano
e vicenda;
e, come tali, essi sono accezioni inseparabile deI dovere giuridico, nuclei
insceverabile e irreducibili, e, quindi elementi trasfusi organicamente nella
categoria
di norma giuridica".
Além disso, é notório que a técnica aludida não é só da lei penal. Lembra
com oportunidade José Frederico Marques que também o Código Civil, vez por
outra,
ao cominar sanções, não o faz expressamente, como sói acontecer com os arts. 80,
onde se impõe a obrigação de reparar perdas e danos ao que deixar perecer a
coisa,
159, que comina a obrigação de reparar o dano àquele que violar direito ou
causar prejuízo a outrem etc. Ao passo que isso acontece com o diploma civil, o
penal,
por sua vez, quando não se trata de regras que descrevem condutas puníveis,
formula seus preceitos com outra técnica, onde se ostenta o conteúdo imperativo
da norma,
como se dá com os arts. 29, 40, 58, 61 etc. do Código.
Na lei penal existem preceito e sanção, advindo implicitamente daí o
princípio proibitivo. A exatidão do que se afirma melhor se demonstra pelo
confronto de
uma disposição comum com a norma penal em branco, que realmente se completa com
o preceito de outra, como dentro em pouco se verá.
Nem por isso se nega o caráter sancionatório do direito penal, conforme se
disse antes (n. 3). O ser sancionador não impede que contenha preceitos acerca
da
conduta individual, para só se ater à sanção.
É a lei penal imperativa, pois a violação de seu preceito acarreta a pena.
É geral, por se destinar a todos: opõe-se erga omnes. Costuma discutir-se aqui o
problema dos destinatários da norma penal, divergindo os autores em que ela não
se dirige aos inimputáveis. A nós nos parece opor-se a todos; somente no caso
concreto
é que, conforme a individualidade do agente, então, se lhe aplicarão outras
medidas.
É também a lei penal impessoal e abstrata, por não se referir a uma
pessoa, ou categoria de indivíduos. Por fim, ela só se pode dirigir a fatos
futuros.
Classificam-se as normas penais em gerais ou locais, conforme o espaço,
sendo estas de exceção, ditadas por peculiaridades próprias de determinado
trecho do
território nacional. Podem ser comuns ou especiais, tendo em vista a divisão do
direito penal em comum ou especial, conforme se expôs no n. 7. Consoante o fator
político, são ordinárias ou excepcionais, impostas estas por circunstâncias de
emergência na vida da Nação.
Dizem-se ainda incriminadoras, explicativas e permissivas: as primeiras
descrevem condutas típicas sob sanção; as segundas declaram o conteúdo de outras
normas,
esclarecendo-o e dirimindo dúvidas; as últimas dispõem sobre condutas lícitas ou
impuníveis, não obstante típicas. Finalmente, são completas ou incompletas:
aquelas,
contendo o preceito e sanção integrais; as segundas, necessitando de
complemento, por ser o preceito indeterminado ou genérico.
Como exemplo destas, cite-se a lei penUl em branco. Nela o preceito,
quanto ao conteúdo, é indeterminado, sendo preciso somente quanto à sanção. É
aquele,
pois, preenchido por outra disposição legal, por decretos, regulamentos e
portarias. Na conhecida frase de Binding, "a lei penal em branco é um corpo
errante em
busca de alma".
Autores há, como Nélson Hungria, que frisam dever o complemento do
preceito ser emitido infuturo5. Com Mezger, deve fazer-se distinção de normas em
branco
em sentido amplo e estrito. Na primeira espécie, o complemento pode estar na
própria lei: "Tal forma es muy frecuente en Ias leyes accesorias y
complementarias deI
Código en los casos en que éstas formulan en primer término Ia prohibición legal
y después, en un parágrafo de conjunto, sancione con una pena Ias infracciones
de
tales y tales parágrafos de Ia ley". Pertencem, ainda, à mesma espécie aquelas
cujo conteúdo se encontra "en otra ler, pero emana de Ia misma instancia
legislativa".
É a lei penal em branco em sentido estrito quando o complemento é fornecido por
outra lei "pero emanada de otra instancia legislativa". Conseqüentemente, o
complemento
preceptivo nem sempre é porvindouro.
Entre nós, a Lei n. 1.521, de 26 de dezembro de 1951 (art. 2.°, VI), pune
quem transgredir tabelas oficiais de gêneros, mercadorias ou de serviços
essenciais.
Entretanto são também normas penais em branco, v. g., o art. 237, que pune
o que contrair casamento, conhecendo a existência de impedimento que lhe cause
nulidade
absoluta, sendo óbvio que o impedimento é determinado pelo Código Civil, e o
art. 178, que apena a emissão de conhecimento de depósito ou warrant, em
desacordo com
disposição legal, sendo esta ditada pelas leis do warrant (Dec. n. 2.647, de 19-
9-1860; Lei n. 1.746, de 1310-1869; Dec. n. 4.450, de 8-1-1870; Dec. n. 2.502,
de
24-4-1897; Dec. n. 1.102, de 21-11-1903, e outros). Em tais casos, o complemento
do preceito em branco das disposições penais a elas preexiste, enquadrando-se na
segunda classe mencionada por Mezger, pois as fontes formais são homogêneas.
Enquadra-se em outra espécie o art. 269 de nosso estatuto, impondo sanção
ao médico que não denunciar à autoridade pública doença cuja notificação é
compulsória,
pois a enumeração das enfermidades, cuja comunicação é imperativa, é feita por
atos administrativos, ou seja, fonte heterogênea.
Ponto de capital importância a observar é que a norma penal em branco não
é destituída de preceito. Nela existe um comando, provido de sanção, de se
obedecer
ao complemento preceptivo que existe ou existirá em outra lei. Deve ter-se em
conta a observação, por sua influência no estudo da retroatividade das normas
penais
em branco (n. 40).
Asúa, com oportunidade, lembra que, diante dos princípios da reserva legal
e divisão de Poderes: a) a fonte formal heterogênea tem por missão apenas
"determinar
especificamente as condutas puníveis dentro do círculo em branco"; b) "o poder
de regulamentação se reduz à faculdade específica compreensiva somente das
modalidades
de interesse secundário ou de pormenor, indispensável para melhor execução da
vontade legislativa".
São limites ditados pela harmonia de Poderes.

30. Fontes mediatas: a) o costume; b) a eqüidade; c) os princípios gerais


do direito; d) a analogia. A doutrina. A jurisprudência. Os tratados e
convenções.
a) O costume é uma regra de conduta praticada de modo geral, constante e
uniforme. Caracteriza-se por longa e reiterada prática, com a consciência de sua
obrigatoriedade.
Teve em épocas passadas grande fastígio. Por Reccaria foi chamado o
legislador ordinário dos povos. Atualmente, entretanto, restringem-lhe o
alcance, no direito
penal, pois é certo que em outros ramos jurídicos, máxime no internacional,
continua a ter eficácia.
O princípio da reserva legal impede que ele defina crimes, comine penas ou
as agrave. Não pode também derrogar ou ab-rogar a norma penal. Ainda que
disposições
incriminadoras da lei não sejam aplicadas durante longo tempo, como acontecia
com o duelo, na legislação passada, e sucede com o adultério, na atual, é óbvio
que
elas permanecem com toda a sua força repressiva, tão logo o ofendido as invoque.
Não se pode, entretanto, negar valor ao direito consuetudinário, mesmo no
campo de nossa disciplina.
Primeiramente, tipos delituosos existem que invocam o costume, ao aludirem
a certos elementos como honra, decoro, inexperiência, justificável confiança,
mulher
honesta etc. É impossível, então, o conhecimento da norma, desprezando-se o
costume.
Depois, há casos em que ele indiretamente é integrador do direito penal,
quando a norma deste faz remissão a outra de diverso ramo jurídico, como o civil
ou
o comercial, que não o repudiam, e pode ser diretamente integrante quando, no
mesmo caso, a norma civil, v. g., a ele se referir de modo direto, não obstante
ser
isso excepcional.
Aceita igualmente é sua influência, no tocante à extensão das causas
excludentes da antijuridicidade ou da culpabilidade. Em muitos casos, o próprio
fundamento
da justificativa ou dirimente, ou a limitação de sua eficácia, está no costume,
na prática uniforme e constante, segundo os interesses e tendências sociais e
culturais.
Registre-se, por fim, que a evolução doutrinária é no sentido de ampliar-se sua
eficácia. Massari, por exemplo, sustenta ser ela a mesma que nos outros ramos
jurídicos,
assinalando ao costume tríplice função de elemento derrogatório da norma
legislativa, de integrante seu e de norma de per se stante, não vacilando em
afirmar que
o princípio nul/um crimen, nul/a poena sine lege pode ceder ante ele, seja
integrativo, derrogatório ou criadorlO, e Maggiore, negando-lhe função criadora,
reconhece-lhe
a derrogatória e abrogatória .
É ele fonte indireta, mas no direito penal liberal não pode definir
crimes e impor sanções.
b) Define-se a eqüidade como a correspondência jurídica e ética perfeita
da norma às circunstâncias do caso concreto a que é aplicada. É a definição
comum
dos doutrinadores.
Ensina Manzini que ela pode ser considerada fonte de direito objetivo não
só quando completa a norma que a reclama, mas, também, quando a vontade do
Estado
lhe reconhece a força de invalidar a norma de direito, no caso individual ou em
uma série de casos concretos. Como exemplo dessa espécie, pode apontar-se o caso
do perdão judicial, em que o juiz, não obstante provada a culpa do acusado, pode
abster-se de pronunciar a condenação, isto é, pode omitir a aplicação da pena,
não
efetivando, desse modo, a norma que a comina.
Por outro lado, é inegável que tanto a doutrina como a jurisprudência a
invocam freqüentemente, embora não o façam de modo explícito.
c) Os princípios gerais do direito - nos quais se dilui a eqüidade, embora
Manzini os distinga, por ser esta subjetiva, ao passo que aqueles têm caráter
objetivo,
"venendo desunti non de un particolar modo, individuale o collettivo, di
sentire, bens} direttamente daI diritto positivo" - podem também suprir lacunas
e omissões
da lei penal, desde que esta não seja incriminadora. A tanto autoriza o art. 4.°
da Lei de Introdução do Código Civil, aplicável não apenas às normas jurídicas
de
direito privado, mas também às de direito público.
Como escreve José Frederico Marques: "No campo da licitude do ato, há
casos onde só os princípios do direito justificam, de maneira satisfatória e
cabal, a
inaplicabilidade das sanções punitivas. É o que sucede nas hipóteses onde a
conduta de determinada pessoa, embora perfeitamente enquadrada nas definições
legais
da lei penal, não pode, ante a consciência ética e as regras do bem comum, ser
passível de punição".
Parece-nos que, desde que o imponham o interesse coletivo e as exigências
de justiça substancial, não repugna a invocação dos princípios gerais do direito
na ampliação da órbita da licitude penal.
d) A analogia é inadmissível para criar crimes e estabelecer sanções, onde
impere o princípio da reserva legal, como em outro lugar se verá (n. 37). Já o
mesmo
não se pode dizer da analogia in bonam partem, que beneficia e favorece o
acusado, podendo, então, ser invocada, não só quanto àlicitude do ato como,
também, na
mitigação da pena.
A doutrina não é fonte formal do direito penal. É, porém, de grande
utilidade na interpretação da lei, estudando-a desde o nascedouro, acompanhando-
a na evolução,
examinando os elementos jurídicos e metajurídicos que a informam.
Os ensinamentos contidos nos tratados, nas lições dos professores, nos
Congressos, por serem de grande valia, não têm, entretanto, força obrigatória,
não podem
vincular o intérprete às suas conclusões.
Apontando defeitos, mostrando lacunas, indicando aperfeiçoamento etc., a
communis opinio doctorum presta relevante serviço na elaboração da nova lei,
pois
o legislador não pode ter ouvidos moucos para os erros da anterior e às
necessidades da porvindoura, apontados por aquela.
Não pode a jurisprudência constituir fonte do direito penal, já que ela é
o direito reproduzido nas decisões judiciais, por via de aplicação da lei.
Inquestionável,
entretanto, é sua importância na interpretação dos textos legais; diga-se o
mesmo de sua influência na elaboração de novas leis.
No mais, não é ela fonte de direito, mesmo porque o juiz, quando julga,
declara o direito aplicável somente àquele caso. A repetição de decisões num
mesmo
sentido tem efeitos de sumo relevo, como se disse; porém não cria o direito, que
promana da lei que está em jogo.
Adverte, contudo, Soler que não se pode deixar de observar que,
modernamente, nos direitos penais revolucionários, ao afirmar-se o caráter
criador da jurisprudência
e ao admitir-se o princípio analógico ou ao suprimir-se a especificação das
figuras delituosas, atribui-se à jurisprudência força produtora de normas,
outorgando-se
ao juiz faculdade legiferante, de modo que "en el acto de juzgar finca el
devenir mismo de Ia norma".
Fora disso, "a jurisprudência dos tribunais nunca teve senão valor de
interpretação doutrinária, quando, por obscuridade ou deficiência da lei
positiva, há
uma razão de duvidar, exigindo uma razão de decidir, não só induzida da solução
de casos e preceitos gerais d legibus judicandum pelas leis".
Os tratados e convenções internacionais são apontados por diversos
autores, ora como fontes mediatas e ora imediatas. Roberto Lyra escreve: "A
nosso ver, os
tratados e as convenções internacionais, como verdadeiras leis entre as partes,
constituem, também, fonte imediata de Direito Penal. Em nossos dias, sobretudo,
quando
se estreita a interdependência econômica dos povos e se faz, com a maior
franqueza, o jogo dos interesses em choque, ou das conveniências comuns,
adquirem grande
importância esses ajustes diplomáticos" .
Não comungamos da abalizada opinião, pois os tratados não têm força senão
depois do referendum do Congresso (CF, art. 49, 1), e, conseqüentemente, passam
a
ser fontes como leis.
De todo o exposto podemos concluir que, ao contrário do que muitos
sustentam, não é hermeticamente fechado o âmbito do direito penal.
Não se discute que, em matéria de definição de crimes ou agravação de
penas, só a lei é fonte; todavia fora daí não se há de rejeitar a existência de
outras.
Assim o costume. Representa a consciência jurídica de um povo. Nasce
espontaneamente, forma-se pouco a pouco e impõe-se por sua necessidade e
assentimento geral,
não necessitando para isso da intervenção de qualquer órgão do Estado. Penetra o
direito penal, através de outras leis, que dele se integram, e participa do
conteúdo
de suas figuras típicas.
Outras fontes mediatas são a analogia in banam partem e os princípios
gerais do direito.

HISTÓRIA DO DIREITO PENAL BRASILEIRO


SUMÁRIO: 31. O aborígene. 32. Brasil Colonial. 33. O Império. 34. A República.

31. O aborígene. É intuitivo que as práticas punitivas dos homens que aqui
habitavam em nada podiam influir sobre a legislação que nos regeria, após o
descobrimento.
Destituídos, pois, de interesse jurídico, os costumes penais dos nativos,
limitar-nos-emos a apontar um ou alguns, mesmo porque seu estudo melhor se situa
em outro
setor.
Conta-nos Rocha Pombo que, "entre os selvagens, o direito consuetudinário
entrega o criminoso à própria vítima ou aos parentes desta; e se aquele que
delinqüiu
pertence a uma tribo ou taba estranha, o dano ou delito deixa de ser pessoal e
se converte numa espécie de crime de Estado". Acrescenta que não só o homicídio
-
por sinal que muito raro - mas também o adultério, a perfídia, a deserção,
principalmente, da tribo (onde melhor se consolidava o direito) e o roubo
(praticado noutra
taba, já que na mesma taba tudo era comum) eram punidos .
As penas, nos delitos de certa gravidade, eram aplicadas por um juiz.
Havia outros casos, naturalmente em crimes mais graves ainda, em que o
julgamento cabia
a uma assembléia, constituída em tribunal, com aplicação das penas de castigos
corporais e provações, até a morte. Às vezes, a punição cifrava-se na entrega do
criminoso
aos parentes da vítima, se o crime era homicídio.
É claro que esse direito consuetudinário nenhuma influência teria no
descobridor que para aqui veio, trazendo suas leis. Foram elas os nossos
primeiros Códigos.

32. Brasil Colonial. Verdadeiramente, foi o Livro V das Ordenações do Rei


Filipe 11 (compiladas, aliás, por Filipe I, e que aquele, em 11-1-1603, mandava
fossem
observadas) o nosso primeiro Código Penal. São as Ordenações Filipinas. É o
Código Filipino.
Certo é que, na época em que o Brasil foi descoberto, vigoravam as
Ordenações Afonsinas, logo substituídas pelas Manuelinas (1512), que, não
obstante o grande
prestígio que tiveram, eram revogadas em 14 de fevereiro de 1569 pelo Código de
D. Sebastião.
Foram, porém, as Filipinas nosso primeiro estatuto, pois os anteriores
muito pouca aplicação aqui poderiam ter, devido às condições próprias da terra
que ia
surgindo para o mundo. Tudo estava por fazer e organizar. Para se ter uma idéia
de como iam as coisas referentes à justiça, naquela época, basta lembrar o
episódio
ocorrido em Piratininga, em 13 de junho de 1587, em que o almotacel (magistrado
de categoria inferior ao juiz ordinário) João Maciel pediu aos vereadores que
lhe
dessem as Ordenações (certamente o Código Sebastiânico), pois não podia, sem
elas, exercer suas funções. Taunay, que nos narra esse episódio, acrescenta não
se ter
encontrado um só exemplar!
Refletiam as Ordenações Filipinas o direito penal daqueles tempos. O fim
era incutir temor pelo castigo. O "morra por ello" se encontrava a cada passo.
Aliás,
a pena de morte comportava várias modalidades. Havia a morte simplesmente dada
na forca (morte natural); a precedida de torturas (morte natural cruelmente); a
morte
para sempre, em que o corpo do condenado ficava suspenso e, putrefazendo-se,
vinha ao solo, assim ficando, até que a ossamenta fosse recolhida pela Confraria
da
Misericórdia, o que se dava uma vez por ano; a morte pelo fogo, até o corpo ser
feito em pó. Cominados também eram os açoites, com ou sem baraço e pregão, o
degredo
para as galés ou para a África e outros lugares, mutilação das mãos, da língua
etc., queimadura com tenazes ardentes, capela de chifres na cabeça para os
maridos
tolerantes, polaina ou enxaravia vermelha na cabeça para os alcoviteiros, o
confisco, a infâmia, a multa etc.
Quanto ao crime, era confundido com o pecado e com a mera ofensa à moral.
Começava pela incriminação dos hereges e apóstatas, prosseguindo com a punição
dos
feiticeiros, dos que benziam cães etc. Realce especial merecia o crime de lesa-
majestade, comparável à lepra, infamando também os descendentes, posto que não
tenham
culpa.
Fatos que hoje depõem contra a decência e a moral eram considerados
delitos gravíssimos, haja vista, v. g., o Título XIII - Dos que cometem pecado
de sodomia
e com alimárias - em que era queimado, até ser o corpo reduzido a pó, o homeIJl
que tivesse relações carnais com um irracional, declarando os anotadores que o
mesmo
sucedia a este.
Consagravam amplamente as Ordenações a desigualdade de classes perante o
crime, devendo o juiz aplicar a pena segundo a graveza do caso e a qualidade da
pessoa:
os nobres, em regra, eram punidos com multa; aos peões ficavam reservados os
castigos mais pesados e humilhantes.
Ao lado da preocupação com a pessoa do soberano, da confusão do crime com
o pecado, e com a falta moral, vê-se a atenção que o legislador reinol
dispensava
aos fatos sexuais, enumerando-os em extensa lista, alguns até bizarros e
estranhos, e estendendo a interdição aos contatos carnais de infiéis e cristãos,
ainda com
intento de defesa religiosa.
Não se pode falar, nesse diploma, em técnica legislativa. Seus títulos
eram descritivos. Longas orações definiam os crimes. Imperava o casuísmo etc.
Em suma: tudo quanto, mais tarde, Beccaria verberou ostentava-se
inconfundivelmente no Livro V. Mas tenha-se em vista que ele não era uma lei de
exceção, pois
as atrocidades, as confusões, as arbitrariedades, as deficiências, as
desigualdades etc. eram também de leis coevas.
Foi o Código de mais longa vigência entre nós: regeu-nos de 1603 a 1830,
isto é, mais de duzentos anos.
Tentativas de modificar a legislação do Reino houve. As mais importantes
consistiram nos projetos de Código Criminal, de autoria de Pascoal José de MeIo
Freire
dos Reis, professor da Universidade de Coimbra, homem culto, liberal,
inspirando-se nos pensamentos dos enciclopedistas. Seus trabalhos jamais foram
convertidos
em lei, ou porque não resistiram às críticas das comissões revisoras, ou porque
só eram lembrados com receio, diante dos fatos da Revolução Francesa.
33. O Império. Proclamada a Independência, era imperativo um novo Código
Penal. Como isso não se podia fazer de um momento para outro, mandou-se, pela
Lei
de 20 de outubro de 1823, que continuassem a ser observadas as Ordenações, o que
se daria até 1830, embora, no interregno, diversas leis houve que se destinavam
a abrandar o rigor daquelas.
José Clemente Pereira e Bernardo Pereira de Vasconcelos foram encarregados
da elaboração de projetos. Ambos foram apresentados às comissões do Legislativo,
sendo dada preferência ao de Vasconcelos.
Foi aprovado o Projeto em sessão de 20 de outubro de 1830 na Câmara, sendo
remetido ao Senado. Em 16 de dezembro, D. Pedro I sancionava-o.
O Código honrava a cultura jurídica nacional. De índole liberal, a que,
aliás, não podia fugir, em face do liberalismo da Constituição de 1824,
inspirava-se
na doutrina utilitária de Bentham. Influenciavam-no igualmente o Código francês
de 1810 e o Napolitano de 1819.
Todavia a nenhum deles se submetia, sendo freqüentes suas originalidades.
Roberto Lyra assim as enumera: "1.°) no esboço de indeterminação relativa e de
individualização
da pena, contemplando já os motivos do crime, só meio século depois tentado na
Holanda e, depois, na Itália e na Noruega; 2.°) na fórmula da cumplicidade (co-
delinqüência
como agravante) com traços do que viria a ser a teoria positiva a respeito; 3.°)
na previsão da circunstância atenuante da menoridade, desconhecida, até então,
das
legislações francesa e napolitana, e adotada muito tempo após; 4.°) no arbítrio
judicial, no julgamento dos menores de 14 anos; 5.°) na responsabilidade
sucessiva,
nos crimes por meio de imprensa, antes da lei belga e, portanto, éesse sistema
brasileiro e não belga, como é conhecido; 6.°) a indenização do dano ex delicto
como
instituto de direito público, também ante visão positivista; 7.°) na
imprescritibilidade da condenação".
Claro é que apresentava defeitos. Não definira a culpa, aludindo apenas ao
dolo (arts. 2.° e 3.°), embora no art. 6.° a ela já se referisse, capitulando
mais
adiante crimes culposos (arts. 125 e 153), esquecendo-se, entretanto, do
homicídio e das lesões corporais por culpa, omissão que veio a ser suprida pela
Lei n. 2.033,
de 1871. Tal silêncio explica-se pela época em que veio à luz o Código, na qual
os meios de transportes, a indústria etc. não ofereciam os perigos que mais
tarde
se fizeram sentir.
Espelhara-se também na lei da desigualdade no tratamento iníquo do
escravo. Cominava as penas de galés e de morte. Esta, por sinal, provocou
acalorados debates,
quando foi da discussão do Projeto, dividindo-se liberais e conservadores,
prevalecendo por pequena maioria a opinião destes, cujo argumento principal era
a necessidade
da pena capital para o elemento servil, em face de seu nível inferior de vida,
pelo que inócuas lhe seriam as outras penas.
Não separada a Igreja do Estado, continha diversas figuras delituosas,
representando ofensas à religião estatal.
Mas, como se disse, era um excelente Código, para a época. Grande foi
sua influência nas legislações espanhola e latino-americana. Era um dos poucos
Códigos,
no século passado, de índole liberal, e na América Latina foi o primeiro com
independência e autonomia.
Diz-se que Haus e Mittermayer aprenderam o português para estudá10. É
compreensível que, pertencente a um país que politicamente nascia, devesse
impressionar
juristas e legisladores, pelas idéias avançadas que continha.
A ele seguiu-se também o magnífico Código de Processo (1832).
Mas a consciência jurídica nacional que se manifestara por forma tão
brilhante, através desses Códigos, seria perturbada por leis como a de 3 de
dezembro
de 1841, com o Regulamento n. 120, provocando até movimentos sediciosos em São
Paulo e Minas. Já em 1835, a Lei de 10 de junho subtraíase ao liberalismo das
anteriores.

Dispunha esse diploma que, praticado um crime por escravo, contra homem
livre (brancos, pardos e pretos livres), reunia-se imediatamente o júri do termo
em
que o mesmo ocorrera, proferindo sentença, após breve processo, a qual, ainda
que fosse de condenação à morte, seria executada sem recurso. Dela, o ilustrado
jurista
Noé Azevedo diz: "Entregar a vida dos escravos ao Júri de um termo, onde o
senhor de engenho mandava como um régulo, era evidentemente o mesmo que dar ao
senhor
jus vitae necisque sobre essa gente, tal como na antiga Roma" 5. Dito diploma
vigorou até 1886.
Como estatuto importante do Império, tivemos ainda a já citada Lei n.
2.033, de 20 de setembro de 1871, que não só definiu crimes culposos e o
estelionato
como revogou a Lei de 3 de dezembro de 1841, passando novamente para o juiz a
formação da culpa, que esta atribuíra às autoridades policiais.
No campo da doutrina, no Império, citam-se como mais eminentes os nomes de
Brás Florentino, Tomás Alves Júnior, Paula Pessoa, Carlos Perdigão, Francisco
Luís
e alguns mais. Lições de direito criminal, Anotações ao Código Criminal, Código
Criminal anotado e Manual do Código Penal brasileiro são, respectivamente, as
obras
dos autores aludidos.
Entretanto o maior vulto no direito penal, nessa época, foi Tobias
Barreto. Não é pequena a lista de suas obras: Menores e loucos, Delitos por
omissão, Ensaio
sobre a tentativa criminal, Fundamento do direito de punir, Mandato criminal,
Prolegômenos do estudo do direito criminal, Comentário e crítica ao Código
Criminal
brasileiro e Estudos de direito.
Tobias Barreto é um pensador profundo e de grande originalidade em suas
obras. Gilberto Amado diz que bastava o último livro que citamos para colocá-lo
acima
de todos os brasileiros de seu temp06. Rasgados elogios também lhe fez Clóvis
Beviláqua, e Asúa igualmente não é parcimonioso, dizendo que ele abrangeu
horizontes
técnicos invisíveis para a maior parte de seus contemporâneos, inclusive os
latinos da Europa, e, na monografia sobre os delitos de omissão, defendeu pontos
de vista
ignorados pelos escritores franceses de seus dias. Além de inovador de teses,
institutos, e vulgarizador da doutrina alemã, foi crítico, eqüidistante de
Carrara
e de Lombroso, os quais combateu .
Tobias Barreto foi, sem dúvida, a culminância do direito penal do Império.

34. A República. No último ano do regime imperial, fora o Conselheiro João


Batista Pereira encarregado, pelo Ministro da Justiça, de elaborar um projeto de
reforma da legislação penal, não só porque sua vetustez exigia, mas também
porque a abolição da escravatura demandava modificações inadiáveis. Dedicou-se
aquele
jurista ao trabalho, quando veio a interrompê10 a Proclamação da República.
Todavia Campos Sales, Ministro da Justiça do Governo Provisório, não lhe retirou
a incumbência,
encarregando-o de elaborar um Projeto de Código Penal. Em pouco tempo, era ele
apresentado e convertido em lei pelo Decreto n. 847, de 11 de outubro de 1890.
Infelizmente o novo estatuto estava longe de seu antecessor e logo se viu
alvo de veementes e severas críticas. Carvalho Durão foi um dos que mais o
criticaram.
João Monteiro chegou a chamá-lo "o pior de todos os códigos conhecidos".
Era ele de fundo clássico. Procurou suprir lacunas da legislação passada.
Definiu novas espécies delituosas. Aboliu a pena de morte e outras,
substituindo-as
por sanções mais brandas, e criou o regime penitenciário de caráter correcional.
Outras inovações de toda oportunidade podem ainda ser apontadas.
As críticas que lhe foram feitas, sem dúvida, exageravam, mas, a par das
qualidades apontadas, os defeitos eram numerosos. Logo na Parte Geral, a
definição
de crime (art. 7.°) merecia censura dos comentadores; no art. 27, § 4.°,
deparava-se a famosa dirimente: "Não são criminosos os que se acharem em estado
de completa
privação de sentidos e inteligência". Foi grande a celeuma provocada, alegando-
se que a disposição se referia a quem estava de fato impedido de qualquer
atividade,
pois outra não é a situação de quem se acha completamente privado dos sentidos e
da inteligência.
A explicação dada é que se tratava de erro tipográfico, sendo o vocábulo
perturbação.
Não ia pelo melhor o Código na Parte Especial. Aí, a classificação dos
crimes não obedece a rigoroso espírito de sistema. A técnica, às vezes, é
lamentável.
Causava pasmo o nome dado ao título referente aos crimes contra os costumes -
Dos crimes contra a segurança da honra e honestidade das famílias e do ultraje
público
ao pudor - estando compreendidos como delitos contra a honra das famílias o
estupro de meretriz, o lenocínio etc. Na casuística do estelionato, deixava para
enumerar
em 5.° lugar (art. 338, n. 5) o tipo básico ou fundamental do delito.
Continha outras lacunas e imperfeições, não obstante a vigência de ótimos
diplomas, como o Código italiano de Zanardelli, que lhe podiam servir ou
serviram
de modelo.
Quer por seus defeitos, quer pelo tempo que vigorou esse estatuto,
numerosas foram as leis extravagantes que o completaram, tornando, às vezes, aos
homens
do direito, embaraçosa a consulta e árdua a pesquisa. Foi o Des. Vicente
Piragibe encarregado, então, de reunir em um só corpo o Código e as disposições
complementares,
daí resultando a Consolidação das Leis Penais, que se tornou oficial pelo
Decreto n. 22.213, de 14 de dezembro de 1932, e cuja vigência findou com o
advento do atual
diploma, com a redação original de 1940.
Ao invés do que sucedeu no Império, a obra da doutrina foi, aos poucos,
avolumando-se e aprimorando-se. Contribuiu para isso o declínio do Tribunal do
Júri,
com a passagem da maioria dos crimes - depois a quasetotalidade - para o
julgamento do juiz singular, tendo, então, os profissionais do foro de abandonar
a oratória
lacrimejante e patética - tão do agrado daquele tribunal - para se apegar ao
estudo exegético do Código e das leis posteriores. É o que assinala Nélson
Hungria,
em conferência realizada na Faculdade de Direito de São Paulo.
Dentre os principais comentadores do estatuto de 1890, apontam-se Oscar de
Macedo Soares, Oliveira Escorel, João Vieira de Araújo, Bento de Faria e Galdino
Siqueira. Mas a obra deste ocupa lugar de singular relevo. Na palavra autorizada
de Hungria: "Deu-nos um corpo de doutrina que nos ligou ao pensamento jurídico-
penal
da época e rasgou amplos horizontes aos nossos olhos inexpertos".
Todavia a maior obra de exegese do Código da República, infelizmente não
terminada, devemo-la a Antônio José da Costa e Silva, desembargador do Tribunal
de
Apelação do Estado de São Paulo. É o seu comentário sereno e desapaixonado,
justo e preciso. A par da notável cultura jurídica que revela, é o pensamento
profundo.
Encantam-nos o poder de síntese e a diafaneidade de estilo. São ainda de Nélson
Hungria estas palavras: "Pela fiel informação doutrinária, pela riqueza e
solidez
de ensinamentos, perfeição técnica, concisão e clareza de estilo, esse livro foi
e continua sendo a obra máxima do Direito Penal brasileiro".
Realmente, Costa e Silva foi o maior vulto, entre nós, da dogmática penal.
Na República, ele ocupa o lugar que Tobias Barreto teve no Império.
Grande é o número de autores que publicaram trabalhos doutrinários em
torno do novo Código. Seria difícil citar todos. Acodem-nos à memória os nomes
de Virgílio
de Sá Pereira, Viveiros de Castro, Cândido Mota, José Higino, Lima Drummond,
Muniz Sodré, Mendes Pimentel, Esmeraldino Bandeira, Raul Machado, José Duarte,
Roberto
Lyra, Nélson Hungria, Narcélio de Queiroz, Beni de Carvalho, NoéAzevedo, Basileu
Garcia, Soares de MeIo, Ataliba Nogueira, Cândido Mota Filho, Percival de
Oliveira,
Sinésio Rocha, Jorge Severiano, Ari Franco e Aníbal Bruno.
Mal nascido o Código da República, surgia a idéia de sua reforma. Logo
em 1893 João Vieira de Araújo apresentava um Projeto de Código Penal; em 1899,
outro,
pela Câmara dos Deputados, e em 1913 aparecia o de Galdino Siqueira. Não
vingaram, porém.
Virgílio de Sá Pereira, quatorze anos depois, apresenta um Projeto de
Código Penal, para revê-lo no ano seguinte (1928) e, dois anos após, apresentar
novo
Projeto. Também estes não lograram êxito; o mesmo acontecendo, aliás, com o
outro, elaborado em 1935, por incumbência do Governo Provisório, de autoria de
uma Comissão
composta de Sá Pereira (Presidente), Evaristo de Morais e Bulhões Pedreira.
Finalmente, é Alcântara Machado, após o golpe de 1O de novembro de 1937,
encarregado de elaborar um Projeto de Código Penal, que foi apresentado em 15 de
maio
de 1938. Em 12 de abril de 1940, o eminente professor, atendendo a críticas de
juristas e da Comissão Revisora, composta por Nélson Hungria, Vieira Braga,
Narcélio
de Queiroz e Roberto Lyra, com assistência cotidiana de Costa e Silva, entrega
ao Min. Francisco Campos o que ele chamou de "Nova Redação do Projeto de Código
Criminal
do Brasil".
Tal projeto não foi, porém, convertido em lei. Pelo Decreto-lei n. 2.848
surgiu o Código Penal de 1940, em vigor desde 1.° de janeiro de 1942 e revogado
parcialmente,
já que atingido somente na Parte Geral pela Lei n. 7.209, em vigência a partir
do começo do ano de 1985. O citado Código, no tocante à parte atingida, teve um
longo
período de vigência - 45 anos e foi fruto da Comissão Revisora mencionada no
item anterior. É exato que Nélson Hungria disse que "o projeto Alcântara Machado
está,
para o Código Penal, como o projeto Clóvis está para o Código Civil", e que o
próprio Alcântara Machado achou que ele provinha do seu Projeto; porém um exame
demorado
de ambos mostra diferenças marcantes e substanciais entre eles. Assim também
pensa Costa e Silva: "Entre ele (o Projeto Alcântara) e o Código se encontram
numerosos
pontos de semelhança: são aqueles em que ambos (às vezes com pouca felicidade)
copiaram os seus modelos prediletos - o Código italiano e o suíço -, mas traços
inconfundíveis
os distinguem" 1 I. O eminente jurista, que colaborou com a Comissão Revisora,
diz textualmente: "A comissão organizou um substitutivo, deixando mais ou menos
de
lado aquele projeto. Foi esse substitutivo que serviu de base aos trabalhos
futuros"12. Finalmente, o próprio Min. Francisco Campos, em sua Exposição de
Motivos
- item I - declara que "dos trabalhos da Comissão Revisora resultou este
projeto", para em seguida anotar que o Projeto Alcântara, em relação aos
anteriores, representou
um grande passo para a reforma da legislação penal, foi valioso subsídio ao
atual Projeto.
Entre a promulgação do Código e sua vigência mediou o espaço de pouco mais
de um ano. Ditava esse lapso não só a necessidade de conhecê10 como também dar
tempo
para que se elaborasse o novo Código de Processo, transformado em lei pelo
Decreto-lei n. 3.689, de 3 de outubro de 1941. Ambos os estatutos foram
precedidos de
Leis de Introdução. Como diploma contemporâneo e complementar do Código Penal,
deve ser apontada a Lei das Contravenções Penais (Dec.-lei n. 3.688, de 3-10-
1941).
Era e é um Código Penal eclético, como se falou e declara a Exposição de
Motivos. Acende uma vela a Carrara e outra a Ferri. É, aliás, o caminho que
tomam
e devem tomar as legislações contemporâneas (n. 27).
Nélson Hungria declarou que "respigamos, para o efeito de algumas
retificações, nos Códigos Penais suíço, dinamarquês e polonês"13. É marcante,
entretanto,
a influência do Código da Helvétia, e do italiano, acrescente-se.
É o Código de 1940 obra harmônica: soube valer-se das mais modernas idéias
doutrinárias e aproveitar o que de aconselhável indicavam as legislações dos
últimos
anos. Mérito seu, que deve ser ressaltado, é que, não obstante o regime político
em que veio à luz, é de orientação liberal.
Ao contrário do que alguns pensam, assisadamente elevou as penas, em
relação ao diploma anterior, lastimável sendo, entretanto, que as mantivesse tão
suaves
no delito culposo. Outro ponto não digno de encômios é o de não ter fugido
totalmente da responsabilidade objetiva. Todavia não é este o momento de
apontarmos lacunas
e deficiências que apresenta.
Imperfeições ele tem, pois é obra humana, mas suas virtudes pairam bem
acima de seus pecados. O Congresso de Santiago do Chile, em 1941, declarou que
ele representa
"um notável progresso jurídico, tanto por sua estrutura, quanto por sua técnica
e avançadas instituições que contém".
Um fato devemos, contudo, lastimar: o de se ter feito seguir por
anacrônico e deficientíssimo Código de Processo, cuja reforma é imperiosa.
O Código de 1940 provocou abundante produção na literatura penalista.
Diversas são as obras que o comentaram, lembrando-nos de citar as de Galdino
Siqueira,
Jorge Severiano, Bento de Faria; também, o Tratado de direito penal, os
Comentários ao Código Penal (Forense) e o Código Penal brasileiro comentado
(Saraiva), estas
a cargo de vários autores.
Entre as obras que, por ora, se limitaram à Parte Geral do Código,
recomendam-se por seu indiscutível valor doutrinário: Instituições de direito
penal, de
Basileu Garcia; Curso de direito penal, de José Frederico Marques; Direito
penall , de Aníbal Bruno; Sistema de direito penal brasileiro, de Salgado
Martins; e Código
Penal (1943), de Costa e Silva; esta, infelizmente, sem possibilidade de ir até
seu termo, devido ao falecimento do inolvidável autor.
Sobre a Parte Especial do Código, podemos citar as obras de Bento de
Faria, Galdino Siqueira; e, ainda, o Código Penal brasileiro (Forense), o
Direito penal,
de Aníbal Bruno (1.° volume dessa Parte); Lições de direito penal, de Heleno
Cláudio Fragoso, e mais algumas.
Digna de realce tem sido a produção de Nélson Hungria, Roberto Lyra, José
Duarte e outros, não só por seus comentários em obras coletivas como também por
trabalhos
individuais, a que têm emprestado a profundidade de sua cultura.
Pelo Decreto n. 1.490, de 8 de novembro de 1962, foi publicado o
Anteprojeto de Código Penal, elaborado por Nélson Hungria. Submetido à
apreciação de uma Comissão
Revisora, transformou-se em Código Penal, pelo Decreto-lei n. 1.004, de 21 de
outubro de 1969.
Não foram poucos os adiamentos da entrada em vigor do novo estatuto.
Inicialmente, seu art. 407 estipulou o início de sua vigência para 1.° de
janeiro de 1970.
Posteriormente, a Lei n. 5.573, de 1.° de dezembro de 1969, determinou que o
Código entraria em vigor no dia 1.° de agosto do mesmo ano, enquanto a Lei n.
5.597,
de 31 de julho de 1970, alterou a vigência para 1.° de janeiro de 1972. Depois,
a Lei n. 5.749, de 1.° de dezembro de 1971, promoveria novo adiamento,
determinando
que o novo Código Penal entraria em vigor em 1.° de janeiro de 1973, mas a Lei
n. 5.857, de 7 de dezembro de 1972, determinaria novo adiamento, desta feita
para
o dia 1.° de janeiro de 1974. Finalmente, a Lei n. 6.063, de 27 de junho de
1974, preconizou solução diferente, ao determinar que o novo diploma penal
entraria em
vigor simultaneamente com o novo Código de Processo Penal (Projeto de Lei do
Executivo n. 633/75). Contudo, foi revogado sem entrar em vigor.
Entrementes, a Lei n. 6.016, de 31 de dezembro de 1973, promoveu várias
alterações ao texto do novo Código, ao passo que a Lei n. 6.368, de 21 de
outubro de
1976 (Lei de Tóxicos), veio revogar seu art. 311.
Finalmente, por força da Lei n. 7.209, de 11 de julho de 1984, surgiu uma
nova estrutura legal atingindo a Parte Geral do Código Penal.
A origem está situada num Anteprojeto, datado de 1981, elaborado pelos
ilustres juristas Francisco Assis Toledo, Ricardo Antunes Andreucci, Miguel
Reale Júnior,
Serrano Neves, Helio Fonseca, Rogério Lauria Tucci e René Ariel Dotti. Uma
Comissão Revisora formada por Dinio Garcia, Miguel Reale Júnior, Francisco Assis
Toledo
e Jair L. Lopes deu forma final ao Projeto, datado de 1983, surgindo a citada
Lei n. 7.209, de 11 de julho de 1984, que diz respeito à nova Parte Geral do
Código
Penal.
As maiores e mais sensíveis modificações e inovações introduzidas dizem
respeito à disciplina normativa da omissão, ao surgimento do arrependimento
posterior,
à nova estrutura sobre o erro, ao excesso punível alargado para todos os casos
de exclusão de antijuridicidade, ao concurso de pessoas, às novas formas de
penas
e à extinção das penas acessórias, à abolição de grande parte das medidas de
segurança com o fim da periculosidade presumida.
Com a nova Parte Geral surgiu a primeira Lei de Execução Penal (Lei n.
7.210), ambas em perfeita sintonia, como não poderia deixar de acontecer.
Hoje, no campo penal, em matéria legislada, temos: o Código Penal, com a
Parte Geral introduzida pela Lei n. 7.209, de 1984, a Parte Especial na forma
prevista
pelo Decreto-lei n. 2.848 (Código de 1940); a Lei de Execução Penal (Lei n.
7.210) e um grande número de leis esparsas, como a relativa ao abuso de
autoridade (Lei
n. 4.898/65), a falimentar (Dec.-lei n. 7.661), a de economia popular (Lei n.
1.521), a Lei sobre preconceito de raça ou cor (Lei n. 7.716), a de imprensa
(Lei n.
5.250), o Código Eleitoral (Lei n. 4.737), o Código Florestal (Lei n. 4.771), a
Lei das Contravenções Penais (Dec.-lei n. 3.688), a dos crimes contra o sistema
financeiro
(Lei n. 7.492), a dos crimes hediondos (Lei n. 8.072), a dos direitos do
consumidor (Lei n. 8.078), a de entorpecentes (Lei n. 6.368), a de proteção à
fauna silvestre
(Lei n. 5.197), a de incorporações imobiliárias (Lei n. 4.591), a dos crimes de
sonegação fiscal (Lei n. 4.729), a dos serviços postais (Lei n. 6.538) etc.
A Lei n. 8.069 (Estatuto da Criança e do Adolescente), além de manter a
inimputabilidade penal para os menores de dezoito anos, criou dez figuras
típicas criminais
tendo o menor como sujeito passivo (arts. 228 a 244) e estabeleceu para alguns
casos o agravamento da pena, quando cometido o delito contra menor (art. 263).
A Lei n. 8.666, de 21 de junho de 1993, revogou o art. 335 e seu parágrafo
único do Código Penal e apresentou dez novas figuras típicas protegendo o
procedimento
das licitações.
Por seu turno, a Lei n. 8.930/94, dando nova redação ao art. 1.° da Lei n.
8.072 (25-7-1990), leis relativas aos crimes hediondos, também incluiu como talo
homicídio (art. 121 do CP) quando praticado em atividade típica de grupo de
extermínio, ainda que praticado por um só agente, bem como o homicídio
qualificado (art.
121, § 2.°, I, 11, III, IV e V). Da mesma forma, excluiu o delito de
envenenamento de água potável ou substância alimentícia, com resultado morte,
formas previstas
no art. 270 c/c o art. 285, ambos do Código Penal.
Recentemente, surgiram novas legislações penais especiais, como as Leis n.
9.034, de 3 de maio de 1995, relativa à prevenção e repressão de ações
praticadas
por organizações criminosas, 9.279, de 14 de maio de 1996, que instituiu o novo
Código de Propriedade Industrial, 9.294, de 15 de julho de 1996, referente à
restrição
ao uso e à propaganda de produtos fumígeros e bebidas alcoólicas e outros
produtos, e 9.296, de 24 de julho de 1996, sobre a interceptação telefônica.
Complementando as leis penais especiais podemos citar a Lei n. 9.434, de 4
de fevereiro de 1997, relativa à remoção de órgãos, tecidos e partes do corpo
humano
para transplante, a Lei n. 9.437, de 20 de fevereiro de 1997, instituidora do
Sistema Nacional de Armas - Sinarm, respectivamente regulamentadas pelos
Decretos n.
2.368, de 30 de junho de 1997, e 2.222, de 8 de maio de 1997, a Lei n. 9.455, de
7 de abril de 1997, dispondo sobre os crimes de tortura, a Lei n. 9.459, de 13
de
maio de 1997, acerca dos crimes de preconceito de raça ou cor, etc.
Hoje podemos dizer sem medo de errar que o conjunto de leis penais
esparsas é de tal maneira volumoso que chega a comparar-se com o próprio
conjunto ordenado
que forma a Parte Especial do Código Penal.

PARTE GERAL
DA APLICAÇÃO DA LEI

I - ANTERIORIDADE DA LEI PENAL

SUMÁRIO: 35. Direito penal liberal. Reação ao princípio. 36. Interpretação da


lei penal. Necessidade. O sujeito. Os meios. Os resultados. 37. A analogia. A
analogia
in banam partem.

35. Direito penal liberal. Reação ao princípio. Consagra o Código, no art.


1.°, o apotegma do direito penal liberal - nullum crimen, nulla poena sine
praevia
lege, síntese, como já se viu (n. 21), da parêmia formulada por Feuerbach. É o
princípio da legalidade ou da reserva legal.
Aponta-se como sua origem a Magna Carta do Rei João, em l2l5.Asúa, porém,
reivindica para o direito ibérico a prioridade, dizendo que já em 1188, nas
cortes
de Leão, pela voz de Afonso IX, se concedia ao súdito o direito de não ser
perturbado em sua pessoa ou bens, "antes de llamado por cartas a mi curia para
estar a
derecho, según 10 que ordenare mi curia; y si no se comprobara Ia delación o el
mal, el que hizo Ia delación sufra Ia pena sobredicha y además pague los gastos
que
hizo el delatado en ir y volver".
Não se pode negar, todavia, a influência de haver também sido proclamada,
na Inglaterra, naquela Carta, a regra de que ninguém seria julgado a não ser
"por
seus pares e pela lei da terra".
Entretanto apenas no século XVIII esse princípio iria ser consagrado em
fórmula definitiva e difundir-se pelas nações. Transportado pelos imigrantes
ingleses
para a América do Norte, esta o via inscrito nas Constituições de Filadélfia
(1774), Virgínia (1776) e Mariland, no mesmo ano. Concomitantemente, como já
dissemos,
a filosofia daquele século (n. 19), encontrando na voz desassombrada de Beccaria
a sua maior expressão, pregava como básica e fundamental para os povos a sua
adoção.
Foi ele, então, inscrito na Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 26
de agosto de 1789: "La loi ne peut établir que des peines strictement et
évidemment
nécessaires et nul ne peut être puni qu' en vertu d' une loi établie et
promulguée anterieurement au délit et légalement appliquée". Daí propagou-se
pelos diversos
países.
Esse princípio "tem significado político e jurídico: no primeiro caso, é
garantia constitucional dos direitos do homem, e, no segundo, fixa o conteúdo
das
normas incriminadoras, não permitindo que o ilícito penal seja estabelecido
genericamente, sem definição prévia da conduta punível e determinação da sanctio
juris
aplicável".
Conseqüentemente, não existe crime nem pena sem prévia lei. Só esta pode
definir delitos e cominar sanções. Só a lei é fonte imediata do direito penal
(n.
29).
Firma-se, também, por essa regra, que o crime é pressuposto da pena.
Modernamente ela adquire outra expressão, com a tipicidade, como mais
amplamente se verá (n. 52). É a tipicidade a adequação do fato ao tipo descrito
pelo
legislador. Não há crime sem que a conduta humana se ajuste àfigura delituosa
definida pela lei, ou, noutras palavras, não há crime sem tipo, "não há delito
sem
tipicidade".
Mas o direito penal liberal não se exaure na máxima apontada. Outras se
lhe juntam como garantia da liberdade do indivíduo: nu/la poena sine judicio e
nemo
judex sine lege.
A primeira limita o poder do legislador, impedindo-o de votar leis que já
imponham pena a pessoa ou pessoas determinadas. É a chamada normasentença, ou o
bill
of attainder dos anglo-saxões. Conseqüentemente, ninguém pode ser punido sem
julgamento. É um direito que se refere sobretudo aos interesses individuais, é
um direito
de defesa, compreendendo as várias garantias outorgadas pelos textos
constitucionais, como ocorre com a nossa Carta Magna, nos incis9s XL, LIII e LV
do art. 5.°.
A segunda regra afirma que a lei penal não pode ser aplicada senão pelo
juiz com o poder de exercer a jurisdição penal e, por conseguinte, só ele pode
julgar
o acusado. Não se limita, porém, à exigência do Judiciário. É necessário, ainda,
que o magistrado tenha competência (medida de jurisdição), isto é, tenha o poder
de julgar em sentido concreto, pois é óbvio que, devido a razões de ordem
prática, o poder de julgar é distribuído entre juízes e tribunais, já que seria
absurdo
supor que um só órgão pudesse conhecer de todas as causas.
Tais princípios encontram-se na Constituição Federal (art. 5.° , LlII e
XXXVII), quando declara que não haverá foro privilegiado nem juízes e tribunais
de
exceção e alude à competência do juiz.
Em nossos dias, tem o direito penal liberal sofrido sérias investi das dos
regimes totalitários.
O Código Penal russo (art. 6.°) declarava que não seria considerada crime
uma ação que não correspondesse a um artigo de lei, desde que, por suas
circunstâncias,
tivesse perdido o caráter de periculosidade social, e, no art. 16, ao revés,
tinha-se como delito uma ação ainda que não tivesse sido especificamente
prevista, desde
que apresentasse periculosidade social, aplicando-se, então, os artigos da lei
que previsse delitos de índole análoga.
Era a analogia. O critério que norteava o juiz inspirava-se na política.
Não estava ele adstrito aos termos da lei, devendo, antes, verificar se o fato
molestava
os interesses do Estado soviético.
Não obstante, a reforma de 25 de dezembro de 1958 ab-rogou essas
disposições, dizendo o Código, no art. 1.°, que "...a legislação penal da URSS e
de suas Repúblicas
define as ações socialmente perigosas consideradas crimes e comina as penas a
serem aplicadas a seus agentes"; e, no art. 7.°, que "crime é toda ação ou
omissão
socialmente perigosa e prevista em lei penaL." É a volta ao princípio da reserva
legal, que fora abandonado pela necessidade de consolidação do novo regime.
Na Alemanha de Hitler, a Lei de 28 de junho de 1935 ab-rogou o § 2.° do
Código Penal de 1871. Devia o magistrado, no apreciar o fato delituoso,
inspirar-se
na "sã consciência do povo germânico". Não necessitaria, porém, ir muito longe,
pois a "sã consciência" era o que o Führer ditava a todos, era o que o "Mein
Kampf"
pregava.
Entretanto, com a queda do nazismo e a ocupação aliada, o direito
autoritário teria de desaparecer. Surgiram, pois, leis, como as de 20 de
setembro de 1945,30
de janeiro de 1946, 20 de junho de 1947 e, por fim, a de 25 de agosto de 1953,
que ab-rogaram diversos dispositivos daquela legislação, dispondo, hoje, o
Código,
no art. 2.°, § 1.°, que nenhum ato será punido senão quando seu caráter
criminoso tenha sido declarado por lei anterior; e, no § 2.°, que a pena a ser
aplicada é
a cominada ao crime na data de sua prática, retroagindo, porém, ia ioi pius
douce. É o nullum crimen, nulla poena sine iege. É a volta ao passado.
Dos Estados totalitários, fez exceção a Itália, que, no art. 1.°, consagra
a regra da legalidade. Quiçá tenha influído o fato de ser Arturo Rocco eminente
representante da Escola Técnico-Jurídica, defensora desse princípio - autor do
Projeto do Código. Talvez haja influído a circunstância de os crimes políticos e
contra
a segurança do Estado serem julgados por juízes e tribunais... impotentes diante
da vontade do Duce.
36. Interpretação da lei penal. Necessidade. O sujeito. Os meios. Os
resultados. Como reação ao arbítrio judicial então reinante, devido em parte ao
grande
número de leis contraditórias, entre as quais o magistrado tinha de optar no
caso concreto, criando, assim, o direito, como escreve Asúa; ou, em parte,
devido ao
absolutismo monárquico, a que tudo se curvava, o Iluminismo do século XVIII
opôs-se tenazmente à interpretação das leis. Proclamava Beccaria: "Resulta,
ainda, dos
princípios estabelecidos precedentemente, que os juízes dos crimes não podem ter
o direito de interpretar as leis penais, pela razão mesma de que não são
legisladores.
Nada mais perigoso do que o axioma comum de que é preciso consultar o espírito
da lei. Adotar tal axioma éromper todos os diques e abandonar as leis à torrente
das
opiniões".
O engano é manifesto. Interpretar não é função do legislador e, quanto à
consulta ao espírito da lei, não só não oferece perigo como é indispensável, se
quisermos
fixar-lhe com exatidão o sentido.
A interpretação nada mais é do que o processo lógico que procura
estabelecer a vontade contida na norma jurídica. Interpretar é desvendar o
conteúdo da norma.
Relativamente ao sujeito que a realiza, diz-se autêntica a interpretação
quando procede do legislador, por via de outra lei ou de outra disposição que se
chama,
então, interpretativa. Como tal não devem ser consideradas as exposições de
motivos que antecedem os Códigos, pois, ainda que emanadas de um ou de todos os
autores
da lei, não são rigorosamente interpretações autênticas. Diga-se o mesmo do
comentário do autor da lei. Em nenhum desses casos há força obrigatória. Como
exemplo
de interpretação autêntica, lembra Hungria o art. 327 do Código, dando o
conceito de funcionário público.
Pode a interpretação ser também judicial. Produto da atividade judicante,
é feita pelos juízes e tribunais, em suas decisões, só tendo força em relação ao
caso concreto; porém torna-se valiosa quando, repetindo-se ou perseverando, vem
a constituir jurisprudência, sem que, contudo, seja esta fonte do direito (n.
30).
É ainda doutrinária a interpretação, quando realizada pelos escritores ou
comentadores do texto. Tem valor, levando-se em consideração a pessoa que a faz;
como, também, se a exegese reflete a opinião comum dos que trataram o assunto. É
a communis opinio doctorum.
Quanto ao meio empregado pelo intérprete, duas são as formas de
interpretação: a gramatical, literal ou sintática, e a lógica ou teleológica.
A primeira deve preceder a qualquer outro trabalho exegético, pois incumbe
preliminarmente fixar a acepção dos termos usados pelo legislador. Todavia não
se
separa tão nitidamente, no tempo, da teleológica, que busca a vontade da lei. É
necessário ter-se em vista ofim ou escopo desta (ratio legis), que é dado pela
consideração
do bem jurídico tutelado. A procura da objetividade jurídica, resguardada pela
norma, deve ser preocupação máxima do exegeta; é o seu ponto de partida para o
conhecimento
do conteúdo de toda a norma.
É, destarte, a interpretação mais valiosa. Quando se harmoniza com a
gramatical, dúvida alguma pode dominar o intérprete, mas, na colisão entre
ambas, deve
ela prevalecer.
O elemento sistemático, que nos leva a confrontar a disposição em análise
com outras da mesma lei ou com outras leis, referentes ao mesmo assunto e, às
vezes,
com os princípios gerais do direito, desempenha papel relevante.
A rubrica da lei é elemento de valor, porque delimita ou circunscreve os
preceitos a que se refere.
O histórico também merece consideração, já que o direito objetivo não se
isola no tempo, pois é resultante de evolução histórica. Assumem relevo os
trabalhos
preparatórios, anteprojetos, projetos, discussões parlamentares e exposições de
motivos.
A legislação comparada, pois freqüentemente uma lei se inspira em outra de
país estrangeiro; salutar, então, é conhecer esta em sua origem e objeti vidade.
Vale-se ainda a interpretação lógica de elementos extra jurídicos e
extrapenais, porque não só deve considerar o meio político-social em que a lei
veio à luz
como também freqüentemente é preciso ter conhecimento de conceitos de outras
ciências a que ela se refere ou com que se relaciona.
No que toca aos resultados, a interpretação pode ser declarativa, quando,
para harmonia e compreensão do texto, não há necessidade de restringi10 ou
estendê-Io.
Diz-se restritiva, quando, consoante o próprio vocábulo, se restringe o alcance
das palavras usadas no texto, impedindo se lhes dê toda a extensão que parecem
comportar.
Oportunamente, Hungria cita o art. 28 do Código Penal- que declara que a emoção,
a paixão ou a embriaguez não isentam de pena - o qual deve ser, assim,
interpretado
restritivamente, considerando-se esses estados quando não-patológicos, pois, ao
revés, a disposição colidiria com o art. 26.
Pode também ser extensiva, quando, para fazer as palavras corresponderem à
vontade da lei, é mister ampliar seu sentido ou alcance. É admissível no direito
penal, não obstante muitos a impugnarem. É permitida quando os casos não
previstos são abrangidos por força de compreensão. Assim, o que é punido no
menos o é, também,
no mais; o que é permitido quanto ao mais o é, igualmente, quanto ao menos.
Exemplo dessa interpretação temos no art. 169, parágrafo único, relativo à
apropriação
de tesouro, em que à palavra proprietário deve ser dado um sentido amplo, para
abranger também o enfiteuta, que, com aquele, tem, pelo art. 609 do Código
Civil,
direito à metade do tesouro inventado.
A admissibilidade da interpretação extensiva explica-se, pois ela tem por
fim colocar em harmonia as palavras da lei com a vontade desta. Ora, se o que
deve
predominar em toda a matéria de interpretação é essa vontade, não se justifica
seja vedado o processo extensivo.
Ainda quanto aos resultados, a interpretação pode ser progressiva, que se
faz quando novas concepções entram no âmbito da lei. É o que diz Asúa, ao
escrever
que "o juiz não pode viver alheio às transformações sociais, científicas e
jurídicas. A lei vive e se desenvolve em ambiente que muda e evolui e, uma vez
que não
queiramos reformá-la freqüentemente, é mister adaptar a norma, como sua própria
vontade o permite, às novas necessidades da época".
Outra espécie é a chamada interpretação analógica ou intra legem. É
permitida quando à fórmula casuística se segue uma genérica, devendo, então,
admitir-se
que esta compreende casos semelhantes ou análogos ao mencionado por aquela, tal
como ocorre com os arts. 71, 61, 11, c, e 157. Tratase, ainda aqui, de
interpretação
extensiva.
A interpretação da lei, mesmo a extensiva e analógica, não repugna,
portanto, aos princípios do liberalismo penal.

37. A analogia. A analogia "in bonam partem". Distingue-se a analogia da


interpretação extensiva e da analógica, e opõe-se ao princípio políticoliberal
do
nullum crimen, nulla poena sine lege. Aliás, a analogia não é propriamente forma
de interpretação legal, mas de aplicação. Com ela se procura aplicar um preceito
de lei ou mesmo os princípios gerais do direito a um caso que as leis não
previram. A interpretação tem o escopo de apurar a vontade da lei; a analogia
supre essa
vontade, o que vale dizer que essa não existe. Tem, portanto, função integrante
da norma jurídica, e não interpretativa.
Dividem os autores a analogia em duas classes: a analogia "legis" e a
analogia "juris". Com a primeira, procura-se aplicar uma norma legal a um fato;
a segunda
trata da aplicação dos princípios gerais do direito.
Distingue-se a analogia da interpretação extensiva, porque, quando ela
ocorre, o caso em apreço não está regulado nem implicitamente, o que não
acontece com
a segunda. Aqui o intérprete se torna senhor da vontade da lei, conhece-a e
apura-a, dando, então, um sentido mais amplo aos vocábulos usados pelo
legislador, para
que correspondam a essa vontade; na analogia, o que se estende, e amplia, é a
própria vontade legal, com o fito de se aplicar a um caso concreto uma norma que
se
ocupa de caso semelhante. Pode resumir-se a distinção, dizendo-se que: numa
falta a expressão lexicológica adequada, conquanto patente a vontade; na outra
falta
também esta.
Com a interpretação analógica, mais fácil é a distinção, pois que esta se
faz em virtude de lei, que determina se aplique analogicamente o preceito.
Consagrava expressamente a analogia o Código Penal russo, no art. 16, já
citado no número anterior. Também o estatuto germânico, no regime nacional-
socialista,
cujo § 2.° foi revogado pela Lei de 28 de junho de 1935, em termos mais amplos e
extensos que os do diploma soviético, aplicava a analogia. Tais dispositivos,
como
vimos, hoje não mais vigoram.
Admite a analogia o dinamarquês de 1930; aliás, já o de 1886 a aceitava. A
prescrição "incide em sanção legal todo ato cuja punição seja prevista pela
legislação
dinamarquesa, ou que lhe seja inteiramente assimilável" é tida por alguns como
caso de interpretação extensiva. Assim não pensamos: trata-se da analogia, porém
de
limites menos amplos que os da lei nazista e que jamais serviu a fins políticos.
Diversos autores, como Rocco, Bettiol, Delitala e outros, acham que a
analogia, quando tem por fim favorecer o acusado (matéria de exclusão de crime
ou de
isenção ou atenuação da pena, e de extinção da punibilidade), deve ser acolhida.
É a analogia in bonam partem.
Segundo cremos, não é ela realmente impugnada pelo princípio da
legalidade.
Pronunciam-se contra ela, entretanto, vários tratadistas, como Von Hippel,
Asúa e Hungria. Este acha que as fórmulas usadas por nossa lei têm bastante
ductilidade
e que, por outro lado, diversos são os preceitos garantidores da
liberdade do indivíduo, bem como de mitigação da pena, pouco espaço restando,
assim, para a aplicação da analogia in banam partem?
Também já fomos dessa opinião. Entretanto força é reconhecer que essa
espécie de analogia não se opõe ao princípio da reserva legal, e, depois, casos
há em
que, na iminência da punição iníqua, deve lançar-se mão dela. Assim, v. g., em
nosso estatuto, o art. 128, 11, permite o aborto médico à mulher estuprada e,
portanto,
pergunta-se: se a mulher violentada em seu pudor (art. 214) excepcionalmente
engravidar, poderá abortar? Não há norma a respeito, e, assim, a punição será
fatal.
A não ser pela analogia in banam partem, aplicar-se-ão soluções diversas a casos
idênticos, o que é iníquo.

A LEI PENAL NO TEMPO

SUMÁRIO: 38. Irretroatividade da lei penal. Retroatividade benéfica. 39. A lei


mais benigna. 40. Ultratividade da lei penal. Norma penal em branco. 41. Do
tempo
do crime. Delitos permanentes e continuados.

38. lrretroatividade da lei penal. Retroatividade benéfica. Como


decorrência do princípio nullum crimen, nulla poena sine praevia lege, seguese o
da irretroatividade
da lei penal. É claro que, se não há crime sem lei, não pode esta retroagir para
alcançar um fato que, antes dela, não era considerado delito.
O princípio da irretroatividade sofre, entretanto, a exceção contida no
art. 2.°: "Ninguém pode ser punido por fato que lei posterior deixa de
considerar crime,
cessando em virtude dela a execução e os efeitos penais da sentença
condenatória". Em outros termos, a lei penal que beneficiar o acusado (lex
mitior) retroage.
Hoje, tal exceção foi erigida em norma constitucional, como prevê o art. 5.°,
XL: "A lei penal não retroagirá, salvo para beneficiar o réu".
Contém ainda, o artigo, princípio que faz a lex mitior retroagir, não só
no caso de estar sendo movida a persecutio criminis como também no de haver
sentença
definitiva com trânsito em julgado. Portanto, mesmo que o réu estivesse
cumprindo pena, deveria ser posto em liberdade, pois a lei posterior deixou de
considerar
delito o fato por ele praticado.
Todavia é mister que se atente referir-se o dispositivo aos efeitos penais
da sentença, o que significa que os efeitos civis permanecem, já que a sentença
criminal também possui tais efeitos, que não desaparecem em virtude da restrição
explícita do artigo.
O princípio é, pois, da irretroatividade da lex gravior e da
retroatividade da lex mitior, isto é, irretroatividade in pejus e retroatividade
in mellius.
Estatui o parágrafo único do art. 2.° do Código Penal: "A lei posterior,
que de qualquer modo favorecer o agente, aplica-se aos fatos anteriores, ainda
que
decididos por sentença condenatória transitada em julgado".

A novidade introduzida pela atual lei está na expressão "de qualquer


modo".
Qual o seu significado?
Abrange todas as hipóteses possíveis de benefícios, todas as situações que
sejam mais benignas. Isto é, tudo o que seja favorável ao réu ou ao condenado.
Exemplificando: circunstâncias novas atenuantes, causas extintivas de
punibilidade até então desconhecidas, novos benefícios como o sursis e o
livramento condicional,
causas de exclusão de antijuridicidade introduzidas, penas menos rigorosas etc.
Pela redação primitiva da parte especial do Código Penal, por força de
pena acessória de imposição automática, todos os condenados a pena privativa de
liberdade
acima de dois anos recebiam como reprimenda a perda do cargo público. Pela
reforma da parte especial do Código Penal, a perda da função pública passou a
atuar como
efeito da condenação, quando a pena aplicada fosse superior a quatro anos.
Todavia, recentemente, a Lei n. 9.268, de 1.° de abril de 1996, que deu nova
redação ao
Código Penal, em seu art. 92, I, estabeleceu a perda automática do cargo, função
pública ou mandato eletivo, quando for imposta condenação por pena privativa de
liberdade superior a um ano, quando o delito for praticado com abuso de poder ou
dever para com a administração pública, ou, então, quando tal pena for superior
a quatro anos, nos demais crimes.
Em conclusão: a lei penal retroage, a despeito da coisa julgada, nas
hipóteses da aboliria criminis (art. 2.°) e da novatio legis in mellius (art.
2.°, parágrafo
único).
A nós nos parece estabelecido o princípio incondicional da retroatividade
in mellius.

39. A lei mais benigna. Verificado que a lex mitior infringe o princípio
de que o delito deve ser apreciado consoante a lei do tempo em que ocorreu
(tempus
regit actum), incumbe agora apurar-se qual a lei mais suave, ou la foi plus
douce, no dizer dos juristas franceses.
Afere-se a benignidade, no caso concreto, confrontando as leis
concorrentes. Mais benéfica será a que cominar pena de menor duração, de
natureza menos grave,
de efeitos mais aceitáveis etc., como também a que der ao delito configuração
que favoreça o réu, tanto pela não-incriminação do fato como por ver nele forma
menos
grave, outorgar-lhe circunstâncias minorativas da pena e dispuser processo mais
favorável.
Maggiore, entre diversos autores, alinha os característicos da lei mais
benigna: a) pela diversa configuração do crime; a diversidade pode referirse à
natureza
deste (delito ou contravenção), aos seus elementos integrantes (ação,
antijuridicidade, culpabilidade) ou aos seus elementos acidentais
(circunstâncias); b) pela
diversa configuração das formas (tentativa, participação, unidade e pluralidade
de crimes, reincidência, habitualidade, profissionalismo, tendência a delinqüir
etc.);
c) pela diversa determinação da gravidade material da lesão jurídica
constitutiva do crime; d) pela diversa determinação das condições de
punibilidade positiva ou
negativa (querela, extinção do crime e da pena); e) pela diversa determinação da
espécie, da duração da pena e dos efeitos penais.
São características irrecusáveis, porém isso não impede que somente diante
do caso concreto é que se possa dizer qual a lei mais benigna. Para resolver a
questão
de saber se a lei nova é mais favorável ao acusado do que a lei em vigor, no
momento em que ele praticou a infração, deve fazer-se a comparação entre as duas
leis,
não in abstracto (v. g., tomando em consideração sua tendência geral de serem
mais ou menos severas), mas em relação ao indivíduo que se trata de julgar em
concreto.
Em caso de irredutível dúvida, de qual a mais benigna, deve aplicar-se a
lei nova somente aos casos não julgados. Lembra-se ainda o critério de ouvir o
réu,
pois, afinal de contas, é ele que sofrerá a pena.
Consideram os autores a hipótese da ocorrência de três leis em relação ao
fato e antes de seu julgamento (a vigente ao tempo em que foi cometido, a
intermediária
e a posterior), para se saber se a segunda pode ser aplicada. Cremos que o caso
não oferece dificuldades: a intermediária, sendo mais benigna, deve ser
aplicada,
pois ab-roga a primeira e impõe-se por sua benignidade à terceira.
Ponto em que a doutrina não se concilia é no tocante à combinação de leis,
para aplicação ao caso concreto.
Objeta-se que o juiz não pode combiná-Ias para extrair delas um conteúdo
mais favorável ao réu; ele estaria, em tal hipótese, elaborando uma lei, o que
não
lhe é permitido. Entre nós, defendem essa opinião Costa e Silva, Nélson Hungria
e Aníbal Bruno. Na Itália, entre outros, Battaglini diz: "Uma combinação de dois
sistemas legislativos é inadmissível". É a opinião mais comum.
Não faltam, entretanto, os que pensam de maneira diversa. Petrocelli assim
se pronuncia: "Noi non esitiamo a ritenere preferibile un sistema che
consentisse
aI giudice l'applicazione contemporanea della legge anteriore e di quella
successiva, di ciascuna accogliendo, per i vari punti deI rapporto da regolare,
le direttive
e i limiti piu favorevoli aI reo". Comungam da mesma opinião Basileu Garcia e
José Frederico Marques7, o primeiro invocando a eqüidade e o segundo observando
que
o juiz, em tal caso, obedece a princípio constitucional e joga com elementos
fornecidos pelo próprio legislador. Se lhe é dado, na aplicação do mandamento
constitucional,
escolher entre duas leis a que é mais benigna, não se vê por que não se admitir
que as combine para assim melhor obedecer à Lei Magna. Se pode escolher o "todo"
para favorecer o réu, poderá também tirar parte de um todo para combinar com a
parte de outro todo, em obediência ainda ao preceito constitucional.
Tal opinião é aceitável. Ela apresenta solução equânime no período
transitório entre duas leis, e é consentânea com o princípio do tratamento mais
benigno
ao acusado.

40. Ultratividade da lei penal. Norma penal em branco. No art. 3.°, trata
o Código das leis excepcional e temporária, consagrando sua ultratividade, isto
é,
aplicam-se ao fato praticado durante sua vigência, mesmo depois que esta cessou.
Lei temporária é aquela cuja vigência é prefixada. Lei excepcional é a que
vige enquanto duram as circunstâncias que a determinaram: guerra, comoção
intestina,
epidemia etc. A esta o Código alude com a expressão "cessadas as circunstâncias
que a determinaram", e àquela, com os dizeres "decorrido o período de sua
duração".
Conseqüentemente, praticada a violação delas, será o agente punido mesmo
depois que cessou sua vigência. A razão da ultratividade é óbvia e vem declarada
na
Exposição de Motivos: "Esta ressalva visa impedir que, tratando-se de leis
previamente limitadas no tempo, possam ser frustradas as suas sanções por
expedientes
astuciosos no sentido do retardamento dos processos penais".
Não pode ver na ultratividade dessas leis violação do princípio
constitucional de que a lei retroage quando beneficiar o acusado (art. 5.°, XL).
Não se trata
aqui de retroatividade, mas de ultratividade, isto é, a lei aplicase a fato
cometido quando ela estava em vigor: permanece o princípio tempus regit actum.
Pode ser que, cessadas essas leis, sejam substituídas por outra mais
benigna. Deverá esta ser aplicada ao fato praticado na vigência daquelas?
Estamos que
não. Se a lei temporária ou excepcional deve ser aplicada, ainda que outra não
lhe tenha sucedido, ou seja, quando o Estado achou que não há mais necessidade
de
legislar sobre a matéria, parece-nos que, com maior razão, deve ser aplicada
quando, se bem que com menos severidade, se legisla ainda acerca do assunto. Por
essa
razão não concordamos com o Prof. Basileu Garcia, quando se manifesta em sentido
contrári09. Em qualquer hipótese deve vigorar o art. 3.°.
Questão pertinente à matéria é sugerida pelas leis penais em branco. Já
vimos (n. 29) que assim se dizem aquelas cujo preceito é complementado por outra
norma.
Pergunta-se agora: alterada esta, tornando-se ela mais benigna para o acusado,
deve retroagir?
O assunto é profundamente controvertido, não apenas na doutrina indígena,
mas também na alienígena. Enquanto, por exemplo, Manzini se manifesta contra a
retroatividade
da norma complementar benéfica, Asúa apóia a tese oposta. Diga-se o mesmo da
jurisprudência dos tribunais.
Entre nós, a matéria tem sido freqüentemente ventilada, tendo-se em vista
as chamadas tabelas de preço, nos crimes contra a economia popular. Ditas
tabelas
estão sendo continuamente modificadas, elevando-se cada vez mais o custo e,
dessarte, podendo favorecer os que as transgrediram quando fixavam preços
inferiores
aos que elas virão a marcar, antes do julgamento. Nélson Hungria e José
Frederico Marques opinam pela irretroatividade, enquanto Basileu Garcia sustenta
opinião
contrária.
É difícil apresentar argumentos novos, tão debatida é a questão e diante
da excelência das razões já expostas. O autor de Instituições de direito penal,
entre
outros exemplos, cita o art. 269 - Omissão de notificação de doença -
perguntando se seria lícito punir um médico que deixou de denunciar moléstia
tida como contagiosa,
quando posteriormente os responsáveis pela saúde pública reconhecem não ter
aquela doença dito caráter. Por seu turno, pergunta o autor do Curso de direito
penal
se se devia declarar extinta a punibilidade de um motorista que fora condenado
por imprudência, visto dirigir na contramão, quando o regulamento posterior
dispôs
ser esta a mão de direção.
Pronunciamo-nos, em princípio, pela irretroatividade. Já no n. 29
acentuávamos a circunstância de que a norma penal em branco não é destituída de
preceito;
o comando, o mandamento, ela apresenta, sendo a norma extrapenal simplesmente
complementar.
Tal afirmação não importa que não se estabeleçam concessões. A nosso ver,
a lição de Soler, sempre invocada, permanece em sua inteireza: só influi a
variação
da norma complementar quando importe verdadeira alteração da figura abstrata do
direito penal, e não mera circunstância que, na realidade, deixa subsistente a
norma;
assim, por exemplo, o fato de que uma lei tire a certa moeda o seu caráter
nenhuma influência tem sobre as condenações existentes por falsificação de
moeda, pois
não variou o objeto abstrato da tutela penal; não variou a norma penal que
continua sendo idêntica.
Diga-se o mesmo da tabela de preços. A Lei n. 1.521, de 26 de dezembro de
1951, no art. 2.°, VI, não define como crime cobrar mais que determinado preço,
mas
sim "transgredir tabelas oficiais de gêneros e mercadorias ou de serviços
essenciais". Esta é a norma; a tabela é mera circunstância complementar, ditada
pelas necessidades
do momento.
Outra seria a solução, v. g., com o art. 173 do Código Penal, que
interdita o abuso de menor, sendo óbvio que a menoridade é a civil e que,
alterada esta,
modificada está a norma penal, que não pode ter uma menoridade civil.
Acrescente-se, por fim, como lembrou o saudoso Queiroz Filho, que, se a
tabela é lei, será temporária ou excepcional e, por isso, dotada de ultrati
vidade
.

41. Do tempo do crime. Delitos permanentes e continuados. Temos, por mais


de uma vez, nos referido à lei do tempo do crime, incumbindo, portanto, dizer o
que
se deve ter como tal.
Variam as opiniões na doutrina: uns acham que o tempus delicti é o do
momento da ação (teoria da atividade); outros, o do resultado (teoria do
efeito); e,
finalmente, outros, ora o tempo da ação e ora o do resultado (teoria mista).
A atual reforma, por força de seu art. 4.°, consagrou expressamente o princípio
da atividade. É esta que mais intimamente está ligada à vontade do agente; é,
por
excelência, nesse momento que, conscientemente, ele incorre no juízo de
reprovação social. O resultado não depende exclusivamente do elemento volitivo
do agente:
há entre esse elemento e ele fatores imponderáveis que se subtraem à vontade ou
ação do agente - pense-se no fato de uma pessoa atirar contra outra, ocorrendo
não
acertar, feri-Ia de leve, gravemente ou matá-la.
Conseqüentemente é a ação que determina qual a lei do tempo do delito. É,
hoje, a opinião predominante.
Quanto ao crime permanente, em que a consumação se prolonga no tempo,
dependente da vontade do agente, se iniciado na vigência de uma lei, sua
permanência
se prolonga já no império de outra, rege-se por esta, ainda que mais severa,
pois presente está a vontade do delinqüente de infringi-Ia.
Relativamente ao crime continuado, constituído por plural idade de
violações jurídicas, sem intercorrente punição, a que a lei confere unidade, em
face da
homogeneidade objetiva, obedece às regras seguintes. Se os fatos anteriores já
eram punidos e a nova lei é simplesmente modificadora, aplicase a toda a conduta
do
sujeito ativo, que se apresenta como um conjunto unitário. Se se trata de
incriminação original, só são punidos os atos executados em sua vigência,
indiferentes
sendo os anteriores. Se, por fim, ela descrimina os fatos, é claro que retroage,
abrangendo os executados antes dela.

A LEI PENAL NO ESPAÇO E EM RELAÇÃO ÀS PESSOAS. DISPOSIÇÕES FINAIS DO TÍTULO I

SUMÁRIO: 42. Direito penal internacional. Os princípios. 43. Territorialidade.


Lugar do crime. 44. Território. 45. Extraterritorialidade. 46. A lei penal em
relação
às pessoas e suas funções. 47. Extradição. 48. Disposições finais do Título I.

42. Direito penal internacional. Os princípios. Nem sempre um crime viola


interesse de um Estado apenas. Tal sua configuração, talo objeto juódico
tutelado
etc., pode acontecer que dois ou mais países se arroguem o direito de puni-Io.
Ao complexo de regras que objetiva uma lei aplicável no espaço, em tais
hipóteses,
muitos denominam direito penal internacional. Bem de ver, entretanto, que se
trata ainda de direito interno, embora relacionado com o direito alienígena.
Quatro princípios são apontados acerca da eficiência da lei penal no
espaço: o da territorialidade, o da nacionalidade, o de defesa e o da justiça
universal
ou cosmopolita.
O primeiro cinge-se ao território do país. Os crimes nele cometidos são
regulados por suas leis, qualquer que seja a nacionalidade do réu ou da vítima.
Não
admite a concorrência de lei de outra nação e não ultrapassa as suas próprias
fronteiras, isto é, não se preocupa com o delito cometido fora delas.
O princípio da nacionalidade, também chamado da personalidade, determina
que a lei a ser aplicada é sempre a do país de origem do delinqüente, onde quer
que
ele se encontre. Desdobra-se este princípio em ativo e passivo. Pelo primeiro,
aplica-se a lei do país a que pertence o agente, sem se levar em consideração o
bem
jurídico. Pelo segundo, dita lei se aplica somente quando o bem jurídico
ofendido pertença a pessoas da mesma nação.
O princípio de defesa, também conhecido como de proteção ou real, diz que
a lei aplicável é a da nacionalidade do bem jurídico lesado ou ameaçado, onde
quer
que o crime tenha ocorrido e qualquer que seja a nacionalidade do criminoso.
Finalmente, pelo princípio da justiça universal, o delinqüente fica
sujeito à lei do país onde for detido, qualquer que seja o lugar onde o delito
foi praticado,
a sua nacionalidade ou a do bem jurídico tutelado. Dito princípio é mais ideal,
é de difícil efetivação, considerando-se a dificuldade da coleta de provas e a
falta
de uniformidade na conceituação do crime, pois o que assim é considerado entre
nós nem sempre o será em país de outro continente.
Os Códigos não adotam com exclusividade qualquer desses princípios.
Vigora, às vezes, ora o da territorialidade, ora o da nacionalidade, sem que
sejam olvidados,
entretanto, os outros dois.

43. Territorialidade. Lugar do crime. Ficam sujeitos à lei brasileira os


crimes praticados, no todo ou em parte, no território nacional, ou que, nele,
embora
parcialmente, produziram ou deviam produzir seu resultado - dispõem os arts. 5.°
e 6.° do Código.
Como se vê, é a adoção do princípio da territorialidade, embora o
dispositivo contenha a ressalva da existência de convenções, tratados e regras
de direito
internacional.
A rubrica da disposição é lugar do crime. O que se deve entender por isso
é o que constitui objeto de três teorias: a da atividade, a do resultado e a
unitária
ou da ubiqüidade.
Pela primeira, lugar do delito é aquele em que o sujeito ativo ou
delinqüente pratica os atos de execução, teoria essa que tem merecido a
preferência dos escritores
germânicos I. A do resultado fixa como lugar do crime aquele em que se consumou,
o que nem sempre coincide com o da atividade, pois esta pode ser praticada em um
Estado e a consumação ocorrer noutro, v. g., o delito de homicídio, em que a
vítima pode ser atingida em um país e vir a falecer em outro. Já teve maior
aceitação
esse princípio que apresenta, além do inconveniente da incerteza do lugar da
consumação, o da renúncia do Estado em punir a ofensa a sua ordem jurídica,
porque o
resultado ocorreu além-fronteiras.
Finalmente, a teoria da unidade ou ubiqüidade, também conhecida como
mista, tem por lugar do delito aquele em que for realizado qualquer um de seus
elementos
integrantes, seja o da execução, seja o do momento consumativo. Dela diz Costa e
Silva ser a única cientificamente certa, praticamente satisfatória e que impede
a calamidade dos conflitos negativos de competência.
Foi a teoria abraçada por nosso Código, no art. 6.°. Excetuados os atos
preparatórios e os posteriores à consumação, basta que aqui tenha ocorrido
qualquer
parcela da atividade do indivíduo ou qualquer efeito que integre o resultado do
delito, para haver lugar a lei brasileira, punindo o crime todo, e não apenas a
fração
que aqui se realizou.
Encara também o dispositivo a hipótese da tentativa. Para esta, lugar do
crime não é apenas onde se desenrolou a atividade do agente, mas também onde
devia
produzir seu resultado. Superior é a orientação do estatuto pátrio, em confronto
com outros Códigos, como o suíço: "Une tentative est reputée commise tant au
lieu
ou son auteur l'a faite, qu'au lieu ou, d'apres le dessin de l'auteur, le
résultat devait se produire" (art. 7.°) - pois não tomam em consideração o
desígnio ou
intenção do autor para caracterização do lugar do resultado; este não é o em que
o agente quis ocorresse, mas onde teria ocorrido, se não fosse obstado de
prosseguir.
A respeito desses crimes, denominados a distância, em que a execução e o
resultado ocorrem em países diferentes, dispõe nosso Código de Processo Penal,
no
art. 70, §§ 1.° e 2.°, fixando a competência ratione loci da autoridade
judiciária brasileira.

44. Território. O art. 5.° refere-se ao território nacional, coisa que


nenhuma dúvida apresenta, quando se considera apenas o espaço compreendido entre
nossas
fronteiras.
Entretanto a noção de território vai mais longe: abrange todo o espaço
onde impera a soberania do Estado.
Território também é a faixa de mar ao longo da costa: mar territorial. Seu
limite, primitivamente, era dado pela distância a que alcançasse um tiro de
canhão
postado na costa. Mais tarde abandonou-se esse critério. Entre nós, isso
aconteceu por ocasião da primeira Conflagração Mundial, quando circular do
Ministério do
Exterior fixou para o mar territorial a distância de três milhas, a partir da
costa. No Governo Castello Branco, o Decreto-lei n. 44, de 18 de novembro de
1966,
aumentou essa área para seis milhas marítimas, que são acrescidas de outras
seis. Hoje, o mar territorial pátrio "compreende uma faixa de doze milhas
marítimas de
largura, medidas a partir da linha de baixa-mar do litoral continental e insular
brasileiro, tal como indicada nas cartas náuticas de grande escala, reconhecidas
oficialmente no Brasil". É o que dispõe o art. 1.° da Lei n. 8.617, de 4 de
janeiro de 1993. O art. 3.° da citada lei reconhece aos navios estrangeiros o
direito
de passagem inocente (simples trânsito, sem quaisquer atividades estranhas à
navegação) em nosso mar territorial.
Os §§ 1.° e 2.° do art. 5.° falam sobre os delitos cometidos em
embarcações e aeronaves, variando de acordo com a classificação e localização. A
nós parecia
melhor a redação primitiva do art. 4.° do Código Penal, que não conceituava o
território jurídico, deixando as soluções para as leis específicas.
No mar territorial, naturalmente, domina a lei da nação a que ele
pertence. Todavia o direito internacional abre exceções relativamente aos
navIOS.
Dividem-se eles em públicos ou privados. Os primeiros são os vasosde-
guerra, os empregados em serviços militares, em serviços públicos (alfândega,
polícia
marítima etc.), e os que transportam soberanos ou chefes de Estado e
representantes diplomáticos. Tais navios, quer em alto-mar, quer no territorial,
ficam sujeitos
à sua lei; os crimes praticados a bordo são da competência da justiça do país a
que pertencem. Representam a soberania do Estado e, dessarte, têm o respeito das
outras nações.
Os navios privados (mercantes, de recreio etc.), em alto-mar, estão
sujeitos à lei do pavilhão que ostentam. A respeito, faz Basileu Garcia as
considerações
seguintes. Se o crime se der em alto-mar, numa jangada construída com destroços
do navio que naufragou, ainda é a lei do navio que vige, pois a improvisada
embarcação
representa o vapor sinistrado; se houve abalroamento de duas naus e a jangada
for construída com material de ambas, opina-se que o criminoso fique sujeito à
lei
de seu país.
Se se encontram em mar territorial, os navios privados ficam sujeitos à
justiça da nação a que eles pertencem.
A respeito dos navios públicos, surtos em porto estrangeiro, concede-se
que, se um tripulante seu desce à terra, em serviço, e aí comete um crime, fica
ainda
sujeito à lei do Estado do navio. Se desce a passeio e pratica delito de pequena
gravidade, admite-se ainda fique submetido àquela lei.
Quando alguém, praticado um crime em terra, se abriga em navio de guerra,
surto em porto estrangeiro, tem-se entendido que, se o delito é político, não
está
o comandante obrigado a devolvê-Io a terra; porém, se é comum, deve entregá-lo,
mediante requisição do governo local. É o que estipulou a Sexta Conferência Pan-
Americana
de Havana, em 1928.
Quanto aos rios, podem ser considerados como nacionais e internacionais.
Os primeiros correm pelo território de um Estado apenas. Os segundos ou separam
os
territórios de dois ou mais Estados ou passam por seus territórios.
Se o rio é divisa natural entre dois países, algumas questões se
apresentam. Caso pertença a um dos Estados ribeirinhos, a fronteira passará pela
margem oposta.
Mas, se ele pertence aos dois Estados, a divisa pode passar por uma linha
determinada pela eqüidistância das margens, linha mediana do leito do rio, ou
por uma linha
que acompanha a de maior profundidade da corrente (talvegue). Pode também
acontecer que o rio seja comum aos dois países, e, nesse caso, é indiviso, sendo
comum
a jurisdição sobre ele.
Se o rio internacional é sucessivo, cada Estado exerce jurisdição sobre
o trecho de seu território, sendo ele equiparado ao mar territorial.
Quanto aos rios nacionais, claro que é plena a soberania estatal; podem,
entretanto, ser concedidas vantagens a outros Estados.
Três teorias falam sobre o domínio aéreo: uma prega absoluta liberdade do
ar; a outra, a soberania sobre toda a coluna atmosférica do Estado subjacente; e
a terceira, a soberania até a altura dos prédios mais elevados que se conhecem
ou a do alcance de baterias antiaéreas.
É a segunda que tem prevalecido, sendo adotada por nós, consoante o
anterior Decreto n. 20.914, de 6 de janeiro de 1932 (art. 1.°), e o atual Código
Brasileiro
de Aeronáutica (Lei n. 7.565, de 19-12-1986), art. 11, ambos estabelecendo que o
Brasil exerce sua soberania em todo o espaço aéreo correspondente ao seu
território
e águas territoriais.
As aeronaves dividem-se em civis e militares (CBAr, art. 107), sendo que
as civis compreendem as aeronaves públicas e privadas (CBAr, art. 107, § 2.°),
aplicando-se-lhes,
em regra, os princípios referentes aos navios, por sua vez também públicos e
particulares.
O art. 1.°, § 2.°, regula a aplicação da lei brasileira e da alienígena às
aeronaves. O Brasil exerce completa e exclusiva soberania sobre o espaço aéreo
acima
de seu território e respectivas águas jurisdicionais (art. 11). Consideram-se
território do Estado de sua nacionalidade as aeronaves militares e as públicas,
onde
quer que se encontrem (art. 3.°, I). Consideram-se, também, território do Estado
de sua nacionalidade as aeronaves privadas quando em alto-mar ou em território
que
não pertença a nenhum Estado, ou ainda em vôo sobre esses (art. 3.°, 11).
Consideram-se em território de um Estado quaisquer aeronaves privadas que nele
se encontrem,
ou quando em sobrevôo de seu território (art. 3.°, parágrafo único). Reputam-se
praticados no Brasil os atos que, originados de aeronave considerada território
estrangeiro,
produzirem ou vierem a produzir efeitos ou quaisquer danos no território
nacional (art. 4.°). São cumulativamente do domínio das leis brasileiras e
estrangeiras
os atos originados de aeronave considerada território brasileiro se as suas
conseqüências atingirem território estrangeiro (art. 5.°). Os direitos reais e
privilégios
de ordem privada sobre aeronave regulam-se pela lei de sua nacionalidade (art.
6.°). O art. 7.° determina que as medidas assecuratórias referidas no texto do
Código
Brasileiro do Ar regulam-se sempre pela lei do país onde se encontrar a
aeronave. São de ordem pública internacional as normas que vedam, no contrato de
transporte
aéreo, cláusulas que exonerem de responsabilidade o transportador, estabeleçam
para a mesma limite inferior ao fixado no Código ou prescrevam outro foro que
não
o do lugar do destino (art. 10, I, 11 e III).
O crime praticado em avião não militar, em vôo por nosso território, será
punido pela lei pátria; também esta será aplicada ao delito cometido a bordo de
aeronave
militar estrangeira, desde que produza efeitos no território pátrio.
Observa Basileu Garcia que, se o fato, ocorrido no espaço aéreo nacional,
não tem relação alguma com o País ou seus habitantes, nem perturba a sua
tranqüilidade
- o que acontece se o avião de caráter privado sobrevoa o território nacional,
sem pousar nele - não há razão para aplicar-se a lei local. Nesse sentido se
pronuncia
o Código Bustamante.

45. Extraterritorialidade7. Já vimos que, de acordo com o art. 5.° do


Código Penal, é o princípio da territorialidade fundamental. Todavia esse
próprio dispositivo
ressalva a existência de tratados, convenções e regras de direito internacional
que, então, preponderam, e, logo a seguir, no art. 7.°, passa a tratar de
diversos
casos que constituem exceção àquele princípio, alcançando então a lei brasileira
o delinqüente, ainda que o crime tenha sido praticado no estrangeiro.
No art. 7.°, I, faz o legislador aplicação do princípio real ou de
proteção, tendo em vista a relevância das objetividades jurídicas ou bens-
interesses tutelados,
como a vida ou a liberdade do Presidente da República, o crédito ou a fé pública
da União, o genocídio etc., todos distribuídos pelas alíneas a a d do inciso. E
tamanho é o apreço que por eles demonstra, que, no § 1.°, declara que o agente
será punido pela lei brasileira, ainda que absolvido ou condenado fora de nossas
fronteiras.
Todavia o rigor desse preceito, em caso de condenação em outro país, é suavizado
pelo art. 8.°, ao declarar que a pena cumprida no estrangeiro atenua a imposta
no
Brasil, pelo mesmo delito, quando diversas, ou nela é computada, quando
idênticas.
No inc. 11 a lei brasileira atua ainda fora de nosso território, quando se
tratar de crimes que, por tratado ou convenção, nós nos obrigamos a reprimir, os
cometidos por brasileiro, e os cometidos a bordo de aeronaves ou embarcações
brasileiras.
Na primeira hipótese, consagra-se o princípio da justiça cosmopolita ou
universal. Têm-se em vista aqui os delitos juris gentium, cuja repressão
necessita
de ação harmônica dos Estados, como ocorre com o tráfico de mulheres (art. 231),
o comércio de objetos obscenos (art. 234), a moeda falsa etc.
Na alínea b do inc. 11, cogita-se dos crimes cometidos por brasileiro.
Adota-se o princípio da personalidade ativa. Fundamenta o dispositivo a aversão
que,
em regra, têm os países de entregar seus nacionais, por delitos que cometeram no
estrangeiro. Entre nós, a Constituição Federal (art. 5.°, U) e a Lei n. 6.815,
de
19 de agosto de 1980 (art. 77, I), vedam seja extraditado brasileiro. Todavia, a
Carta Magna abriu duas exceções exclusivamente para os brasileiros
naturalizados:
quando o crime for cometido antes da naturalização e se tratar de envolvimento
com o tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins é possível a extradição.
A alínea c foi uma inovação e refere-se às aeronaves e embarcações
brasileiras em território estranho.
Todavia a aplicação da lei pátria, nas hipóteses das alíneas a a c do inc.
11, fica, na forma do § 2.°, subordinada a diversas condições que ele passa a
enumerar.
São condições de perseguibilidade.
A primeira é a do agente entrar no território pátrio. No silêncio da lei,
não há exigir seja a presença breve ou prolongada, voluntária ou compulsória.
A alínea b do § 2.° invoca a lex loei. Esta é o pressuposto da punição: é
mister que o fato seja também punido no país em que ocorreu. A alínea seguinte
declara
ser necessário estar o crime incluído entre aqueles que a lei brasileira permite
a entrega de um condenado, ou acusado, ao Estado que o reclama (extradição).
As alíneas d e e impõem, como condições, não ter sido o agente absolvido
no estrangeiro ou não ter aí cumprido a pena; não ter sido aí perdoado ou não
estar,
por outra razão, extinta a punibilidade. Ditas prescrições são facilmente
compreensíveis. Seria estranho que um acusado, livre em outro país, fosse
perseguido, processado
e condenado aqui, quando nossa lei, nessas hipóteses, tem função supletória.
No § 3.°, volta o legislador a aplicar o princípio real ou de proteção:
pune o agente que comete crime contra brasileiro, fora do Brasil. Para isso,
entretanto,
é necessário ocorrerem as circunstâncias já aludidas no § 2.° entre elas a de
haver entrado o agente no território nacional - acrescidas de não ter sido
solicitada
ou concedida a extradição - concebível, dessarte, que aqui se processe e julgue
o delinqüente - e de haver requisição do Ministro da Justiça, a cargo de quem
ficará
decidir da conveniência do processo, visto ter sido o delito cometido no
estrangeiro.
O art. 9.° ocupa-se com a eficácia da sentença penal proferida em outro
país. Trata-se de norma de exceção de efeitos limitados. Em primeiro lugar, é
imprescindível
que a lei brasileira produza, no caso, as mesmas conseqüências. Depois, a
eficácia se cinge aos efeitos civis da sentença criminal, e, no campo penal, às
medidas
de segurança. O parágrafo único diz acerca das condições necessárias para a
homologação, que compete ao Supremo Tribunal Federal.
Há outros casos em que a sentença estrangeira também produz efeitos em
nosso país: a reincidência, o sursis e o livramento condicional8. Em tais
hipóteses,
porém, não depende seu reconhecimento da homologação, como se verifica a
contrario sensu do art. 787 do Código de Processo Penal. A sentença atua, então,
como fato
jurídico. A homologação só é necessária, diante do citado dispositivo e do art.
9.°, quando se instaura o juízo executório, isto é, quando tiver a sentença de
ser
executada aqui, para os efeitos mencionados no último dispositivo.

46. A lei penal em relação às pessoas e suas funções. Em todo Estado domina
o princípio da territorialidade da lei penal: aplica-se a todas as pessoas que
se
acham em seu território. É, aliás, imperativo do princípio da igualdade de todos
perante a lei, conquista do liberalismo do século XVIII.
Tal princípio, entretanto, sofre exceções, oriundas das funções exercidas
por certas e determinadas pessoas. Entre estas, apontam-se os chefes de Estado,
quando
em outro país, e os representantes de governo estrangeiro. Praticando crime, não
ficam sujeitos às sanções das leis da nação onde se encontram. Ainda que
ilícito,
o ato subtrai-se à pena. Responderão pelo crime em seu país. Não se trata
evidentemente de privilégio à pessoa física do representante estrangeiro, mas de
acatamento
à soberania da nação que ele representa. Claro é que essas imunidades
diplomáticas devem ser recíprocas. Estendem-se aos funcionários do corpo
diplomático e aos
membros da família do representante. Abrangem,. outrossim, a sede da
representação, com o que contém; porém não mais perdura, hoje, a ficção de que
ela é porção
do território estrangeiro. Sua inviolabilidade decorre da imunidade do
representante. Conseqüentemente, um crime praticado aí, por pessoa que não goze
de imunidade,
fica sujeito à lei do país onde aquela sede se situa.
Releva, por fim, notar que as imunidades se referem a qualquer delito, e
não apenas aos cometidos no exercício das funções.
Não gozam os cônsules - agentes administrativos - salvo convenção em
contrário, das referidas imunidades.
Quanto aos chefes do governo, há a considerar que os soberanos das
monarquias constitucionais são invioláveis por suas Constituições: não respondem
perante
a lei penal. Trata-se de privilégio oriundo da permanência no trono enquanto
viverem.
Não assim os presidentes de repúblicas, embora fiquem sujeitos a regime
especial. Entre nós, será ele julgado, nos crimes comuns, pelo Supremo Tribunal
Federal,
nas infrações penais comuns, e nos de responsabilidade perante o Senado Federal,
mas, em ambos os casos, somente depois que a Câmara dos Deputados, pelo voto de
dois terços de seus membros, admitir a acusação. É o que diz o art. 86 da
Constituição Federal.
Além das imunidades diplomáticas, outras existem: as parlamentares.
Diferem, entretanto, daquelas, pois são causas de irresponsabilidade ou
condições de procedibilidade,
ao passo que as diplomáticas não excluem o crime; deferem apenas a outro país
sua apreciação.
O art. 53 da Constituição Federal estabelece que os Deputados e Senadores
são invioláveis por suas opiniões, palavras e votos, sendo que, por força do §
1.°,
não poderão ser presos, salvo em flagrante de crime inafiançável, nem
processados criminalmente, sem prévia licença da Casa.
No que diz respeito aos vereadores, o art. 29, VII, da Constituição
Federal estabeleceu, como inovação, a inviolabilidade por suas opiniões,
palavras e votos,
desde que no exercício do mandato e nos limites da circunscrição do Município.
A Lei n. 8.906, de 4 de julho de 1994, Estatuto da Advocacia,
regulamentando o art. 133 da Constituição Federal, por força de seu art. 7.°, §
2.°, estabeleceu
que os advogados têm imunidade penal, de natureza profissional, quando, no
exercício da atividade, em juízo ou fora dele, praticarem atos que podem ser
classificados
como crimes de difamação, injúria ou desacato. É mais uma forma de imunidade
penal, exigindo como requisito pessoal o de ser advogado e ter praticado o ato
atacado
quando no exercício da profissão.

47. Extradição. Com ser a luta contra a criminalidade objetivo comum de


todas as nações, não há dúvida de que a punição de um crime interessa,
sobretudo, ao
Estado onde ele foi praticado. Daí a extradição, que é o ato pelo qual uma nação
entrega a outra um criminoso para ser julgado ou punido.
As fontes que a regulam são de direito internacional e de direito interno.
Promana de tratados entre as nações, assentando-se no princípio da reciprocidade
e adotados e completados por leis internas.
Nosso Código, ao contrário de outros, como o italiano, não contém
disposições acerca do instituto. Regula-o a Lei n. 6.815, de 19 de agosto de
1980, em seus
arts. 76 a 94, e vige também o Código Bustamante, oriundo do Congresso
Internacional de Havana, em 1928, e aprovado por nós.
Em regra, para a extradição são consideradas determinadas circunstâncias
que se referem ao delinqüente e ao delito.
Quanto ao primeiro, em princípio, toda pessoa pode ser extraditada.
Todavia, em face de nossas leis, em regra, só o pode ser o estrangeiro, já que a
extradição
do brasileiro nato é proibida e a do brasileiro naturalizado é admitida em duas
hipóteses: quando o crime foi cometido antes da naturalização e quando se tratar
de envolvimento com o tráfico de drogas, como deixa claro o art. 5.°, LI, da
Constituição Federal. Com efeito, o art. 76 da mencionada Lei n. 6.815
estabelece que
a extradição poderá ser concedida quando o governo requerente se fundamentar em
convenção, tratado ou quando prometer ao Brasil a reciprocidade; mas o art. 77,
I,
adverte que não será concedida a extradição quando se tratar de brasileiro,
salvo se a aquisição dessa nacionalidade verificar-se após o fato que motivar o
pedido.
Em regra, não se admite a extradição para se aplicar a pena de morte. Contudo o
art. 91 da Lei n. 6.815, ao determinar que não será efetivada a entrega do
extraditando
sem que o Estado requerente assuma determinados compromissos em benefício
daquele, estabelece no inc. III que não será efetivada a entrega sem que o
Estado requerente
assuma o compromisso de comutar em em pena privativa de liberdade a pena
corporal ou de morte, ressalvados, quanto à última, os casos em que a lei
brasileira permitir
a sua aplicação.
Desta forma, além daquilo que dispõe o inc. III do art. 91 citado, não
haverá extradição nos seguintes casos previstos em tal dispositivo: não ser o
extraditando
preso nem processado por fatos anteriores ao pedido (inc. I); compromisso do
Estado requerente de computar o tempo de prisão que, no Brasil, foi imposta por
força
da extradição (inc. lI); compromisso de não ser o extraditando entregue, sem
consentimento do Brasil, a outro Estado que o reclame (inc. IV); e compromisso
de não
considerar qualquer motivo .político para agravar a pena (inc. V). Importante
frisar que nenhuma extradição será concedida sem prévio pronunciamento do
Plenário
do Supremo Tribunal Federal sobre sua legalidade e procedência, não cabendo
recurso da decisão (art. 83). Concedida a extradição, será o fato comunicado por
meio
do Ministério das Relações Exteriores à Missão Diplomática do Estado requerente
que, no prazo de sessenta dias da comunicação, deverá retirar o extraditando do
território
brasileiro (art. 86). Negada a extradição, não se admitirá novo pedido baseado
no mesmo fato (art. 88).

48. Disposições finais do Título I. O art. 10 do Código dispõe sobre a


contagem do prazo. Refere-se ao tempo (da condenação, da prescrição, da
suspensão da
pena etc.), para dizer que o dia do começo inclui-se em seu cômputo,
diversamente do que dispõe o art. 798, § 1.°, do Código de Processo Penal, que
não considera
o dia do início e conta o do vencimento. Tem a regra do estatuto substantivo o
fim de beneficiar o acusado, permitindo, v. g., que se contem, como um dia,
algumas
horas de prisão. Conseqüentemente, a regra do Código prefere à do diploma
adjetivo, quando ambos tratarem dos mesmos institutos.
A segunda parte do artigo diz que os dias, meses e anos serão contados
pelo calendário comum. Não seguiu a lei o exemplo do Código Civil (art. 125, §
3.°),
preferindo o da lei penal italiana (art. 4.°). Ao contrário, pois, daquele, para
quem o mês é sempre de 30 dias e o ano de 360, a contagem se fará de acordo com
o calendário. Conseqüentemente, se a pena de um ano, v. g., começar a ser
cumprida em 10 de janeiro, terminará em 9 do mesmo mês do ano seguinte.
O art. 11 manda desprezar, na pena privativa de liberdade e na restritiva
de direito, as frações de dia, e, na multa, as de real. O dispositivo obedece a
razões
de ordem prática e evita o exagero das legislações passadas, contando horas,
minutos e frações de mil-réis.
Dispõe o art. 12 que as regras gerais do Código aplicam-se a fatos
incriminados por lei especial, desde que ela não disponha de modo diverso.
Se dúvida houvesse de que não é o Código a única lei penal, bastaria ler o
art. 360. A finalidade daquele dispositivo é que as leis penais constituam um
todo
harmônico. Conseqüentemente, desde que uma delas não dite regras diversas do
estatuto básico - o que pode fazer, evidentemente, tangida pela natureza da
matéria
de que trata e por outros imperativos - desde que silencie, as normas gerais
daquele são-lhe aplicáveis.
DO CRIME

CONCEITO DO CRIME

SUMÁRIO: 49. Conceitos do crime. 50. O conceito dogmático. 51. A ação. 52. A
tipicidade. 53. A antijuridicidade. 54. A culpabilidade. 55. A punibilidade. 56.
Pressupostos
do crime e condições objetivas de punibilidade. 57. Ilícito penal e ilícito
civil.

49. Conceitos do crime. Já vimos, nos n. 22 e 24, as considerações de


Carrara e Garofalo acerca do delito. Sua conceituação varia conforme o ângulo
por que
é visto, o que depende da compreensão e extensão que se der ao direito penal.
Em regra, definem os autores o crime sob o aspecto formal ou
substancial.
O primeiro tem como ponto de referência a lei: crime é o fato individual
que a viola; é a conduta humana que infringe a lei penal. Nesse sentido, define-
o
Maggiore como "ogni azione legalmente punibile".
Todavia a definição formal não esgota o assunto. Há nela sempre uma
petição de princípio. Por que essa conduta transgride a lei? Qual a razão que
levou o legislador
a puni-Ia? Qual o critério que adotou para distingui-Ia de outras ações também
lesivas? Diversas outras questões podem ainda ser formuladas.
Visa a definição substancial à consideração ontológica do delito.
Garofalo, como apontamos, procurou-a no delito natural, tendo-o como a ofensa
aos sentimentos
altruístas de piedade e probidade comuns aos indivíduos na comunhão social. Essa
concepção do delito natural, entretanto, não procede, como não se justificam
outras
dos Positivistas-Naturalistas.
Com efeito, não se nega ter o delito aspecto biossociológico; todavia ele
existe apenas como fato, antes que a norma jurídica o defina como tal,
sujeitando-o
à sanção.
Cremos que o conceito substancial do delito pode ser obtido em outros
termos.
Finalidade do Estado é a consecução do bem coletivo. É a sua razão
teleológica. Mas, para a efetivação, além da independência no exterior, há ele
de manter
a ordem no interior. Cabe-lhe, então, ditar as normas necessárias à harmonia e
equilíbrio sociais.
É exato que variam os modos por que pode conseguir essa finalidade, como
ela própria, em determinado momento, apresentará um conteúdo distinto e
diferente,
de acordo com a evolução e peculiaridades históricas e sociais. Mas, de qualquer
maneira, como condição da própria existência, tem ele de velar pela paz,
segurança
e estabilidade coletivas, no entrechoque de interesses dos indivíduos,
determinado por condições naturais e sociais diversas.
As normas legais, por ele ditadas, têm, então, a finalidade de tutelar
bens-interesses, necessários à coexistência social, entendendo-se como bem o que
satisfaz
às necessidades da existência do indivíduo na vida em sociedade, e como
interesse a representação psicológica desse bem, a sua estima, como pondera
Rocco.
Mas o Estado, através do direito, valoriza esses bens-interesses, pois a
ofensa a alguns deles fere mais fundo o bem comum, já por atingir condições
materiais
basilares para a coletividade, já por atentar contra condições éticas
fundamentais. Dada, então, sua relevância, protege-os com a sanção mais severa,
que é a pena.
Conseqüentemente, crime é a conduta humana que lesa ou expõe a perigo um
bem jurídico protegido pela lei penal. Sua essência é a ofensa ao bem jurídico,
pois
toda norma penal tem por finalidade sua tutela.

50. O conceito dogmático. A ação humana, para ser criminosa, há de


corresponder objetivamente à conduta descrita pela lei, contrariando a ordem
jurídica e incorrendo
seu autor no juízo de censura ou reprovação social. Considera-se, então, o
delito como a ação típica, antijurídica e culpável. Ele não existe sem uma ação
(compreendendo
também a omissão), a qual se deve ajustar à figura descrita na lei, opor-se ao
direito e ser atribuível ao indivíduo a título de culpa lato sensu (dolo ou
culpa).

51. A ação. É a ação o primeiro momento objetivo ou material do delito. Sem


ela, este não existe. Dá-lhe corpo e, não raro, é somente ela que o revela no
mundo
exterior. Compreende a ação propriamente dita, em sentido estrito ou positivo, e
a omissão ou ação negativa. Ambas são comportamento humano, importando em fazer
ou não fazer. Tanto uma como outra integram o fato humano e conseqüentemente o
crime.
A ação positiva é sempre constituída pelo movimento do corpo, quer por
meio dos membros locomotores, quer por meio de músculos, como se dá com a
palavra ou
o olhar.
Quanto à ação negativa ou omissão, entra no conceito de ação (genus) de
que é espécie. É também um comportamento ou conduta e, conseqüentemente,
manifestação
externa, que, embora não se concretize na materialidade de um movimento corpóreo
- antes é abstenção desse movimento - por nós é percebida como realidade, como
sucedido
ou realizado. Pergunta, com oportunidade, Massimo Punzo, se não é exato que as
flores secam tanto quando o jardineiro não as rega, como quando as água com uma
solução
de sublimado?
E ambas são sujeitas à vontade, mesmo quando culposas, porque a culpa é
oriunda da falta de atenção e esta acha-se sob o domínio daquela. A vontade
concentra
a atenção sobre um objeto ou a afasta. Não se pode, ao mesmo tempo, omitir e
estar atento em relação a uma coisa ou um fato.
Sumarissimamente exposto, é o que ocorre com a ação e omissão sob o ponto
de vista naturalista. Mas ao direito penal elas só interessam quando têm
relevância,
quando importam o descumprimento de um dever jurídico ou se opõem ao comando da
norma legal, o que lhes dá o conteúdo normativo.
Ulteriormente, tem tido muita divulgação o conceito da ação finalista,
máxime devido aos estudos de Hans Welzel: "La acción humana es el ejercicio de
Ia actividad
finalista. La acción es, por 10 tanto, un acontecer 'finalista' y no solamente
'causal' ".
Não se nega seja a ação finalista; ela é a atividade dirigida a um fim.
Entretanto dita teoria desloca apenas o problema: considera o fim no estudo da
ação,
tirando-o da culpabilidade e tornando vazio o dolo.
Acreditamos não ser de seguir-se o ensinamento de Welzel: ele leva ao
juízo valorativo da ação em momento não-oportuno; na análise do elemento
subjetivo do
delito é que é seu lugar adequado.
Ocorre que o vigente Código Penal, em razão da modificação introduzida
quanto à estrutura do erro e somente por tal motivo, tornou polêmica a questão
sobre
se adotada a teoria da ação finalista. Em sentido afirmativo, isto é, houve
modificação para a adoção da teoria finalista, manifestaram-se os ilustres
Professores
Damásio E. de Jesus, Manuel Pedro Pimentel e Heleno Fragoso.
A nós parece que não ocorreu tal inovação, continuando a legislação a
trilhar seu caminho tradicional.
Com relação ao erro, a modificação introduzida consistiu apenas na adoção
de uma solução que em absoluto se restringe ao finalismo, tanto que compatível
com
a teoria social da ação. Tal fato, isto é, a nova estrutura do erro, não obriga
necessariamente a aceitação de uma nova estrutura do crime. Saliente-se que os
nobres
autores e mestres citados já adotavam como fixação doutrinária a teoria da ação
finalista, seguidores de Hans Welzel, o que também os teria levado a concluir
pela
modificação, aplaudindo o princípio por eles prestigiado.
O juiz e jurista Ricardo Andreucci, um dos autores do Anteprojeto do
vigente Código, portanto, em interpretação autêntica, afirmou que na verdade não
surgiu
um novo Código, mas apenas uma lei de reforma, conservando a filosofia do
anterior.

52. A tipicidade. Para ser crime, é mister ser típica a ação, isto é, deve
a atuação do sujeito ativo do delito ter tipicidade. Atuar tipicamente é agir de
acordo com o tipo. Este é a descrição da conduta humana feita pela lei e
correspondente ao crime. Na sua integralidade, compõe-se do núcleo, designado
por um verbo
(matar, subtrair, seduzir etc.); de referências ao sujeito ativo, isto é,
condições ou qualidades que se devem encontrar no agente (militar, funcionário
público,
pai, médico etc.), ao sujeito passivo (Estado, mãe, filho menor etc.), ao objeto
material (coisa móvel, documento, selo etc.), que freqüentemente se confunde com
o sujeito passivo, v. g., no homicídio, em que o homem é sujeito passivo e
objeto material; referências não raras encontramos, ainda, ao tempo, lugar,
ocasião e
meios empregados.
São esses elementos que dão estrutura aos tipos de mera descrição ob
jetiva, tipos normais, consoante Asúa.
Outros elementos, entretanto, existem que, às vezes, aparecem, tirando
ao tipo sua característica objetiva e descritiva. São elementos subjetivos do
injusto
e normativos, que informam os tipos anormais, ainda segundo o mesmo autor.
Os elementos subjetivos do injusto estremam-se de outros de natureza
subjetiva, que se referem à culpabilidade (como quando a lei exige no homicídio
a voluntariedade,
para distingui-Io do culposo), por serem ambivalentes, pois, conquanto se
refiram à culpabilidade, relacionam-se também ao injusto, como acontece com o
crime do
art. 289, § 2.°, do Código, com a expressão "depois de conhecer a falsidade"; ou
que aludem ao fim do agente nos chamados delitos de intenção; ou que
correspondem
ao motivo delituoso. São propriamente elementos subjetivos do injusto, perante
nossa lei, os que se designam sob expressões como "em proveito próprio ou de
outrem"
(art. 161, § 1.°, I), "com o intuito de" (art. 171, § 2.°, V), "para fim" (arts.
219 e 221), "conhecendo essa circunstância" (art. 235, § 1.°), "por motivo de"
(art.
208), e outros.
Os elementos normativos dizem respeito à antijuridicidade e são designados
por expressões como "indevidamente" (art. 151), "sem justa causa" (arts. 153,
154
e 244), "sem consentimento de quem de direito" (art. 164), "sem licença da
autoridade competente" (art. 166), "fraudulentamente" (art. 177), e mais
algumas.
São esses os elementos que entram na constituição dos tipos normais e
anormais, segundo a classificação de Asúa.
Ao mesmo tempo em que o legislador, definindo o delito, cria o tipo, exige
o interesse individual, em todo regime de liberdade, que a ação humana se lhe
ajuste.
É o que se denomina tipicidade. Conseqüentemente, não existe crime sem
tipicidade, isto é, sem que o fato se enquadre em um tipo, o que vale dizer que
não há crime
sem lei anterior que o defina (Nullum crimen sine lege).
Deve-se a Beling a criação da doutrina da tipicidade, que recebeu notável
impulso com Mayer, insistindo em que ela é elemento indiciário da
antijuridicidade.

53. A antijuridicidade. A ação é antijurídica ou ilícita quando é


contrária ao direito. A antijuridicidade exprime uma relação de oposição entre o
fato e o
direito. Ela se reduz a um juízo, a uma estimativa do comportamento humano, pois
o direito penal outra coisa não é que um complexo de normas que tutelam e
protegem
as exigências ético-sociais. O delito é, pois, a violação de uma dessas normas.
Tal conceito se completa por exclusões, isto é, pela consideração de
causas que excluem a antijuridicidade. Será antijurídico um fato definido na lei
penal,
sempre que não for protegido por causas justificativas, também estabeleci das
por ela, como se dá com o art. 23 do Código.
Assim, se um homem mata outro em legítima defesa, realiza tipicamente um
homicídio (art. 121), porém não há crime, por inexistir antijuridicidade, em
face
do art. 23, 11. Vê-se, pois, mais uma vez, que a tipicidade é elemento
indiciário da antijuridicidade.
Assunto de relevo é que esta pode ser considerada sob os aspectos formal e
material. A primeira é aquela a que nos estamos referindo: a oposição a uma
norma
legal. A segunda projeta-se fora do direito positivo, pois se constitui da
contrariedade do fato às condições vitais de coexistência social ou de vida
comunitária,
as quais, protegidas pela norma, se transformam em bens jurídicos, como se falou
no n. 49, sendo óbvio que a matéria, de que ora se trata, se encontra
estritamente
relacionada com o conceito material e formal do crime, objeto do citado
parágrafo.
Tais considerações levam à essência da antijuridicidade, mas acham-se em
terreno metajurídico. Outras concepções existem para dar o fundamento da
antijuridicidade
material, como a de Alexander Graf zu Dohna - a do meio justo para um fim justo:
"Esta falta, cuando Ia acción concreta, medida con Ia idea básica deI derecho
como
un orden de protección de nuestra cultura social, aparece como un medio justo
para un fin justo"6, concepção que não deixa de ser vaga. Apontam-se, ainda, as
normas
de cultura de Mayer (normas de religião, costumes, educação, intercâmbio moral,
cultural, econômico, social, técnico etc.), quando o ilícito é violação delas, o
que não impede, entretanto, de, uma vez ou outra, o legislador se pôr em
contradição com elas, de modo que nem sempre as leis cristalizam normas dessa
natureza.
Não há dúvida de que a antijuridicidade material, como a aceitamos, dá o
conteúdo da formal. Ela orienta o legislador no sentido de consagrar na norma
aqueles
imperativos e exigências da vida coletiva. Como essência, pois, da lei, ela
entra no terreno jurídico.
Todavia, se um falo atentar contra os interesses sociais, mas não for
contemplado pela norma, não poderá ser tido como antijurídico ou ilícito penal.
A preponderância
há de ser da antijuridicidade formal. Nem a outra conclusão leva o princípio da
reserva da lei, o nullum crimen, nulla poena sine lege.
A antijuridicidade representa um juízo de valor em relação ao fato lesivo
do bem jurídico. E sua apreciação é puramente objetiva, não dependendo de
condições
próprias do autor do fato: tanto é ilícito o homicídio cometido por um homem
normal como por um alienado. Em ambos os casos háantijuridicidade; a diferença é
que
no último não existe agente culpável e, conseqüentemente, punição. Mas a
consideração que se faz das condições psíquicas do autor do fato, para se aferir
a culpabilidade,
é estranha à ilicitude. Noutras palavras, sintetiza Aníbal Bruno: "A vontade com
que o sujeito atua, ineficaz para formar o núcleo da culpabilidade, é válida
para
constituir a ação ilícita".
Isso, sem embargo de se reconhecer, como já ficou dito, que o tipo, às
vezes, contém elementos de natureza subjetiva, que dão a medida do juízo
valorativo
acerca do fato. Os coeficientes subjetivos do tipo são conditio sine qua non do
juízo objetivo que se formula ao indagar-se da ilicitude do fato. Sem esses
elementos
subjetivos, este não pode ser objeto do juízo de valor: eles represent_, como
diz Bettiol, "illimite aI di là deI quale non c'e alcuna possibilità di
valutazione".
Assunto por demais controvertido é o das causas supralegais de
antijuridicidade - ligado, aliás, ao das fontes do direito e à antijuridicidade
formal e material
- provocando acalorados debates e congregando nomes do maior realce do mundo
jurídico. Entre nós, entusiasticamente é por sua admissão José Frederico
Marques; combate-as
com ardor Nélson Hungria.
A nós nos parece que a opinião afirmativa de que nem toda causa
excludente do injusto está contida na lei vai predominando.
Certo é que, em matéria do ilícito, deve ser o direito penal
impenetrável, a tudo presidindo e dominando os tipos legais que ele define.
Mas, no tocante à licitude, a vida prática pode apresentar casos que
verdadeiramente mostram que a lei não esgota o direito, e, então,
excepcionalmente, há
de se ir buscar em preceitos de outros ramos jurídicos, no costume e na
analogia, a extraordinária licitude da ação típica.

54. A culpabilidade. Além de típica e antijurídica, deve a ação ser


culpável. Trata-se do elemento subjetivo do delito. O resultado lesivo ao
direito, oriundo
da ação do sujeito ativo, há de ser-lhe atribuído a título de culpa, em sentido
amplo, isto é, dolo ou culpa.
Inadmissível é a responsabilidade objetiva, triunfante de há muito o
princípio nullum crimen sine culpa.
Mas cifra-se a culpabilidade exclusivamente no elemento subjetivo, ou,
além deste, outros existem a informá-la?
Duas teorias disputam, hoje, a primazia na formulação de seu conceito:
uma denominada psicológica e outra, normativa.
Para a primeira, a culpabilidade exaure-se no dolo ou na culpa. Culpável é
o indivíduo que consciente ou inadvertidamente praticou a ação vedada em lei,
agindo
com dolo no primeiro caso e culpa stricto sensu no segundo.
Consoante a teoria normativa, a culpabilidade é, sobretudo, um juízo de
reprovação contra o autor de um ato, porque a todos compete agir de acordo com a
norma,
segundo o dever jurídico, que tutela os interesses sociais. O procedimento
contrário é que, então, dá substância à culpabilidade.
Estamos que as duas opiniões se conciliam e mesmo se completam.
Primeiramente, diga-se que falar de culpabilidade, prescindindo do dolo e
da culpa, é olvidar de todo a realidade. O conteúdo da vontade culpável é muito
importante,
para ser relegado a segundo plano. Será culpável o louco que pratica um ato
contrário à lei? Incorre no juízo de reprovação social o ato do absolutamente
incapaz?
Por outro lado, a teoria normativa se impõe, por ser a que nos mostra que
aquela vontade é contrária à que o indivíduo devia ter, à que ele era obrigado.
A culpabilidade, como reprovabilidade que é, não prescinde do antagonismo
entre a vontade censurável do agente (elemento psicológico) e a vontade da norma
(elemento valorativo). Já que esta dita ao indivíduo um proceder de determinada
forma e reprova-o por assim não ter agido, ipso facto não pode negar a
existência
de uma vontade contrária à sua.
As duas teorias operam em setores diferentes; porém não se repudiam porque
a psicológica vincula estritamente o indivíduo ao ato, enquanto a normativa
refere-se
à ilicitude desse proceder. Destacam-se, pois, na culpabilidade, esses dois
elementos: o normativo, ligando a pessoa à ordem jurídica, e o psicológico,
vinculando-a
subjetivamente ao ato praticado.
É, pois, a culpabilidade psicológico-normativa.
Elemento seu é também a imputabilidade. Imputável diz-se o indivíduo
mentalmente são, ou, na linguagem do art. 26 do Código - quando define o
inimputável -
o capaz de entender o caráter criminoso de seu ato ou de determinar-se de acordo
com esse entendimento. Adquire ele tal capacidade com o desenvolvimento
biológico
e com a vida em sociedade.
Se a culpabilidade é juízo de reprovação social, é censurabilidade;
compõese de outro elemento: a exigibilidade de outra conduta. Culpável é a
pessoa que praticou
o fato, quando outra conduta lhe era exigida, e, ao revés, exclui-se a culpa
pela inexigibilidade de comportamento diverso do que o indivíduo teve.
O Tribunal do Reich aplicou esta causa excludente da culpabilidade no
conhecido caso do proprietário de um cavalo indócil, que, sob pena de despedir o
empregado,
mandou que cavalgasse em plena rua, do que resultou o atropelamento de um
transeunte. Negaram os juízes a culpabilidade do acusado, pois ele não podia ter
outra
conduta: inexigível era que perdesse o emprego, não executando a ordem dada.
Aplicação da referida causa ainda houve, no mesmo tribunal, no caso dos
mineiros que combinaram que, no dia do nascimento do filho de um deles, o pai
não iria
trabalhar e perceberia do mesmo modo seu jornal, pelo que impuseram à obstetra
da região, sob pena de não se valerem de seus serviços, que, caso algum
nascimento
ocorresse em domingo, declarasse terse dado em dia útil, o que a levou a várias
inscrições falsas no Registro. Reconheceu-se igualmente a inexigibilidade de
outra
conduta.
Advirta-se que não estamos em zona pacífica. Numerosos autores a aceitam
apenas como fundamento de causa prevista em lei - como ocorre com o estado de
necessidade
(art. 24) - não, porém, como supralegal.
Outros, entretanto, aceitam-na com amplitude: "Cabe admitir a
nãoexigibilidade de conduta diversa com o caráter de causa geral de exclusão da
culpabilidade,
em qualquer de suas formas, dolo ou culpa. Tal princípio está realmente
implícito no Código e pode aplicar-se por analogia a casos semelhantes aos
expressamente
previstos no sistema. Na realidade, são casos de verdadeiras lacunas da lei, que
a analogia vem cobrir pela aplicação de um princípio latente no sistema legal. É
a analogia in banam partem, que reconhecemos como tendo aplicação no Direito
Penal" .
A respeito, tivemos ocasião de escrever que, hoje, a doutrina dominante
admite a não-exigibilidade de outra conduta, mas em casos muito restritos e
determinados,
máxime na esfera dolosa. Além de ser necessária bastante atenção ao juízo de
avaliação dos bens jurídicos, fazendo-se com que o de maior valor prevaleça, é
mister
cautelas especiais em matéria de dolo. Com efeito, na culpa tem-se um resultado
reprovável, porém possível apenas, ao passo que, no dolo, o evento é certo, o
que
faz, portanto, que mais facilmente lá não se exija outra conduta. Nos exemplos
citados, mais aceitável é a absolvição do cavalariço do que a da obstetra.
Como quer que seja, a exigibilidade de conduta diversa é decorrência da
concepção normativa da culpabilidade.
Do exposto conclui-se que esta se compõe da imputabilidade, do ele mento
psicológico-normativo e da exigibilidade de outro comportamento.
Finalizando, diremos que, de acordo com as considerações tecidas em torno
do conceito dogmático do delito, o princípio nullum crimen sine lege adquire,
hoje,
maior vigor e precisão com a fórmula nullum crimen sine typo, sine culpa et nisi
contra jus.
Uma observação necessária: para os que adotam a teoria da ação finalista,
o estudo sobre o dolo fica deslocado do capítulo da culpabilidade para o da
ação.

55. A punibilidade. Crime é a ação típica, antijurídica e culpável. Não se


deverá apontar também a punibilidade como elemento seu?
Diversos autores opinam pela afirmativa, e já nos manifestamos, nesse
sentido, embora incidentemente14. Battaglini defende calorosamente a inclusão da
punibilidade
no conceito do delito; tem-na como elemento integrante .
Prevalece, entretanto, a opinião contrária. Para Sauer, o crime é
pressuposto da pena: a antijuridicidade tipificada e a culpabilidade "tienen que
satisfacer
a cada paso en su más amplia configuración aI espíritu de Ia punibilidad; deben
ser aI mismo tiempo presupuestos de Ia punibilidad". Também Mezger: "Delito en
sentido
amplio es Ia acción punible entendida como el conjunto de los presupuestos de Ia
pena".
A pena, então, não integra o delito, por ser este seu pressuposto.
Realmente, tê-Ia como constitutiva do crime é considerar como elemento da causa
o efeito.
Se é exato que ela é inseparável dele, no momento da cominação, não é
menos certo que pode faltar na aplicação. Com segurança escreve Hungria que um
fato pode
ser típico, antijurídico, culpado e ameaçado com pena (in thesi), isto é,
criminoso, e, no entanto, anormalmente deixar de acarretar a efetiva imposição
de pena,
como nas causas pessoais de exclusão de pena (eximentes, escusas absolutórias),
tal qual se dá no furto familiar (art. 181, I e lI) e no favorecimento pessoal
(art.
348, § 2.°), nas causas de extinção de punibilidade e nas extintivas
condicionais (livramento condicional e sursis), em que não há aplicação de pena,
mas o crime
permanece.
A pena vem a ser, então, um efeito do delito. É sua conseqüência ou
resultado.
56. Pressupostos do crime e condições objetivas de punibilidade. Comumente
falam os autores nos pressupostos do delito, dando-Ihes, aliás, conceitos
diversos.
Para outros, carecem de importância na análise do crime: "Invero, sulla base dia
una considerazione finalistica Ia categoria dei presupposti dei reato perde Ia
sua
ragione di esistenza percM essa risponde ad una esigenza di puro ordine
sistematico che non ha ache vedere con i valore tutelati".
Muitos, entretanto, costumam distinguir os pressupostos dos elementos
integrantes do crime. A distinção é cabível, tendo-se em vista o crime como
fato, pois,
no terreno normativo, eles integram o tipo.
Pressupostos são, então, os estudos, situações ou circunstâncias
anteriores à execução do fato criminoso e que lhe dão característico, tal como a
qualidade
de funcionário público, v. g., no crime de peculato (art. 312), que não passa de
apropriação indébita (art. 168) praticada por aquele no exercício da função.
Quanto às condições objetivas de punibilidade, não se trata também de
matéria pacífica: uns negam a utilidade da distinção, outros confundem-nas com
as condições
de procedibilidade e terceiros ainda as consideram diversamente.
Não vemos sempre nítida a distinção entre condições objetivas de
punibilidade e de procedibilidade. Para alguns, até, comoAsúa, "son auténticas
condiciones
objetivas y extrínsecas de penalidad los presupuestos procesales expresa o
tácitamente exigidos en Ias leyes punitivas, aI describir y penar una concreta
figura
de delito". E aponta como casos de condição de punibilidade a declaração da
falência e a sentença de divórcio, para o processo por adultério.
Se a punibilidade efetiva está sujeita a procedibilidade - nulla poena
sine judicio - parece-nos que realmente as duas circunstâncias se confundem. De
qualquer
maneira, se distinção houver, será nenhuma no terreno prático.
Em regra, tem-se como condição objetiva (estranha, portanto, à culpa do
agente) de punibilidade a circunstância extrínseca ao delito, da qual depende a
punição
deste. Além dos casos apontados, pode citar-se ainda a sentença anulatória do
casamento, no delito do art. 236.

57. Ilícito penal e ilícito civil. Várias teorias têm sido excogitadas para
se traçar uma linha divisória entre o ilícito penal e o civil; porém nenhuma
delas
satisfaz, nenhuma resistiu às críticas que lhe foram opostas.
Realmente, não há distinção ontológica entre o delito penal e o delito
civil. A ilicitude é uma só. Em regra devia importar sempre uma pena, porém esta
é um
mal, não só para o delinqüente e para sua família (que por ele sempre paga) como
para o próprio Estado, obrigado a gastos e dispêndios.
Conseqüentemente, toda vez que a ordem jurídica se contenta com sanção
diversa da penal, não há razão para não ser aplicada.
O problema é antes valorativo. A sanção penal destina-se, em regra, às
ofensas de maior vulto, que mais seriamente atentam contra os interesses
sociais. Cabe
ao legislador a valorização do bem jurídico, determinando quais os que devem
ficar sob a égide da sanção extrema que é a pena.
Diferença de essência não apresentam, assim, os dois ilícitos. A
distinção reside na gravidade da violação à ordem jurídica.
Diga-se o mesmo do ilícito administrativo.

II
DIVISÃO DOS CRIMES

SUMÁRIO: 58. Quanto à gravidade. 59. Quanto à forma de ação. 60. Outras
categorias.

58. Quanto à gravidade. Podem as infrações. penais, quanto à sua


gravidade, dividir-se em crimes, delitos e contravenções (sistema tricotômico) e
crimes ou
delitos e contravenções (sistema dicotômico ou bipartido).
Na França, Alemanha e Bélgica, adota-se o primeiro. O Código Penal francês
dispõe no art. 1.°: "A infração que as leis punem com penas de polícia é uma
contravenção.
A infração que as leis punem com penas correcionais é um delito. A infração que
as leis punem com uma pena aflitiva ou infamante é um crime". Este é julgado
pelos
tribunais criminais; os correcionais julgam os delitos; e os de polícia, as
contravenções.
Entre nós, a divisão dicotômica é tradicional. Consagrou-a o Código de 1830
e mantiveram-na os posteriores.
Não vemos a utilidade da divisão tripartida. Ontologicamente não se
distinguem crime e delito: a diferença reside na pena. É o que vemos também no
Código Penal
belga (art. 1.°), dizendo Goedseels: "Les infractions se divisent théoriquement,
d'apres le Code Pénal, en crimes, en délits et en contraventions suivant que les
lois ou les reglements les sanctionnent de peines criminelles, correctionelles
ou de police".
Não há dúvida de que os mesmos elementos que se deparam no crime se
apresentam igualmente no delito. Inexiste diferença de essência entre eles;
aliás, se,
como deixamos dito, não se distinguem ontologicamente o ilícito penal e o civil,
menos ainda se estremarão crime e delito.
Dá-se o mesmo com a contravenção. Várias têm sido as teorias formuladas.
Carrara e Carmignani quiseram ver diferença ontológica entre eles, dizendo que a
contravenção
não ofende ao direito natural comum e ao princípio ético universal, mas é punida
exclusivamente por mera utilidade social. Um atentaria contra a segurança
social;
outra somente lesaria a prosperidade.
Outros viram a diferença em que o crime ou delito é sempre a ofensa a um
direito subjetivo, ao passo que a contravenção será simples desobediência.
Doutrina existe, ao que parece, inspirada no Código de ZanardelIi,
sustentando que o crime produz sempre uma lesão, ao passo que a contravenção
importa somente
um perigo.
Para Rocco, a fim de se estabelecer o conceito de contravenção, deve
partir-se da administração estatal, declarando: "11 concetto delIe
contravvenzione si
ricava appunto daI concetto di amministrazione. Invero le contravvenzione sono
azioni e ommissione contrarie alI' interesse di amministrazione o interesse
amministrativo
delIo Stato...".
Inútil parece-nos prosseguir na enumeração de teorias, pois a verdade é
que nenhuma apresenta um critério seguro e constante, pelo qual se distinga o
delito
da contravenção. Assim, a distinção pelo dano concreto e o perigo não procede,
porque há crimes também de perigo; este não é privativo da contravenção.
Distingui-Ios
pela segurança e prosperidade é improcedente, pois a ofensa a esta é também
àquela. Quanto ao interesse administrativo do Estado, é de observar a existência
de crimes
contra a administração e o interesse estatal puramente administrativo.
Não existe diferença qualitativa entre crime e contravenção. Esta, em
ponto menor, pode apresentar todos os característicos do delito. A contravenção,
como
se costuma dizer, é um crime anão. Baldados serão os esforços para,
substancialmente, querer diferenciá-Ios. Se, como dissemos no número anterior, a
ilicitude é
uma só, vão será querer buscar distinção ontológica entre eles. A diferença é
quantitativa: a contravenção é um crime menor, é menos grave que o delito.
Mais profícuo será, por certo, encontrar critérios que os distingam, não
abstrata ou especulativamente, mas de modo concreto, diante do direito positivo.
Em nossa legislação é ele dado pela pena. O nosso primeiro Código Penal já
classificava os ilícitos penais em duas categorias: crimes e contravenções. Tal
distinção tem sua origem no direito romano, para o qual o crime seria a infração
ofensiva aos direitos naturais, ao passo que a contravenção constitui a ofensa
dos
direitos criados pela conveniência do bem-estar de todos. É o ensinamento de
Ulpiano.
A classificação dicotômica (crimes ou delitos e contravenções) foi
conservada em todas as legislações posteriores. A classificação tripartida
(crimes, delitos
e contravenções) é hoje puramente histórica, sem nenhum fundamento científico
razoável.

59. Quanto à forma de ação. O delito é ação, donde, conseqüentemente, a


forma desta pode oferecer um critério para sua classificação. Segundo ela, diz-
se instantâneo
o crime, quando se exaure com o resultado a que está subordinado. A
instantaneidade não significa rapidez ou brevidade física da ação, como sói
acontecer com o homicídio,
que pode apresentar diversas fases ou fatos, mas cuja consumação se realiza em
um instante.
Delito permanente é aquele cuja consumação se prolonga no tempo,
dependente da atividade, ação ou omissão, do sujeito ativo, como sucede no
cárcere privado.
Não se confunde com o delito instantâneo de efeitos permanentes, em que a
permanência do efeito não depende do prolongamento da ação do delinqüente:
homicídio, furto
etc.
Crime continuado, na forma do art. 71, é o constituído por duas ou mais
violações jurídicas da mesma espécie, praticadas por uma ou pelas mesmas
pessoas, sucessivamente
e sem ocorrência de punição em qualquer daquelas, as quais constituem um todo
unitário, em virtude da homogeneidade objetiva. Quando se trata de bens
jurídicos ou
objetividades jurídicas, eminentemente pessoais, com pluralidade de vítimas, não
se configura o crime continuado; assim, dois ou três homicídios, duas ou três
seduções
(art. 217) etc.
Crime progressivo se tem quando um tipo, abstratamente considerado, contém
outro, de modo que sua realização não se pode verificar, senão passando-se pela
realização do que ele contém.
Delito material é aquele em cujo tipo se descrevem a ação e o resultado.
Crimes formais ou de simples atividade são os que não exigem a produção de
um resultado estranho ou externo à própria ação do delinqüente. Dizem-se também
crimes de mera conduta ou sem resultado. Sua característica é que a lesão ao bem
jurídico (evento) se dá tão-só com a simples ação ou conduta, ao passo que os
outros
só o conseguem com a conseqüência ou efeito da ação. São crimes formais a
injúria, a difamação e a calúnia.
Crimes de dano são os que só se consumam com a efetiva lesão do bem
jurídico tutelado: homicídio, lesões corporais etc.
Crimes de perigo são os que se contentam com a probabilidade de dano. A
respeito, fala-se em perigo abstrato e perigo concreto, não estando os autores
concordes
em seu conceito. Já tivemos ocasião de escrever que há perigo abstrato quando a
lei o considera como resultante de certas ações, baseada em regras ditadas pela
experiência
ou pela lição dos fatos. Há, então, presunção de perigo. Será concreto, quando
necessitar de ser investigado e provado, caso por caso. Assim, enquanto no
perigo
abstrato a atuação perigosa é presumida, no concreto há de ser demonstrada no
fato.
Delitos comissivos são os que exigem atividade positiva produtora do
evento. Crimes omissivos são os que ofendem o bem jurídico, mediante inação,
constituindo,
esta, elemento integrante do tipo. Assim, o crime do art. 269 - "deixar o médico
de denunciar..." - o do art. 135 - "deixar de prestar assistência..." - trata-se
de crimes omissivos próprios. São impróprios ou comissivos-omissivos, quando a
omissão é meio ou forma de se alcançar um resultado posterior: o homicídio, em
que
a mãe deixa de aleitar o filho.
Crime unilateral é o que pode ser praticado por um único indivíduo;
bilateral, o que exige o encontro de duas pessoas, embora uma não seja culpável,
v. g.,
o adultério, a bigamia e o rapto consensual.
Ainda podem os crimes ser habituais, quando traduzem um modo ou estilo de
vida, como o curandeirismo (art. 284). Profissionais, quando a habitualidade se
caracteriza
pelo propósito de viver dos rendimentos do crime, e não, em sentido restrito,
como pretendem alguns, quando a pessoa faz da profissão meio de praticar crimes,
v.
g., o obstetra, a parteira, o serralheiro etc. Confunde-se criminoso
profissional com profissional criminoso.
Exaurido se diz um crime, quando, após a consumação, é levado a outras
conseqüências lesivas. Assim, no delito do art. 159, quando, após seqüestrar a
pessoa
com fim de resgate, o delinqüente consegue este. A consecução do resgate não é
elemento do delito; basta ser o fim do delinqüente.
Crime de ação múltipla é aquele em que o tipo contém várias modalidades de
conduta delituosa, as quais, praticadas pelo agente, constituem fases do mesmo
crime,
como ocorre com o art. 234.
60. Outras categorias. Dizem-se simples os crimes quando o tipo legal é
único, por exemplo, o homicídio. Neles, a lesão jurídica é una. Complexo, em
sentido
amplo, é não só o que encerra em si outro, v. g., a denunciação caluniosa (art.
339) - pois contém a calúnia (art. 138) - como o que, além de um delito,
comporta
outro elemento que não o é, tal qual ocorre com o constrangimento ilegal (art.
146), que, ademais da violência física ou ameaça (crimes), possui outro elemento
(a
ação ou omissão do ofendido), que, em si, não é delito. É a concepção de alguns
autores, como se poderá ver em Antolisei. Complexo, em sentido estrito, que é o
mais
vulgarmente empregado, é aquele cujo tipo é constituído pela fusão de dois ou
mais tipos, por . exemplo, o latrocínio (furto e morte).
Delito unissubsistente é o que se compõe de apenas um ato, como a injúria
oral, não admitindo tentativa; diz-se plurissubsistente quando os atos são
vários,
havendo, dessarte, fases que podem ser cindidas; é possível, então, a tentativa.
O crime é qualificado quando o legislador, ao tipo básico, ou fundamental,
agrega acidentalia que elevam ou majoram a pena, tal qual se dácom o homicídio
(art.
121 e § 2.°). Se as circunstâncias são minorativas, isto é, se atenuam a pena,
diz-se privilegiado, como ocorre ainda com o mesmo delito (art. 121 e § 1.°). Às
vezes,
tendo em vista as referidas circunstâncias, o legislador prefere definir novo
tipo, inteiramente à parte, como sucede com o roubo (art. 157), que é furto
(art. 155)
agravado pela violência, e com o infanticídio (art. 123), que é homicídio
atenuado pela circunstância de a morte do filho scr dada pela própria mãe,
durante o estado
puerperal. O crime privilegiado denomina-se também exceptum.
Crime especial é o que exige determinada qualidade no sujeito ativo, seja
de natureza social - funcionário público, militar etc., seja natural mãe, mulher
etc. É comum quando qualquer pessoa o pode cometer.
Delito coletivo ou plurissubjetivo, no dizer de Ranieri, é aquele para
"cuja noção abstrata é indispensável a conduta criminosa de várias pessoas, que
a lei
considera puníveis"5. Assim o delito do art. 288 - quadrilha ou bando.
Os crimes podem ainda ser principais e acessórios, conforme antecedem ou
pressupõem outros: o furto é principal relativamente à receptação, que é, então,
acessório.
Finalmente, são os crimes comuns e políticos; enquanto "os primeiros
atacam os bens ou interesses jurídicos do indivíduo, da família e da sociedade,
penalmente
protegidos pelo Estado, os crimes políticos agridem a própria segurança interna
ou externa do Estado ou são dirigidos contra a própria personalidade deste".
Outras categorias delituosas podem ser apontadas, do que, entretanto, nos
dispensamos, ou por não oferecerem interesse, ou por constituírem objeto de
estudo
à parte, como acontece com os dolosos e culposos, de ação pública e privada etc.

III
OS SUJEITOS E OS OBJETOS DO DELITO
SUMÁRIO: 61. O sujeito ativo. 62. O sujeito passivo. 63. O objeto jurídico. 64.
O objeto material.

61. O sujeito ativo. É quem pratica a figura típica descrita na lei. É o


homem, é a criatura humana, isolada ou associada, isto é, por autoria singular
ou co-autoria.
Só ele pode ser agente ou autor do crime.
Pondo de lado a questão, inadmissível, nos dias de hoje, se os irracionais
ou entes inanimados podem ser agentes de delitos, surge o assunto relativo às
pessoas
jurídicas. Não nos referimos às de direito público externo, situadas no campo do
direito internacional público (onde, aliás, não existem penas), mas às de
direito
privado.
A respeito destas há controvérsia doutrinária. Opinam uns que as
sociedades, associações, corporações etc. podem delinqüir, enquanto outros
repudiam a possibilidade.
Estes representam a corrente tradicional, que se mantém fiel ao princípio
do direito romano - societas delinquere non potest - correlativo a outro
concernente
à individualidade da pena - peccata suas teneant auctores. Argumentam que às
pessoas jurídicas faltam imputabilidade, consciência e vontade, por elas
deliberando
os seres humanos que as dirigem. Acrescentam que as penas de direito penal não
lhes são adequadas e que freqüentemente seriam iníquas por atingirem os
componentes
inocentes.
Contra essa opinião, opõe-se a corrente de realistas. Afirmam ser a pessoa
jurídica uma realidade. Tem ela vontade e é capaz de deliberação, devendo,
então,
reconhecer-se-Ihe capacidade criminal.
Conquanto ela seja uma realidade jurídica, não nos parece que com isso se
resolva o problema. Aquela capacidade não se confunde com a de direito e
obrigações
de que goza no direito privado.
Com efeito, é ela inconciliável com a culpabilidade, que, como vimos, é
psicológico-normativa, o que impede sua atribuição à pessoa jurídica.
Ao que se disse, acrescente-se, agora, a especialização e a
individualização da pena, como também a finalidade de reajustamento, tudo isso
impraticável com
a pessoa jurídica, pois requer a existência do elemento biossociológico.
Aliás, há dispositivos do Código Penal, onde o repúdio da responsabilidade
penal das pessoas jurídicas é expressamente declarado, como ocorre com o art.
177,
onde, tratando de sociedade por ações, a lei sempre se refere ao diretor,
gerente ou fiscal.
Cumpre, por fim, lembrar que a sociedade civil que se dedicar a fins
ilícitos ou imorais pode ser dissolvida, nos termos do Código de Processo Civil
(art.
670).
Enfim, parecem-nos exatos os dizeres de Maggiore: "O conceito de culpa é
estritamente pessoal: e a única, verdadeira e não-fictícia personalidade é
aquela
do homem, que tem um corpo e uma alma própria e indivisível. Onde há um corpo e
uma alma, há uma vontade, uma liberdade, uma responsabilidade. Todo o resto não
é
senão metáfora e ficção".
62. O sujeito passivo. É o titular do bem jurídico lesado ou ameaçado. É o
homem. Protege-o a lei, mesmo antes de seu nascimento, iniciada que seja apenas
a gestação, punindo o crime de abortamento. Não obstante a inexistência, aí, da
criatura humana, a lei se antecipa, protegendo a vida no sentido biológico.
Bastante
expressivo é haver o Código classificado tal crime como contra a vida e, no
título dos delitos, contra a pessoa.
A pessoa jurídica também pode ser sujeito passivo de crimes, v. g., os
patrimoniais. Aliás, o Estado é sempre sujeito passivo, em sentido genérico,
atingido
pelo crime, que perturba as condições de harmonia e estabilidade sociais,
necessárias à consecução do bem comum, que é a sua finalidade. Será sujeito
passivo direto
de crimes que atentam contra sua entidade política ou administrativa. Ofendido
(expressão sinônima de sujeito passivo) ainda é nos crimes contra quem o
personifica
e representa. Por fim, também é ofendido, juntamente com outra pessoa, cujo bem
é lesado no âmbito de interesses que lhe são próprios, como ocorre com a moeda
falsa
e a prevaricação.
O homem, depois de morto, não é sujeito passivo de crime. Os delitos
integrantes do Capítulo 11 do Título V têm por objeto jurídico um bem-interesse
dos vivos:
o sentimento de respeito aos mortos. Quanto à calúnia (art. 138, § 2.°) , atinge
sua família e a sociedade.
Concomitantemente, estamos vendo que podem ser sujeitos passivos
coletividades destituídas de personalidade jurídica, como a sociedade, o
público, a família
etc. A tais delitos os juristas germânicos denominam vagos.
Distinguem-se o sujeito passivo de um crime e o prejudicado por ele. Este
é qualquer pessoa a quem o delito haja causado um dano patrimonial ou não, tendo
por conseqüência direito a ressarcimento e ação civil, ao passo que aquele, como
se falou, é o titular do interesse tutelado pela norma penal.

63. O objeto jurídico. Não obstante a variedade de opiniões e doutrinas que


procuram conceituar o objeto jurídico de um crime, estamos que é ele o bem-
interesse
protegido pela norma penal. Bem é o que satisfaz a uma necessidade do homem,
seja de natureza material ou imaterial: vida, honra etc. Interesse é a relação
psicológica
em torno desse bem, é sua estimativa, sua valorização.
Pode, evidentemente, o bem-interesse ser social, quando satisfaz
diretamente a imperativos sociais.
Em regra, classificam os Códigos os delitos, tendo em atenção a
objetividade jurídica que a norma protege. Por meio dela, constituem os seus
títulos, que se
dividem em capítulos. Aqueles se referem ao objeto jurídico genérico, e estes,
ao específico ou particularizado. Assim, no Título I do Código, deparamo-nos com
os
Crimes contra a pessoa, onde se protege a criatura humana como unidade moral e
material, punindo-se os delitos que mais intimamente a ofendem. É esta
preservação
que se tem em vista. No Capítulo I especifica-se um bem-interesse: é a vida,
como pressuposto da personalidade. No Capítulo 11, é a incolumidade corpórea que
surge
como condição para atuação e produtividade da pessoa. No Capítulo V, o objeto
jurídico específico já possui outra natureza: é moral. Resguarda-se a honra do
indivíduo,
na defesa de sua dignidade e mesmo como norma de cautela para a tranqüilidade
social. E, assim, sucessivamente.
A consideração do objeto jurídico é vital no entendimento da norma. É o
ponto de partida. Busca-o a interpretação teleológica.

64. O objeto material. Quase sempre a objetividade jurídica de um crime se


corporifica no indivíduo ou numa coisa. São eles que suportam a ação do
delinqüente.
Objeto material do delito é, pois, o homem ou a coisa sobre que incide a conduta
do sujeito ativo. Mais adequado seria, talvez, chamá-Io objeto de ação.
O objeto material entra na constituição do tipo. Assim, no homicídio é
alguém; no furto é a coisa; no arremesso de projétil (art. 264) é o veículo etc.
Pode confundir-se com o sujeito passivo, tal qual se dá no homicídio, em
que o homem é também objeto material. Difere, entretanto, do instrumento do
delito,
que é aquilo com que a ação é praticada.
Embora controvertida a questão, somos dos que opinam que nem todo crime
tem objeto material. Pode ele existir sem este. Dá-se isto nos delitos de mera
atividade
(n. 59). Assim, no crime do "ato obsceno" (art. 233), que se satisfaz com o
comportamento impudico do sujeito ativo e com a possibilidade de ser visto.
Há casos em que o objeto material é impróprio, dando lugar a que haja o
chamado crime impossível (art. 17), quando, v. g., uma pessoa atira contra seu
desafeto,
deitado em uma cama, não sabendo que momentos antes ele falecera. Há, no caso,
impropriedade absoluta de objeto. A matéria será abordada no n. 78.

IV
RELAÇÃO DE CAUSALIDADE

SUMÁRIO: 65. A ação e a omissão causais. 66. O resultado. 67. As teorias. 68. A
teoria do Código. O nexo causal. 69. Superveniência causal.

65. A ação e a omissão causais. Após o que dissemos, no n. 51, acerca da


ação, cremos desnecessárias outras considerações, desde que não tratem de seu
caráter
de causa. Interessa, contudo, acrescentar que ela há de ser acompanhada do
contingente subjetivo. Existente a ação, mas ausente a vontade, como nos estados
de inconsciência,
não há falar em ação. Igualmente, inexistirá esta, na coação absoluta, quando se
pode dizer que ela é do coator, sendo o coagido mero instrumento.
Diante do art. 13 do Código, a ação é causa quando sem ela o resultado não
teria ocorrido, ou, em outras palavras, entre a ação e o resultado deve existir
uma relação de causa e efeito.
Acerca da omissão, já dissemos também no mesmo parágrafo. Ela é tão real
como a ação, pois é expressão da vontade do omitente, porque é reconhecível e
verificável
no tempo e no espaço, e porque não é um não-ser, porém modo de se r do autor. E,
se tem um conteúdo real, não é um nada, mas alguma coisa suscetível de
determinação
e percepção. Como tal, pode dar lugar a um processo causal.
Mas quando a omissão deve ser considerada causa no terreno jurídico? A
resposta é que só é causal a omissão quando há o dever de impedir o evento, o
dever
de agir.
O § 2.° do art. 13 cuida da relevância da omissão, estabelecendo as três
hipóteses, isto é, quando o agente: a) tenha por lei obrigação de cuidado,
proteção
ou vigilância; b) de outra forma assumiu a responsabilidade de impedir o
resultado; e c) com seu comportamento anterior criou o risco da ocorrência do
resultado.

O dever de impedir o resultado, de agir, pode advir de uma norma jurídica,


de submissão particular do agente a esse dever, ou de comportamento seu que lhe
imponha obstar aquele.
O dever proveniente da norma de direito (letra a) pode provir da lei, de
mandamento equivalente à lei ou do direito costumeiro. Aí se compreendem, por
exemplo,
os deveres de proteção e assistência de um para outro cônjuge, dos pais para com
os filhos, o que Schõnke classifica como deveres resultantes do vínculo natural
entre duas pessoas.
A aceitação particular do dever pelo agente (letra b) pode resultar de
relação contratual, função, profissão ou situação análoga, como a do banhista
profissional,
encarregado de velar pela segurança dos que se banham no mar, a do guia de
alpinistas etc.
Quanto ao dever oriundo de comportamento anterior (letra c), o princípio
dominante é: quem criou o perigo de um resultado tem a obrigação de impedir que
ele
se realize, como acontece, v. g., no fato de alguém inscientemente provocar um
incêndio; corre-lhe o dever de impedir que se propague.
São as situações em que a omissão é causal.

66. O resultado. Nos termos da lei, deve a ação ou a omissão ser causa
do evento. Que vem a ser este?
Sob o ponto de vista naturalista ou material, resultado é a modificação
que se opera no mundo exterior em conseqüência da ação. Sob o aspecto jurídico
ou
formal é quando ele é considerado pela lei, fazendo parte integrante do tipo,
como doutrina Beling: "... o bien de Ia concurrencia de un evento o estado
temporalmente
posterior a Ia acción, como resultado (ya físico, p. ej., Ia muerte de un
hombre, o espiritual, como, p. ej., tomar conocimiento, escandalizar)".
Assim, evento ou resultado não é necessariamente sinônimo de efeito, não é
toda e qualquer transformação do mundo exterior, já que somente quando ela é
considerada
pela lei é que passa a ser resultado no sentido jurídico, por compor o tipo.
Há tipos que não se integram no evento. São os delitos sem resultado ou de
simples atividade (n. 59). Não se nega que todo crime tem um evento que é a
lesão
do bem jurídico. O que se tem em mente é salientar que ação é uma coisa e
resultado é outra. O que se quer dizer é que, se realmente todo delito ataca um
bem jurídico,
há os que já o fazem tão-só com a simples ação ou conduta, ao passo que outros
só o conseguem com o resultado ou conseqüência da ação.
Os arts. 13, l.a parte, e 18 parecem negar a existência de crimes sem
evento. Deu-se aqui o que se passou com o legislador italiano, como acentua
Grispigni5,
a respeito dos arts. 40 e 43 do Código de sua pátria, que teve sob as vistas
somente o tipo comum e freqüente de crimes de evento, deixando de lado os casos
excepcionais
dos delitos de mera ação. Mas o poder do legislador tem limites e não pode
destruir a realidade. Por outro lado, é uma verdade inconcussa que os
dispositivos de
uma lei não podem ser considerados isoladamente, mas como integrantes de um
sistema, componentes de um todo orgânico, confrontados com outros, a fim de
evitar-se
choque ou colisão entre eles; exemplo eloqüente temos com o art. 18 de nosso
estatuto que só define o dolo e a culpa, não impedindo que na parte especial
surjam
crimes preterdolosos. Assim, qualquer que seja o entendimento que se dê aos
arts. 13, l.a parte, e 18, não há negar que o legislador capitulou delitos de
mera conduta,
como a violação de domicílio, o ato obsceno e outros.
Não há dúvida, entretanto, de que o art. 13 só se refere aos crimes de
resultado, isto é, àqueles em que o tipo não se limita à descrição de uma
conduta, sem
referência ao resultado da ação.

67. As teorias. Havendo falado sobre a ação em sentido amplo (compreendendo


a omissão) e o resultado, incumbe agora ver quando aquela é elevada à categoria
de causa.
É o objetivo de diversas teorias. Não é pequeno seu número, de modo que
nos limitaremos à menção de algumas apenas.
A teoria da causalidade adequada é a que, ao lado da esposada por nosso
estatuto, goza de maior prestígio: causa é a condição mais adequada a produzir o
evento.
Dentre os diversos fatores que condicionam um resultado, estrema-se aquele que,
consoante o que geralmente sucede, a experiência e a apreciação humana, é mais
apto
a produzi-lo. É, então, a causa. Von Kries, Von Bar e Max Rumelin são os nomes
de maior projeção.
Tem-se objetado a essa teoria que ela ultrapassa o terreno da causalidade,
penetrando o da responsabilidade penal, por utilizar o critério da
previsibilidade.
Por outro lado, como escreve Massimo Punzo, não se compreende realmente por que
não se deve ter como causado pela ação humana um resultado, que, de fato, se
verificou,
somente porque aquela ação não é geralmente idônea a produzi-lo. O havê-Io
produzido é mais que suficiente para dizer que a conduta é causal.
Outras opiniões constituem a teoria que se denominada eficiência: causa é
a condição mais eficaz na produção do evento (Stoppato, Binding, Oertmann). Dela
diz ainda Punzo que o mais grave defeito que apresenta está na impossibilidade
de distinguir a causa eficiente dos outros antecedentes de que se compõe o
processo
causal.
A teoria da relevância jurídica, criada por Müller e desenvolvida por
Mezger, encontra em Beling sua forma definitiva: a corrente causal não é o
simples atuar
do agente, mas deve ajustar-se às figuras penais. Não basta ser condirio sine
qua non; é mister produzir o tipo descrito em lei. Tem-se dito, com razão, que a
teoria
vai além do terreno da pura causalidade: subordinada à existência de uma norma
legal.
A teoria da causa humana de Antolisei sofre alterações, para finalmente
assentar que "a exclusão da relação jurídica de causalidade se apresenta quando
no
processo causal há intervenção de um acontecimento excepcional que, concorrendo
com a ação do homem, teve influência decisiva na realização do resultado. Tem
influência
decisiva o fato sem o qual se teria verificado resultado diferente, sob o ponto
de vista jurídico". O conceito de influência decisiva é vago e incerto, não
proporcionando
um critério idôneo para as questões que surgem a respeito.
Essa teoria, aliás, é variante da causalidade adequada, o mesmo devendo
dizer-se da de Grispigni - da condição perigosa - declarando que uma conduta,
sob o
ponto de vista normativo, é causa quando tiver sido condição do resultado, e,
considerada relativamente ao momento em que se desenvolveu, constituir um perigo
em
relação à ocorrência do resultad09. Entre as críticas que se lhe fazem,
sobreleva a da noção imprecisa do perigo, deixado, no caso concreto, à
apreciação do juiz.

68. A teoria do Código. O nexo causal. Dentre as teorias que maior


prestígio desfrutam, salienta-se a abraçada por nosso estatuto, no art. 13: a da
equivalência
dos antecedentes, ou da conditio sine qua nono Originária de Von Buri, no
terreno jurídico, e tendo tido em Kostlin e Berner seus antecessores, é, no
campo filosófico,
oriunda de Stuart Min.
Consoante ela, tudo quanto concorre para o resultado é causa. Não se
distingue entre causa e condição, causa e ocasião, causa e concausa. Todas as
forças concorrentes
para o evento, no caso concreto, apreciadas, quer isolada, quer conjuntamente,
equivalem-se na causalidade. Nem uma só delas pode ser abstraída, pois, de certo
modo,
se teria de concluir que o resultado, na sua fenomenalidade concreta, não teria
ocorrido. Formam uma unidade infragmentável. Relacionadas ao evento, tal como
este
ocorreu, foram todas igualmente necessárias, ainda que qualquer uma, sem o
auxílio das outras, não tivesse sido suficiente. A ação ou a omissão, como cada
uma das
outras causas concorrentes, é condição sine qua non do resultado. O nexo causal
entre a ação (em sentido amplo) e o evento não é interrompido pela interferência
cooperante de outras causas. Assim, no homicídio, o nexo causal entre a conduta
do delinqüente e o resultado, morte, não deixa de subsistir, ainda quando para
tal
resultado haja contribuído, por exemplo, a particular condição fisiológica da
vítima ou a falta de tratamento adequado.
Em conseqüência desse princípio, as concausas não mais têm o efeito de que
gozavam na lei anterior, onde as condições personalíssimas do ofendido e a não-
observância
do regime médico reclamado pelo estado da vítima (Consolidação das Leis Penais,
art. 295, §§ 1.° e 2.°) desclassificavam o crime de morte. Diante de nosso
Código,
o homicídio não deixa de ser tal, ainda que para o exício concorram outras
causas, como, v. g., se o golpe é dado em um hemofílico ou em um diabético, ou
se o ofendido
não tiver seguido, ainda que voluntariamente, as observações médicas impostas
por seu estado. Todas são causas concorrentes para o resultado e não se há de
excluir
a devida ao agente.
Claro é que a teoria da equivalência dos antecedentes se situa
exclusivamente no terreno do elemento físico ou material do delito, e por isso
mesmo, por si
só, não pode satisfazer à punibilidade. É mister a consideração da causalidade
subjetiva; é necessária a presença da culpa (em sentido amplo), caso contrário
haveria
o que se denomina regressus ad infinitum: seriam responsáveis pelo resultado
todos quantos houvessem física ou materialmente concorrido para o evento; no
homicídio,
v. g., seriam responsabilizados também o comerciante que vendeu a arma, o
industrial que a fabricou, o mineiro que extraiu o minério etc.
Enaltece Hungria essa teoria, declarando-a preferível a todas as outras
que versam a causalidade material, pois serve a uma solução simples e prática do
problema,
apontando-nos sem esforço a ação causal, pelo processo de eliminação hipotética
de Tryren: à pergunta de que quando a ação é causa, responde-se: quando
eliminada
in mente, o resultado in concreto não teria ocorrido.
Essa teoria que, a nosso ver, sobreleva às outras, não tem ficado isenta
de críticas, apontando-se quase sempre como objeção mais séria a já mencionada
regressão
infinita: "In secondo luogo, giova rammentare che, Ia teoria in esame, non solo
considera condizioni e quindi causa dell' evento le vere e proprie condizioni,
ma
altesi le condizioni delle condizioni e cosi via all' infinito".
Como dissemos, não é de recear a imputação nesses moldes, dada a limitação
subjetiva13 e outros corretivos, como o constituído pelo § 1.° do art. 13. Além
disso, tão-só a causalidade não acarreta conseqüências jurídicopenais para
alguém, já que a conduta há de ser típica, antijurídica e culpável.
O art. 13 trata da ação atribuível ao agente e que é causa do resultado:
ao mesmo tempo, nos diz que a causa, absolutamente independente do sujeito
ativo,
a ele não pode ser imputada. Assim, no exemplo conhecido de quem fere
mortalmente uma pessoa que antes havia sido envenenada: não pode ser
responsabilizado por homicídio,
mas apenas por tentativa de morte ou lesões corporais. Ainda: se A e B, com
armas de calibre diferente, atiram contra C (afastada a hipótese de co-autoria)
e ficar
provado que o projétil de B é que, atingindo o coração da vítima, a matou, ao
passo que o de A a alcançou levemente em um braço, somente aquele responde por
homicídio,
restando ao outro a imputação por lesão corporal leve ou tentativa de morte.
Portanto a causa preexistente ou concomitante que, por si só, produz o
resultado, sendo
absolutamente independente, não pode ser atribuída ao agente, por ilação do
próprio art. 13.

69. Superveniência causal. Declara o § 1.° do art. 13 que a causa


superveniente exclui a imputação, quando, por si só, produziu o evento. Trata-se
de outra
restrição à doutrina da condi tio sine qua non.
Tem-se em vista agora a causa relativamente independente, já que, como
falamos, a de independência absoluta está compreendida no artigo. Ninguém, por
exemplo,
pensaria em imputar a morte de um homem à pessoa que o feriu, porque, ao se
dirigir para casa, foi fulminado por um raio. A causa superveniente na hipótese
é inteiramente
independente.
A atual reforma (Parte Geral) incluiu o advérbio modal "relativamente"
visando dissipar as dúvidas surgidas com a redação dada ao parágrafo único do
art. 11
do Código. O exemplo clássico é o da pessoa que, ferida, se recolhe a um
hospital, vindo a morrer, vítima do incêndio que aí lavrou. A causa é
relativamente independente:
se não tivesse sido ferida, não se acharia no nosocômio. Todavia não há negar
que surgiu um outro processo causal que, isoladamente, isto é, sem o concurso de
qualquer
outra causa, produz o evento. Pouco importa que o ferido pudesse vir a morrer da
lesão. Como escreve Battaglini: "E nella sua forma concreta, hic et nunc, che
bisogna
considerare l'evento. Ora, quella morte avvenuta prima non e causalmente
derivata dall'azione deI colpevole; e percià Ia serie causale da lui posta, e
tuttora in
sviluppo, subisce arresto per l' inframmettersi deU' evento sopravvenuto;
quest'ultimo ne apre un' altra, nuova e autonoma, per cui si ha Ia c. d.
'interruzione'
del nesso causale"15. É, pois, outra série nova e autônoma que se apresenta, e
que não se achava na linha de prossecução ou desdobramento físico da ação
anterior.
Montalbano prefere dizer que não se encontrava na linha de desdobramento
anátomo-patológico do resultado da ação precedente.
Fez bem o Código, ao contrário da lei anterior, em dispensar um
dispositivo para a causalidade. Todavia, como se escreveu e ora se acentua, no
direito, a causalidade
não se limita ao terreno natural: em todos os momentos há de se ter presente a
subjetiva. Como escreve Bruera: "En Ia causalidad natural hay una causa que
produce
un efecto; en Ia causalidad jurídica hay una acción deI hombre que pretende
producir un resultado y algunas veces 10 consigue".
v

DO CRIME CONSUMADO E DA TENTATIVA

SUMÁRIO: 70. A consumação. 71. O iter criminis. 72. A cogitação. 73. Atos
preparatórios e atos de execução. 74. Elementos da tentativa. 75. A pena da
tentativa.
76. Inadmissibilidade da tentativa. 77. Desistência voluntária, arrependimento
eficaz e arrependimento posterior. 78. Crime impossível. Crime de flagrante
preparado.
Crime provocado.

70. A consumação. Diz-nos o Código, no art. 14, I, que o crime é consumado


quando reúne todos os elementos de sua definição legal. Noutras palavras,
consuma-se
o delito quando há realização integral do tipo. A integralidade deste não
importa a exaustão (n. 59), pois ele é perfeito, embora não tenha sido levado a
suas últimas
conseqüências. Crime consumado éuma coisa e exaurido é outra, como ficou dito
naquele parágrafo. Assim, na corrupção passiva (art. 317), o delito consuma-se
quando
o agente aceita promessa de vantagem para praticar um ato, e exaure-se quando
realiza este.
O momento da consumação varia conforme a natureza do delito. Nos crimes
materiais em que há ação e resultado, o instante consumativo é o do evento. Nos
delitos
de mera atividade a realização desta marca a consumação.
No crime permanente, dá-se do mesmo modo a consumação, quando ele se
integra de todos os seus elementos, embora aquela se protraia.
Quanto aos delitos subordinados à condição objetiva de punibilidade (n.
56), a consumação independe da efetivação daquela.

71. O "iter criminis". No inc. 11 do mesmo artigo, a lei define o delito


tentado, para dizer que tal existe quando, iniciada a execução, ele não se
consuma,
por circunstâncias alheias à vontade do agente.
O fato delituoso apresenta esquematicamente uma trajetória, um caminho - o
iter criminis - que se compõe das seguintes etapas: cogitação, atos
preparatórios,
atos de execução e consumação. Dá-se a tentativa quando o agente não chega à
consumação ou meta optada. É, pois, no plano físico ou material que ela se
distingue
do crime consumado. Neste, o que se passa no plano externo corresponde ao
elemento subjetivo do delinqüente; naquela, o sujeito ativo ficou aquém do
elemento volitivo,
não o realizou no mundo exterior.

72. A cogitação. O que se passa no foro íntimo de uma pessoa não é dos
domínios do direito penal. Persiste ainda hoje a máxima de Ulpiano cogitationis
nemo
poenam patitur. Ou como falam os italianos - pensiero non paga gabella (o
pensamento não paga imposto ou direito). Em intenção todos podem cometer crimes.
Mesmo quando exteriorizada, se ela não passa de certo ponto, se não chega
ao grau de tentativa, não é punível, como acontece com a determinação, a
instigação
ou auxílio, isentos de pena pelo art. 31.
É essa a regra. Todavia casos há em que se observa já constituir delito o
desígnio ou propósito de vir a cometê-lo, como sucede com a conspiração, a
incitação
ao crime (art. 286), o bando ou quadrilha (art. 288), e ainda outros, em que há
o propósito delituoso, ou a intenção revelada de vir a praticá10. A impaciência
do
legislador, então, antecipa-se e não espera que ele se verifique, punindo, em
última análise, a intenção, o projeto delituoso.
Fora desses e outros casos, em que evidentemente já há lesão à ordem
jurídica, a intenção não está sujeita a pena.

73. Atos preparatórios e atos de execução. Da fase subjetiva, passa o


sujeito ativo ao plano físico ou do mundo externo. De ordinário, são atos
preparatórios
que, primeiro, pratica. Se homicídio é o que pretende cometer, toma da arma,
dirige-se ao local etc. Se furto, mune-se dos petrechos necessários, e assim por
diante.
Em nosso Código, não são puníveis os atos preparatórios, exceto quando o
legislador, com eles, já tipifica um crime, como sucede com as figuras há pouco
citadas,
e ainda com outras, como a do art. 291 - "petrechos para falsificação de moeda".
Não os possuindo, afastou-se nosso estatuto de um de seus modelos: o
Código de Rocco.
Não são poucos os que defendem a punibilidade deles. O Positivismo
Naturalista, apegado à orientação sintomática do crime e ao fim apontado ao
direito penal,
prega a necessidade de sanção ao ato preparatório.
Para nossa lei, só há tentativa quando há ato de execução. Difere este
daquele; porém é árdua a tarefa de distingui-los. Tem a doutrina buscado um
critério
apriorístico e constante que possa estremá-los; porém vãos têm sido os esforços
das várias teorias excogitadas.

A opinião que hoje predomina funda-se em dois critérios: um, o do ataque


ao bem jurídico tutelado; o outro, o do início da realização do tipo; um é de
natureza
material, e o outro, formal. Para Sauer: "EI principio de ejecución se puede
determinar según esto como Ia transacción de un peligro hasta ahora sólo
general, indeterminado,
aI estadio de Ia peligrosidad concreta de un determinado bien de protección"l.
Já para Welzel: "La tentativa comienza en aquella actividad con Ia cual el autor
inicía
inmediatamente, de acuerdo con su plan de delito, Ia concreción deI tipo penal".
O critério material funda-se no perigo corrido pelo bem jurídico tutelado.
Se o ato não representar esse perigo, não será de execução.
O critério formal sustenta que o ato executivo deve dirigir-se à
realização do tipo, deve ser o início de sua realização. Noutras palavras, é
mister ser examinado
em relação ao tipo legal, tomando-se em consideração, naturalmente, o fim que o
sujeito ativo tem em vista. Conseqüentemente, conforme o tipo, o mesmo ato pode
ou
não ser de execução.
Tal critério tem obtido maior preferência que o anterior; todavia parece-
nos que ele o compreende, pois difícil é imaginar ataque ao bem jurídico
tutelado
pela norma (e, portanto, punível), sem que se dê nas condições impostas pelo
tipo. Se na tentativa a tipicidade não se completou, parece-nos inegável que ela
é uma
fase sua, um trecho ou fração. Ato de execução é, pois, início da realização do
tipo.
Exigindo a lei o ato de execução, abraçou a teoria objetiva. Não sufragou,
como já se disse, a doutrina subjetiva, para a qual basta a revelação da
intenção
delituosa, ainda que em atos preparatórios.
Apesar da ancianidade daquela, estamos que melhor corresponde ao ideal da
justiça e aos interesses sociais. Refutando a teoria subjetiva, Hungria formula
o
seguinte exemplo: Tício recebe uma bofetada de Caio, corre a um armeiro, adquire
um revólver, carrega-o com seis balas e volta à procura do agressor que,
entretanto,
não mais ali se encontra. Vai, então, postar-se nas imediações da casa deste, à
espera que ele retome. Sucede, entretanto, que Caio, desconfiado, toma rumo
diverso.
Conclui o eminente ministro que os atos preparatórios revelam inequivocamente a
intenção de matar, e não obstante não se pode falar em tentativa: não teria
Tício,
ao se aproximar de Caio, desistido do crime? Não teria, no derradeiro momento,
triunfado a força inibitória que anula a spinta criminosa?
Realmente, na hipótese, não há falar em tentativa de homicídio. Em que
pese à revelação da voluntas sceleris, não houve princípio de realização do tipo
previsto
em lei.

74. Elementos da tentativa. Exposto o que já foi, podemos declinar os


elementos integrantes do crime tentado: a ação; interrupção da execução por
circunstâncias
alheias ao agente; o elemento subjetivo. É o que se infere do inc. II do art.
14.
Como já se falou, para haver tentativa é necessário início de execução - o
commencement d'exécution dos franceses - ou seja, ação traduzida em atos
executórios,
parecendo-nos dispensável voltar a este ponto.
Iniciada a execução, deve ela interromper-se em qualquer momento, antes da
consumação. Essa interrupção não se pode vincular à vontade do agente; ao
contrário,
deve ser-lhe estranha, isto é, provir de fatores que lhe são alheios.
Tal seja o momento em que se dê a interrupção da execução, a tentativa se
dirá perfeita ou acabada e imperfeita ou inacabada. A perfeita é também chamada
crime
falho.
Verifica-se, esta, quando o agente fez tudo quanto lhe era possível, para
alcançar o resultado, v. g., se ministra dose mortal de veneno a seu inimigo,
porém
este, por qualquer circunstância, se salva.
A tentativa é imperfeita quando a ação não chega a exaurir-se, quando
o sujeito ativo não esgotou em atos de execução sua intenção delituosa. A
distinção entre as duas espécies de tentativa tem toda a oportunidade, quando se
trata
da desistência voluntária e do arrependimento eficaz (n. 77).
O terceiro elemento da tentativa é subjetivo. É o dolo do agente. É o
mesmo do crime consumado, por isso já dissemos que o crime tentado se distingue
daquele
só no plano físico (n. 71). A representação subjetiva e a vontade, na tentativa,
não discrepam das existentes no delito consumado. Quem mata age com o mesmo dolo
daquele que tentou matar, simplesmente porque a tentativa de homicídio é apenas
o homicídio mutilado, sem a consumação. Conseqüentemente, vão seria buscar um
elemento
subjetivo diverso no crime tentado. Não existe dolo de tentativa.

75. A pena da tentativa. É a do crime consumado, diminuída de um a dois


terços. Sendo ela objetivamente menos que o crime consumado, natural que sua
pena seja
menor que a deste. A lei atende à gravidade objetiva do fato. Em um há lesão
efetiva do bem jurídico, no outro houve perigo, houve ameaça somente.
Ainda aqui, foi nosso Código objetivista, não comungando da opinião dos
subjetivistas, que manda atender-se antes à intenção delituosa do agente, não
devendo
a pena ser outra que não a do crime consumado.
Em regra, as leis não podem, no tratamento penal, olvidar o dano objetivo
do crime. Exemplo frisante disso temos no infanticídio e no aborto provocado
pela
própria gestante (arts. 123 e 124), em que a pena do primeiro, em nosso Código,
é o dobro da do segundo, quando, entretanto, o agente daquele - a mulher em
estado
puerperal - será, em princípio, menos perigoso que o deste, que friamente
extingue uma vida em formação. Todavia naquele há uma criatura humana e neste,
apenas uma
esperança de vida. Lá é muito maior a lesão jurídica.
Além disso, é óbvio que razões de política criminal aconselham a pena
minorada para a tentativa. É o que, em regra, dizem os Códigos, excetuados uns
poucos,
como o francês (art. 2.°).
O dispositivo, ao cominar a pena, acrescenta: "salvo disposição em
contrário". Refere-se a casos em que excepcionalmente a tentativa é punida com a
mesma pena,
tal qual ocorre com a Lei n. 4.737, de 15 de julho de 1965 (Cód. Eleitoral),
apenando de modo igual quem "votar ou tentar votar, mais de uma vez, ou em lugar
de
outrem" (art. 309).

76. lnadmissibilidade da tentativa. Nem todo crime admite tentativa. Não a


comportam os delitos constituídos por único ato (unico actu perficiuntur), como
a
injúria oral. Nos crimes omissivos próprios: até o momento em que o agente pode
praticar o ato, a ausência deste não concretiza a tentativa; se não mais o pode,
o delito se consuma. Possível é, entretanto, nos delitos comissivos-omissivos,
quando, v. g., a mãe tenta matar o filho de inanição, sendo obstada antes que o
evento
se realize (n. 59).
O crime habitual não admite, em regra, tentativa. Assim, a figura
delituosa do art. 230, a respeito da qual já tivemos ocasião de escrever. No
delito habitual,
não há propriamente iter: ou a repetição dos atos é bastante para a consumação,
ou ainda não ocorreu, de modo a que se possa falar em tentativa.
Os delitos permanente e continuado não comportam a forma tentadaS,
compreendendo-se que ela seja admissível, no último, somente nos crimes que o
integram (n.
59).
Foi o que escrevemos na 1." edição. Contudo convém esclarecer a hipótese
do crime permanente, como faz Petrocelli6, observando que ele pode admitir a
tentativa,
tal a forma de sua manifestação. Assim, o cárcere privado aceita a tentativa
quando o sujeito ativo se apodera da vítima para encarceráIa; não, porém, quando
a forma
é omissiva: não libertar quem já se acha em seu poder. Impossível, então, é a
tentativa, como se falou linhas atrás.
No crime de perigo é possível a tentativa, pois ele pode apresentar um
iter, compor-se de fases, suscetível, portanto, de fracionamento, como ocorre
com a
figura do art. 231.
Não se admite a tentativa quando a lei condiciona a punibilidade à
consumação, como ocorre com a figura do art. 122 - "Induzimento, instigação ou
auxílio a
suicídio" - pois o fato do induzimento já se realizou antes do atentado da
própria pessoa.
Nas contravenções é inadmissível a tentativa. É, aliás, o que declara o
art. 4.° do Decreto-lei n. 3.688, de 3 de outubro de 1941 (Lei das Contravenções
Penais).
Como se diz, a tentativa de contravenção seria um perigo de perigo.
No crime complexo, ela ocorre com o princípio de execução do crime que
inicia a constituição do tipo, ou com a prática de apenas um dos crimes que o
compõem,
como observa Ranieri: "Neste caso, a tentativa pode ter por objeto o crime
isolado, que se coloca ou como antecedente ou como concomitante ou como
subseqüente a
outro delito isolado, com o qual forma, segundo um determinado tipo criminal, um
único crime complexo... E, na verdade, o delito complexo, sendo único, é
incompleto
ou imperfeito, ainda que se tenha consumado um dos delitos que o compõem".
Quanto ao crime culposo, já tivemos ocasião de tecer as considerações que
seguem. Tentativa e culpa são noções antitéticas: naquela o agente fica aquém do
que queria; nesta vai além do que desejava.
Todavia há uma espécie de culpa denominada por extensão, equiparação ou
assimilação, em que o resultado é querido, mas o agente labora em erro de fato
inescusável.
Assim, se uma pessoa, à noite, divisa um vulto, nas proximidades da edícula de
sua casa e sem dar conta que pode ser o caseiro, mas pensando tratar-se de
ladrão
- sendo, pois, o erro vencível ou censurável - atira contra ele, na defesa de
sua propriedade e própria segurança, e acerta o projétil no alvo, haverá
homicídio
culposo. E se não acertar? Por que o proprietário, que, em um caso, mata
culposamente, em outro não tentará culposamente matar? Os dois casos não diferem
senão em
um ponto: no resultado, ou evento, que em um se concretiza e no outro falha.
Isso, entretanto, é o que caracteriza a tentativa. Para nós, desde que é
possível a
culpa com resultado querido ou voluntário, é possível também a tentativa9.
Doutrinariamente, portanto, a culpa com evento voluntário a comporta. Fora
disso, procedente
é a afirmativa de Carrara de que tentativa de crime culposo é monstruosidade
lógica.

77. Desistência voluntária, arrependimento eficaz e arrependimento


posterior. O art. 15 cogita das hipóteses em que o sujeito ativo desiste de
prosseguir no
iter criminislO, ou, já percorrido tanto quanto lhe foi possível, arrepende-se,
impedindo que o fato se consume. Trata-se de causas de extinção da punibilidade,
embora não mencionadas no art. 107: há renúncia do jus puniendi estatal. Não se
pune a tentativa, com o intento de animar ou acoroçoar o delinqüente a desistir
da
empresa ou a conjurar os efeitos de sua atividade.
A lei fala em desistência voluntária. Esta só é possível na tentativa
imperfeita ou inacabada (n. 74). Não havendo percorrido ainda toda a trajetória
do delito,
o agente pode deter-se. Exemplo de desistência voluntária temos em Dom Casmurro,
do extraordinário Machado de Assis, quando Bentinho deposita veneno na xícara de
café que o menino Ezequiel (filho adulterino de Capitu, sua mulher) vai tomar,
e, quando ele está prestes a deitar o líquido pela goela abaixo da criança,
detém-se,
abandonando a empresa.
Arrependimento eficaz haveria, no mesmo caso, quando, tendo feito a vítima
ingerir o tóxico, ministrasse, a seguir, o antídoto, salvando-a. Aqui houve
tentativa
perfeita ou acabada (n. 74). O agente esgotou em atos de execução toda a
potencialidade agressiva. Arrependeu-se, porém, e evita, com sucesso, a
consumação.
Nem todos os Códigos dão o mesmo valor a ambas as causas. Assim, o suíço
autoriza a isenção penal na desistência voluntária e atenuação na resipiscência.
O agente deve renunciar ao propósito criminoso voluntariamente impõe o
dispositivo; pode não ser espontânea a renúncia, e mesmo assim lhe aproveitará.
Os motivos
também não contam. Todavia há de ser voluntária. Tal ocorre quando, podendo
prosseguir, o delinqüente não o faz. É a fórmula de Frank: "Posso prosseguir,
mas não
quero".
A lei subordina a impunidade da tentativa, no caso de arrependimento, à
sua eficácia. Por mais sincero que ele seja, se o sujeito ativo não logrou
evitar a
consumação, não ficará isento de pena. Na hipótese (linhas atrás mencionada) do
venefício, se, ministrado o antídoto, este não surtir efeito, é inoperante a
resipiscência.
A responsabilidade perdura, a nosso ver, mesmo que outra causa concorra.
Ainda na hipótese em questão, se, apresentado o antídoto, a vítima recusar-se a
tomá-Io,
por achar-se desgostosa da vida e querer consumar seus dias, não há isenção de
pena ao agente, pois seu arrependimento não teve eficácia. A recusa da vítima
não
rompe o nexo causal entre a ministração do tóxico e a morte (por mais miraculosa
fosse essa vontade, não teria o condão de fazer aparecer veneno nas vísceras do
sujeito passivo). Por outro lado, é patente ser essa vontade uma concausa (não
ter observado o regime médico-higiênico reclamado por seu estado).
Temos visto opiniões em contrário, mas não nos convencem. Na hipótese, há
a considerar também que, se a vítima tomasse o antídoto e mesmo assim morresse,
em
nada o agente se beneficiaria. Oportunos os dizeres de Vannini: "Se, portanto, o
arrependimento operoso do réu se tornou ineficaz, no sentido de que, malgrado
toda
boa vontade, o resultado se verificou, não poderia tal arrependimento favorecer
ao culpado, senão para os efeitos do art. 133 do Código Penal (aplicação da
pena)".
Se ele pôs em ação o processo causal, é mister que impeça a qualquer preço que
produza o resultado.
Questão que também oferece margem a sérias dúvidas é a da não-repetição
dos atos de execução. Certa pessoa, dispondo de várias balas, desfecha um tiro
contra
seu desafeto, visando-o na cabeça; não acertando o tiro, não repete o disparo.
Há desistência? - pergunta-se...
Vannini, citando, aliás, Manzini, diz que "não se pode falar de
desistência voluntária; de outro modo, os crimes tentados andariam sempre
impunes". Comunga
dessa opinião Costa e Silva, que acrescenta que o ponto de vista contrário cria
uma situação de injustiça para o bisonho e inexperto agente que carregou sua
arma
só com um projétil. Este não pode alegar que se arrependeu .
Pensa de modo diverso Hungria, e, a nosso ver, com razão.
É exato inexistir, no caso, desistência: esta só é possível na tentativa
imperfeita ou inacabada, e, aqui, só aquele tiro bastava para eliminar o
desafeto.
Por que não ver, entretanto, no fato, arrependimento eficaz? Não é exato que,
não repetindo os disparos, o agente abandonou o propósito criminoso? Se em
outras hipóteses
- como, por exemplo, quando alguém lança ao mar um inimigo e, a seguir, atira-se
às ondas, impedindo que se afogue - onde há conseqüências lesivas para o
ofendido,
o impedimento do resultado favorece ao agente, por que, aqui, onde não há dano
para aquele (o sujeito ativo poderá quando muito incorrer no art. 132 do CP ou
no
art. 28 da LCP), não se dará o mesmo?
Ao argumento de Costa e Silva responde Hungria, que, diante do fato de um
agente dispor de mais projéteis, e não usá-los, tem-se de se render à evidência
de
que ele não quis prosseguir; ao passo que, tendo o outro apenas uma bala que foi
deflagrada, não passaria de mera conjetura supor que se teria abstido de novos
disparos,
se mais munição possuísse.
Resta, por fim, dizer que não desiste da consumação de um crime quem a
adia. Desistência é uma coisa e adiamento outra, como quando, v. g., o ladrão,
após
a perfuração do telhado, suspende a execução para continuá-la depois.
Uma inovação relevante apresentada pela atual reforma penal: o
arrependimento posterior à consumação do crime.
Preceitua o art. 16: "Nos crimes cometidos sem violência ou grave ameaça à
pessoa, reparado o dano ou restituída a coisa, até o recebimento da denúncia ou
da queixa, por ato voluntário do agente, a pena será reduzida de um a dois
terços".
No dizer da Exposição de Motivos tal inovação foi introduzida mais em
benefício da vítima do que em favor do criminoso, objetivando levar o último a
reparar
o dano causado, minimizando o prejuízo do atingido.
O arrependimento post factum benéfico preconizado pelo art. 16 só pode ser
aplicado no crime material, pois tem como pressuposto para o seu reconhecimento
a "reparação do dano ou a restituição da coisa", indicando claramente a
natureza.
Contudo o Código Penal, em sua Parte Especial, já trazia a possibilidade
do arrependimento posterior aproveitar ao acusado (ex.: calúnia e difamação:
art.
143; subtração de incapazes: art. 249, § 2.° etc.), algumas figuras típicas
relativas a crimes formais, sendo hipóteses que não se confundem. Quando
reconhecido
com base no art. 16, só é possível no crime material; quando por previsão da
própria figura típica, tanto no material como no formal.
Arrependimento eficaz e arrependimento posterior têm momentos distintos,
realidades diferentes. Ocorre o arrependimento eficaz (art. 15) no curso da ação
executiva,
porém antes do momento consumativo, em razão de um ato em sentido reversivo,
praticado voluntariamente pelo agente; o arrependimento posterior (art. 16) dá-
se quando,
já consumado o crime, agente, por vontade própria, repara o dano ou restitui a
coisa.
Contudo, observe-se, a lei restringe sua aplicação aos crimes cometi dos
sem violência ou grave ameaça à pessoa.
No arrependimento eficaz o agente fica isento de pena; no arrependimento
posterior, de modo obrigatório, há mitigação da reprimenda.
O referido dispositivo (art. 16) foi instituído como medida de política
criminal e em alguns casos, como na fraude pelo pagamento através de cheque
desprovido
de fundos, por construção pretoriana já era empregado como uma causa extintiva
da punibilidade.
A retratação não se confunde com o arrependimento eficaz, assemelhando-se
ao posterior e sendo uma das causas de extinção da punibilidade, na forma do
art.
107, VI, do Código Penal.

78. Crime impossível. Crime de flagrante preparado. Crime provocado. Na


forma do art. 17 não se pune a tentativa quando há ineficácia absoluta de meio
ou impropriedade
absoluta de objeto.
Diz-se ineficaz ou inidôneo o meio, quando, por si, não pode produzir o
resultado: por exemplo, alguém quer envenenar seu inimigo e dá-lhe açúcar ao
invés
de arsênico. Há integral impropriedade de objeto, quando o bem jurídico
inexiste: por exemplo, a mulher erroneamente se julga prenhe e pratica manobras
abortivas.
Em ambos os casos, não há tentativa, por não haver início de execução da
ação típica (n. 73): o agente, ministrando açúcar, não começou a matar, como a
mulher
não começou a abortar.
Assim dispondo, o legislador pátrio abraçou a teoria objetiva temperada:
exige sejam absolutas a ineficácia e a impropriedade. Caso contrário, haverá
tentativa
punível. Diz-se relativamente ineficaz o meio, quando, normalmente apto para o
resultado, falha no caso concreto, como vulgarmente acontece com armas que negam
fogo.
Há impropriedade relativa de objeto quando o bem jurídico existe, mas por
circunstância fortuita não é lesado: alguém desfecha um tiro contra outra pessoa
e a bala
alcança seu relógio de bolso; o punguista mete a mão no bolso direito da vítima
para lhe surripiar a carteira, que, entretanto, se encontra no esquerdo. Em tais
ocorrências existe tentativa.
À teoria objetiva, adotada pelo Código, com temperamento, opõe-se a
subjetiva: o decisivo é a vontade do delinqüente, pois toda tentativa é
inidônea, já que
não alcança o resultado. O que conta, para essa corrente doutrinária, é a
convicção do agente de que havia idoneidade no caso. Ela sobrepõe a importância
da exteriorização
voluntarística ao perigo corrido pelo bem jurídico. Von Buri é o principal nome
dos subjetivistas.
A teoria subjetiva não satisfaz; ela conduz a situações aberrantes, como
aponta Mezger: a do indivíduo que, desejando produzir um descarrilamento,
manobra
os binários, acontecendo que, naquele dia, o funcionário ferroviário
erroneamente os havia acionado, de modo que é a ação daquele que vai salvar o
comboio.
No sistema do direito penal da atualidade, não basta o elemento subjetivo;
é mister que ele se exteriorize tipicamente, isto é, que, pelo menos, dêinício à
realização do tipo, e isso não existe na tentativa absolutamente inidônea.
O Código não considerou o crime impossível figura delituosa, como, entre
outros, propugnava, em ma_nífica tese, Soares de Melo?
Diverso do crime impossível é o delito putativo, que alguns denominam
imaginário. Só existe na imaginação do agente. Acredita ser delituosa a ação que
pratica;
entretanto falta a norma que a interdite: assim, o comerciante que cobra certo
preço por mercadoria, julgando-o acima da tabela oficial, quando é o contrário o
que
acontece. Difere, pois, do crime impossível. Aliás, diversas legislações punem
este, ao passo que o delito putativo é geralmente por elas ignorado.
Questão pertinente à matéria é a do delito de flagrante preparado.
Acontece, às vezes, que o sujeito passivo sabe que vai ser vítima de crime,
coisa que acontece,
máxime nos patrimoniais. Avisa, então, a polícia, que toma precauções, distribui
seus agentes pela casa etc. Vem o ladrão, salta o muro, força a porta da
entrada,
penetra a residência, vareja os quartos, e, quando está arrombando o cofre de
dinheiro, é preso. É punível a tentativa?
Já nos manifestamos pela afirmativa. A idoneidade não se desfigura pela
vigilância policial, porque esta não é elemento que torne absolutamente inidôneo
o
meio usado, frustrando de qualquer modo a empresa delituosa. Embora raro, já tem
havido casos em que o delinqüente consegue burlar as cautelas policiais,
consumando
o delito. Diversa seria a solução se, v. g., o larápio houvesse, por descuido,
se munido de um instrumento qualquer de matéria plástica, ou papelão,incapaz de
arrombar
o cofre.
No caso figurado, parece-nos certo haver início da ação típica. A
disposição da força policial é a circunstância alheia à vontade do agente, que
pode impedir
a consumação.
Dúvidas também suscita o crime provocado. Assemelha-se ao precedente,
apenas diferindo em que o delinqüente é impelido ao delito por um agente
provocador (Inspetor
de Polícia, delinqüente a serviço desta etc.). Acontece isso geralmente quando a
autoridade, não tendo provas contra algum ladrão, mas sabendo que ele é o autor
de vários crimes, provoca-o a cometer um, com o fito de prendê-lo.
Hungria acha inidôneo o conatus. Assim não pensamos. O caso comporta a
mesma solução que a do delito de flagrante predisposto, anteriormente aludido.
Igualmente,
tivemos ocasião de escrever sobre a espécie. Desde que não haja ineficácia
absoluta de meio, ou impropriedade total de objeto, o crime não é impossível. Os
que sustentam
opinião diversa deveriam explicar qual a solução que dariam se, não obstante
todas as providências tomadas, o executor lograsse a consumação, o que
certamente não
seria sobrenatural.
Aliás, juristas existem que vão mais longe: sustentam a responsabilidade
do próprio agente provocador, como o faz Maggiore: "Quando os meios são
relativamente
inidôneos, o provocador responderá por tentativa juntamente com o executor, por
haver exposto a perigo o bem agredido. Tal é o caso do delito começado e
sucessivamente
interrompido pela intervenção predisposta da polícia". Vejam-se, ainda,
Notarbartolo, Impallomeni2O e outros, sustentando o mesmo ponto de vista.
Até aí não vamos. A impunidade do agente provocador é corolário da
ausência de dolo. Para a tentativa, não basta querer expor a perigo o bem, é
mister querer
o evento. Quem tenta um delito, tenta consumá-Io. Dolo de tentativa é dolo de
consumação, motivo por que dissemos não haver um dolo especial de tentativa (n.
71
e 74).
Em suma, para as hipóteses ventiladas, é mister atentar a que nossa lei só
considera impossível o crime quando há ineficácia absoluta de meio ou absoluta
impropriedade
de objeto. Desde que a inidoneidade do meio não seja total, e uma vez que o bem
exista, não há falar em crime impossível.

VI

O DOLO E A CULPA

SUMÁRIO: 79. O dolo. 80. Espécies de dolo. 81. A culpa. 82. Espécies de culpa.
83. A fórmula do Código. 84. Compensação da culpa. 85. O preterdolo. Agravação
pelo
resultado. 86. A responsabilidade objetiva. 87. A excepcionalidade do crime
culposo. 88. Actio libera in causa.

79. O dolo. A culpabilidade e a imputabilidade constituíram objeto do n.


54, pelo que, aqui, incumbe apenas apreciarmos as formas por que aquela se pode
apresentar.
Menciona-as o Código no art. 18: o dolo e a culpa. Reserva o inc. I para
aquele, ressaltando o elemento volitivo. Para ele, dolo é vontade, mas vontade
livre
e consciente.
Dois são, portanto, os elementos do dolo. A consciência há de abranger a
ação ou a omissão do agente, tal qual é caracterizada pela lei, devendo
igualmente
compreender o resultado, e, portanto, o nexo causal entre este e a atividade
desenvolvida pelo sujeito ativo. Age, pois, dolosamente quem pratica a ação (em
sentido
amplo) consciente e voluntariamente.
Alguns definem o dolo simplesmente como a representação do resultado,
teoria que se opõe à da vontade. Todavia é difícil aceitar-se que a
representação possa
excluir a vontade, pois esta pressupõe aquela. Não se pode querer
conscientemente senão aquilo que se previu ou representou à nossa mente, pelo
menos em parte. Como
assevera Florian, a representação sem vontade é coisa inexpressiva, e a vontade
sem representação é impossível. Conseqüentemente, para agir com dolo, não basta
que
o evento tenha sido previsto pelo indivíduo, é mister seja querido. Esse
resultado é a meta, o fim que o sujeito ativo busca com sua atividade consciente
e dirigida.
Costuma dizer-se, por isso, abreviando o conceito, que dolo é a vontade de
executar um fato que a lei tem como crime.
Mas o dolo não se exaure na vontade e representação do evento. Não basta o
agente querer praticar o fato típico, é necessário também ter conhecimento de
sua
ilicitude. Dolo é vontade e representação do resultado, mas, igualmente, é
ciência de oposição ao dever ético-jurídico; é ação no sentido do ilícito.
Age dolosamente quem atua com conhecimento ou ciência de agir no sentido
do ilícito ou antijurídico, ou, numa palavra: com conhecimento da
antijuridicidade
do fato.
Esta não é conhecimento da lei. Se assim fosse, somente os juristas e
advogados poderiam cometer crimes. Para o ladrão saber que furtar é delito, não
necessita
cientificar-se de que o fato está definido no art. 155 do Código Penal.
Conhecimento da antijuridicidade é a ciência de se opor à ordem jurídica, é a
convicção de
incorrer no juízo de reprovação social. É por nascermos e vivermos em sociedade
que cedo adquirimos essa consciência de agir no sentido do lícito ou permitido.
Em
regra, o crime, antes de se achar definido em lei, já é, para nós, ato nocivo e
contrário aos interesses individual e coletivo. Há leis porque existem crimes.
Mezger diz que consciência da antijuridicidade é o conhecimento profano do
caráter proibido do ato. Asúa, repetindo esses dizeres, lembra-nos que sabemos o
que seja um automóvel sem conhecermos mecânica; o que seja pneumonia sem
conhecimentos de medicina; logo devemos saber o que é antijurídico sem
conhecermos o direito.
Admitindo o elemento normativo, claro está que a boa-fé exclui o dolo,
pois ela é a crença sincera e honesta de agir no sentido do lícito ou permitido.
Desde
que não incida sobre o erro de direito que, só por disposição, não aproveita ao
agente, quem com ela se conduz não age dolosamente: a boa-fé é a antítese do
conhecimento
da antijuridicidade.
Tem-se objetado que nossa lei não inclui o elemento normativo no conceito
do dolo. Aponta-se, para isso, o art. 18, I, e alega-se que, quando o Código
exige
o conhecimento da antijuridicidade, di-Io expressamente com as expressões:
"indevidamente", "ilicitamente", "sem justa causa" etc.
Mas o critério de uma lei não pode ser deduzido do que apenas um artigo
seu contém. É mister enquadrá-Io no sistema, é necessário entendê-Io de acordo
com
o que dispõem outros, para se ter conhecimento integral seu. Assim é que, dois
artigos depois, vemos isento de pena o agente que comete o crime por erro de
tipo.
Ora, o fundamento deste é a boa-fé: não é responsável quem atua acreditando
estar agindo de acordo com a ordem jurídica e, portanto, sem conhecimento da
antijuridicidade.
Além disso, há, na lei, exigência expressa do conhecimento da
antijuridicidade. Quando, no art. 26, o Código alude a "... entender o caráter
criminoso do fato
ou determinar-se de acordo com esse entendimento", outra coisa não faz senão se
referir ao conhecimento da ilicitude do fato.
Quanto às expressões "indevidamente", "ilicitamente" etc., caracterizam os
tipos anormais. São elementos normativos (n. 52), que se referem
àantijuridicidade
e que o legislador achou dever salientar, por várias razões. Mas esse proceder
da lei não autoriza aquela ilação. Estamos até que é um reforço para os
normativistas,
pois inaceitável seria que a lei fosse exigir, nesses crimes, um elemento
totalmente estranho ao dolo de outros delitos. A conclusão é diversa: o que
existe sempre
em todo o crime - a consciência da antijuridicidade - a lei achou conveniente,
por determinadas razões, mencioná-Io expressamente, entrando ele, então, como
elemento
do tipo.
Mas, para o Código, o dolo não é apenas representação, vontade e
consciência da ilicitude do resultado. É também anuência a este. Ele não olvida
a teoria do
consentimento. Age dolosamente não apenas o que quer livre e conscientemente um
resultado, mas também quem, embora não o querendo de modo principal, aceita-o ou
a ele anui. Na primeira hipótese, diz-se direto o dolo; na segunda, eventual. Na
oração que enuncia o dolo, acha-se compreendido na expressão "ou assumiu o risco
de produzi-Io". Para o Código, querer um resultado ou assumir o risco de causá-
Io são situações equivalentes. Equiparou-as.
Nos delitos de simples atividade ou mera conduta, em que não existe
resultado, o dolo é representação, vontade e consciência da ilicitude da ação.
De todo o exposto, podemos concluir que ele pressupõe: a) consciência da
ação, e do evento, e conhecimento do nexo causal entre eles; b) consciência da
ilicitude
da conduta; c) vontade da ação e do resultado.
Para os que entendem que a reforma penal adotou a teoria da ação
finalista, o dolo deixou de ser o dolo mau, dolo valorado, para ser o dolo
natural, que se
identifica com a intencionalidade que caracteriza qualquer ação humana.

80. Espécies de dolo. Acabamos de aludir ao dolo direto. Existe ele quando
o evento corresponde à vontade do sujeito ativo. É o que diz o Código: "...
quando
o agente quis o resultado". Exemplo: um indivíduo quer matar outro, desfecha-lhe
um tiro e prostra-o sem vida.
É indireto quando, apesar de querer o resultado, a vontade não se
manifesta de modo único e seguro em direção a ele, ao contrário do que sucede na
espécie
anterior. Comporta duas formas: o alternativo e o eventual. Dá-se o primeiro
quando o agente quer um dos eventos que sua ação pode causar: atirar para matar
ou ferir.
Do eventual já dissemos no parágrafo anterior: o sujeito ativo prevê o resultado
e, embora não seja este a razão de sua conduta, aceita-o; v. g., o chofer que em
desabalada corrida, para chegar a determinado ponto, aceita de antemão o
resultado de atropelar uma pessoa. Estremase da culpa consciente, como dentro em
pouco veremos,
porque nesta o agente, conquanto preveja o resultado, não o quer, esperando
insensatamente que não se verifique. Hungria cita um caso ocorrido no Rio de
Janeiro,
em que a dona de um cão e uma criança do vizinho foram por ele mordidas. Havendo
suspeitas de que estivesse hidrófobo, a proprietária matou-o e adquiriu outro em
tudo semelhante a ele. Ambas as vítimas iniciaram o tratamento médico, porém o
da criança suspendeu-se logo, quando, examinado o segundo animal, verificou-se
estar
são. Assim, enquanto a proprietária levava seu tratamento a termo, o menor
morria, vítima do terrível mal. É clara a existência do dolo eventual. Para se
furtar
aos percalços de um processo por incúria na guarda do cão, aquela mulher
assumira o risco da morte da criança, pois não tinha certeza do estado de saúde
do irracional.
O ilustrado jurista, precisando o conceito do dolo eventual, lembra a
fórmula de Frank: "Seja como for, dê no que der, em qualquer caso não deixo de
agir"!.
Sinteticamente, costuma estremar-se o dolo direto do eventual, dizendo-se que o
primeiro é a vontade por causa do resultado; o outro é a vontade apesar do
resultado.
Fala-se ainda em dolo de dano e de perigo. No primeiro, o que se quer é um
dano, a lesão efetiva a um bem; e, no segundo, somente um perigo. Rocco escreve
que ele "si distingue daI dolo di danno, che si riscontra nei delitti di danno o
di lesione, appunto per cio, che in questi, cio che e voluto e un danno, in
quelli
soltanto un pericolo".
A existência do dolo de perigo, como coisa distinta e substancialmente
diversa, é contestada por numerosos autores. Florian fala que existe apenas
diversidade
de objeto num e noutro, mas o conceito deste é o mesmo3. Von Hippel diz não se
tratar de conceito particular de dolo, mas simplesmente do fato de que alguns
crimes
requerem não uma lesão dolosa, mas somente perigo para os bens jurídicos. A
expressão justa é perigo doloso4. O mesmo pensa Antolisei.
Autores numerosos distinguem dolo genérico e específico. O primeiro reside
na vontade de realizar o tipo descrito na lei. Quanto ao segundo, é considerado
como umfim especial e próprio do delito. Marcelo Finzi conceitua-o como a
volição dirigida a um resultado que se acha fora dos atos externos de execução
do delito6.
Em regra, nas figuras delitivas, é indicado por expressões como: "com o fim de",
"com o intuito de", "com o escopo" etc., ou com o emprego da preposição para:
"para
isto" ou "para aquilo" etc.
É o dolo específico o elemento que distingue delitos, cujo aspecto
material é o mesmo. Assim, o rapto de mulher, que se aparta do seqüestro, pelo
fim libidinoso.
Adianta Finzi que, às vezes, a lei não usa expressões para indicá-Io,
porém, ele está implícito na oração; v. g., o furto, na lei argentina: "...
apoderar-se
ilegitimamente de coisa móvel, total ou parcialmente alheia", em que o verbo
apoderar-se indica a atitude espiritual de se tornar dono de uma coisa,
submetendo-a
a seu poder.
Outros juristas, entretanto, impugnam essa distinção do dolo, dizendo
que tal intenção ulterior é elemento subjetivo do injusto (n. 52).
A questão é mais de situação dessa espécie de dolo. Quer integrante do
tipo anormal, como elemento subjetivo do injusto, quer não, a verdade é que ele
tem
existência real, oferecendo o característico de vários delitos.

81. A culpa. O vocábulo culpa, em sentido amplo (lato sensu), equivale à


culpabilidade, compreendendo o dolo e a culpa em sentido estrito (stricto
sensu). Conseqüentemente,
esta é uma das formas da culpabilidade, e é a que nos irá tomar a atenção.
A elaboração da doutrina da culpa não cessou; continua em nossos dias.
Inúmeras são as teorias que procuram fundamentá-Ia, e, em outro livro,
ocupamonos demoradamente
com sua exposição e crítica.
De modo geral, elas podem reunir-se em duas grandes classes: as subjetivas
e as objetivas. As primeiras apontam, no elemento psicológico, o conteúdo
característico
da culpa; as segundas, ao revés, não se preocupam com a relação psíquica entre o
agente e o fato, mas encontram a essência da culpa em uma especificação objetiva
da conduta, em modalidade sua, no nexo causal entre a conduta e o evento, ou,
finalmente, na natureza do bem jurídico violado ou ofendido.
Não há dúvida, entretanto, de que a opinião mais categorizada é a que
fundamenta a culpa na previsibilidade. Remonta aos romanos e vem atravessando os
séculos.
Carrara já definira a culpa como "a voluntária omissão de diligência em calcular
as conseqüências possíveis e previsíveis do próprio fato", acrescentando que "Ia
essenza della colpa stà tutta nella prevedibilità".
A doutrina da previsibilidade impõe-se porque, realmente, sem ela é
difícil fundamentar ou justificar um juízo de culpabilidade ou reprovação, pois
é somente
fundado na possibilidade de se prever o que não foi previsto que se pode
censurar alguém, por não ter tido conduta que evitaria o resultado danoso. A
culpa tem também
conteúdo normativo.
Previsibilidade é a possibilidade de se prever um fato. Diz-se haver
previsibilidade quando o indivíduo, nas circunstâncias em que se encontrava,
podia ter-se
representado como possível a conseqüência de sua ação. Distingue-se da previsão,
porque esta a contém. O previsto é sempre previsível. A previsão é o
desenvolvimento
natural da previsibilidade.
Dois são os critérios apontados para aferi-Ia. Um, o objetivo, tem em
vista o homem médio, isto é, sua diligência e perspicácia. Previsível é um
resultado
quando a previsão de seu advento pode ser exigida do homem comum e normal, do
indivíduo de atenção e diligência ordinárias, exigíveis da generalidade das
pessoas.
Entre outros, defendem esse critério Rocco, Florian, Impallomeni e Battaglini.
O outro critério, o subjetivo, rejeita o paradigma do homem médio, que é
abstração, para recomendar que se deve ter em vista a personalidade do indivíduo
em
tela, isto é, suas condições personalíssimas: idade, sexo, grau de cultura etc.
Um terceiro critério surge, procurando conciliar os anteriores. Foi
esposado pelo diploma suíço, no art. 18, que, após definir o delito culposo,
acrescenta:
"A imprevidência é culpável quando o autor do ato não usou das precauções
exigidas pelas circunstâncias e por sua situação pessoal". Comentando o texto,
diz Paul
Logoz: "Para haver imprevidência culpável, énecessário, em primeiro lugar,
objetivamente, que o autor não tenha usado das precauções que eram exigi das
pelas circunstâncias.
Segundo as circunstâncias do caso em espécie, é exigível do agente uma
diligência ou precauções maiores ou menores". E passando ao outro requisito:
"Para haver imprevidência
culpável, é necessário que, subjetivamente, o autor tenha omitido as precauções
exigidas por sua situação pessoal". E esclarece que, a esse respeito, é preciso
saber
se se está autorizado a dizer ao agente: "Tel que tu es, tu as fait preuve d'une
imprévoyance coupable. Si tel n'est pas le cas, il ne saurait être question de
negligence:
à l'impossible, nul n'est tenu".
Cremos que esse critério é justo e corresponde à realidade. O juiz deve
ter em vista, primeiramente, o fato em si, com suas circunstâncias etc., a
exigir cautela
e atenção ordinárias; depois, a consideração do sujeito ativo: podia ele deixar
de agir, como o fez, ou, por outra, estaria à altura de empregar a diligência
comum
dos homens? O critério objetivo, por si só, não éjusto, pois, se se procura
apurar a responsabilidade de uma pessoa, não se compreende que se investigue o
fato,
não em relação a ela, mas ao homem médio. O subjetivo também não satisfaz. Não
se pode considerar exclusivamente a pessoa do autor, sem relacioná-Ia com o fato
e
todas as suas circunstâncias, a exigirem atenção e diligência que não podem ser
as de um indivíduo excepcional, mas as do homem médio.
Para nós, diz-se o crime culposo quando o agente, deixando de empregar a
atenção ou diligência de que era capaz em face das circunstâncias, não previu o
caráter
delituoso de sua ação ou o resultado desta, ou, tendo-o previsto, supôs
levianamente que não se realizaria; bem como quando quis o resultado, militando,
entretanto,
em inescusável erro de fato.
Da definição exposta, podemos extrair os elementos do fato culposo:
1) Ação (em sentido amplo) causativa do resultado. Trata-se de conduta
voluntária. O agente quer praticar a ação com a mesma vontade do fato doloso: o
chofer,
que dirige seu automóvel a 120 km por hora e desastradamente atropela alguém,
quer a ação de dirigi-lo assim, do mesmo modo que a quer aquele que imprime essa
velocidade
a seu veículo para atirá-lo propositadamente sobre o pedestre, seu inimigo. Em
ambos os casos a ação causal é voluntária.
2) O evento antijurídico não querido, ou por não ser previsto, ou porque,
tendo sido previsto, rejeitou-se a possibilidade de se verificar. Se o agente
previu
e quis, haverá dolo direto; se o previu, e, embora não o querendo de
modo exclusivo, o aceitou, existirá dolo eventual.
3) O evento antijurídico querido, mas fruto de erro de fato inescusável.
Se não previsto o resultado, deve ele, entretanto, ser previsível, como se
falou:
não há culpa sem previsibilidade. Constitui ela o nexo psíquico entre o
indivíduo e o evento. Só por um resultado previsível é que ele poderá responder.
Além da
previsibilidade, penetra-se nos domínios do caso fortuito, onde a
responsabilidade não tem sentido.
A definição que demos esposa o caráter misto (subjetivo e objetivo),
abrange o crime formal e o material e compreende a culpa inconsciente, a
consciente e
a por extensão, equiparação ou assimilação, das quais passamos a falar.

82. Espécies de culpa. Distinguem-se primeiramente a culpa consciente e a


inconsciente. Nesta, o resultado previsível não é previsto pelo agente. São os
casos
comuns de crimes culposos: manejo de arma, sem verificar previamente se está
carregada, direção de veículo com velocidade inadequada etc. É a chamada culpa
ex ignorantia.
Na culpa consciente ou com previsão (culpa ex lascívia), o sujeito ativo
prevê o resultado, porém espera que não se efetive. Avizinha-se bastante do dolo
eventual,
mas nem por isso constitui modalidade mais grave do que aquela.
É certo que variam as opiniões, mas estamos que a culpa consciente nem
sempre traduz maior periculosidade ou desajuste da pessoa. Um homem previdente
pode,
após madura reflexão, praticar um ato do qual ante vê o resultado, contando com
que, devido à sua cautela, este não sobrevirá, o que, entretanto, não impede que
se verifique. Não necessita de maior corretivo do que o estabanado, o desatento,
o imprudente que pratica o mesmo ato, sem que nem por um momento perceba a
conseqüência
funesta.
A culpa stricto sensu ainda oferece a modalidade conhecida como imprópria,
ou culpa por extensão, equiparação ou assimilação. É ela de evento voluntário.
Constitui
objeto de nossa atenção no n.76. Agora, o agente, ao contrário do que acontece
com as outras formas culposas, quer o evento, porém sua vontade está lastreada
por
erro de fato vencível ou inescusável. Ele acredita encontrar-se em situação de
fato que torna lícita a ação, porém labora em erro grosseiro ou vencível, e,
portanto,
age com culpa. Se invencível fosse, ocorreriam as chamadas descriminantes
putativas: estado de necessidade, legítima defesa, exercício regular de direito
ou cumprimento
de dever legal.
Pode ainda a culpa ser presumida ou in re ipsa. Aceitava-a o Código
anterior, fazendo-a derivar da inobservância de disposição regulamentar. Assim,
v. g.,
a pessoa que não tivesse carta de habilitação para guiar automóvel, mas fosse
habilíssimo condutor, se acontecesse atropelar alguém, responderia por delito
culposo,
ainda que taxativamente provasse ter sido puramente casual o fato, havendo ele
se portado com a maior diligência possível. Rejeitou-a o atual estatuto, e em
boa
hora, pois ela traduz responsabilidade objetiva.
Alude-se ainda à culpa lata, leve e levíssima. É distinção que vem do
direito romano privado e corresponde antes a graus da culpa. A primeira
ocorreria no
caso em que qualquer pessoa pudesse prever o evento. Seria leve a culpa quando
somente o indivíduo bastante diligente previsse o resultado. Levíssima quando só
a
excepcional cautela o impediria. Aproxima-se esta do caso fortuito.
Excepcionalmente pode, entretanto, ser punida.
A consideração do grau da culpa é tarefa do juiz, consoante o art. 59.
Para os finalistas, a teoria da culpa tradicional sofre profunda
modificação, já que incompatível com a estrutura do crime doloso.

83. A fórmula do Código. Não definiu nossa lei a culpa. Preferiu


referir-se às suas modalidades.
A primeira é a negligência. É expressão ampla. Na doutrina e nas leis
freqüentemente é usada como equivalente à culpa em sentido estrito, dandolhe,
então,
todo o substrato e abrangendo, pois, a imprudência e a imperícia.
No sentido do Código, ela é inação, inércia e passividade. Decorre de
inatividade material (corpórea) ou subjetiva (psíquica). Reduz-se a um
comportamento
negativo. Negligente é quem, podendo e devendo agir de determinado modo, por
indolência ou preguiça mental, não age ou se comporta de modo diverso. Exemplos
freqüentes
de negligência temos no fato de não se colocarem avisos em aberturas ou
obstáculos do leito carroçável; não se trazer convenientemente preso um cão
bravio; deixar-se
ao alcance de criança tóxico ou arma etc.
A imprudência tem forma ativa. Trata-se de um agir sem a cautela
necessária. É forma militante e positiva da culpa, consistente no atuar o agente
com precipitação,
insensatez ou inconsideração, já por não atentar para a lição dos fatos
ordinários, já por não atender às circunstâncias especiais do caso, já por não
perseverar
no que a razão indica etc. Na negligência, como escreve Riccio, não se usam
os,poderes de atividade; na imprudência faltam os poderes inibitórios. Agem com
imprudência:
o chofer que conduz seu auto com velocidade inadequada às circunstâncias de
tempo e lugar; quem maneja arma carregada, na presença de outras pessoas, ou
caça em
local onde há excursões, convescotes etc.
Podem coexistir a imprudência e a negligência. Quem conduz seu automóvel
com velocidade excessiva e não verifica o estado dos freios é imprudente e
negligente.
A imperícia supõe arte ou profissão. Consiste na incapacidade, na falta de
conhecimento ou habilitação para o exercício de determinado mister. Pode provir
ou da falta de prática ou da ausência de conhecimentos técnicos de profissão,
ofício ou arte, pois todos eles têm princípios e normas que devem ser conhecidos
pelos
que a eles se dedicam.
Pode a imperícia ocorrer fora da arte ou profissão, mas, sob o ponto de
vista jurídico, será imprudência ou negligência. Assim, se uma parteira causa a
morte
de gestante, será imperita; se for uma curandeira, será imprudente. Por outro
lado, embora a imperícia seja privativa de arte ou profissão, comportam estas
também
a imprudência e a negligência. Imprudente seria, por exemplo, o operador que,
podendo fazer intervenção cirúrgica por processo simples e conhecido, empregasse
um
mais complexo e difícil, resultando a morte do paciente. Negligente, o cirurgião
que, operando, deixasse nas vísceras do paciente um tampão de gaze.
Não se confunde a imperícia com erro profissional. Imperito é quem não
possui o cabedal normalmente indispensável ao exercício de uma profissão. Não
existindo
essa ignorância, não se poderá falar em imperícia, mas ter-se-á o erro
profissional que, em regra, é escusável. Ele é conseqüência da precariedade dos
conhecimentos
humanos e não resultado da falta de observância das regras e princípios que a
ciência sugere. É no caso prático que se poderá distingui-Io da imperícia, e
será escusável,
em regra, quando invencível à média dos profissionais e atendidas as
circunstâncias do fato e a situação pessoal do agente.

84. Compensação da culpa. Ao inverso do que sucede no direito privado, não


admite o penal a compensação de culpas. O proceder culposo do ofendido não elide
o do agente. Em face de nossa lei, que consagra a teoria da equivalência dos
antecedentes causais, seria absurdo advogar-se a compensação de culpas. Só se
isentará
de pena alguém quando o resultado for atribuível exclusivamente à culpa da
vítima.
Assim, se um chofer deixa, em declive, seu automóvel malbrecado e uma
criança sobe nele, vindo a ferir-se pela precipitação ladeira abaixo do veículo,
responderá
por culpa.
Se, ao contrário, uma pessoa toma, sem que o condutor a possa ver, a
traseira de seu veículo e vem a machucar-se, não existe responsabilidade
daquele, pois
o fato voluntário e ilícito do ofendido é que torna danosa sua ação lícita.
Em regra, a responsabilidade do agente existe quando a ação causal de
outrem é previsível para ele.
Compreende-se a compensação de culpas no direito privado, dada sua
orientação econômica. O direito penal, entretanto, tem outra finalidade em
vista: é a
ordem pública, são os interesses sociais que o norteiam e que não se podem
sujeitar à compensação dos fatos culposos.

85. O preterdolo. Agravação pelo resultado. Além do dolo e da culpa, outra


forma de culpabilidade existe: o preterdolo ou preterintenção. Existe delito
preterdoloso
quando o resultado vai além do dolo do sujeito ativo. Assim, no caso em que uma
pessoa desfere em outra um soco, com intenção de machucá-Ia, acontecendo,
entretanto,
que ela, perdendo o equilíbrio, vai ao chão e, batendo com a cabeça na guia da
calçada, fratura a base do crânio, vindo a falecer.
Discute-se acerca da estrutura desse delito. Uns afirmam existir nele um
misto de dolo e acaso; outros, somente um crime doloso; alguns, apenas delito
culposo;
e, finalmente, diversos, uma figura bifronte: dolosa e culposa ao mesmo tempo.
Para estes, há dois crimes na figura preterdolosa: o minus delictum (o que
o delinqüente queria praticar), atribuível a título de dolo, e o majus delictum
(o que realmente se vem a verificar), imputado a título de culpa. Parece-nos ser
essa a opinião mais fundamentada.
Com efeito, no exemplo atrás citado, a conseqüência ou efeito (resultado
final) não foi querido e, não tendo sido previsto, também não foi aceito pelo
agressor.
Não há, pois, dolo direto nem eventual. Caso fortuito também não houve. Este
rompe o nexo causal entre a ação do agente e o resultado, e, na espécie, não
houve rompimento
algum entre a ação de desferir o soco na vítima e sua queda.
Conseqüentemente, a nós nos parece que o evento só pode ser atribuído a
título de culpa, não colhendo a objeção de que não se pode imputar um único fato
a
título de dolo e culpa ao agente. A objeção procederia se o efeito, ou
conseqüência, fosse um só, o que, entretanto, não ocorre, pois, no caso citado,
há dois efeitos:
a lesão física proveniente do soco recebido e a fratura resultante da queda.
Nada impede, pois, que em relação a um haja dolo, e culpa relativamente ao
outro. Quem
tem apenas intenção de ferir deve empregar diligência ao executar o crime, não
se excedendo no uso dos meios e dirigindo a atividade executiva de modo que, da
mesma,
não resulte evento mais grave do que o querido, que, encontrando-se na mesma
direção, era nas mais da vezes previsto e, fora de qualquer dúvida, previsível.
Conseqüentemente, no crime preterdoloso, há dolo no antecedente (minus
delictum) e culpa no conseqüente (ma jus delictum). Há culpa porque há
previsibilidade
do efeito mais grave e é nisso que se funda a responsabilidade do agente.
A atual reforma penal cuidou dos casos de agravação pelo resultado no art.
19, que estatui: "Pelo resultado que agrava especialmente a pena só responde o
agente
que o houver causado ao menos culposamente".
É uma inspiração do § 18 do Código Penal alemão e do art. 18 do Código
Penal português, ambos com redações semelhantes. Por sua vez, também reproduz o
art.
19 do Decreto-lei n. 1.004/69, que não chegou a entrar em vigor.
Para que ocorra tal hipótese é necessária a conjugação de três elementos:
a) um fato básico, criminoso, doloso (principale delictum, minus delictum); b)
um
resultado não desejado (ma jus delictum); e c) um liame entre o fato básico
doloso e o resultado não desejado (nexo de preterintencionalidade).
Por força de tal dispositivo normativo o agente só responderá pelo
resultado, pelas conseqüências agravadoras, quando as causar ao menos
culposamente.
O dispositivo em questão veio resolver o problema dos crimes qualificados
pelo resultado que, no Código de 1940, eram uma decorrência da simples imputatio
facti, sem qualquer exame sobre a situação psicológica do agente.
Há em tal artigo uma coerência com o princípio da culpabilidade, pois, em
relação ao evento mais grave, o autor por ele responderá culposamente. A
responsabilidade
do agente vem fundada na previsibilidade do efeito mais grave.

86. A responsabilidade objetiva. O art. 18 consagra a regra nullum crimen


sine culpa, declarando não haver delito sem dolo ou culpa stricto sensu.
Repudia,
dessarte, o dispositivo a chamada responsabilidade objetiva, conceituada por
Vincenzo Cavallo como "Ia responsabilità per un evento addebitabile all'agente
per semplice
nesso di causalità materiale, escluso ogni contributo di elementi spirituali
conoscitivi o volontaristici", que acrescenta tratar-se da responsabilidade do
homemesbulhado
de tudo quanto nele existe de verdadeiramente humano, isto é, da luz espiritual
que vivifica todas as ações que executa, bem como seus possíveis eventos,
equiparando-o
em seus atos, qual simples ser físico, aos animais e às forças brutas da
natureza.
De feito, no estado presente do direito penal, é ela incompreensível. Representa
um retrocesso a tempos primitivos, em que o homem pagava pelo que fizera, sem
quaisquer
preocupações com o elemento subjetivo. Era o resultado, o dano causado, a clamar
sempre por uma pena, que nada mais era que vingança. A responsabilidade só pode
ter por fundamento a vontade humana.
Infelizmente, o que o art. 18 proclama não é observado. Assim no tocante à
embriaguez, à emoção e à paixão (art. 28), onde o elastério dado àteoria da
actio
libera in causa é inadmissível, caindo-se na responsabilidade objetiva. Esta
domina também em matéria das contravenções.
Para outros, ela também existe nos crimes qualificados pelo resultado, e
na responsabilidade sucessiva nos crimes de imprensa. Tal não procede. Naqueles,
como
vimos, há previsibilidade do majus delictum, e, nestes, há culpa dos
responsáveis sucessivos (diretores e redatores) pelo que se publica no jornal.

87. A excepcionalidade do crime culposo. O parágrafo único do art. 18 soa


que o delito culposo há de ser expressamente declarado na lei; no silêncio
desta,
quanto ao elemento subjetivo, a punição só se verifica a título de dolo. É a
interpretação a dar ao parágrafo, não tendo cabida a que pretende ver aí
consagrada
a responsabilidade objetiva. Contra essa exegese se opõe a técnica da lei,
fazendo da prescrição o parágrafo de um artigo, que só se refere ao dolo e à
culpa.
É excepcional a punibilidade da culpa. Geralmente a norma penal pressupõe
no destinatário uma vontade diretamente contrária ao preceito, ou seja, vontade
dirigida
ao evento proibido ou a um resultado imposto e obrigatório. A derrogação há de
ser expressamente indicada, isto é, devem ser declarados taxativamente os casos
em
que a vontade seja punível, conquanto não dirigida nem ao evento interditado nem
ao imposto. Noutros termos, assentada a normalidade do doló, resulta a
excepcionalidade
da culpa, donde o imperativo da declaração expressa.
A incriminação do fato culposo tem por fundamento sua gravidade com os
crimes contra a pessoa, ou sua relação direta com a proteção da coletividade
(crimes
contra a incolumidade pública). É o que de ordinário acontece, embora, às vezes,
outros fatores determinem a punibilidade, como na receptação culposa.
Dividem-se os juristas, quanto à capitulação dos crimes culposos: uns são
pelo aumento de seu número; outros, pela diminuição. Procedente é a opinião de
Von
Hippel: "A repressão deve limitar-se, como até agora, tendo por base o critério
de absoluta necessidade".

88. "Actio libera in causa". Exposta, como já foi, a culpabilidade (n.


54), com o seu elemento - a imputabilidade, sobre a qual ainda nos deteremos ao
examinarmos
o art. 26, e considerados, agora, o dolo e a culpa, já se está a ver que um fato
só pode ser imputado ao agente quando este, no momento de praticá-lo, apresenta
capacidade ou condições pessoais que permitam a imputação.
Conseqüentemente, a regra é que o sujeito ativo, no momento da execução do
fato delituoso, tenha capacidade de entender o caráter criminoso do fato ou de
determinar-se
de acordo com esse entendimento.
Todavia casos há em que ele não se encontra, naquele instante, em tais
condições, e, mesmo assim, é responsável: deverá arcar com as conseqüências
jurídicas
do fato. Tal ocorre, v. g., no exemplo de quem coloca uma bombarelógio a bordo
de uma aeronave, e, horas depois, voando o avião sobre outro país, aquela
explode,
estando, entretanto, o agente dormindo em sua casa.
A imputabilidade agora se faz em virtude da teoria das actiones liberae in
causa, que supõe a supressão da capacidade ética (intelectiva e volitiva) no
momento
do crime, mas responsável o agente por ser livre na causa, isto é, no instante
anterior, quando desejava praticar o delito. O estado de inimputabilidade é,
então,
por ele procurado, como ocorre, v. g., na embriaguez preordenada (beber para
cometer o crime). Em tal hipótese, como escreve Sauer, o sujeito ativo é
"simultáneamente
autor mediato imputable, e instrumento inimputable"15. Pode, ainda, em casos
excepcionais, a imputação fazer-se a título de culpa: o guarda-freios que em
determinada
hora tem de fazer certa manobra e, não obstante, põe-se a beber, devendo prever
que dessa conduta poderá advir o resultado preciso do abalroamento de comboios.
O assunto será mais amplamente abordado ao tratarmos da embriaguez. Por
ora, cumpre apenas assinalar ter nosso Código dado amplitude demasiada à teoria
da
actio libera in causa, aceitando a responsabilidade objetiva que repudiou no
art. 18.
VII

DA CULPABILIDADE

A) O ERRO

SUMÁRIO: 89. Erro e ignorância. Erro de direito e erro de fato. Erro de tipo e
erro de proibição. 90. Erro de tipo. 91. Da inescusabilidade do desconhecimento
da
lei. Erro de proibição. 92. Erro determinado por terceiro e erro sobre a pessoa.
93. Erro na execução. 94. Descriminantes putativas fáticas.

89. Erro e ignorância. Erro de direito e erro de fato. Erro de tipo e erro
de proibição. Distinguem-se erro e ignorância, pois o primeiro é o conhecimento
falso acerca de um objeto, ao passo que a ignorância é a ausência total desse
conhecimento. Seus efeitos jurídicos são, entretanto, idênticos, pois tratados
da mesma
forma.
A doutrina tradicional, até agora prestigiada pelas legislações
anteriores, dividia o erro em erro de fato e erro de direito. O primeiro é o que
recai sobre
o fato constitutivo do delito ou sobre um de seus elementos integrantes, ao
passo que o outro - erro de direito - incide sobre a proibição jurídica do fato
praticado.
Atente-se, entretanto, a que os elementos objetivos do crime podem ser de
natureza jurídica.
A moderna doutrina penal não mais alude a erro de fato e erro de direito,
mas sim a erro de tipo ou erro sobre elementos do tipo (Tatbestandsirrtum) e
erro
de proibição ou sobre a ilicitude do fato (Verbotsirrtum).
A nova legislação sobre a Parte Geral do Código Penal, seguindo o que já
ocorrera com o Anteprojeto de 1969, adotou a moderna classificação: erro de tipo
(art.
20) e erro de proibição (art. 21). Contudo tal modificação não foi tão radical
como desejam alguns, pois a dicotomia erro de direito e erro de fato continua
presente,
como se depreende do § 1.° do art. 20 e da primeira parte do art. 21.
A diferença entre ambos foi bem exposta por Maurach: "Erro de tipo é o
desconhecimento de circunstâncias do fato pertencentes ao tipo legal, com
independência
de que os elementos sejam descritivos ou normativos, jurídicos ou fáticos. Erro
de proibição é todo erro sobre a antijuridicidade de uma ação conhecida como
típica
pelo autor".
Em trabalho ofertado ao Eg. Tribunal de Alçada Criminal de São Paulo, ao
qual pertence, o jurista Ricardo Andreucci externou o seguinte ensinamento:
"Venceu-se
o extremismo implícito entre erro de fato e de direito, substituídos, agora,
pelo erro sobre os elementos objetivos da infração penal, vistos em seus dois
aspectos,
tipo e ilicitude, e, pois, dentro, definitivamente, da teoria do crime. O
primeiro abrange o erro sobre o conteúdo, descritivo ou normativo, sem que o
intérprete
tenha necessidade, para impedir injustiças, de usar recursos dogmaticamente
incorretos, como o erro de direito extrapenal equiparado ao erro de fato. O
segundo,
sem invalidar o preceito de que o desconhecimento da lei é inescusável, mas
reduzido, em síntese, ao erro quanto à vigência, abre possibilidades, entre
outras, ao
reconhecimento do erro de subsunção" .
Exemplificando: se o agente apanha um objeto alheio, supondo ser de sua
propriedade, está diante de um erro de tipo; se o credor trabalhista por salário
apanha
dinheiro do empregador, acreditando ter o direito de assim se pagar, encontra-se
diante de um erro de proibição. No primeiro caso o agente supôs inexistir a
elementar
"alheio", elemento constitutivo do crime de furto. No segundo, desconhecia a
proibição legal agindo sobre a antijuridicidade do fato.

90. Erro de tipo. Erro de tipo, segundo definição de Damásio E. de Jesus,


"é o que incide sobre as elementares ou circunstâncias da figura típica, sobre
os
pressupostos de fato de uma causa de justificação ou dados secundários da norma
penal incriminadora".
Como referido pelo ilustre autor citado, o erro de tipo também pode recair
sobre uma circunstância qualificadora, sobre uma agravante genérica ou sobre um
pressuposto de fato de uma excludente de ilicitude.
Em palavras simples: o erro de tipo é o que faz o agente supor a
inexistência de um elemento ou circunstância que compõe a figura típica. O
agente que contrai
matrimônio com pessoa já casada, desconhecendo a existência do casamento
anterior, supõe não existir um dos componentes da figura típica caracterizadora
do crime
de bigamia.
O erro de tipo exclui o dolo, podendo o agente responder por crime
culposo. "Se o dolo exige antes de tudo o conhecimento material do fato
criminoso, o erro
do agente sobre qualquer elemento dele - seja sobre um elemento que preexista à
conduta, seja sobre um dos produzidos por ela exclui o dolo": é o ensinamento de
Eduardo Correia.
Por sua vez o erro de tipo pode ser essencial ou acidental.
O erro essencial é o que recai sobre elementares ou circunstâncias do
crime, o que faz com que o agente, em razão do falso conhecimento ou do
desconhecimento,
não possa compreender a natureza criminosa do fato praticado. No exemplo já
citado, por não saber do casamento anterior do outro contraente, o agente não
sabia da
realização da figura típica correspondente à bigamia.
Por seu turno, o erro essencial pode ser invencível ou escusável e
vencível ou inescusável. Ocorre o primeiro quando não poderia ser evitado,
agindo o agente
com a normal diligência que é exigível a qualquer pessoa; o segundo quando
poderia ser evitado diante de uma diligência normal, uma prudência comum ou um
comportamento
exigível para o homem médio.
Apura-se a invencibilidade do erro pelo critério já mencionado no estudo
da culpa, consistente na consideração das circunstâncias do fato e da situação
pessoal
do autor.
O erro de tipo invencível ou escusável exclui o dolo e, conseqüentemente,
o agente não responde por crime algum; o erro de tipo essencial vencível ou
inescusável
exclui o dolo, mas não a culpa, daí a possibilidade de o agente responder por
crime culposo, se assim previsto em lei.
O erro de tipo acidental é o que recai sobre elementos secundários da
figura típica e não aproveita ao agente.

91. Da inescusabilidade do desconhecimento da lei. Erro de proibição.


Consagrou a lei, no art. 21, primeira parte, o princípio error juris nocet: o
erro de
direito prejudica. Fundamento da irrelevância desse erro é uma razão de política
criminal. "Se fosse possível invocar como escusa a ignorância da lei, estaria
seriamente
embaraçada a ação social contra o crime, pois ter-se-ia criado para os
malfeitores um pretexto elástico e dificilmente contestável. Impraticável seria,
em grande
número de casos, a prova contrária à exceção do réu, fundada na insciência da
lei": sábias as palavras do Min. Francisco Campos na sua Exposição de Motivos de
1940.
Quanto ao indivíduo, diz Hungria, transcrevendo Von Bar, que não há
injustiça em que lhe não aproveite o erro de direito: "Cresce ele como membro da
comunhão
social, a cuja consciência jurídica deve corresponder a lei penal e por isso
tem, de regra, a clara intuição do que deve evitar para não violar a ordem
jurídica".
Não obstante, a tendência é tornar menos rígido o princípio. Códigos como
os da Letônia, Suíça e Noruega têm orientação mitigadora, pois o primeiro não
distingue
os erros, ambos excludentes do dolo (art. 41); o segundo declara: "A pena poderá
ser atenuada livremente pelo juiz (art. 66) em relação a quem cometeu um delito,
na razoável suposição de que lhe assistia o direito de agir" e que "O juiz
poderá, também, isentar o agente de toda a pena", procedendo o último de igual
modo.
Para os que aceitam a existência de um elemento normativo no dolo, para os
que acham que este não é apenas representação e vontade, mas consciência da
antijuridicidade,
é difícil justificar a irrelevância do erro de direito ou erro de proibição,
como se diz na moderna dogmática penal. Se a consciência da ilicitude falta, não

dolo e sem dolo não existe crime. A nosso ver a parêmia error juris nocet choca-
se com o conceito da culpabilidade normativa.
Vimos que, atento ao princípio que a ignorantia legis nenimem excusat, o
desconhecimento formal da lei não exclui a culpabilidade, podendo, quando muito,
funcionar
como atenuante genérica (art. 65, 11). Na atual reforma tal rigorismo foi
atenuado pelo legislador, pois, baseado na relevância da falta de consciência da
antijuridicidade
do fato, a falta de conhecimento da norma proibitiva pode levar à exclusão da
culpabilidade ou reduzir o juízo de censurabilidade.
Erro de proibição pode ser traduzido como aquele no qual incide o agente
que, por falso conhecimento ou desconhecimento, não tem possibilidade de
verificar
que o comportamento é ilícito, sendo inevitável tal situação. Portanto exige
dois elementos: a inevitabilidade e a impossibilidade do conhecimento sobre a
ilicitude
do fato. Trata-se, portanto, de um erro sobre a ilicitude do fato, através do
qual o agente supõe lícita a ação cometida.
O erro de proibição pode ser representado de duas formas diferentes:
escusável ou inevitável e inescusável ou evitável.
É escusável ou inevitável quando inafastável em relação ao homem médio,
isto é, ao prudente, e com discernimento. É o que se deflui do art. 21,
parágrafo único,
contrario sensu.
É inescusável ou evitável quando o agente é a ele levado por imprudência,
descuido, desídia, isto é, quando lhe era possível nas circunstâncias em que se
encontrava
ter um correto conhecimento.
Novamente repetimos que o critério diferenciador está no estudo da culpa,
consistente na consideração das circunstâncias do fato e da situação pessoal do
autor.
O erro de proibição, segundo Damásio E. de Jesus, pode ser encontrado em
três situações diferentes:
"a) erro ou ignorância de direito: o sujeito sabe o que faz, porém não
conhece a norma jurídica ou não a conhece bem e a interpreta mal (erro de
proibição
direto);
b) suposição errônea da existência de causa de exclusão da
ilicitude não reconhecida juridicamente (erro indireto), e
c) descriminantes putativas: o sujeito supõe erradamente que ocorre uma
causa excludente da ilicitude".

O erro de proibição atinge a punibilidade: exclui a pena quando escusável,


mitiga a reprimenda (de um sexto a um terço) quando inescusável.

92. Erro determinado por terceiro e erro sobre a pessoa. Se quem comete o
erro a ele foi levado por outrem, responde este pelo fato, que serádoloso ou
culposo,
conforme sua conduta. Se um médico entrega à pessoa da casa uma droga trocada
para ministrá-Ia ao enfermo, sobrevindo morte ou lesão deste, responde o
profissional
por crime contra a pessoa, doloso ou culposo, consoante o elemento subjetivo.
Podem, na hipótese, sobrevir situações curiosas, como quando,
ardilosamente, um indivíduo induz outro a casar com pessoa já casada. Ignorando
o matrimônio,
o contraente não comete crime, ao passo que o instigador é co-autor de bigamia.
Cumpre notar que também o induzido pode agir culposamente: se uma pessoa
entrega a outra uma arma, dizendo-lhe estar descarregada, e lhe sugere que, por
gracejo,
atire contra uma terceira, que vem a ser ferida, quem atirou pode igualmente
agir com culpa. Se ela age com dolo, isto é, se sabe que a arma está carregada e
vale-se
da ocasião para cometer um homicídio, imputando a culpa em quem lhe aconselhou o
gracejo, não há falar em indução a erro, de modo que uma responde por homicídio
doloso e a outra é isenta de pena por não haver determinado erro algum.
São as considerações que comporta o § 2.° do art. 20.
No § 3.° do art. 20, a lei do error in objecto ou error in persona. É
uma
espécie do erro acidental. Recai sobre elemento não-fundamental do fato, de modo
que sem ele o crime existiria do mesmo modo. A quer matar B e toma C por este,
alvejando-o
e prostrando-o morto. É claro que há crime, pois a vida de C vale tanto quanto a
de B.
Manda o Código se tenham em consideração as condições ou qualidades da
pessoa contra quem o agente quis agir, e não as do ofendido. Assim, se quis
matar seu
pai e mata um terceiro, será parricida; ao contrário, não haverá homicídio
agravado se desejou matar outrem que não o genitor, que, por erro, vem a ser
atingido.
Juristas alemães pretendem ver, na hipótese, concurso de delitos:
tentativa dolosa contra a pessoa que se pretendeu alcançar e crime culposo
contra a atingida.
A construção é artificiosa. Freqüentemente, a tentativa contra aquela não
passará de simples intenção. Suponha-se que, no caso apontado, A, em São Paulo,
fere C,
tomando-o por B, que se encontra, no instante, no Rio de Janeiro. É claro que o
bem jurídico de B esteve livre de qualquer ataque, esteve longe de correr
perigo.
O Código vê, na espécie, apenas um crime doloso, em face da
acidentabilidade do erro: o bem jurídico - a vida - de uma pessoa equivale ao da
outra.

93. Erro na execução. Do error in persona difere o de execução, que


constitui objeto dos arts. 73 e 74. Já agora não existe representação subjetiva
errônea
do sujeito ativo, que age contra o que desejava atuar, mas vem a alcançar objeto
diverso, embora da mesma espécie, por erro, desvio ou falha na execução. Trata-
se
da aberratio ictus: A atira em B, mas o projétil atinge C, que se acha próximo.
Ainda aqui, o Código vê apenas um crime: um homicídio. Já era solução
proposta por Carrara, "perche Ia volontà dell' agente era diretta alIa morte di
un cittadino
ed il suo braccio l'ha operata"ó. É também, dentre outros, a opinião de Beling,
para quem "el delito-tipo solo requiere 'matar a un (otro) hombre', y que, en
consecuencia
de acuerdo aI § 59, I, basta para el dolo, que el autor se haya propuesto matar
'un' hombre (no importa cual)".
Mas a opinião de Beling não é predominante na Alemanha; ao contrário, a
maioria dos juristas inclina-se para o concurso de delitos: tentativa dolosa
contra
a pessoa a que o agente visou e crime culposo quanto à atingida. É na Itália
que, se não nos enganamos, predomina a teoria da unidade de delito.
Parece-nos que a primeira opinião é mais procedente, pois está de acordo
com a realidade dos fatos. No errar in persona, é defensável o pensamento do
Código,
pois realmente a tentativa contra a pessoa visada dificilmente se configurará,
como se viu.
Mas, na aberratio ietus seu aetus, freqüentemente o delinqüente age contra
a pessoa que pretende alcançar: tem-na sob sua mira ou golpe, desfere o ataque e
só por acidente a outra é atingida. É inegável a tentativa.
Aliás, nossa lei não é muito coerente, em face do art. 73, que versa a
aberratio delieti, mandando que se puna como crime eulposo o resultado diverso
do pretendido
pelo agente (se como tal for definido), e se ocorreu também o desejado, se
apliquem as regras do concurso formal. Já agora o erro não se verifica a persona
in personam,
mas a persona in rem, ou a re in personam, o que se costuma ilustrar com o
exemplo de Maggiore, da pessoa que, lançando uma pedra contra uma vitrina, vem a
alcançar
e ferir um transeunte. Em tal hipótese, vê nossa lei um crime de lesão culposa
ao lado do dano. Não se explica, entretanto, em confronto com o que dantes ficou
estabelecido,
por que a mudança do objeto material transforma o dolo em culpa. Realmente, não
se percebe por que o fato de agora ser, v. g., uma vitrina a coisa a que o
sujeito
ativo visa (e não um homem), transforma o elemento psíquico, permitindo ver-se
dolo na ação contra ela e culpa relativamente à pessoa atingida.
Não invalida nosso entendimento o fato de acontecer que em alguns casos de
aberratio ietus - como o de envenenamento em que uma pessoa toma o tóxico
destinado
a outra - acha-se o ofendido a que se visou distante do local, pois isso também
pode ocorrer na tentativa simples: a mesma ação pode ou não caracterizá-Ia.
Entretanto,
na grande maioria de casos deaberratio, o que há, realmente, é tentativa dolosa
contra uma vítima e crime consumado culposo contra a outra.
Mal não haveria em o Código ter adotado essa opinião, que está de acordo
com a noção realística do crime.
Matéria pertinente à aberratio ictus, e sem dúvida complexa, é a referente
à hipótese em que o agente, julgando já ter conseguido o evento buscado, pratica
outro ato e é aí, então, que realmente vem a consegui-lo. Exemplo: A desfecha um
tiro em B, que, emocionado, desfalece. Julgando-o morto e com o fim de apagar os
vestígios do crime, lança o corpo a um rio, morrendo a vítima afogada.
Uns sustentam que há somente um crime: homicídio doloso. Outros opinam
existir tentativa dolosa em concurso com homicídio culposo.
Por essa opinião, manifesta-se José Frederico Marques9. Costa e Silva
refere-se ao assunto, sem concluir.
Analiticamente, pode sustentar-se que são dois os delitos. Há entre o
primeiro evento e o segundo um erro de fato: supor morto quem não o está.
Todavia cremos
que o caso comporta solução diversa da aceita por nós no caso da aberratio
ictus, onde existe pluralidade de ofendidos.
Com efeito, nessa outra hipótese, chamada por alguns aberratio causae, a
vítima é uma só. A vontade do agente é eliminá-Ia. Age impelido pelo animus
occidendi
e busca o resultado - morte - que acaba por alcançar.
O erro ocorre após o desfalecimento do ofendido e não rompe o nexo causal
entre a ação posterior e a anterior. O fato de o sujeito ativo haver atirado
contra
a vítima é doloso e é ele que determina o erro. Conseqüentemente, o evento
corresponde ao dolo de que se originou o fato em toda a sua contextura. A ação
inicial
é dolosa e é a causa sem a qual a outra - também dolosa, registre-se - não teria
ocorrido.
Defendendo essa opinião Von Hippel fala emdolus generalislO. Já Ottorino
Vannini repudia tal espécie de dolo, dizendo que o homicídio doloso se explica
pela
relação causal: "Inefficace e l' errore che, se pure essenziale, non esclude, in
quanto dolosamente provocato un nesso causale doloso fra l' evento morte e l'
azione
deI reo" .
Circunstância a que os autores não dão a devida importância é que, nos
crimes dolosos, não é mister que o dolo persista durante todo o fato: basta que
a ação
desencadeante do processo causal seja dolosa. Exemplo: uma pessoa envenena
outra, mas, arrependida (cessou, pois, inteiramente o dolo), ministra-lhe o
antídoto,
sem conseguir salvá-Ia; responde evidentemente por homicídio doloso. É o chamado
dolo precedente. Ora, se assim é aqui, em que o agente foi impelido por impulso
generoso (embora ineficaz), antitético ao dolo, por que dar solução diversa
àquele caso, em que a ação posterior ainda é má ou dolos a (ocultar o cadáver,
impedir
a descoberta do crime etc.)?
Como quer que seja, o evento que o réu dolosamente buscava ocorreu, ainda
que houvesse intervindo um erro de fato, irrelevante na espécie, pois foi
determinado
por ação antecedente criminosa e porque não faz desaparecer o fim procurado pelo
agente: a morte.
Essa solução não deve ser repudiada por nosso Código, que não vacila em
ver, na aberratio ictus, um crime doloso no fato culposo contra a pessoa que não
se
pretendia atingir.

94. Descriminantes putativasfáticas. Pode o sujeito ativo agir, supondo a


existência de situação de fato que, se existisse, tornaria sua ação legítima. É
o
estado das descriminantes putativas: legítima defesa, estado de necessidade,
exercício regular de direito e estrito cumprimento de dever legal. Assim, se uma
pessoa
se julga na iminência de ser agredi da por um inimigo, cujo gesto, ao se
aproximar dela, toma como de agressão; se, em uma sala de espetáculos, playboys
gritam fogo!
e os espectadores precipitam-se para as portas, acontecendo de uns pisarem
outros; se uma pessoa toma coisa de outrem supondo-a sua e a destrói; ou, no
exemplo de
Nélson Hungria, se a sentinela atira sobre o vulto que se aproxima, crendo-o um
inimigo, quando é um companheiro que, fugindo do campo adversário, procura
retomar
às suas linhas; ocorrem, nestes casos, causas de justificação putativas.
Em tais hipóteses, o que se passa na imaginação do agente não corresponde
à realidade. Esta lhe é inteiramente adversa. Assim, v. g., na legítima defesa
putativa,
que é o caso mais freqüente: uma pessoa que havia sido ameaçada de morte por um
inimigo vê que ele se aproxima e, já perto, olhando fixamente para ela, tira do
bolso
um objeto metálico, que é tomado por um revólver; julgando que vai ser atirada,
mais rápida saca de sua arma e a dispara contra ele. Este, entretanto, estava
desarmado
e seu intuito exclusivo era mostrar uma cigarreira que desfaria a
desinteligência entre ambos.
Não existe dolo no pseudodefendente e trata-se, portanto, de dirimente.
Distingue-se, então, a legítima defesa putativa da real. Esta é objetiva,
repousa numa
situação de fato: quem se defende está realmente sendo atacado ou ameaçado; ao
passo que na outra não: quem se julga defender é que, de fato, agride. É por
agir
crente de fazê-Io de acordo com o direito e, portanto, sem consciência da
antijuridicidade ou sem dolo que o sujeito ativo fica isento de pena. Há erro
essencial
de fato, há falsa representação da realidade que elide a culpa (em sentido
amplo), pois a pessoa julga agir no sentido do lícito, atua de boa-fé e esta é
incompatível
com o dolo (n. 79).
São fundamentais, pois, as diferenças entre a legítima defesa real e a
putativa; uma é causa excludente da antijuridicidade ou justificativa e a outra
é elidente
do dolo ou dirimente. Inadmissível é a legítima defesa objetiva contra legítima
defesa objetiva; porém pode haver legítima defesa objetiva contra legítima
defesa
putativa, e pode ocorrer esta contra aquela.
Atente-se, entretanto, a que a lei, no art. 20, § 1.°, frisa que o erro há
de ser plenamente justificado pelas circunstâncias: é mister que seja invencível
ou escusável, pois, se vencível ou inescusável, haverá culpa, praticando o
agente delito culposo (n. 92, 82 e 76).
Finalmente, tenha-se presente que a legítima defesa putativa, como ser
incompatível com o dolo, pode, entretanto, admitir o excesso doloso: é o caso em
que,
putativamente se defendendo e já tendo feito o necessário, o agente cientemente
prossegue na ação lesiva. Se o fizer por culpa, será culposo o excesso.

VIII
DA CULPABILIDADE

B) COAÇÃO IRRESISTÍVEL E OBEDIÊNCIA HIERÁRQUICA

SUMÁRIO: 95. Coação física e coação moral. 96. Causa excludente da


culpabilidade. 97. Estrita obediência. 98. Causa de exclusão de culpa.

95. Coação física e coação moral. É a coação irresistível causa que exclui
a culpa (em sentido amplo). Ocorre quando uma pessoa, mediante força física ou
moral,
obriga outra a fazer ou não fazer alguma coisa. Duas são, portanto, as espécies:
a coação física e a moral. A primeira, também chamada vis corporalis, atrox ou
absoluta,
situa-se antes no campo da causalidade: não há propriamente ação do coagido; ele
é um instrumento nas mãos do coator; a ação que desenvolve e produz o evento não
lhe pode ser imputada fisicamente. Ela é, antes, de quem o coage, isso
considerando-se como coação física somente a empregada corporalmente sobre a
pessoa do coato,
traduzindo-se no próprio movimento corpóreo dirigido ao evento criminoso'.
Compreende-se ser, então, bastante rara nos crimes comissivos, apresentando-se
antes nos
omissivos ou nos comissivos-omissivos.
Diversa é a coação moral (vis compulsiva, vis conditionalis), em que a
ação coatora se exerce sobre o ânimo do coagido, compelindo-o a agir ou deixar
de agir.
É a ameaça a forma típica da coação moral: consiste em prometer um mal a alguém.
Ela torna inculpável a ação do coagido. É exato que este, ao contrário do
que ocorre no constrangimento físico, pode deliberar e resolver; porém sua
vontade
não é livre, já que está subordinada à necessidade de evitar um dano maior.
Ilícita é sua conduta, porém não culpável, dada a anormalidade do elemento
volitivo.
Pode a coação moral ser efetivada com meios físicos, como quando, v. g., a
pessoa ameaça outra com um revólver, para que execute certo ato.
Exemplos de coação física temos no crime comissivo: por exemplo, o fato de
o indivíduo impelir o braço de outrem, para dar o golpe mortal, fato que Hungria
chama, com razão, hipótese exótica; no omissivo, quando, v. g., no exemplo do
mesmo autor, o guarda ferroviário é amarrado, para não movimentar os binários2.
Caso
de coação moral há no romance de Eça de Queiroz, O primo Basílio, em que a
criada Juliana obtém vantagens ilícitas de sua patroa Luísa, sob a ameaça de
revelar seus
adúlteros amores ao patrão.
Qualquer que seja o constrangimento, há de ser apreciado no caso concreto,
tendo-se em vista as condições pessoais do coagido. Na vis atrox é o grau de
resistência
física que, em regra, se tem presente. Na moral, é a fortaleza de ânimo,
disposição etc. do ofendido que serão apreciadas. Claro éque a ação
constrangedora, em si,
não pode ser desprezada: na física, sua intensidade, duração etc.; na moral, o
dano que deve ser grave, iminente, dependente da vontade do coator etc.
Em ambas as hipóteses - diz a lei no art. 22 - a coação tem de ser
irresistível. Se ela podia ser vencida, não ocorre a excludente da culpa: poderá
haver,
quando muito, a atenuante do art. 65, lU, c.
A violência pode ainda ser praticada por meio de inebriantes,
entorpecentes etc., não se exigindo sejam ministrados à força. Quanto ao
hipnotismo, tendo-se
em vista tudo quanto ele oferece à discussão, será também meio violento, a ser
apreciado no caso concreto.

96. Causa exc/udente da culpabilidade. Considerando-se a técnica do Código,


é a coação irresistível uma dirimente ou causa de exclusão da culpa (em sentido
amplo), pois soa o art. 22: "... só é punível o autor da coação...". Noutros
termos: não é punível o coato.
Não se trata de questão pacífica, já que outros sustentam tratar-se antes
de causa excludente da ilicitude, justificativa ou descriminante.
Tal modo de ver é improcedente. Na coação irresistível, o ato do coagido
não é lícito: o que ocorre, como em outras causas semelhantes, é que ele não é
livre.
Não há conseqüentemente dolo, porque este não pode existir sem vontade livre e
consciente. É de se ter também em conta o requisito da não-exigibilidade de
outra
conduta3, elemento, como vimos, integrante da culpabilidade (n. 54).
Refutando Von Hippel, que pensa daquele modo, escreve Mezger que "tal
critério não pode convencer, porque, então, o que exerce a coação não poderia
ser castigado,
nem como participante, nem tampouco como autor mediato (pois o que se executa
pela pessoa, vítima da coação, seria, nesse caso, conforme ao Direito)".
Aliás, se lícito fosse o ato do coagido, a pessoa, a que seu gesto
criminoso visa, não poderia defender-se, já que não há legítima defesa contra
ato daquela
natureza.
Expressamente diz o art. 22 que o coator é punido, isto é, responde pelo
crime executado pelo coagido. Como, também, pela ação contra este, que tipifica
o
constrangimento ilegal (art. 146).

97. Estrita obediência. Isenta o Código, no mesmo dispositivo, o que


cumpre ordem não manifestamente ilegal de superior hierárquico. Somente este é
punido
- é o que declara o legislador.
Abre-se, aqui, exceção para o erro de proibição. Com efeito, enganando-se
sobre a legalidade da ordem, tendo-a como lícita quando não o é, o agente
imediato
erra quanto à sua admissibilidade jurídica.
Claro é que não há de ser manifestamente ilegal, quando, então, não
poderia ensejar o erro do executor.
Pressupõe ela a existência de certos requisitos: subordinação hierárquica;
competência funcional de quem a dá; forma legal. É mister que o executor se ache
em situação de dependência funcional, relativamente a quem dáa ordem. Exclui-se
qualquer outra subordinação: é somente a hierárquica que se considera. Deve
haver
competência, isto é, emanar de pessoa habilitada a dá-Ia, bem como enquadrar-se
dentro das atribuições do destinatário. Finalmente, a legitimidade da ordem
depende
do modo ou do veículo pelo qual é transmitida, v. g., o escrito.
Se o subordinado reconhece sua ilegalidade e a cumpre, não se exime de
pena. Haverá, no caso, co-autoria em fato delituoso.
Às vezes a responsabilidade do executor salta aos olhos. Assim, se o
oficial diz a sua ordenança para quebrar certa vitrina com uma pedrada, quando
ambos passam
por um magazine, e ela cumpre a ordem, não há negar sua responsabilidade de
autor material. Outras vezes, entretanto, o caso requer cautelas e exame mais
ponderado
das circunstâncias do fato e da situação pessoal do subordinado. É caso referido
por Hungria o do soldado bisonho que atende à ordem do superior, que manda matar
o criminoso que se acha em fuga. Conseqüentemente, não só a ordem, mas também as
circunstâncias atinentes ao executor - rusticidade, atraso, tempo de serviço
etc.
-, tudo, em conjunto, há de ser apreciado no caso concreto.
O dispositivo reza que a obediência tem de ser estrita, isto é, o autor
imediato não deve exceder ao que lhe foi ordenado; se o fizer, responderá pelo
excesso,
como quando, por exemplo, um oficial diz ao subordinado para correr atrás de um
ladrão e prendê-lo, e o inferior, na corrida, saca do revólver e prostra a
tiros,
ferido ou morto, o perseguido.
A execução da ordem, pois, não deve apresentar "excesso nos atos ou na
forma da execução".

98. Causa de exclusão de culpa. Como para a anterior, nossa lei confere a
esta causa a natureza de excludente da culpabilidade.
Não se trata, contudo, de orientação pacífica. Muitos consideram-na como
causa de exclusão da antijuridicidade. Assim pensa Basileu Garcia5. Entre
alguns,
na Alemanha, Beling também se manifesta: "Él que cumpla Ia orden obra, pues,
como debe, es decir no antijurídicamente...".
Mais procedente, segundo cremos, é a opinião do Código. Quem cumpre uma
ordem, considerando-a legal, isto é, que tem o dever de executar, não age com
dolo.
Como se falou, existe aqui erro de proibição de excepcional relevância. O que
mentalmente se representa ao agente não corresponde à realidade, e, portanto, o
fato
se prende ao elemento subjetivo. Objetivamente é o ato ilícito; se não fosse,
não permitiria à pessoa, a quem a ordem visa, defender-se do ato de executor,
pois
tal defesa tipificaria, então, o crime de resistência (art. 329).
A outra conclusão leva, ainda, à consideração da presente causa como
excludente da ilicitude: não se punir quem deu a ordem, já que o ato é lícito.
Por outro
lado, convenha-se em que, se é ilícita, não é por cumpri-Ia o subordinado que
ela passa a ter licitude.
Não obstante estas considerações, não é pequeno o número dos que a
consideram justificativa. Na Itália, em face do art. 51, é a opinião comum dos
juristas:
"Giustificata e altresl l' azione criminosa compiuta per obbedienza all' ordine
gerarchico".

IX
DA CULPABILIDADE

C) DOENÇA MENTAL E DESENVOLVIMENTO MENTAL INCOMPLETO OU RETARDADO

SUMÁRIO: 99. Imputabilidade e responsabilidade. 100. Inimputabilidade. Os


critérios. 101. Doença mental. Desenvolvimento mental incompleto ou retardado.
102. Imputabilidade
diminuída. 103. Medidas de segurança.

99. Imputabilidade e responsabilidade. Já no n. 54 incidentemente tocamos


na imputabilidade, dizendo ser elemento da culpabilidade. Agora tornamos ao
assunto,
mas para tecermos poucas considerações.
A imputabilidade é o conjunto de requisitos pessoais que conferem ao
indivíduo capacidade, para que, juridicamente, lhe possa ser atribuído um fato
delituoso.
Pelos próprios termos do art. 26, imputável é a pessoa capaz de entender o
caráter ilícito do fato e de determinar-se de acordo com esse entendimento.
Sinteticamente,
pode dizer-se que imputabilidade é a capacidade que tem o indivíduo de
compreender a ilicitude de seu ato e de livremente querer praticá-lo.
Responsabilidade é a obrigação que alguém tem de arcar com as
conseqüências jurídicas do crime. É o dever que tem a pessoa de prestar contas
de seu ato. Ela
depende da imputabilidade do indivíduo, pois não pode sofrer as conseqüências do
fato criminoso (ser responsabilizado) senão o que tem a consciência de sua
antijuridicidade
e quer executá-l o (ser imputável).
Com ser a imputabilidade um pressuposto da responsabilidade, a verdade é
que os dois termos, para muitos, são, a bem dizer, sinônimos; usamse
indiferentemente.
Não apenas na doutrina, mas também nas leis. Assim éque, enquanto o Código
italiano, no Título IV, Capítulo I, usa a expressão "della imputabilità", o
suíço, no
art. 10, emprega a rubrica "responsabilite". O legislador de 1940 usou a
expressão "responsabilidade", enquanto o atual, com melhor precisão técnica,
adotou a locução
"imputabilidade penal".
A verdade é que as expressões "responsável" e "imputável",
"responsabilidade" e "imputabilidade" se revezam como equivalentes, na doutrina
e nas leis. A este
respeito, anota Costa e Silva que os alemães, tão amigos de sutilezas, não fazem
questão da diferença entre as expressões, embora de preferência empreguem a
palavra
imputabilidade; e, quanto aos italianos, uns identificam-nas e outros a
estremam.
O fundamento da imputabilidade é a vontade humana, livre e consciente.
Realmente, juízo de reprovação ou censura no conceito da culpabilidade,
sem livre arbítrio, não se compreende facilmente.

100. Inimputabilidade. Os critérios. O Código não define diretamente a


imputabilidade ou o imputável. Fê-lo indiretamente, pois se referiu ao
inimputável.
Como já dissemos mais de uma vez, a imputabilidade é elemento da
culpabilidade. Faltando ela, esta desaparece ou, pelo menos, é atenuada.
Inimputável, para a lei, é o portador de doença mental ou
desenvolvimento mental incompleto ou retardado.
Três são os critérios que buscam definí-lo. O biológico ou etiológico
condiciona a imputabilidade à rigidez mental do indivíduo. Presente a
enfermidade mental,
ou o desenvolvimento psíquico deficiente ou a perturbação transitória da mente,
é ele, sem quaisquer outras investigações psicológicas, considerado inimputável.
Seguem esse sistema os Códigos da França, Espanha, Chile, Bélgica e poucos mais.
O último, por exemplo, reza: "Il n'y a pas d' infraction, lorsque I' accusé ou
le
prévenu était en état de demence au moment du fait..." (art. 7.°). Tem ele o
inconveniente de admitir uma relação causal constante entre a enfermidade e o
crime,
quando isso não é exato, já que depende de outros fatores, como da etiologia do
mal, sua intensidade, momento etc. Ademais, suprime o caráter ético da
imputabilidade
e coloca o juiz na absoluta dependência do perito.
O segundo sistema - o psicológico - é o contrário do anterior: contenta-se
com as condições psíquicas do autor, no momento do fato, sem indagar da
existência
de causa patológica que as tenha determinado. Basta, portanto, a ausência da
capacidade intelectiva e volitiva para exculpar o agente. Como se vê, é ele vago
e impreciso,
ensejando abusos na prática e dilatando desmesuradamente a esfera da
inimputabilidade.
O outro sistema é o biopsicológico e foi adotado por nossa lei. Conjuga os
dois anteriores: inimputável é a pessoa que, em virtude de enfermidade ou
deficiência
mental, não gozava, no momento do fato, de entendimento ético-jurídico e
autodeterminação. Como escreve Aníbal Bruno, por esse critério, a presença dos
estados de
perturbação mental determina apenas uma presunção de inimputabilidade ou uma
inimputabilidade condicionada, que será julgada efetiva quando verificada
realmente
a ausência daqueles atributos psíquicos, que compõem a imputabilidade.
Para nossa lei, há inimputabilidade quando o estado patológico,
compreendido nas expressões "doença mental" ou "desenvolvimento mental
incompleto ou retardado",
acarretar a conseqüência de suprimir, no agente, a capacidade de compreender o
caráter delituoso do fato ou de se determinar consoante essa compreensão.
A existência ou não de uma causa biológica, no fato, é matéria a ser
investigada pelo perito, pelo psiquiatra. Mas ao seu pronunciamento não está
adstrito
o juiz que, aqui como sempre, conserva, no tocante às provas, a faculdade de
livre convencimento.
É o sistema biopsicológico seguido por diversas leis: o Código italiano, o
suíço, o argentino, o da Alemanha Ocidental e outros.

101. Doença mental. Desenvolvimento mental incompleto ou retardado. É a


doença mental, ao lado das já mencionadas causas, e juntamente com o
desenvolvimento
mental incompleto ou retardado, e a embriaguez completa e acidental, causa
excludente da culpabilidade.
Considerou-a o Código no art. 26, que se inspirou no art. 10 do Código
suíço, embora não haja reproduzido a expressão "grave altération de Ia
conscience" mencionada
por este.
Tem-se censurado ao legislador a denominação preferida. Fala-se em
alienação mental e psicopatia, como a mais adequada. Todavia a crítica não
procede, pois,
como escreve Costa e Silva, não se encontrou ainda fórmula que sinteticamente
compreenda toda e qualquer manifestação nosológica, de natureza psíquica, que
exclua
ou minore a imputabilidade.
Esclarece Hungria abranger a expressão as psicoses, quer as orgânicas e
tóxicas, quer as funcionais. Compreende ainda perturbações da atividade mental,
ligadas
a estados somáticos ou fisiológicos mórbidos de caráter transitório, como o
delírio febril e o sonambulismo.
Deve mesmo a expressão ser tomada em sentido amplo, abrangendo até
estados de inconsciência que não são doenças, como o sono natural.
Claro que a natureza da enfermidade mental não conta: crônica ou
transitória, constitucional ou adquirida, a conseqüência será a mesma.
Como desenvolvimento mental retardado, apresentam-se, primeiramente, as
oligofrenias, que vão desde a simples debilidade mental até a idiotia, passando
pela
imbecilidade. A primeira é vizinha da higidez mental, ao passo que o idiota é o
ponto extremo. Conseqüentemente, a imputabilidade do oligofrênico é questão de
perícia.
O mesmo ocorre com a surdo-mudez, que impede ou empece a comunicação do
indivíduo com o mundo exterior. Aliás, freqüentemente, é um sintoma de
enfermidade
mental. É ele equiparável, por sua deficiência, ao oligofrênico. Entretanto
casos há em que é educável e ajustável às condições do meio circundante. O
Código Penal
suíço contém dispositivo expresso o art. 13, segunda parte - impondo a
obrigatoriedade do exame pericial do surdo-mudo.
Com desenvolvimento mental incompleto compreendem-se os menores, fora,
entretanto, do Código Penal, ex vi do art. 27, e os silvícolas não ajustados à
vida
civilizada. Não se trata de patologia, mas de inadaptação a um viver de nível
cultural que não possuem.
As expressões usadas pelo art. 26, sem especificarem entidades
psicopatológicas, englobam enfermidades, defeitos e anormalidades que apresentam
um traço comum:
incapacidade de entender o caráter ilícito do fato ou de determinar-se de acordo
com esse entendimento. Pela primeira, entende-se a faculdade que tem a pessoa de
compreender o significado do ato que pratica, de avaliá-Io, de emitir sobre ele
um juízo de valor. Capacidade de determinação é capacidade de querer, é a
vontade
livre e consciente de fazer ou não fazer alguma coisa, consoante os motivos, os
fins etc.
Advirta-se que a falta de capacidade de entender e querer há de ser total.
Nem a outra compreensão leva o advérbio inteiramente usado pelo legislador.
Finalmente, esse estado deve existir no momento da ação ou omissão, ou, se
se quiser, da execução. Não antes (atos preparatórios) ou depois (resultado),
considerada,
entretanto, a hipótese da actio libera in causa, da qual já tratamos (n. 88) e à
qual ainda tornaremos (n. 113).

102. Imputabilidade diminuída. Entre a zona da sanidade psíquica ou


normalidade e a da doença mental, situa-se uma que compreende indivíduos que não
têm a plenitude
da capacidade intelectiva e volitiva. São eles os fronteiriços, semi-imputáveis
ou de imputabilidade reduzida.
Considerou-os o Código, no parágrafo único do art. 26, facultando
redução de pena.
Não se está em terreno pacífico. Não são poucos os que negam a existência
da semi-imputabilidade, como também os que rejeitam para eles a pena.
Assim não pensou o Código e, a nosso ver, se houve com acerto. Tais
indivíduos não têm supressão completa do juízo ético e são, em regra, mais
perigosos que
os insanos. Não são insensíveis à pena e conseqüentemente ela não é ociosa, como
pretendem alguns.
Ficou o Código em boa companhia, pois também essa é a orientação dos
estatutos suíço e italiano, que, entretanto, impõe a redução (arts. 11 e 89).
Facultativamente,
como o nosso, se conduziu o alemão, dispondo, no art. 51, § 2.°, que "Ia peine
pourra être reduite".
Compreende a imputabilidade restrita os casos benignos ou fugidios de
certas doenças mentais, as formas menos graves de debilidade mental, os estados
incipientes,
estacionários ou residuais de certas psicoses, os estados interparoxísticos dos
epiléticos e histéricos, certos intervalos lúcidos ou períodos de remissão,
certos
estados psíquicos decorrentes de especiais estados fisiológicos (gravidez,
puerpério, climatério) etc., e, sobretudo, o vasto grupo das chamadas
personalidades psicopáticas
(psicopatias em sentido estrito).
Confrontando-se o parágrafo com o artigo, verifica-se, primeiramente, que
este se refere à plenitude da inimputabilidade, ao passo que aquele se contenta
com
a existência de alguma imputabilidade. A seguir, observa-se que a expressão
"doença mental" foi substituída por "perturbação da saúde mental". Refutando as
críticas
feitas, explica Nélson Hungria que assim se fez porque, aqui, o legislador quis
se referir também a estados que não são propriamente doenças mentais, pois, se
toda
doença psíquica é uma perturbação, a recíproca não é verdadeira: "O parágrafo
único do art. 26 tinha de cuidar não só do caso em que a doença mental apenas
reduz
a libertas intellectus ou a libertas propositi, como do caso em que tal redução
provém de outras causas que, embora afetando a higidez psíquica, não têm direito
ao nome de doença".
A redução penal, como se falou, é facultativa: pode o juiz deixar de
aplicá-la; a oração do parágrafo não dá margem a dúvidas.
Ao revés do que escrevemos na 1ª edição deste, já dizíamos, no volume 2,
que o Código fixara limite mínimo ao juiz, receoso de que a redução feita por
este
pudesse chegar até a impunidade. Igual cautela teve o Código suíço, declarando,
no art. 66, que o julgador fica adstrito ao mínimo legal de cada gênero de pena.

103. Medidas de segurança. Isentando uns de pena e permitindo que se


diminua a de outros, a lei, entretanto, não olvida a periculosidade dos
delinqüentes compreendidos
no artigo em questão e seu parágrafo. Aliás, não são apenas os interesses
relativos à segurança social que se tem em vista, mas os dos próprios
inimputáveis ou semi-imputáveis.
Com essa dupla finalidade, impõe-se-Ihes medidas de segurança. Os isentos
de pena, pelo art. 26, são considerados perigosos (art. 97), o mesmo acontecendo
com os semi-imputáveis que, se assim for recomendável, poderão ser internados ou
submetidos a tratamento ambulatorial, como preconiza o art. 98. Em relação a
estes
últimos houve profunda inovação, já que não sujeitos a medida de segurança
obrigatória, mas facultativa e alternativa, quando recomendável.

x
DA CULPABILIDADE

D) A MENORIDADE

SUMÁRIO: 104. O menor infrator. 105. A legislação pátria. 106. Estatuto da


Criança e do Adolescente (Lei n. 8.069, de 13-7-1990). 107. Legislação tutelar.

104. O menor infrator. O problema do menor infrator é dos mais graves que
um povo tem de enfrentar e sua solução não é simples. Enquanto o maior sofrer
privações,
como poderá o menor subtrair-se aos seus efeitos? Inúmeros são os que começam
por não apresentar condições orgânicas que os habilitem a enfrentar as
vicissitudes
da vida. Gerados em ventres famélicos, corroídos pela sífilis e pelo álcool, são
fisicamente destituídos de condições necessárias para os embates da existência.
Que é que se pode esperar dessas crianças que vemos a perambular pelas
ruas? Magras, pálidas, pés descalços, peito nu, cobertas com andrajos, levam o
dia a
estender a mão à caridade pública. A vida, sem dúvida, é-lhes madrasta.
Escorraçado quase sempre, sem ter uma palavra de carinho, conforto ou estímulo,
vai, então,
o menor criando-se e aproximando-se da maioridade, animado por um espírito de
revolta, que o faz revelar-se contra os que não o compreendem ou não vêem o que
ele
sofre, ele que outra culpa não tem a não ser a de ter vindo a um mundo sem que
pedisse...
No terreno material, tudo lhe falta. Nem sempre tem a ma/oca que o possa
abrigar da chuva que alaga, do frio que enregela, do vento que vergasta e do sol
que
caustica. Dorme freqüentemente em plena via pública, nos desvãos das casas, sob
pontes, viadutos etc. Durante o dia bate a rua, essa grande escola do crime, à
espreita
da oportunidade propícia para obter aquilo que não lhe dão.
Encontra-se o menor nessa fase que é a da formação do caráter. É ele
amoldável e ajustável, sofrendo, por isso, a influência do ambiente em que vive.
E, agora,
ao invés da mão amiga que o ampare e conduza para o viver honesto e útil, é o
exemplo do companheiro maior que irá influir sobre ele.
Envereda então pelo crime. Primeiramente é a subtração de uma coisa de
somenos: um fruto tirado da árvore do vizinho, uma quinquilharia subtraída da
própria
casa etc. Depois, já é um objeto de algum valor que o atrai e, assim, vai, num
crescendo, pela escala do crime, aprendendo e aperfeiçoando-se. O anjo de cara
suja,
o capitão da areia, aproxima-se da maioridade penal. É agora um ladrão, um
viciado e um corrupto, estando a penitenciária à sua espera.
Não se soube ou não se pôde ampará-lo. Nós, que fomos Curador de Menores
desta Capital e Diretor-Geral do Departamento de Presídios, tivemos a desoladora
oportunidade
de ver menores abandonados e infratores integrando a população carcerária de
nossas cadeias e penitenciárias. A maioridade penal sempre chega um dia...
Há todo um programa a cumprir em torno da menoridade desvalida. Diversas
são as providências que devem ser tomadas. Não cabe, na análise de um texto do
Código
Penal, apontá-las, mas sumariamente se pode dizer que a efetivação de algumas,
que são do conhecimento geral, é necessidade inadiável.
A colocação do menor abandonado, sempre que possível, em lar bem
constituído é medida recomendável, por ser este ainda a melhor escola.
Não se pode abrir mão, entretanto, dos abrigos e educandários. O
recolhimento do menor infrator é uma triste necessidade. Mas devem esses
estabelecimentos
ser o mais possível lar e escola. Imprescindível é a triagem, separando-se o
infrator do abandonado, o pervertido do desvalido, a fim de que uns não
contaminem os
outros.
Mas a seleção também deve ser feita entre o funcionalismo. É necessário
ter vocação para lidar com crianças. Não pode nunca o Estado fazer dos
respectivos
cargos sinecuras, para distribuir a afilhados e protegidos. Deve lembrar-se
principalmente que o problema do menor é, por excelência, um problema de
coração, exigindo
devotamento e sacrifícios dos que o enfrentam.
Deve esse funcionalismo contar com aparelhamento necessário aos justos
reclamos do amparo e proteção da infância e adolescência. Alimentar o menor,
tratá-lo
quando doente, instruí-lo, submetê-lo à laborterapia adequada, ministrar-lhe
cultura física, recreação etc. são providências imprescindíveis, a fim de
ajustá-lo
e prepará-lo para a vida em sociedade.
Assim agindo, o Estado nenhum favor lhe prestará, já que, cuidando de suas
necessidades, está provendo aos seus próprios e vitais interesses. Estará
cumprindo,
aliás, a lei, a Constituição Federal, que, no art. 227, soa:

"É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança e ao


adolescente, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação,
à educação,
ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade
e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma
de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.
§ 1.° O Estado promoverá programas de assistência integral à saúde da
criança e do adolescente, admitida a participação de entidades não
governamentais e obedecendo
os seguintes preceitos:
I - aplicação de percentual dos recursos públicos destinados à saúde na
assistência materno-infantil;
II - criação de programas de prevenção e atendimento especializado para os
portadores de deficiência física, sensorial ou mental, bem como de integração
social
do adolescente portador de deficiência, mediante o treinamento para o trabalho e
a convivência, e a facilitação do acesso aos bens e serviços coletivos, com a
eliminação
de preconceitos e obstáculos arquitetônicos.
§ 2.° A lei disporá sobre normas de construção dos logradouros e dos
edifícios de uso público e de fabricação de veículos de transporte coletivo, a
fim
de garantir acesso adequado às pessoas portadoras de deficiência.
§ 3.° O direito a proteção especial abrangerá os seguintes aspectos:
I - idade mínima de quatorze anos para admissão ao trabalho, observado o
disposto no art. 7.°, XXXIII;
II - garantia de direitos previdenciários e trabalhistas;
111 - garantia de acesso do trabalhador adolescente à escola;
IV - garantia de pleno e formal conhecimento da atribuição de ato
infracional, igualdade na relação processual e defesa técnica por profissional
habilitado,
segundo dispuser a legislação tutelar específica;
V - obediência aos princípios de brevidade, excepcionalidade e respeito à
condição peculiar de pessoa em desenvolvimento, quando da aplicação de qualquer
medida
privativa da liberdade;
VI - estímulo do Poder Público, através de assistência jurídica,
incentivos fiscais e subsídios, nos termos da lei, ao acolhimento, sob a forma
de guarda,
de criança ou adolescente órfão ou abandonado;
VII - programas de prevenção e atendimento especializado à criança e ao
adolescente dependente de entorpecentes e drogas afins.
§ 4.° A lei punirá severamente o abuso, a violência e a exploração
sexual da criança e do adolescente.
§ 5.° A adoção será assistida pelo Poder Público, na forma da lei, que
estabelecerá casos e condições de sua efetivação por parte de estrangeiros.
§ 6.° Os filhos, havidos ou não da relação de casamento, ou por adoção,
terão os mesmos direitos e qualificações, proibidas quaisquer designações
discriminatórias
relativas à filiação".
O problema não é apenas dos governos. Entre nós, a iniciativa privada não
tem correspondido. O dinamismo bandeirante, que assombra o próprio estrangeiro e
que fazia Saint-Hilaire pensar numa raça diferente, nesse setor não tem operado
os milagres de que é capaz.
Oxalá o problema do menor venha a despertar ainda a atenção de governantes
e governados, como merece. Lembremo-nos, embora sem exageros ou excessos, que a
gênese do crime está, em grande parte, na infância e na adolescência
abandonadas, e que "as Nações caminham pelos pés da criança" .

105. A legislação pátria. O Código do Império declarava não-criminoso o


menor de quatorze anos (art. 10), dizendo, entretanto, no art. 13, que, se ele
tivesse
obrado com discernimento, podia ser recolhido à casa de correção, até os
dezessete anos, o que levara Tobias Barreto a dizer que, se o legislador
houvesse haurido
com mais cuidado nas fontes romanas, outros teriam sido seus preceitos a
respeito dos menores, "pelo menos no que pertence ao vago discernimento de que
trata o art.
13, e que é possível, na falta de restrição legal, ser descoberto pelo Juiz até
em uma criança de cinco anos!" 1. Aliás, consigne-se que um menor, contando
quatorze
anos e um dia, estava sujeito a ser condenado à prisão perpétua! Convenhamos
que, consideradas as condições próprias de nosso país, àquela época, era tudo
isso por
demais estranho.
O Código de 1890 continuou apegado ao discernimento. No art. 27, § 1.°,
dispunha não ser criminoso o menor de nove anos, bem como o maior dessa idade e
menor
de quatorze anos, que tivesse agido sem discernimento (§ 2.°). Tal dispositivo
foi derrogado pela Lei n. 4.242, de 5 de janeiro de 1921 (art. 3.°, § 16), que
dispôs
não ser submetido a processo algum o menor de quatorze anos, autor de crime ou
contravenção. O revogado Código de Menores (Dec. n. 17.943-A, de 12-10-1927)
também
assim prescreveu (art. 68), de modo que a Consolidação das Leis Penais, no art.
27, § 1.°, soava: "Não são criminosos os menores de 14 anos". Ainda o mencionado
diploma legal trazia outras alterações: mantinha a inimputabilidade do menor de
quatorze anos (art. 68), e determinava, no artigo seguinte, que o compreendido
entre
quatorze e dezoito anos seria submetido a processo especial, podendo ser
internado em escola de reforma pelo prazo mínimo de três anos e máximo de sete
(art. 69,
§ 3.°). No art. 71, considerava outra categoria de menores dezesseis e dezoito
anos - que, cometendo crime grave e sendo perigosos, podiam ser punidos com as
penas
da cumplicidade e da tentativa de cumplicidade; nunca, porém, as cumprindo em
companhia de adultos.
Atualmente a matéria está prevista na Lei n. 8.069, de 13 de julho de 1990,
que dispõe sobre a proteção integral à criança e ao adolescente.
A reforma atual, através de seu art. 27, reproduziu o Código de 1940 (art.
23), estabelecendo que os menores de dezoito anos são inimputáveis, ficando,
porém,
sujeitos às normas estabelecidas em legislações específicas. Abre nosso estatuto
exceção ao sistema biopsicológico por ele abraçado, pois outro é o critério aqui
acolhido: o biológico. Basta não ter completado dezoito anos para não estar
sujeito ao Código Penal. Não há, como faziam as outras leis, preocupação com o
discernimento
do menor.

106. Estatuto da Criança e doAdolescente (Lei n. 8.069, de 13-7-1990). A


questão do menor infrator, atualmente, está regida pelo Estatuto da Criança e do
Adolescente,
Lei n. 8.069, de 13 de julho de 1990.
Referido estatuto, reproduzindo o previsto no Código Penal e seguindo
nossa tradição, estabeleceu a imputabilidade penal para os menores de dezoito
anos, à
época do fato (ECA, art. 104), porém os tornou sujeitos a medidas terapêuticas,
educacionais e repressivas, denominadas "medidas sócio-educativas" .
A matéria pode ser abordada sob três prismas: natureza jurídica,
formação do processo e medidas aplicáveis.
Todo o menor de 18 anos, ao tempo do fato, que praticar um ato ou tiver
uma conduta descrita na lei penal como crime ou contravenção, portanto, ilícito
penal,
praticará uma infração, sujeitando-se a uma medida sócio-educativa.
Portanto, para que haja uma infração, é preciso, por primeiro, que
estejamos diante de um fato típico, isto é, uma figura prevista como crime ou
contravenção.
Logo, menor infrator é aquele cuja conduta subsume-se numa figura típica
criminosa ou contravencional.
O menor infrator tem seus direitos individuais e suas garantias
processuais.
Poderá ser privado da liberdade, se apanhado em flagrante por um ato
infracional ou então por ordem escrita e fundamentada da autoridade judicial
competente
(ECA, art. 106). A internação não poderá ser superior a quarenta e cinco dias e
exige decretação fundamentada, diante de "indícios suficientes de autoria e
materialidade",
demonstrada, mais, a imperiosidade da medida privativa de liberdade.
O procedimento judicial para a apuração do ato infracional atribuído a um
adolescente inicia-se por representação do Ministério Público, que se assemelha
a
uma denúncia (ECA, art. 182 e seus parágrafos).
A novidade da atual legislação foi a possibilidade de remissão por parte
do Ministério Público, ato que nos parece ser o meio-termo entre o pedido de
arquivamento
e o oferecimento de representação. A remissão, prevista em todo um capítulo (de
n. V), consiste numa forma de exclusão do processo, atendendo-se às
circunstâncias
e às conseqüências do fato, ao contexto social, bem como à personalidade do
adolescente e sua maior ou menor participação no ato infracional. Embora
remissão signifique
literalmente "livramento das conseqüências de uma falta ou de um crime",
assemelhando-se a uma extinção de punibilidade, a lei declara que sua concessão
não implica
o reconhecimento ou comprovação de responsabilidade nem prevalece para efeito de
antecedente.
O processo para a apuração de ato infracional inicia-se por representação
do Ministério Público, tem procedimento contraditório, e é obrigatória a defesa
técnica.
A remissão é possível a qualquer tempo e, aplicada após a representação,
importa na extinção ou suspensão do processo.
As medidas sócio-educativas, decorrentes do reconhecimento da procedência
de um fato que configure uma infração, são as seguintes: advertência, obrigação
de
reparar o dano, prestação de serviços à comunidade, liberdade assistida,
inserção em regime de semiliberdade, internação em estabelecimento educacional
ou encaminhamento
aos pais, orientação e apoio temporários, matrícula e freqüência obrigatória em
estabelecimento oficial de ensino e inclusão em programa comunitário, na forma
enumerada
pelo art. 112 do Estatuto.
A medida a ser aplicada pelo juiz será resultante de três fatores: a
capacidade do infrator em cumpri-Ia, as circunstâncias do fato e a gravidade da
infração.
Salvo a advertência, as medidas restantes exigem, para sua aplicação,
provas suficientes de autoria e materialidade. Por provas suficientes entende-se
as que
tornem o fato induvidoso, quer quanto à sua existência, quer no referente à
autoria.

A advertência (ECA, art. 115), forma mais branda, constitui uma


admoestação verbal, reduzida a termo.
A obrigação de reparar o dano (ECA, art. 116) importa na restituição da
coisa, no ressarcimento do prejuízo ou em outra forma de compensação
patrimonial. É
aplicável nas infrações patrimoniais, sendo substituída por outra, diante da
eventual impossibilidade de o menor cumpri-la.
Consiste a prestação de serviços comunitários (ECA, art. 117) na
realização de tarefas gratuitas de interesse geral, por período não superior a
seis meses,
efetuadas pelo menor, em entidades assistenciais, hospitais, escolas,
estabelecimentos congêneres ou então em programas comunitários ou
governamentais.
A tarefa será sempre de acordo com a aptidão do menor, em jornadas de
fins de semana, de tal sorte que não interfiram no estudo ou no trabalho.
A liberdade assistida (ECA, art. 118) consiste no acompanhamento, auxílio
ou orientação do adolescente infrator, em prazo mínimo de seis meses,
prorrogável,
se necessário, por pessoa ou entidade capaz de realizá-la.
O regime de semiliberdade (ECA, art. 120), aplicável desde o início ou
como forma de transição para o regime aberto, consiste na possibilidade da
realização
de tarefas externas.
A forma mais grave é a internação (ECA, art. 121), considerada medida
excepcional, consistente na privação do direito de liberdade. Trata-se de medida
sem
prazo determinado, devendo ser reavaliada a cada seis meses. Não poderá exceder
o máximo de três anos, e a liberdade será decretada compulsoriamente aos vinte e
um anos de idade. Trata-se de medida reservada a atos de excepcional gravidade
("Em nenhuma hipótese será aplicada a internação, havendo outra medida adequada"
-
ECA, art. 122, § 2.°), sendo aplicada em estabelecimentos apropriados e
exclusivos para adolescentes, como preceitua o art. 123 do Estatuto: "A
internação deverá
ser cumprida em entidade exclusiva para adolescentes, em local distinto daquele
destinado ao abrigo, obedecida rigorosa separação por critérios de idade,
compleição
física e gravidade da infração".
As medidas restantes - encaminhamento aos pais, orientação temporária,
matrícula e freqüência obrigatória em estabelecimento oficial de ensino e
inclusão em
programa comunitário ou oficial de auxílio à família, àcriança e ao adolescente
- ficam na dependência de sua adequação ao fato.
Os menores infratores, portadores de doenças e/ou deficiências mentais,
receberão tratamento individual e especializado, e em local adequado às suas
condições.

107. Legislação tutelar. Predomina hoje, entre os países, como regra, que o
menor deve ficar fora do direito penal e que as leis, que o tiverem por objeto,
sejam de caráter tutelar. Não se trata de punição, e sim de pedagogia corretiva.
Não há pena, mas providência educacional. É o que diz esse modelo de Juiz de
Menores
que foi MeIo Matos: "As idéias de discernimento, culpabilidade,
responsabilidade, penalidade estão definitivamente banidas das leis novas
relativas aos infantes
e adolescentes. À descabida noção de pena houve de se substituir a medida
educativo-disciplinar, mais elevada e mais humana, porque a lei deve pensar em
educar e
regenerar, antes que em reprimir e punir".
Mas essas leis de proteção e tutela devem ser aplicadas pelo Juiz da
Infância e da Juventude, cujas funções são acentuadamente administrativas. Ao
juiz, curador
e demais funcionários aplica-se o que ficou dito no n. 104. Nem o órgão da
magistratura, nem o do Ministério Público terão que se haver com intrincadas e
complexas
teses jurídicas, no desempenho de suas funções. Devem, entretanto, apresentar
predicados excepcionais de dedicação e expediente, pois as questões que se
desenrolam
naquele juízo exigem, de regra, soluções imediatas e práticas. Não é erudição
que se exige do Juiz de Menores: é coração.
A tutela do infante abandonado e infrator é básica na luta contra a
criminalidade. Esta jamais poderá ser feita com êxito e plenitude se olvidar o
problema
do menor.
Ao Juiz da Infância e da Juventude, entre outras, é atribuída a
competência de conhecer e decidir as representações promovidas pelo Ministério
Público, para
a apuração de atos infracionais.
Por seu turno, novas e importantes atribuições foram conferidas ao
Ministério Público, avultando-se entre elas a concessão de remissão com a
conseqüente exclusão
do menor do processo, o que exige, antes de tudo, um profundo discernimento
sobre nossa realidade social.
Reforçando ainda mais a tutela deste, em l. o de julho de 1954 foi
promulgada a Lei n. 2.252, que versa a corrupção de menores. Visa esse diploma
coibir a
prática de crimes por adultos, em que há exploração de incapazes, ou melhor, de
infrações penais, em que há intervenção de menor de dezoito anos.
A atual Lei n. 8.069, Estatuto da Criança e do Adolescente, trouxe todo um
título, o de n. VII, sobre crimes e infrações administrativas nas quais os
menores
são sujeitos passivos.
Temos dezessete figuras típicas criminais, em razão do acréscimo do art.
244-A à Lei n. 8.069/90 (do art. 228 ao 244-A), algumas de natureza funcional
(arts.
230, 231, 234 etc.), outras visando a proteção à saúde e a identificação (arts.
228, 229 etc.) e, por fim, a integridade física e moral do menor (arts. 232,
240,
241 etc.).
O Estatuto da Criança e do Adolescente também estabeleceu aumento de pena
nos delitos previstos nos arts. 121 e § 4.° e 136, quando a vítima for menor de
quatorze
anos.
Ao lado das figuras criminais, temos as infrações administrativas,
apenadas com multa, destinadas também à proteção e visando abusos praticados por
órgãos
de comunicação (arts. 247, 254 etc.), por médicos (art. 245), por responsáveis
por estabelecimentos de ensino (art. 245), por casas de espetáculos (arts. 252,
253
etc.), por hospedarias (art. 250), pelos pais (art. 249) e outras, indo do art.
245 ao 258.
No plano legislativo não temos descurado. Mas, no terreno das realizações
práticas, muito há por fazer.
XI
DA CULPABILIDADE

E) A EMOÇÃO E A PAIXÃO

SUMÁRIO: 108. A emoção e a paixão. 109. A posição do Código. 110. Actio libera
in causa.

108. A emoção e a paixão. Escreve Maggiore que a emoção é um estado


afetivo que, sob uma impressão atual, produz repentina e violenta perturbação do
equilíbrio
psíquico. Emoções são: a ira, o medo, a alegria, a ansiedade, o susto, a
surpresa, o prazer erótico, o pudor, a vergonha etc. A paixão é a emoção
permanente e mais
intensa (Kant, Ribot): traduz-se em profunda e duradoura crise psicológica que
ofende a integridade do espírito e do corpo, arrastando muitas vezes ao crime;
nesta
categoria entram o amor, o ódio, a vingança, o fanatismo, a inveja, a avareza, a
ambição, o ciúme etc.
Em poucas palavras: a emoção é caracteristicamente transitória, ao passo
que a paixão é duradoura; é um estado crônico, embora possa apresentar períodos
agudos.
Aquela é subitânea; esta é permanente.
Alguns classificam as paixões em sociais e anti-sociais. As primeiras
inspiram-se em motivos úteis e de valor, ao passo que as segundas se originam de
móveis
nocivos e nefastos ao interesse social.
O Positivismo Naturalista deu grande apreço a essa distinção.

109. A posição do Código. Determina-a o art. 28: "Não excluem a


imputabilidade penal a emoção ou a paixão". Não são, pois, causas de
inimputabilidade. Quem
comete um crime impelido pela emoção, ou em estado passional, não fica isento de
pena.
A posição do Código é antes ditada por motivos de política criminal. Foi
sob a impressão deixada pela famigerada perturbação de sentidos e de
inteligência
que nosso legislador se orientou.
Todavia é mister atentar-se a que há paixões que são doenças mentais e,
assim, excluem a imputabilidade, na forma do art. 26. Patológica que seja,
estamos
que o art. 28 deve ceder a essa. Diga-se o mesmo da emoção. Como fala Nerio
Rojas, ela apresenta dois aspectos: um moral e outro psiquiátrico. O primeiro
atenua
o crime ante a consciência normal da sociedade. O segundo compreende o caso
patológico, apesar de sua fugacidade, e teria (o Código argentino não admite) o
valor
de uma causa de inimputabilidade, fundada em razões médicas de perturbação grave
na vontade e na inteligência.
É o que pensamos, embora grande seja o número dos que não dispensam à
emoção e à paixão a força de dirimente. Lembram-se, sem dúvida, da advertência
de Cogliolo
de que sem paixão não há crime, e sem este é inútil o Código.
Inspirou-se nossa lei no Código de Mussolini, que, no art. 90, declarou:
"Os estados emotivos ou passionais não excluem nem diminuem a imputabilidade".
Foi
este, como se vê, mais além do que aquela. Não obstante, há incongruência na lei
peninsular, pois enquanto nesse dispositivo declara que a imputabilidade não é
diminuída,
em outros procede de modo diverso, como ocorre com o art. 587, punindo apenas
com três a sete anos de reclusão quem mata o cônjuge, a filha ou a irmã em
flagrante
adultério!
Além da exceção da emoção ou da paixão patológicas, compreendidas, segundo
cremos, no art. 26, não deixou a lei pátria de transigir com elas, ora
aceitando-as
como atenuantes genéricas (art. 65, lU, a e c) ora como causas de diminuição de
pena (art. 121, § 1.°).
No motivo de relevante valor moral e social pode abrigar-se a paixão.
Quanto à emoção, há diferença para os efeitos dados pelo Código. No art. 65, m,
c, considera-se
o crime praticado sob influência de violenta emoção provocada por ato injusto da
vítima; e no § 1.° do art. 121 tem-se em vista o domínio de violenta emoção,
logo
em seguida a injusta provocação da vítima. Conseqüentemente, lá, há influência
e, aqui, domínio, sendo este, sem dúvida, mais absorvente que aquela. Depois,
lá,
basta que a emoção tenha origem em um ato injusto da vítima; aqui, é mister que
a emoção se verifique logo em seguida, isto é, logo após a provocação da vítima.

110. "Actio libera in causa". Procuram alguns juristas3 fundar a posição do


Código, tomada no art. 28, na teoria da actio libera in causa, que já abordamos
e que ocupará nossa atenção no capítulo seguinte, ao tratarmos da embriaguez.
Outros, entretanto, repudiam tamanho elastério concedido à teoria. Escreve
Aníbal Bruno: "Com muito menos razão ainda do que em relação à embriaguez
voluntária
ou culposa, se aplicaria à emoção ou paixão o princípio da actio libera in
causa. Ninguém procura voluntária ou culposamente entrar em estado emocional.
Não é possível
equiparar esse estado ao de inimputabilidade provocada dolos a ou
imprudentemente, pelo sujeito, para a prática de um crime ou prevendo ou devendo
prever a prática
de um crime".
A nosso ver, a teoria das actiones liberae in causa não comporta a
latitude que se lhe quer dar.
O art. 28, como falamos, justifica-se como exigência de política
criminal.

XII
DA CULPABILIDADE

F) A EMBRIAGUEZ

SUMÁRIO: 111. O alcoolismo. 112. A orientação do Código. 113. O fundamento:


actio libera in causa.
111. O alcoolismo. Em sua Criminologia1, formula Afrânio Peixoto verdadeiro
libelo-crime acusatório contra o alcoolismo. Começa por dizer que é irrisão ter
o homem feito das fezes de uma bactéria - o álcool é o produto de desassimilação
de um saccharomyces - sua delícia. Mostra as desastrosas conseqüências sobre o
organismo
humano e sobre a descendência do alcoólatra. Aponta as estatísticas da
criminalidade, registrando seus índices mais elevados nos sábados e domingos e
decrescendo
daí por diante. Chama a atenção para a conduta dos governos, que não vacilam em
auferir rendas a sua custa. Lembra a dizimação que ele produziu no pele-vermelha
da América do Norte e em nosso selvagem, queimando-se antes com o cauim e mais
tarde com o cauimtatá (cachaça) que o civilizado lhe deu.
Realmente, é o álcool um dos flagelos da humanidade. O pior é que é nas
classes menos favorecidas que produz seus maiores danos. Sem aludir a outros
fatores,
a verdade é que o pobre se intoxica muito mais que o rico, pois sua bebida é a
aguardente, ao passo que as deste são o uísque, o vinho fino e o champanha. Mais
tóxica
aquela e agindo em organismos subalimentados, suas conseqüências são
profundamente desastrosas.
Esforços têm sido envidados, é certo, porém têm malogrado como na grande
República americana. Talvez o malogro se prenda à ausência de outras
providências
que devem acompanhar a interdição de sua venda.
Certamente, por isso é que as leis penais se têm estremado na punição do
delito sob a ação do álcool e de substâncias análogas, esquecidas, entretanto,
que
não é somente por meio delas que se conseguirão resultados satisfatórios, como
também que se devem acautelar quanto à consagração da responsabilidade objetiva
a
que podem ser conduzidas.

112. A orientação do Código. Declara este, no art. 28, 11, que não
produzem inimputabilidade a embriaguez voluntária ou a culposa.
Diz-se voluntária quando o agente bebe para se embriagar; culposa quando
não tem esse propósito, mas isso sucede.
Inspirou-se nossa lei na italiana, cuja prescrição, entretanto, tem
merecido censuras de vários de seus comentadores.
Conseqüentemente, aquele que cometeu um delito por estar embriagado, seja
sua ebriedade voluntária ou se tenha originado de culpa, não é isento de pena.
Cumpre notar, todavia, que se exclui a embriaguez patológica (psicose
alcoólica, cocaínica etc.). O Código Penal italiano contém dispositivo expresso
- o art.
95 - que considera a embriaguez crônica como equivalente a outras causas que
excluem ou diminuem a inimputabilidade. Tal fato tem levado alguns a acharem
estranho
que se puna o indivíduo moderado ou abstêmio que comete crime em estado etílico
e se isente de pena o que assim atravessa os seus dias. É o que faz andei,
acrescentando
tratar-se de "persone fondamentalmente viziose e immorali". Forçoso é convir,
entretanto, que, em tal caso, se trata de moléstia mental. Entre nós, têm toda a
aplicação
o art. 28 e seus parágrafos.
Distingue-se a embriaguez crônica da habitual. Diz Antolisei que "devesi
tener presente che Ia prima costituisce un'alterazione patologica di natura
permanente,
mentre Ia seconda e un' intossicazione acuta che presumibilmente cessa col
cessare dell'uso delle sostanze alcooliche".
Nos §§ 1º e 2º do art. 28, o legislador trata da embriaguez acidental,
para dizer que ela exclui ou diminui a imputabilidade.
É acidental quando provém de caso fortuito ou força maior. Embriagase,
fortuitamente, quem ignora que o está sendo. Assim, se, v. g., pessoa muito
sensível
ao álcool toma várias doses de um refrigerante, para ela desconhecido, mas ao
qual foi adicionado álcool. Dá-se a força maior quando, embora ciente de que se
está
embriagando, a pessoa não o pode evitar, tal qual acontece em camadas
inferiores, com o mau costume de obrigar-se outrem a beber, freqüentemente sob
ameaça de arma
em punho.
Não basta ser acidental a ebriedade; é mister seja compLeta, para eximir
de pena - diz o § 1.° do art. 28.
A menção traz à balha a clássica divisão dos estados de embriaguez:
incompleto, completo e letárgico. Outros os denominam: alegre, furioso e
comatoso. A primeira
fase é a do "automatismo da palavra e da mímica exageradas, movimentadas e sem
coordenação, com reações impulsivas, atitudes cômicas ou ridículas, indecorosas
ou
delituosas, devidas à liberação de mecanismos primitivos por insuficiência de
inibição e embotamento dos sentimentos éticos; a segunda fase é a da repressão e
paralisia
da esfera do psiquismo superior, com ataxia, movimentação lenta e desaprumada,
palavra pastosa, marcha titubeante ou ebriosa, erros de percepção e ideação
difícil
e vagarosa; finalmente, na terceira fase, como epílogo, aparece o sono profundo,
comatoso, de duração variável, com respiração estertorosa, entrecortado de
agitação
e de representações oníricas, terroristas, seguido de despertar confuso"4. É ao
segundo período que a lei alude, sendo óbvio que não exclui o terceiro, no qual,
entretanto, o agente só por omissão pode delinqüir.
Quanto à incompleta, ou do primeiro período, sendo acidental, faculta
diminuição de pena, consoante o § 2.° do art. 28.
Cabe dizer que a lei considera como circunstância agravante a ebriez
preordenada, isto é, quando o sujeito ativo se embriaga para delinqüir. É o que
dispõe
o art. 61, 11, L: "em estado de embriaguez preordenada".
O Código não se refere apenas à ebriedade pelo álcool, mas também por
substâncias de efeitos análogos: a cocaína, morfina, diamba (maconha) etc.

113. O fundamento: "actio libera in causa". Estamos que a consideração dada


pela lei à ebriez assenta-se numa exigência de política criminal, como, aliás,
fez
com a paixão e a emoção. Diante das nefastas conseqüências do álcool e outras
substâncias, o legislador ditou a regra do art. 28, 11, sem preocupações com o
estado
de imputabilidade do indivíduo.
Bem sabemos não ser isso o que se diz na Exposição de Motivos, pois é
invocada aí, como fundamento, a teoria da actio libera in causa, dando-selhe
amplitude
que ela não comporta. Já a abordamos no n. 88.
Para nós, o verdadeiro entendimento dessa teoria é dado por Bettiol,
quando diz que "o resultado produzido no estado de inimputabilidade deve ter
sido previsto
e querido pelo agente, e que este se tenha posto em condição de incapacidade de
entender ou de querer, para praticar o crime ou para preparar-se uma escusa"5.
A citada teoria tem plena aplicação na embriaguez preordenada, pois, fora
disto, é negar a realidade que o indivíduo, ao se embriagar, não quer cometer
crime
algum, não tem intenção de praticar qualquer delito, e só em determinadas
circunstâncias poderá ter culpa (stricto sensu), relativamente ao crime que
venha a cometer.
Ao revés, a doutrina das actiones liberae in causa exige que a pessoa livre no
momento antecedente tenha dolo ou culpa relativamente ao delito que praticará.
Não se pode, em nome dessa teoria, responsabilizar alguém pelo só fato de
poder geneticamente delinqüir, pois é preciso acentuar que, quando, na citada
teoria,
se fala em dolo ou culpa em relação ao crime que se segue, é sempre certo e
determinado o delito.
A Exposição de Motivos dá extensão muito ampla à teoria, pois acha que a
pessoa, embriagando-se, responde em virtude da ação livre na causa, porém não
mostra
o nexo psicológico (dolo ou culpa) com determinado crime. A imputação é a título
genérico, pelo crime que acaso venha a cometer: homicídio, lesão corporal,
estupro,
furto etc.
Conseqüentemente, não estamos nos domínios da actio libera in causa.
Nesta, o agente é livre na causa, que, praticada em pleno uso e gozo das
faculdades mentais,
já é ato executivo do crime, ao passo que, na embriaguez, ele não quer cometer
delito, mas somente beber. Aplicável é a teoria em casos, por exemplo, como o de
certa
enfermeira que, desejando matar o doente, adiciona veneno ao remédio que ele
tomará e, aproximando-se a hora, a fim de não presenciar a morte, toma um
narcótico,
de modo que se acha dormindo no instante da ingestão pelo enfermo. Claro é,
entretanto, que antes ela já praticou ato executivo do crime.
Compare-se este caso com o relatado por Mezger. Certo operário, homem
trabalhador, morigerado, pacífico, econômico e não dado a bebidas, teve um dia
forte
discussão com sua mulher, que, ato contínuo, abandonou-o, deixando-o com os
filhos menores. Desgostoso, sai de casa e entra em um botequim, onde se põe a
beber quase
até à noite. Volta então para casa inteiramente embriagado; vai ao berço de sua
filhinha de 6 meses, leva-a para o quintal, colocando-a sobre um cepo, e está
para
decepar sua cabeça com uma machadada, quando um filho de 11 anos, que a tudo
assistia horrorizado, empurra-o e põe-se a gritar, acudindo agora os vizinhos e
impedindo
a consumação do ato. Horas depois, no interrogatório da Polícia, chorando
desesperadamente, clamando que sua filha era tudo para ele na vida, protestando
ignorar
qual o móvel que o impeliu àquele gesto, dizia que se teria suicidado, caso
houvesse sacrificado a menor.
Agora, pergunta-se: podia passar pela cabeça desse homem, ao sair de casa
desgostoso e ao procurar o botequim, que ele iria tentar contra a vida de sua
filhinha?
A imputação só lhe poderá ser feita a título objetivo. A embriaguez não é ato
executivo delituoso, de modo que a responsabilidade não decorre da actio libera
in
causa. Em tal hipótese, estamos que haverá mesmo impropriedade da expressão
"ação livre na causa", pois a causa não é a embriaguez, e o que é livre é ela.
Nosso legislador criou um caso de imputabilidade ex vi legis. Trata-se de
ficção jurídica. Consagrou-se a responsabilidade objetiva, rejeitada pelas leis,
repudiada pela doutrina e várias vezes impugnada pela Comissão Revisora.
Inexistente o nexo psicológico (dolo ou culpa) em relação ao delito, só
pode evidentemente ser objetiva a responsabilidade.
Defende a orientação do Código, com o brilho que lhe é peculiar, Nélson
Hungria7; todavia é obrigado a afirmar que o delito será atribuído a título de
dolo
ou culpa, conforme o elemento subjetivo existente no estado de ebriedade. Se
assim é, não sabemos por que invocar-se a teoria da actio libera in causa. Se o
ébrio
pode agir com dolo ou culpa, a esse título será responsabilizado, sem ser
necessária qualquer incursão nos domínios da citada teoria.
Ainda mais: se considerarmos que o bêbado tem dolo ou culpa, no momento,
devido a uma "atitude da residual vontade", nas expressões do douto ministr08,
temos
também de admitir a possibilidade de erro. Responsabilizar-se-ia, então, o ébrio
que tirasse o chapéu de outrem, pensando ser o seu, ou que, acreditando ser
agredido,
agredisse?
A teoria das actiones liberae in causa supõe a supressão da capacidade
ética (intelectiva e volitiva) no momento do crime, porém responsável o agente
por ser
livre no instante antecedenté, quando, então, desejava cometer o delito
(imputação a título de dolo), ou devia, pelas circunstâncias em que se
encontrava, prever
que poderia vir a praticar determinado fato delituoso (imputação a título de
culpa).
Esta, a culpa, pode ser atribuída somente quando a pessoa tem que praticar
ação certa e determinada e embriaga-se, devendo saber que em tal estado não a
poderia
executar. Haverá, então, culpa stricto sensu.
Sauer nitidamente distingue as hipóteses dolos a e culposa: "Ya no era
imputable en el momento de Ia acción, que es 10 que interesa, sino solamente en
el momento
de Ia decisión de voluntad; pero el querer y el obrar forman un todo conexo de
manera que el dolo actúa también hasta Ia comisión deI hecho; el autor divide su
querer
y obrar sólo externamente en dos actos, para liberarse de Ia responsabilidad; es
decir, es simultáneamente autor mediato imputable e instrumento inimputable. DeI
mismo modo cuando se pone en estado de embriaguez aunque podía prever Ia
comisión deI delito (un conductor de automóvil se emborracha)".
Também Mezger disserta: "La actio libera in causa puede, según Ias
circunstancias concretas, ser una acción positiva o una omisión, una conducta
dolos a o
culposa". E ilustra a espécie culposa com os exemplos do ferroviário que se
embriaga e deixa de fazer a manobra com os binários, e da mãe de sono agitado,
que costuma
revolver-se na cama, e, mesmo assim, coloca perto de si o recém-nascido, vindo a
matá-lo por sufocamento e compressão.
Em tais casos, é claro que um evento certo e determinado é previsível,e,
portanto, há culpa stricto sensu.
Tudo isso é bem diferente, entretanto, do que se responsabilizar alguém
por um fato que não lhe era dado prever, quando em estado de imputabilidade.
A teoria das actiones liberae in causa é aplicável em casos de
inimputabilidade preordenada (dolo) e culpa stricto sensu, nas circunstâncias
apontadas.
Isto posto, não há dúvida de que, embora louvável o intuito do
legislador, ele, aqui, consagrou a responsabilidade objetiva.

XIII
DA ANTIjURIDICIDADE

A) O ESTADO DE NECESSIDADE

SUMÁRIO: 114. Conceito e fundamento. 115. Requisitos. 116. Exclusão do estado de


necessidade. 117. Causas do estado de necessidade. Estado de necessidade
putativo.
118. Casos legais de estado de necessidade.

114. Conceito e fundamento. Nos Capítulos VII a XII, ocupamo-nos com as


causas relativas à culpabilidade, umas excluindo-a e outras não. As que
constituirão
objeto dos capítulos a seguir são relativas à antijuridicidade (n. 53) e,
elidindo-a, denominam-se descriminantes,justificativas, excludentes da
antijuridicidade
etc.
A primeira destas é o estado de necessidade, definido no art. 23, I, e
conceituado no art. 24.
Diz-se em estado de necessidade a pessoa que, para salvar um bem jurídico
seu ou alheio, exposto a perigo atual ou iminente, sacrifica o de outrem.
Existe no estado de necessidade um conflito de bens-interesses. A ordem
jurídica, considerando a importância deles igual, aguarda a solução para
proclamá-Ia
como legítima. É óbvio que, na colisão de dois bens igualmente tutelados, o
Estado não pode intervir, salvando um e sacrificando outro. Há de manter-se em
expectativa,
à espera que se resolva o conflito.
Nem todos conceituam o estado de necessidade como faz o Código. A Escola
Clássica, por exemplo, tem-no como excludente da imputabilidade. O autor não age
livremente,
mas, antes, sob pressão de circunstâncias que produzem coação psicológica.
Florian, da Escola Positiva, também o considera como excludente da
imputabilidade1. Mezger
acha que "no procede culpablemente el que actúa en el estado de necesidad"2.
Para Sauer, "si una conducta traspasa los límites de Ia juridicidad es
ciertamente antijurídica
pero puede ser disculpada, porque y en Ia medida en que el autor en estado de
necesidad está coacionado psíquicamente, en consecuencia, en su libre decisión
de Ia
voluntad por una situación extraordinaria de necesidad..."3. Tal concepção
admite variações: uns acham que, se o bem sacrificado é de menor valor, o ato da
pessoa
será excludente da antijuridicidade; se for equivalente, alguns têm o fato como
indiferente à ordem jurídica, e outros achamno causa de exclusão da
culpabilidade.
O Código, a nosso ver acertadamente, considera-o como descriminante: "Não
há crime" (art. 23). Não age contra a ordem jurídica o que lesa direito de
outrem
para salvar o seu. Sendo ambos juridicamente protegidos, é certo que a lesão aos
interesses sociais sempre haveria, se o agente não tivesse ofendido o bem
jurídico
alheio, porque seria então o seu sacrificado. Em situação tal, é legítimo o
procedimento da pessoa, pois a lei não lhe pode impor conduta de santo ou
mártir, permitindo
a ofensa a seu bem-interesse. Não age conseqüentemente contra o direito. É
lícita a ação.
Não se impõe, ao mesmo tempo, que a pessoa ofenda o direito alheio. É uma
faculdade que ela possui - diz bem Nélson Hungria4 - e não um direito, porque a
este
corresponde uma obrigação, e no estado de necessidade não há obrigação para
nenhum dos agentes de sacrificar seus bens jurídicos. Isso porque pode haver
estado de
necessidade contra estado de necessidade.

115. Requisitos. No art. 24, conceituando a excludente de ilicitude, a lei


traça seus requisitos. O pressuposto é a existência de um direito do agente ou
de
terceiro, que é salvo com o sacrifício do de outrem. São casos clássicos: o dos
dois náufragos, em pleno oceano, sobre uma tábua que apenas pode sustentar um
deles;
o do espectador de uma casa de diversões que se incendeia e que para se salvar
fere ou mata outro espectador; o do alpinista que precipita no abismo o
companheiro,
visto que a corda que os sustenta não suporta o seu peso etc.
São elementos da justificativa: atualidade do perigo; inevitabilidade
dele; involuntariedade em sua causação; e inexigibilidade do sacrifício do bem
ameaçado.
A) Atualidade do perigo. Este é conceituado como a probabilidade de ofensa
ou lesão ao bem jurídico.

Deve ser atual ou iminente, isto é, presente ou prestes a realizar-se. "Lo


mismo que en Ia legítima defensa, el peligro puede ser actual o inminente. Esto
no ofrece duda alguna."5 A iminência é a probabilidade de elevado grau. Conforme
o caso, bastará ela. Exigir sempre a efetivação do perigo será tornar impossível
à pessoa a proteção do bem jurídico. Não comungamos, dessarte, da opinião de
José Frederico Marques6, que não admite o perigo iminente, opondo-se, aliás, à
opinião
dominante.
Mesmo que o dano já se esteja efetivando, é lícito à pessoa proteger seu
bem, para impedir que aquele se avolume ou aumente de proporções.
Assim como um perigo futuro não autoriza a justificativa, não a permitirá
o passado. Deve ele, pois, ser efetivo, quer pela atualidade, quer pela
iminência.
B) É mister seja inevitável o perigo, pois a transgressão à ordem jurídica
só pode ser admitida se o agente não tiver outro meio de conjurá-lo. A própria
fuga,
que na legítima defesa não é exigível, aqui se impõe, pois não há o vexame que,
naquela, a retirada acarreta.
Sem rigorosa apreciação, antes atendendo-se às circunstâncias do fato e ao
estado do agente, é exigível deste o emprego do meio menos nocivo possível: se
podia
apenas ferir e matou, não há, em princípio, estado de necessidade.
C) A involuntariedade na produção do perigo é outro elemento. O perigo que
exclui o estado de necessidade é só o intencionalmente provocado ou também o
originado
de culpa (stricto sensu)?
É questão das mais controvertidas. Entre nós, de um lado se alinham
Basileu Garcia, Aníbal Bruno e Costa e Silva, para os quais a provocação culposa
do perigo
não impede o estado de necessidade. De outro lado, Nélson Hungria e José
Frederico Marques sustentam o contrário.
No estrangeiro, Manzini, Antolisei e Pannain acham que o perigo provocado
dolosa ou culposamente impede a descriminante, ao passo que Battaglini, Florian,
Maggiore e Asúa defendem a opinião contrária: só o dolo, só o perigo doloso
obsta o estado de necessidade. A Costa e Silva esta parece a opinião mais
difundidas
- e de fato o é -, concluindo que com ela está o Código.
Não se pode afirmar ser esta a opinião de nosso estatuto. O fato de no
art. 24 ler-se "... perigo atual, que não provocou por sua vontade..." não é
indicativo
de dolo, já que na culpa (strieto sensu) também existe vontade
vontade na ação causal e, por exceção, até no próprio resultado. A nós nos
parece que também o perigo eulposo impede ou obsta o estado de necessidade. A
ordem jurídica
não pode homologar o sacrifício de um direito, favorecendo ou beneficiando quem
já atuou contra ela, praticando um ilícito, que até pode ser crime ou
contravenção.
Reconhecemos, entretanto, que na prática é difícil aceitar solução
unitária para todos os casos. Será justo punir quem, por imprudência, pôs sua
vida em perigo
e não pôde salvar-se senão lesando a propriedade alheia?
D) O quarto requisito é a inexigibilidade do sacrifício do bem ameaçado.
Invoca-se aqui a importância do bem ameaçado em relação ao que se sacrifica. É
mister
sejam confrontados. Claro é que a comparação não há de ser rigorosa, não se
olvidando o lado subjetivo que se apresenta na aferição do valor dos bens. É
exato também
que a lei, ao contrário da anterior, já não mais fala em mal maior, estando,
assim, sem a menor dúvida, compreendidos como estado de necessidade os casos da
tábua
e dos dois náufragos (tabula unius eapax), e de antropofagia, em que, em
expedições, morrendo à fome, os expedicionários combinam matar e comer um
companheiro etc.
Todavia os bens jurídicos oferecem uma graduação, há uma escala valorativa
e, conseqüentemente, não se pode deixar de, no caso concreto, avaliá-los
objetivamente,
embora não olvidando a situação, o estado de ânimo da pessoa. Ninguém se
recusaria a aceitar o estado de necessidade do comandante de uma aeronave, que,
na iminência
de um sinistro, mandasse atirar fora a bagagem dos tripulantes; mas por certo o
condenaria - se é que ele fosse imputável - se, para salvar a bagagem,
mandasse...
precipitar no espaço os passageiros.
A consideração objetiva do valor do bem e a subjetiva, referente à
importância que lhe confere o indivíduo, bem como a situação deste, no momento,
fornecerão
os elementos necessários para se apurar a inexigibilidade do sacrifício. Se este
era razoavelmente exigível, desaparece a causa excludente de ilicitude; porém o
juiz pode reduzir a pena de um a dois terços, na forma do § 2.° do art. 24.
Como deixamos dito no início deste número, o estado de necessidade tem por
fundamento a proteção de um direito, o que exige algumas considerações.
Primeiramente,
pode o direito ser do próprio agente ou de terceiro. Conseqüentemente, não é
excluída a regra do art. 24, quando a pessoa agiu na defesa de um bem de outrem,
o que,
aliás, taxativamente diz o dispositivo. E cumpre notar que a licitude da
intervenção do agente não depende da vontade do titular do bem em defendê-lo ou
da percepção
que ele tenha do perigo. Em segundo lugar, deve considerar-se que a lei fala em
direito alheio, isto é, de qualquer outra pessoa, inclusive a jurídica. Não foi
seguido
o exemplo de alguns estatutos, como o alemão (art. 54), que limitam o estado de
necessidade à preservação do corpo ou da vida do autor ou de um parente.
Concomitantemente,
verifica-se que o Código, em boa hora, não restringiu a espécie do bem
protegido: não só o corpo ou a vida, mas qualquer direito.
O Código Penal, em relação ao estado de necessidade, continuou consagrando
a teoria unitária, pela qual não se estabelece a ponderação de bens, não define
a natureza dos bens em conflito ou mesmo as condições de seus titulares. Por
adotar a teoria unitária e não a diferenciada não há relevância na distinção
entre o
estado de necessidade justificante e o estado de necessidade exculpante.

116. Exclusão do estado de necessidade. Não pode invocar estado de


necessidade quem tem o dever legal de enfrentar o perigo - reza o § 1.° do art.
24. Há pessoas
cujo ofício, ou função, as expõe constantemente a perigo, donde não lhes é
lícito sacrificar o bem de outrem para defender o próprio, como acontece com o
soldado,
bombeiro, guarda de penitenciária, comandante de navio etc.
Surge aqui a séria questão: a lei fala em dever legal; e o dever jurídico
impede também de invocar o estado de necessidade? Quem está preso a uma relação
contratual,
v. g., o banhista profissional, o guia de alpinistas, o médico etc., não pode
sacrificar o direito de outrem para proteger o seu?
Na doutrina alienígena responde-se negativamente. Assim Sauer: "Ciertas
personas, incluso sin deber legal expreso, deben tomar sobre sí graves
peligros", e
exemplifica não só com o soldado e o marinheiro, mas também com o médico, o
enfermeiro, o sacerdote, o professor, o pessoal de laboratório etc.lU. Veja-se
Battaglini:
"Onde subsiste a obrigação jurídica de enfrentar o perigo (militares,
particulares vinculados a contrato etc.) não pode invocar-se o estado de
necessidade"!!. No
mesmo sentido, Mezger, Pannain, Bettiol etc. De observar, entretanto, que estas
leis diferem da nossa. Assim, o Código italiano é expresso ao falar em dever
jurídico
e não legal, como faz o estatuto pátrio.
No direito indígena, Galdino Siqueira, Bento de Faria, Costa e Silva e
José Frederico Marques opinam que a relação contratual é impediente do estado de
necessidade.
Em sentido adverso se manifestam Nélson Hungria e Basileu Garcia, este embora
lamentando a redação da lei.
É exato que a Exposição de Motivos fala em dever jurídico, porém ela não é
interpretação autêntica do Código; o intérprete não está obrigado a
incondicionalmente
se lhe submeter.
Há um argumento forte a favor dos que incluem na exceção o dever
contratual, e que já tivemos ocasião de expor em crônica na imprensa; é que a
omissão é causa
de delito quando há o dever jurídico de impedir o resultado, e um dos casos
desse dever jurídico é estar o agente vinculado por contrato. Noutras palavras:
não impedir
um evento, quando a isso se é obrigado por uma relação contratual, equivale a
causá-lo. Ora, se em tal situação se pode invocar o estado de necessidade,
parece-nos
real a contradição. Lá, a inércia - existente um contrato - é criminosa por ser
causa do delito; aqui, não há crime, pois quem deveria agir no integral
cumprimento
de sua obrigação, e não o fez, assim se conduziu por se achar em estado de
necessidade.
Não obstante essa objeção, é de convir-se que o § 1.0 do art. 24 é
restrição imposta a um benefício, a uma faculdade, não nos parecendo admissível
ampliá-la
em detrimento do acusado.
Falando a lei em dever legal, isto é, emanado de lei, decreto ou
regulamento, não é fácil ampliar-se a expressão para compreender também o dever
jurídico e,
assim, o proveniente de relação contratual.
Não aplaudimos, entretanto, a orientação tomada pelo legislador. Melhor
fora se, ao invés de usar termos tão restritos, empregasse outros dizeres, como
os
do estatuto italiano: "parti colare dovere giuridico".

117. Causas do estado de necessidade. Estado de necessidade putativo. Pode


a excludente de antijuridicidade, contemplada no art. 24, provir de qualquer
causa,
exceto do próprio agente, como se expôs no n. 115. Pode originar-se, pois, do
ato humano, do fato de um irracional, da força da natureza, de um acidente etc.
A esse respeito, apresenta-se a questão bastante controvertida da agressão
do insano. A pessoa agredida por ele age em estado de necessidade ou em legítima
defesa? Na Alemanha, a maior parte dos juristas inclina-se por esta. Na Itália
não ocorre o mesmo. Manzini e Levi, por exemplo, opinam pelo estado de
necessidade.
Tal opinião é mais humana, pois torna exigível aluga do ameaçado ou agredido, o
que não é desdouro, já que o agressor é um alienado, e protege-se, ao mesmo
tempo,
a vida deste. É exato que os juristas germânicos, aceitando a legítima defesa,
sugerem, entretanto, a fuga. Cremos, todavia, não ser esta muito conciliável com
a
justificativa do art. 25.
Se o sujeito ativo supõe, por erro de fato plenamente justificado pelas
circunstâncias, achar-se em estado de necessidade, quando, na realidade, este
não existe,
é ele putativo e regulado pelo art. 20, § 1.0. Trata-se, entretanto, de causa
elidente de culpa (em sentido amplo) ou dirimente. Se o erro advém de culpa
(stricto
sensu), responderá por delito culposo.

118. Casos legais de estado de necessidade. Com ser exc1udente da ilicitude


e aplicável à proteção de qualquer direito, há dispositivos legais que têm por
fundamento
o estado de necessidade.
Assim, no art. 128, I - "aborto necessário" -, permite-se ao médico
praticá-lo, se não houver outro meio de salvar a vida da gestante. Trata-se de
estado necessário
de terceiro. Se o caso não fosse expressamente contemplado em lei, dúvida não há
de que teria aplicação a norma geral do art. 24.
No art. 150, dispondo acerca da violação de domicílio, diz a lei no § 3.0,
11, não ocorrer o delito se a entrada em casa alheia se der quando algum crime
ali
estiver sendo cometido ou na iminência de o ser. A penetração pode ocorrer tanto
para a legítima defesa como pelo estado de necessidade de outrem.
Trata o art. 154 da violação de segredo profissional, punindo quem o
revelar sem justa causa. Esta pode integrar-se no estado de necessidade.
Suponha-se o
médico que trate de certa ama, portadora de moléstia contagiosa. Se denunciar o
fato à família da criança, não praticará o delito em questão, pois haverá justa
causa
- elemento normativo do tipo - que nada mais é que estado de necessidade de
terceiro.
Outros dispositivos ainda existem, v. g., art. 269, em que não será
difícil apurar ser o interesse de terceiro ou terceiros o fundamento da norma.

XIV
DA ANTIJURIDICIDADE
B) A LEGÍTIMA DEFESA

SUMÁRIO: 119. Definição. Fundamento e natureza. Requisitos. 120. Agressão atual


ou iminente e injusta. 121. Direito próprio ou alheio. 122. Moderação no emprego
dos meios necessários. 123. Legítima defesa de terceiro, recíproca e putativa.
Legítima defesa e tentativa. 124. Estado de necessidade e legítima defesa.

119. Definição. Fundamento e natureza. Requisitos. Diz-se em legítima


defesa quem, empregando moderadamente meios necessários, repele injusta
agressão, atual
ou iminente, contra um bem jurídico próprio ou alheio.
Diversas são as teorias que procuram explicar sua natureza e fundamento,
costumando os autores reuni-Ias em dois grupos: o dos subjetivistas e o dos
objetivistas.
Os primeiros ligam a legítima defesa ao estado de espírito da pessoa, perturbada
ou coagida pela agressão (Puffendorf), ou aos motivos determinantes da repulsa
do
agredido, a evidenciarem sua ausência de periculosidade (Escola Positiva).
Já os objetivistas pensam de outra maneira. Carrara, por exemplo, parte da
idéia de que a defesa, em sua origem, é privada, justificando-se a tutela
estatal
por delegação do indivíduo: conseqüentemente, toda vez que o Estado não puder
defendê-Io, retoma ele o direito de defesa. Outros invertem os termos do
conceito,
declarando que a delegação é do Estado, a quem compete defender o indivíduo; não
o podendo fazer, transfere-lhe esse direito. Autores há que afirmam existir, na
legítima defesa, colisão de bens jurídicos, devendo prevalecer o mais valioso,
que é o agredido.
Todas essas opiniões não procedem, como é fácil verificar. Os
subjetivistas transportam a legítima defesa para o terreno da culpabilidade, o
que é insustentável,
enquanto os objetivistas ou se fundam na idéia contratualista, ou desconhecem a
essência do instituto, onde não há conflito de interesse como no estado de
necessidade
- mas ofensa a um interesse juridicamente tutelado.
Hoje, a opinião mais comum é que a legítima defesa é causa excludente de
ilicitude. A ordem jurídica exige respeito ao direito de outrem. Se este não
fosse
protegido, seria impossível a coexistência social. É mister respeitarmos o
direito do próximo para que o nosso respeitado também seja. Ora, a legítima
defesa, como
o próprio nome está dizendo, é tutela do direito próprio ou de terceiro, e,
portanto, integra-se na ordem jurídica; conseqüentemente é um direito.
É causa objetiva excludente da antijuridicidade. "Objetiva" porque se
reduz à apreciação "do fato", qualquer que seja o estado subjetivo do agente,
qualquer
que seja sua convicção. Ainda que pense estar praticando um Crime, se a
"situação de fato" for de legítima defesa, esta não desaparecerá. O que está no
psiquismo
do agente não pode mudar o que se encontra na realidade do acontecido. A
convicção errônea de praticar um delito não impede, fatal e necessariamente, a
tutela de
fato de um direito.
É, portanto, a legítima defesa "causa objetiva" de exclusão de
antijuridicidade.
São seus requisitos: a) agressão atual ou iminente e injusta; b) direito
próprio ou alheio a ser preservado; c) moderação no emprego de meios necessários
à
repulsa.

120. Agressão atual ou iminente e injusta. Agressão é o ato que lesa ou


ameaça um direito. Implica, em regra, idéia de violência. Nem sempre, porém. Nos
delitos
omissivos não há violência, e mesmo em certos crimes comissivos, como o furto
com destreza (a punga, na gíria criminal), pode inexistir violência.
Deve ela ser atual ou iminente. A legítima defesa não se funda no temor de
ser agredido nem no revide de quem o foi. Há de ser presente a agressão, isto é,
estar se realizando ou prestes a se desencadear. Não existe contra agressão
futura nem contra a que já cessou.
Nada ela tem que ver com a culpabilidade do agressor: pode ser
inimputável, como quando se tratar de um menor de dezoito anos. Lícita é a
repulsa contra seu
ataque. Relativamente ao insano, já tivemos ocasião de abordar o assunto (n.
117).
É perfeitamente compreensível a legítima defesa nos delitos permanentes,
ou seja, naqueles em que a agressão ou consumação se protrai no tempo e no
espaço,
dependente da pessoa do agente, como no seqüestro e no cárcere privado, em que a
vítima legitimamente se pode defender em qualquer momento da consumação.
Deve também a agressão ser injusta, contra o direito, contra o que é
lícito ou permitido. Opondo-se ao que é ilícito, o defendente atua consoante o
direito.
É certo praticar um ato típico. Assim, quem mata em legítima defesa executa a
conduta descrita no art. 121, porém não comete crime, porque seu gesto não é
ilícito;
conta a seu favor com uma causa que exclui a antijuridicidade do fato. Por isso
é que se diz ser a tipicidade elemento indiciário desta.
Conseqüentemente, não se lhe pode opor qualquer causa excludente do
ilícito. É inadmissível estrito cumprimento de dever legal, exercício regular de
direito
ou estado de necessidade contra ela. Pode haver estado de necessidade contra
estado de necessidade, v. g., no caso clássico da tabula unius capax; não,
porém, contra
legítima defesa.
Pode ela, entretanto, coexistir com essas outras justificativas. Se, por
exemplo, A é injustamente agredido por B, e, na repulsa, vibra neste uma pancada
com
uma estatueta de C, quebrando-a, age em legítima defesa contra B e em estado de
necessidade relativamente ao dano causado a C.
A agressão há de ser atual ou inevitável. Todavia, ao contrário do que
ocorre com a justificativa do art. 24, não é exigível a fuga, pois a lei não
pode impor
ao indivíduo seja pusilânime ou covarde.
Questão pertinente à atualidade ou iminência da agressão é a do uso
preordenado de aparelhos (offendicula ou offensacula) para a defesa. Assim, quem
eletrifica,
por exemplo, as portas e janelas de sua casa, contra possíveis assaltantes, à
noite. Argumentam alguns que a disposição do aparelho se deu quando não havia
agressão,
ao que replicam outros, e com procedência, que ele atua só no momento da ofensa.
É perfeitamente possível, por esse modo, a legítima defesa. Aliás, não se
vê a diferença que existe entre o uso de um dispositivo qualquer e o emprego de
um
cão para a defesa da propriedade.
O argumento de que pode ser colhido quem não está agredindo não procede.
Tudo se resume na apreciação do fato, que, como nos outros casos de legítima
defesa,
pode comportar excesso. Quem eletrifica a porta de sua casa, que dá para a
calçada da rua, age com culpa manifesta, senão com dolo, pois qualquer
transeunte pode
tocar ou encostar nela. Entretanto, quem assim fizer com a porta de uma casa
rodeada de jardins e quintais e cercada por altos gradis e muros, de modo que é
necessária
a escalada, à noite, para tocar naquela, não age com culpa stricto sensu. De
observar ainda que na predisposição de meios deve haver também moderação - outro
requisito
da justificativa. Para se proteger o patrimônio, v. g., com uma corrente
elétrica, não é preciso que seja fulminante: uma descarga forte dissuadirá o
mais animoso
amigo do alheio.
Quanto à ausência de provocação, o Código de 1940 modificou o anterior que
exigia a sua inexistência no art. 34, n. 4: "Ausência de provocação que
ocasionasse
a agressão". A reforma atual reproduziu integralmente o Código de 1940. Em
princípio, a injustiça da agressão provém da ausência de provocação, porém tal
não é exigível.
Ela existe, mesmo que haja provocação do defendente, pela simples razão de que
ele não pode, por esse motivo, ficar à discrição do provocado. Costuma dizer-se
que
o auetor rixa e não fica à disposição do auetor pugnae. Excetuam-se,
naturalmente, os casos em que a provocação já é agressão ou simples pretexto
ardiloso para provocar
o ataque e ofender o agressor.
A agressão há de ser atual ou iminente, porém não se exclui a
justificativa contra os atos preparatórios, sempre que estes denunciarem a
iminência de agressão:
o subtrair a pessoa a arma que um indivíduo comprou para matar um terceiro não
constitui furto, agindo ela em legítima defesa de terceiro.
Pode, na repulsa legítima, o defendente atingir outra pessoa (aberratio
ietus). O fato, consoante a regra do art. 20, § 3.°, deve ser considerado como
se praticado
fora contra o agressor.

121. Direito próprio ou alheio. A agressão pode ser dirigida contra


qualquer bem jurídico. Não existe mais, hoje em dia, a limitação à tutela da
vida ou da
incolumidade física. Como declara expressamente a lei, o direito tanto será do
defendente como de terceiro.
A honra, sendo um bem, pode ser defendida legitimamente. Possui ela
várias acepções que devem ser consideradas isoladamente.
Comporta o instituto a repulsa física contra as injúrias verbais?
Alguns entendem que não. Inscreve-se nesse número Basileu Garcia: só os
direitos suscetíveis de violação material podem ser protegidos. Assim não
entendemos.
O injuriado pode opor-se fisicamente às ofensas, fazendo-o, entretanto, com o
necessário comedimento. Se uma pessoa está sendo ofendida por outra e lhe
desfecha
um tiro de revólver, é difícil sustentar-se emprego de meio adequado. Todavia,
se ela se limitar a subjugar fisicamente o adversário, tapar-lhe a boca, ou
mesmo
dar-lhe um tapa ou um soco, não é de se excluir peremptoriamente a legítima
defesa.
Argúi-se que, no caso, a repulsa ocorre quando a agressão cessou, pois a
injúria já foi proferida. Parece-nos claro, entretanto, que ela é exercida
contra
a continuação das ofensas e, dessarte, na iminência de outras. Aliás, deve
atentar-se, como pondera o ilustre magistrado Célio de MeIo Almada, a que, na
prática,
o que geralmente sucede é que as ofensas verbais geram uma discussão acalorada e
um estado de exaltação de ânimos que prenuncia o perigo de uma agressão real.
A honra, como substrato sexual ou de pudor, pode ser legitimamente
defendida. Ninguém certamente negará legítima defesa à mulher que esbofeteia o
desclassificado
que indecorosamente a está importunando, ou mata o que tenta estuprá-la.
Ponto forçado a considerar é se age em legítima defesa da honra o marido
que mata a esposa colhida em flagrante adultério.
Não existe legítima defesa no caso. A honra é um atributo pessoal, próprio
e individual. Por que se dizer desonrado o marido que, ao se saber iludido,
divorcia-se
ou desquita-se? Se ele se porta com dignidade e correção no convívio social, por
que será desonrado? E sobretudo por que se colocar sua honra na conduta abjeta
de
outra pessoa e, principalmente, numa parte não adequada de seu corpo? Desonrada
é a prevaricadora. É absurdo querer que o homem arque com as conseqüências de
sua
falta. É dizer com Sganarello: "Elles font Ia sottise et nous sommes les sots".
Não existe legítima defesa no caso; o que há é, na frase brutal mas verdadeira
de
Léon Rabinovicz, orgulho de macho ofendido. Aliás, em regra, esses
pseudodefendentes da honra não passam de meros matadores de mulheres: maus
esposos e péssimos
pais. A opinião generalizada é de não existir legítima defesa da honra em tais
casos.
Questão mais complexa surge. Se a mulher, colhida em adultério, é atacada
ou, na iminência de o ser pelo marido, mata-o, age em legítima defesa? Basileu
Garcia,
que não concede a justificativa ao cônjuge enganado, não a outorga, neste outro
caso, também à esposa.
Ainda aqui não concordamos.
Com efeito, como já ficou dito, a provocação não deixa à disposição do
provocado o provocador. Depois, se o marido não age em legítima defesa, como
negar-se
esta à mulher? De duas uma: ou a agressão do marido é justa ou injusta. Se
justa, não se lhe pode negar a legítima defesa da honra, porém, se é injusta,
tem a mulher
o direito de se defender.
A idéia de que esta, em tal hipótese, comete delito, vem de longe.
Impallomeni chega a sustentar que ela pratica crime culposo, pois agiu com
imprudência ou
falta de observância de disciplina, ao que jocosamente Manzini diz: "E perchê
non d'imperizia profissionale?".
De toda a procedência as palavras desse jurista: "Isto posto, surge
certamente no provocador agredido a faculdade de repelir pela força a violência
vingadora
do outro, que é bastante desproporcionada à causa, pelo menos para os que
colocam a honra em uma sede mais nobre do que a venerada pelos diversos
escritores que
declamam a favor dos sangüinários". E linhas adiante conclui que o marido deve
agir sob a própria responsabilidade e correr o risco de sua violência, coisas às
quais,
em todas as relações da vida, deve qualquer pessoa submeter-se.
Uma coisa parece-nos inegável: no estágio atual da civilização, o marido
não tem o jus vitae ac necis sobre a mulher e seu amante.
Quanto a este requisito do instituto, pode dizer-se que todos os direitos
são suscetíveis de defesa, não se exigindo a ofensa material, já por falar a lei
genericamente em direito, já porque a palavra agressão não tem o sentido
restrito de ataque físico ou corpóreo.

122. Moderação no emprego dos meios necessários. Trata-se da moderação da


repulsa ao ato do agressor. É a legítima defesa moderamen inculpatae tutelae.
Exige
o uso moderado de meios necessários, indo desde a simples defesa até a ofensiva
violenta, tudo dependendo da intensidade da agressão.
Deve atentar-se para a situação em que se viu o defensor, pesar e medir as
circunstâncias que o rodeavam, a fim de se concluir se os meios foram os
devidos.
A proporcionalidade que deve existir entre os meios agressivos e os defensivos é
relativa, não pode ser exigida com rigor absoluto. Se um homem é atacado pelo
campeão
mundial de boxe, luta livre ou judô e defendese com um revólver, não há negar-
lhe a legítima defesa. Estranho seria que lhe fôssemos exigir troca de golpes
com ele.
A moderação no emprego dos meios e sua necessidade hão de ser verificadas
objetivamente, no caso concreto. Como escreve Asúa: "Para que se dê legítima
defesa
perfeita, há de existir proporcionalidade entre a repulsa e o perigo causado
pelo ataque, medida individualmente em cada caso, porém não subjetivamente, mas
consoante
o critério proporcionado pelo homem comum (razonable) que nesse instante e
circunstâncias se vê agredido".
Mas no exame do fato não se pode desprezar o valor dos bens: o ameaçado ou
agredido pelo ataque e o lesado pela repulsa. Discordamos, dessarte, do eminente
Hungria, quando defende ponto de vista contrário, não aceitando o
sentimentalismo latino, que se opõe à corrente germânica. Já não se fala em
casos como o do avarento
chacareiro que abate mortalmente o menino que lhe está tirando uma fruta de sua
árvore; mas mesmo em outros casos, v. g., do indivíduo que prostra com tiro de
revólver
o ladrão que lhe está subtraindo um lenço. O meio empregado não pode olvidar o
valor do bem em perigo. Têm aplicação ainda, aqui, dizeres de Asúa: "Si Ia
legítima
defensa es más que un estado de necesidad, pero presupone éste, ha de quedar
limitada por Ia regIa deI interés preponderante debido a su legitimidad y
naturaleza.
Por ende, no podemos sacrificar el bien superior para defender otro
insignificante, con 10 que negamos a conclusiones opuestas a Ias mantenidas en
Alemania.
É comum sustentar-se que só existe legítima defesa quando há consciência
ou vontade de defender-se, como escreve o eminente Aníbal Bruno.
Não comungamos dessa opinião. A legítima defesa é causa objetiva
excludente da antijuridicidade. Situa-se no terreno físico ou material do fato,
prescindindo
de elementos subjetivos. O que conta é o fim objetivo da ação, e não o fim
subjetivo do autor. Como acentua Mezger, "não pertence à defesa o conhecimento
do ataque,
nem a intenção de defender-se ou defender outro"". Se, v. g., um criminoso se
dirige à noite para sua casa, divisando entre arbustos um vulto que julga ser um
policial
que o veio prender e, para escapar à prisão, atira contra ele, abatendo-o, mas
verifica-se a seguir que se tratava de um assaltante que, naquele momento, de
revólver
em punho, ia atacá-lo, age em legítima defesa, porque de legítima defesa era a
situação. O que se passa na mente da pessoa não pode ter o dom de alterar o que
se
acha na realidade do fato externo (n. 119).
Conseqüentemente, não se exclui a legítima defesa do ébrio, do insano
etc., quando a situação externa era a de quem legitimamente se defende.

123. Legítima defesa de terceiro, recíproca e putativa. Legítima defesa e


tentativa. Já se disse que a defesa tanto pode ser própria, como de outra
pessoa.
A ordem jurídica tutela o bem do indivíduo contra a agressão injusta ainda que a
proteção se efetive por outra pessoa. E mais: se o titular do direito ameaçado
não
tiver disponibilidade dele, é lícita a intervenção de terceiro ainda que aquele
consinta na lesão, tal qual se dá na eutanásia.
A lei não podia olvidar a legítima defesa de terceiro, que se funda no
elevado sentimento da solidariedade humana.
Não existe legítima defesa recíproca. Têm sido apontados exemplos que
aparentemente parecem contradizer o que se afirma, mas não procedem. Se, para
haver legítima
defesa, é mister existir agressão injusta, não se compreende como esta possa ser
ao mesmo tempo justa e injusta: ilícita para caracterizar a legítima defesa de
um,
e lícita (quando não será agressão) para autorizar a justificativa do outro.
É exato que na prática, tratando-se de lesões recíprocas, e não podendo o
juiz estabelecer a prioridade da agressão, absolve os dois por legítima defesa.
Trata-se
de mero recurso, para não se condenar um dos protagonistas que é inocente. Isso,
entretanto, não destrói a impossibilidade da legítima defesa recíproca.
Pode ocorrer legítima defesa putativa (n. 95) contra a real ou objetiva.
Assim, se A, julgando justificadamente que vai ser agredido por B, dispara um
tiro
de revólver neste, que, antes de ser atirado pela segunda vez, atira também
contra A. Esse age em legítima defesa putativa, pois as circunstâncias o levaram
a erro
de fato essencial, e B atua em legítima defesa objetiva. As situações, porém,
são diversas: um tem a seu favor uma dirimente ou causa de exclusão da culpa (em
sentido
amplo), ao passo que o outro se socorre de excludente da antijuridicidade.
Se a legítima defesa exclui a ilicitude do crime consumado, exclui também
a do tentado. Noutras palavras: nada impede, ao contrário do que o Tribunal de
Justiça
deste Estado tem sustentado, algumas vezes, que alguém em legítima defesa tente
matar seu agressor. Se a tentativa se distingue do crime consumado,
exclusivamente
porque num ocorre o evento ou resultado, ao passo que no outro não, sendo o
elemento subjetivo o mesmo (não existe dolo de tentativa) e a mesma a execução,
não se
compreende por que se possa matar em legítima defesa e não se possa tentar
matar.

124. Estado de necessidade e legítima defesa. Do estudo dos dois institutos


verifica-se que eles apresentam característicos próprios que os distinguem. No
estado
necessário há conflito de interesses jurídicos. Na legítima defesa há ataque a
um bem tutelado. Naquele inexiste agressão, pois cada um dos personagens defende
o
seu direito, ao passo que não há legítima defesa sem agressão. Só existe
legítima defesa contra a ação humana, ao passo que o estado de necessidade pode
provir desta,
como da de um irracional e da força da natureza (incêndio, terremoto, inundação
etc.). Na legítima defesa a repulsa é sempre dirigida contra o agressor, ao
passo
que na outra descriminante a ação do necessitado pode dirigir-se contra outrem,
alheio ao fato: se um ciclista vê que um automóvel está para ir de encontro a
ele
e lança mão de qualquer meio contra o chofer, para que se detenha na marcha, age
em legítima defesa; se, entretanto, precipita sua bicicleta para o passeio,
ferindo
um transeunte, atua em estado necessário em relação a este.
Costuma-se dizer que na legítima defesa há uma relação entre indivíduos,
ao passo que no estado de necessidade há sempre relação entre o agente e o
Estado.
Sintetizando, pode dizer-se que o estado necessário é ação e a legítima
defesa, reação.
xv
DA ANTIJURIDICIDADE

C) ESTRITO CUMPRIMENTO DE DEVER LEGAL. EXERCÍCIO REGULAR DE DIREITO


SUMÁRIO: 125. Estrito cumprimento de dever legal. 126. Exercício regular de
direito. O costume. 127. Consentimento do ofendido. Violência nos desportes.
Intervenção
médico-cirúrgica.

125. Estrito cumprimento de dever legal. O fundamento desta descriminante


salta aos olhos: a lei não pode punir quem cumpre um dever que ela impõe. Seria
estranho,
por exemplo, punir-se o carrasco porque executa as penas capitais.
Por esta razão, alguns acham supérfluo o dispositivo. Todavia a menção
expressa tem o mérito de esclarecer que se deve ter presente qualquer lei, como
também
por que a descriminante fica subordinada ao rigoroso cumprimento do dever.
Vê-se, portanto, que este promana tanto da lei penal como da extrapenal,
isto é, civil, comercial, administrativa etc. Mas há de provir de uma regra de
direito
positivo: lei, decreto, regulamento, enfim, a norma geral, ditada pela
autoridade pública na esfera de suas atribuições. Conseqüentemente, não contam
os deveres
sociais, morais e religiosos.
Vários são os casos em que um fato típico pode ser praticado em estrito
cumprimento de dever legal, sendo um dos mais comuns o emprego da força pública.
Na
manutenção da ordem é facultado à autoridade usar violência, desde que esta seja
necessária para triunfar o princípio de autoridade e reinar a paz e a
tranqüilidade
necessária à vida comunitária. Ao contrário, o nãoemprego da força em casos tais
pode traduzir, no mínimo, frouxidão, incorrendo a autoridade em sanções
administrativas,
quando não penais, por crime contra a administração pública. Se, entretanto,
exceder os limites da lei, responderá pelo excesso.
Como escreve Ferri: "A execução da lei é uma necessidade imprescindível da
organização jurídica, que se distingue das outras normas reguladoras da conduta
social, precisamente pela coerção física das suas sanções pessoais ou
patrimoniais. Os funcionários e agentes públicos têm o dever de executar e de
fazer executar
a lei, usando das faculdades a eles reconhecidas pela própria lei. Pelo que os
atos por eles realizados no cumprimento deste dever - mesmo com o uso das armas,
nos
casos previstos pela lei -, muito embora danificando ou suprimindo interesses e
direitos individuais (propriedade, liberdade pessoal, vida etc.), são secundum
jus
e, portanto, sem caráter criminoso, a menos que não ultrapassem em excessos,
determinados por motivos anti-sociais, pelos quais o funcionário público abusa
do seu
poder".
Entende Soler que a violência empregada pelo agente do Poder Público para
vencer a resistência não constitui legítima defesa, mas estrito cumprimento do
dever
legal 2. É óbvio, entretanto, que as duas excludentes de ilicitude podem
coexistir: se um soldado fere um criminoso, pego em flagrante, não só para
efetivar a prisão
como para repelir a agressão por ele praticada, não há negar a coexistência das
duas descriminantes.
Vem a talho o art. 292 do Código de Processo Penal, autorizando o executor
a empregar os meios necessários para se defender ou vencer a resistência oposta
à prisão em flagrante ou determinada por autoridade competente.
Advirta-se, por fim, que dever legal não é só o referente ao funcionário
público e atinente a seu cargo ou função, mas também ao particular.

126. Exercício regular de direito. O costume. Direito e crime são


antíteses: onde há delito não há direito, onde existe direito não é possível
crime.
Em face disso, pode conjeturar-se da desnecessidade de a lei configurar o
exercício regular de direito. Entretanto não é ociosa a capitulação porque, uma
vez
efetivada, temos ocasião de inteirar-nos de problemas que surgem acerca dessa
causa excludente da antijuridicidade.
Freqüentemente, pode praticar-se um fato típico sem que haja crime. O mais
comum, talvez, seja o castigo paterno, em que é atingida a incolumidade física,
o que se justifica pelo exercício regular de direito, pois o castigo corporal é
inerente ao pátrio poder, embora paulatinamente vá desaparecendo.
Tem ele, entretanto, de se conservar dentro de certos limites; não deve
ultrapassar determinado linde porque, caso contrário, já não haveria exercício
regular
de direito, porém o delito do art. 136 do Código Penal, denominado "maus-
tratos", que veda o uso abusivo de meios de correção ou disciplina.
O exercício regular de direito pode propiciar também a figura delituosa do
art. 345 - "Exercício arbitrário das próprias razões". A violência é elemento
constitutivo
dessa figura, e, se alguma dúvida pudesse haver, bastaria ler o parágrafo único,
que encara a hipótese em que não há emprego de violência.
No art. 502 do Código Civil, vemos tratado o "Esbulho possessório"; o
possuidor, turbado ou esbulhado em sua posse, pode manter-se ou restituirse com
o emprego
de força, contanto que o faça logo. Permite-se o emprego de força no caso de
turbação ou esbulho desde que, entretanto, o prejudicado a use imediatamente.
É comum dizer-se que no caso de esbulho há legítima defesa de um bem, que
é a posse. Nem sempre, porém. Suponha-se o caso de um senhorio expulsar
violentamente
o inquilino da casa que ele ocupa, mediante contrato. A posse é do locatário,
que pode empregar força para recuperá-la. Não existe legítima defesa, porém. A
agressão
já cessou e não se compadece essa justificativa com agressão finda. Ao revés, o
esbulhado estará no exercício regular de direito, recuperando a posse.
Vê-se, pois, que a excludente de ilicitude, aqui capitulada, tem conceito
bastante amplo, podendo advir de preceitos extrapenais.
O costume, como lembra José Frederico Marques, legitima também certos
fatos típicos. Assim, o trote acadêmico, em que as violências, injúrias e
constrangimentos
que não são antijurídicos porque longo e reiterado costume consagra o "trote"
como instituição legítima.

127. Consentimento do ofendido. Violência nos desportes. Intervenção


médico-cirúrgica. Não contém nosso Código disposição idêntica à do art. 50 do
Código Penal
italiano: "Não é punível quem lesa ou põe em perigo um direito, com o
consentimento da pessoa que desse direito pode validamente dispor". Tal
disposição não é inteiramente
despicienda, como se pretende, embora não seja sua omissão de graves
conseqüências.
A matéria do consentimento do ofendido apresenta alguns aspectos.
Primeiramente, direito há, para cuja lesão é inoperante o consentimento do
titular. São fundamentais para os Estados, são eminentemente sociais, como, v.
g.,
a vida humana.
Outros bens jurídicos existem que não são lesados desde que haja
consentimento do ofendido. Assim, no furto, a subtração da coisa alheia só se dá
invito domino,
isto é, contra a vontade do senhor (dono ou possuidor).
O dissenso é, então, elemento típico. Faltando ele, não tem o fato
tipicidade.
Dá-se o reverso outras vezes: o consentimento do ofendido é elemento do
tipo - o rapto consensual (art. 220), ou seja, a tirada do lar doméstico de
mulher
maior de quatorze e menor de vinte e um anos, com seu consentimento, e para fim
libidinoso.
Finalmente, casos existem em que o consentimento do ofendido funciona como
excludente da ilicitude. São requisitos do consentimento: uma vontade
juridicamente
válida, isto é, que a pessoa que o deu o possa realmente dar, e a
disponibilidade do bem pelo consenciente, já que, se ele a não tiver, se ela
couber ao Estado,
é irrelevante, conforme se acentuou há pouco. Como escreve Aníbal Bruno, cujas
considerações temos acompanhado: "Os crimes contra o patrimônio constituem a
grande
categoria de fatos cuja antijuridicidade pode ser impelida pelo consentimento.
Aí, o interesse predominante é evidentemente de ordem privada, salvo os casos de
exceção,
em que o interesse público torna o bem irrenunciável. Mesmo naqueles em que o
fato de ser o ato do agente contrário à vontade do ofendido não é elemento do
tipo,
o consentimento exclui a possibilidade de crime, por ausência de
antijuridicidade. Não há, por exemplo, crime de dano, se o dono da coisa
consente na sua destruição,
nem viola direito de autor quem age com o consentimento do titular do
bem".
No mais, o consentimento é inoperante.
Assunto que tem aqui sua oportunidade é a violência desportiva.
Esportes há, como o boxe, a luta livre, o jiu-jitsu, o futebol e outros,
em que há emprego de violência. Esta, contudo, não constitui delito porque
ocorre
exercício regular de direito, que se funda na permissão e regulamentação do
Estado e no consentimento válido dos que participam dessas práticas. Aquele dita
as regras
que têm de ser observadas e assegura a realização. Estes, tomando parte em tais
jogos, sabem que irão dar e receber golpes.
Claro é que, como em outros casos de exercício regular de direito, podem
intervir o caso fortuito, o dolo e a culpa. Se, entretanto, o participante se
conserva
estritamente dentro em as regras do esporte, por piores que sejam as
conseqüências (como a morte que não é a finalidade de qualquer deles), a conduta
é lícita.
Diga-se o mesmo da intervenção médico-cirúrgica, em que também, ao lado do
consentimento do paciente, há a regulamentação da cirurgia, cuja necessidade é
irrecusável,
incumbindo-se o Estado de regulá-la, fiscalizá-la etc., de tudo isso se
originando o exercício regular de quem a pratica.
XVI
DA ANTIJURIDICIDADE DO EX CESSO PUNÍVEL

SUMÁRIO: 128. Do excesso. 129. Do excesso punível no estado de necessidade. 130.


Do excesso punível na legítima defesa. 131. Do excesso punível no estrito
cumprimento
de dever legal e no exercício regular de direito.

128. Do excesso. No que diz respeito aos casos de exclusão de ilicitude, a


legislação atual apresenta uma inovação feliz ao aplicar o excesso punível a
todas
as hipóteses contempladas (art. 23, parágrafo único), o que não ocorria com o
Código de 1940, que apenas aludia à legítima defesa e assim mesmo tão-só à forma
culposa.
Excesso significa a diferença a mais entre duas quantidades. Há, em tese,
excesso nos casos de exclusão de ilicitude quando o agente, ao início sob o
abrigo
da excludente, em seqüência vai além do necessário.

129. Do excesso punível no estado de necessidade. No estado de necessidade


(art. 24), agindo em defesa de um bem jurídico colocado em situação de perigo, o
agente, no que diz respeito aos meios usados, pode apresentar três
comportamentos distintos:
a) usa de um meio proporcional ao perigo;
b) usa de um meio desproporcional em relação ao perigo apresentado; e
c) usa de um meio proporcional, porém intensifica desnecessariamente sua
conduta.
Na primeira hipótese (proporcionalidade) há o reconhecimento do estado
de necessidade, com todos os seus requisitos.
Na segunda (desproporcionalidade) fica excluído o estado de necessidade
por não haver um de seus elementos constitutivos, justamente a proporção entre a
situação
fática de perigo e o meio removedor usado. É o que ocorre, a título de exemplo,
com o pescador que danifica e afunda um outro barco para salvar sua rede de
pesca
que nele se enganchara.
Na terceira (intensifica além do razoável) há o excesso, pois ao início o
agente encontrava-se numa real situação de necessidade, exorbitando ao depois,
quando
do uso dos meios de execução para a defesa do bem. Em outras palavras: o agente
usa dos meios necessários e proporcionais, mas vai além do necessário a tanto. É
o excesso, conhecido como excesso na ação ou excesso no meio.
Exemplificando: para fugir de um prédio em chamas o agente danifica uma
parede intermediária que permite a passagem a um outro edifício. No segundo
prédio,
já seguro, quando não mais em perigo, danifica um obstáculo para ganhar o
exterior. O excesso está na segunda fase, no segundo dano, em relação ao qual
responderá.
O excesso em questão poderá ser doloso, quando o agente conscientemente
supera os limites razoáveis, ou culposo, quando vai além em razão de uma das
formas
representativas da culpa.
Responderá pelo excesso - excesso punível - doloso ou culposo, conforme a
hipótese.
130. Do excesso punível na legítima defesa. Ao reagir à agressão injusta
que está sofrendo, ou em vias de sofrê-la, em relação ao meio usado o agente
pode encontrar-se
em três situações diferentes:
a) usa de um meio moderado e dentro do necessário para repelir a agressão;
b) de maneira consciente emprega um meio desnecessário ou usa imoderadamente o
meio necessário; e
c) após a reação justa (meio e moderação) por imprevidência ou
conscientemente continua desnecessariamente na ação.
No primeiro caso haverá necessariamente o reconhecimento da legítima
defesa.
No segundo caso (meio desnecessário ou sem moderação) a legítima defesa
fica afastada por excluído um de seus requisitos essenciais. Note-se que a
exclusão
pode ocorrer quer por imoderação quanto ao uso do meio, quer pelo emprego de um
meio desnecessário.
No terceiro (início justo, continuidade desnecessária) agirá com excesso,
isto é, o agente intensifica demasiada e desnecessariamente a reação
inicialmente
justificada.
O excesso poderá ser doloso, quando conscientemente o agente vai além do
necessário à reação, ou culposo, quando, por imprevisão em relação à gravidade
do
ataque ou modo de repulsa, ultrapassa o necessário.
O agente responderá pela conduta constitutiva do excesso.
Saliente-se que a afirmativa feita por certos ilustres autores de que o
excesso doloso exclui a própria legítima defesa não é rigorosamente científica.
O
excesso doloso exclui a legítima defesa somente a partir do instante em que o
agente pratica a conduta representativa e constitutiva do próprio excesso. Há um
exemplo
clássico e sempre repetido: numa primeira fase, presentes os requisitos do meio
usado e da moderação, o defendente pratica lesões graves no ofensor; depois, já
dominado
o atacante, continua agredindo, resultando lesões leves. Na primeira (lesões
graves) estará acobertado pela legítima defesa; na segunda, responderá pelo
excesso,
isto é, pelas lesões leves.

131. Do excesso punível no estrito cumprimento de dever legal e no


exercício regular de direito. O excesso também abrange as hipóteses do exercício
regular
de direito e do estrito cumprimento do dever legal, embora a realidade prática
indique uma raridade fática.
A construção é a mesma dos casos anteriores, mutatis mutandi.
Na hipótese da obediência hierárquica o elemento chave está na "estrita
obediência", agindo o subordinado com excesso e por ele respondendo se for além
do
determinado pelo superior.
No exercício regular de direito o elemento chave está no "exercício
regular", pelo que deverá atender aos requisitos objetivos traçados pelo poder
público.
A excludente ficará afastada se houver uso irregular ou abuso de direito e
haverá excesso se for além do preconizado.
Em ambas as hipóteses o excesso poderá ser doloso ou culposo.

XVII
DO CONCURSO DE PESSOAS

SUMÁRIO: 132. Noções. 133. As teorias. 134. A teoria do Código. 135. Causalidade
física e psíquica. 136. Co-participação e culpa. 137. Co-participação e omissão.
138. Da punibilidade. Causas de redução da pena: pequena participação e desvios
subjetivos entre os partícipes. 139. Requisitos: concurso necessário e concurso
agravante.
140. Comunicabilidade das circunstâncias. 141. Co-participação e inexecução do
crime. 142. Autoria incerta. 143. A multidão delinqüente.

132. Noções. O crime é um fato humano e como tal pode ser praticado por
uma ou várias pessoas. Neste último caso há co-delinqüência; existe o concursus
delinquentium,
que difere do concursus delictorum, pois ele é constituído por um crime cometido
por dois ou mais indivíduos, ao passo que, no último, há dois ou mais delitos.
Existe co-delinqüência quando mais de uma pessoa, ciente e
voluntariamente, participa da mesma infração penal (crime ou contravenção). Há
convergência de vontades
para um fim comum, aderindo uma pessoa à ação da outra, sem que seja necessário
prévio concerto entre elas. Pode também o concurso de delinqüentes apresentar-se
inexistindo o objetivo do fim comum, devendo, porém, os co-partícipes prevê-Io.
Naquele caso, haverá co-participação dolosa, e, neste, culposa.
Advirta-se que nem sempre a participação de várias pessoas em um crime
importa co-participação. Assim nos chamados delitos plurissubjetivos (n. 60)
como o
de bando, ou quadrilha (art. 288), em que a pluralidade de agentes é elemento do
tipo, não se podendo falar em co-autoria. Nos crimes bilaterais, ou de encontro
(n. 59), há também participação física de duas pessoas, podendo inexistir co-
autoria, como na bigamia e no adultério, em que um dos co-partícipes está
insciente
da ilicitude do fato, sendo até vítima, como ocorre no primeiro crime. Outras
vezes, apesar de o co-participante ter ciência da ilicitude do fato e praticá-
lo, não
é co-autor, mas sujeito passivo ou ofendido, por tutelá-lo a norma, como sucede
no crime de rapto consensual (art. 220) e na usura.
No concurso de agentes, como se constata do art. 29, nem todos os
participantes praticam a mesma ação. Há os que executam a constitutiva do núcleo
do tipo
(autor, co-autores), representada pelo verbo usado na oração que descreve a
conduta delituosa, e há os que de qualquer modo concorrem para o crime, sendo
partícipes,
embora não pratiquem a ação principal.
Portanto há que se examinar as figuras do autor, do co-autor e do
partícipe.
Autor é o agente que, como já mencionado, executa a ação descrita pelo
verbo contido na figura típica delitiva: o que "subtrai", "seqüestra", "mata",
"induz"
etc. Quando a execução é praticada por duas ou mais pessoas, em cooperação e
conscientemente, temos a co-autoria, como, a título de exemplo, ocorre quando
dois ou
mais agentes agridem simultaneamente a mesma vítima. Note-se que, na co-autoria,
não há necessidade do mesmo comportamento por parte de todos, podendo haver a
divisão
quanto aos atos executivos. No roubo, um agente vigia, o outro ameaça e o
terceiro despoja.
Partícipe é o agente que, embora não pratique atos executórios, concorre
de qualquer modo para o resultado. Partícipe, assim, é o que pratica um ato que
contribuiu
para a realização do crime, ato este diverso do realizado pelo autor ou autores.
Sua conduta, ainda que não típica, incide nas penas cominadas ao crime por ser
acessória
ou subordinada à considerada no tipo. É que, na defesa dos interesses sociais, a
lei amplia o âmbito do delito para compreender não só a ação que integra a
figura
delitiva como também outras que a ela se agregam e são necessárias para sua
efetivação.
Em conclusão: autor é o que pratica a ação típica, enunciada pelo verbo da
oração: se homicídio - o que matou; se furto - o que subtraiu; se rapto - o que
raptou etc. Ao lado dele há o participante, o que pratica atos não típicos, mas
cuja conduta é punida. Autor é o executor do ato compreendido pelo núcleo do
tipo.
Partícipe é o que adere ao crime, praticando atos diversos daquele.

133. As teorias. Em torno da co-delinqüência, várias teorias se disputam a


primazia, no sentido de determinar se, dada a colaboração diversa dos agentes,

um ou mais delitos.
A teoria unitária ou monista prega que a pluralidade de delinqüentes e a
diversidade de condutas não são óbices à unidade do crime. Embora ela reúna
grande
número de adeptos, podendo mesmo ser considerada tradicional, tem sofrido
censuras, argumentando-se não ser compreensível, se várias condutas dão
existência a um
crime só, como pode ser este atribuído mais a uns e menos a outros; como podem
concorrer para um crime pessoas não revestidas da qualidade constitutiva e como
podem
ser punidos os co-partícipes, se houver inimputabilidade do autor principal.
A teoria pluralística sustenta que cada um dos concorrentes pratica um
crime próprio, sendo eles autônomos e distintos. Não há, para essa teoria,
participação,
mas sim simultaneidade de delitos. Massari foi ao ponto de afirmar que a ação do
partícipe é elemento de um crime que subsiste por si, crime que se poderia
denominar
com propriedade "delito de concurso".
Outras teorias de menor vulto surgem. Manzini já sustentou opinião que se
pode chamar dualística, consistente em considerar a participação principal e
secundária,
havendo, então, um crime só para os autores e outro para os cúmplices.
Carnelutti inclui o concurso de delinqüentes na doutrina do delito
complexo, falando, então, em delito concursal, que seria a soma de delitos
singulares, cada
um dos quais se chamaria "delito em concurso". O caráter deste "consiste en no
ser un delito autónomo, sino un elemento deI delito complejo. Entre el delito en
concurso
y el concursual hay Ia misma diferencia que entre Ia parte y el todo"3. Tal
opinião nos parece filiável à doutrina unitária.
São as duas primeiras as de maior prestígio. Todavia é a unitária ou
monista a preferida pela maioria dos Códigos e a que nos parece mais procedente.
Com efeito, se o resultado é uno e se as ações convergem para ele, não há
falar em multiplicidade de delitos, isolando-se ou separando-se os participantes
e correndo-se até o risco de deixar impunes alguns deles quando sua conduta não
atingir a fase da execução do tipo. É ir de encontro à realidade negar que o
delito
é somente um, embora várias as ações ou os atos, todos eles convergindo para fim
único.
Com acerto, escreve Esther de Figueiredo Ferraz: "Praticado por um só ou
por vários indivíduos, o delito é sempre único. Porque, na co-delinqüência, cada
ato
individual adquire significado, adquire valor jurídico-penal, pelas relações que
mantém com as outras condutas convergentes". Cindilos, separá-los do todo que é
o crime único, não parece possível.

134. A teoria do Código. O Código Penal de 1890 estabelecia, a priori e de


maneira expressa, a distinção entre os participantes do crime, entre autor
principal
e secundário, entre autor e cúmplice.
O legislador de 1940, em razão da adoção da teoria da equivalência das
condições, por força da qual tudo quanto concorre para o resultado é causa,
acrescida
da teoria extensiva, esta fundada na causação do resultado, estabeleceu a
profunda modificação e através dela todos os que, de qualquer modo,
contribuíssem para
o resultado eram considerados autores (CP de 1940, art. 25). Todos os que
fornecessem uma parcela, qualquer que fosse, para que o crime ocorresse eram
considerados
autores.
A atual reforma, embora não repudiasse o condicionalismo, passou da teoria
extensiva (todos são autores) para a teoria restritiva, estabelecendo a
distinção
entre autor e partícipe, como se deduz claramente do art. 29 e seus
parágrafos. Seguiu a tendência já demonstrada no Código de 1969.
A inovação, sem dúvida, foi para melhor.
É que, na co-delinqüência, devem ser examinadas as contribuições objetiva
(a que deu causa) e subjetiva (a vontade do agente). Logo, participar de um
crime
não significa somente produzir o resultado (contribuição objetiva), mas também a
vontade consciente de produzir o mesmo resultado (contribuição subjetiva). Em
conseqüência,
a punição do agente não tem como fator único a eficácia causal, mas também a
relevância causal.
Abraçou a nossa lei a teoria unitária ou monística. Equipara, em
princípio, o art. 29 todos os que intervêm no delito, quem de qualquer modo
concorre para
ele, mitigando, contudo, seus efeitos, pois estabelece fórmulas pelas quais a
punição de cada um está condicionada ao seu grau de culpabilidade.
Note-se, e tal observação é relevante e necessária: o Código Penal não diz
que todos os concorrentes no crime sejam autores, mas sim que todos respondem
pelo
resultado, na medida de sua participação.

135. Causalidade física e psíquica. Já vimos que a teoria abraçada por


nossa lei é corolário da adotada em matéria de causalidade. Por ela, todos os
que concorrem
à produção do resultado são participantes (autores ou partícipes). Podem fazê-lo
em qualquer fase do iter criminis, desde a deliberação até o momento
consumativo.
Só depois deste é que é impossível a co-participação; o fato então praticado
será delito autônomo, como ocorre com a receptação. Atente-se a que o delito
permanente,
cuja consumação se protrai, permite a co-participação depois que ela se iniciou
e ainda não está finda.
Não apenas a causalidade física merece considerada no concurso de agentes,
pois é de suma importância o elemento subjetivo, que apresenta aspectos que não
podem ser ignorados. Assim, por exemplo, se A e B desejam matar C, mas não se
conhecem e, sem que se vejam, no mesmo dia e hora, postam-se numa estrada,
ocultos,
e atiram contra a vítima comum, não há falar em co-participação. Cada um age de
per si; não há vínculo psicológico irmanando-os. Trata-se de autoria colarem!.
Mas,
se, no mesmo exemplo, A e B concebem o plano de matar C, dirigem-se armados ao
local, atiram contra a vítima e apenas um deles nela acerta, ambos respondem por
homicídio.
Há co-participação: existe convergência de vontades para um fim comum, com
ciência de um aderir à ação do outro e, em tal caso, pouco importa a atuação
física individual.
Podia, na hipótese, até um deles não executar materialmente o crime e mesmo
assim seria participante.
Vê-se, portanto, que na co-participação é mister um vínculo psicológico
unindo as várias condutas, o que importa em que elas tenham um objetivo comum,
havendo
ciência, pelo menos, de um autor aderir à ação do outro; é necessário que ele
tenha vontade livre e consciente de concorrer à ação de outrem.
Tal não importa a necessidade de pactum sceleris ou acordo prévio. Será
ele a regra, porém é dispensável. Basta que um partícipe conscientemente adira à
ação
do outro. Pode haver até ignorância deste, como ocorre no exemplo clássico do
criado que, para se vingar do amo, deixa a porta aberta para um ladrão entrar. A
insciência
deste não impede a co-participação. É possível até ir-se mais longe. Concurso
haverá ainda que um dos participantes se oponha à intervenção do outro, como
sucede
no caso em que um marido, percebendo que sua mulher pretende intervir no
homicídio, que vai praticar, proíbe-lhe terminantemente que o faça, mas ela, à
socapa, momentos
antes do crime, retira da vítima a arma com que se podia defender, ou ministra-
lhe um narcótico etc., frustrando-lhe qualquer possibilidade de defesa.
Na co-participação, é indispensável a homogeneidade do elemento subjetivo.
Tratando-se de crime doloso, devem os agentes proceder com dolo; e, com culpa
(stricto
sensu), se culposa for a figura. Não existe co-participação culposa e crime
doloso e vice-versa, o que é bem compreensível, visto que todo crime compõe-se
de dois
planos - um físico e outro psíquico - não podendo este ser diferente para os
partícipes, sob pena de ser diverso o delito. Assim, se uma pessoa dolosamente
instiga
um chofer a imprimir grande velocidade a seu automóvel, para atropelar um
inimigo, e, se aquele assim procede ignorando o desígnio do passageiro, o
atropelamento
ocorrido constituirá delito doloso para este e culposo para o condutor do
veículo.
Não é possível também co-participação culposa em crime doloso. Se A,
supondo estar descarregada uma arma, diz a B que, para gracejar com C, atire
contra ele,
e, se B, que deseja matar C e sabe que a arma contém projéteis, vale-se da
oportunidade para levar a cabo seu propósito, jogando a culpa em A, não se pode
falar
em cooperação culposa em crime doloso. A fica isento de pena. A atuação dolosa
de B apaga ou elide a ação causal culposa de A.

136. Co-participação e culpa. Nada impede o concurso de pessoas no delito


culposo. Na culpa, como se viu, há vontade da ação causal e, excepcionalmente,
do
resultado. Ora - atendo-nos ao caso freqüente - se a ação causativa é
voluntária, compreende-se que possa haver co-participação. Se, v. g., uma pessoa
instiga o
condutor de um automóvel a dirigi-Io a toda a velocidade, disto resultando o
atropelamento de um pedestre, ambos são responsáveis por delito culposo, pois
ambos
foram causa culposa do resultado: um instigando e outro executando materialmente
o crime. A cooperação, aliás, pode ocorrer na própria ação, como, v. g., se dois
operários tomam de uma trave e a atiram na calçada, atingindo um transeunte
(exemplos esses tirados de Nélson Hungria).
É compreensível, portanto, a cooperação no crime culposo, visto existir
neste vontade na ação causal e previsibilidade do evento. Não comungamos, assim,
da
opinião da douta Esther de Figueiredo Ferraz, quando afirma que o concurso de
agentes propriamente dito não é possível no crime culposo, pois o concurso
pressupõe
não apenas a consciência de estar concorrendo à ação de outrem, mas também a
vontade de contribuir com sua própria conduta para que se realize o evento
criminosos.
Primeiramente, já vimos que existe culpa com resultado querido (culpa por
extensão ou assimilação) (n. 76 e 83); depois, porque na culpa há consciência do
concurso
na ação (no exemplo, há pouco citado, dos dois operários atirando a trave à rua,
não há consciência de ambos estarem praticando concomitantemente a ação?);
finalmente,
porque, se a imputabilidade pelo resultado, na autoria singular culposa, se
assenta na previsibilidade, por que não se dará o mesmo na coparticipação? Ainda
no exemplo
último citado, é irrecusável que o crime éuno: uma é a ação física (sem o
concurso do outro, um operário não poderia lançar na via a trave) e a mesma a
previsibilidade
do resultado para ambos.
A assertiva da autora, a nosso ver, procede quando se trata de ações
culposas sucessivas ou simultâneas mas independentes. No primeiro caso está o
exemplo,
formulado por Nélson Hungria e outros autores, da dona-de-casa que
imprudentemente deixa certa porção de arsênico na cozinha e a cozinheira
ministra-o como se fora
sal. Ambas respondem distintamente, podendo, aliás (tais sejam as
circunstâncias), uma delas não ter agido com culpa. O segundo caso ocorre
quando, v. g., dois automóveis
colidem, resultando a morte de uma pessoa: não haverá co-autoria ou participação
criminosa, mas imputação distinta. Ranieri fala, nessa hipótese, em concurso de
causas culposas.
137. Co-participação e omissão. Desde que a omissão é causa (art. 13), não
há negar a co-participação omissiva. Nos delitos propriamente omissivos, v. g.,
os do art. 269 - "Omissão de notificação de doença" -, compreendese facilmente
que possa alguém instigar ou determinar a outrem manter a conduta criminosa. Há
apenas
a salientar que a co-participação, em tais hipóteses, dá-se por omissão de quem
instiga o comparsa.
Pode o concurso dar-se mediante omissão, quando há o dever jurídico de
evitar o evento, pois em tal caso a conduta omissiva é causal (n. 65). Faltando
esse
dever, não haverá co-participação, a menos tenha sido assegurada a inércia ao
executor material. Há, então, um plano entre os agentes, cabendo a um atividade
e a
outro, omissão.
Ocorrendo o dever jurídico de obstar o evento, é mister atentar ao
elemento subjetivo do obrigado. Faltando a vontade de colaborar ou cooperar no
fato, não
pode este ser-lhe imputado; responderá a pessoa ou por falta disciplinar ou por
outro delito. Hungria exemplifica com o caso do banhista que vê alguém atirar às
ondas uma criança e por indiferença não intervém, praticando, então, o delito do
art. 135; e do soldado que, por covardia, assiste a um assalto sem tomar
qualquer
providência, incorrendo, dessarte, em falta disciplinar.
Crime algum praticará o que não intervier, desde que não lhe corra o dever
jurídico de impedir o evento. Assim, se um homem vê alguém sendo espancado por
duas
pessoas e se afasta. A falta de solidariedade que revela está longe de
constituir delito.

138. Da punibilidade. Causas de redução da pena: pequena participação e


desvios subjetivos entre os partícipes. A lei penal, vimos capítulos atrás,
adotou
a teoria unitária, porém, visando abrandar seus efeitos, estabeleceu na parte
final do art. 29 que todos os participantes do crime incidiriam nas penas a ele
cominadas
"na medida de sua culpabilidade". E os seus dois parágrafos completam a intenção
do legislador.
O fato é um só e comum; o crime é único; a culpabilidade, porém,
individualizada. A pena imposta ao agente fica estabelecida na medida e de
acordo com o seu
grau de culpa. A quantidade da reprimenda imposta a um dos agentes é aplicada
independentemente da culpabilidade do outro.
Preceitua o § 1.° do art. 29 que, "se a participação for de menor
importância, a pena pode ser diminuída de um sexto a um terço".
A respeito da participação de somenos por parte de um dos agentes, devem
ser feitas quatro observações:
a) Em primeiro lugar, aplica-se somente ao partícipe, pois incompatível
com a posição do autor. Quem realiza o tipo obviamente não pode agir com pequena
parcela
para o crime.
b) Em segundo lugar, por "menor importância", somenos, deve ser
entendida a de leve eficiência causal.
O entendimento ficará por conta de uma jurisprudência ainda por ser
construída, porém devem ser observados os seguintes requisitos na sua
apreciação: o momento
da participação no iter criminis, a intensidade do elemento subjetivo, a
natureza da cooperação diante do resultado final e, por fim, o grau de
reprovabilidade da
ação.
No dizer de Damásio E. de Jesus, "quanto mais a conduta se aproximar do
núcleo do tipo, maior deve ser a pena: quanto mais distante do núcleo, menor
deverá
ser a resposta penal".
c) Em terceiro, é incompatível com as agravantes contidas no art. 62,
todas elas referentes ao concurso de pessoas. Isto porque ninguém pode ter uma
participação
de somenos e ao mesmo tempo promover, coagir etc.
d) Por derradeiro, a redução da reprimenda é facultativa e não
obrigatória. O verbo, da forma usada - "pode ser" -, indica uma faculdade
judicial a ser usada
com prudência e não arbítrio. Ou, se desejarem, o consagrado e tão mencionado
"prudente arbítrio do juiz".
Desvios subjetivos entre os partícipes é o nome que Florian usa para
enunciar a questão do concurso de agentes, quando o resultado é diverso do que
um deles
queria. Carrara falava em "anomalias da imputação na cumplicidade" e outros se
referem a "cooperação dolosamente distinta". Pode ocorrer tanto na participação
material
como na moral, embora mais freqüente nesta última, como nos casos de mandato e
instigação.
No concurso de pessoas, tendo em vista o liame subjetivo, podem ocorrer
três hipóteses diversas:

a) Os agentes realizam a mesma figura típica desejada. As penas


corresponderão às do crime praticado, apenas individualizadas.
b) Houve deficiência de execução, de tal maneira que realizam crime menos
grave que o desejado. O resultado beneficia a todos e respondem pelo crime
efetivamente
cometido.
Observe-se que, no Anteprojeto A1cântara Machado, estava previsto que
haveria um aumento de pena "para quem houver querido participar de crime mais
grave do
que o cometido". Punia-se a simples intenção e não o resultado.
c) Houve excesso na execução, de tal modo que o resultado representou o
cometimento de um crime maior que o desejado por um deles. Em outras palavras:
um dos
agentes queria ou aceitou a realização de um crime menos grave que o resultante.
O excesso quanto à execução pode ser de duas espécies: qualitativo ou
quantitativo.
O excesso é qualitativo quando o crime mais grave, o resultado obtido, não
se insere na mesma linha de desejo do outro agente. Exemplificando: um criado, à
noite, deixa aberta a porta para que um parceiro entre na casa e furte o patrão.
Este entra, furta e estupra. No caso, houve desvio qualitativo, pois é evidente
que o estupro não estava na mesma linha de desejo do criado. Um responderá pelo
furto e pelo estupro, em concurso material; outro, o partícipe, apenas pelo
furto.
O excesso é quantitativo quando o executor, dentro da mesma linha de
conduta desejada, apenas intensifica a execução, resultando um crime mais grave.
Como
exemplo temos o roubo objetivado por todos e que termina com o latrocínio porque
um dos agentes, apavorado, atirou. Pelo que responderá o agente que ficou no
portão
da casa, em atitude de vigilância?
Preceitua o § 2.° do art. 29: "Se algum dos concorrentes quis participar
de crime menos grave, ser-lhe-á aplicada a pena deste; essa pena será aumentada
até
a metade, na hipótese de ter sido previsível o resultado mais grave" .
No caso de excesso qualitativo o participante que desejou o crime menos
grave responderá apenas por ele, já que falta a relação de causalidade, uma vez
que
o ato praticado não se situa na linha de desdobramento causal da ação desejada
pelo outro agente, como também lhe falta o elemento subjetivo que se dirija ao
outro
crime. No exemplo enunciado linhas atrás, o criado, deixando a porta aberta, não
criou a causa da causa da violência.
No caso de excesso quantitativo, por primeiro deve ser afastada a hipótese
do dolo eventual, pois, se o agente assumiu o risco de um crime mais grave, é
óbvio
que responderá pelo resultado.
Afastada a hipótese do dolo eventual, no excesso quantitativo o agente que
apenas quis um crime menos grave responderá por ele; contudo, se o evento de
maior
gravidade lhe era previsível, a pena será aumentada pela metade.
Vale dizer: o agente que quantitativamente desejou crime menos grave, fora
o dolo eventual, responderá na medida e grau de seu dolo, recebendo a pena
correspondente;
se previsível o resultado, haverá agravação pela metade.

139. Requisitos: concurso necessário e concurso agravante. De tudo quanto


temos exposto, cremos poder assentar como elementos da co-participação: a)
pluralidade
de agentes; b) relação causal física entre as condutas dos partícipes e o
evento; c) relação causal psicológica entre essas condutas e o resultado; d)
ciência, pelo
menos, de um agente aderir à ação do outro.
Como já deixamos dito (n. 132), nem sempre a participação de várias
pessoas importa co-delinqüência, como ocorre nos delitos de bando ou quadrilha,
conspiração,
adultério, bigamia etc., os dois primeiros chamados delitos coletivos e os
outros dois, bilaterais ou de encontro. Trata-se de concurso necessário. Nada
impede,
entretanto, que mesmo em tais casos exista coparticipação. Se no adultério, além
das pessoas necessárias ao tipo, intervém terceiro, instigando ao crime, será
co-partícipe.
Além do concurso necessário, há o agravante, previsto diversas vezes em
nossa lei: arts. 146, § 1.°; 150, § 1.°; 155, § 4.°; 157, § 2.°, 11 etc. Em
regra,
a união propositada de agentes tem sido considerada como motivo de agravar a
punição. Como diz Paul Cuche9, a união de agentes torna mais fácil a execução do
crime,
e é um modo de diminuir o risco profissional, dividindo-se a tarefa. Graças à
conjugação de esforços, podem praticar delitos mais graves. O concurso favorece
não
apenas à gravidade do delito, mas à sua multiplicação. Finalmente, inclinação a
se associar observa-se, em regra, nos delinqüentes mais perigosos.

140. Comunicabilidade das circunstâncias. Prescreve nosso diploma, no art.


30, que as circunstâncias e as condições pessoais só se comunicam quando
elementares
do crime. A lei abrange aqui tanto as accidentalia delicti (circunstâncias que
majoram ou diminuem a pena), como as essentialia delicti (as que são elementos
fundamentais
do crime ou que modificam, isentam ou extinguem a punibilidade).
Em regra, as leis empregam a expressão "circunstância" em sentido amplo, o
que a Pannain parece "improprio, poiche, in senso proprio, sono tali solo gli
accidentalia
delicti, non pure te circostanze di esclusione della pena" e "le circostanze che
fanno mutare il titolo deI reato", e "tanto meno quelle che influiscono sulla
capacità
o imputabilità".
Tem-se em vista aqui as circunstâncias e condições pessoais, inerentes a
pessoa, agente ou autor. Não se referem a ação material ou física do delito
(circunstâncias
reais ou objetivas). No elenco daquelas apontam-se a reincidência, os motivos, o
ser ascendente, descendente, funcionário público etc. No destas, citam-se o
emprego
de veneno, fogo, explosivo, a ancianidade ou anciania da vítima etc.
Costuma citar-se, como exemplo de comunicabilidade de circunstância
pessoal elementar, a qualidade de funcionário público no peculato (art. 312).
Este pode
ser considerado, de modo geral, como apropriação indébita, qualificada por
aquela qualidade do agente. Pois bem, o terceiro não-funcionário, que pratica o
fato juntamente
com o funcionário, comete aquele delito.
Questão sumamente controvertida é a proporcionada pelo art. 123 -
"infanticídio". Trata-se de crime privilegiado, em face do estado puerperal da
mãe que mata
o filho durante o parto ou logo após. Pergunta-se, então: o terceiro que a
auxilia é co-partícipe de infanticídio ou pratica homicídio? Hungria é pela
última hipótese,
dizendo que o estado puerperal é personalíssimo e incomunicável. A figura contém
um privilégio que só à mulher aproveita .
Não comungamos da abalizada opinião. Preliminarmente, nossa lei não
distingue: ela só conhece circunstância pessoal, sendo arbitrária a invocação de
outra
espécie, e, portanto, o princípio firmado no art. 236 só pode ceder diante de
texto expresso. Depois porque a douta opinião quebra o todo unitário do crime,
constituído
por fato material único, e vinculados psicologicamente os participantes pela
convergência de vontades.
Por argumento a contrario do art. 30, comunicam-se as circunstâncias reais
ou objetivas. O Código não esclarece se elas se comunicarão sempre. O estatuto
italiano
foi bem mais explícito que o nosso, dispensando mais de um artigo acerca da
comunicabilidade das circunstâncias, para dispor, no art. 118, que as objetivas
ou reais,
ainda que não conhecidas, se comunicam. E mais uma consagração da
responsabilidade objetiva. Para evita-la, estamos que se deve atender aos
princípios da causalidade
física e psíquica.

141. Co-participação e inexecução do crime. Dispõe a lei, no art. 31, que,


não sendo, pelo menos, tentado o delito, não se punem o ajuste, a determinação
ou
instigação e o auxílio.
Determinar é provocar outrem a cometer um crime, é fazer nascer o
propósito delituoso. Instigar é reforçar, é robustecer um desígnio criminoso.
Ajuste é o
acordo realizado para o cometimento do delito. Auxiliar é ajudar na preparação
ou na execução. São formas de participação que ficam impunes, nos termos do
dispositivo.
Todavia este ressalva: a menos que haja disposição em contrário. É porque
aquelas formas, às vezes, constituem delitos. Assim, o art. 286 - "incitar,
publicamente,
à prática de crime" -, onde há instigação delituosa; o art. 288 - "quadrilha ou
bando" -, em que existe ajuste para delinqüir etc.
Não se pode louvar o Código por haver omitido o oferecimento para
delinqüir, como já têm salientado vários juristas e cuja necessidade foi
ressaltada pelo
caso de um belga que se ofereceu a um clérigo para matar o chanceler Bismark.
Hungria declara que também o oferecimento não é punível . É exato. Mas o
que se salienta é que devia ele ficar submetido ao mesmo tratamento que as
outras
formas, isto é, sujeito a medida de segurança. Para a lei é indiferente.
Não pensam assim outros Códigos.

142. Autoria incerta. Ocorre essa quando, sendo diversos os executores,


não se sabe a qual deles atribuir o resultado.
Adotando a teoria monista e dispensando o acordo prévio de vontades, o
Código resolveu a vexata quaestio da autoria incerta.
Nem sempre, porém. Em casos de autoria colateral, em que os agentes podem
atuar sem ter conhecimento da ação do outro (n. 135), não se podendo identificar
o resultado, incerta será a autoria. Serão raríssimos os casos, mas podem
ocorrer. Figurem-se hipóteses como estas: duas pessoas querem envenenar uma
terceira, desconhecendo
uma a intenção da outra, e ambas deitam certa substância na água que ela vai
beber, apurando-se mais tarde que uma delas ministrou um líquido inócuo, sem se
saber,
porém, qual delas o fez; dois indivíduos com armas perfeitamente idênticas,
ignorando um a ação do outro, atiram ao mesmo tempo contra a vítima, que é
alcançada
por um tiro apenas, não se podendo provar a que arma pertencia o projétil. Em
tais hipóteses, e outras que podem ser formuladas, um dos agentes é inocente. No
último
caso, ainda se pode dizer que houve tentativa para o que não acertou na vítima,
mas, no outro, uma das pessoas cometeu um crime impossível, por ineficácia
absoluta
de meio.
Tais casos não encontram solução no Código. Na iminência de se condenar
um inocente, absolver-se-ão naturalmente os dois acusados.
Fora disso, desde que haja convergência de vontades para um fim comum,
aderindo um dos agentes à ação do outro, a não-identificação do resultado não
importa
autoria incerta, pois ambos responderão por ele.

143. A multidão delinqüente. O estudo das multidões delinqüentes foi feito


principalmente por Sighele. Tarde e Le Bon estudaram a psicologia das multidões.
É a multidão um agregado, uma reunião de indivíduos, informe e inorgânico,
surgido espontaneamente e também espontaneamente desaparecendo.
Levada a multidão pelo paroxismo do ódio, vingança, amor etc., chega a
excessos inauditos, atemorizando seus próprios componentes ou integrantes.
Possui ela uma como que alma, que não resulta da soma das que a compõem,
mas, na realidade, da adição das qualidades negativas, dos defeitos, dos
sentimentos
primitivos que residem em todo homem.
É a multidão dirigida por essa alma e entrega-se a excessos.
Freqüentemente é o duce, no dizer dos italianos, o meneur, na expressão dos
franceses, que provoca
a eclosão, o tumulto; porém, desencadeada a tempestade, precipitando-se cega,
desordenada e arrasadora, nem mais ele a pode deter. É fácil lembrar-se do
estouro
da boiada, tão magistralmente descrito por Euclides da Cunha e Rui Barbosa, dois
gigantes da pena no Brasil.
Sob a influência da multidão, deixa o indivíduo de ser o que
ordinariamente é, ocorrendo, então, o rompimento de outros sentimentos, de
outras forças que traz
em si. Na multidão delinqüente existe o que se chama moral de agressão: cada um
procura não ficar aquém do outro no propósito delituoso.
Compreende-se, então, por que a lei vê razão de atenuar a pena. Levase em
consideração que a faculdade de pensar, examinar e ponderar fica debilitada. O
indivíduo,
a bem dizer, não age por si, é impelido e sugestionado pelos outros.
Daí considerar nossa lei atenuante o haver cometido o crime sob a
influência de multidão em tumulto, desde que o agente não haja provocado esse
tumulto, seja
lícita a reunião e não se trate de reincidente, requisitos facilmente
compreensíveis. É o que dispõe o art. 65, III, e.
Em regra, as leis prevêem essa circunstância. Trata-se, aliás, de
conquista da Escola Positiva.

DA PENA

I
CONSIDERAÇÕES GERAIS

SUMÁRIO: 144. Teorias. Conceito. Fundamento. Fins. 145. Caracteres e


classificação. 146. A pena de morte.

144. Teorias. Conceito. Fundamento. Fins. Ao abordarmos as correntes


doutrinárias do direito penal (n. 21), tivemos ocasião de dizer que o estudo da
pena (fundamento
e fins) é feito por três grupos que compreendem as teorias absolutas, as
relativas e as mistas.
As absolutas fundam-se numa exigência de justiça: pune-se porque se
cometeu crime (punitur quia peccatum est). Negam elas fins utilitários à pena,
que se explica
plenamente pela retribuição jurídica. É ela simples conseqüência do delito: é o
mal justo oposto ao mal injusto do crime.
As teorias relativas procuram um fim utilitário para a punição. O delito
não é causa da pena, mas ocasião para que seja aplicada. Não repousa na idéia de
justiça,
mas de necessidade social (punitur ne peccetur). Deve ela dirigir-se não só ao
que delinqüiu, mas advertir aos delinqüentes em potência que não cometam crime.
Conseqüentemente,
possui um fim que é a prevenção geral e a particular.
As teorias mistas conciliam as precedentes. A pena tem índole retributiva,
porém objetiva os fins de reeducação do criminoso e de intimidação geral.
Afirma,
pois, o caráter de retribuição da pena, mas aceita sua função utilitária.
Realmente, uma coisa é afirmar o conceito da pena e outra, seu fim. A pena
é retribuição, é privação de bens jurídicos, imposta ao criminoso em face do ato
praticado. É expiação. Antes de escrito nos Códigos, está profundamente radicado
na consciência de cada um que aquele que praticou um mal deve também um mal
sofrer.
Não se trata da lex talionis, e para isso a humanidade já viveu e sofreu muito;
porém é imanente em todos nós o sentimento de ser retribuição do mal feito pelo
delinqüente.
Não como afirmação de vindita, mas como demonstração de que o direito postergado
protesta e reage, não apenas em função do indivíduo, mas também da sociedade.
Com efeito, o Estado, como já se disse mais de uma vez, tem como
finalidade a consecução do bem coletivo, que não pode ser alcançado sem a
preservação do direito
dos elementos integrantes da sociedade, e, portanto, quando se acham em jogo
direitos relevantes e fundamentais para o indivíduo, como para ele próprio,
Estado,
e as outras sanções são insuficientes ou falhas, intervém ele com o jus
puniendi, com a pena, que é a sanção mais enérgica que existe, pois, como já se
falou, pode
implicar até a supressão da vida do delinqüente.
Punindo não olvida, entretanto, o Estado, a dignidade da criatura humana,
por mais desprezível que seja o criminoso. Conseqüentemente, a pena, sobre ser
proporcional
ao mal que ele praticou, deve tê-Io sempre em consideração. Como escreve Mezger,
proporcionada ao ato, ela cai, consoante seu conceito, sob o dogma do ato, porém
não apenas isso, pois tem de ser adequada à personalidade do agente, caindo,
então, sob o dogma do autor.
Soler define a pena como um mal, primeiramente ameaçado e depois imposto
ao violador de um preceito legal; como retribuição, consistente na diminuição de
um
bem jurídico e cujo fim é evitar os delitos. Vê-se, nessa definição, que o autor
conjuga o fundamento da sanção com sua finalidade.
Esta é dupla, como já se viu. Cifra-se na prevenção geral e especial. A
primeira dirige-se à sociedade, tem por escopo intimidar os propensos a
delinqüir,
os que tangenciam o Código Penal, os destituídos de freios inibitórios seguros,
advertindo-os de não transgredirem o mínimo ético.
Além dessa finalidade de caráter geral, há a especial. Com efeito, o
delito é resultado de condições endógenas, próprias do criminoso, e exógenas,
isto é,
do meio circundante. A pena não deve ignorar, então, a influência daquelas, e
justo é assinalar que, nesse terreno, se tem avançado bastante. Já não se admite
exclusivamente
a sanção como retributiva - o mal da pena ao mal do crime - mas tem-se em vista
a finalidade utilitária, que é a reeducação do indivíduo e sua recuperação. Deve
a pena, para isso, ser individualizada, o que, aliás, constitui princípio
constitucional, consoante o inc. XLVI do art. 5.° de nossa Magna Carta.
Enfim, o binômio "retribuição e prevenção" explica a pena. Ela não deixa
de ser um mal, apesar da evolução que sofreu, porém, no estágio atual, na
civilização
em que vivemos, é indispensável e imprescindível.

145. Caracteres e classificação. Já vimos que a pena há de ser


proporcionada ao crime e individualizada. A esses caracteres, outros,
entretanto, se juntam:
personalidade, legalidade, igualdade, inderrogabilidade, economia, moralidade,
humanidade etc.
Deles, os principais são a legalidade, a personalidade e a
proporcionalidade, pois os outros são até conseqüências suas.
A primeira reduz-se ao apotegma nulla poena sine lege. É a garantia
suprema do indivíduo contra o jus puniendi estatal. Não somente garantia, pois,
se se assinala
à pena o fim intimidativo, é mister ser cominada em lei, é necessário seja
conhecida. Sem isso não poderá eficazmente intimidar os indecisos e vacilantes.
A legalidade
não diz respeito, portanto, somente ao indivíduo, mas relaciona-se à prevenção
geral, já apontada.
A personalidade impõe-se pela finalidade retributiva. Se a pena é o mal da
sanção oposto ao mal do crime, se é retribuição de um mal por outro, é evidente
que deve recair sobre quem praticou aquele mal e somente sobre ele. Daí a
abolição do confisco, pena iníqua, que se projetava à descendência do criminoso.
Privado
este de seus bens patrimoniais, a família também vinha a sofrer as
conseqüências.
É exato que a pena privativa de liberdade gera ainda esse efeito, pois,
privado o chefe da família de seu trabalho, sofrem os que vivem em sua
dependência.
Tal conseqüência, que realmente existe, é, entretanto, indireta e sobre ela
prevalece a necessidade da punição. Advirta-se, todavia, que não se trata de
problema
insolúvel, porque em um Estado perfeitamente organizado deve existir assistência
social a amparar a família do sentenciado, que, de fato, não pode sofrer punição
conseqüente; como, também, proteger a família da vítima, muita vez votada à
miséria e ao abandono.
Entre nós, o princípio da personalidade da pena está consagrado no inc.
XLV do art. 5.° da Constituição Federal: "Nenhuma pena passará da pessoa do
condenado...".
A proporcionalidade penal está intimamente vinculada ao fundamento
retributivo, sobre o que já se falou no número anterior. Em princípio, a pena
deve guardar
proporção com o delito: não se punem, igualmente, o furto e o homicídio. O crime
tem sua quantidade, que deve, de modo geral, ditar a quantidade da sanção.
Assinala Antolise que esse princípio tem sofrido duas derrogações. Uma,
proveniente da reincidência (CP, art. 63), a segunda referente à aplicação da
pena,
pois que deve o magistrado ter em conta a personalidade do condenado (CP, art.
59).
Há um outro princípio, a que os autores emprestam capital importância: é o
da inderrogabilidade penal. A punição deve ser certa, pois a sua eficácia
depende
mais da certeza do que da severidade. De que vale uma pena severa, se é
problemática sua aplicação? Nesse sentido, pode-se dizer que, entre nós, mais
eficaz que
a pena de morte, advogada por muitos, seria a supressão do júri, que não tem
provado bem.
Entretanto a inevitabilidade penal tem sofrido restrições impostas pela
finalidade da prevenção especial, ditando medidas como o livramento condicional,
o
sursis, o perdão judicial, a graça e o indulto. Devem esses institutos,
principalmente os últimos, ser aplicados com parcimônia e critério para não se
consagrar
como norma a impunidade.
Várias são as classificações da pena. A mais comum é a que diz respeito ao
bem jurídico por ela alcançado. Segundo esse critério, ela pode ser: corporal,
privativa
da liberdade, restritiva da liberdade, pecuniária e privativa de direitos.
À primeira classe pertencem as penas que recaem sobre a pessoa física do
delinqüente, suprimindo-lhe a vida ou atingindo-o na integridade corpórea: a
pena
de morte e os castigos físicos. Estes chegam até nossos dias sob a forma de
açoites, existentes em algumas legislações.
São as penas privativas da liberdade as mais comumente empregadas pelas
leis. Pode a privação ser perpétua, como ocorre, por exemplo, na Itália, com o
ergastolo.
Ao contrário do que se poderia pensar, não são elas das mais antigas. A
segregação da liberdade foi, a princípio, conhecida como meio de assegurar a
aplicação
de outras sanções, como a morte e a tortura. Só mais tarde é que se difundiu,
tendo sido grande a influência do direito canônico, que adotava o recolhimento
celular.
O clérigo era mantido em sua célula, expiando a falta e praticando penitência,
disso advindo os nomes de cela e penitenciária.
Delimitam o direito de locomoção as restritivas da liberdade, como
acontece no exílio local, na proibição de freqüentar determinados lugares e na
liberdade
vigiada, que não existem entre nós como tais, pois foram adotadas antes como
medidas de segurança.
Conhecem-nas, todavia, outras nações, que empregam o desterro, o
confinamento, a relegação, a transportação etc., notando-se, entretanto, que as
duas últimas
também são privativas da liberdade, já que o sentenciado é submetido a prisão e
trabalho.
Em algumas ocasiões tem havido exílio, entre nós. Contudo trata-se de
situações anormais, em que é imposto.
Outras penas, como a de desterro, existem; não são, porém, propriamente,
de direito penal. A própria expulsão do estrangeiro é medida administrativa.
Como pena pecuniária, os povos conhecem, em regra, a multa e o confisco.
A primeira consiste em o condenado pagar determinada importância, fixada
entre o mínimo e o máximo, na lei. A segunda, não capitulada em nosso Código,
não
é freqüentemente encontrada nas legislações, pois é iníqua, já que atinge outras
pessoas, violando, assim, o princípio da personalidade da sanção.
Confisco, no Código Penal, só conhecemos o do art. 91, lI, que recai sobre
o produto direto ou indireto do delito, ou sobre os instrumentos empregados na
sua
execução. Não é pena; é efeito da condenação.
Consagra, finalmente, a doutrina a privativa de direitos, aplicável,
geralmente, a crimes em que o delinqüente se revelou incapaz ou indigno do
exercício de
alguns direitos. Pode consistir, às vezes, na perda da profissão ou de
atividade. Outrora, nela predominava o caráter infamante, o que veio a
desaparecer com a humanização
do direito penal.
Não se pode aludir ao caráter infamante, sem se lembrar da morte civil.
Era verdadeiramente atroz essa pena. Era tornar morto um homem em vida; era
reduzi-lo
a cadáver, apesar de não haver morrido, já que, para todos os efeitos, era tido
como morto. Perdia os direitos civis e políticos. Destituído do pátrio poder e
da
autoridade marital, era seu casamento dissolvido, não podendo contrair outras
núpcias. Vedada lhe era a doação ou aquisição causa mortis. Perdia também o
patrimônio.
Era, como se vê, o castigo infamante por excelência.
Tais sanções não condizem com o estado atual do direito penal, pois o que
infama não é a pena, é o crime. Ela é o caminho da redenção. A expiação - quia
peccatum
est - não degrada, é o princípio da reabilitação. E, além disso, não se deve
olvidar o fim superior, que é o da recuperação do criminoso, o que não se poderá
conseguir
com o aniquilamento' da criatura humana.

146. A pena de morte. Por constituir tema em permanente debate não há mal
que se abra um parágrafo destinado à pena capital.
Apregoam seus adeptos o efeito dissuasivo que ela possui, sem que se
firmem em dados científicos. Com efeito, não obstante o seu valor relativo, a
estatística
pode esclarecer-nos a respeito, e, por certo, surpreender-se-iam os advogados da
eliminação da vida do delinqüente, se examinassem dados estatísticos, como, v.
g.,
apresenta Sutherland, em Princípios de criminologia4. Aponta o eminente
criminólogo norte-americano fatos como estes: a taxa de homicídios nos Estados
que autorizam
a pena de morte é o dobro da apresentada pelos que a aboliram, verificando-se o
mesmo, embora com menor diferença, em Estados vizinhos ou da mesma região; que,
nas
circunscrições territoriais que a aboliram, não se verificou qualquer aumento de
criminalidade; finalmente, que na própria Europa o número de homicídios é menor
nos países que não adotam esse meio repressivo.
Conhecemos o valor relativo das estatísticas, porém, se elas não
demonstram a inutilidade da pena capital, não sabemos com que elemento mais
seguro contam
os que apregoam sua eficácia.
O efeito intimidativo que possui não é maior que o de outras penas também
severas. Sabem os que se dão a estudos peno lógicos que nos países onde havia
execuções
públicas as multidões, aos poucos, se acostumavam com o espetáculo, disputando
homens e mulheres os melhores lugares. Freqüentemente, após a execução, pendente
ainda
da forca o condenado, a turba ali se conservava noite adentro, entregando-se a
libações, desordens e orgias.
Mais eficaz que essa pena é a certeza da punição - como já falamos -, o
que só se consegue com aparelhamento judiciário adequado e leis justas. E nada
mais
contrário à certeza do castigo do que a pena de morte. Em nações européias e
províncias dos Estados Unidos da América do Norte, juízes e jurados vacilam
diante da
eliminação da vida humana, decidindo-se pela absolvição toda vez que a pena
extrema é a única aplicável, conforme testemunho ainda de outro criminólogo
americano,
Parmelee.
Contra ela se invoca sempre a possibilidade do erro judiciário. É outro
argumento de peso. Certamente tal erro é raro, porém não impossível, porque é
próprio
da condição humana dos juízes.
Dispensamo-nos, entretanto, de comentá-lo, porque sua importância
constitui verdadeiro truísmo.
Não receamos dizer que, se adotada fosse essa pena, entre nós, a lei não
passaria de letra morta. Seria verdadeiro acontecimento sua aplicação. Vejase a
raridade
de o júri aplicar a pena máxima de trinta anos de reclusão, não obstante saber
que difícil é algum réu cumpri-Ia em sua totalidade, à custa de indultos, graças
e
livramentos condicionais. No juízo singular o mesmo aconteceria. São nossos
juízes e tribunais avessos às penas longas. Que se diria, então, da capital?
E que efeitos teve ela entre nós? Esquecem-se ou ignoram os que a
propugnam que o Brasil, desde seu descobrimento até a Lei de 20 de setembro de
1890, isto
é, durante 390 anos, contou-a entre suas penas. E não sabemos que maravilhosos
efeitos lhe podem ser atribuídos.
Diz-se que ela tem a virtude de afastar os inadaptáveis, os
irrecuperáveis. O argumento não tem valor. Tal objetivo se pode conseguir
perfeitamente através
da medida de segurança detentiva, que deve durar enquanto não cessar a
periculosidade do delinqüente. Aplique-se com exatidão nosso Código Penal,
criem-se casas
de custódia e tratamento, manicômios judiciários, colônias agrícolas etc., e o
país não terá de pensar em pena de morte.
Aliás, a tendência geral é para aboli-Ia, como ocorreu na Alemanha
Ocidental. Na tradicionalista Inglaterra, a Lei de 9 de novembro de 1965
"Abolishment of
death penalty act" - também a aboliu pelo prazo de cinco anos, findos os quais
poderá continuar interditada ou restabelecida por nova lei e, ao que saibamos,
não
voltou a vigorar. Aliás, na Europa Ocidental, poucos são os Códigos que adotam
essa pena. Nos Estados Unidos da América do Norte, uma decisão da Suprema Corte
julgou-a
inconstitucional. Honra seja feita a Portugal, que já comemorou, com grandes
celebrações, o centenário de sua abolição.
Enquanto não ficar demonstrado cabalmente que a pena de morte é o meio
mais eficaz na luta contra o crime, não tem o homem o direito de invocáIa. De
todas
as penas é a que mais se reveste do caráter de vingança. É a lex talionis: vida
por vida. Ao homicídio ilícito responde-se com o homicídio legal e friamente
executado.
É repetir com Koestler: "Uma vida não vale nada, mas nada vale uma vida".

II
CLASSIFICAÇÃO ATUAL

SUMÁRIO: 147. Antecedentes históricos. 148. Classificação atual.

147. Antecedentes históricos. A nossa lei penal avoenga, as Ordenações


Filipinas, em seu Livro 5.°, que tratava da matéria criminal, estabeleciam, de
maneira
desordenada, como penas, a morte, a mutilação através do corte de membros, o
degredo, o tormento, a prisão, o açoite e a multa consistente no pagamento em
dinheiro.
O Código Criminal do Império, através de seu art. 43, prescrevia como
modalidades de penas a morte pela forca, a prisão simples, a prisão com
trabalhos, a
galé com trabalho público, a multa, a suspensão e a perda do emprego e o açoite.
O Código Penal Republicano (Consolidação das Leis Penais) estabelecia como
reprimenda a prisão celular cumprida em estabelecimento especial com trabalho e
isolamento celular, o banimento que privava dos direitos de cidadania, a
reclusão cumprida em fortalezas ou praças de guerra, a prisão com trabalho, que
era cumprida
em penitenciária agrícola, a prisão disciplinar a ser cumprida em
estabelecimentos industriais, a interdição de direito, a suspensão e perda de
cargo público e,
por fim, a multa.
O Código Penal de 1940 classificou as penas em principais (reclusão,
detenção e multa) e acessórias (perda da função pública, interdição de direitos
e publicação
da sentença), as primeiras sempre aplicáveis, enquanto as segundas eventualmente
impostas e cumulativamente com aquelas. Além do mais, introduziu as medidas de
segurança
para os considerados perigosos, dividindo a periculosidade em real e presumida.
Houve a inovação, porém a classificação em principais (prisão, relegação,
detenção,
exílio local e multa) e acessórias (interdição de direitos, publicação da
sentença, confisco de bens e expulsão de estrangeiros) já fora preconizada em
1927 pelo
Projeto Sá Carneiro.

148. Classificação atual. A atual reforma foi bem simples. As penas são de
três espécies: privativas de liberdade, restritivas de direitos e multa (art.
32,
I, 11 e III).
A recente Constituição estabeleceu quais as penas possíveis (art. 5.°,
XLVI) e quais as não admitidas (art. 5.°, XLVII).
São possíveis, entre outras, as seguintes penas:
a) privação ou restrição de liberdade;
b) perda de bens;
c) multa;
d) prestação social alternativa;
e) suspensão ou interdição de direitos.
Não são admitidas as seguintes penas:
a) de morte, salvo em caso de guerra declarada, nos termos do art. 84, XIX;
b) de caráter perpétuo;
c) de trabalhos forçados;
d) de banimento;
e) cruéis.
Notam-se três princípios norteadores: a eliminação, o quanto possível, da
pena segregativa imposta pelo cárcere, a humanização das penas e a
individualização
da reprimenda.
A eliminação, o quanto possível, da pena carcerária está demonstrada na
possibilidade de sua substituição através de um elenco de outras penas, mormente
pelas
restritivas de direito (CP, art. 43) com as formas inovadoras da prestação de
serviços comunitários e a limitação de fins de semana.
A humanização é sensível não somente em relação à natureza das penas
escolhidas como também pelas formas de execução preconizadas pela lei
específica.
Por seu turno, a individualização da pena está presente não só quando da
aplicação da reprimenda, como preceitua o art. 58 do Código Penal, que
estabelece
as formas para escolha da qualidade e da quantidade, como também e marcantemente
quando da execução, através do exame classificatório, o qual, pelos exames
criminológicos
e da personalidade, estabelece as condições para o cumprimento.
O Código Penal fixou como norte o princípio da proporcionalidade da pena,
enquanto a Lei de Execução traçou o caminho para a individualização e
personalização
quando do cumprimento.

III
DA PENA PRIVATIVA DE LIBERDADE

SUMÁRIO: 149. Natureza. 150. Formas de andamento. Sistema progressivo. 151.


Sistemas penitenciários. Sistemas clássicos. 152. Do trabalho e remuneração.
153. Detração
penal. 154. Direitos e deveres do preso. 155. O problema sexual.

149. Natureza. A natureza da pena privativa de liberdade está contida em


seu próprio nomem juris: retira do condenado, de uma forma mais rígida ou menos
branda,
o direito à liberdade. É a que restringe, com maior ou menor intensidade, a
liberdade do condenado, consistente em permanecer em algum estabelecimento
prisional,
por um determinado tempo, tudo na conformidade do regime imposto.
As penas privativas de liberdade são duas: reclusão e detenção, previstas
e impostas na conformidade da gravidade do crime.
A pena de reclusão, mais grave, é cumprida em três regimes: fechado, semi-
aberto e aberto; a de detenção comporta apenas dois regimes: semiaberto e aberto
(CP, art. 33). Por regime entende-se a maneira pela qual é cumprida a pena
privativa de liberdade, tendo em vista a intensidade ou grau em que a liberdade
de locomoção
é atingida.
Regime fechado é o de segurança máxima ou média (CP, art. 33, § 1.°, a).
Embora o legislador não diga o que se pode entender por segurança máxima ou
média,
não se pode negar ter-se referido às penitenciárias - os estabelecimentos
prisionais de segregação.
A execução em tal regime, como igualmente acontece nos restantes, é
individualizada, resultante de um exame criminológico de classificação (CP, art.
34, e
Lei de Execução, art. 5.°). A classificação dos condenados, como diz a Exposição
de Motivos, "é requisito fundamental para demarcar o início da execução
científica
das penas privativas de liberdade e da medida de segurança detentiva. Além de
constituir a efetivação de antiga norma geral do regime penitenciário, a
classificação
é desdobramento lógico do princípio da personalidade da pena, inserido entre os
direitos e garantias constitucionais. A exigência dogmática da proporcional
idade
da pena está igualmente atendida no processo de classificação, de modo que a
cada sentenciado, conhecida a sua personalidade e analisado o fato cometido,
corresponda
o tratamento penitenciário adequado".
Como a segregação absoluta não é recomendável e o trabalho a melhor
terapia, o condenado, na medida de suas possibilidades e aptidões, fica sujeito
ao trabalho
coletivo no período diurno e ao isolamento no noturno (CP, art. 34, §§ 1.° e
2.°, e Lei de Execução, art. 31). Como forma de exceção é possível o trabalho
externo,
desde que em serviço ou obra pública (CP, art. 34, § 3.°, e Lei de Execução,
art. 36).
O regime senil-aberto compreende a execução da pena em colônia agrícola,
industrial ou estabelecimento similar (CP, art. 33, § 1.°, h). O condenado
igualmente
fica sujeito ao exame criminológico para a individualização (CP, art. 35), ao
trabalho em comum no próprio estabelecimento (CP, art. 35, § 1.°), sendo
possível o
trabalho externo bem como a freqüência a cursos supletivos ou
profissionalizantes (CP, art. 35, § 2.°).
Por fim, o regime aberto é cumprido em casa de albergado ou similar (CP,
art. 33, § 1.°, c), caracterizando-se pelo sentido de autodisciplina e
responsabilidade
do condenado (CP, art. 36). O albergado trabalhará fora do estabelecimento e sem
vigilância, permanecendo recolhido no período noturno ou de folga (CP, art. 36,
§ 1.°).

150. Formas de andamento. Sistema progressivo. A pena privativa de


liberdade é cumprida em regime progressivo, todo ele tendo como base única e
exclusiva o
mérito do condenado (CP, art. 33, § 2.°, e Lei de Execução, art. 112). Da mesma
forma é possível a regressão, por desmérito do próprio condenado, como previsto
no
art. 118 da Lei de Execução.
Os critérios fixadores são os estabelecidos no quadro seguinte:
Pena privativa de liberdade (CP, art. 33, §§ 1º e 2º)

RECLUSÃO

a) regime fechado, mais de 8 anos (art. 34)

- estabelecimento de segurança máxima


- estabelecimento de segurança média

b) regime semi-aberto não reincidente, igualou mais de 4 anos e menos de 8 anos


(art. 35)

- colônia agrícola
- colônia industrial
- estabelecimento similar

c) regime aberto não reincidente, igual ou menos de 4 anos (art. 36)


- casa de albergado
- estabelecimento adequado

Pena privativa de liberdade (CP, art. 33, §§ 1.° e 2.°)


Detenção
a) regime semi-aberto (salvo regressão)
b) regime aberto

151. Sistemas penitenciários. Sistemas clássicos. Três são os sistemas


penitenciários que podemos chamar clássicos: o de Filadélfia, o de Auburn e o
Inglês
ou Progressivo.
O primeiro foi aplicado inicialmente na Pensilvânia e também adotado na
Bélgica, pelo que muitos o têm como sistema belga. Consiste em o sentenciado
ficar
fechado na cela, sem sair, a não ser de vez em quando, para passeios em pátios
cerrados. Trabalha na própria cela, onde recebe as visitas do religioso, pastor
ou
sacerdote, dos diretores do estabelecimento, funcionários e médico. Dali também
assiste aos ofícios religiosos. É um sistema rigorosamente celular, ao qual se
pode
aplicar a conhecida expressão: A cela é o túmulo do vivo.
Esse sistema foi suavizado pelo de Auburn, em que o isolamento é somente
noturno, pois, durante o dia, o sentenciado trabalha juntamente com os outros.

trabalho comum, porém feito em silêncio.
Mais brando é o sistema Inglês ou Progressivo. A princípio, o sentenciado
fica recluso na cela. É o chamado período inicial ou de prova, com prazo
determinado.
Depois, passa a trabalhar em comum, e, finalmente, é posto em liberdade sob
condição. Vê-se que esse sistema apresenta estágios, sendo o último o de
liberdade sob
fiscalização.
Foi ele adotado na Irlanda, por Crofton, que lhe introduziu mais um
estágio: o trabalho em colônia agrícola. Antes da liberdade condicional, o
sentenciado
trabalha ao ar livre, em colônia penal. É esse sistema, como se vê, bastante
suave.
De modo geral pode dizer-se que a colônia agrícola tem, hoje, preferência
nos sistemas penitenciários. O trabalho ao ar livre, como se verá ainda, é mais
eficaz
que o confinamento, na tarefa da recuperação ou readaptação do sentenciado.
Inovações também vão sendo feitas. Assim, P. Amor, Advogado-Geral na Corte
de Apelação de Paris, escreve que o tratamento aplicado nos estabelecimentos que
sofreram reformas conduz às fases da semiliberdade e da liberdade condicional. O
regime da semiliberdade consiste em o condenado trabalhar fora do
estabelecimento,
sem fiscalização, e retomar somente à hora fixada. Tem produzido bons resultados
a prática, que, todavia, apresenta o inconveniente de permitir contato íntimo
entre
o sentenciado e os elementos que estão fora do estabelecimento, bem como o
destes com os condenados que ainda não atingiram esse estágio, por intermédio do
semiliberado.
Parece-nos certo, entretanto, que tal regime há de repousar em seleção ou
triagem precisa e rigorosa, providência, aliás, que é fundamental em qualquer
sistema penitenciário.
A atual reforma não adotou rigorosamente o sistema irlandês ou de Crofton,
porém um sistema próprio progressivo ou evolutivo, com feições inteiramente
peculiares.

152. Do trabalho e remuneração. Qualquer que seja o regime ou o local onde


a pena é cumprida, penitenciária agrícola, estabelecimento industrial etc., o
trabalho
é obrigatório. Diz o art. 28 da Lei de Execução que o trabalho é um dever
social, tendo finalidade educativa e produtiva.
A recuperação do homem há de ser feita pela laborterapia. Qualquer
estabelecimento penitenciário sem trabalho torna-se antro de vício e perversão.
Como readaptar
indivíduos que passam os dias de braços cruzados, dormindo ou entregues a
distrações, sem o meio educacional do trabalho?
Mas trabalho cientificamente orientado. Ocupação de acordo com as
aptidões, temperamento etc. do sentenciado e a ser indicada pelo órgão técnico,
encarregado
de sua observação e estudo. Trabalho que também redunde em proveito material, já
suavizando o ônus que a pena representa para o Estado, já proporcionando
remuneração
ao sentenciado, o que, nos termos do art. 39 do Código, é obrigatório.
Infelizmente, o salário foi sempre insignificante. Claro é que ele não se
pode pautar pelos moldes do estipêndio aqui fora, porém deve ser o suficiente
para
atender a certas necessidades do sentenciado no estabelecimento (com a chamada
parte disponível) e para ser a outra fração (denominada reserva) depositada em
estabelecimento
de crédito, formando um pecúlio, que lhe será entregue no dia da saída e
destinado a auxiliá-lo nos primeiros embates da vida em liberdade. Releva notar
que a prisão-albergue,
proporcionando salários maiores ao sentenciado, vem, em parte, melhorar sua
situação econômica e suavizar os ônus do Estado na execução da pena.
A remuneração obrigatória do trabalho do preso foi introduzida pela Lei n.
6.416, de 1977, a qual também estabeleceu a forma de aplicação e divisão do
produto.
Pela atual legislação específica, Lei de Execução Penal (Lei n. 7.210/84),
a remuneração não poderá ser inferior a três quartos do salário mínimo (art. 29)
e o produto destina-se a atender:

a) à indenização causada pelo crime;


b) à assistência familiar;
c) às pequenas despesas pessoais;
d) ao ressarcimento ao Estado das despesas realizadas com a manuten
ção do condenado.
E o § 2.° estabelece que a importância que sobejar será aplicada em
caderneta de poupança, visando constituir um pecúlio para atender o condenado
quando posto
em liberdade.

153. Detração penal. Após declarar, no art. 41, que o sentenciado, a que
sobrevém moléstia mental, deverá ser internado em manicômio ou estabelecimento
adequado,
passa a lei no artigo seguinte a tratar do que tecnicamente se denomina de
tração penal, ou seja, do cômputo na pena definitiva do tempo de prisão
preventiva ou
provisória e do de internação em hospital ou manicômio.
Prisão preventiva é a decretada contra o indiciado antes do julgamento
final do processo. Era obrigatória ou facultativa, ocorrendo a primeira nos
crimes apenados,
no máximo, com dez ou mais anos de reclusão; a segunda poderia ter lugar como
garantia da ordem pública, por conveniência da instrução criminal ou para
assegurar
a aplicação da lei repressiva. Era o que dispunham os arts. 312 e 313 do Código
de Processo Penal. Todavia a Lei n. 5.349, de 3 de novembro de 1967, pôs termo à
prisão preventiva obrigatória. É ela, hoje, somente facultativa.
Prisão provisória é tanto a flagrante como a oriunda da sentença de
pronúncia.
Silenciou nossa lei a respeito de questão de monta, no cômputo da prisão
preventiva ou provisória na pena aplicada a final: a do nexo ou relação entre
elas.
Divergem as opiniões. Na Itália, requer-se que o crime seja o mesmo que
constitui objeto da sentença. Na Alemanha, é suficiente a conexão formal,
podendo os
delitos ser vários. Assim, se alguém é acusado por homicídio e ferimentos leves
em um mesmo processo e foi preso preventivamente devido ao primeiro delito, pelo
qual vem, entretanto, a ser absolvido, sendo condenado no segundo, deve aquela
prisão ser computada nessa pena.
Tal opinião parece-nos mais justa. Ainda que a prisão tenha sido decretada
pelo outro crime, a verdade é que ela assegurou a boa marcha processual
(referente
aos dois delitos) e o cumprimento da pena que poderia ser imposta a final.
A reforma penal, eliminando uma dúvida surgida com a omissão existente na
redação primitiva do Código, fato que gerou controvérsias doutrinárias, declarou
de maneira expressa que o tempo de uma prisão administrativa também seria
computado na execução da pena.
Computado também é o tempo de internação em nosocômio. O Código de 1932
dispunha de modo diverso. Tal opinião se esteia em que, se a pena é castigo, o
insano
não pode senti-lo, e, se é meio educativo, não pode compreendê-lo.
A nosso ver, mais procedente é esse modo de pensar. Juridicamente é
indefensável a opinião que manda computar o tempo de manicômio. Contudo razões
de humanidade
ditam, freqüentes vezes, ao legislador, a adoção desse princípio.
A divergência, porém, continua. Exemplo disso oferecem-nos dois modernos
Códigos: o italiano e o suíço. O primeiro, no art. 148, suspende a execução da
pena,
no caso de enfermidade psíquica; o segundo manda descontar o tempo que o
condenado passar em manicômio ou hospital, excluindo, entretanto, o cômputo
quando houver
fraude por parte dele (art. 40).
Esta é sempre possível, devendo os nossos juízes usar do máximo rigor, a
fim de que criminosos astutos não se furtem ao cumprimento da pena, pela
detração
do tempo em que estiverem em hospital ou manicômio, livres do regime
penitenciário, que lhes foi imposto por sentença condenatória, como meio de
reeducação e expiação.

154. Direitos e deveres do preso. O art. 38 estabelece que o preso


conservará todos os seus direitos não atingidos pela perda da liberdade, com
respeito total
à sua integridade física. A Constituição, em seu art. 5.°, XLIX, declarou
expressamente: "é assegurado aos presos o respeito à integridade física e
moral".
E o art. 41 da Lei de Execução enumera com precisão e clareza, de maneira
expressa, o elenco de direitos atribuídos: alimentação suficiente e vestuário;
atribuição
de trabalho e sua remuneração; previdência social; constituição de pecúlio;
proporcionalidade na distribuição do tempo para o trabalho, o descanso e a
recreação;
exercício das atividades profissionais, intelectuais, artísticas e desportivas
anteriores, desde que compatíveis com a execução da pena; assistência material,
à
saúde, jurídica, educacional, social e religiosa; proteção contra qualquer forma
de sensacionalismo; entrevista pessoal e reservada com o advogado, visita do
cônjuge,
da companheira, de parentes e amigos em dias determinados; chamamento nominal;
igualdade de tratamento, salvo quanto às exigências da individualização da pena;
audiência
especial com o diretor do estabelecimento; representação e petição a qualquer
autoridade em defesa de direito; contato com o mundo exterior por meio de
correspondência
escrita, da leitura e de outros meios de informação que não comprometam a moral
e os bons costumes.
Os deveres estão contidos no art. 39 da Lei de Execução e entre eles
avultam-se o comportamento disciplinado e cumprimento fiel da sentença,
urbanidade e respeito
para com os demais condenados, submissão à sanção disciplinar imposta, higiene
pessoal e da cela ou alojamento, conservação dos objetos recebidos etc.

155. O problema sexual. Embora não seja aqui propriamente o lugar de se


tratar do assunto, cremos que não haverá mal em fazer-se rápida e perfunctória
análise
desse tema que preocupa os penitenciaristas e os governos. Várias são as
soluções aventadas.
No Presídio do Solknik, na Rússia, pretende solucionar-se o problema
dando-se saídas periódicas aos sentenciados e até férias. Observe-se desde já
que tal
regalia só poderá ser concedida aos que inspirem confiança, caso contrário, é o
mais formal convite à fuga. Não se pode tratar, então, de medida comum. Mais
racional
parece-nos a solução da Colônia Agrícola de Bolchevo, no mesmo país, em que o
sentenciado mora com a família.
Em Sing-Sing, permite-se a visita da mulher ao sentenciado. No México,
admite-se não só a da esposa como a da amante ou a da profissional que ele
freqüenta.
Entre nós, no ex-Estado da Guanabara, têm-se permitido as relações carnais
ao sentenciado de boa conduta, em cela destinada exclusivamente a esse fim. Tal
prática, no Rio de Janeiro, não traz maiores dificuldades, sabido que sua
Penitenciária só recebe sentenciados ali residentes, que, ao entrarem no
estabelecimento,
inscrevem o nome da esposa, da amante, ou da profissional que conhecem.
Asúa, escrevendo sobre o assunto, pensa que as relações sexuais podiam ser
facultadas, suprimindo-se os locutórios, passando, então, as visitas a serem
feitas
nas celas. Tal opinião não nos convence.
Em relação ao Instituto de Reeducação do Carandiru, cremos difícil a
solução, pois ele se destina a presos de todas as regiões do Estado;
impraticável, assim,
que os casados possam ter relações com as esposas, quando residentes no interior
do Estado.
Quanto ao solteiro, não é de decoro a posição do Estado, favorecendo o
meretrício.
Quando fomos Diretor-Geral do Departamento de Presídios, diversas vezes
conversamos com reeducandos casados sobre o desejo que tinham de receber em sua
cela
a esposa e quase sempre a resposta era negativa. Parece que receavam a quebra de
pudor da mulher, atravessando corredores sob olhares maliciosos, quando não
cúpidos,
e a enfiar-se cela adentro para um fim de todos sabido. Talvez também o receio
de facilitarem o adultério, o ensejo de paternidade que lhes podia ser
atribuída.
Por essas e outras circunstâncias é que não nos parece aconselhável o
alvitre de Asúa.
A solução do problema sexual nas prisões é complexa, pois está intimamente
ligada a outras questões e deve ter sempre em vista o decoro e a compostura. Ele
encontra sua solução natural nas penitenciárias agrícolas, onde se permite ao
sentenciado viver com a família. Nos outros estabelecimentos, o trabalho, os
desportes,
as leituras sadias, a assistência religiosa etc. podem tornar menos árdua a
abstinência.
Lembremo-nos, aliás, que não é essa a única restrição que a pena impõe,
como também que, apesar da evolução operada, ela não perdeu de todo seu caráter
aflitivo
ou expiatório.
IV
DA PENA RESTRITIVA DE DIREITO

SUMÁRIO: 156. Natureza jurídica. 157. Características. 158. Espécies.

156. Natureza jurídica. A pena restritiva de direito consiste na inibição


temporária de um ou mais direitos do condenado ou então na perda de parte de seu
patrimônio, imposta em substituição e cuja espécie escolhida tem relação direta
com a infração cometida.
Não se trata de modalidade nova de pena, porém a inovação da reforma da
Parte Geral do Código Penal consistiu no seu caráter substitutivo. Segundo
alguns penalistas,
pensamento que vem ganhando sensível reforço com o tempo, a pena privativa de
liberdade, o cárcere, já cumpriu sua missão histórica e deve ficar reservada aos
casos
mais graves, principalmente aos crimes em que houver violência ou grave ameaça à
pessoa e cuja natureza repele profunda periculosidade por parte do agente. Além
do mais, a experiência revelou que o cumprimento da pena carcerária de pequena
duração sempre foi muito mais maléfica ao criminoso do que benéfica à sociedade,
agora
aliada a uma nova situação, representada pelas péssimas condições carcerárias
existentes em quase todos os presídios pelo mundo. O criminoso que, no cárcere,
cumpria
pena de pequena duração deixava o presídio contagiado em razão do convívio com
criminosos contumazes e perigosos. Agora temos mais um fator representado pelas
precárias
e péssimas condições de nossos presídios que de maneira alguma permitem falar em
ressocialização.
A pena restritiva de direito, surgida com a reforma da Parte Geral, foi
instituída para substituir a pena privativa de liberdade, não perdendo o seu
caráter
de castigo, porém com o objetivo de evitar os malefícios carcerários.
Referida pena, como se disse, surgiu com a reforma da Parte Geral do
Código Penal, atingindo as penas até um ano para crimes dolosos e de qualquer
duração
para os culposos, sendo seu campo enormemente alargado pela Lei n. 9.714, de 25
de novembro de 1998, que alterou alguns dispositivos do Código Penal, como os
arts.
43, 44, 45, 46, 47,55 e 77. Esta última lei criou mais duas penas substitutivas,
a prestação pecuniária e a perda de bens e valores, bem como alargou a sua
aplicação
para as penas privativas de liberdade até quatro anos.
157. Características. As características das penas restritivas de direito
são as seguintes:
a) em primeiro lugar são substitutivas, pois visam afastar a aplicação da
pena privativa de liberdade, quando estas demonstrarem que sua imposição
desnatura
a sua finalidade ressocializadora;
b) ao depois, gozam de autonomia, pois têm características e formas de
execução próprias (o art. 44 deixa bem claro tais características ao afirmar
textualmente:
"As penas restritivas de direitos são autônomas e substituem as privativas de
liberdade");
c) as penas substitutivas têm seus requisitos objetivos e subjetivos, não
sendo de aplicação automática.
1. Entre os requisitos objetivos, o mais importante é a quantidade da pena
privativa de liberdade, pois pode ser aplicada nos crimes culposos com qualquer
quantidade de pena privativa de liberdade e nos dolosos com reprimenda de até
quatro anos, desde que não caracterizado por violência ou grave ameaça à pessoa.
A reincidência (art. 44, lI) em crime doloso impede sua aplicação, salvo
forma excepcional prevista no art. 44, § 3.°, quando pode ser admitida desde que
socialmente
recomendável e não corresponda ao mesmo crime, isto é, não seja reincidente
específico.
2. As condições subjetivas estão contidas no art. 44, III, e dizem
respeito à culpabilidade do agente e às circunstâncias do crime. Nos termos
deste artigo,
em sua nova redação, para a substituição devem ser examinados a culpabilidade,
os antecedentes, a conduta social, a personalidade do condenado, bem como os
motivos
e as circunstâncias do crime. Feita a análise, a conversão só será possível se
recomendável diante dos princípios que nortearam a própria substituição, que são
a
ressocialização do condenado por meio de uma atividade fora dos muros prisionais
e evitar o contágio deletério do cárcere. A lei fala em pena "suficiente", dando
a entender que o objetivo seria unicamente examinar se a reprimenda substitutiva
alcançaria a finalidade intimidativa da pena. A nós parece que todos os
elementos
mencionados devem ser examinados num conjunto, numa unidade. Da mesma forma, se
rejeitada a conversão, deve ela ser fundamentada, baseada num inconveniente
determinado,
sob pena de nulidade da própria decisão.
A conversão da pena substitutiva na pena primitiva, isto é, uma conversão
às avessas, um retorno à pena que veio substituir, é possível em duas hipóteses,
a saber:
a) quando houver descumprimento injustificado da pena restritiva imposta,
oportunidade em que apenas deve ser feito o desconto do tempo já cumprido (é o
que
diz o art. 44, § 4.°);
b) na hipótese de uma nova condenação por pena privativa de liberdade e
por outro crime, dando-se ao magistrado a faculdade de mantê-la, desde que
possível
e recomendável a sua continuidade, como deixa claro o art. 44, § 5.°. Embora
hipótese difícil e improvável como realidade fática, temos a previsão legal.

158. Espécies. Como se disse anteriormente, cinco são as penas restritivas


de direito, diante da Lei n. 9.714/98.
a) A prestação pecuniária consiste numa das inovações e traz as
características da antiga composição juntamente com o caráter indenizatório em
relação ao dano
ou ao prejuízo decorrente do crime. A sua vantagem pode ser vislumbrada no
comentário contido no item 159 desta obra.

Na prestação pecuniária o juiz fixará um valor a ser pago pelo condenado,


entre 1 (um) e 360 (trezentos e sessenta) salários mínimos, pagamento este, em
regra,
previsto como sendo em dinheiro.
A respeito devem ser feitas duas observações:
1. O destinatário da condenação poderá ser a vítima, um terceiro interessado e
atingido pelo crime (a lei fala em dependentes, mas poderemos falar em terceiro
atingido
patrimonialmente pelo crime) ou então uma entidade pública ou privada com
finalidade social, quando não houver vítima determinada.
O valor a ser pago poderá ser compensado em eventual condenação
indenizatória de natureza civil, desde que coincidentes os beneficiários.
2. A sua fixação não pode ser livre ou arbitrária, mas sim amplamente
fundamentada, uma vez que, constitucionalmente, adotamos o princípio da
individualização
da pena. No nosso entender a decisão deverá ser fundamentada, adotando-se três
princípios, a saber: a situação econômica de quem a suportará, para que não
possa
constituir um impedimento à própria substituição; o dano ou prejuízo decorrente
do crime, para que se possa falar em eventual compensação e a situação econômica
do beneficiário, de modo que não se torne um estímulo de exigências absurdas por
parte do ofendido.
O § 2.° do art. 45 prevê a substituição do pagamento em dinheiro por
pagamento em espécie, desde que haja aceitação por parte do beneficiário. No
nosso entender,
melhor teria agido o legislador se deixasse tal faculdade a critério do juiz e
não da vítima, pois o magistrado, a título de exemplo, poderia operar com uma
variante
maior, como a entrega de cestas básicas ou outros bens de primeiro consumo, com
o que o ofendido ou mesmo uma entidade assistencial estaria melhor atendida.

b) A segunda inovação consiste na perda de bens e valores em favor do


Fundo Penitenciário Nacional, cujo teto será o prejuízo causado pelo crime ou
então o
proveito obtido pelo agente. Adotou-se como fundamento de sua criação a chamada
teoria do desestímulo do crime, visando retirar do agente o que ele obteve como
produto
do crime.
c) A prestação de serviço comunitário consiste na atribuição ao condenado,
de maneira compatível e de acordo com suas aptidões, de tarefas gratuitas junto
a entidades assistenciais, escolas, orfanatos ou outros estabelecimentos
congêneres. O serviço prestado é gratuito, surgindo como exceção ao princípio
geral do trabalho
remunerado. Para não haver sacrifício à subsistência do condenado deve ser
realizado aos sábados, domingos e feriados, salvo o interesse do condenado em
substituir
por um outro dia da semana, completando as oito horas.
O tempo de cumprimento de tal pena substitutiva poderá ser menor que a
fixada primitivamente, a critério do juiz, porém não poderá ser inferior à
metade da
pena de liberdade fixada, se esta for maior que um ano, como preceitua o art.
46, § 4.°.
d) A interdição de direitos, prevista no art. 47 do Código Penal, é de
quatro espécies:
1. proibição do exercício de cargo, função ou atividade pública, bem como
de mandato eletivo;
2. proibição do exercício de profissão, atividade ou ofício que dependam
de habilitação especial, de licença ou autorização do poder público;
3. suspensão de autorização ou habilitação para dirigir veículos; e
4. proibição de freqüentar determinados lugares.
e) A derradeira restrição de direitos consite na limitação de fins de
semana, traduzindo-se na obrigação de permanecer, aos sábados e domingos, por
cinco horas,
em casa de albergado ou congênere, aproveitando o tempo em tarefas educativas ou
palestras, tudo com o escopo de reeducar e ressocializar o condenado.

O gráfico ora apresentado demonstra a forma e condições de substituição.

Condições objetiva e subjetiva da substituição (art. 44)

I - penas privativas - até quatro anos se crime doloso ou qual quer quantidade
se culposo (art. 44, 11);
II - sem violência ou grave ameaça à pessoa;
III - não reincidente em crime dolos o (art. 44, 11);
IV - culpabilidade, antecedentes, conduta social e personalidade do condenado,
bem como os motivos e as circunstâncias indicativas da substitutiva mostrem ser
ela
suficiente (art. 44, III).

Substituição:

a) isolada (art. 44, § 2.°)

b) cumulada com (art. 44, § 2.°)

- outra pena restritiva


- multa
c) independente de cominação (art. 54)
Por seu turno, o quadro a seguir estabelece a visualização das penas
restritivas de direitos.

Penas restritivas de direitos (arts. 43)


1. Prestação pecuniária (art. 43, I)
2. Perda de bens e valores (art. 43, 11)
3. Prestação de serviço à comunidade (art. 43, IV)

- entidade assistencial
- hospital
- escola
- programa comunitário ou estatal

- orfanato
- estabelecimento congênere
4. Interdição temporária de direitos (art. 43, V)

- proibição do exercício (art. 56)

==>
==> cargo
==> função
==> atividade
==> mandato eletivo

- público

- proibição do exercício (art. 56)


==>
==> profissão - habilitação especial
==> atividade
==> ofício

- proibição do exercício (art. 56)


==> de licença - poder público
==> de autorização

- proibição de freqüentar determinados lugares (art. 47, IV)

5. Limitação de fins de semana (art. 43, VI)

- permanência aos sábados e domingos, por cinco horas diárias, em casa do


albergado, ou outro estabelecimento adequado
- cursos e palestras

v
DA PENA DE MULTA

SUMÁRIO: 159. Natureza. 160. Pagamento. Conversão. Revogação.

159. Natureza. A pena de multa é uma modalidade de pena patrimonial que


consiste no pagamento por parte do sentenciado, a um fundo penitenciário, de uma
importância
correspondente, no mínimo de dez e no máximo de trezentos e sessenta dias-multa,
calculado de modo a corresponder a um trigésimo do salário mínimo vigente à
época
da sentença.
Já tivemos ocasião de falar que a composição é o traço mais remoto da
multa. Dissemos também que o direito germânico teve o Wehrgeld, importância pela
qual
o delinqüente, que havia "perdido a paz", comprava do ofendido, ou de sua
família, o direito de se vingar. Contou ainda com o Fredum, quantia menor paga
ao representante
do poder público.
Modernamente, reconheceu-se o valor dessa pena. Substitui com vantagens as
privativas de liberdade, quando de pequena duração. Condenado o indivíduo a pena
diminuta, não há tempo de submetê-Io à terapêutica penal, e, ao revés, só se
poderá piorá-lo, pois sabemos ser muito mais rápida a influência nefasta e
nociva, contaminando-o,
do que sua recuperação.
Todavia a vantagem não se cifra só nisto. Freqüentemente, os crimes são
cometidos com objetivos ditados pela cobiça, cupidez aos bens alheios, e, então,
a
multa vai ferir o delinqüente nesse sentido subalterno. Dói-lhe tirarem-lhe seu
dinheiro. Ele, que se seduz e fascina com tanta facilidade pelos haveres de
outrem,
sente profundamente quando "lhe levam o seu", na expressão avoenga do Livro V
das Ordenações. A multa tem, pois, a vantagem de atacar o sentenciado nessa
paixão
anti-social que não deve merecer quartel.
As legislações reconhecem sua utilidade. O Código Penal italiano, até no
silêncio da lei, confere ao juiz a faculdade de aplicá-la. Na Inglaterra é ela
profusamente
empregada. Na Europa, máxime nos países nórdicos, seu uso é constante. Também na
Alemanha, embora o Projeto do Código Penal nazista a tivesse restringido
bastante.
Vários são os critérios conhecidos pelas legislações para o
estabelecimento da pena pecuniária, como, a título de exemplo, uma parte do
patrimônio do condenado,
uma parte proporcional de sua renda, o dia-multa e a cominação abstrata entre um
mínimo e um máximo prefixado pelo legislador.
Na reforma temos como prestigiado o dia-multa.
Trata-se de um sistema adotado por vários países (Códigos da Dinamarca,
Alemanha, Peru, Finlândia, Suécia etc.) e que tem a sua vantagem de permitir uma
fixação flutuante, evitando seu desgaste diante da desvalorização da moeda, com
a conseqüente obrigatoriedade de sucessivas leis atualizadoras.
Algumas leis esparsas apresentam como pena pecuniária um determinado
número de salários mínimos, como o Código Florestal (Lei n. 4.771), a de
incorporação
imobiliária (Lei n. 4.591), a do parcelamento do solo urbano (Lei n. 6.766), e
outras.
A nós nos parece que, diante do disposto no art. 7.°, IV, da Constituição
Federal, não mais é possível a pena graduada num determinado número de salários
mínimos,
pois referido dispositivo constitucional declarou expressamente que o mesmo não
poderia ser vinculado a qualquer outra finalidade que não o pagamento como
contraprestação
de um serviço recebido. A parte final do dispositivo constitucional diz
expressamente: "sendo vedada sua vinculação para qualquer fim".
Portanto, parece-nos que, com a promulgação da Constituição Federal de
1988, não mais é possível a aplicação da pena de multa de tantos salários
mínimos, diante
da expressa vedação do art. 7.°, IV, do Capítulo "Dos direitos sociais".

A Lei n. 8.245, que regula a locação predial urbana, em seu art.


43, traz uma curiosa pena de multa: um valor correspondente de três a doze do
valor
do último aluguel vigente à época da infração. Adotou, como se vê, como medida
da pena pecuniária o aluguel vigente ao tempo da infração cometida contra a
locação
protegida. E mais curiosamente afirmou, contrariando o disposto no art. 49 do
Código Penal, que a pena de multa é imposta e "revertida em favor do locatário".
Verifica-se,
assim, que a vítima tornou-se beneficiária da pena de multa.

160. Pagamento. Conversão. Revogação. Em capítulo próprio e relativo à


fixação da pena (n. 165) será estudado o modo de sua aplicação.
O pagamento da pena de multa obedece a quatro critérios básicos:
a) deve ser paga no prazo máximo de dez dias após o trânsito em julgado
da decisão condenatória;
b) é admissível o pagamento em parcelas, a pedido do condenado e
atendida quando indicada pelas circunstâncias;
c) pode ser exigida mediante desconto no vencimento ou salário do
condenado, desde que aplicada isoladamente ou então cumulativamente com a
restritiva de direito
ou ainda se houver a suspensão condicional da pena;
d) o desconto não pode atingir o necessário ao sustento do próprio
condenado ou de sua família.
A recente Lei n. 9.268, de 1.° de abril de 1996, dando nova redação ao
art. 51 do Código Penal, extinguiu a possibilidade da conversão da pena de multa
em
pena privativa de liberdade, estabelecendo que a pena de multa será considerada
dívida de valor; na hipótese de não-pagamento, será considerada dívida ativa da
Fazenda
Pública.

VI
DA APLICAÇÃO DA PENA

SUMÁRIO: 161. Arbítrio judicial. 162. O art. 59. 163. A personalidade do agente
e a gravidade objetiva do crime. 164. Circunstâncias legais. 165. Fixação da
pena.

161. Arbítrio judicial. No estudo da evolução histórica das idéias penais


(no 15 e s.) vimos que, primeiramente, predominou na justiça o arbítrio
judicial,
com a desigualdade de classes na punição, a desumanidade das penas, o sigilo do
processo, os meios inquisitoriais, a imprecisão das leis etc., até que, no
século
XVIII, raiasse o Iluminismo que iria conduzir a justiça ao pólo oposto, com a
exaltação do individualismo e reação contra o estado de coisas então reinante.
O juiz passou, agora, a ser considerado quase um autômato na aplicação da
pena. Esta já era fixada em lei e dividida em graus, a que ele ficava sujeito na
sentença. Entre nós, até o advento do Código de 1940, predominou essa concepção.
Ao aplicar a pena, o magistrado estava jungido aos graus máximo, mínimo, médio,
submáximo e submédio, pouco ou quase nada restando para seu subjetivismo ou
determinação pessoal.
Não pensou assim a reforma atual, como já ocorrera na redação primitiva do
Código. Na aplicação da pena foi dada certa latitude ao juiz, não somente em
relação
à quantidade, mas também à escolha entre as penas alternativamente cominadas, à
faculdade de aplicar cumulativamente penas de espécie diversa e deixar de
aplicar
qualquer uma das cominadas.
O julgador não se pode limitar à apreciação exclusiva do caso, mas tem de
considerar também a pessoa do criminoso, para individualizar a pena. Como
escreve
Soler, é uma tarefa delicada, para a qual o juiz, além da competência jurídica
teórica, deve possuir conhecimentos psicológicos, antropológicos e sociais,
aliados
a uma fina intuição da realidade histórica e uma sensibilidade apurada.
A pena não tem mais em vista somente o delito. Ao lado da apreciação dos
aspectos objetivos que ele apresenta, há de o juiz considerar a pessoa de quem o
praticou,
suas qualidades e defeitos, fazendo, em suma, estudo de sua personalidade, sem
olvidar sobretudo a possibilidade de tomar a delinqüir, ou a periculosidade.

162. O art. 59. Tem a aplicação da pena sede principal no art. 59, que
impõe ao juiz determinar a pena justa, dentre as cominadas alternativamente, e
fixar,
dentro em os limites legais, a quantidade. Aliás, o princípio da
individualização da pena foi consagrado constitucionalmente pelo art. 5.°, XLVI,
que determinou
que a lei, no caso o art. 59 do Código Penal, regulará a individualização da
pena, isto é, estabelecerá os princípios individualizadores da reprimenda.
Duas são, pois, as operações que ele fará. Se, v. g., a pena cominada à
infração for de dois ou três meses de detenção ou multa, compete-lhe a escolha,
no
caso concreto, aplicando uma ou outra. Escolhida que seja a pena, passa, então,
a dosá-Ia, isto é, fixará sua quantidade dentro em os extremos que a lei fornece
- o máximo e o mínimo. Para isso, terá em vista, nos termos do mesmo artigo, os
antecedentes e a personalidade do agente, a intensidade do dolo ou grau da
culpa,
os motivos, as circunstâncias do delito, aliados a outras accidentalia, como se
verá.
Pela redação do artigo, parece-nos inegável que ele deu realce à
capacidade de delinqüir do agente, em relação à gravidade objetiva do delito.
Esta deduz-se
da natureza, espécie, meios, objeto, tempo, lugar e qualquer outra modalidade da
ação; da gravidade do dano e do perigo causado à pessoa ofendida pelo crime; e
da
intensidade do dolo e do grau da culpa (estes referem-se antes ao indivíduo). A
capacidade se infere dos motivos de delinqüir e do caráter do réu, dos
antecedentes
penais e jurídicos, da vida anterior do mesmo réu, do procedimento contemporâneo
ou posterior deste, e das suas condições de vida individual, familiar e social.
A lei refere-se à outra somente em último lugar e com a simples expressão:
"circunstâncias e conseqüências do crime", ao passo que àquela dispensa maior
consideração,
não só por mencioná-Ia em primeiro lugar como também por se demorar mais ao
enunciar os elementos que a compõem.

163. A personalidade do agente e a gravidade objetiva do crime. Como


elemento para aferir a capacidade de delinqüir do agente, a lei menciona em
primeiro lugar
a culpabilidade. Portanto, como primeiro elemento a ser analisado, temos a
intensidade do dolo e o grau da culpa. A intensidade daquele é sua quantidade.
Costuma
distinguir-se, a respeito, o dolo premeditado do de ímpeto. Este é o que surge
de improviso, ao passo que aquele traduz reflexão e ponderação. A lei não se
preocupou
com o dolo premeditado ou com a premeditação. Já teve grande fastígio nas
legislações precedentes. Hoje, entretanto, sua importância é relativa, pois o
espaço de
tempo que se intercala entre a deliberação e a execução pode traduzir vacilação,
luta íntima do criminoso, embate entre o impulso delitivo e os freios
inibitórios.
Nada impede, entretanto, considerando-se o arbitrium judicis, que, no caso
concreto, o julgador tenha a premeditação como reveladora de intensidade dolosa,
se, de
fato, ela demonstra cálculo, frieza de ânimo etc.
Outra distinção é a do dolo direto e do eventual, o primeiro mais grave.
A culpa, como vimos, tem graus. Vai desde a aquiliana, na sua modalidade
de levíssima, até o grau mais avançado de culpa consciente.
Esta, em princípio, representa forma de maior gravidade. Nem sempre,
porém. A culpa consciente, muita vez, importa necessidade de menor disciplina do
que a
inconsciente, pois ali o agente prevê as conseqüências do ato, embora espere que
não se verifiquem, dada sua habilidade, cautela, cuidado etc., ao passo que na
culpa
ex ignorantia, tão desatento, descuidado ou negligente é, que nem por um momento
previu os efeitos da ação (n. 82). Também aqui é no caso concreto que se
avaliará
a importância da espécie de culpa.
Os antecedentes entram como segundo elemento para o exame. São tanto os
bons como os maus, tanto os judiciais como os extra judiciais. Apreciase, assim,
o
fato de haver o réu sido condenado anteriormente (abstraída a reincidência), de
terem existido outros processos contra ele, de estar sendo processado por mais
delitos
etc. Além disso, é mister ser examinada sua conduta de pai, esposo, filho, amigo
etc., ou seja, o comportamento familiar e social. É a vida pregressa ou anteacta
que deve ser investigada.
A conduta social, isto é, a sua integração e o relacionamento dentro dos
grupos sociais dos quais participa, desde o núcleo familiar até os agrupamentos
maiores,
deve ser analisada como terceiro fator.
A personalidade do criminoso é outro elemento para o qual deve o
magistrado volver suas vistas. Com isso, "quer-se dizer", escreve o douto
Hungria, "antes
de tudo caráter, síntese das qualidades morais do indivíduo. É a psique
individual, no seu modo de ser permanente. O juiz deve ter em atenção a boa ou
má índole
do delinqüente, seu modo ordinário de sentir, de agir ou reagir, a sua maior ou
menor irritabilidade, o seu maior ou menor grau de entendimento e senso moral.
Deve
retraçar-lhe o perfil psíquico".

O motivo, ou seja, a razão pela qual a vontade se determina é um outro


requisito, máxime para a Escola Positiva, que afirmou ser ele a pedra de toque
da periculosidade
individual. A gravidade do crime reside principalmente nele, pois tem o condão
de transformar um delito execrável em tolerado. Sua relevância não é apenas no
crime
doloso, mas no culposo também, pois, como escreve Santoro, tanto se pode correr
desenfreadamente com o automóvel, impelido pelo desejo de buscar um prazer
abjeto,
como para comprar medicamento para um moribundo.
A gravidade objetiva do crime é dada pelas circunstâncias que o rodeiam,
isto é, as que se prendem ao tempo, lugar, modo de agir, meios empregados,
atitude
durante o fato etc.
O último elemento são as conseqüências, isto é, o maior ou menor vulto do
dano ou perigo de dano, que sempre é inerente ao delito, não só para a vítima
como
para a sociedade, o sentimento de insegurança provocado nesta e outros efeitos
ainda que mais afastados.
O derradeiro elemento é uma inovação da recente reforma penal: o
comportamento da vítima. A participação do ofendido no crime, como as
circunstâncias pessoais,
o relacionamento existente, o modo de agir, uma possível provocação e outros
assemelhados igualmente devem ser examinados como elementos fixadores da pena a
ser
escolhida e calculada.

164. Circunstâncias legais. Além das circunstâncias do art. 59, a lei, nos
arts. 61 a 65, menciona outras que se denominam legais ou obrigatórias. As dos
arts.
61 a 64 sempre agravam a pena, enquanto as do art. 65 atenuam. Ditas
circunstâncias serão examinadas em momento oportuno, mas devem aqui ser
mencionadas porque entram
no cálculo da pena, como se verá.
Não são elas, entretanto, as únicas circunstâncias legais; há outras que
são especiais, assim denominadas por se referirem a certos e determinados crimes
e
definidas na Parte Especial do Código, ao passo que as dos arts. 61 e 65 são
genéricas, referem-se aos crimes em geral. Assim, enquanto a embriaguez
preordenada
(art. 61, 11, l), v. g., é uma agravante genérica, a paga ou promessa de
recompensa é especial ou específica do homicídio (art. 121, § 2.°, I).
Não é só, porém. Há outras circunstâncias que também devem ser consideradas: são
as causas de aumento ou diminuição de pena, que se encontram, ora na Parte
Geral,
ora na Especial do Código. As causas de aumento são obrigatórias, exceção feita
à do art. 60, parágrafo único, onde o verbo poder exprime faculdade. As de
diminuição
são facultativas. O parágrafo único do art. 14 contém uma causa de diminuição de
pena obrigatória; já no § 2.° do art. 155 - "furto privilegiado" - ela é
facultativa.
Exemplo de causa de aumento temos, v. g., no art. 168, § 1.°: a pena (i. é, da
apropriação indébita) é aumentada de um terço.
Não se confundem, pois, essas circunstâncias com as obrigatórias (arts. 61
a 65). Nestas, o julgador não está adstrito a graus; elas agravam ou atenuam a
pena,
porém a majoração e abrandamento não estão declarados na lei, gozando, dessarte,
o juiz de latitude quanto aos efeitos que produzirão no cômputo da pena. Porém
aquelas,
como já se viu, ou fixam um aumento ou diminuição certos, ou fixam-nos entre
dois extremos legais.
Conseqüentemente, em nossa lei, as circunstâncias são judiciais (art. 59),
legais ou obrigatórias (arts. 61 a 65), especiais (art. 155, § 4.°) e causas de
diminuição (art. 26, parágrafo único) ou aumento de pena (art. 157, § 2.°).

165. Fixação da pena. A atual reforma, através de seu art. 68, espancando
todas as dúvidas geradas pela redação originária do Código, dúvidas essas que
ensejaram
profícuos debates doutrinários e jurisprudenciais, estabeleceu que o cálculo da
pena será feito em três fases. Prestigiou, destarte, o sistema preconizado pelo
pranteado
Nélson Hungria.
A primeira fase, segundo o dispositivo legal citado, corresponde à fixação
da pena-base, tendo como norte o estatuído no art. 59, já estudado. Por pena-
base,
segundo Hungria, entende-se o quantum encontrado pelo juiz com fundamento nas
circunstâncias judiciais, tirante as circunstâncias legais genéricas (agravantes
e
atenuantes) e as causas de aumento ou de diminuição. É a pena individualizada,
isto é, a obtida pelo juiz através do exame dos antecedentes e da personalidade
do
agente, a intensidade do dolo ou o grau da culpa, os motivos, as circunstâncias
e as conseqüências do crime, excluídas as circunstâncias legais.
A segunda fase corresponde à análise e respectivo exame das circunstâncias
agravantes e atenuantes (CP, arts. 61 a 65) existentes e, por fim, consiste no
resultado
através do cotejo entre as reconhecidas, na forma mencionada pelo art. 67.
A fase derradeira consiste em fazer incidir as causas de aumento ou
diminuição previstas na Parte Geral ou na Parte Especial do Código Penal.
A pena definitiva pode surgir em quaisquer das fases (a pena-base se
tornará definitiva se não houver circunstâncias legais genéricas nem causas de
aumento
ou diminuição) e, quando encontrada, ensejará duas novas operações, também
realizadas com base no art. 59: qual o regime inicial para o cumprimento da
pena, se fechado,
semi-aberto ou aberto, se escolhida a privativa de liberdade (art. 59, III) ou a
substituição da privativa de liberdade por outra, se cabível (art. 59, IV).
No que diz respeito à pena restritiva de direito, quando escolhida, a
espécie deve guardar relação direta com o crime cometido. A perda da função
pública nos
crimes contra a administração ou que tomem necessário o afastamento do condenado
do serviço público, a suspensão do direito de dirigir automotores nos crimes de
trânsito etc., tudo como preconizado pelos arts. 56 e 57 do Código
Penal.
A fixação da pena de multa obedece a um critério próprio e peculiar. Para
a fixação da pena de multa o julgador deve ater-se a um fator principal e
essencial
e outro secundário e acidental, realizando duas operações sucessivas.
Diz o art. 60 que na fixação da pena de multa o julgador deve ater-se
"principalmente" à situação econômica do réu.
O advérbio modal "principalmente" demonstra que, ao lado de um fator
essencial, outros também intervêm na escolha e fixação. O elemento essencial e
preponderante
é a situação econômica do condenado, que deve ser analisada e sopesada, servindo
como base; outros, secundários e acidentais, como o dano sofrido pela vítima, a
avidez do infrator, o proveito obtido ou a ser obtido com o crime etc.,
também influenciam a fixação.
As agravantes e as atenuantes não têm aplicação na pena pecuniária.
Depois, duas operações sucessivas, já que a norma incriminadora não fixa a
quantidade e o valor do dia-multa.
Por primeiro, a fixação da quantidade, que deve situar-se entre um
mínimo de dez e um máximo de trezentos e sessenta dias-multa.
Em seguida, o valor, que não pode ser inferior a um trigésimo do maior
salário mínimo mensal vigente nem ultrapassar a cinco vezes o mesmo salário
(act. 49,
§ 1.°).
Quando a quantidade máxima possível revelar-se ineficaz diante da situação
econômica do condenado, a quantidade em questão pode ser aumentada até o triplo.
É o que deixa claro o art. 60 em seu § 1.°.
O quadro abaixo demonstra as duas operações: valor e limite.

Valor do dia-multa (ar!. 49, § 1.°)


- menor: 1/30 do maior salário - vigente ao
tempo do fato
- maior: 5 vezes o maior salário mínimo - vigente ao
tempo do fato

Limites da pena de multa (art. 58)

- mínimo: 10 vezes o valor do menor dia-multa (art. 49);


- máximo: 360 vezes o valor do maior dia-multa (ar!. 49);
- especial: 360 vezes o valor do maior dia-multa vezes 3, ou seja, a multa
máxima vezes 3 (m. 60, § 1.°).

Quanto à aplicação, o gráfico abaixo indica a escolha.

Multa

- isolada (art. 50, § 1.0, a);


- cumulada (art. 44, § 2.0 e art. 50, § 1.0, h);
- substitutiva (art. 44, § 2.0; art. 58; e art. 60, § 2.0);
- independente de cominação (art. 44, § 2.0; art. 58, parágrafo único;
e art. 60, § 2.0);
- somada (art. 72).

VII

CIRCUNSTÂNCIAS AGRAVANTES

SUMÁRIO: 166. Considerações gerais. 167. Circunstâncias agravantes. 168. A


reincidência.

166. Considerações gerais. Circunstância é tudo que modifica um fato em seu


conceito sem lhe alterar a essência! . Sendo o crime um fato, é indubitável que
apresente peculiaridades que o alterem. Assim é que o mesmo crime, v. g., o
furto, pode ser praticado com particularidades que lhe dão outra feição -
subtrair coisa
de valor mínimo e subtrair móvel mediante escalada.
Vê-se, pois, que circunstâncias são elementos que se agregam ao delito sem
alterá-lo substancialmente, mas produzindo efeitos e conseqüências relevantes.
É mister, entretanto, distingui-los. Como o próprio art. 61 diz, há
algumas que são elementares ou qualificadoras do delito. As primeiras integram o
tipo,
constituem elemento seu; sem elas, ele inexistiria, tal qual se dá com a
circunstância da idade maior de quatorze e menor de dezoito anos da virgem, no
crime de
sedução (art. 217).
Entretanto essa mesma circunstância deixa de ser elementar para tornar-se
qualificadora no crime de posse sexual mediante fraude (art. 215), em que a
menoridade
da virgem não constitui um tipo fundamental ou básico, mas qualificado
(parágrafo único).
Registre-se, ainda, como se falou antes, que circunstâncias existem, ora
na Parte Geral, ora na Especial, que funcionam como condições de maior ou menor
punibilidade
(causas de aumento ou diminuição de pena), como a do art. 168, § 1.°, que
enumera circunstâncias que agravam a sanção de um terço.
Mas as que os arts. 61 a 65 tratam são diferentes porque podem juntarse a
qualquer tipo sem alterá-lo na essência, apenas aumentando ou diminuindo a pena,
e sem o fazer dentro de limites previamente fixados. Traduzem, conseqüentemente,
maior ou menor gravidade do fato. São as denominadas accidentalia delicti, que
se
opõem às essentialia.
São também circunstâncias legais obrigatórias que, consoante se viu (n.
164), diferem das judiciais, compreendidas no art. 59.
Elas alteram ou modificam os efeitos da responsabilidade, sem suprimiIa e
sem mudar o tipo. Como escreve Pannain, os "elementos constitutivos imprimem ao
delito
sua configuração peculiar, a qualidade, o título; as circunstâncias inerentes
valem para caracterizá-lo em sua quantidade criminosa e punitiva".
As circunstâncias obedecem às classificações feitas na doutrina e na lei.
Elas podem ser subjetivas e objetivas (n. 162), conquanto Asúa ache que toda
circunstância
é subjetiva3. O Código italiano reconhece-as, expressamente, no art. 70,
dizendo: "1.° São circunstâncias objetivas aquelas que dizem respeito à
natureza, à espécie,
aos meios, ao objeto, ao tempo, ao lugar e a qualquer outra modalidade da ação,
à gravidade do dano ou do perigo, ou ainda às condições ou às qualidades
pessoais
do ofendido. 2.° São circunstâncias subjetivas as que se referem à intensidade
do dolo ou ao grau de culpa, ou às condições e qualidades pessoais do culpado,
ou
às relações entre o culpado e o ofendido, ou às inerentes à pessoa do culpado".
Tal distinção tem capital importância em matéria de co-autoria (n. 137).
São ainda intrínsecas ou extrínsecas. As primeiras são as que se referem à
execução ou consumação do fato incriminado, caracterizando-o como mais grave ou
mais leve, e são anteriores ao momento consumativo do próprio crime ou à
cessação da permanência. Circunstâncias extrínsecas são, ao invés, as que
agravam ou diminuem
a responsabilidade do culpado, por causas que não têm atinência com a execução
ou com a consumação do crime e que consistem em relações, fatos ou resultados
sucessivos
ao exaurimento do delito, ou, por qualquer forma, a este estranho
(arrependimento ativo, reincidência etc.).
Outros ainda apontam circunstâncias gerais ou especiais, simples e
complexas ou compostas, como faz Santoro.
O Código não ignora essas distinções. Já no art. 30 se refere às
circunstâncias subjetivas (pessoais) e no art. 59 alude também a estas
(antecedentes e personalidade
do agente, intensidade do dolo ou grau da culpa, e motivos), ao fato típico
(circunstâncias objetivas) e às conseqüências (circunstâncias extrínsecas).
Também do elenco fornecido pelos arts. 61 a 65 se observa referirem-se as
circunstâncias, ora ao sujeito ativo, ora ao fato típico e ora ao sujeito
passivo,
como razões de majorar ou minorar a pena.

167. Circunstâncias agravantes. Menciona o Código, em primeiro lugar, como


circunstância que sempre deve ser considerada - a reincidência, que,
disciplinada
como é nos arts. 63 e 64, 11, constituirá objeto de estudo, após o exame das
demais contidas no art. 61.
Objeto da alínea a do inc. II deste dispositivo é haver o crime sido
praticado por motivo fútil ou torpe. Já dissemos que motivo é a razão pela qual
a vontade
se determina; é, segundo Maggiore, o antecedente psíquico da ação, força que
movimenta o querer e o transforma em atos. Qualifica-o, na alínea em apreço, o
ser fútil.
Este é a que se reduz a questão de somenos, destituída de importância, ninharia.
Não chega à ausência, pois todo delito, como ação (em sentido amplo) que é, tem
um motivo. O crime gratuito é mera lucubração cerebrina de romancistas ou fruto
de mente enferma. A futilidade do móvel se afere pela desproporção com o crime.
Fútil
é o motivo do marido que espanca ou mata a mulher, por não estar pronto o jantar
ao chegar em casa; do homem que assassina outrem, por haver o clube de futebol
deste
vencido o seu etc.
Refere-se também a lei à torpeza do motivo. Diz-se torpe o móvel quando é
ignóbil, indigno, abjeto e vil. O indivíduo que mata a esposa porque esta não se
quer sujeitar mais à prostituição por ele explorada, age por motivo torpe.
Também assim se conduz o que comete um crime por paga ou promessa de recompensa,
que é
qualificadora do homicídio (art. 121, § 2.°, I), quando a lei deixa bem claro
sua natureza, acrescentando "ou por outro motivo torpe".
A majorativa da alínea b também foi capitulada no Código italiano (art.
61, § 2.°). Tem ela como fundamento a existência de dois crimes, presos por um
nexo
de meio e fim ou de causa e efeito. Ocorre o primeiro, v. g., se um indivíduo
mata ou fere um outro, para estuprar-lhe a filha, agora sem defesa. Dá-se o
segundo,
ao reverso, quando, havendo violentado uma donzela e já se retirando do local,
percebe que o ato foi presenciado por uma pessoa, e, então, a abate, com o fim
de
não poder ser provado o primeiro delito.
Pode o crime-fim não ser cometido, que o delito-meio será agravado, pois
basta sua prática, tendo aquele por escopo. Se ambos forem praticados, haverá
concurso
material ou formal, cabendo a agravante exclusivamente ao crime-meio. Nos
exemplos citados ela incide sobre os delitos contra a pessoa, e não sobre o
estupro.
Ocultar é impedir que apareça; relaciona-se ao fato. Impunidade é
assegurar a não-incidência de pena, apesar de conhecido o fato; relaciona-se ao
sujeito ativo.
A vantagem, na maior parte das vezes, será patrimonial, mas nada impede que seja
de outra natureza.
A alínea c enumera várias agravantes. A primeira é a traição. Atualmente
lhe dão os juristas o conceito de ataque de inopino, brusco, inesperado,
colhendo
a vítima de surpresa. A nosso ver, entretanto, a noção dessa majorativa devia
ser dada antes pela quebra de fidelidade, da confiança que era depositada no
agente.
Deve ela ter conteúdo moral. Corresponde à aleivosia das Ordenações do Livro V,
que era "huma maldade commetida atraiçoeiramente sob mostrança de amizade".
Aliás,
os comentadores do Código de 1890 não lhe davam outro significado. Vejam-se as
obras de Galdino Siqueira, Bento de Faria, Rodrigues Teixeira e Costa e Silva.
Este,
no comentário àquele diploma, escreve: "A traição significa perfídia e
deslealdade. É o ocultamento moral (na frase carrareana) que, dificultando a
reação e a defesa,
aumenta o perigo para a vítima e causa maior alarma social".
Em estudo feito acerca dessa agravante, ressaltávamos seu conteúdo moral,
alinhando as seguintes considerações: a) a tradição de nossas leis; b) que, se o
caráter da agravante fosse dado só pelo elemento físico ou material, não havia
necessidade de, em especial, capitular outras majorativas, como a emboscada, a
dissimulação,
o veneno etc., porque todas elas se reduzem à agressão, ao atentado inesperado
pelo ofendido, sendo de notar que a lei ainda usou expressão genérica - "ou
outro
recurso" - onde qualquer outro acometimento brusco ou repentino tem lugar; c)
que, conquanto todas essas agravantes apresentem como elemento comum a surpresa
para
a vítima, têm característicos próprios, não encontrados nas outras, informando
especialmente a traição o fator moral, a lealdade, a amizade, a fidelidade etc.;
d)
que essa interpretação é tanto mais aceitável quando verificamos não haver nossa
lei capitulado a do abuso de confiança, do Código ab-rogado, que com ela tem
pontos
de contato; e) finalmente, que não é aceitável a esquecesse, com esse
característico, o legislador, como expressivo índice de periculosidade do
agente, quando se
preocupou com outras menos graves.
Emboscada é o ato de esperar, oculto ou escondido, a vítima para agredi-
Ia; é o assalto de quem se esconde. É a toca ia do nosso sertanejo, o agguato
dos italianos
e o guet-apens dos franceses. Há insídia e covardia do agente, atacando o
ofendido, sem este ter tempo sequer, na maior parte das vezes, para saber de
onde partiu
a agressão.
Dissimulação - escreve Roberto Lyra - é o encobrimento dos próprios
desígnios, o "disfarce" - conceituado no direito anterior - supondo a ocultação
e não a
afetação, como na simulação do sexo, da fisionomia, da cor, da voz, do estado de
espírito etc. O agente faz a fraude preceder à violência, associando as formas
características
da criminalidade atávica e da criminalidade evolutiva.
Em todos esses modos de execução, inclusive o outro recurso, é mister
haver idoneidade: a dificuldade ou impossibilidade de defesa deve resultar deles
e não
do procedimento da vítima ou de um acontecimento fortuito.
Das agravantes que integram a alínea d, surge em primeiro lugar o veneno
para a prática do crime. Não é fácil conceituá-lo; difícil, aliás, é estabelecer
limites
entre ele, o alimento e o medicamento. Às vezes, tudo depende da dose. A
morfina, a cocaína, a estricnina e outros alcalóides são medicamentos e são
tóxicos. O açúcar
é alimento e pode ser veneno para um diabético.
A dificuldade de conceituar o veneno não pode trazer empecilhos ao
julgamento ou à apreciação da agravante, pois, no caso, a perícia médica o
definirá.
Deve ter-se em vista que ele é um meio insidioso e com insídia deve ser
empregado. Quem, em luta corporal, deitasse goela abaixo do contendor um veneno,
não
cometeria homicídio qualificado, a menos que este produza também a morte por
meio cruel, sendo esse o objetivo do agente, quando, então, a agravante se
verifica
nesta outra modalidade.
O fogo pode não só ser um meio cruel - como há tempos se registrou nesta
Capital, em que certa esposa, aproveitando o sono do marido, ateou-lhe fogo nas
vestes
embebidas de querosene - como também representar um meio de perigo comum.
Também oferece perigo comum o explosivo, que é a substância que atua com
maior ou menor detonação ou estrondo. É a matéria capaz de produzir rebentação.
O
art. 2.° do Decreto n. 6.911, de 19 de janeiro de 1935, alinha as substâncias
consideradas explosivas.
Por último, a alínea cita a tortura: é a inflição de um mal, tormento ou
sofrimento etc., desnecessário e fora do comum. Estamos que pode ser física e
moral,
pois a lei fala ou outro meio cruel, e este participa de ambas as naturezas.
Deve o agente ter o objetivo de produzir o sofrimento: antes de matar, v. g.,
vazar
os olhos da vítima, arrancar-lhe a língua etc.
A enumeração legal é exemplificativa, já que se menciona outro meio
insidioso (de que o veneno é típico), cruel (tortura e asfixia) e de perigo
comum (fogo
e explosivo).
A alínea e considera agravado o crime se cometido contra ascendente,
descendente, irmão ou cônjuge. Trata-se de relações de parentesco, que, conforme
a natureza
do delito, importam em falta ética alarmante, ao passo que em outros
constituirão, ao revés, imunidades penais (arts. 181 e 182). Fundamenta também a
agravante a
maior facilidade da prática do delito.
Com oportunidade, lembra Basileu Garcia que o "Código Penal, aqui, não
explica se o parentesco natural, resultante de consangüinidade, é equiparado,
para os
efeitos penais, ao civil, proveniente de adoção e que se limita ao adotante e ao
adotado (Cód. Civil, art. 376). Deve entender-se que ocorre a equiparação".
A alínea f é quase reprodução do art. 61, 11, do Código Penal italiano.
Abuso é o uso ilegítimo, é usar mal, no caso, a autoridade que possui, seja de
natureza
particular ou pública, desde que não compreendida na alínea seguinte. Relações
domésticas são as estabeleci das entre os componentes de uma família, entre
patrões
e criados, empregados, professores e amigos da casa. A coabitação importa
convivência sob o mesmo teto ainda que por pouco tempo. Diversa é a
hospitalidade (em regra
passageira ou momentânea). A agravante repousa ainda na maior facilidade da
prática delituosa, como também em situações que traduzem confiança, amizade,
freqüência,
convivência etc., a exigirem maior consideração ou cautela.
Também reprodução de dispositivo do Código de Rocco é a alínea h. Refere-
se à função pública (cargo ou ofício, podendo este, entretanto, significar
profissão
de natureza material), ao ministério (sobretudo o religioso, abrangendo qualquer
culto) e à profissão (atividade de natureza intelectual). Conforme o delito,
essas
circunstâncias apontadas o facilitam, ao mesmo tempo que traduzem maior falta
por parte do agente. Cumpre notar, todavia, que elas não devem ser elementares
ou integrantes
do tipo. Seria estranho pensar-se que a qualidade de funcionário público
agravaria o crime de peculato, ou que a de médico ou sacerdote aumentaria a pena
do delito
de violação de segredo profissional (arts. 312 e 154).
A majorativa da letra h funda-se em maior periculosidade, em princípio, do
agente, assentada em sua covardia e perversidade. A criança merece-nos proteção;
o velho, respeito; o enfermo, amparo e paciência; e a mulher grávida, cuidados
especiais com a sua saúde e a própria saúde do nascituro. Com razão agrava-se a
pena
do que não observa esses princípios, ao mesmo tempo que se vale de sua
superioridade física para ofendê-los.
A agravante da letra i revela, sem dúvida, acentuada periculosidade do
agente que não vacila em delinqüir, embora o ofendido esteja sob a proteção da
autoridade.
Ao crime, o delinqüente junta o desrespeito ao representante do poder público. A
proteção da autoridade deve ser imediata - frisa o dispositivo - já que, de
maneira
geral, todos estão sob proteção daquela. Os autores ilustram a agravante com o
linchamento de criminosos presos (Costa e Silva, Basileu Garcia etc.). Todavia é
mister
distinguir: o fato não agravará o crime cometido contra o ofendido, quando por
si já constituir delito, como o do art. 353, ocorrendo, então, um concurso de
crimes.
Finalmente, a alínea l assenta-se ainda em maior falta de sentimento de
humanidade, revela perfídia, procedimento soez do delinqüente que não se detém
diante
de circunstâncias que inspiram antes solidariedade e auxílio ao próximo. Caso
comum é aproveitar-se o agente da ocasião de calamidade pública para furtar.
A alínea I capitula a embriaguez preordenada. O agente vai buscar no
álcool a coragem que lhe falta para o delito. Tem aqui plena aplicação a teoria
da actio
libera in causa, pois, se o criminoso não é livre no momento da execução ou do
evento, era-o antes, quando formulou o desígnio delituoso. Necessário, portanto,
haver
nexo entre o resultado do crime e a conduta inicial livre. Esta antecede à
ebriedade proposital, com o objetivo de delinqüir mais resoluta ou
desembaraçadamente.
Notória, pois, a periculosidade do sujeito ativo.
Essas agravantes são quase todas só aplicáveis ao crime doloso. Excetua-se
a reincidência. E queremos crer que cabíveis são também as da violação de dever
inerente a cargo, ofício, ministério, ou profissão, e abuso de autoridade ou
preva1ecimento de relações domésticas, de coabitação ou de hospitalidade. Como
estas
duas últimas, também a do motivo, porque se refere à conduta causal voluntária e
não ao evento querido.
As agravantes mencionadas no art. 62 relacionam-se ao concurso de agentes,
e a elas já aludimos no n. 134. A lei tem em consideração situações que
patentemente
importam maior responsabilidade do agente, quer por ser a causa principal do
delito, quer porque sua atuação revela, em princípio, maior periculosidade,
estando,
neste último caso, o criminoso mercenário. Nas outras hipóteses, ou o agente tem
conduta de maior relevo (incs. I e 11) ou pode até ser a causa única (inc. III),
quando o instigado for inimputável, v. g., um menor de dezoito anos, o que,
aliás, também pode suceder no inc. II, tal seja a quantidade de coação.
Com a Constituição Federal e a Lei n. 8.069/90 (Estatuto da Criança e do
Adolescente) surgiu mais uma forma de agravamento da pena, tendo por base o
sujeito
passivo.
Preceitua o art. 227, § 4.°, da Constituição Federal que a "lei punirá
severamente o abuso, a violência e a exploração sexual da criança e do
adolescente".
O advérbio modal usado pela Constituição significa que a lei não deve ter
condescendência, sendo aplicada com exata e estrita justiça, afastadas todas as
possibilidades
de benefício ao sujeito ativo. Embora não fale em agravamento, a severidade traz
um sentido de gravidade maior.
Complementando o dispositivo constitucional, a Lei n. 8.069 estabeleceu o
aumento de um terço da pena nos casos de homicídio doloso, lesões corporais
dolosas,
maus-tratos, atentado violento ao pudor e estupro.
Acrescente-se que leis esparsas também podem trazer circunstâncias
agravantes especiais e a elas aplicadas, como ocorre com o Código do Consumidor
(Lei n.
8.078/90), por via de seu art. 76.

168. A reincidência. Trata dessa agravante o Código nos arts. 63 e 64. O


primeiro define-a: ocorre a reincidência quando o réu é condenado por crime
cometido
depois de haver transitado em julgado sentença que o condenou por delito
anterior praticado no país ou no estrangeiro.
Juristas há que contestam a legitimidade da reincidência, visto quebrar a
proporcionalidade entre a pena e o crime, já que, exacerbando a pena, o réu está
pagando por circunstância de todo estranha ao delito por que está sendo punido.
Maior é, entretanto, o número dos que a aceitam, legitimando-a, seja por
se ter revelado ineficiente a primeira pena, seja por manifestar patentemente o
criminoso
sua inadaptação ou rebeldia à ordem constituída, donde a necessidade de
repressão mais severa.
Na doutrina, distingue-se a reincidência real daficta. A primeira ocorre
quando o réu delinqüe após haver cumprido, no todo ou em parte, pena por crime
anterior;
para a segunda, basta haver antes sentença condenatória transitada em julgado.
Não há dúvida de que, no primeiro caso, mais alarmante, em regra, é a
personalidade do agente, demonstrando de modo mais expressivo a inanidade da
terapêutica
penal. Todavia, no segundo, a denúncia, o processo, o julgamento e a condenação
não deixam também de ser advertência ao criminoso que revela pertinácia e
menosprezo
pela justiça. A opinião mais generalizada contenta-se com a reincidência ficta,
como fazem nosso estatuto e o italiano (art. 99). Optou pelo outro critério o
Código
Penal suíço (art. 67).
Quanto à sentença condenatória anterior, não prevalece para efeito de
reincidência, consoante dispõe o inc. I do art. 64, se entre a data do
cumprimento ou
extinção da pena e a infração posterior tiver decorrido período de tempo
superior a cinco anos.
Considere-se, ainda, que pelo art. 64, II, para efeito de reincidência,
não se consideram crimes militares ou puramente políticos.
VIII

CIRCUNSTÂNCIAS ATENUANTES

SUMÁRIO: 169. Circunstâncias atenuantes.

169. Circunstâncias atenuantes. No art. 65, perfilha o Código as


minorativas, sendo a primeira a da menoridade.
É ela tradicional em nossas leis e sempre foi fixada no limite de vinte e
um anos. Estando, hoje, o menor de dezoito anos fora do Código Penal,
compreende-se
que ela se situe entre esses limites.
O fundamento é natural. Como escrevia MeIo Matos, trata-se de uma fase de
transição, quando ainda não está completo o desenvolvimento mental e moral da
pessoa,
por suas condições psicológicas e éticas; é ela fortemente influenciável no
sentido do bem e do mal, por falta de reflexão perfeita e de plena força de
resistência
aos maus impulsos. Era o que falava o grande Juiz de Menores, no preâmbulo do
Decreto de 24 de fevereiro de 1933, relativo à prescrição para os menores.
A atenuante tem outro efeito: reduz à metade o prazo prescricional (art.
115).
A menoridade persiste ainda que tenha havido emancipação. Não se trata de
capacidade civil, mas de imputabilidade com fundamento na idade biológica.
Na segunda parte do inc. I considera-se a maioridade de setenta anos.
Também é óbvia a razão da atenuante, pois não há quem ignore os efeitos e
conseqüências
da senectude. É a decadência, é a degenerescência que se manifesta. Não apenas
no físico, mas no psíquico também. O raciocínio é tardo; a memória, falha; e a
imaginação,
pueril. Torna-se a pessoa desconfiada, sugestionável e presa de manias. Senectus
est morbus é o aforisma. Não se trata, entretanto, de enfermidade, pois para
esta
existe o art. 25 com seu parágrafo; mas com razão se vê na anciania, com a
decadência somática e psíquica, motivo de se atenuar a responsabilidade.
Cremos, entretanto, não fugir à realidade dizer que razões de humanidade
inspiraram o legislador, procurando evitar a inútil longa pena a quemjá se acha
no tramontar da existência.
Os mesmos efeitos da menoridade, já apontados, apresentam-se aqui também.
Consagrando princípio jurisprudencial, a reforma declarou de maneira
expressa que a menoridade teria como base a época da prática do fato considerado
como
criminoso, enquanto a maioridade de setenta anos o momento da sentença.
A minorativa do inc. II também já foi objeto de consideração, ao
estudarmos o erro de direito, representando transigência da lei com ele. Se tal
erro não exime
de pena, consoante o art. 21, vê-se que pode atenuá-la. Houve profunda
modificação em relação à redação de 1940, pois esta restringia o desconhecimento
à lei penal,
tão-somente, o que revelava grande injustiça. Se o erro sobre a lei penal
atenua, com maior razão deve atenuar o de direito extrapenal. A lei penal,
dispondo sobre
o crime, que é a violação do mínimo ético, está mais ao alcance de todos; por
todos é mais facilmente conhecida e compreendida, o que não ocorre com a de
direito
civil, comercial etc. Conseqüentemente, se o legislador admite o mais, há de
admitir o menos, isto é, também mitiga a pena o erro de direito extrapenal.
É mister ser escusável, não advir de culpa stricto sensu. Se for
vencível ou inescusável não abrandará a punição.
A reforma penal não diferencia, logo aproveita tanto o desconhecimento
da lei penal como da extrapenal, sem qualquer restrição.
No inc. III, a, volta o Código a ocupar-se com o motivo do delito. Se
agrava o fútil ou o torpe, atenua o do relevante valor social ou moral. Tratase
de circunstância
também prevista pelo Código italiano.
Para Maggiore, a expressão empregada é pleonástica: "Como já salientamos,
bastaria para qualificar o móvel o adjetivo moral, já que a ética é individual e
social ao mesmo tempo: a expressão social é pleonástica e equívoca". Realmente,
é difícil encontrar-se motivo moral que não seja social, assim os inspirados no
amor
da pátria, honra, liberdade, solidariedade, maternidade etc. Contudo as leis
referem-se a ambos.
O motivo que a lei tem em vista "é o aceito pela consciência de um povo,
em determinado momento". Não compete evidentemente ao criminoso sua apreciação,
mas
ao juiz, que é o intérprete daquela consciência.
A circunstância informa tipos privilegiados, como ocorre nos arts. 121, §
1.°, e 129, § 4.°.
A alínea b versa o arrependimento do agente. Arrependimento ativo, quer
por haver o delinqüente procurado com eficiência evitar ou mitigar as
conseqüências
delituosas, quer por haver reparado o dano produzido. Apresenta a atenuante duas
faces: uma subjetiva - o arrependimento; e outra, objetiva - constituída por sua
ação enunciada pelo dispositivo.
A alínea diz que a mino ração dos efeitos do delito deve ser espontânea,
não apenas voluntária, sabido que espontaneidade é uma coisa e voluntariedade
outra,
bastando apontar o exemplo clássico do ladrão que, perseguido, joga fora a res
furtiva, agindo voluntária, porém não espontaneamente. A lei frisa, também, o
requisito
da eficiência.
Quanto à reparação pode não ser espontânea.
Roberto Lyra acha o Código Penal italiano redundante, por exigir reparação
completa, pois quem diz reparação, diz reparação integral. Não concordamos com o
eminente professor, pois a verdade é que a reparação pode ser total ou parcial.
Outro Código também foi explícito e tomou orientação diversa do diploma de
Mussolini,
não exigindo sua inteireza. É o suíço: "Lorsqu' il aura manifesté par des actes
un repentir sincere, notamment lorsqu' il aura réparé le dommage autant qu'on
pouvait
l'attendre de lui" (art. 64). A verdade é que a lei pode ver na reparação do
dano, proporcionada pelas possibilidades do réu, mas não total, motivo de
abrandar a
pena. Todavia, diante da expressão tout court "ter reparado o dano", acreditamos
deva ser integral.
São distintos os momentos da resipiscência. O da minoração das
conseqüências delituosas deve ser efetivado logo após o delito. O Código Penal
italiano, tratando
dessa hipótese, fixa o termo: antes do julgamento. Diverge, portanto, do nosso.
A expressão deste é algo imprecisa. Todavia há de ser considerada, como logo
depois,
isto é, a seguir, de pronto, sem demora etc. A ação executada muitos dias depois
está fora da cogitação legal. O que a lei quer que se dê logo em seguida é a
ação
do sujeito ativo, embora seus frutos ou efeitos se concretizem mais tarde.
Quanto à reparação, há de ser antes do julgamento, isto é, da sentença,
para que possa ser considerada; é como em situação análoga dispõe o art. 143.

A letra c dispensa comentários, em face do que se expôs nos n. 95, 108 e


109, cumprindo, apenas, ressaltar que a emoção, que não é dirimente, no Código,
é
tida por ele ora como atenuante genérica, consoante se verifica, ora como causa
de diminuição de pena (art. 121, § 1.°), diferindo ambas em que, nesta alínea, o
réu age sob influência da emoção, ao passo que, naquele dispositivo, atua sob o
domínio, que é mais absorvente; como também porque aqui a emoção é apenas
provocada
por ato injusto da vítima, enquanto no homicídio privilegiado ela há de se
manifestar logo em seguida a injusta provocação. Diga-se o mesmo do art. 129, §§
4.° e
5.°, I.
A alínea d também não comporta longas considerações, em face do que se
disse sobre a alínea b. Como esta, repousa no arrependimento.
Não se pode dar, à minorativa, a elasticidade que alguns pretendem. A
confissão que a lei tem em vista é a espontânea.
Tanto pode a confissão ser feita perante a autoridade policial como
perante a judiciária. Os móveis não contam; basta, como já se escreveu, que seja
espontânea.
A atenuante da alínea e foi amplamente ventilada no n. 143.
A Lei n. 8.072/90, que cuida dos chamados crimes hediondos, nos
apresentou uma nova causa de atenuação de pena, ligada ao arrependimento.
Segundo o art. 8.°, parágrafo único, aquele que, participando ou
associando-se a uma quadrilha ou bando (CP, art. 288), com a finalidade de
praticar um dos
crimes considerados hediondos, tortura, tráfico ilícito de entorpecentes e
drogas afins ou terrorismo, denunciar sua existência à autoridade, de forma a
possibilitar
o desmantelamento, terá sua pena reduzida de um a dois terços.
Embora ligada ao arrependimento, não é necessário que ele seja fruto de
uma denúncia ligada a um ato penitencial, podendo, mesmo, ter como interesse a
própria
redução da pena. Para surtir efeito como fator de redução da pena, basta que
haja a denúncia e de tal sorte que permita desmantelar o bando celerado formado.

IX
CONCURSO DE CRIMES

SUMÁRIO: 170. Considerações gerais. 171. Concurso material. 172. Concurso


formal. 173. Crime continuado. 174. Sistemas de aplicação de penas. 175. Multa.
176. Limite
das penas. 177. Concurso de leis.

170. Considerações gerais. O estudo do concurso de delitos é, hoje, um


problema de dogmática do crime. Já o foi de aplicação da pena. Reservamo-nos,
entretanto,
para o fazer aqui, obedecendo ao critério adotado pelo Código.
Já vimos que, quando várias pessoas praticam um crime, há o chamado
concursus delinquentium; porém, quando um indivíduo comete dois ou mais delitos,
ocorre
o que se denomina concursus delictorum.
Este encontra seu desenvolvimento doutrinário amplo na Alemanha, mas justo
é dizer que foram os penalistas italianos e espanhóis dos séculos XV e XVI que
iniciaram
seu estudo.
Hoje consideram-se duas espécies de concurso: o ideal, ideológico ou
formal, e o real ou material. Juristas há, entretanto, que julgam desnecessário
distingui-los,
argumentando, por exemplo, não haver diferença em uma pessoa deitar veneno na
jarra ou bilha de água de que várias pessoas se vão servir, e ministrá-lo na
água que
cada uma já tem em seu copo. Na primeira hipótese a ação é única, havendo
concurso ideal, enquanto na segunda é material; porém a conseqüência é a mesma.
Outros
penalistas negam que de uma ação possam resultar dois ou mais crimes.
Não obstante a autoridade dos que emitem essas opiniões, a verdade é que a
doutrina e as leis distinguem as espécies de concurso, atribuindo-Ihes
conseqüências
diversas. Em regra, pode dizer-se que o concurso formal é menos grave que o
material. O primeiro compõe-se de ação única, ao passo que no segundo há
pluralidade
de ações, que indicam ainda mais a gravidade da conduta quando são diversas as
violações legais.

Nosso Código, como se vê dos arts. 69 e 70, distingue os dois concursos.

171. Concurso material. Este, como se acaba de falar e consoante dispõe o


art. 69, é integrado por várias ações ou omissões (ex diversis factis),
constituindo
crimes. Diverge do ideal ou formal, que provém de uma e mesma ação (ex uno
eodemque facto).
Ocorre, pois, o concurso material quando o agente comete mais de um crime
mediante duas ou mais ações, como, v. g., se hoje furta, para dias após estuprar
e um mês depois matar uma pessoa, praticando os delitos dos arts. 155,213 e 121.
Não altera o concurso o fato de os crimes serem objeto de um ou vários
processos e, conseqüentemente, de uma ou mais sentenças. Há, entretanto, casos
em que
os vários delitos cometidos guardam relação entre si, havendo conexão e, por
conseguinte, impondo-se as regras dos arts. 76 e s. do Código de Processo.
A lei diz que os crimes podem ou não ser idênticos, donde o concurso será
homogêneo (crimes da mesma espécie) e heterogêneo (delitos de espécies
diferentes).
Nesse concurso as penas aplicam-se cumulativamente: a cada crime sua pena.
Todavia há um limite, do qual não se poderá passar, como lembra Antolisei: "Tal
sistema, entretanto, é aplicado com opportuni temperamenti, especialmente
mediante a fixação de limites máximos que não podem ser superados". Entre nós, o
limite
é dado pelo art. 75. Não prevalece o limite, é claro, na hipótese da
reincidência, isto é, quando, já tendo cumprido a pena máxima de trinta anos,
vem o agente a
delinqüir de novo.
Sendo as penas aplicadas de reclusão e detenção, é executada antes a
primeira, por comportar, como já se falou, com seus estágios mais rigorosos, o
sistema
progressivo definido pelo Código.
Os §§ 1.° e 2.° do art. 69 são de entendimento imediato. Diz o primeiro
que, no concurso material, quando a pena privativa de liberdade de um dos crimes
não
for suspensa, para os demais não será possível a substituição prevista no art.
44 do Código. O segundo afirma que, quando aplicadas duas ou mais penas
restritivas
de direitos, serão cumpridas simultaneamente, se possível, ou sucessivamente, na
impossibilidade.

172. Concurso formal. Ocorre quando o agente, mediante uma ação (em sentido
amplo), pratica dois ou mais crimes da mesma espécie ou de espécie diversa. A
atira contra
B, mas vem a alcançar C, matando ambos. Certo indivíduo contaminado de moléstia
venérea estupra uma donzela, expondo-a a perigo de contágio. Em ambas as
hipóteses
há concurso ideal, pois com única ação o sujeito ativo praticou dois crimes: na
primeira há homogeneidade do objeto jurídico - a vida; ao passo que, no segundo,
o concurso é heterogêneo, dada a diversidade do bem jurídico - a liberdade
sexual e a saúde.
A lei não se referiu à homogeneidade. Bastaria repetir a expressão do
artigo - "idênticos ou não". Acreditamos ter havido esquecimento. Mais preciso é
o Código
italiano: "... violar diversos dispositivos de lei ou praticar várias violações
do mesmo dispositivo legal" (art. 81). No entanto, no item 27 da Exposição de
Motivos
apresentada em 1940, o legislador nos adverte do concurso homogêneo, dizendo
residir na identidade das penas.
Na doutrina, separam-se os autores, uns dando ao concurso formal base
exclusivamente objetiva, enquanto outros a esta acrescentam o elemento subjetivo
da unidade
de desígnio. Defende, entre nós, esta opinião, o eminente Costa e Silva: "Em
síntese: no sistema de nosso Código, o concurso formal exige unidade de ação ou
omissão
e unidade de desígnio".
Acreditamos, entretanto, não ter sido essa a opinião de nossa lei, porque,
se a exigisse, não se compreende houvesse omitido esse requisito, na primeira
parte
do artigo, máxime diante do precedente do Código de 1932, que, no art. 66, §
3.°, referia-se expressamente a "uma só intenção".
Tal requisito cria o escolho desse concurso no delito culposo, onde não há
desígnio ou propósito, sendo unicamente a ação causal querida, estando ainda
presente
na memória de todos a injustiça de certas soluções, no império do Código
anterior.
O concurso formal tem sua característica na ação única. Como escreve Aldo
Moro: "Entre o concurso ideal e o real existe de comum a pluralidade de eventos
juridicamente
relevantes, mas a diferença reside nisto: no concurso real concorrem vários
delitos; no ideal, só relações de um idêntico agir delituoso, com diversos
eventos".
Todavia essa distinção não tem razão de ser quando o agente, com uma só
ação ou omissão, busca obter mais de um evento danoso. É o que resolve a parte
final
do art. 70. O Código, não obstante a unidade de conduta do delinqüente, trata o
caso como concurso material. Não haveria despropósito algum se essa parte final
integrasse
o art. 69, quando se definiu o concurso real.
O parágrafo único do art. 70 reproduz uma construção jurisprudencial: a
pena resultante do concurso formal não pode ser superior a que seria aplicada
pelo
cúmulo material.

173. Crime continuado. É a última figura prevista por nosso diploma. Sua
criação é geralmente atribuída aos práticos; porém alguns autores, como Massimo
Punzo,
citam fragmentos de Glosadores e Pós-Glosadores, onde se depara a origem da
figura em questão. Reconhece, entretanto, ainda o mesmo jurista que os práticos
do 500
e do 600 lhe deram maior relevo, "diante da severidade das penas, especialmente
para o furto". Razão, assim, não falta de todo ao insigne Carrara quando escreve
que o crime continuado "deve sua origem à benignidade dos Práticos, os quais,
com seus estudos, tentaram evitar a pena de morte cominada ao terceiro furto"6.
Foi,
porém, o Código toscano que com mais precisão delineou os contornos da figura,
tornando-se modelo das legislações que o seguiram.
Nem todos os Códigos o definem. Assim o argentino e o alemão, o que não
impede que os juristas germânicos se tenham dele ocupado com notório carinho.
O contrário acontece com as leis italianas que costumeiramente o definem.
Divergem as doutrinas ao conceituá-lo. Na Itália predomina a teoria
objetivosubjetiva, em que se exige um requisito subjetivo. Com efeito, enquanto
o Código
de Rocco fala em mesmo desígnio, o de Zanardelli e o toscano mencionavam a mesma
resolução.
Reina, entretanto, discordância acerca do alcance desse elemento. Uns
acham que desígnio é deliberação; outros, ideação; e, ainda outros, dolo.
Massimo Punzo,
que expõe todas essas opiniões, acha que o legislador se referiu ao projeto ou
propósito inicial de o agente conseguir um determinado bem.
A doutrina germânica ou objetiva prescinde da unidade de desígnio. No
terreno subjetivo contenta-se com o dolo ou a culpa. Deve haver homogeneidade da
culpa
(lato sensu), isto é, quando diante de idêntica realidade objetiva toma o agente
resolução igual: ou dolosamente realizando o mesmo delito ou se conduzindo com
igual
culpa (em sentido estrito). Como escreve Sauer, "el delito continuado es una
pluralidad de acciones naturales iguales, ligadas en una unidad de delito por la
unidad
de culpabilidad e injusto".
Considerando-se o caso clássico de crime continuado, em que o empregado,
em dias sucessivos, furta da gaveta do patrão várias quantias, a doutrina alemã
contenta-se
com a identidade das ações e a homogeneidade subjetiva, ou seja, o dolo, ao
passo que a itálica investiga, além disso, o propósito do agente: conseguir
determinada
importância, adquirir uma coisa, fazer uma viagem etc., enlaçando esse desígnio
todas aquelas ações. Conseqüência disso é que - afirmam alguns - enquanto esta
doutrina
não admite a continuação no delito culposo, é este compreensível naquela.
Mezger alinha os elementos da continuação na teoria objetiva: "Há de
exigirse unidad del tipo básico, unidad dei bien jurídico lesionado,
homogeneidad de Ia
ejecución y una conexión temporal adecuada, y en los ataques personales también
identidad de Ia persona ofendida"9. Cremos que mais sinteticamente se poderão
alinhar
como elementos: a) unidade de tipo; b) homogeneidade de execução; c) certa
conexão temporal; d) identidade de ofendido, tratando-se de bens jurídicos
pessoais.
Quanto ao último requisito, insistem os autores em sua presença, chegando
alguns a dizer que, a rigor, não existe crime continuado, mas o que há são bens
jurídicos
que só por modo descontínuo podem ser ofendidos. Assim, se um homem mata alguém
e a seguir elimina outro, ainda que estejam presentes os demais requisitos da
continuação,
ela não se verifica: a morte da segunda vítima não foi continuação da morte da
primeira; também não se dirá de um indivíduo, que com intervalo de horas
estuprou
duas moças, que o segundo estupro foi continuação do anterior.
Com o objetivo de afastar as dúvidas geradas pelo Código de 1940, o
parágrafo único do art. 71 da reforma estabeleceu e de maneira expressa a
admissibilidade
do reconhecimento da continuidade delitiva, ainda que atingidos bens
personalíssimos.
Por força do citado dispositivo, toda a discussão doutrinária e
jurisprudencial tornou-se ociosa, já que possível o reconhecimento da
continuidade, ainda que
diversas as vítimas e atingidos bens personalíssimos. Contudo, se dolos o e
cometido com violência ou grave ameaça à pessoa, o juiz "poderá" (indica
faculdade e
não dever), tendo em vista os elementos norteadores do art. 59 do Código Penal,
aumentar a pena de um dos crimes até o triplo, observados dois princípios: a) a
pena
resultante não pode ser superior a que resultaria no caso de cúmulo material; e
b) o seu cumprimento não pode ser superior a trinta anos.
Perante nossa lei, são elementos do crime continuado: pluralidade de ações
ou omissões; pluralidade de delitos da mesma espécie; e a continuação, já que os
delitos posteriores devem continuar o primeiro.
Não deixa a lei ao arbítrio do juiz caracterizar a continuação, pois lhe
dá, para orientá-lo, dados objetivos: condições de tempo, lugar, maneira de
execução
e outras semelhantes. Ocorre aqui o que se chama analogia intra legem: a lei
faculta a investigação de circunstâncias que se assemelham às enunciadas e que
podem
revelar o delito continuado.
É mister serem os crimes da mesma espécie e como tal não se há de entender
somente os previstos no mesmo artigo (tanto que o art. 71 se refere a penas
diversas),
mas também os integrados pelos mesmos elementos subjetivos e objetivos, como
ocorre, v. g., com o furto com fraude e o estelionato, quando a distância que os
separa
é mínima.
Dissemos que o Código filiou-se à doutrina teutônica, que prescinde da
unidade de desígnio. Entretanto juristas do tomo de Roberto Lyra - membro da
Comissão
elaboradora do Projeto do Código - Aníbal Bruno e Basileu Garcia acham difícil
que na apreciação do caso concreto não tenha o juiz de investigar o elemento
subjetivo
do agente para concluir pela continuação1o. Realmente a nós sempre nos pareceu
que, diante da dificuldade de se distinguir, no caso, entre um crime continuado
e
o concurso material, não se poderia desprezar o elemento subjetivo do
desígnioll. Isso é perfeitamente compreensível se se ponderar que a conexão
temporal não está
subordinada a prazo certo e preciso, podendo o mesmo lapso de tempo apresentar-
se no crime continuado e no concurso real, que, como aquele, também pode ter
homogeneidade
objetiva (lugar, modo de execução etc.). Será então necessário recorrer-se à
unidade de resolução, para se apurar a unidade do aspecto material do delito.
Três teorias existem acerca da natureza do crime continuado. A teoria da
unidade real entende que a pluralidade de violações jurídicas forma um ato
delituoso
único. A da ficção jurídica afirma também a existência da unidade, porém esta é
uma fictio juris; não é substancial, mas provém da vontade do legislador. A
teoria
mista nega a unidade ou pluralidade de violação, vendo antes um terceiro crime.
Parece-nos, ao contrário do que sustenta o eminente Roberto Lyral2, que mais
exata
é a da ficção jurídica. No delito continuado há multiplicidade de crimes - de
cada vez o agente realiza o tipo definido em lei - mas por política criminal
considera-se
que se trata de crime único. É esta teoria, aliás, a que está de acordo com as
fontes históricas do instituto, como já se viu.
O caráter unitário do delito continuado tem singular importância pelas
conseqüências que disso decorrem, v. g., o prazo prescricional começa no dia em
que
cessar a continuação (art, 111, I); e a sentença condenatória faz com que ela
cesse.
Nada impede a continuação entre o crime consumado e o tentado, que é
apenas a execução inicial do tipo.
Não se deve confundir o crime continuado com o permanente. Este, como se
escreveu, ocorre quando a consumação se protrai, dependente da vontade do
sujeito
ativo, tal qual o cárcere privado. Tanto não se confundem que o continuado pode
existir no permanente. Assim, se uma pessoa em cárcere privado, logrando fugir,
é
logo a1cançada por seu detentor e novamente enclausurada, dá-se a continuação.
O Código, dados seus dizeres expressos, não permite dúvidas sobre a
continuação, nos crimes omissivos.
Como já ficou dito, o delito continuado pode ocorrer na culpa (stricto
sensu), v. g., se uma pessoa, por erro vencível, todos os dias, em vez de um
medicamento,
ministra um tóxico a outra, causando-lhe dano à saúde. Existe a continuação
aqui, como há no caso em que um homem, senhor de um grave segredo de certa
mulher, a
possui por diversas vezes, sob ameaça de revela-lo. Em ambos os casos -lesão
corporal e estupro - há pluralidade de ações, constituindo crimes da mesma
espécie,
devendo os posteriores ser tidos como continuação do primeiro.

174. Sistemas de aplicação de penas. Lendo-se os arts. 69, 70 e 71 e seus


parágrafos, tem-se logo a atenção voltada para a cominação penal, verificando-
se,
aliás, que ela não se faz do mesmo modo. É a fixação da pena uma das
conseqüências mais importantes do concurso de delitos. Dois são os objetivos do
legislador:
cuidar que nenhum crime fique impune e evitar que qualquer deles seja apenado
mais de uma vez.
Vários têm sido os sistemas propostos. Um é o do cúmulo material, em que
cada crime é punido com sua pena (quot delicta tot poenae). Estas cumulamse ou
somam-se,
aplicadas que são aos delitos que integram o concurso.
Não tem merecido aplausos esse sistema, apontando-se contra ele que pode
redundar em uma pena total desproporcionada, pela soma de pequenas penas
relativas
a infrações de somenos; que ele não está de acordo com a finalidade da
readaptação do sentenciado, pois, ainda que consegui da com a primeira pena,
terá que cumprir
as demais, que são inúteis.
Modalidade desse sistema é o do cúmulo jurídico, consistente não na soma
das penas concorrentes, mas na aplicação de única pena superior à mais grave
daquelas.
Os inconvenientes desse sistema foram revelados pelo Código de Zanardelli.
Constitui a absorção outro princípio (poena major absorbet minorem):
aplica-se a pena mais grave, que, portanto, absorve as outras. Aduz-se, e com
razão, que
ela importa injustiça freqüentemente com a impunidade dos outros delitos, já que
não se pode ir além do máximo da pena mais grave.
Outro sistema existe: o da exasperação. Aplica-se a pena do crime mais
grave, que, entretanto, é aumentada ou elevada devido à presença dos outros
delitos.
Esse sistema (poena major cum exasperatione) tem recebido críticas e louvores.
Nosso legislador não se fixou em um apenas. No art. 69 emprega o cúmulo
material: "... aplicam-se cumulativamente as penas...". No art. 70, surge o
princípio
da exasperação. Aplique-se a pena mais grave ou uma delas, quando idênticas, e
haverá sempre o aumento de um sexto até metade. Já na segunda parte do artigo é
o
cúmulo material que volta à cena.
O princípio da exasperação é ainda adotado na figura unitária do crime
continuado: aplica-se uma das penas ou a mais grave, ocorrendo, entretanto,
sempre o
aumento de um sexto a dois terços.

175. Multa. No que diz respeito à multa, o art. 72 do Código reproduz o


previsto no art. 52 da redação primitiva. A pena de multa não sofre efeito
concursal,
sendo, sempre, aplicada cumulativamente.

176. Limite das penas. Já mais de uma vez incidentemente tocamos no limite
das penas, reservando-nos agora para considerar questão que se pode apresentar
no
tocante às penas privativas de liberdade. Diz o art. 75 que em caso algum elas
serão superiores a trinta anos, o que, sem dúvida, pode causar embaraços.
Interpretando-o, a l.a Conferência de Desembargadores firmou: "Em caso
algum poderá a duração das penas privativas de liberdade exceder de 30 anos;
verificada
nova condenação, o restante da primeira pena é acrescido à pena posteriormente
imposta, mas de sorte que a sua soma não ultrapasse 30 anos".
Significa isso que, se um sentenciado, no último dia de sua pena de trinta
anos, cometer no presídio um crime e for novamente condenado a trinta anos, não
será computado nesta nova pena aquele dia que resta da outra.
Mas mude-se o caso, supondo-se que o segundo crime ocorra logo nos
primeiros dias da primeira condenação. Agora, a pena desta - vinte e nove anos,
onze meses
e dias - não poderia ser acrescida à segunda de trinta anos, pois sua soma daria
quase sessenta anos.
Todavia, se isso se fizer, ter-se-á de antemão assegurado a impunidade ao
reincidente, por todos os crimes que cometer num presídio, desde que esteja
condenado
a trinta anos.
A conclusão ainda é mais estranha se ponderarmos que o reincidente que
comete crime em liberdade está sujeito ao cumprimento da nova pena, seja ela
qual for.
Por que, pois, regime diferente para o que reincide, estando na prisão, cuja
periculosidade, aliás, se revela muito maior?
A verdade é que a cláusula em caso algum é demasia, e o dispositivo exige
modificação.

177. Concurso de leis. Assunto afim do concurso de crimes é o de leis,


também enunciado como conflito aparente de normas. Ocorre quando duas ou mais
leis ou
disposições legais a respeito de determinado fato se apresentam como aplicáveis,
devendo decidir-se se uma admite a aplicação da outra ou a exclui.
Em torno do assunto giram três princípios: o da especialidade, o da
subsidiariedade e o da consunção.
O primeiro é enunciado pela fórmula lex specialis derogat legi generali.
Duas disposições se acham em relação de geral e especial quando os requisitos do
tipo
geral estão todos contidos no especial, o qual tem um ou mais requisitos
(chamados especializantes), em virtude dos quais é lógico que o especial tenha
preferência
na aplicação'5. Em virtude desse princípio, v. g., o furto qualificado exclui o
simples (os tipos privilegiados ou qualificados afastam os fundamentais); o
homicídio
simples é excluído pelo privilegiado e pelo infanticídio.
Outro princípio é o da consunção (lex consumens derogat legi consumptae) e
ocorre, segundo ainda Grispigni, quando o fato previsto por uma norma está
compreendido
em outra de âmbito maior e, portanto, só esta se aplica. Assim, o delito de
lesão corporal é consumido pelo de homicídio. Há aí crime progressivo porque em
virtude
de único ato de vontade o agente, de uma conduta inicial, já constituindo um
tipo, passa, no mesmo contexto de ação, a atividade posterior que realiza uma
forma
de crime mais grave, que inclui entre os seus elementos constitutivos aquele
delito mais simples e menos grave. Na consunção, o crime consuntivo é como que o
vértice
da montanha que se alcança, passando pela encosta do crime consumido.
O princípio da consunção aplica-se não só ao crime progressivo, mas também
ao complexo.
Devemos, aqui, nos referir à ocorrência de tipos especiais, como os crimes
privilegiados e os qualificados, tal qual sucede com o art. 155, § 2.°(furto
mínimo),
e o art. 155, § 4.°, II (escalada), ou com o homicídio do § 1.°do art. 121
(violenta emoção logo em seguida a injusta provocação do ofendido) e o do § 2.°,
m, do
mesmo dispositivo (asfixia), quando o crime qualificado exclui o privilegiado,
como em outro livro já sustentamos a respeito do primeiro delito'6, bastando
para
tanto atentar-se à disposição técnica dos parágrafos, para se ver que os
primeiros só se aplicam aos tipos fundamentais antes enunciados.
O terceiro princípio é o da subsidiariedade. Diz-se que uma lei tem
caráter subsidiário em relação a outra, principal, quando ambas descrevem graus
ou fases
diversas da violação do mesmo bem jurídico, de modo que o descrito pela
disposição subsidiária, por ser menos grave que o descrito pela principal, fica
absorvido
por estal7. Prevalece, então, a regra lex primaria derogat legi subsidiariae. Em
tal caso, às vezes, a própria norma declara que só será aplicada se o fato não
constituir
crime mais grave, tal qual ocorre com os delitos definidos no art. 177, § 1.0.
Há aqui subsidiariedade explícita. É ela implícita quando o fato incriminado
pela
norma subsidiária "entra como elemento componente ou agravante especial de fato
incriminado pela outra norma, de modo que a presença do último exclui a
simultânea
punição do primeiro". Assim, o estupro exclui o constrangimento ilegal e a lesão
corporal leve; o roubo exclui o furto e a violência física ou grave ameaça.
A subsidiariedade aproxima-se da especialidade, porém diferem porque
naquela, ao contrário do que sucede nesta, os fatos previstos em uma e outra
norma não
estão em relação de espécie e gênero, e, se a pena do tipo principal (sempre
mais grave que a do tipo subsidiário) é excluída por qualquer causa, a pena do
tipo
subsidiário pode apresentar-se como "soldado de reserva" e aplicar-se pelo
residuum - diz Hungria.
Há, ainda, segundo alguns juristas, o princípio da alternatividade, que se
apresenta quando dois dispositivos legais se repelem com referência ao mesmo
fato.
Tem-se objetado com procedência que tal princípio não interessa ao concurso de
leis, já que, se os requisitos do delito estão em contradição, significa que as
duas
leis não se podem aplicar a um mesmo fato.
A matéria do concurso ou conflito aparente de normas é bastante
controvertida.
Assim é que Antolisei acha insubsistente qualquer construção jurídica com
fundamento na consunção e na subsidiariedade, e rejeita-as na ausência de
expressa
disposição legal, como acontece com nosso Código. Bettiol fala que "concurso de
normas não se pode ter, quando os fatos são vários ou diversos". Certo é que
muitos
confundem a concorrência de fatos diversos com concurso de normas. Assim, quando
se dá o furto e o estelionato da venda da resfurtiva a terceiro de boa-fé. Há
dois
delitos perfeitamente distintos e consumados diferentemente no tempo e no
espaço. Do que se poderia falar, então, seria da impunidade de um fato punido.
Mas mesmo
este princípio, para muitos, é inaplicável à hipótese, como frisa Grispigni:
"Dito princípio - como se falou - não encontra aplicação, quando, não obstante
interpor-se
entre os dois fatos relação de meio e fim (crimes conexos), trata-se de ofensa a
bens diversos, ou ao mesmo bem, mas pertencente a pessoas diversas .
É o que ocorre no exemplo por nós prefigurado, em que o furto recai sobre
a coisa subtraída, e a venda fraudulenta, sobre o dinheiro pago pelo terceiro de
boa-fé.
Registre-se ainda que mesmo para os que aceitam os princípios do concurso
de normas, seu fundamento repousa não em uma razão ontológica, mas de eqüidade:
"...
não porque isto seja imposto por um rígido cânone de lógica, mas porque a
aplicação de todas as normas concorrentes chocar-se-ia com a necessidade prática
de avaliação
do fato. Encontrar-nos-íamos em colisão com as mais elementares exigências de
justiça".
Na Itália, por exemplo, na concorrência de falso e estelionato não se
reconhece que o delito mais grave absorve o outro, ou que o estelionato exclui o
falso
por ser este meio para a sua prática. O reconhecimento de ambos os crimes é
jurisprudência costante o pacifica.
Todavia força é reconhecer que os princípios aqui aludidos, inspirados em
razões de eqüidade e justiça, têm geralmente aceitação na doutrina e na
jurisprudência.
X
SUSPENSÃO CONDICIONAL DA PENA

SUMÁRIO: 178. Considerações gerais. 179. Histórico. 180. Definição e natureza.


181. Pressupostos. 182. Condições. 183. Revogação. 184. Inexecução da pena.

178. Considerações gerais. Instituto de grande alcance, certamente, é o


que na prática forense se denomina sursis, nome sem dúvida tirado da Lei
Béranger,
na França, que se referia a "sursis à l'éxécution de Ia peine". Dois são os
tipos que oferece: o da suspensão do pronunciamento da sentença e o da suspensão
da condenação.
Mereceu o último nossas preferências justificadamente, pois, se é certo que não
evita a condenação do denunciado, tem a vantagem de não impedir a ação da
justiça
durante o prazo estabelecido, o que, atendendo-se às nossas condições
peculiares, redundaria quase sempre no desaparecimento das provas.
Como geralmente acontece, a princípio teve o instituto opositores, que
alegavam principalmente que ele iria ferir a certeza da punição e dar ensancha
ao arbítrio
judicial. A prática, porém, demonstrou serem infundados tais temores, e, ao
contrário, grandes vantagens trouxe na aplicação da justiça, bastando para isso
apontar
a maior delas: evitar o contato de réus condenados por crime de pequena monta
com delinqüentes de periculosidade estremada. Favoreceu até a certeza da
punição, impedindo
que juízes temerosos da promiscuidade dos delinqüentes, nas prisões, absolvessem
freqüentemente acusados de crimes leves e que nenhuma periculosidade
apresentavam.
Nossos legisladores, ao adotarem a suspensão condicional da pena,
aproximaram-se do sistema a que podemos chamar belga-francês, que consiste em o
juiz proferir
a condenação, suspendendo, ao mesmo tempo, a execução penal por determinado
prazo e mediante condições.
Nossa lei limitou o instituto à pena privativa de liberdade; não o
estendeu à multa. A respeito há divergência na doutrina. Se ele não tem
exclusivamente o
escopo de evitar a promiscuidade das prisões e a sua nocividade, por falta de
tempo necessário à terapêutica penal, mas possui também o de animar o
delinqüente a
conduta correta, a procedimento morigerado e honesto, não se compreende se
restrinja tão-só a pena detentiva. Costa e Silva acha antiquado o ponto de vista
do Código.
A verdade é que diversas leis o estendem à pena pecuniária, como fazem o
Código português (art. 52), o italiano (art. 163), o argentino (art. 26) e
outros.
O suíço (art. 41) aplica-o às penas acessórias.
Cremos preferível esse critério.
Note-se que a suspensão condicional passou a atuar como uma verdadeira
sanção, como se verifica da Lei de Execução, que a colocou no Título II nominado
como
"Da execução das penas em espécie", tornando uma verdadeira pena restritiva de
direito, tanto que, no primeiro ano, o condenado deverá prestar serviços
comunitários
ou ter limitado o fim de semana (art. 78, § 1.°).

179. Histórico. Divergem os autores no apontar as fontes do instituto. Uns


fazem-no remontar aos Estados Unidos da América do Norte, na metade do século
passado,
porém aí se tratava da suspensão da sentença (suspension ai the sentence) e não
da execução da condenação, como se dá entre nós.
O instituto, nos moldes do que possuímos, aparece na França com o Projeto
Béranger, de 26 de maio de 1884, que foi origem do chamado sistema continental
europeu,
ao qual nos filiamos.
Entre nós, ele surge com o Decreto n. 16.588, de 6 de setembro de 1924,
sendo Ministro da Justiça João Luís Alves. Como o próprio diploma reza, ele
"estabelece
a condenação condicional em matéria penal", declarando, aliás, no § 2.° do art.
1.°, que "será a condenação considerada inexistente" .
Caminho diverso adotou o legislador atual: não se trata de condenação sob
condição e que se torna inexistente, preenchidas as obrigações impostas; a
condenação
persiste, não desaparece; o que não se efetiva é a execução da pena. Isso,
aliás, é bem claro nos arts. 708 e 709 do Código de Processo Penal, o primeiro
dizendo:
"Expirado o prazo de suspensão ou a prorrogação, sem que tenha ocorrido motivo
de revogação, a pena privativa de liberdade será declarada extinta"; e o
segundo:
"A condenação será inscrita com a nota de suspensão, em livros especiais...".
A orientação tomada pelo Código já fora esposada pelo Projeto Sá Pereira.

180. Definição e natureza. É a suspensão condicional da pena medida


jurisdicional que determina o sobrestamento da pena, preenchidos que sejam
certos pressupostos
legais e mediante determinadas condições impostas pelo JUIZ.
Manzini define-a como "uma decisão jurisdicional, com a qual o juiz, ao
mesmo tempo que declara a culpabilidade e inflige a pena (reconhecendo, assim, o
poder
de punir do Estado, no caso individual), concede ao condenado, de quem pode
presumir a resipiscência, aquelas possibilidades jurídicas, com cujo êxito se
atuará
a renúncia do Estado, ao poder de realizar a própria pretensão punitiva,
renúncia feita legislativa e preventivamente, mas subordinada a uma escolha
limitada do
juiz e à verificação de determinadas condições exigidas pela lei ou oponíveis
pelo Estado".
É um instituto de direito substantivo, não pela simples colocação no
Código Penal, mas pela natureza jurídica de suas relações, isto é, pelos efeitos
que provoca.
Como escreve Vannini, são de direito penal substantivo as normas que se referem
ao nascimento, modificação e extinção da relação jurídica punitiva.
Trata-se de um direito do condenado. O assunto é bastante controvertido,
porém acreditamos estarem com a razão os que pensam desse modo. Satisfazendo o
réu
a todos os requisitos legais e denegando-o o juiz, pode ele até impetrar habeas
corpus, conforme têm decidido o Tribunal deste Estado e o Pretório Excelso.
É exato que o art. 77 fala que a pena pode ser suspensa. Isso, entretanto,
não significa que o juiz possa arbitrariamente negá-lo. O que se quer dizer é
que,
de acordo com o sistema de nossas leis penais, o juiz tem liberdade de
apreciação, formando seu íntimo convencimento para decidir. E isso não apenas no
sursis, mas
sempre que se deve pronunciar.
Trata-se de um direito, como escreve José Frederico Marques, pois,
"ampliando o campo do status libertatis com o sursis, este se torna um direito
público subjetivo
de liberdade e cujo reconhecimento o réu pode pretender reconhecido em juízo".
Como ainda fala o mencionado desembargador, citando Capitant, de nada adianta
dizer-se
que é um benefício, pois este é também direito.
Tanto é obrigatória a concessão do sursis, uma vez preenchidos os
requisitos legais, e daí, portanto, ser um direito do sentenciado, que o art.
697 do Código
de Processo Penal, com a nova redação que lhe atribui a Lei n. 6.416, ordena, in
verbis: "O juiz ou tribunal, na decisão que aplicar pena privativa de liberdade
não superior a dois anos, deverá pronunciar-se, motivadamente, sobre a suspensão
condicional, quer a conceda, quer a denegue". E que, como ensina Manzini, ao
direito
do acusado é correlativo o dever do juiz de responder ao pedido regularmente
feito.
Não é, pois, discricionária a concessão.
Quanto à natureza do instituto, ocorre ainda ponderar que é a de
condição resolutiva, já que a execução da pena fica subordinada a acontecimento
futuro.
Não cumprida a cláusula imposta, a indulgência deixa de haver lugar, executando-
se a pena. Difere, portanto, do indulto, que é perdão definitivo, e da
prescrição
- perda do direito de agir, pela negligências.

181. Pressupostos. Vê-se pelo art. 77 que a concessão do benefício é


subordinada a duas ordens de pressupostos: objetivos e subjetivos.
A) À primeira categoria correspondem a natureza e a quantidade da pena. A
suspensão, por primeiro, somente é aplicável à pena privativa de liberdade, como
deixa claro o art. 80 do Código Penal. A recente Lei n. 9.714, de 25 de novembro
de 1998, acrescentou ao § 2.° do art. 77 mais uma hipótese, traduzida pela
expressão
"ou razões de saúde justifiquem a suspensão". A introdução desse dispositivo
visa retirar a obrigatoriedade de se encarcerar, por não haver a possibilidade
da suspensão
da pena, pessoas com enfermidades graves, doentes terminais ou então com
dificuldade de locomoção, pessoas estas que não tinham no presídio qualquer
tratamento para
seu triste estado de saúde. Portanto, ao lado dos idosos, a legislação nova
apresenta mais uma hipótese, tornando possível a suspensão da pena não superior
a quatro
anos por enfermidade. Depois, cabível somente às condenações até dois anos,
salvo a exceção prevista no art. 77, § 2.°. Este dispositivo diz respeito à
possibilidade
da pena privativa de liberdade ser suspensa até a condenação por quatro anos,
quando o condenado for maior de setenta anos de idade. Por fim, não pode
beneficiar
quem seja reincidente em crime doloso (art. 77, I).
B)A segunda categoria diz respeito à personalidade do condenado. Através
do exame dos requisitos enumerados (art. 77, lI), que na verdade correspondem
aos
fixadores da pena-base (art. 59), o julgador verificará a conveniência ou não da
concessão, além de não ser recomendável a transformação da privativa de
liberdade
em outra substitutiva (art. 77, III).
Com efeito, a lei manda que se atenda aos antecedentes do condenado. Não
apenas os judiciários, mas também a vida pregressa, com os antecedentes
familiares
e sociais. Consideram-se também: a personalidade, isto é, caráter, índole etc.;
os motivos, que são as razões por que a vontade se determina e que constituem a
pedra
de toque da personalidade; e as circunstâncias, que rodeiam o delito e que se
referem ao modo de agir, atitude durante o fato etc., tudo, aliás, como foi
exposto
no n. 163.
É o sursis medida de política criminal, que tem o fim de estimular o
condenado a viver, doravante, de acordo com os imperativos sociais,
cristalizados na lei
penal, donde, logicamente, para ser concedido é necessário haver convicção de
que a semente será lançada em bom terreno.
Infelizmente este requisito legal não merece grande consideração na
prática. Em regra, permitindo-o a pena, contenta-se com a inexistência de
condenação sofrida.
Não está certo. O juiz deve fazer o estudo psicológico do réu, através do
processo, e exigir documentos que reflitam sua conduta social ou vida anteacta.
Sem isso,
muito mal se poderá dizer convencido de que ele não tornará a delinqüir. Concisa
e precisamente diz o Código suíço que o sursis deve ser concedido se os
antecedentes
e o caráter do condenado fazem prever que esta medida o dissuadirá de cometer
novos crimes ou delitos (art. 41).
Não se tomando essa cautela legal, arrisca-se a desmoralizar um instituto
de evidente necessidade e relevantes efeitos.

182. Condições. A suspensão da pena por prazo que vai de dois a quatro
anos (art. 77) fica subordinada a condições legais (obrigatórias) ou judiciais
(facultativas)
que devem ser especificadas na sentença.
A) As condições legais estão previstas no art. 78 do Código Penal. No
período de prova, no primeiro ano, o condenado deverá prestar serviços
comunitários (art.
46) ou submeter-se à limitação de fins de semana (art. 48).As condições
confundem-se com duas modalidades de penas inibidoras de direito.
Contudo, diz o § 2.° do art. 78, se houver reparado o dano, salvo a
impossibilidade de fazê-lo, e as circunstâncias norte adoras da fixação da
penabase (art.
59) forem favoráveis, as condições anteriores (prestação de serviço comunitário
e limitação de fins de semana) podem ser substituídas por outras, expressamente
previstas,
como a proibição de freqüentar determinados locais, de ausentar-se da comarca,
comparecimento obrigatório mensal a juízo etc.
Portanto, no tocante às condições obrigatórias, o juiz deverá, ao conceder
o sursis, fazer a escolha entre as hipóteses previstas nos § § 1.0 e 2.0 do art.
78, impondo uma das três para o primeiro ano: prestação de serviços comunitários
ou limitação de fins de semana ou as previstas no § 2.0 do art. 78.
B) Além das obrigatórias, outras podem ser impostas, facultativas, desde
que adequadas e relacionadas com o fato e de acordo com as condições pessoais do
condenado.
É o que estabelece o art. 79 do Código Penal.

183. Revogação. A suspensão da pena é condicional, donde naturalmente pode


ser revogada.
Duas são as espécies de revogação: obrigatória e facultativa.
Ocorre a revogação obrigatória quando, no decurso do período de prova, o
condenado beneficiado sofrer nova pena, em sentença irrecorrível, por crime
doloso.
Segundo o art. 81, I, a revogação dar-se-á em caso de condenação
irrecorrível, durante o período probatório, a pena privativa de liberdade, por
crime doloso.
Tratando-se de nova condenação, há lugar a pergunta: pode ela ser a
proferida em sentença estrangeira?
Damásio E. de Jesus, referindo-se ao tema, disserta: "Não pode ser
revogado o sursis, pois o art. 81 não prevê a hipótese. Tratando-se de norma que
permite
restrição ao direito penal de liberdade do beneficiário, não pode ser empregada
a analogia e nem a interpretação extensiva. Quanto a esta, os métodos gramatical
e teleológico não permitem a conclusão de que a lei quis referir-se no art. 81,
I, à sentença nacional ou estrangeira. Daí a impossibilidade de extensão da
norma
restritiva de liberdade".
Realmente, os efeitos da sentença estrangeira constituem exceção que não
pode ser admitida no silêncio da lei. Trata-se de direito estrito. Veja-se
Manzini:
"Entende-se que a condenação por um novo crime deve ser pronunciada por juiz
italiano. As condenações estrangeiras, ainda que por fatos considerados crimes
por nossa
lei, não produzem efeitos jurídicos na Itália, fora dos casos contemplados no
art. 12 do Código Penal"'o. Lei expressa, portanto.
A nova condenação por crime tanto se refere ao anterior como ao posterior
ao delito em que foi o sursis concedido. Não é só a reincidência que o impede: a
lei não faz distinção. Não há dois "sursis", como deixa claro o art. 81, I. Pode
ocorrer que, por qualquer circunstância, um crime anterior seja apenado quando o
réu estiver em gozo de sursis e, então, por força do inc. I do art. 81, ele será
revogado; o mesmo se dará se for posterior o delito. A disposição genérica do
referido
inciso não diz outra coisa.
A lei é rigorosa, sem dúvida, máxime quando se pondera que, havendo
conexidade entre dois crimes objetos de único processo, e autorizando suas penas
a suspensão,
pode esta ser concedida, o que não ocorrerá quando os mesmos delitos forem
processados separadamente.
Ocorre ainda, em duas outras hipóteses: frustra, embora solvente, o
pagamento da pena de multa ou não repara o dano e descumpre as condições
obrigatórias impostas
pelo art. 78, § 1.°.
A revogação toma-se facultativa em duas hipóteses: por descumprimento de
qualquer outra condição que não a prevista no art. 78, § 1.°, ou em razão de
nova
condenação em crime culposo ou contravenção, recebendo pena privativa de
liberdade ou restritiva de direito (art. 81, § 1.°).
Em tais hipóteses permite o § 3.° do art. 81 ao juiz dilatar o período de
prova até o máximo, se este não foi fixado, ao invés de revogar o benefício.
Tolera-se
ainda a liberdade do condenado, mas aumenta-se o prazo, durante o qual ele fica
sujeito à justiça.
A prorrogação desse lapso de prova é obrigatória, nos termos do § 2.° do
art. 81, sempre que, durante esse período, o condenado estiver sendo processado
por
outro crime ou contravenção. Essa prorrogação, como se vê do citado dispositivo,
só tem um limite: o do julgamento definitivo da nova infração. Injusto seria
revogar
o sursis tão-só pelo fato de outro processo, do qual o réu pode ser absolvido;
ineficiente dá-lo por cumprido (pela expiração do prazo fixado) quando há
suspeita
veemente, quando não certeza, de não ser ele digno do benefício.

184. Inexecução da pena. Preceitua o art. 82 do Código Penal que, "expirado


o prazo sem que tenha havido revogação, considera-se extinta a pena privativa de
liberdade". E, se agora lermos o art. 80 e se observarmos que ele declara não
abranger a suspensão a multa e a pena restritiva de direitos, chegaremos à
conclusão
de que o sursis não é causa de extinção de punibilidade, mas sim incidente de
execução da pena privativa de liberdade, que é suspensa condicionalmente.
Leia-se, agora, o art. 708 do Código de Processo Penal: "Expirado o prazo
de suspensão ou a prorrogação, sem que tenha ocorrido motivo de revogação, a
pena
privativa de liberdade será declarada extinta". Vê-se, portanto, que o que se
extingue é tão-somente a pena privativa de liberdade. Não vacilou a esse
respeito o
legislador, visto que no art. 81, 11, do Código Penal, coerente com o que
dispusera no art. 80, declarou que o sursis é revogado se o beneficiário,
solvente, frustra
o pagamento da multa, ou não efetua, sem motivo justificado, a reparação do
dano. No art. 50, § 1.°, c, também presenciamos a lei se ocupando da pena de
multa, embora
concedida a suspensão condicional da privativa de liberdade.
De tudo isso se conclui que, tendo o sursis por objeto a pena que tolhe a
liberdade ao indivíduo, o cumprimento das condições impostas por ele só pode
extinguir
essa pena, como dispõe o mencionado art. 82 do Código Penal e como diz
expressamente o aludido art. 708 do Código de Processo, que, aliás, é
corroborado por várias
outras disposições dessa lei.
Ora, se é tão-somente a pena em questão que se extingue, continuando as
outras, é porque existe uma condenação que as impôs.

XI
LIVRAMENTO CONDICIONAL
SUMÁRIO: 185. Considerações preliminares. 186. Definição. Natureza. Histórico.
187. Pressupostos. 188. Concessão do livramento condicional. 189. Revogação do
livramento
condicional. 190. Incompatibilidade do livramento condicional. A expulsão de
estrangeiro.

185. Considerações preliminares. É o livramento condicional, em nosso


diploma substantivo, a última fase de cumprimento da pena. Adotando, como já
vimos, um
sistema progressivo, em que a pena oferece várias etapas que vão sendo
paulatinamente conquistadas pelo sentenciado, é a da liberdade sob condição a
derradeira.
Se a pena não é expiação somente e se, sobretudo, não é vingança, mas tem
caráter utilitário, que é a recuperação do delinqüente, reajustando-o e
readaptando-o
à vida em sociedade, compreende-se perfeitamente que se lhe antecipe a
liberdade, para que, ainda aqui, seja ele observado, já agora em suas condições
normais de
vida, para se concluir mais seguramente por sua readaptação.
É o livramento condicional medida de caráter administrativo de
individualização da pena, pois incumbe aos funcionários - desde o diretor até o
simples guarda
- a observação direta e constante do sentenciado, fazendo-se, através de estudos
científicos e considerações quanto ao comportamento, adaptação ao trabalho etc.,
juízo sobre sua personalidade e prognóstico acerca da possibilidade de retomar,
antes do término da pena, à vida social.
É a individualização administrativa precedida pela legal e pela
judiciária, como já tivemos ocasião de dizer. Torna-se, então, indispensável que
o Estado adote
providências necessárias para que essa individualização se faça de modo preciso
e eficiente, devolvendo à sociedade um elemento que, tudo indica, se integrará
na
vida útil, e não um reincidente em potência que, dentro em dias ou meses,
retomará à prisão.

Infelizmente, em grande número de casos é o que se vê. Condenados a penas


de três ou quatro anos de reclusão, dos quais cumpridos pouco mais de ano e meio
em cadeia do interior do Estado, pedem livramento condicional, exibindo um
atestado do carceiro... como prova de readaptação à vida em sociedade.
É de grande alcance o instituto do livramento condicional, porém exige
aparelhamento competente - não só o das penitenciárias como também o relativo à
fiscalização
e assistência na vida em liberdade - para que possa surtir os desejados efeitos.
Como o sursis, é um instituto que atinge um dos caracteres da pena a
inderrogabilidade - sendo, portanto, necessário que a concessão se firme em
diagnósticos
e prognósticos criminológicos seguros e animadores para que aquela não se
desmoralize e abastarde.

186. Definição. Natureza. Histórico. O livramento condicional é a


concessão, pelo poder jurisdicional, da liberdade antecipada ao condenado,
mediante a existência
de pressupostos, e condicionada a determinadas exigências durante o restante da
pena, que deveria cumprir preso.
É um direito do sentenciado estreitamente ligado à sua liberdade; direito
de não cumprir o total da pena imposta, pelo preenchimento de requisitos legais.
Com acerto, escreve Nélson Hungria: "O livramento condicional é, em relação ao
condenado, inquestionavelmente um direito: direito ao benefício, à recompensa da
liberdade
antecipada. Ao cometer o crime no regime de uma lei penal que concede o
livramento, surge para o réu a obrigação de sofrer a pena que lhe venha a ser
imposta, mas
também, simultaneamente, o direito de, ao fim de certo tempo, e dadas as
condições prefixadas na lei, obter que lhe seja dispensado o efetivo cumprimento
do restante
da pena".
Comumente se fala que ele é um benefício, porém, como para o sursis, não
significa isso que não seja um direito, como lá ficou dito.
É um incidente de execução da pena e, por isso, concedido pelo Juiz das
Execuções, em processo próprio, e mediante sentença que atinge a condenatória,
não
mais prevalecendo o tempo de prisão nela prefixado, por ser, em parte, cumprida
pelo sentenciado em liberdade fiscalizada.
Não há muita certeza quanto às origens do instituto. Atribui-se geralmente
sua concepção a Bonneville de Marsangy, autor do livro Les diverses institutions
complémentaires du systeme pénitentiaire, quando então já lhe fazia referências.
Todavia observa Garraud que, "desde o ano de 1832, uma circular ministerial de 3
de dezembro recomendava seu emprego a jovens presos. Alguns anos mais tarde, era
ele aplicado a menores de dezesseis anos, encerrados na prisão celular de La
Roquette".
Acrescenta que a experiência teve lugar em Paris; portanto em condições bastante
desfavoráveis, mas logrou inteiro sucesso, sendo mais tarde aplicado em outros
lugares,
notadamente em Lion.
Daí se difundiu pela Europa, cabendo à Inglaterra a aplicação em larga
escala.
Em nosso país foi o instituto previsto pelo Código de 1890 (arts. 50 a
52), embora somente em 6 de novembro de 1924, pelo Decreto n. 16.665, tenha
recebido
regulamentação, incorporado à Consolidação das Leis Penais. Podia ser concedido
a todos os condenados a penas restritivas de liberdade, por tempo não menor de
quatro
anos de prisão de qualquer natureza, desde que se verificassem as condições
seguintes: a) cumprimento de mais da metade da pena; b) bom comportamento
durante o tempo
da prisão; c) cumprimento, pelo menos, de uma quarta parte da pena, em
penitenciária agrícola ou em serviços externos de utilidade pública.
O atual Código, tanto pela redação primitiva como pela reforma, deu feição
mais definida ao instituto, pois são para ele características: a) integrar um
sistema
penitenciário progressivo; b) não ser um benefício, porém medida finalística de
um plano de política criminal; c) pressupor a existência de indivíduo que se
revelou
desajustado à ordem social, mas cuja periculosidade já cessou; d) ser
antecipação da liberdade, a título precário, ficando o sentenciado sujeito a
condições e sob
fiscalização.

187. Pressupostos. Os pressupostos para a concessão do livramento


condicional, tal como a suspensão, são de duas ordens: objetivos e subjetivos.
A) Os pressupostos objetivos são:
1) Uma pena privativa de liberdade imposta, igualou superior a dois
anos. O réu condenado à reclusão ou detenção por prazo inferior a dois anos pode
obter
o sursis; por prazo igual pode obter o sursis ou livramento condicional; por
fim, condenação superior a dois anos enseja o livramento condicional.
Uma exceção: a condenação por prazo menor que dois anos que não receba o
sursis, em razão da reincidência em crime doloso, permite o livramento
condicional
desde que cumprida metade da pena. É o que deixa claro o art. 83, 11, do Código
Penal.

2) O segundo requisito objetivo é o tempo do cumprimento da pena: mais de


um terço, se não reincidente em crime doloso (CP, art. 83, I), e metade, se
reincidente
em crime dolos o (CP, art. 83, 11). No caso dos crimes hediondos, prática de
tortura, tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins e terrorismo, o prazo
alonga-se
para mais de dois terços, se não reincidente em crime de tal natureza. É o que
diz o art. 83, V, do Código Penal, com a redação dada pela Lei n. 8.072.
3) O terceiro requisito é a reparação do dano, se possível (CP, art. 83,
IV).
B) O pressuposto subjetivo está contido no inc. 111 do art. 83 e diz
respeito ao bom comportamento carcerário e à aptidão para prover sua
subsistência através
de trabalho honesto.
Pressuposto subjetivo é o bom comportamento carcerário.
Ainda aqui incumbe advertência preliminar: não se cinge o bom com
portamento à falta de transgressões disciplinares. Não se trata de inércia, mas
de conduta militante. É por isso que o Código de Processo Penal determina ao
diretor
do estabelecimento penal minucioso relatório ao Conselho Penitenciário, onde
informe sobre o caráter do sentenciado, revelado por sua conduta na prisão;
procedimento
nesta, aplicação ao trabalho e trato com os companheiros e funcionários do
estabelecimento; relações, quer com a família, quer com estranhos (visitas,
correspondência).
É o que impõe o art. 714, I, 11 e m.
Repetimos: boa conduta não é apenas não haver brigado com companheiros,
desacatado guarda, ou se entregado ao comércio ou uso de tóxicos no presídio...
Com
a costumeira oportunidade escreve Roberto Lyra: "A prova do procedimento não se
pode reduzir ao atestado negativo de transgressões disciplinares, impondo-se
documentação
que atribua à conduta forma expressa, militante, inconfundível. A prova negativa
independeria dê' exame, expondo o julgamento à indiferença generalizadora, à
simplicidade
vaga, à abstenção superficial". E em outra página: "Toda a vida do sentenciado
deve ser dominada e discriminada para o julgamento da conduta. Não é lícito
sonegar
qualquer elemento ao Conselho Penitenciário e ao juiz, seja a que pretexto for".
A liberdade do sentenciado é antecipada e, portanto, nada mais natural do
que saber-se se está em condições de levar vida honesta e útil. Donde, então,
mais
esse pressuposto subjetivo: "Aptidão para prover à própria subsistência mediante
trabalho honesto". Daí o impor ainda o diploma processual que aquele relatório
informe
acerca do grau de instrução, aplicação e aptidão profissional, indicando os
serviços em que haja sido empregado e da especialização anterior ou adquirida na
prisão;
situação financeira e propósito quanto ao futuro meio de vida, juntando-se
promessa de colocação e indicação do serviço e salário, firmado por pessoa
idônea (art.
714, IV e V).
A readaptação do indivíduo à vida comunitária importa, evidentemente, na
possibilidade de um viver honesto.

188. Concessão do livramento condicional. Requerido pelo próprio


sentenciado, por seu cônjuge, ou parente, ou por iniciativa do Conselho
Penitenciário, será
julgado pelo juiz da execução. É o que dispõe o art. 712 do Código de Processo
Penal, modificado pelo Decreto-lei n. 6.109, de 16 de dezembro de 1943 (art.
1.°),
que, além de suprimir a referência à linha reta do parentesco, ao diretor da
prisão, à parte final daquele dispositivo, suprimiu também o parágrafo único.
Antes, porém, da decisão haverá audiência obrigatória do Conselho
Penitenciário. Não pode o juiz decidir sem ouvir esse órgão consultivo (Lei de
Execução Penal,
art. 131).
Decisões têm sido proferidas em sentido contrário, por se tratar de réus
presos em cadeias do interior. A respeito já tivemos ocasião de nos manifestar.
A
oração do art. 713 do Código de Processo Penal não dá margem a dúvidas: é
imperativa ao dizer que as condições de admissibilidade, conveniência e
oportunidade da
concessão do livramento serão verificadas e não podem ser - pelo Conselho
Penitenciário. Além do mais, a própria parte final do dispositivo, declarando
não ficar
o juiz adstrito ao parecer daquele órgão, mostra supor a lei sempre presente
dito parecer. Fosse dispensável e despicienda seria, por certo, tal declaração.
O que
é facultativo não pode obrigar.
Pensamos, entretanto, hoje não haver lugar qualquer exegese, em face da
clareza do art. 131 da Lei de Execução Penal: "O livramento condicional poderá
ser
concedido pelo juiz da execução, presentes os requisitos do art. 83, incisos e
parágrafo único, do Código Penal, ouvidos o Ministério Público e o Conselho
Penitenciário"
(grifo nosso). Aliás, o art. 69 da mesma lei estabelece que o Conselho
Penitenciário, órgão consultivo e fiscalizador da execução da pena, tem, entre
outras atribuições,
"emitir parecer sobre livramento condicional, indulto e comutação de pena" (art.
70, I).
O argumento de que o Conselho não conhece as condições peculiares do preso
do interior estadual improcede. Seria ele aplicável também ao caso do
sentenciado
da Capital, já pelo fato de a lei não distinguir, já porque, tanto lá como aqui,
não é mesmo o Conselho Penitenciário que informa sobre essas condições, pois não
se acha em contato diário com o detento. Ademais, todos sabemos que a conduta do
condenado não é o único requisito para o livramento condicional. Uma vista d'
olhos
aos arts. 83 do Código Penal e 713 do Código de Processo convencerá disto
qualquer pessoa.
Não atinamos mesmo porque se há de distinguir onde a lei não distingue e
onde inexistem inamovíveis circunstâncias de fato impedindo sua execução.
Hoje, mesmo a indulgentia principis não dispensa de todo a audiência de
órgãos técnicos, na forma do ar1. 81, XXII, da Constituição Federal.
Quanto ao parecer do Colégio Penitenciário, no livramento condicional,
sempre se entendeu obrigatório. Desde a lei que o criou: "Em caso algum poderá o
livramento
condicional ser concedido por ato de qualquer autoridade administrativa; nem sem
prévia audiência do Conselho Penitenciário, sendo nula de pleno direito e
inexeqüível
a concessão dada com preterição dessa formalidade e das constantes do ar1. 8.° e
seus parágrafos" (Dec. n. 16.665, de 6-11-1904, ar1. 12).
Além da audiência do Conselho Penitenciário, ouvirá o juiz também o órgão
do Ministério Público (CPP, art. 716, § 2.°, e Lei de Execução Penal, ar1. 131).
Tanto o Colégio Penitenciário como o Promotor Público emitirão parecer ao
qual o juiz não está vinculado. Da denegação ou concessão cabe recurso para a
Instância
Superior (CPP, art. 581, XII).
Concedido o livramento, a sentença mencionará expressamente as condições a
que fica subordinado (CP, ar1. 85). Tais condições são obrigatórias ou
facultativas.
As condições obrigatórias são as seguintes:
a) obter ocupação lícita, dentro do prazo razoável se for apto ao trabalho;
b) comunicar periodicamente ao juiz sua ocupação;
c) não mudar do território da comarca do Juízo da Execução, sem prévia
autorização deste.
É o que dispõe expressamente o art. 131, § 1.°, da Lei de Execução
Penal.
O art. 131, § 2.°, da mesma lei estabelece as condições facultativas,
que são as seguintes:
a) não mudar de residência sem comunicação ao juiz e à autoridade incumbida da
observação cautelar e de proteção;
b) recolher-se à habitação em hora fixada;
c) não freqüentar determinados lugares.
Fica também o livramento subordinado ao pagamento das custas do processo e
da taxa penitenciária, excetuado o caso de insolvência comprovada - é o que
dispõe
o art. 719 do Código de Processo.
Ao sair, o liberado ficará sob observação e proteção através de serviço
social penitenciário, Patronato ou Conselho da Comunidade. A proteção cautelar,
diz
claramente o art. 139 da Lei de Execução, tem dupla finalidade: I - fazer
observar o cumprimento das condições especificadas na sentença concessiva do
benefício;
e II - proteger o beneficiário, orientandoo na execução de suas obrigações e
auxiliando-o na obtenção de atividade laborativa.
O art. 137 da Lei de Execução fala da cerimônia do livramento condicional,
realizada de modo solene, com a leitura da sentença ao liberado, na presença dos
demais presos, com a explicação das condições impostas e declaração do
sentenciado se as aceita.
A cerimônia em questão será realizada pelo presidente do Conselho
Penitenciário, no estabelecimento onde o liberado cumpria a pena.
É um momento auspicioso na vida de um presídio e que deve ser
aproveitado para exemplo e estímulo aos outros detentos.
189. Revogação do livramento condicional. Fica o sentenciado sujeito às
condições que lhe foram impostas na sentença, durante o prazo que lhe falta para
cumprir
a pena.
Nossa lei não adotou o sistema abraçado por outras, mais cauteloso e
também mais severo, que não limita esse período - período de prova, equivalente
ao do
sursis - ao restante da pena, mas a uma duração mínima, prolongando-se além do
tempo da pena, por tempo variável, conforme a legislação. Assim na Áustria,
Inglaterra,
Bélgica etc.
Suspensa a pena privativa de liberdade, se o liberado transgredir uma
das condições impostas, poderá ser revogado o livramento.
A exemplo de outras legislações, nossos Códigos, ao disciplinarem o
livramento condicional, consagram duas espécies de revogação: a obrigatória e a
facultativa.
A revogação obrigatória é decorrente da própria lei, não ficando,
portanto, a critério do juiz.
Ocorre, nos termos do art. 86, em razão de uma nova condenação a pena
privativa de liberdade, com trânsito em julgado, por crime cometido durante o
período
de prova (CP, art. 86, I, e CPP, art. 726) ou por condenação relativa a fato
ocorrido anteriormente, observada a possibilidade da soma de penas, como
previsto no
art. 84 do Código Penal.
A revogação facultativa, com fundamento no art. 87 do Código Penal, pode
ocorrer em duas hipóteses: a) descumprimento das obrigações impostas; e b)
condenação
irrecorrível, por crime ou contravenção, a pena de multa ou restritiva de
direitos.
A primeira é de entendimento imediato; a segunda, por sua vez, atinge
tanto a fatos ocorridos antes ou no decorrer do período de prova e diz respeito
à natureza
da pena imposta.
Revogado o livramento condicional, não mais poderá ser concedido outro
para a mesma condenação. É o que dispõem os arts. 729 do Código de Processo
Penal e
88 do diploma substantivo. Não se desconta, então, da pena, o tempo em que o
sentenciado esteve solto.
Entretanto, obtido o livramento, pode ele vir a ser condenado por delito
cometido antes da concessão do benefício. Já agora, revogado o livramento
condicional,
terá de cumprir a pena, mas admite-se, então, que o tempo em que esteve solto
seja computado no restante da condenação, como também possa ele lograr novo
livramento,
somando essa pena com a nova e cumpridos que sejam os mínimos legais.
Justifica-se a orientação da lei, pois, em tal hipótese, força é convir
que o sentenciado nenhum ato posterior à concessão praticou que o mostrasse
indigno
do livramento alcançado. Bem diverso é o caso em que, em liberdade, comete novo
crime. Agora somente em relação a este poderá ele obter livramento condicional.

190. Incompatibilidade do livramento condicional. A expulsão de


estrangeiro. Como sucede para o sursis, há delitos que não comportam a liberdade
sob condição.
Assim a já citada Lei n. 1.521, de 26 de dezembro de 1951, que, no art. 5.°,
declara incabível o livramento condicional, exceção feita ao empregado do
estabelecimento
que não ocupe cargo ou posto de direção.
As contravenções com pena de prisão também não comportam o benefício.
Nas edições anteriores longamente discutimos sobre a possibilidade de
livramento condicional e expulsão de estrangeiro, concluindo não ser ele
admissível em
face desta.
Hoje não nos parece necessário discorrer sobre o assunto, diante dos
expressos termos das leis que regulam a matéria. Com efeito, a Lei n. 6.815, de
19 de
agosto de 1980, que define a situação jurídica do estrangeiro no Brasil e cria o
Conselho Nacional de Imigração, dispõe taxativamente a respeito: "Desde que
conveniente
ao interesse nacional, a expulsão do estrangeiro poderá efetivar-se, ainda que
haja processo ou tenha ocorrido condenação" (art. 67).
Ora, se a expulsão é facultada no caso de réu condenado, pouco importa
haja ou não livramento condicional: a medida de competência exclusiva do
Executivo (Lei
n. 6.815, de 19-8-1980, art. 65) efetivar-se-á de qualquer maneira.
Aliás, mesmo no regime do Decreto-lei n. 479, de 8 de junho de 1938, que
não continha disposição semelhante, citávamos a conclusão da l.a Conferência de
Desembargadores
(Anais, p. 313) e acórdãos de nosso Tribunal de Justiça (RT, 276: 151)
proclamando a impossibilidade de livramento condicional e expulsão de
estrangeiro.
Não há alegar, hoje, que a Lei n. 6.815 só se aplica aos crimes contra a
segurança nacional, pois basta ler, respectivamente, os arts. 64 e 91 da
referida
lei para se constatar a amplitude da medida: ela é aplicável também a crimes
comuns.

XII
DOS EFEITOS DA CONDENAÇÃO

SUMÁRIO: 191. Considerações gerais. 192. A sentença penal condenatória. 193. A


sentença penal abso1utória. 194. Efeitos genéricos. Indenização. 195. Confisco.
196.
Registro da condenação. 197. Efeitos específicos.

191. Considerações gerais. O crime é a ofensa a um bem-interesse, donde


acarreta geralmente uma lesão que pode ser efetiva ou potencial e que atinge o
titular
daquele bem jurídico ou o sujeito passivo do delito.
Justa, pois, a preocupação de se ressarcir à vítima do crime, chegando
algumas leis a impor indenização mesmo no caso de dano puramente moral.
Não é de hoje que os escritores se ocupam do assunto, incumbindo ressaltar
os esforços da Escola Positiva, com Rafael Garofalo à frente, procurando
imprimir
à indenização caráter público. Conseqüência disso é que quase todas as leis
contêm disposições que visam tutelar o sujeito passivo, como faz a nossa, não só
nos
arts. 91 e 92, mas em outros, como o art. 83, IV, subordinando à reparação civil
o livramento condicional; o art. 81, II, revogando o sursis no caso de
frustração
da reparação, como, aliás, já vimos.
No termo civil, lembra Costa e Silva a hipoteca legal sobre os imóveis do
criminoso ao ofendido, ou seus herdeiros, e o seqüestro, como medida preliminar,
no processo de especialização, e quanto aos imóveis adquiridos pelo indiciado
com os proventos da infração.
Merece especial menção, por traduzir a tendência publicística da
reparação, a incumbência de o Ministério Público pleiteá-la quando o ofendido
pobre o requerer,
consoante dispõe o art. 68 do Código de Processo Penal.
Por fim, justo é lembrar que em nossa legislação, desde o nascedouro,
medidas já haviam sido ditadas nesse terreno. O Livro V das Ordenações
Filipinas, Título
127, previa o confisco. O Código de 1830 admitiu a reparação do dano - "A
satisfação será sempre a mais completa que for possível." (art. 22) -
convertendo-a em
prisão com trabalho, até conseguir o condenado meios para efetivá-la (art. 32).
O de 1890, no art. 69, b, impunha a "obrigação de indenizar o dano".
Todavia essas providências, legais todas, em regra, tomam-se inoperantes
na realidade, em face da pobreza do condenado. Mas não pode, por isso, a lei
quedar
de braços cruzados, deixando de providenciar acerca da reparação. Assim é que o
Código Civil, no art. 159, dispõe: "Aquele que, por ação ou omissão voluntária,
negligência
ou imprudência, violar direito, ou causar prejuízo a outrem, fica obrigado a
reparar o dano". Vai mais longe ainda a lei, no sentido de oferecer reparação ao
ofendido,
não se esgotando com a pecuniária, mas proporcionando outra de espécie
diferente, como a publicação da sentença condenatória.
Aliás, não só o dano material pode ser ressarcido, porém, também o moral:
"O dano não-patrimonial (ou moral) se repara, em regra, como o econômico,
mediante
indenização pecuniária, a qual, porém, não objetiva a reintegração do
patrimônio, mas tende a dar ao lesado uma satisfação em compensação ao prejuízo
sofrido". Alguns
Códigos Penais dispõem expressamente acerca do assunto. Assim o italiano - art.
185: "... dano patrimonial ou não-patrimoniaL." - e o argentino - art. 29: "...
dano
material e mora!..." - não só, portanto, admitindo o ressarcimento do dano moral
como o prevendo no próprio estatuto repressivo. Vê-se, pois, que a opinião
predominante
no direito civil - da reparação de todo dano - entra para o direito penal.

192. A sentença penal condenatória. A sentença condenatória faz coisa


julgada no cível; quer dizer que não mais se pode indagar da procedência ou
improcedência
da condenação. Dita sentença vale como título executório, não obstante não
conter a obrigação expressa de o condenado reparar o dano, pois se completa com
mandamentos
legais, como os arts. 159 e 1.525 do Código Civil, 63 do Código de Processo
Penal e 91 do Código Penal.
O Título IV do segundo estatuto trata da ação civil (arts. 63 e 68). Mas
não são apenas esses os dispositivos a observar, senão também os do diploma
civil
(arts. 1.518 a 1.532 e 1.537 a 1.553).
Todavia não está o ofendido obrigado a aguardar o desfecho da ação penal
para pleitear o ressarcimento do dano, já que o art. 64 do Código de Processo
Penal
permite seja proposta ação no juízo cível contra o autor do crime, conforme o
caso, contra o responsável civil.
Duas, pois, são as situações: ou já houve trânsito em julgado da sentença
condenatória e, então, o ofendido inicia a execução, ou ainda não houve, e, em
tal
caso, pode a ação de indenização também ser proposta no juízo cível (CPP, arts.
63 e 64).
Não apenas ao ofendido cabe intentar a ação, pois pode ele até faltar, v.
g., no homicídio, mas também a seus herdeiros, na forma do citado art. 63. Caso
incapaz,
agirá seu representante legal.
Cumpre notar que o ressarcimento do dano não compete tão-só ao criminoso.
A responsabilidade civil não está subordinada aos mesmos princípios que a penal:
não é, como esta, estritamente pessoal. Falecido o sujeito ativo do delito, a
obrigação de indenizar transmite-se aos herdeiros, como todas as outras dívidas
e encargos
da herança.

193. A sentença penal absolutória. Declara o art. 65 do Código de Processo


Penal: "Faz coisa julgada no cível a sentença penal que reconhecer ter sido o
ato
praticado em estado de necessidade, em legítima defesa, em estrito cumprimento
de dever legal, ou exercício regular de direito". Trata-se das causas
excludentes
de antijuridicidade, mencionadas no art. 23. Reconhecida, por sentença
transitada em julgado, qualquer delas, não mais se admite sua discussão no juízo
cível. Não
é necessário dizer que a legítima defesa não abrange a putativa, pois, como já
se viu, ela não é justificativa, mas dirimente, e, para esta, outros são os
princípios,
como se verá.
Quem, pois, pratica ato lícito não está sujeito a indenizar o ofendido que
provocou esse ato. Se A legitimamente ofende B, desfechando-se da agressão por
este
iniciada, não lhe deve reparação. Os outros casos de justificativa (art. 23) são
contemplados no art. 160 do Código Civil. Conseqüentemente, nada demais que o
art.
65 do estatuto penal adjetivo impeça a discussão da excludente da
antijuridicidade no cível.
Cumpre, entretanto, ponderar que o ato penal lícito nem sempre o é fora
desses domínios. No exemplo dado, seA, defendendo-se, não atingir seu agressor,
mas
um terceiro, por erro na execução (art. 73), responde civilmente para com o
atingido, consoante o determina expressamente o art. 1.540 do Código Civil, mas
tem ação
regressiva contra aquele, que também lhe assiste, quando, dele se defendendo,
danificar coisas de outrem, na forma do art. 1.520, parágrafo único.
O art. 160,11, do Código Civil refere-se ao estado de necessidade,
remetendo aos arts. 1.519 e 1.520, pelos quais se vê que, se o dono da coisa não
se houve
com culpa, tem direito a indenização pelo prejuízo sofrido, a ser paga por quem
agiu em estado necessitado, o qual terá ação regressiva contra terceiro, se
deste
foi a culpa.
O que se vem de dizer não é pacífico, já que muitos acham haver o art. 65
do Código de Processo Penal revogado os arts. 1.540 e 1.519, como parece a José
de
Aguiar Dias3. Mas é inegável o acerto de Basileu Garcia: "A linguagem de que a
sentença penal absolutória por estado de necessidade, legítima defesa etc., faz
coisa
julgada no cível, não tem outro efeito que o de enunciar a impossibilidade de
reabrir-se, no setor civil, a discussão sobre a intercorrência dessas
justificativas
no caso concreto. Mas o legislador processual não dispôs - nem era sua missão
fazê-lo - acerca de não caber ou caber, sempre ou às vezes, a indenização, em
havendo
alguma daquelas justificativas".
Não é só, porém, a sentença que reconhece excludentes de antijuridicidade
que impede a discussão no cível; também a que reconhece categoricamente a
inexistência
material do fato. Proferida pelo juiz criminal sentença que absolve o réu,
concluindo taxativamente que o fato não ocorreu, não haverá mais discussão no
outro juízo.
Mas a declaração há de ser categórica - diz a lei processual, e como tal não se
deve entender a que declarar não se achar provado o fato, ou haver dúvida sobre
sua
ocorrência etc.
Carvalho Santos lembra que a decisão do júri não impedirá a propositura da
ação cível, pois, negado o primeiro quesito que engloba a existência do fato e a
autoria, nunca se saberá qual das negativas os jurados afirmaram, não ficando,
pois, em boa hora, trancada a via cível.
Pelo mesmo art. 66 conclui-se que a sentença absolutória fundada em
excludente da culpa (lato sensu) não impede a propositura da ação cível: o autor
de ilícito
penal, isento de pena, não fica excluído do ressarcimento. Noutras palavras,
quem cometeu o fato nas condições expostas nos arts. 20, 22, 26 e 28 do Código
Penal
não está livre de indenizar a vítima: trata-se de ilícito penal que não pode ser
ato civil lícito. Falta apenas a responsabilidade penal que não subordina a
civil,
na forma do art. 1.525: ambas são independentes.
Não concordamos, pois, com Basileu Garcia, quando sustenta o contrári06 .
Neste caso, não se nega a existência do fato, reconhecida no juízo penal; mas,
unicamente,
se verifica e confirma que a absolvição do acusado (por não existirem as
condições de imputabilidade) não tem influência na instância civil porque é
lícito exigir
a indenização do acusado nessas circunstâncias, por não serem reparáveis somente
os prejuízos determinados por atos puníveis? No mesmo sentido, Clóvis Beviláqua.
Outra coisa não se verifica com a culpa (stricto sensu). Absolvido, no
juízo criminal, o condutor de automóvel ou outro veículo, tem-se admitido possa
a ação
civil ser instaurada com o fim de obrigá-lo a indenização, mesmo porque é de
todos sabido que a culpa no direito penal não é a mesma do direito civil, como,
aliás,
já foi dito.
O art. 67 do Código de Processo Penal deflui do antecedente e obedece ao
mesmo princípio de que não são ressarcíveis somente os atos puníveis.

194. Efeitos genéricos. Indenização. O Código Civil, nos arts. 1.537 e s.,
trata de vários casos de indenização, determinando também o modo de efetivá-Ia.
No art. 1.537 cogita-se do homicídio, cujo ressarcimento consiste no pagamento
das despesas com o tratamento da vítima, o funeral e o luto da família; na
prestação
de alimentos às pessoas a quem o defunto os devia. Nos arts. 1.538 e 1.539 é a
lesão corporal que constitui preocupação da lei. A indenização compreende as
despesas
do tratamento, os lucros cessantes até que termine a convalescença, e a multa,
na forma daquele primeiro artigo, infine. De observar, entretanto, quanto à
multa,
que na lesão corporal ela só existe na hipótese do § 5.° do art. 129 do Código
Penal. Veja-se, a respeito, Carvalho Santos (Código Civil, cit., v. 21, p. 128),
referindo-se
ao Código anterior.
Tratam os parágrafos do art. 1.538 da reparação no caso de deformidade,
destacando a hipótese em que o ofendido for mulher ainda capaz de casar. O art.
1.539,
além da indenização comum, obriga ao pagamento de pensão correspondente à
importância do trabalho, para o qual se inabilitou, ou da depreciação sofrida.
O art. 1.541 trata da usurpação e do esbulho. A respeito, escreve Clóvis
Beviláqua: "Não se refere o Código aos melhoramentos encontrados na coisa
usurpada
ou adquirida por esbulho. Prevalecem as regras dos arts. 517 e 518. Porque o
possuidor é de má-fé, indenizam-se-lhe as benfeitorias necessárias. O
melhoramento,
que advém, independentemente de trabalho ou despesa do devedor, não cria
obrigação de indenizá-lo"9. Os arts. 1.542 e 1.543 tratam ainda do mesmo objeto
do art.
1.541.
Quanto aos arts. 1.545 e 1.546, versam exclusivamente atos culposos de
certos profissionais.
O artigo seguinte ocupa-se de crimes contra a honra (injúria ou calúnia),
determinando o ressarcimento do dano ainda que não se prove prejuízo material,
na
forma do parágrafo único, o que, sem dúvida, consagra a reparação do dano moral.
O art. 1.548 tem por objeto fatos que atentam contra a honra da mulher,
mesmo que não constituam delitos contra os costumes, tal qual se dá com a
sedução de
mulher maior de dezoito anos, que, com não mais ser sujeito passivo do crime do
art. 217 do Código Penal, tem, entretanto, o direito ao dote, indenização
específica
de que aqui se trata.
No inc. I do art. 1.548 não se exige a sedução, enquanto os dois outros
(incs. 11 e IV) são crimes previstos na lei penal. De crimes dessa natureza
cogita
igualmente o art. 1.549.
Seguem-se, no Capítulo 11 desse Título, os arts. 1.550 a 1.552, que têm em
mira fatos contra a liberdade pessoal, considerados delitos. A enumeração,
entretanto,
não é taxativa.
Finalmente, nos casos não previstos no referido capítulo.

195. Confisco. O artigo 91 do Código Penal não obriga apenas a indenizar o


dano resultante do delito, mas determina a perda a favor da União, ressalvado o
direito
do lesado ou do terceiro de boa-fé, dos instrumentos e do produto do crime.
É o confisco. Já vimos que em tempos de antanho foi ele conhecido como
pena. Hoje, nossa Constituição Federal (art. 5.°, XLVI) não mais o admite.
Alguns o
consideram pena acessória; outros, medida de segurança; e outros, ainda, efeito
da sentença condenatória.
Nossa lei tem-no como conseqüência da condenação. Costa e Silva opina que:
"De lege ferenda, a confiscação deve ser sempre medida de segurança, aplicável
quando
os instrumenta ou producta sceleris forem perigosos. Nesse sentido se manifesta
muito bem o criminalista Hafter. E, nesse ponto, a nossa lei se acha tanto ou
quanto
antiquada". O mesmo escreve Logoz, que termina dizendo: "La confiscation doit
être une mesure et seulement cela". Dois Códigos modernos - o suíço e o italiano
(arts.
58 e 240) - consideram-no medida de segurança.
Nem sempre o confisco é obrigatório; sê-lo-á quando os instrumenta forem
proibidos ou importarem perigo.
Ao reverso de certas leis, nosso Código não o limita aos crimes dolosos;
cabe também nos culposos, pois nada existe no dispositivo que o restrinja
àqueles
delitos.
Recai o confisco, primeiramente, sobre os instrumenta do delito. São as
coisas materiais que serviram para a sua prática, isto é, a execução, pensando
com
razão Costa e Silva que, nos dizeres do Código, não se compreendem os meros
meios preparatórios.
Todavia não comungamos da opinião do insigne jurista quando reputa injusta
a cláusula restritiva de que devem ser "coisas cujo fabrico, alienação, uso,
porte,
ou detenção, constitua fato ilícito", que tira quase todo o valor do
dispositivo, sendo conseqüentemente mais perfeito o Projeto A1cântara Machado.
Nosso Código
foi mais liberal que o anterior e teve em vista evitar a perda de utensílios
profissionais, de trabalho, estudo etc. Sem a cláusula adotada, confiscar-se-ia
o livro
com que o estudante agrediu o companheiro, ou o automóvel que atropelou o
pedestre etc. Conseqüentemente, o confisco só será decretado quando os
instrumenta sceleris
forem de uso ilícito. É o que dispõe o art. 122 do Código de Processo Penal.
Quanto aos outros, admite o art. 123 do mesmo Código sejam reclamados pelo réu.
Observe-se,
concomitantemente, que o confisco deve ser decretado - embora pareça a muitos,
como Costa e Silva, que ele opera ipso jure - como efeito da sentença
condenatória,
adquirindo logo a União o domínio da coisa confiscada.
O Código ressalva o direito do lesado ou de terceiro de boa-fé. Mas,
tratando-se do objeto ilícito, é procedente essa ressalva? Deverá ser restituído
a uma
daquelas pessoas? É exato que há casos excepcionais em que objetos ilícitos
podem ser fabricados ou possuídos por certa e determinada pessoa; porém, nesse
caso particularizado,
eles não serão ilícitos porque haverá autorização ou permissão para produzi-los
ou possuí-los. No mais, se se ressalva o direito do lesado ou de terceiro de
boa-fé,
ipso facto diz-se que o confisco só pode recair sobre coisa pertencente a quem
tomou parte no crime.
Recai também o confisco sobre os producta sceleris, na forma da alínea b
do art. 91, que tem amplitude que não possui o dispositivo anterior. Produtos do
crime
são as coisas adquiridas diretamente com o crime (coisa roubada), ou mediante
sucessiva especificação (jóia feita com ouro roubado), ou conseguidas mediante
alienação
(dinheiro da venda do objeto roubado), ou criadas com o crime (moeda falsa).
Também se inclui no confisco outro qualquer

bem ou valor que importe proveito, desde que haja sido auferido pelo agente, e
não por terceiros, com a prática do crime. Assim, o preço deste, os bens
economicamente
apreciáveis, dados ou prometidos ao agente para que cometa o crime, a
contraprestação que corresponde à prestação da atividade criminosa, à
retribuição desta (arts.
62, IV, e 121, § 2.°, 1).
A Lei n. 6.368 (repressão ao tráfico de substâncias entorpecentes)
apresentou uma nova forma de confisco, a de "veículos, embarcações, aeronaves ou
quaisquer
outros meios de transportes, assim como maquinismo, utensílios, instrumentos e
objetos de qualquer natureza", desde que usados no tráfico de entorpecentes. É o
que
preconiza o art. 34 da citada lei.
A propriedade das coisas confiscadas não se regula pelo tempo em que o
delito foi praticado, mas pelo da sentença condenatória transitada em julgado. O
confisco
prescreve com a condenação. A suspensão desta não importa a do confisco.

196. Registro da condenação. Um dos efeitos da condenação é ser lançado o


nome do réu no rol dos culpados. Determina-o o art. 393, lI, do Código de
Processo
Penal, antes mesmo que transite em julgado a sentença condenatória. Igualmente
se fará o lançamento no caso de pronúncia (CPP, art. 408, § 1.°). Dessa forma se
documenta
a condenação, ou a pronúncia do réu, que passarão a constar de outros assentos.
Tem-se observado que isso, perdurando, importa em reviver a antiga pena de
infâmia, de tempos em que ela se sobressaía pela crueldade física ou moral.
Diante
de tal fato, algumas leis têm adotado medidas com o fim de conjurar esse mal. O
art. 175 do Código Penal italiano, em casos em que a pena é branda, permite que
"não
se faça menção da condenação no certificado do registro criminal, extraído a
pedido de particulares, salvo por motivo de direito eleitoral". Caso venha a
cometer
novo crime, deixa de existir a proibição da menção. No Código Penal suíço a
reabilitação permite ao condenado alcançar o cancelamento do registro criminal.
Quanto a nós, observa o Des. José Frederico Marques que "não há regra tão
específica, como a do art. 175 do Código Penal italiano; e a reabilitação não é
por
todos admitida com a extensão que o instituto possui no direito suíço e
francês". Lembra, entretanto, o art. 709, §§ 2.° e 3.°, do Código de Processo
Penal, acerca
do sursis, e conclui que, "se o registro deve ser secreto quando se trata de
pena de detenção, cuja execução está condicionalmente suspensa, com maior razão
será
também secreto o mesmo registro se relativo a pena pecuniária, pois que esta é
muito menos grave que qualquer pena privativa de liberdade"l7. Tal conclusão é
lógica
e humana.
197. Efeitos específicos. Os efeitos específicos da condenação estão
contidos no art. 92 do Código Penal e são de três ordens:
a) Art. 92, I - Com o advento da Lei n. 9.268, de 1.° de abril de 1996,
que deu nova redação ao referido art. 92, I, um dos efeitos da condenação
criminal
por pena privativa de liberdade igualou superior a um ano, quando o crime for
praticado com abuso de poder ou violação de dever para com a Administração
Pública,
ou então por tempo superior a quatro anos nos demais casos, é a perda imediata
do cargo, função pública ou mandato eletivo.
Nos chamados "crimes funcionais" surge a incompatibilidade para o
exercício do cargo ou função pública.
O entendimento das expressões "cargo" e "função pública" deve ser
examinado tendo em vista o que dispõe o art. 327 do Código Penal, dispositivo
este que conceitua
a figura do funcionário público para os efeitos penais: "Considera-se
funcionário público para os efeitos penais, quem, embora transitoriamente e sem
remuneração,
exerce cargo, emprego ou função pública". "Equipara-se a funcionário público
quem exerce cargo, emprego ou função em entidade para estatal" (parágrafo
único).
Para surtir o efeito específico a pena privativa de liberdade deve ser
superior a quatro anos.
b) Art. 92, 11 - O segundo caso diz respeito à incapacidade para o
exercício do pátrio poder, tutela ou curatela.
Sua aplicação exige a conjugação de dois fatores: 1) que o crime seja
doloso; e 2) que tenha sido aplicada pena de reclusão.
c) Art. 92, III - O derradeiro efeito específico é uma inovação: inibição
do direito de dirigir automotores quando o veículo for usado como um meio
instrumental
para a prática do crime.
O veículo no âmbito penal, como sabiamente analisado por José Frederico
Marques, pode figurar de três modos: a) como causa da prática de crimes; b) como
objeto
material do crime; e c) como instrumento para a prática de crimes.
No presente capítulo interessa a terceira hipótese: quando o veículo for
usado pelo agente como meio instrumental para a prática de um crime, como meio
material
executório, como, a título de exemplo, para a prática de lesões corporais,
homicídio, perigo para a vida ou saúde de outrem, tráfico de entorpecente etc.
A sua aplicação exige o uso como meio instrumental para um crime doloso.
O parágrafo único do art. 92 declara que o efeito não é automático,
devendo ser motivado e fundamentado na sentença condenatória.

XIII
DA REABILITAÇÃO

SUMÁRIO: 198. Considerações gerais. Conceito. 199. Pressupostos. Revogação.

198. Considerações gerais. Conceito. A reabilitação, historicamente,


passou por fases diversas e distintas finalidades, de tal maneira que toma um
tanto difícil
o exame de sua natureza jurídica.
O instituto é um legado do direito romano e tinha como finalidade
restaurar os direitos do condenado, principalmente os de cidadania e os
patrimoniais. Por
ela restituíam-se bens e dignidades.
Não foi conhecida no direito português reinol.
Entre nós surgiu com a Consolidação das Leis Penais de Vicente Piragibe,
tendo como finalidade corrigir possíveis injustiças cometidas pela jurisdição
penal. No regime do Código de 1890, como se verifica de seu art. 86, a
reabilitação
era conseqüência da sentença favorável, obtida pelo réu no pedido de revisão de
seu processo. Revisão extraordinária, julgada pelo Supremo Tribunal Federal
(acentuava
o dispositivo), com a declaração de inocência do requerente. Reconhecida esta,
era o acusado reintegrado em todos os direitos que havia perdido pela
condenação,
acrescidos ainda de justa indenização por que respondia a União ou o Estado.
Coisa bem diversa se lia no art. 119 do Código, em sua redação primitiva.
Com efeito, por esse dispositivo verifica-se que o instituto objetivava as
interdições
de direitos impostas expressa ou implicitamente ao réu, pela sentença que o
condenara. Ficavam fora duas outras penas acessórias: a perda da função pública
eletiva
ou de nomeação e a publicação de sentença, previstas no art. 47.
Era, pois, somente aquela pena a a1cançada pela reabilitação. Caso não
bastassem os termos claros do art. 119 (redação primitiva), teríamos a Exposição
de
Motivos interpretando-o de maneira insofismável: "A reabilitação, segundo a
disciplina do projeto, não é, como no Direito vigente, a restitutio in integrum,
no caso
exclusivo de condenação injusta, mas um benefício que, consistente no
cancelamento da pena acessória de interdição de direito, pode ser concedido ao
condenado, sempre
que este revele, ulteriormente, constância de boa conduta e haja reparado o dano
causado pelo crime".
Outra coisa não dizia um dos mais abalizados intérpretes do Código:
"Segundo o método tradicional, a reabilitação consiste na simples extinção das
penas acessórias,
isto é, na reintegração do condenado em todos os direitos e capacidades que a
sentença, complementarmente, lhe haja tirado ou suspenso; e, além disso, não
opera
ex tunc, mas ex nunc (somente da data em que é declarada). Não apaga coisa
alguma do passado". E linhas adiante: "Se o moderno princípio do Direito Penal
se baseia
no princípio da individualização, relativamente ao tratamento dos que delinqüem,
seria contrário a esse critério o radical cancelamento da condenação, pois tanto
importaria em criar-se um obstáculo à pesquisa sobre a inteira vida passada,
sobre o exato curriculum vitae do condenado, sobre sua personalidade real e
completa".
Em edições anteriores havíamos criticado o Código; primeiramente, dizendo
que ele abandonara seus modelos preferidos - os Códigos italiano e suíço.
Depois,
porque a persistência de uma condenação, a marcar para o resto da vida a pessoa,
não obstante o cumprimento de tudo quanto lhe foi imposto e o resgate de anos de
boa conduta, de viver honesto e útil, não condiz com o direito penal de nossos
dias.
Havia, por fim, o ilogismo da concessão nos crimes mais graves, e, por via
de conseqüência, aos delinqüentes que se revelaram mais perigosos (duplamente
condenados:
pena principal e pena acessória) .
Essas as razões, certamente, de alguns acórdãos de nossos tribunais darem
amplitude ao instituto, declarando ser ele cabível mesmo não havendo aquela pena
acessória, e, assim, o elevando à altura de poderoso estímulo para o condenado
regenerar-se plenamente, seguro de que seu passado não o seguirá para sempre -
qual
sombra sinistra e fatídica a lembrar-lhe o erro cometido - e que a sentença
condenatória não será um estigma a apartá-lo dos homens e a tornar-lhe mais
áspero, quando
não intransitável, o caminho a percorrer. Dizíamos, finalmente, que essa
orientação não se conciliava com o preceito constitucional, que assegurava a
todos trabalho
digno e o considerava obrigação social.
Foi o que a Lei n. 5.467, de 5 de julho de 1968, veio a atender, dando
nova redação aos arts. 119 e 120 do Código Penal.
Ela declarava que a reabilitação alcança quaisquer penas impostas na
sentença definitiva. Conseqüentemente, abrangia assim as penas acessórias como
as principais,
consoante, aliás, fazem os Códigos alienígenas citados.
A reforma atual, como previsto no art. 93 e seu parágrafo único, deu ao
instituto a finalidade de assegurar ao condenado o sigilo dos registros sobre
seu processo
de condenação.
Como se verifica, instituto com variados entendimentos e aplicações:
restitutio in integrum, ação específica contra sentenças injustas, medida
restabelecedora
de direitos cívicos, canceladora de pena acessória ou restauradora de todos os
direitos, causa suspensiva de punibilidade ou extintiva de punibilidade etc.
Atualmente, por força da reforma de 1984, é uma ação própria destinada a
guardar sigilo ou silêncio sobre a condenação, atingindo os registros criminais,
tendo
por finalidade colocar o condenado regenerado e quite com a justiça em situação
exterior idêntica à do primário. A reabilitação impõe silêncio sobre a
condenação
anterior, na folha de antecedentes do reabilitado e em certidões extraídas dos
livros do juízo, a menos que requisitadas por juiz criminal. Não se trata de
efeito
de somenos, pois importa em ter o sentenciado folha corrida limpa, cuja vantagem
não necessita ser encarecida. Ressalte-se que a lei processual (CPP, art. 748)
restringe
extraordinariamente a exceção, referindo-se exclusivamente ao juiz criminal: não
excetua outro juiz ou qualquer autoridade, como o delegado de polícia. Visa,
também,
os efeitos específicos da sentença condenatória, não rescindindo a condenação,
porém restaurando o direito inibido, vedada a reintegração na situação anterior
nos
casos de perda da função ou cargo público e na incapacidade para o exercício da
tutela, curatela ou pátrio poder.
Dupla finalidade: dar ao reabilitado um boletim de antecedentes criminais
sem anotação e restaurar os direitos atingidos pelo efeito secundário específico
da condenação, salvo as ressalvas expressas.

199. Pressupostos. Revogação. A reabilitação tem como pressupostos para a


sua obtenção os seguintes requisitos:
1. O) Por primeiro somente pode ser pedida decorridos mais de dois anos do
término da execução da pena. É um prazo considerado como de exame da readaptação
à vida em sociedade. Em tal período computa-se o de prova da suspensão e de
livramento condicional, desde que não revogados.
2.°) O segundo requisito é o domicílio no País, nos dois anos anteriores
ao pedido.
3.°) O terceiro é um bom comportamento, tanto na vida pública como na
privada, isto é, no meio social e no familiar.
4.°) O derradeiro é o ressarcimento do dano causado com o crime cometido,
salvo a total impossibilidade de fazê-Io. A renúncia do direito indenizatório
por
parte da vítima ou a novação suprem o ressarcimento. Aliás, civilmente, tanto a
renúncia como a novação constituem forma de pagamento.
O não-atendimento do pedido não impede nova formulação (art. 94, parágrafo
único), a qualquer tempo, desde que surjam novos elementos visando suprir os
requisitos
anteriormente não atendidos.
Embora ação própria e não incidente executório, é uma ação sui generis,
pois não faz coisa julgada, não tem força definitiva, já que passível de
revogação
a qualquer tempo, de ofício ou por provocação ministerial, desde que o
reabilitado seja condenado definitivamente por pena que não seja a de multa.

DAS MEDIDAS DE SEGURANÇA

SUMÁRIO: 200. Histórico. 201. Medida de segurança e pena. 202. Legalidade da


medida de segurança. 203. Pressupostos. 204. Espécies.

200. Histórico. É no Projeto de Código Penal suíço de Stoos que, no


terreno normativo, surge pela primeira vez a medida de segurança como conjunto
sistemático
de providências de cunho preventivo individual.
Todavia a definição de certas medidas contra os inimputáveis, visando à
defesa social, é bem mais antiga, mesmo no plano legislativo. Assim é que no
Código
Penal francês (1810) já deparamos disposições referentes aos menores de dezoito
anos que tivessem agido sem discemimento, os quais, livres de pena, eram
submetidos
a medidas tutelares.
Em nossa legislação, encontramos no Código do Império (arts. 12 e 13)
providências acerca dos inimputáveis: os loucos eram recolhidos a casas para
eles destinadas,
ou entregues às suas famílias, e os menores de quatorze anos que houvessem agido
com discernimento seriam recolhidos às casas de correção.
O Código da República, no art. 30, dispunha também sobre medidas tutelares
aos menores de dezoito anos que tivessem obrado com discemimento, determinando
fossem
recolhidos a estabelecimentos disciplinares industriais, e, no art. 29,
prescrevia que os inimputáveis por "afecção mental" seriam entregues à família
ou internados
em hospitais de alienados.
Foi, entretanto, no Projeto Sá Pereira que o instituto surgiu com o nome
de "medidas de defesa social", que é substituído pelo de "medidas de segurança"
quando
o Projeto é revisto pela Sub-comissão Legislativa. A1cântara Machado também as
previu em seu Projeto, com a mesma denominação.
Apesar de constarem do Projeto Stoos, aparecem elas, antes, no Código de
Rocco, como "misure amministrative di sicurezza", havendo também sido adotadas
pelo
Código Penal suíço (em 1937), que, por sinal, entrou em vigor na mesma data que
o nosso.
Como escreve o Min. Francisco Campos, trata-se de inovação capital. E
Ataliba Nogueira ainda é mais expressivo: "É a maior novidade, a mais profunda
modificação
ao sistema penal anterior, a introdução, no novo código, do instituto das
medidas de segurança. Nenhum outro assunto sobreleva a este, nenhuma outra
novidade é maior
do que esta".

201. Medida de segurança e pena. Como a pena, é a medida de segurança


sanção penal. Bem sabemos que esta concepção não é pacífica, mas
ontologicamente, para
nós, elas não apresentam distinção. São outras diferenças que as caracterizam, e
de natureza quantitativa antes que de qualidade. Na pena prevalece o cunho
repressivo,
ao passo que na medida de segurança predomina o fim preventivo; porém, como já
se fez sentir, a prevenção também não é estranha à pena. Ambas pressupõem a
prática
de ato ilícito.
Ademais, se a pena também possui fim preventivo, por seu lado a medida de
segurança participa de sua natureza, já que não deixa de ser reação contra o
ataque
ao bem jurídico. Ambas são manifestação do jus puniendi estatal, colimando que o
indivíduo que delinqüiu e se revelou perigoso não torne a delinqüir, e ambas são
aplicadas jurisdicionalmente.
O argumento de que a medida de segurança tem antes caráter administrativo,
ao passo que a outra possui o jurisdicional, não procede. "O direito de punir
emana
do Estado-administração, de igual modo que o direito de impor a medida de
segurança, que, aliás, não deixa de ser manifestação também do jus puniendi. O
juiz pune
ou impõe a medida de segurança, no exercício do poder jurisdicional, isto é,
aplicando a lei penal, a norma de direito objetivo. Sua função é tão-só a de
tornar
efetivos os mandamentos da ordem jurídica, uma vez que não é ele o titular do
direito de punir do Estado. Sendo assim, nem a pena nem a medida de segurança,
embora
jurisdicionalmente aplicadas, têm a natureza de ato jurisdicional. Ambas se
filiam à atividade administrativa do Estado, atividade essa que, por ser de
coação indireta,
necessita de prévio controle jurisdicional".
Não colhe, pois, o argumento do caráter administrativo.
Pena e medida de segurança ainda se aproximam quando vemos que também
nesta não falta o caráter aflitivo que aquela apresenta, ao entrarem em jogo as
detentivas.
Diferença marcante haveria entre elas se uma fosse exclusivamente
retribuição e a outra, prevenção, o que, entretanto, não ocorre, pois a pena tem
finalidade
preventiva, geral e especial (n. 144).
Distinções que apresentam - por exemplo a pena é determinada, ao passo que
a medida de segurança só expira com a cessação da periculosidade; aquela só se
aplica
aos imputáveis, enquanto a outra cabe aos inimputáveis - não mostram diferença
de essência entre elas, como se verá.
A medida de segurança é um reforço à prevenção, já antevista na pena. Esta
não deixa de considerar a personalidade do agente (art. 59): a outra investiga
sua
periculosidade, objetivando o mesmo fim que aquela quando a personalidade
oferece maior perigo. Por isso, insistem certos autores em que a consideração da
periculosidade
é exclusivamente da medida de segurança, o que não ocorre na outra sanção. Isso
não é totalmente exato, pois à fixação da pena não é estranha a periculosidade
do
réu, como se vê do art. 59 de nosso Código. Observa-se, portanto, que objetivos
e efeitos de uma e outra se entrelaçam e se confundem, dificilmente se
observando
nítida linha divisória entre ambas.
Consoante escreve Grispigni, são traços comuns entre elas: a) ambas
importam diminuição de bens jurídicos; b) baseiam-se as duas na existência de um
crime;
c) servem tanto para a intimidação da massa - prevenção geral, como para a
readaptação do delinqüente - prevenção especial; d) ambas são aplicadas
jurisdicionalmente.
Afastada da pena a idéia exclusiva de expiação, e admitida a de prevenção,
não existe entre pena e medida de segurança diferença de natureza, embora na
primeira
predomine o caráter repressivo, enquanto na segunda impera o preventivo.
Não obstante a identidade entre elas, não há dúvida de que no terreno
normativo estão sujeitas a regulamentação diversa.

202. Legalidade da medida de segurança. Como a pena, está a medida de


segurança sujeita à lei, isto é, não é imposta discricionariamente como sucede
com outras
medidas pertinentes às funções administrativas do Estado; mas sofre restrições e
limitações em nome do interesse individual.
Assegurado no Código Penal o princípio da legalidade, claro é que ele
também deve imperar no tocante ao processo, tendo inteira aplicação as garantias
do art.
5.°, LV e LXVIII, fixadas pela Constituição Federal. Mesmo que isolada a medida
de segurança, mesmo só ela tendo lugar, amplas garantias são concedidas ao
interessado,
como se verifica dos arts. 549 e s. do Código de Processo Penal.
Vê-se, pois, que, como para a pena, a medida de segurança só é aplicada
após processo regular com amplas garantias, em que sejam defendidos a liberdade
e outros
direitos do indivíduo. Somente depois de proclamada sua periculosidade é que ela
se toma aplicável.

203. Pressupostos. A medida de segurança tem dois pressupostos: a prática


de fato previsto como crime e a periculosidade do agente.
O Código adota, como regra, a medida de segurança pós-delitual. Para haver
lugar, é mister a prática de fato objetivamente criminoso, já que o agente deve
ser inimputável ou semi-responsável. Códigos há que definem medida de segurança
pré-delitiva. Não seguiu esse exemplo nossa lei, receosa, talvez, de dar
ensanchas
ao arbítrio judicial. Não quis ficar no terreno da apreciação exclusiva da
personalidade do agente, mas exigiu um elemento objetivo - o crime ou fato a ele
semelhante
- a demonstrar a capacidade delituosa do autor. Antes de tudo - diz Antolisei -
é mister que o fato praticado esteja conforme a uma figura delituosa descrita
pelo
legislador. É necessário, por outro, que não ocorra nenhuma causa de
justificação..
Não basta a prática de fato previsto como crime: é mister que,
conjuntamente, haja periculosidade do autor. Reconhece-se esta quando a
personalidade do agente
e sua vida anteata, aliadas aos motivos e circunstâncias do fato, mostram a
probabilidade de tomar ou vir a delinqüir.
Não se trata de possibilidade de vir a cometer delito, mas da
probabilidade demonstrada por quem vive em estado perigoso, estado subjetivo de
criminalidade
latente.
Pela lei anterior havia cinco categorias de perigosos, de prováveis
cometedores de fatos considerados ilícitos penais: os agentes portadores de
periculosidade
real, os inimputáveis por enfermidade mental (art. 22 da redação primitiva), os
semi-imputáveis (art. 22, parágrafo único, da redação primitiva), os viciados em
álcool ou substância de análogo efeito, isto é, a ebriedade habitual, os
reincidentes em crimes dolosos e os condenados por crimes cometidos como
filiados a associação,
bando ou quadrilha de malfeitores.
Após a reforma somente foram considerados perigosos os inimputáveis e os
semi-responsáveis.

204. Espécies. Como mencionado no capítulo anterior, a reforma penal de


1984 apresentou profunda inovação em relação à situação primitiva, no que diz
respeito
às medidas de segurança, já que sua aplicação aos imputáveis foi extinta,
restando os inimputáveis e os semi-responsáveis.
A legislação conservou duas espécies de medidas de segurança: detentiva e
restritiva. A primeira consiste na internação em hospital de custódia e
tratamento
psiquiátrico, enquanto a segunda resulta de tratamento ambulatorial.
Ao inimputável por enfermidade mental (CP, art. 26) aplica-se a medida de
segurança detentiva, baseada num juízo de periculosidade que substitui o juízo
de
culpabilidade.
A internação é a regra. Contudo, se a pena in abstrato prevista para a
figura delituosa violada for detenção, o agente poderá (indica faculdade) ser
submetido
a tratamento ambulatorial (CP, art. 97).
O prazo é indeterminado, vigorando a aplicação enquanto a perícia médica
não constatar a cessação da periculosidade (CP, art. 97, § 1.°). Tal exame deve
ser
realizado após um prazo mínimo que é de um a três anos (CP, art. 97, §§ 1.° e
2.°).
É possível a desinternação (CP, art. 97, § 3.°), porém, como a mesma é
condicional, poderá ser restabelecida a situação anterior.
A reforma atual, ao revés da anterior, em relação ao semi-responsável
adotou o sistema alternativo: reduz-se a pena ou aplica-se medida de segurança.
Extinto,
portanto, o sistema de duplo binário: aplicação cumulativa e sucessiva de pena
reduzida e medida de segurança.
No atual regime, diante do caso concreto, o juiz optará pela aplicação da
pena ou medida de segurança. Escolhida esta (internação ou tratamento
ambulatorial)
executa-se como se fosse a um inimputável.

DA AÇÃO PENAL
I
CONSIDERAÇÕES GERAIS

SUMÁRIO: 205. Considerações preliminares. 206. Notitia criminis. 207. Espécies


de ação. 208. Procedimento ex officio.

205. Considerações preliminares. O crime é um fato humano que lesa não só


direitos do indivíduo como da sociedade, ofendendo-a nas condições de harmonia e
estabilidade
necessárias à sua coexistência. O Estado, na preservação dessas condições, na
busca do bem comum, opõe-se ao delito, quer prevenindo-o, quer reprimindo-o.
Dispõe,
para isso, do jus puniendi, do direito de punir, que apresenta essaface
subjetiva. Trata-se de direito que lhe épróprio e necessário para que realize
suas finalidades.
Não é, porém, um direito ilimitado, já que o Estado se autolimita, se
vincula a si mesmo, por meio da lei. Como vimos, o jus puniendi encontra
limitação no
direito objetivo. Ao mesmo tempo que o Estado dita ao indivíduo que este não
pode praticar tal ato, declara concomitantemente que não o poderá punir, se ele
não
o executar. Nullum crimen, nulla poena sine praevia lege.
Mas, praticado o fato vedado no direito objetivo, não pode, mesmo assim, o
Estado aplicar discricionariamente a sanção. Cometido o fato típico,
antijurídico
e culpável (o crime), é mister haver lugar sua conseqüência (a pena), que,
todavia, não poderá ser imposta senão mediante processo e julgamento: nulla
poena sine
judicio.
Donde o Estado dispõe de outro direito, do jus persequendi ou jus
persecutionis, direito subjetivo que lhe outorga o poder de promover in
abstracto a persecução
do autor do crime. Dito direito é o Estado-administração, mas não se efetiva ou
se exterioriza senão na persecutio criminis, na qual ele pede ao Estado-juiz que
aplique o direito objetivo no caso concreto. "O direito de ação penal", diz
Grispigni, "consiste na faculdade de exigir a intervenção do poder jurisdicional
para
que investigue a procedência da pretensão punitiva do Estado-administração, nos
casos concretos". Nessa pretensão punitiva conjugam-se, portanto, o direito de
punir
e o jus persequendi, agora realizados ou transformados em atos.
Mas, como lembra Canuto Mendes de Almeida, "o aparelho judiciário é,
geralmente, inerte. Seu funcionamento depende de solicitação exterior; a
jurisdição só
se move mediante esse impulso. Essa solicitação ou impulso, que à lei incumbe
determinar, é a ação: uma atividade de pessoas que querem ou que devem garantir
pela
coação do poder público a efetividade de um direito e que, nos termos legais,
constitui condição do procedimento jurisdicional". A ação é, pois, o direito de
invocar
a jurisdição do juiz; é um atributo do autor; é o direito de requerer em juízo
aquilo que é devido ao autor - jus persequendi in judicio, quod sibi debetur,
como
define Celso, reproduzido nas Institutas, de Actionibus.
Todavia advirta-se que a ação penal não é a persecução criminal, senão um
momento seu. A persecutio criminis tem início com as investigações policiais,
que
constituem o inquérito, procedimento preliminar ou preparatório da ação que o
seguirá. Para ele, basta existir tão-só a notitia criminis. Concluídas as
investigações
e diligências policiais, habilitado fica o Estado-administração a comparecer a
juízo e pedir ao Estado-juiz que aplique o direito objetivo. Nasce, nesse
momento,
a ação penal.
Mas o Estado-administração não dispõe arbitrariamente da ação, já que ela
se subordina a condições. Com efeito, assentado que é inadmissível a ação sem
interesse
de agir, requisito ínsito em toda a persecutio criminis, verifica-se que a ação
está subordinada a outras exigências, declinadas no art. 43 do Código de
Processo
Penal, que se refere ao momento inicial - a queixa ou denúncia. É mister que o
fato nela descrito tenha tipicidade, isto é, seja subsumível em um tipo - nullum
crimen
sine typo - consoante o inc. I do referido artigo. O inc. 11 refere-se à
extinção do jus puniendi: desaparecido este, é absurdo pensar-se em ação, que
objetiva o
pronunciamento do Estado-juiz sobre a pretensão punitiva. No inc. III, a lei
trata da titularidade da ação; deve esta ser agitada por quem tem qualidade
legal para
fazê-lo.
Ainda nesse mesmo dispositivo, vê-se que a ação está subordinada
igualmente a que não falte condição exigida pela lei para seu exercício. Cogita-
se aqui das
condições de punibilidade ou procedibilidade, v. g., a representação do ofendido
e a requisição do Ministro da Justiça, conforme declara o art. 24 do Código de
Processo
Penal, ou a entrada do agente no território nacional, e a sentença anulatória de
casamento, nos casos dos arts. 7.°, § 2.°, a, e 236, parágrafo único, do Código
Penal.

206. "Notitia criminis". Em regra, o inquérito policial inicia-se com o


pedido do ofendido, seu representante, ou qualquer do povo, que levam à
autoridade policial
a notitia criminis, a qual tem especificamente o nome de delatio criminis, que
pode ser simples ou postulatória. A primeira consiste em simples comunicação, ao
passo
que a segunda pede também se instaure o persecutio criminis, como ocorre com a
representação a que alude o § 1.° do art. 100 do Código Penal.
Pode a notícia do crime ser levada não só à polícia (CPP, art. 5.°, II e
§§ 3.° e 5.°), como também ao Ministério Público (arts. 27, 39 e 40,
dispositivos
todos do estatuto processual). Como se verifica do art. 39, pode ainda a notícia
do delito ser comunicada ao juiz. Tal faculdade também é consagrada no art. 531
do Código de Processo Penal.
Comunicado o fato à autoridade policial, como já se disse, tem início o
inquérito, a investigação, que é preparatória da ação. Participado o fato ao
Ministério
Público, tem-se em vista já a propositura da ação penal.
Entretanto o que ocorre, geralmente, entre nós é que o Ministério Público,
não dispondo de meios e recursos de investigação, requisita a abertura de
inquérito
policial, conforme lhe permite o art. 5.°, lI.
Há uma distinção a fazer. Quando o ofendido ou qualquer do povo requerer a
abertura do inquérito, a autoridade policial pode indeferir o requerimento, não
instaurando a investigação, consoante se vê no art. 5.°, § 2.°. Já assim não
será quando houver requisição do promotor público ou do juiz, pois estes não
requerem,
mas requisitam.
Dissemos que a notitia criminis pode ser comunicada ao juiz. Se o for por
meio de representação, na forma do art. 39, o magistrado a encaminhará à
autoridade
policial, consoante o § 4.° desse dispositivo. Outra, entretanto, será a
solução, se for o Ministério Público que requerer a instauração do processo por
contravenção:
o juiz baixará a competente portaria (CPP, art. 531), ou determinará o
arquivamento.
Quando a notitia criminis for levada ao Ministério Público, seja por
qualquer do povo, seja pelo juiz (CPP, art. 40), ela não o obriga a iniciar a
ação penal,
já que ele é senhor desta. A própria requisição do Ministro da Justiça, como
fala o ar1. 100, § 1.°, do Código Penal, não tem esse efeito.

207. Espécies de ação. Pelo que já ficou dito e pelo que o ar1. 100 do
Código reza, duas são as espécies de ação penal: a pública e a de iniciativa
privada.
Da primeira é titular o Ministério Público e se inicia com a denúncia (CPP, ar1.
24); na segunda, o direito de acusar pertence ao ofendido ou seu representante.
É a ação exclusivamente privada.
Pode ela ser, entretanto, subsidiariamente privada, quando, sendo pública,
o promotor deixou escoar o prazo para a denúncia, sem que a oferecesse, ou
requeresse
o arquivamento (CPP, ar1. 29). Para essa distinção da ação privada chama a
atenção Canuto Mendes de Almeida.
São as espécies de ação que têm importância no direito penal, embora
outras classificações possam ser citadas, como faz, em sua lição, José Frederico
Marques,
apontando a divisão de estrutura tripartida (ação de conhecimento, ação
executiva e ação cautelar), que "não é monopólio do Direito Processual Civil,
visto que decorre
da Teoria Geral do Processo, aplicando-se também ao Direito Processual Penal, e
isto pela simples razão de que neste também existe um processo de conhecimento,
ao
lado do processo de execução e do processo cautelar", lembrando que a ação penal
de conhecimento pode ser declaratória, constitutiva e condenatória, que a de
execução
tem por fim dar atuação à sanção, e a cautelar se destina a instaurar processo
de idêntico nome.
Pode-se apontar ainda, quanto à iniciativa, a ação popular, exerci da por
qualquer do povo, consagrada no art. 5.°, LXXIII, da Constituição Federal.
Contudo o que interessa ao direito penal é a ação em sentido estrito, ação
que implica o direito de agir ligado à pretensão punitiva, dando existência a
processo
cognoscitivo de natureza condenatória. É a ação de que tratam os arts. 100 e 105
do Código Penal.
208. Procedimento "ex officio". O procedimento de ofício, tão criticado por
nós, foi abolido pela recente Constituição, que, em seu ar1. 129, I, estabeleceu
ser função institucional do Ministério Público, privativamente, promover ação
penal pública.
Repetimos nesta edição nossas palavras anteriores, de crítica a tal tipo
de procedimento: "Não se compreende esse papel de juiz e parte ao mesmo tempo;
não
se explica mais, hoje em dia, que acuse quem julga, a lembrar os ominosos tempos
do sistema inquisitório".
Hoje, os antigos procedimentos de ofícios, aplicados nas contravenções e
nos delitos culposos de homicídio e lesão corporal, consoante a Lei n. 4.611/
65,
desapareceram, pois ao Ministério Público, privativamente, cabe o início da ação
penal pública, portanto, através da denúncia. Foram consagradas nossas palavras
em edições anteriores: "É o Ministério Público o senhor da ação penal. Deve a
iniciativa caber-lhe exclusivamente. Que se reserve ao juiz a excelsa função de
julgar".

II
A AÇÃO PÚBLICA

SUMÁRIO: 209. O Ministério Público. 210. Da iniciativa da ação.

209. O Ministério Público. Titular da ação pública - que é a regra em


nosso processo penal - é o Ministério Público.

Instituição cujas origens alguns vão buscar no direito romano, nos


procuratores Caesaris; ao passo que outros a fazem remontar à Itália: seja em
Veneza - com
os avogadori di comum; seja em Florença - com os conservadores de la ley; seja
em Nápoles - com o abogado de la Gran Corte; enquanto muitos, com maior
fundamento,
vêem suas bases em tempos mais próximos, no se instaurar o Estado Constitucional
e na aplicação do princípio da distinção dos poderes, invocando a Assembléia
Constituinte
francesa de 1790.
Não menos incertas são as origens entre nós, que alguns encontram na
existência de certos funcionários a serviço do rei ou do conquistador, com os
escultetos
do Brasil holandês. Certo é que, mesmo no Império, ainda não se podia falar
verdadeiramente em Instituição. Poucos eram seus representantes, disseminados
pelo vasto
território pátrio, com funções delimitadas e sem garantias. Na verdade, eram
meros instrumentos do governo.
É só na República, com a Lei n. 1.030, de 14 de novembro de 1890, que se
traçam os primeiros característicos, de acordo com o relevo das funções da
Corporação.
Mas, entre nós, verdadeiramente, a carreira surge em 1931, com a Lei de 27 de
agosto, devida a um antigo promotor, depois excelso magistrado: Laudo Ferreira
de Camargo
- nome que declinamos com profunda gratidão.
Daí para diante, não há negar o aperfeiçoamento do Ministério Público,
acentuando-se, sobretudo, com a exigência do concurso. E assim era mister.
Necessária se fazia
rigorosa seleção de seus membros, dada a importância das funções. No Ministério
Público, qualquer cargo é de sacrifício e lutas. Onde se apresente o promotor de
justiça - denominação que hoje abrange a de curador - haverá sempre um combate,
para que triunfe a justiça e impere a lei. Quando outros se entibiam e vacilam,
arroja-se
e porfia o promotor; não arrefece seu ímpeto o retraimento de alguns, não o
atemoriza o poder dos fortes, porque ele se bate por um ideal superior e, nesse
terreno,
só ouve os ditames da consciência e só se inspira no cumprimento do dever.
Esse dinamismo do Ministério Público melhor se destaca em confronto com a
magistratura, cujas excelsas funções não exigem a combatividade daquele, porque
a
imparcialidade, nota mais bela e difícil da arte de julgar, exige do magistrado
imobilidade, de modo que evite as suspeitas que adviriam de um excesso de
iniciativas.
Contrastando com esse imobilismo, o Ministério Público deve ser eminentemente
pugnaz; sua qualidade suprema, sem a qual seriam inúteis as demais, é o espírito
de
luta. Sem o destemor e a pugnacidade para arrostar os perigos, para enfrentar os
riscos de que são pródigos os combates incruentos do foro, jamais cumpriria ele
sua missão.
Quão árdua é a função do promotor de justiça! Como foi feliz Sussekind de
Mendonça ao escrever estas palavras: "Há cargos que representam, por si sós, um
prêmio
e que não pedem dos que os ganham mais que o cuidado fácil de guardá-los. O
Ministério Público, entretanto, se afasta inteiramente destes casos. Qualquer
dos seus
lugares é um posto de sacrifícios, de conquista diária à opinião, de disputa sem
trégua contra a malícia da advocacia, contra as reservas dos juízes, contra a
ambição
naturalíssima de seus próprios colegas. Nenhuma das funções judiciais é tão
sujeita às críticas da imprensa, tão exposta aos embates dos interessados, tão
acessível
às explosões legítimas das partes ou de seus procuradores. Se o ocupante é digno
do cargo, se está à altura de exercê-lo, moral e intelectualmente, não sabemos
de
ensancha mais propícia aos surtos rápidos no foro. Se não o é, porém, sucumbe,
arreia, cai por força - e cai do pior modo, aos poucos, dia a dia".
No processo penal é ele parte, como senhor da ação; é o titular da
pretensão punitiva e, por isso, propõe aquela, enumera e fornece as provas, luta
e porfia
para o triunfo final da pretensão, que deverá ser proclamado pelo juiz contra o
réu. Participa, pois, do juízo - actum trium personarum - onde existem autor,
réu
e juiz.
Objetam alguns contra sua qualidade de parte, invocando a imparcialidade
de que deve ser dotado. É de ser entendido em termos o argumento. O Ministério
Público,
na lide penal, representa o Estado-administração que, perante o Estado-juiz,
expõe a pretensão punitiva. Ele o representa, conseqüentemente. Representa-o
como titular
do jus puniendi. (Se não for ele o representante do Estado, quem o será?)
Mas isso não implica que lhe seja vedada a imparcialidade, pois o Estado
não deseja a punição do inocente. Conseqüentemente, quando as provas
patentemente
não autorizam a condenação, quando a inocência do acusado está demonstrada, deve
o promotor público confessar a improcedência da pretensão punitiva e pedir a
absolvição.
Tal fato não lhe tira a qualidade de parte no processo. Muito mais pode o
ofendido, sem que deixe de ser parte, quando autor da ação, já que dispõe da
renúncia,
da desistência e da perempção da instância, pelo pedido de absolvição, na forma
do art. 60, III, do Código de Processo Penal.
A Constituição Federal estabeleceu um capítulo novo, nominado como "Das
funções essenciais à justiça" (Capítulo IV), nele incluindo o Ministério
Público, a
Advocacia-Geral da União e a Advocacia e a Defensoria Pública.
O Ministério Público foi definido constitucionalmente como sendo "uma
instituição permanente, essencial à função jurisdicional do Estado, incumbindo-
lhe a
defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e
individuais indisponíveis (art. 127). Embora a questão não seja pacífica,
continuamos
entendendo que é orgão administrativo, pois o exercício da persecutio criminis é
função administrativa.
No processo penal guarda ele inteira independência, não podendo sofrer
injunções de quem quer que seja. Sobre ele nenhum poder disciplinar ou de
orientação
tem o Judiciário. Claro que o juiz, como ordenador do processo, profere
despachos que dizem respeito a atos do promotor, porém não lhe pode ordenar que
proceda em
determinado sentido, ditando-lhe o que deve fazer, a maneira por que agirá etc.
Nesse sentido é que devem ser interpretados os arts. 40, 384, parágrafo único, e
418 do Código de Processo Penal. Concomitantemente se verifica dos arts.
419,448, parágrafo único, e outros que o poder disciplinar sobre o promotor é
atribuído
ao Procurador-Geral da Justiça.
O próprio poder deste há de ser convenientemente entendido, pois não pode
penetrar a esfera de convicção íntima do promotor, determinando-lhe, por
exemplo,
que ofereça certa denúncia, recorra de determinada sentença etc. A liberdade de
tais atos é inerente à independência que lhe é assegurada no desenrolar da ação
penal.
O art. 28 do estatuto processual não se opõe ao que dissemos. Mesmo quando
o Procurador-Geral, concordando com o magistrado, ache ser caso de denúncia,
este
não ordena ao promotor que ofereça, mas designa outro para oferecê-lo. Já agora,
diversa é a situação. O Procurador-Geral, podendo oferecer a denúncia, delega a
um promotor essa função. É faculdade que ele possui, por virtude do princípio da
devolução, pelo qual um funcionário de categoria superior pode exercer a função
própria de um que lhe é subordinado.
O poder de direção, corretivo, de punição etc., não invade a esfera de
convicção íntima do promotor público. "II Pubblico Ministero e sempre libero di
conchiudere
nel modo che Ia sua coscienza d'uomo e di magistrato gli detta... È questo il
suo diritto, il suo dovere: in cio stà Ia sua independenza e Ia sua dignità".
Em suma: quando se trata do mérito da causa, a inspiração do promotor
público só lhe pode emanar da própria consciência.
Falando no princípio da devolução, incidente mente tocamos na unidade e
indivisibilidade do Ministério Público. É ele uno e indivisível. Significa isso
que
todos os promotores distribuídos pelas diversas comarcas integram um órgão só,
sob direção única. É a sua unidade. É indivisível porque seus membros podem ser
substituídos
por outros, entendido isto, naturalmente, dada nossa organização, relativamente
ao Ministério Público de cada Estado da União.

Conseqüências da unidade e indivisibilidade são a devolução e a


substituição de que há pouco falamos.
A indisponibilidade da ação é outro princípio. Como já vimos, o Ministério
Público é o titular da ação penal. Intenta-a e acompanha-a, porém dela não
dispõe.
Sua atuação é obrigatória; não pode declinar do exercício ou transigir, embora,
segundo já se disse e se repete, conserve sua liberdade de consciência, que o
orienta
na ação, na escolha de provas, na interposição de recursos etc.
É o Ministério Público independente. Independência funcional - é o que
dizemos. Qualquer ingerência do Poder Executivo ou de outro poder, no exercício
da ação
pública, é vedada, por ser ele o "vigilante e intransigente advogado da
sociedade, cuja missão altíssima de promover e defender seus interesses supremos
sobressai
com o relevo escultural de uma notável função social de autoconservação e de
justiça".
No processo penal, as funções do Ministério Público estão sintetizadas no
art. 257 do diploma adjetivo: promover a execução da lei e fiscalizá-Ia. No
primeiro
caso, ele é agent de poursuite, é - como escreve Roux - "partie poursuivante; en
cette qualité, il exerce l' action publique, se fait communiquer Ia procédure
d'information
toutes les fois qu'ille juge à propos, accomplitles actes de poursuite
nécessaires, et requiert à l' audience l' application de Ia loi pénale".
Como fiscal, sua função acentua-se, sobretudo, quando a ação é movida por
outrem. Ainda aqui, ele atua em nome de interesses públicos, velando pela
regularidade
da lide e providenciando por uma sentença justa.

210. Da iniciativa da ação. Nos crimes de ação pública - soa o art. 24 do


Código de Processo Penal - esta será promovida por denúncia do Ministério
Público.
Como dominus litis, promove a ação, mediante o requisitório inicial.
O art. 41 do mesmo diploma dita os requisitos que ele deve conter. Funda-
se a denúncia na opinio delicti do Ministério Público. Já vimos que para o
inquérito
basta a notitia criminis. Recebendo-a, estuda-a o promotor e, então, ou inicia a
ação penal, ou requer o arquivamento, ou pede a devolução à polícia, para
diligências
necessárias.
Para a denúncia basta a suspeita de crime; não é necessário o corpo de
delito, como alguns pretendem, dizendo-se, de passagem, que muitos o confundem
com exame
de corpo de delito. A respeito do assunto, tivemos ocasião de emitir parecer,
que passamos a reproduzir.
"O douto Defensor, em suas contra-razões (fls.), aponta, como já
assinalamos, confusão da Promotoria acerca de 'exame de corpo de delito' e
'corpo de delito'.
Realmente, são coisas que se distinguem, porém, não nos parece - em que pese à
admiração que sempre nos inspirou o ilustrado Jurista - que o conceito que
formula
sobre o corpo de delito seja exato.
"Corpus delicti é equivalente a 'fato típico', isto é, fato que tem
tipicidade ou que se subsume ou ajusta ao 'tipo', o qual nada mais é que a
descrição, feita
pela lei, da conduta correspondente a cada crime, traçando-lhe os elementos
integrantes. Vê-se, pois, que nele cabem até elementos 'subjetivos' - como o
dolo específico:
'com o fim de ...', 'com o intuito de ...' etc. -; ou 'normativos da
antijuridicidade' - como: 'indevidamente', 'sem justa causa', 'ilegitimamente'
etc.
"Não se trata de questão terminológica, pois, se assim fosse, não
estaríamos tomando a preciosa atenção da Col. Câmara. O assunto é de efeitos
substanciais,
embora dentre eles não se conte o que o ilustrado Causídico pretende tirar. Com
efeito, não nos parece exato dizer que não se pode oferecer denúncia sem o
'corpo
de delito', porque a 'comprovação' deste é matéria da instrução criminal. Ao
oferecer a denúncia, não necessita o Promotor possuir o corpus criminis, pois se
o tivesse,
então, o fato 'típico' (com todos os elementos integrantes) já estaria
demonstrado.
"O corpus delicti é imprescindível no 'flagrante', na 'prisão preventiva'
e na 'pronúncia'. Em tais casos, em que já há 'coação efetiva' contra o
indivíduo,
em que ele é atingido em seu status libertatis, em que não mais é um liber
homus, então sim, é mister estar provado o crime, ou seja, comprovada a
existência do
'fato típico' ou do corpus criminis. Outra coisa não diz a lei processual, nos
arts. 311 e 409, quando, tratando da prisão preventiva, e da pronúncia, se
refere
à 'existência do crime'.
"Para a denúncia, não. Basta a opinio delicti do Ministério Público; é
suficiente a 'suspeita' de crime. Desde que os elementos com que conta a
Promotoria
revelem a possibilidade de ocorrência de delito, oriunda da presunção de haver
sido praticado fato típico, está ela habilitada a oferecer denúncia.
"Conseqüentemente, para esta, basta a opinio delicti, como para o processo
preliminar ou preparatório, que é o inquérito policial, é suficiente a notitia
criminis.
"Convenha-se com Manzini que 'promover Ia 'acción penal' no significa
necesariamente investir aI juez con acto que exija el castigo deI imputado, sino
simplemente
requerir deI juez una decisión 'positiva', o también 'negativa' sobre Ia
imputación, o sea, sobre Ia pretención punitiva'.
"Trata-se, por conseguinte, de mera pretensão punitiva. E esta, não só
pode, mas 'deve' o Ministério Público agitar sempre que, 'em face do processo
preparatório',
'suspeitar' que alguém praticou fato subsumível em um tipo.
"É o quanto basta para a denúncia."
Entretanto nem sempre pode o Ministério Público oferecê-Ia, apesar de
tratar-se de ação pública. É que, para tanto, necessita às vezes de
representação do
ofendido ou de requisição do Ministro da Justiça, consoante o § 1.° do art. 100
do Código Penal. O art. 39 e parágrafos do Código de Processo tratam da
representação.
Diz-se, agora, que a ação pública é condicionada, em face de sua
subordinação, àquelas exigências, conforme já expressamos no n. 205.
Inspira-se a representação no interesse do ofendido que a lei atende.
Quando tal interesse é proeminente, a ação torna-se privada, como dentro em
pouco se
verá. Outras vezes, entretanto, apesar do interesse público dominante, a lei não
olvida conveniências respeitáveis do sujeito passivo do delito e daí subordina a
ação à provocação sua.
A iniciativa do Ministério Público depende, pois, dela; mas, efetiva que
seja, não se vincula o órgão da acusação ao ofendido: age com inteira
independência,
e não só a representação é irretratável, depois de oferecida a denúncia, como
também qualquer procedimento do ofendido, durante a persecutio criminis, não
influirá
na atuação do representante do Ministério Público. Não obstante a suma
autoridade, não nos convencem julgados em sentido contrário do e. Supremo
Tribunal (Súmula
n. 388) e do e. Tribunal de Justiça deste Estado (RJTJSP, 15:396). O assunto é
também por nós abordado nos n. 841 e 849 do 3.° volume.
Não são poucos os delitos, em nosso Código, cuja ação penal depende de
representação, bastando citar os crimes contra os costumes (art. 225, § 2.°),
contra
o patrimônio (art. 182) e contra a honra (art. 143).
Condicionada também é a ação quando dependente de requisição do Ministro
da Justiça. No dizer de Manzini, é o ato administrativo discricionário e
irrevogável,
com o qual aquele ministro autoriza se mova a ação penal6. Em nosso Código Penal
é ela imprescindível nos crimes contra a honra do Presidente da República ou
chefe
de governo estrangeiro (art. 145, parágrafo único) e nos delitos de estrangeiro
contra brasileiro, no exterior (art. 5.°, § 3.°, b). Exige ainda requisição
ministerial,
para ser homologada a sentença da justiça estrangeira (art. 7.°, parágrafo
único, b).
A lei subordina a ação penal à dita requisição porque há outros interesses
a atender e razões de ordem política que não podem ser sacrificadas e que
encontram,
no Ministro da Justiça, o árbitro de sua conveniência.
Todavia, como na representação, ela não obriga o Ministério Público, que
pode deixar de oferecer a denúncia, desde que não formou a opinio delicti.
Fora desses casos, a ação pública é incondicionada e é a regra em nosso
direito penal.
Resta dizer que, no tocante ao exercício da ação pelo Ministério Público,
vige, entre nós, o princípio da legalidade. Não se adotou o da oportunidade,
como
na França, em que o Ministério Público pode ou não propor a ação, consoante
motivos de interesse público, de conveniência, utilidade etc. Pelo outro
princípio, o
Ministério Público, embora dono da lide, é obrigado a denunciar desde que os
elementos do processo preparatório ou preliminar traduzam a suspeita de crime.
Isso
não contravém ao que dissemos acerca da opinio delicti, pois ainda que vinculado
a esta, ainda que ela apresente uma face subjetiva, tal não traduz capricho ou
arbítrio
do senhor da persecutio criminis. O próprio pedido de arquivamento não é
arbitrário, como vimos no número anterior e como prescreve o art. 28 do diploma
processual.

lII

A AÇÃO DE INICIATIVA PRIVADA

SUMÁRIO: 211. Natureza e fundamento. 212. A queixa. Espécies de ação de


iniciativa privada. 213. O ofendido e a ação penal. 214. Decadência. Renúncia.
Perdão. 215.
A ação penal no crime complexo.
211. Natureza e fundamento. Ao lado da ação pública, que corresponde ao
jus puniendi estatal e é movida pelo promotor público, mediante denúncia,
estabelece
o § 2.° do art. 100 do Código a ação de iniciativa privada.
Diz-se de iniciativa privada a ação porque pertence ao particular, ao
indivíduo. Transfere-se-Ihe o jus accusationis exclusiva ou subsidiariamente. É
tão-somente
este que o Estado transfere; o jus puniendi continua a pertencer-lhe, tanto que,
transitada em julgado a sentença condenatória, o particular nenhuma ingerência
tem
na execução, que cabe exclusivamente àquele.
Compete a ação de iniciativa privada ao ofendido ou a seu representante -
diz o dispositivo. A distinção entre as duas espécies de ação repousa na
diferença
de sujeitos, pois não há dúvida de que ambas as ações são públicas, já que toda
ação tem essa natureza por ser um direito público subjetivo contra o Estado,
representado
pelo Judiciário. Conseqüentemente, será pública a ação quando movida pelo
Ministério Público, e de iniciativa privada quando pelo ofendido.
Não são poucos os que se opõem à ação de iniciativa privada, tachandoa de
vingança do ofendido. Tal não se dá, bastando dizer que, como linhas atrás se
falou,
a execução da pena fica a cargo do Estado, que é também quem a impõe, por um dos
seus órgãos - o Judiciário -limitando-se o particular a exclusivamente promover
a persecutio criminis.
A ação de iniciativa privada atende a ponderosos imperativos individuais
que não deixam de ser também da sociedade.
Com efeito há casos em que ou o interesse do ofendido tem proeminência
sobre o relativo interesse público, ou a lei não se pode permitir uma atuação
que redunde
em aumentar a aflição ao aflito, não só arrastando seu nome para os tribunais
judiciários como para os das esquinas, com inegável escândalo a enodoar-lhe mais
o
nome e a produzir lesão sensível à própria moral pública. Em tais hipóteses, o
mal da lei seria maior que o mal do crime.
Contra esse modo de pensar avultam nomes insignes do mundo jurídico,
apresentando argumentos que, na realidade, são eloqüentes. Dizem ser
inadmissível entregar-se
ao indivíduo o arbítrio da punição do culpado. Se é exato que tais delitos
importam para o ofendido lesão que, muita vez, preferirá ocultar, não é menos
exato haver
interesse sobrelevando o seu, interesse que é da sociedade, a qual não pode
admitir fique impune o delinqüente, permanecendo como ameaça constante para os
demais
membros da comunhão.
Diversos comentadores nossos, principalmente em matéria de crimes contra
os costumes, opinavam por esta forma. Salientavam-se pelo vigor com que
defendiam
a exclusividade da ação pública Crisólito de Gusmão e Viveiros de Castro. Aos
argumentos já expostos, acrescentavam que a ação privada seria sempre
oportunidade
para mercadejar com a honra da ofendida.
Na doutrina alienígena igualmente nomes de inegável projeção do mesmo modo
se pronunciavam. Perfi escrevia: "On pourrait ajouter que Ia nécessitéde Ia
plainte
privée se prête trop facilement d' une part aux vexations, de I' autre aux
marchandages entre offenseurs et offensés, qui certainement ne contribuente pas
à élever
dans le public Ia conscience moral et juridique"'. E Pozzolini: "E isto por uma
dúplice ordem de razões: porque é absurdo que perigosíssimos delinqüentes tenham
a possibilidade legal de fugir à sanção penal, e porque a queixa privada em
crimes desta natureza (os sexuais) é incentivo ao comércio torpe, porque não é
verdade
que ela acode à paz e à honra do lar, pois este não será nem perturbado nem
desonrado pelo fato do processo. Antes, quando isto acontecer e a violência
ficar provada,
não será o escárnio, mas a piedade que cercará a vítima".
De todos os argumentos lançados pelos defensores da ação pública,
consideramos o mais sério o que, ao interesse do ofendido em ocultar sua
desonra, contrapõe
o superior interesse social em não deixar impune um delinqüente.
Todavia há um lado da questão que tem sido olvidado com freqüência pelos
juristas. É que, em regra, para que a ação penal vingue se faz necessário o
concurso
da vítima ou seus parentes, quer constituindo a prova, quer apontando meios
probatórios, quer avisando de expedientes do acusado etc. Sem o interesse do
ofendido
a prova se debilita e a ação geralmente redunda em fracasso.
Se não houvesse a ressalva da ação de iniciativa privada poderíamos até ir
ao extremo de assistir à estranha luta do promotor público não só com o réu, mas
também com a vítima. Máxime nos crimes contra os costumes, isso afetaria a
própria moral. Atirar-se-ia sobre a ofendida, além do escândalo do crime do
estrépito
do processo, a suspeita infamante da venda da honra, quando, entretanto, o que
ela deseja é o silêncio. Disso tudo, a regra seria a absolvição do acusado. Quem
tem
prática de acusar ou julgar sabe perfeitamente com quantas dificuldades conta na
prova desses crimes, não obstante ter a seu lado as declarações da vítima e sua
família, de modo que pode pesar a dificuldade - melhor seria dizer
impossibilidade - de obter prova suficiente para a condenação, quando aqueles se
negam a esclarecer
o fato.
Em resumo. Há, na verdade, casos em que seria doloroso para a vítima o
descobrimento da verdade dos fatos. Imagine-se o estupro de uma donzela de nível
social
elevado por um homem de outra raça e de esfera ínfima. Não viria o processo
criminal arrasar totalmente com a vida de quem já é tão desgraçado? Pode
invocar-se,
entretanto, o interesse social, incompatível com a impunidade de homem tão
perigoso. É coisa que perfeitamente se pode aceitar. Mas, passando do terreno da
teoria
para a prática, que é afinal de contas onde o direito vive, poderia a defesa
social atualizar-se, realizar-se plenamente ante a oposição do ofendido? Cremos
que,
neste ponto, a tutela da sociedade e o interesse da vítima devem marchar
paralelamente, recebendo aquela o concurso, o auxílio desta, inestimável e
imprescindível.
Justifica-se, pois, a exceção da ação de iniciativa privada.

212. A queixa. Espécies de ação de iniciativa privada. "O direito de queixa


outorgado ao ofendido é um direito instrumental, subordinado aos princípios e
regras
do direito processual penal. É o próprio direito de ação projetado no campo da
justiça penal, uma vez que se liga a uma pretensão punitiva, sobre a qual deverá
incidir
o pronunciamento judicial que é impetrado."
Diz-se direito de queixa porque esta, a queixa, é o ato inicial da ação
privada. Não se deve confundi-Ia com a queixa - como vulgarmente se fala - que é
a
comunicação do crime, feita, em regra, à autoridade policial.
A queixa de que aqui se trata é o ato processual em que a acusação se
exterioriza ou formaliza, consoante o art. 100, § 2.°. Contém os mesmos
requisitos que
a denúncia, como bem claro deixa o art. 41 do Código de Processo Penal, dizendo
que elas devem conter "a exposição do fato criminoso, com todas as suas
circunstâncias,
a qualificação do acusado ou esclarecimentos pelos quais se possa identificá-lo,
a classificação do crime e, quando necessário, o rol das testemunhas".
A queixa e a denúncia só se diferenciam pelo sujeito que as apresenta ou
subscreve, podendo dizer-se que a queixa é a denúncia subscrita pelo ofendido ou
seu
representante, que, então, toma o nome de queixoso ou querelante. Querelado é o
acusado, que, na ação pública, antes da pronúncia ou da condenação, chama-se
denunciado.
A ação de iniciativa privada pode ser exclusiva ou principal e
subsidiária. Diz-se principal quando só o ofendido, ou seu representante legal,
pode move-la.
Fala-se, então, ser privativa do ofendido. Em regra, quando isso ocorre, o
Código Penal declara expressamente: "Só se procede mediante queixa". Afastado
fica, pois,
o Ministério Público da ação, não podendo intentá-la.
Em recente decisão e relativa a crime contra a honra praticado contra
funcionário público e no exercício de sua função, o Supremo Tribunal Federal
entendeu
haver legitimação concorrente entre o Ministério Público (ação penal pública
condicionada) e o ofendido (ação penal privada). No entender do pretório
excelso, o
princípio pelo qual se dá a atribuição de propor a ação ao Ministério Público
tem por objetivo desonerar o funcionário dos ônus decorrentes da própria ação,
porém
a Constituição Federal, em seu art. 5.°, X, admite a defesa da honra pela ação
privada, mesmo quando propter officium, havendo, assim, legitimação concorrente.
A
decisão em questão foi proferida no AR n. 720-0, relatada pelo Min. Sepúlveda
Pertence.
É subsidiária quando o promotor público se conserva inerte, sem oferecer
denúncia, pedir arquivamento ou requisitar diligências. Em tal caso, não
obstante
ser pública a ação, permite a lei, excepcionalmente, a iniciativa do ofendido,
consoante se vê dos arts. 100, § 3.°, do Código Penal e 29 do Código de
Processo.
Nem todos pensam que a ação subsidiária só cabe em havendo inércia do
Ministério Público, afirmando que também tem lugar quando o inquérito foi
arquivado a
seu pedido.
Refutando este modo de ver, tivemos ocasião de escrever crônica, no Diário
de S. Paulo, que passamos a reproduzir: "Cremos que fomos nós quem, primeiro,
nesta
Capital, teve a oportunidade de abordar a questão do oferecimento de queixa
privada, em crime de ação pública, quando o Promotor requereu o arquivamento,
que foi
deferido. Opinamos pela inadmissibilidade daquela. Ocorreu isso em princípios de
1942.
"Mantendo sempre essa opinião, apesar de alguns julgados em contrário,
escrevíamos em 4 de dezembro de 1949, nestas colunas, artigo de que ora
reproduzimos
algumas considerações.
"A matéria é disciplinada pelo art. 29 do Código de Processo Penal: 'Será
admitida ação privada nos crimes de ação pública, se esta não for intentada no
prazo
legaL.'. O dispositivo, a nosso ver, diz respeito ao caso em que o órgão do
Ministério Público, por desídia, deixa escoar o prazo sem se manifestar. Desde,
entretanto,
que, após o exame dos autos de inquérito, ele se pronuncia pelo arquivamento, e
assim o decide o Juiz, não nos parece admissível que o ofendido, com base no
mesmo
inquérito, possa intentar a ação.
"A lei não pode ir contra a lógica dos fatos, porque se o Magistrado achou
que os autos não oferecem base para uma denúncia, não iria permitir que, apoiada
nesses mesmos elementos informativos, a parte oferecesse queixa, pois o
resultado seria evidentemente novo despacho arquivando o inquérito.
"Tanto a disposição se refere ao caso de, por desleixo, o Promotor Público
não iniciar a ação, que, em seguida, lhe dá o direito de aditar a queixa,
repudiá-la
e oferecer denúncia, providências que certamente não teria em mira prescrever se
se estivesse referindo à hipótese de inquérito arquivado, pois é muito pouco
provável
que, havendo o órgão da Acusação se manifestado pelo arquivamento, tomasse agora
a iniciativa, repudiando a queixa, e denunciando o indiciado, ou aditando-a.
"Os que se decidem pela querela do ofendido trazem à colação o art. 38 do
mesmo estatuto. Mas, na verdade, em nada ele favorece essa interpretação, pois
são
coisas diversas o escoamento do prazo para oferecer denúncia e o não-
oferecimento, porque dentro em o prazo a Promotoria requereu o arquivamento.
"Receia-se o arbítrio do Promotor. Olvida-se, porém, que sua petição será
apreciada pelo Juiz que, afinal de contas, é quem irá julgar a ação. E tanto
aquele
não é árbitro exclusivo do merecimento da denúncia, que a lei faculta ao
Julgador, quando em discordância, a remessa dos autos ao Procurador-Geral,
podendo, então,
este oferecer denúncia ou designar Promotor para fazê-lo. Só no caso de o
Ministério Público de Segunda Instância insistir no arquivamento é que o Juiz
será obrigado
a atender, consoante os termos do art. 28 do citado diploma.
"Contra esse modo de ver alinhavam-se nomes de singular prestígio, como
Hélio Tornaghi, Basileu Garcia, Vicente de Azevedo e José Frederico Marques.
"Todavia, a legião dos que opinam pela impossibilidade da ação particular
acaba de ser enriquecida com o concurso do jurista último citado. Não só em seu
livro
Curso de Direito Penal, vol. 3.°, págs. 378 e 379, mas também com crônica de 24
de agosto do fluente ano, ele modifica sua opinião, usando argumento de subido
valor,
que passamos a reproduzir: 'Suponha-se que o ofendido dê queixa criminal, depois
de arquivado o inquérito, e que no curso da relação processual permaneça
estático
e inerte, dando causa a que ocorra a perempção, por ser crime de ação pública; o
Ministério Público deve 'retomar a ação como parte principal', segundo diz o
art.
29, in fine, do Código de Processo Penal. Ora, não é um absurdo que o Promotor,
depois de entender inexistir elementos para a persecutio criminis, venha a
funcionar
na ação penal como parte principal? E o absurdo é tanto maior quando, no art. 28
do estatuto de processo penal, determinado vem que o Promotor que pede o
arquivamento
não mais funcionará no processo como órgão da ação penal, se o pedido não for
atendido'.
"A matéria para nós reside em ponto simples e fundamental. O Estado é o
titular da ação, pois que o é do jus puniendi, e por isso tem órgão próprio para
agitá-la.
Só ele pode punir, e conseqüentemente lhe deve caber a iniciativa do processo,
que tem por escopo apurar o crime e aplicar com exatidão a lei. A queixa privada
é
excepcional". Em última análise, a opinião contrária eleva o ofendido à posição
do Procurador-Geral da Justiça, em relação ao promotor público...
Não se esqueça, além do mais, que, mesmo quando a ação é privativa do
ofendido, caberá ao Ministério Público "intervir em todos os termos subseqüentes
do processo"
(CPP, art. 45). Ainda que mero fiscal da regularidade processual - quando não
aditou a queixa - deve velar para que a lei seja aplicada com exatidão, vigiando
para
que não ocorram nulidades ou sejam sanadas, tendo sempre em mira que o processo,
de acordo com as normas legais, atinja sua finalidade. Não é de se lhe recusar
igualmente
pedido de diligências, com o objetivo de esclarecer a verdade. Inspirado no
mesmo fim, opinará sobre o mérito da causa. Tudo isso é consoante com as funções
de fiscal
da lei (CPP, art. 257).
Embora a nova legislação tenha, de fato, ampliado bastante os direitos de
ofendido, como se verá a seguir, não se pode ir ao extremo de quase se reduzir a
nada a titularidade da ação pública que cabe ao Ministério Público.

213. O ofendido e a ação penal. Pelo que já ficou dito, verifica-se que o
ofendido pode mover a ação privativamente ou de modo subsidiário, na forma
exposta.
Cabe-lhe também o direito de assistência ao Ministério Público. Os arts.
268 e s. do Código de Processo Penal tratam da figura do assistente. Permitese-
lhe
intervir na ação enquanto não passar em julgado a sentença, propor meios de
provas, reperguntar testemunhas, aditar o libelo e articulados, participar do
debate
oral e arrazoar recursos interpostos pelo Ministério Público, ou por ele
próprio. Os arts. 584, § 1.°, e 589 autorizam-no a recorrer, sendo que o último
dá essa
faculdade ao ofendido, ainda que não se tenha habilitado como assistente.
Habilitando-se, é ele considerado litisconsorte do Ministério Público, o
que se compreende, já que pode até oferecer queixa, em se tratando de crime de
ação
pública, no caso de inatividade do promotor.
A assistência tem o objetivo primacial de reforço da acusação pública, não
se podendo negar, entretanto, que, de modo mediato, se visa ao ressarcimento do
dano oriundo do crime.
A lei, referindo-se ao ofendido, menciona a seguir, sempre, o
representante legal, pois é compreensível que freqüentemente o sujeito passivo
do delito não
possa estar em juízo, v. g., no crime de homicídio ou em caso de ausência
declarada judicialmente, a que alude o § 4.° do art. 100 do Código Penal, que
também declara
passar o direito de oferecer queixa ou prosseguir na ação ao cônjuge,
ascendente, descendente ou irmão. O art. 31 do Código de Processo contém a mesma
prescrição.
Não são esses os únicos casos de o ofendido não estar em juízo. Pode ele
ser incapaz, absoluta ou relativamente. Sua situação é regulada não só pelas
regras
de direito civil como pelas de processual. O art. 34 dispõe diversamente da lei
civil, permitindo que o relativamente incapaz - menor de vinte e um e maior de
dezoito
anos - exerça o direito de queixa, sem assistência de representante - pai ou
tutor. Aliás, o mesmo artigo permite que o representante aja individualmente no
juízo
criminal, o que significa poder oferecer queixa, independentemente de assistir
ao menor. Em tal caso, ambos podem agir. Poderia haver, assim, colisão entre a
conduta
dos dois, renunciando um ao direito de queixa ou perdoando o ofensor, propósitos
repelidos pelo outro; mas os arts. 50, parágrafo único, e 52 do estatuto
processual
resolvem as hipóteses.
A representação, a que temos aludido, é a chamada legal ou necessária, que
ocorre ainda nos casos dos arts. 33, 35 e 37 da lei adjetiva. Além dessa
representação
há a chamada voluntária, prevista nos arts. 32 e 44, que se assenta na
capacidade de postular.

214. Decadência. Renúncia. Perdão. Decadência é a perda do direito de ação,


por não havê-lo exercido o ofendido durante u prazo legal. Não se confunde com a
prescrição, pois esta alcança também a ação já em curso e a condenação.
Tendo o ofendido o direito de perseguir o ofensor, não há esse direito de
ser infinito, pairando durante toda a vida, como constante ameaça, sobre a
cabeça
do agressor.
O prazo para o oferecimento da queixa ou representação é de seis meses,
salvo disposição em contrário - soa o art. 103 do Código Penal. Uma das exceções
temos
no próprio Código, no art. 240, § 2.0, que fixa o prazo para a ação penal no
crime de adultério em um mês.
Geralmente três são os critérios adotados para a fixação do prazo da
decadência, isto é, para o início de sua contagem: o da data do delito,
conforme, aliás,
dispunha o art. 275 da lei anterior; o da data da ciência do fato, pela pessoa
ofendida; o do dia em que tem conhecimento de quem é o ofensor. Alguns propugnam
a
combinação dos dois últimos critérios. O Código, como se vê do art. 105, abraçou
o do conhecimento de quem é o autor do delito.
Não oferecem dificuldades casos como o da carta injuriosa, a saber se o
prazo é contado da data em que foi escrita ou da remessa ou do recebimento pelo
ofendido,
pois é este, pelo Código, o dia do início, compreendendo-se facilmente que, na
hipótese de anonimato, o prazo comece a correr na data em que ele identificou o
ofensor.
Questão mais interessante surge quando vários são os autores do delito:
como se contará o prazo quando se tiver conhecimento deles em datas diferentes?
Três
são as soluções apontadas: o prazo começa da data em que se descobriu o primeiro
autor; do dia em que se apurou qual o último criminoso; dos dias em que
sucessivamente
se foram conhecendo os partícipes, correndo para um deles um lapso que se inicia
na data do respectivo conhecimento.
A nós nos parece mais aceitável a primeira opinião. Descoberto um dos
autores do delito, tem o ofendido os elementos necessários para mover a ação,
não sendo
imprescindível a ciência de quem são os outros co-delinqüentes, não se
justificando, aliás, que o conhecimento posterior destes (segunda solução)
viesse a interromper
o prazo fatal que já começou a correr com a notícia de um dos agentes. De acordo
com este ponto de vista se manifesta Battaglini: "Nas legislações que exigem o
conhecimento
do autor surge questão quando se trata de vários participantes: - Necessário é
que se conheçam todos, antes que comece o termo? Prevalece a opinião que basta o
conhecimento
de um partícipe".
A terceira solução - isto é, que haverá vários prazos contados
respectivamente dos dias em que se teve conhecimento de cada um dos partícipes -
visivelmente
não poderá ser admitida, já que atenta contra o princípio da indivisibilidade da
ação penal, aceito pelo legislador expressamente no art. 48 do Código de
Processo
Penal.
Questão também interessante, aliás, já aflorada no parágrafo anterior, é a
condizente com a representação do incapaz e que repousa no art. 103 do Código -
que tem seu equivalente no art. 38 do estatuto processual - e no art. 34 deste:
"Se o ofendido for menor de 21 e maior de 18 anos, o direito de queixa poderá
ser
exercido por ele ou seu representante legal". Se o ofendido completar dezoito
anos, antes de operada a decadência do direito de seu representante, como se lhe
contará
o prazo? Segundo cremos, ele poderá exercer seu direito durante o lapso que
faltar para caducar o direito de quem o representava. Se, por exemplo, se tornar
maior
após quatro meses da data em que o representante soube quem é o autor do crime,
deverá oferecer queixa no prazo de dois meses, que é o quanto falta para se
operar
a decadência do direito de quem o representa.
A mesma solução deve ser dada ao caso em que, se tornando maior de dezoito
e menor de vinte e um anos a vítima, o representante vier a saber quem é o autor
do delito: o prazo para ele será constituído do restante que faltar para se
tornar caduco o direito daquela, que já se tornou capaz de perseguir o ofensor.
Parecerá que o silêncio de quem pode exercer o direito em espécie importe
renúncia e conseqüentemente se deva ter em vista o parágrafo único do art. 50.
Não nos parece razoável a dúvida. A renúncia de um não prejudica o direito
de outro, "quando não se operou ainda a decadência do prazo para um deles". Se,
v. g., o maior de dezoito anos renuncia à queixa, poderá o representante agir
durante o prazo que faltava para operar-se a decadência do direito daquele.
Caso contrário, haveria "dois prazos" de decadência: um para o menor e
outro para o representante, o que seria estranho; estranho por duas razões: 1ª)
porque,
quando se tratasse de decadência da representação por parte do maior de dezoito,
ela não existiria ou, pelo menos, ficaria subordinada ao direito do
representante,
ao contrário do art. 34 que a considera capaz para a representação ou queixa;
2ª) porque, se o prazo não for "um só", será de somenos a decadência do direito
do
representante, já que o ofendido, ao se tornar maior de dezoito anos, poderá ter
a iniciativa da queixa ou representação.
Assim, como consumada a decadência para o representante, não pode ter
iniciativa a vítima, quando se tornou maior; não pode também aquele agir quando
esta,
podendo fazê-Io, deixou escoar-se o prazo de caducidade. Não deixam de ter
aplicação à hipótese estas palavras do autor citado: "Mudança de representante
(pai que
morre e é substituído por um tutor; troca de presidente na associação dotada de
personalidade jurídica etc.) não influi sobre o decurso do prazo; vale dizer,
para
quem sucede ao outro na representação 'não corre um novo prazo' ".
A lei diz claramente, e por isso não é necessário insistir, que o mesmo
prazo de seis meses vigora para a ação penal subsidiária e que começa a correr
na data
em que se extingue o lapso para ser oferecida a denúncia.
O art. 104 do Código Penal diz acerca da renúncia, que, como ele mesmo
fala, pode ser expressa ou tácita. Para a primeira é mister haver declaração
inequívoca,
exigindo o Código de Processo (art. 50) seja assinada pelo ofendido, por seu
representante legal ou procurador com poderes especiais. A tácita resulta da
prática
de ato incompatível com o direito de queixa e que deve ser considerado no caso
concreto, de acordo com os usos e costumes locais, o nível social dos sujeitos
ativo
e passivo do crime, a razão preponderante no momento etc. Se, v. g., o fato de o
ofendido, depois do crime, jantar em casa do ofensor importa renúncia do direito
de queixa; já não se dará o mesmo quando, principalmente em se tratando de
pessoas de nível social elevado, o ofendido cumprimentar o ofensor em reunião na
casa
de um amigo comum.
O Código teve a cautela de consignar expressamente que o recebimento de
indenização pelo dano causado não importa renúncia, ao contrário do que pensam
espíritos
que só se preocupam com o lado econômico dos fatos e por isso mesmo propensos a
ver no caso a compra do direito de queixa, ou a sua perda, porque o ofensor já
ressarciu
o dano.
A lei silenciou acerca do caso em que, sendo vários os sujeitos ativos do
delito, a renúncia do direito de queixa em relação a um deles abrange ou não os
demais,
cuidado que teve no perdão (art. 106, I).
Em doutrina, discute-se se o efeito deve ser extensivo a todos os agentes,
ou restrito só àquele ou àqueles a que se refere a renúncia. Os que optam pelo
primeiro
critério fundam-se em que o Estado não se pode submeter totalmente ao arbítrio
do ofendido, na ação de iniciativa privada, permitindo que ele, a seu bel-
prazer,
escolha aquele a quem perseguirá. Os que defendem o critério restritivo insistem
em que é compreensível que, dentre todos, o ofendido exclua, por exemplo, o que
deu demonstração pública de arrependimento, o que se prontificou a ressarcir ou
ressarciu o dano etc.
O Código não se manifestou por nenhum dos critérios, porém a lacuna foi
preenchida pelo Código de Processo Penal, que optou, no art. 49, pelo critério
extensivo:
a renúncia ao direito de queixa em relação a um co-autor abrange a todos os
outros.
No art. 106 passa a lei a tratar do perdão, que, como causa de extinção de
punibilidade, vem mencionado no art. 107, V, o qual também se reporta à renúncia
do direito de queixa. Mas no art. 106 o legislador ocupa-se com as espécies de
perdão, sua extensão, requisitos, conseqüências etc.
Distinguem-se o perdão e a renúncia. Esta tem por objeto direto e imediato
o direito de querela, ao passo que no perdão existe revogação do ato já
praticado.
Aquela é ato unilateral, antecedente à apresentação da queixa; este é ato
bilateral, posterior à propositura da ação privada.
Não se confunde também o perdão com o consentimento do ofendido para a
prática do delito, pois este é anterior ou concomitante ao crime, ao passo que o
outro
é posterior e colima justamente evitar suas conseqüências penais. Neste, o crime
foi praticado contra a vontade do ofendido, que, mais tarde, o esquece, ao passo
que no outro a vítima concordou com sua prática.
Pela cabeça do art. 106 e seu § 2.°, verifica-se que não há perdão da pena
aplicada, já que tem de ser concedido antes que transite em julgado sentença
condenatória.
Ele obsta o prosseguimento da ação, mas não impede a execução da sentença, pois
aqui se trata de domínio exclusivo do Estado. Este em hipótese alguma transfere
ao
particular o jus puniendi; o que lhe outorga é o direito de ação.
Pode o perdão ser processual e extraprocessual, como declara o art. 106. O
primeiro é dado nos próprios autos do processo. O segundo, como para a renúncia,
será feito por declaração assinada pelo ofendido, seu representante legal ou
procurador, com poderes especiais (CPP, arts. 50 e 56), destinado a produzir
efeitos
nos autos do processo. Não se lhe exigem requisitos especiais; basta a
declaração inequívoca de perdoar, revestida apenas das formalidades destinadas a
lhe darem
autenticidade.
O mesmo dispositivo ainda fala que ele pode ser expresso ou tácito, como
ocorre para a renúncia, aplicando-se-lhe as considerações feitas a respeito
desta.
Como já se escreveu, é o perdão ato bilateral. Não basta ser concedido; é
mister que seja aceito. O art. 58 do Código de Processo Penal mostra que a
aceitação
pode ser expressa ou tácita: no primeiro caso, o querelado a declarará
expressamente nos autos; no segundo, silenciando durante três dias após a
intimação, considerar-se-á
aceito o perdão. Quanto à aceitação fora do processo, está sujeita aos mesmos
requisitos que o perdão extraprocessual.
O querelado, recusando este, não está obrigado a fundamentar sua recusa, o
que evidentemente agravaria ainda mais a situação entre ofensor e ofendido.
Tanto o perdão como a aquiescência são incondicionais. Perdoa-se sem
exigências e aceita-se sem condições.
O inc. I do art. 106 toma extensível a todos os querelados o perdão
concedido a um deles, pois o direito de queixa é indivisível. Movida contra um
dos co-autores,
abrangerá a todos, como expressamente diz o art. 48 do Código de Processo Penal,
donde a conseqüência de que, concedido o perdão a um deles, concedido está aos
outros,
evitando-se a situação de privilégio do perdoado em relação ao que o não foi,
quando ambos são autores do crime. A lei não se pode compadecer com tal
situação.
Pode ser que haja pluralidade de ofendidos e somente um deles haja
perdoado. O inc. 11 do art. 106 regula a hipótese, declarando expressamente que
tal fato
não prejudica o direito dos outros, o que bem se compreende, já que o perdão
obedece a motivos íntimos ou pessoais, que podem existir somente em relação a um
ou
alguns.

215. A ação penal no crime complexo. Delito complexo (em sentido estrito)
é aquele cujo tipo é constituído pela fusão de dois ou mais tipos. Pode ocorrer,
então, que um deles seja de ação pública, e outro, de ação privada. O art. 101
do Código Penal destina-se a regular a hipótese, firmando que caberá, nesse
caso,
ação pública.
O dispositivo, aliás, era desnecessário. Estabelecido no art. 100 (caput)
que a ação penal é pública, exceto quando a lei a declarar privativa do
ofendido,
segue-se que, sempre que a disposição penal não se referir à ação, esta será
pública.
Como exemplos de delitos que caem sob a prescrição do art. 101, temos a
injúria real (arts. 140, § 2.°, e 145) e o crime sexual violento, do qual
resulte morte
ou lesão grave (art. 223). No primeiro caso, há a injúria, que é de ação
privada, e há a ofensa física, que é de ação pública. No segundo, temos, v. g.,
o estupro,
que só se processa mediante queixa, e a morte e a lesão grave, cuja ação é
pública. Em ambos os casos, a persecutio criminis caberá ao Ministério Público.
Advirta-se, entretanto, que o mesmo não ocorre para o estupro simples,
cuja ação é privada. Improcede a afirmação em contrário de Hélio Tornaghi e, uma
vez
ou outra, de nosso tribunallO. Não prevalece a regra do art. 101, porque a
respeito domina a consagrada no art. 225 - nos crimes definidos nos capítulos
anteriores
somente se procede mediante queixa - regra que não vige para o delito
preterdoloso do art. 223 (estupro e morte ou lesão grave) porque este não se
acha nos capítulos
anteriores.
O que há, na espécie, é um conflito aparente entre os arts. 101 e 225,
cuja solução é dada pela regra da especialidade.
O art. 101 é genérico, refere-se aos crimes complexos em geral, ao passo
que o art. 225 tem suas vistas voltadas exclusivamente para os delitos contra os
costumes.
O segundo dispositivo é uma norma específica, já que contém a outra - pois, como
o art. 101, alude ao crime complexo - tendo, além disso, circunstâncias próprias
e especiais, que importam "una descripción más próxima o minuciosa de un hecho",
porque se refere exclusivamente a uma espécie de crimes: os contra os costumes.
Ora, desde que se aceite que a regra do art. 225 é específica em relação à
do art. 101, não há como fugir ao princípio lex specialis derogat legi generali.
É ele que resolve o conflito aparente entre as duas disposições mencionadas e o
soluciona fazendo com que o art. 225 derrogue o art. 101 ou prevaleça sobre ele.
Cumpre também atentar para o caso de concurso formal, quando, ao contrário
do que às vezes se tem decidido, não há aplicação da regra do art. 101. A
respeito
do assunto, já escrevemos em outro livro (exemplificando com o concurso ideal de
ato obsceno e adultério - arts. 233 e 240) palavras que passamos a reproduzir,
lembrando
primeiramente que crime complexo é uma coisa e concurso formal é outra, pois
aqui há ação única, constituindo mais de um crime, mas não formando um delito-
tipo da
Parte Especial, como acontece com o crime complexo. Não existe, no Código Penal
nem no de Processo, dispositivo que determine, de modo geral, que, no concurso
de
crimes de ação privada e pública, uma deva preferir à outra. O art. 101 referese
ao crime complexo, e o art. 77, 11, do Código de Processo Penal tem em vista a
competência
em caso de continência que ele vê no concurso ideológico. Conseqüentemente, no
concursus delictorum de ato obsceno e adultério deve o réu ser processado
exclusivamente
pelo primeiro, desde que o cônjuge ofendido, nos termos do art. 240, § 2.°, não
ofereça a competente queixa. Existirá somente a ação pública para aquele delito.
Se, todavia, a queixa for oferecida, haverá procedimento para os dois delitos,
tendo lugar agora o art. 77,11, do estatuto adjetivo.
O que se diz se aplica em geral ao concurso ideológico, que não pode ser
regulado pela regra do art. 101, que diz respeito exclusivamente ao crime
complexo.
Têm aplicação, pois, os princípios do art. 100: cada ação é movida por seu
titular.

DA EXTINÇÃO DA PUNIBILIDADE
I
CONSIDERAÇÕES GERAIS

SUMÁRIO: 216. Extinção da punibilidade. 217. Classificação.

216. Extinção da punibilidade. A pena não é elemento do crime e sim seu


efeito ou conseqüência, donde, assisadamente, o Código previu aqui causas que
extinguem
a punibilidade ou ojus puniendi do Estado. Não seguiu o exemplo de outras
legislações, que se referem à extinção do crime, como faz o Código Penal
italiano, colocando-a
ao lado da extinção da pena. O que existe, no caso, é renúncia do direito de
punir, de que é titular o Estado, como com toda a precisão diz o Min. Francisco
Campos,
na Exposição de Motivos do Código de 1940, em sua redação primeira: "O que se
extingue, antes de tudo, nos casos enumerados, no art. 108 do projeto, é o
próprio
direito de punir por parte do Estado (a doutrina alemã fala em Wegfall des
staatlichen Staatsanspruchs). Dá-se, como diz Maggiore, uma renúncia, uma
abdicação, uma
derrelição do direito de punir do Estado. Deve dizer-se, portanto, com acerto,
que o que cessa é a punibilidade do fato, em razão de certas contingências ou
por
motivos vários de conveniência ou oportunidade política".
Extinguem elas a pretensão punitiva do Estado ou impedindo a persecutio
criminis, ou tornando inexistente a condenação. O delito, como fato, como
ilícito penal,
permanece, gerando efeitos civis e criminais, como o reconhecimento da
reincidência, a impossibilidade do sursis, a agravação da pena, no caso de
delitos conexos.
O crime subsiste, pois uma causa posterior ou sucessiva não pode apagar o que já
se realizou no tempo e no espaço.
Oportuna a observação de Antolisei: "O Código distingue estas causas em
duas classes: causas que extinguem o crime e causas que extinguem a pena. Tal
terminologia
não é absolutamente feliz, porque o crime, como fato histórico, uma vez
realizado, não desaparece (quodfactum infectumfieri nequit). Não é também exato
que o delito
se extingue como ente jurídico, pois, no sistema de nossa lei, o referido crime
extinto continua a produzir vários e importantes efeitos jurídicos".
Mesmo a novatio legis, que faz desaparecer o delito, como ilícito penal,
permanecendo os efeitos civis, não deixa de ser causa extintiva da punibilidade.
Extinguindo esta, elas não fazem desaparecer a condenação, exceto quando
houve anistia ou ocorreu a abolitio criminis, cessando, então, os efeitos
penais.
Cumpre, desde logo, atentar para o art. 108, que declara não se estender a
um crime a extinção de punibilidade do delito que é seu pressuposto, elemento
constitutivo
ou circunstância agravante, e que, em caso de conexidade, a causa extintiva de
punição relativa a um deles não impede quanto aos remanescentes a elevação da
pena,
devido a conexão. Dessarte, se estiver, por exemplo, prescrito, por qualquer
forma, o direito de punir relativamente ao furto, não ficará, por isso, isento
de pena
o receptador. No outro caso, v. g., se o agente, após um estupro, tenta matar a
pessoa que viu o fato e, posteriormente, casa com a ofendida, a extinção da pena
de estupro não impede ocorrer a agravante do art. 61, 11, b, para a tentativa de
homicídio que, aliás, será qualificada (art. 121, § 2.°, V).
Havendo co-participação, incumbe distinguir se as causas são comunicáveis
ou incomunicáveis. Conforme escreve o dou to Hungria: "Comunicáveis são sempre
as
causas objetivas ou atinentes à reparação do dano, ainda quando representem
arrependimento eficaz de um só dos co-partícipes (exemplo: o subsequens
matrimonium em
certos crimes sexuais). À exceção da renúncia e do perdão do ofendido, são, ao
contrário, incomunicáveis as causas subjetivas ou fundadas em circunstâncias de
caráter
pessoal (arg. do art. 30)".

217. Classificação. Diversas são as classificações das causas extintivas da


punibilidade. Além da já apontada - comunicáveis e incomunicáveis outras se
apresentam.
Podem ser gerais ou especiais, ou comuns e particulares. As primeiras referem-se
a todos os delitos; as segundas dizem respeito a determinado crime ou grupo de
crimes.
Pertencem àquelas: a morte do agente, anistia, graça ou indulto, prescrição,
aboli tio criminis. As segundas compreendem o ressarcimento do dano, casamento
do ofensor
com a ofendida, retratação, renúncia privada e perdão do ofendido. Quanto à
reabilitação, considera-a Hungria causa geral, ao passo que Aloísio de Carvalho
Filho
a tem como particular3. São também naturais e políticas, conforme provenham de
impossibilidade de fato (tal qual a morte do agente), ou de motivos ditados pelo
interesse
público.
Outra classificação é a exposta por José Frederico Marques: fatos
jurídicos que extinguem o direito de punir e atos jurídicos de que pode provir a
extinção
da punibilidade.
Nosso Código englobou no art. 107 diversas causas extintivas, sem
distinguir sua espécie. Outras foram consideradas em apartado, em dispositivos
vários.
Vê-se, portanto, não ser taxativa a enumeração feita nesse artigo.
Realmente, diversas estão capituladas em outros dispositivos: a desistência e o
arrependimento
eficaz (art. 15); o perdão judicial (arts. 180, § r; 240, § 4.° etc.); a
restitutio in integrum (art. 249, § 2.°); a suspensão condicional da pena; o
livramento
condicional; as hipóteses previstas no art. 7.°, § 2.°, d, e 11, b, isto é,
cometido um crime por brasileiro no estrangeiro, o Estado pode puni-lo desde,
entretanto,
que ele não tenha sido absolvido ou cumprido, lá, a pena imposta; e os casos
mencionados também no mesmo art. 7.°, na alínea e do § 2.°.
Justifica Hungria a exclusão dessas causas, no citado art. 107, porque
este só considerou as causas extrínsecas - não imediatamente ligadas ao momento
da causação
do fato criminoso - incondicionadas e obrigatóriass. Ora, se aí estão alinhadas
essas causas, devia haver lugar para a mencionada no art. 235, § 2.°, do Código:
"Anulado, por qualquer motivo, o primeiro casamento ou o outro, por motivo que
não a bigamia, considera-se inexistente o crime". Diga-se também que o Código,
aqui,
se afastou de seu critério, declarando inexistente o delito. À luz desse
dispositivo, se o delinqüente vier a cometer novo crime, não sera reincidente.
Devia a lei
ter dito extingue-se, como, aliás, se fala na Exposição de Motivos de 1940, item
76.
Lembra Basileu Garcia que oportuno teria sido incluir no elenco do art.
107 a morte do ofendido no adultério. Como se verifica do art. 240, § 2.°, o
direito
de queixa é personalíssimo: pertence somente ao cônjuge ofendido. A outra
conclusão não se chega, confrontando esse dispositivo com outros que versam a
ação privada
(arts. 145; 161, § 3.°; 167; 179, parágrafo único etc.), tendo aquele fórmula
diversa destes, a indicar que o direito de ação não se transmite, ao revés do
que fala
o § 4.0 do art. 100.
Diga-se o mesmo para o art. 236, onde também seus dizeres levam a idêntica
conclusão.

II
DA EXTINÇÃO DA PUNIBILIDADE
A) MORTE DO AGENTE

SUMÁRIO: 218. Morte do acusado e do condenado.

218. Morte do acusado e do condenado. É a primeira causa de extinção da


punibilidade e consagração do princípio mors omnia solvit - a morte faz
desaparecer,
solve ou apaga tudo.
Por ele, se não se intentou ação contra o acusado, ela não mais pode ter
lugar; se se acha em curso e ele falece, o processo não prossegue; se foi
condenado
e morre, não se executa a pena. Não há, pois, procedimento penal contra o morto.
Nem sempre foi assim. A História conta-nos casos de pessoas julgadas mesmo
depois da morte. Além disso, houve as penas infamantes, que não só atingiam a
memória
do morto como também seus descendentes. Na Idade Média, ao lado dadamnatio
memoriae, conheceram-se a condenação em efígie e a execução de cadáver.
Hoje, dificilmente se encontrarão tais penas na legislação dos povos
cultos. É exato que no direito inglês existe a pena sui generis da negação de
sepultura
cristã aos suicidas. Tal coisa não é defensável e é resquício da recusa de
sepultura de outras eras, como lembra Hans von Hentig: "A recusa de sepultura
constituía
uma pena acessória da capital, executada por meios infamantes, tais como a
crucificação e a decapitação, ou da pena capital executada em um dia de festa
nacional
ou no cárcere".
Com a morte cessam a persecutio criminis, a condenação e seus efeitos.
Não, porém, as conseqüências civis. A herança do condenado responde pelo dano do
crime.
Não se trata, contudo, de pena, tanto que a multa, imposta como condenação, não
pode ser cobrada dos herdeiros. Ela, como pena que é, não foge ao princípio da
responsabilidade
pessoal, ao passo que a ação civil - destinada à reparação - é real: responde a
herança que se transmite aos herdeiros com direitos e obrigações.
Há apenas a distinguir se a morte ocorre antes ou depois da condenação. Se
antes, a vítima poderá pleitear indenização, ajuizando ação, para haver dos
herdeiros
do falecido perdas e danos. Se depois de transitada em julgado a condenação, a
sentença condenatória é título executório civil contra os herdeiros e sucessores
do
réu.
A prova do óbito se faz pela competente certidão, consoante o art. 62 do
Código de Processo Penal.
Pode a extinção da punibilidade provir de erro ou fraude, e, havendo a
sentença transitado em julgado - como se fará? - pergunta Basileu Garcia, e
responde:
"Indiferente a sugestões do Direito comparado, em que é prevista a absoluta
ineficácia do julgado, a nossa legislação não cogitou da hipótese, que, assim,
permanece
irremediável, salvo proceder-se por falsidade contra os responsáveis pela
elaboração e pelo uso do documento destinado a provar o óbito fictício".
Realmente, em outras legislações cuidou-se da hipótese. A respeito,
Manzini escreve: "Se, portanto, for pronunciada em qualquer estado, ou grau do
procedimento,
uma sentença de extinção, tomada irrecorrível, por morte do acusado, e depois
faz-se prova que tal morte foi erroneamente declarada, considera-se a sentença
como
não proferida e ela não impede a ação penal pelo mesmo fato e contra a mesma
pessoa, se não sobreveio uma causa extintiva do crime ou pela qual não mais se
pode
proceder"3. É o que taxativamente diz o Código de Processo Penal italiano, no
art. 89 - última parte - sob a rubrica Dúvida sobre a morte do acusado: ... "Ia
sentenza
di prosciogliment? non piu soggetta ad impugnazione si considera come non
pronunciata...".
A presunção legal da morte (CC, art. 10) é suficiente para a extinção da
punibilidade.
Esta, ocorrendo pela morte de um autor, não se comunica aos co-autores.
Mesmo nos chamados crimes próprios ou especiais, "a morte do copartícipe, cuja
qualidade
fez caracterizar o título do crime, não acarreta a modificação deste. Assim, no
peculato, a morte do co-réufuncionário público não determina, em relação aos
outros,
a desclassificação para o crime patrimonial comum".
Trata-se de causa pessoal, que não se comunica aos co-partícipes. O
ilustrado Aloísio de Carvalho Filho faz exceção quanto ao adultério, dizendo que
a morte
da mulher casada aproveita ao co-réu adúltero, apoiando-se na autoridade de
Goedseels, cuja obra aqui já citamos5. De fato, esse jurista defende tal
opinião: "A
qualidade de esposo no queixoso é condição necessária para que a ação seja
exercida. Em conseqüência, se o casamento extinguir-se pela morte de um dos
cônjuges,
a ação pública está extinta. A condenação do cúmplice da mulher adúltera torna-
se, pelo mesmo fato, legalmente impossível". Mas ele mesmo cita julgado da Corte
de
Liege que declarou subsistir a ação do marido contra o cúmplice de adultério,
apesar de haver assassinado sua mulher, colhida em flagrante.
Aquela opinião talvez se justifique à luz de disposições próprias das leis
belgas, mas não cremos que se imponha perante nosso Código. O argumento de que
não
mais existe sociedade conjugal não colhe, porque o crime ocorreu em sua plena
vigência. De lembrar que o Código reconhece existir adultério mesmo quando o
fato se
deu, estando os cônjuges desquitados, e apenas nega ao ofendido o direito de
querela.
Contra a opinião do insigne Aloísio de Carvalho Filho manifestam-se
Basileu Garcia e Romão Côrtes de Lacerda, este invocando também a jurisprudência
da Corte
de Cassação de Roma: "A morte do cônjuge culpado extingue a punibilidade (art.
108, I), salvo quanto aos co-réus (Cassação de Roma, 1931), pois, ao contrário
do
que ocorre na hipótese de anulação do casamento, não há insubsistência do
crime".
A extinção da punibilidade do denunciado, ou réu falecido, pode ser
decretada ex officio pelo juiz ou a requerimento de qualquer das partes em ambas
as hipóteses,
diante, evidentemente, da prova necessária.

III
DA EXTINÇÃO DA PUNIBILIDADE
B) DA CLEMÊNCIA SOBERANA

SUMÁRIO: 219. Considerações preliminares. 220. Anistia. 221. Graça e indulto.


219. Considerações preliminares. São formas de extinção da punibilidade a
anistia, a graça e o indulto, previstas no inc. 11 do art. 107. Tem a graça dois
sentidos: um amplo e outro restrito. No primeiro, abrange a anistia e o indulto;
no segundo, constitui medida de clemência como os outros dois.
Distinguem-se eles, pois a graça (em sentido restrito) refere-se a
indivíduo determinado, ao passo que a anistia e o indulto visam a número
indeterminado de
pessoas, a coletividades de indivíduos, tendo em vista certos delitos; são
também espontâneos, ao passo que a graça, em regra, é pedida (CPP, art. 734). A
anistia
pode ser concedida antes ou depois da condenação, enquanto o indulto e a graça
só são aplicáveis a réus condenados. A anistia extingue a punibilidade, ao passo
que
a graça e o indulto podem ser parciais, apenas comutando ou diminuindo a pena.
Reserva-se, geralmente, a anistia para crimes políticos, ao passo que as duas
outras
medidas de clemência se destinam a crimes comuns. A anistia é de competência
exclusiva do Congresso Nacional (CF, art. 48, VIII), enquanto a graça e o
indulto são
prerrogativas do Chefe do Executivo (CF, art. 84, XII).
Advirta-se que, na prática, há certa confusão entre graça e indulto,
empregando-se comumente o último vocábulo para indicar o outro. Diz-se que o
sentenciado
pede indulto ao Presidente da República - aliás, indulto ou perdão - quando,
realmente, está pedindo graça. Tal fato acha-se consagrado na Constituição
Federal,
no último dispositivo citado, onde se emprega a expressão indulto, abrangendo
também a graça. Todavia o Código de Processo Penal distingue-os, tratando da
graça
nos arts. 734 a 740, e da anistia e do indulto, respectivamente, nos arts. 742 e
741. Como se vê também do dispositivo em análise, o estatuto substantivo refere-
se
às três medidas de indulgência soberana (indulgentia principis).
Têm elas sofrido impugnação de não poucos, dentre os quais se aponta
Florian. Depois de citar Beccaria, Filangieri, Bentham, Kant e Feuerbach, e de
dizer que
elas foram causa de gravíssimos abusos na Idade Média e mesmo em tempos mais
próximos, escreve: "Um dilema evidente aqui se apresenta: ou aqueles institutos
se aplicam
por via do arbítrio, de pedidos, de pressões, ou têm lugar quando a justiça o
exige. No primeiro caso, faltaria a causa justificadora; no segundo, a justiça
deveria
realizar-se não por via da indulgência soberana e a mancheias, mas com métodos
preestabelecidos, seguros e iguais para todos. E, assim, se porventura algumas
categorias
de crimes não representam mais uma lesão jurídica, em lugar de promulgar-se
anistia, dever-se-iam abolir francamente as sanções penais correspondentes; se
alguns
ou muitos indivíduos foram condenados injustamente, antes de aplicar-se a graça
ou indulto, conviria recorrer à revisão ou a outro instituto processual idôneo".
Realmente, há muito que falar contra o direito de graça (em sentido
amplo), pois ele tem servido para dar liberdade a condenados, não apenas por
juízes togados,
mas pelos tribunais populares, graças à influência política ou social, a
pressões ou necessidade de agradar a determinadas esferas da comunidade e a
razões ou motivos
vários, ao sabor da oportunidade ou do momento. Todavia não há negar também seu
lado bom. Ele se destina a temperar o rigor da lei, a qual é norma geral e,
assim,
pode, em determinado caso, não ser justa, como lembra Von Liszt, dizendo que a
graça "deve servir para atender às exigências da eqüidade, em face das
disposições
genéricas e rígidas do direito", acrescentando ainda que ela é "emenda da
própria justiça e 'válvula de segurança do direito', na expressão de Ihering".
Por outro lado, é de convir que ocasiões há em que o esquecimento é
preferível à punição, no próprio interesse público, apaziguando ódios e
ressentimentos,
máxime após movimentos políticos e sociais, buscando por essa forma criar um
clima de harmonia e entendimento que, conforme a hipótese, jamais seria
conseguido com
a aplicação ou persistência das rígidas normas de direito penal.
Os inconvenientes não são dos institutos, porém, causados por quem os
aplica. Mas isso não acontece somente com eles. É peculiaridade do direito.
Aliás, alguém
- não sem alguma razão - já disse: "não temeria as más leis, se elas fossem
aplicadas por bons juízes".
220. Anistia. É a primeira das causas de extinção de punibilidade
mencionadas no inc. 11. Seu escopo é o olvido do crime, ou, como se exprime
Aurelino Leal:
"O fim da anistia é o esquecimento do fato ou dos fatos criminosos que o poder
público teve dificuldade de punir ou achou prudente não punir. Juridicamente os
fatos
deixam de existir; o Parlamento passa uma esponja sobre eles. Só a História os
recolhe".
Aplica-se, em regra, a crimes políticos, tendo por objetivo apaziguar
paixões coletivas perturbadoras da ordem e da tranqüilidade social; entretanto
tem lugar
também nos crimes militares, eleitorais, contra a organização do trabalho e
alguns outros.
A qualquer momento ela é cabível: antes ou depois do processo e mesmo
depois da condenação. Se for concedida antes da sentença condenatória transitar
em julgado,
diz-se própria, pois é consoante com seu fim de fazer esquecer o delito
cometido; se depois daquela sentença, fala-se que é imprópria, visto recair
sobre a pena.
Como já dissemos, é concedida pelo Congresso Nacional, o que vale dizer
que é lei.
É o mais amplo dos institutos enumerados pelo Código, pois colima o
esquecimento do crime, que, a bem dizer, desaparece, visto a lei da anistia
revogar, no
caso, a penal. Cessam, assim, os efeitos penais do fato, o que significa que, se
o anistiado vier a praticar um delito, depois, não será considerado reincidente.
Nem todos assim pensam. O ilustrado Min. Nélson Hungria escreve: "É de
notar que o Código não reproduz sequer a cláusula final do art. 75 do Código de
90 (mantida
no Projeto A1cântara Machado), declaratória de que a anistia 'põe perpétuo
silêncio ao processo'. Segue-se daí que a anistia extingue a punibilidade (art.
107),
mas não o crime ou a intercorrente condenação, salvo quanto à execução da pena
imposta. A condenação, se já passada em julgado, persiste para o efeito de
declaração
da reincidência e exclusão de sursis por novo crime que venha o anistiado a
cometer".
Não obstante a abalizada opinião, parece-nos que o silêncio sobre o crime
e suas conseqüências penais não depende de declaração da lei, mas é próprio do
instituto.
Como escreve Carlos Maximiliano, a anistia "é um ato do poder soberano que cobre
com o véu do olvido certas infrações criminais, e, em conseqüência, impede ou
extingue
os processos respectivos e torna de nenhum efeito penal as condenações"6. Se o
fim do Código era outro, se era ir de encontro à índole do instituto, não
bastava
a adoção daquela cláusula, mas mister seria, ao revés, declaração expressa, o
que não se fez.
Já o mesmo não sucede com os efeitos civis. Não alcança a reparação civil
a anistia, já que ela é tão-somente renúncia ao jus puniendi. Conseqüentemente
não
abrangerá direitos - como a indenização do dano - que não pertencem ao Estado.
Qualquer dúvida, a respeito, desapareceria em face do art. 67, lI, do Código de
Processo
Penal: "Não impedirão igualmente a propositura da ação civil: ... 11 - A decisão
que julgar extinta a punibilidade".
Como já dissemos, a anistia é lei e, portanto, sujeita a interpretação do
Judiciário. Logo, quando de sua aplicação, a este podem os interessados
recorrer.
E é princípio que aos textos dessa lei deve dar-se a interpretação mais ampla
possível, de acordo com sua índole. Com razão, dela falou João Barbalho: "Núncia
de
paz e conselheira de concórdia, parece antes do céu prudente aviso que
expediente de homens".
Pode a anistia ser plena ou parcial, conforme se refira a todos os
criminosos ou fatos, ou exclua alguns deles, notando-se, entretanto, que em
relação aos
beneficiados, ela não é restrita.
A anistia não pode ser recusada, visto seu objetivo ser de interesse
público. Todavia, se for condicionada, já o mesmo não acontece: submetida a
clemência
a uma condição, podem os destinatários recusá-Ia, negando-se a cumprir a
exigência a que está subordinada.
Os crimes hediondos, a prática de tortura, o tráfico ilícito de
entorpecentes e drogas afins e o terrorismo não admitem a anistia, bem como a
graça e o indulto.
É o que deixa claro o art. 2.°, I, da Lei n. 8.072.

221. Graça e indulto. Em sentido restrito, a graça é espécie da


indulgentia principis de ordem individual, pois só alcança determinada pessoa.
Na forma do
art. 734 do Código de Processo Penal, pode ser pedida pelo condenado, por
qualquer do povo pelo Conselho Penitenciário ou pelo Ministério Público. Pode,
contudo,
o Presidente da República concedê-la espontaneamente.
Como se verifica dos arts. 735 e s. do Código de Processo Penal, e 189 e
190 da Lei de Execução Penal, função de relevo será reservada ao Conselho
Penitenciário,
incumbido de opinar sobre o pedido. Trata-se de um corpo eclético, constituído
por "professores de Direito ou juristas e professores de Medicina ou clínicos
profissionais",
além de membros do Ministério Público Federal e do Estado (Dec. n. 4.365, de 31-
1-1928, e Lei de Execução Penal, art 69, § 1.°). Recrutados seus membros, em
regra,
dentre os expoentes da classe a que pertencem - por seus dotes intelectuais e
ilibada reputação devem manifestar-se sobre o pedido, com a imparcialidade de
juízes,
tendo sempre em vista não apenas o interesse do condenado, mas também o da
sociedade, em cujo seio pretende ele voltar a viver. A justa medida da dosagem
exata dos
dois interesses há de ser sempre o fim em vista. Ainda aqui têm oportunidade
palavras de jurista francês: "Deux intérêts également puissants, également
sacrés, veulent
être à Ia fois protegés: l'intérêt général de Ia société qui veut lajuste et Ia
prompte répression des délits: l'intérêt des accusés, qui est bien aussi un
intérêt
social et que exige complete garantie des droits".
Com o parecer do Conselho, os autos sobem ao Presidente da República.
(Cremos, entretanto, que a audiência do Conselho Penitenciário, infelizmente,
hoje, não
é indeclinável, pois a Constituição - art. 84, XII - diz que a concessão se dará
"com audiência, se necessário, dos órgãos instituídos em lei".) Concedida a
graça,
o respectivo decreto será junto, por cópia, aos autos de execução de sentença,
incumbindo, agora, ao juiz executá-lo.
O indulto é medida de caráter coletivo, como já se falou. É da atribuição
privativa do Presidente da República, conforme prescreve a Constituição Federal,
no art. 84, XII. O art. 741 do Código de Processo Penal regula a espécie.
Tanto ele como a graça podem ser parciais, limitando-se a diminuir a pena
ou comutá-la, substituindo-a por outra de qualidade mais benigna. Podem, além
disso,
não cancelar todas as penas.
Ao contrário da anistia, o indulto e a graça só têm lugar após a sentença
condenatória transitar em julgado, pois se referem tão-só a seus efeitos
executóriopenais.
Nenhuma influência têm sobre as conseqüências civis.
Em princípio, não podem o indulto e a graça ser recusados, conforme a
ilação que se tira dos arts. 738 e 739 da lei processual. Só o poderão ser
quando se
limitarem a comutar a pena, isto é, a substituírem esta por outra, e não a
extinguirem ou diminuírem. Recusa também poderá haver quando forem
condicionados, como
sucede com a anistia.
Já tivemos ocasião de apontar a utilidade dessas medidas integrantes da
indulgentia principis, como também suas desvantagens.
Deve a graça ser aplicada com prudência e cautela, não se transformando em
recurso habitual das decisões do Judiciário. Será isto intromissão do Executivo
na órbita desse Poder; será transformá-lo em supervisor de suas decisões, o que
aberra da separação de Poderes. Contra sentenças iníquas, ou nulas, tem o réu
sempre
os recursos legais. Dispõe da revisão, a qualquer tempo, e, por meio dela, pode
ser plenamente restaurado seu direito. Conta, ainda, com o habeas corpus.
Qualquer
desses remédios é mais célere do que o pedido de graça.
Em sua obra, aqui citada, José Frederico Marques estende-se em
considerações de todo procedentes, mostrando ser incabível fazer-se do Executivo
órgão revisional
das decisões da justiça, acentuando que a graça existe "para se corrigirem os
rigores da aplicação da lei com os temperamentos da eqüidade". Podia acrescentar
que
ela é também medida de individualização penal, a que faz jus o réu, quando
demonstre cabalmente, por seu aproveitamento, a inutilidade da pena total.
Com maior discrição e parcimônia devem ser aplicados a anistia e o
indulto.
Se assim não se fizer, esses institutos, já combatidos por tantos,
acabarão por se desmoralizar.

IV
DA EXTINÇÃO DA PUNIBILIDADE
C) DECURSO DO TEMPO

SUMÁRIO: 222. Novatio legis. 223. Prescrição. Decadência. Perempção.

222. "Novatio legis". Extingue-se a punibilidade pela retroatividade de


lei que não mais considera o fato como criminoso - é a oração do inc. III do
art. 107.
Volta aqui o Código a tratar do mesmo princípio já consagrado no art. 2.°:
a retroatividade da lex mitior. Ocorre inovação extintiva, isto é, a nova lei
não
dá ao fato, ao contrário da anterior, caráter criminoso. Observam alguns que
aquela não extingue o crime, mas a lei.
Cremos, contudo, que se opera aboli tio criminis, por força do art. 2.° do
Código. O fato deixa de ser considerado delito, e, conseqüentemente, se iniciado
o processo, ele não prossegue, e, se condenado o réu, a sentença érescindida:
nenhum efeito penal subsiste, inclusive para a reincidência, sursis etc. A lei
retroage,
não vendo empecilho mesmo diante da coisa julgada, como aquele artigo.
Persistem, entretanto, os efeitos civis da sentença.
A lei nova pode revogar a anterior por duas formas: expressa ou
tacitamente. A revogação é expressa quando, regulando o assunto, o novo diploma
não o incrimina.
É tácita quando há incompatibilidade entre a incriminação feita pela lei
anterior e a nova.
Como já se fez sentir, a retroatividade in mellius não é apenas princípio
do direito penal, mas preceito constitucional.

223. Prescrição. Decadência. Perempção. Constituem objeto do inc. IV do


artigo. A primeira será matéria de um capítulo à parte, devido a sua extensão e
importância.
Quanto à decadência, foi tratada no n. 214, de modo que, aqui, quase nada
resta a dizer.
Naquele número definimos a decadência como a perda do direito de ação, por
não se tê-lo exercido no prazo legal. Refere-se ao direito de agir diretamente
na
ação privada e indiretamente na ação pública, quando esta depende de
representação. Incide ela sobre um direito instrumental, sem que deixe de
alcançar também o
direito material.
Difere da prescrição, como já dissemos, não só porque esta alcança a ação
em curso e a condenação, como também porque pode ser suspensa ou interrompida.
Aliás,
a prescrição diz respeito diretamente ao jus puniendi.
A perempção não está subordinada ao decurso de tempo, como a decadência e
a prescrição; todavia não nos recusamos a incluí-Ia neste parágrafo, seguindo,
mais
uma vez, a ordem do Código.
Distingue-se a perempção da decadência porque esta ocorre antes da lide,
antes que se instaure a instância - que, segundo o preclaro Jorge Americano, "é
o
juízo enquanto funciona no curso da causa"l - ao passo que aquela se verifica
durante a ação. A decadência extingue o direito de querelar ou representar para
a ação
pública por se haver conservado inerte o titular durante certo tempo, enquanto a
perempção é inércia no processo, e inação consistente em não movimentá-lo.
Só quando a ação é exclusivamente de iniciativa privada é que pode ocorrer
a perempção. Se a queixa é subsidiária (CP, art. 100, § 3.°), não existe
perempção
porque a inércia do queixoso fará com que o Ministério Público retome a ação,
como parte principal (CPP, art. 29). Com maior razão, não tem ela lugar na ação
pública.
A perempção vem regulada no art. 60 do diploma processual, que especifica
as diversas hipóteses em quatro incisos.
O primeiro diz respeito ao fato de o querelante não dar andamento ao
processo durante trinta dias consecutivos. É uma sanção à negligência do
ofendido. Dito
isto, está claro que, se o estacionamento da ação se der não por inércia do
querelante, mas por expediente do acusado ou desídia do funcionário, não pode
isso ser
levado a cargo daquela. O Código de Processo Civil é bastante claro neste
sentido: ocorre a absolvição da instância "quando, por não promover os atos e
diligências
que lhe cumprir, o autor abandonar a causa por mais de 30 (trinta) dias" (art.
267, III).
O inc. II do art. 60 estabelece a ressalva do falecimento ou interdição do
querelante. Em tal caso, dentro em o prazo de sessenta dias, o representante
poderá
apresentar-se em juízo para mover a ação. O prazo conta-se do dia do falecimento
ou da data em que foi decretada a incapacidade, não se computando nele o tempo
em
que a ação esteve parada, desde que não se tenha tornado perempta. Em caso de
interdição, dará andamento ao processo o representante legal do querelante; na
hipótese
de falecimento, observar-se-ão os arts. 31 e 36 da lei processual. No caso de
declaração judicial de ausência, observa-se o mesmo que para o falecimento,
podendo
o curador prosseguir no processo se o cônjuge e os parentes, com preferência,
não o fizerem.
Cumpre notar, quanto ao disposto no art. 36 do Código de Processo, que a
ordem ali mencionada só se observará quando as pessoas com direito de queixa
quiserem
exercê-lo, para isso comparecendo a juízo, sendo significativo que a lei usa o
verbo comparecer; não basta, pois, a existência dessas pessoas.
O inc. III do art. 60 encara, primeiramente, hipótese de descaso do
querelante, por não comparecer, sem motivo justificado, a ato a que deve estar
presente,
cabendo ao Ministério Público o prosseguimento, se a ação penal é subsidiária.
Sendo a ação exclusiva do ofendido ocorrerá a perempção. Embora o Código Penal,
como
também o Código de Processo Penal, fale expressamente em querelante, o
entendimento jurisprudencial é no sentido de que não há necessidade da presença
pessoal do
ofendido à audiência, salvo quando chamado a depor como vítima, bastando a de
seu procurador. A perempção só se operará se ausentes ambos, de modo a não ser
impulsionada
a ação penal privada. Outra hipótese é a do abandono da instância por ele, em
face de não formular o pedido de condenação em suas alegações finais, ou seja,
antes
da sentença.
Por fim, no art. 60, IV, do Código de Processo, cogita-se da perempção
quando, sendo querelante pessoa jurídica, esta extinguir-se sem deixar sucessor.
Quando da dissolução da pessoa jurídica, no próprio ato que a dissolver
pode determinar-se qual a sociedade em que ela se transforma, dando-se então a
sucessão.
À sucessora, pois, incumbe dentro do prazo de sessenta dias (art. 60, 11)
prosseguir na ação, sob pena de esta tornar-se perempta, o que também ocorrerá
se ela não
houver deixado sociedade ou associação sucessora.
A esses casos de perempção outros podem ser acrescentados, aliás, por nós
já mencionados: a morte do querelante nos delitos de adultério e induzimento a
erro
essencial e ocultação de impedimento, previstos respectivamente nos arts. 240 e
236 do Código Penal. Trata-se, como já se frisou, de direito personalíssimo do
ofendido,
de modo que a morte deste acarreta a cessação da instância e, portanto, a
perempção, pela impossibilidade subjetiva de se prosseguir no feito.

V
DA EXTINÇÃO DA PUNIBILIDADE
D) DECURSO DO TEMPO PRESCRIÇÃO

SUMÁRIO: 224. Conceito e fundamento. 225. Penas e prescrição. 226. Prescrição


retroativa. 227. Termo inicial da prescrição. 228. Causas suspensivas. 229.
Causas
interruptivas. 230. Crimes de imprensa. 231. Crimes falimentares.

224. Conceito e fundamento. O jus puniendi do Estado extingue-se também


pela prescrição. Esta é a perda do direito de punir, pelo decurso de tempo; ou,
noutras
palavras, o Estado, por sua inércia ou inatividade, perde o direito de punir.
Não tendo exercido a pretensão punitiva no prazo fixado em lei, desaparece o jus
puniendi.
Tem o instituto da prescrição sofrido críticas. Beccaria escreveu que,
"quando se trata desses crimes atrozes, cuja memória subsiste por muito tempo
entre
os homens, se os mesmos forem provados, não deve haver nenhuma prescrição em
favor do criminoso que se subtrai ao castigo pela fuga"l. É um estímulo à fuga -
proclamam
alguns. São relativos os argumentos da cessação do interesse de punir e da
fraqueza ou desaparecimento das provas dizem outros. Os filiados à Escola
Positiva aceitam-na
somente quando cessada a periculosidade.
Outras críticas ainda se fazem à prescrição, porém não procedem, pois ela
atende não só ao interesse do acusado como também aos interesses de caráter
público.
O tempo, que tudo apaga, não pode deixar de influir no terreno repressivo.
O decurso de dias e anos, sem punição do culpado, gera a convicção da sua
desnecessidade,
pela conduta reta que ele manteve durante esse tempo. Por outro lado, ainda que
se subtraindo à ação da justiça, pode aquilatar-se de sua intranqüilidade, dos
sobressaltos
e terrores por que passou, influindo esse estado psicológico em sua emenda ou
regeneração.
Se não se trata de prescrição da sentença condenatória, é inegável que o
decurso do tempo enfraquece ou faz mesmo as provas desaparecerem, de modo que a
sentença
que viria a ser proferida não mais consultaria aos interesses da justiça, por
não corresponder à verdade do fato criminoso.
Pense-se, também, que o clamor público, a indignação, o sentimento de
insegurança etc., que o crime em regra provoca, diluem-se, arrefecem-se e mesmo
desaparecem
pela ação do tempo.
Outros argumentos e teorias fundamentam o instituto. Estabelecem alguns,
por exemplo, correlação entre ele e a prescrição aquisitiva do direito civil: o
criminoso
adquire o direito de não ser punido, pela inércia dos órgãos estatais incumbidos
da punição. Outros invocam a eqüidade como razão. E diversos fundamentos podem
ser
apontados ainda.
Nem todos são procedentes; porém alguns se impõem, e fato é que as
legislações têm aceitado, sem vacilação, o instituto, que realmente se
justifica.
Com efeito, não se pode admitir que alguém fique eternamente sob ameaça da
ação penal, ou sujeito indefinidamente aos seus efeitos, antes de ser proferida
sentença, ou reconhecida sua culpa (em sentido amplo). Seria o vexame sem fim, a
situação interminável de suspeita contra o imputado, acarretando-lhe males e
prejuízos,
quando, entretanto, a justiça ainda não se pronunciou em definitivo,
acrescentando-se, como já se falou, que o pronunciamento tardio longe estará, em
regra, de corresponder
à verdade do fato e ao ideal de justiça.
Em se tratando de condenação, força é convir que o longo lapso de tempo,
decorrido após a sentença transitada em julgado, sem que o réu haja praticado
outro
delito, está a indicar que por si mesmo ele foi capaz de alcançar o fim que a
pena tem em vista, que é o de sua readaptação ou reajustamento.
E, quando assim não fosse, é indisfarçável que, ao menos aparentemente -
e, portanto, com reflexos sociais nocivos - a pena tão tardiamente aplicada
surgiria
sem finalidade, e antes como vingança. Como escreve Manzini: "A implacável
vontade de punir, se se pode conceber como um ato de psicologia individual
inferior, não
é compreensível qual fato de psicologia coletiva, em relação a ações
individuais, como o delito, em povos civilizados, e quando o tempo alterou as
condições em que
normalmente é exercido o poder público punitivo".

225. Penas e prescrição. Sendo a prescrição a extinção da punibilidade


pela fluência do tempo, lógico é que as leis tratem de fixar este.
O nosso Código Penal, nos arts. 109 a 118, trata das várias hipóteses
que surgem acerca da fixação desse tempo.
A reforma de 1984 tornou todas as penas prescritíveis, o que não ocorria
anteriormente com as acessórias.
As privativas de liberdade e as restritivas de direitos (art. 109,
parágrafo único) prescrevem em prazos variáveis, de acordo com a sua quantidade,
enquanto
a de multa, quando isoladamente aplicada ou não cumprida, prescreve em dois
anos.
Fora disso, as penas mais leves prescrevem com as mais graves, na forma do
art. 118.
No art. 109, o legislador trata do lapso prescricional, tomando como base
a quantidade da pena e fazendo-o variar entre vinte anos - limite máximo, e dois
anos - limite mínimo. Não havendo condenação, regula a prescrição o máximo da
pena in abstracto. Após transitar em julgado a sentença condenatória, é a pena
in concreto
que fixa. No primeiro caso, trata-se de prescrição da ação; no segundo, da
condenação. (Bem sabemos que não é exato falar-se em prescrição da ação, todavia
a expressão
figura amplamente nos tratados e nos julgados dos tribunais, inclusive do
Pretório Excelso.)
Os prazos prescricionais são reduzidos à metade quando o criminoso era, ao
tempo do delito, menor de vinte e um ou maior de setenta anos, atendendo-se
naturalmente
às condições de inferioridade de ambos, existentes, em regra, em relação aos
outros homens: a um, devido à falta de maturidade; a outro, por sua decrepitude.
No tocante à multa, a reforma de 1984 corrigiu uma omissão havida na
primitiva redação, ao acrescentar a hipótese da pena em questão ser a única
cominada.
Pela atual redação (art. 114), a pena de multa, sendo a única cominada ou
aplicada, prescreve em dois anos.
Transitada em julgado a sentença condenatória, é a pena in concreto que
regula a prescrição. Novo prazo começa a fluir, regulado agora por aquela pena,
que
não retroage para alcançar a pretensão punitiva, já que se trata agora da
pretensão executório-penal. É o que claramente se vê do art. 110, que diz serem
os mesmos
prazos do art. 109, com a particularidade do acréscimo de um terço se o
condenado for reincidente.
Cumprindo a pena o sentenciado, mas evadindo-se, o lapso prescricional é
regulado pelo restante que deixou de cumprir, o mesmo sucedendo se se tratar de
revogação
do livramento condicional. Compreende-se facilmente a razão: ainda que a pena
não seja - ao contrário do que alguém afirmou - o preço por que o criminoso
compra
o direito de praticar o crime, não há dúvida de que não se pode regular a
prescrição pela pena que lhe foi imposta, pois esta, pelo cumprimento parcelado,
já não
é a mesma; é outra, está reduzida. Quanto ao livramento, advirta-se, como lembra
Hungria, que "a revogação opera ex tunc (sem desconto do tempo em que esteve
solto
o condenado, quando motivada por condenação do beneficiário em virtude de crime
ou contravenção posterior à concessão do benefício), mas opera ex nunc
(descontando-se
na pena o já transcorrido tempo de livramento), quando resulta de condenação do
liberado por crime ou contravenção anterior à outorga do benefício (art. 88)".
De tudo quanto se expôs, podemos resumir: a) antes de sentença transitada
em julgado, a pretensão punitiva regula-se pelo máximo da pena cominada (art.
109);
b) se a sentença condenatória desclassificar o crime, excepcionalmente retroage,
regulando-se a prescrição pelo máximo da pena abstratamente cominada ao novo
delito,
ainda que o Ministério Público recorra; c) depois de sentença condenatória, com
o trânsito em julgado, fixa-se a prescrição pela pena imposta (art. 110); d) com
exceção do referido na alínea c, interrompida a prescrição consoante o art. 117,
todo o prazo começa novamente a correr do dia da interrupção, desaparecido e
inexistente
o que fluiu até a data da interrupção.

226. Prescrição retroativa. O parágrafo único do art. 110 do Código Penal,


em sua redação primitiva, estabelecia que: "A prescrição depois de sentença
condenatória
de que somente o réu tenha recorrido, regula-se, também, pela pena imposta e
verifica-se nos mesmos prazos".
Tal dispositivo enunciava que, transitada em julgado a decisão
condenatória para a acusação, havendo recurso da defesa, iniciava-se um novo
lapso prescricional,
agora tendo como base a pena concretizada em primeiro grau.
Com base em tal dispositivo, porém alargando-o, o e. Supremo Tribunal
Federal construiu a Súmula 146, nos seguintes termos: "A prescrição da ação
penal regula-se
pela pena concretizada na sentença, quando não há recurso da acusação".
A súmula em questão passou por várias e pequenas variações (aplicavase ou
não ao período anterior à denúncia, aplicava-se ou não havendo recurso
acusatório
improvido etc.), ensejando, sempre, profundas e férteis discussões. Para uns, a
prescrição da pretensão punitiva somente poderia ter como base o máximo da pena
in
abstracto, não sendo possível qualquer outra interpretação; para outros, a
súmula era profundamente justa, pois tinha como base a pena merecida e adequada
ao caso
e não a possível.
Com a reforma introduzi da pela Lei n. 6.416, de 1977, principalmente pelo
acréscimo do § 2.° do art. 110 (primitiva redação), toda discussão terminou,
pois
o novo preceito declarou de maneira nítida que a prescrição retroativa importava
"tão-somente em renúncia do Estado à pretensão executória da pena principal".
Ficou, então, estabelecido que:
a) a prescrição depois da sentença com trânsito em julgado para a
acusação ou não provido o recurso acusatório, regulava-se pela pena
concretizada; e
b) a prescrição atingia apenas a pretensão executória, isto é, o direito
de executar a sanção imposta pela sentença condenatória.
A atual reforma (de 1984) deu nova guinada à prescrição retroativa,
prestigiando a já mencionada Súmula 146.
Pelo exame dos parágrafos do art. 110 do Código Penal conclui-se que:
a) a prescrição retroativa voltou a atingir a pretensão punitiva, com
característica própria, sendo uma exceção à regra geral prevista no art. 109. A
prescrição
em questão rescinde a sentença condenatória, atingindo seus efeitos principais e
secundários;
b) aplica-se tanto não havendo recurso da acusação como igualmente na
hipótese do recurso não ser provido;
c) aplica-se e atinge três períodos: do fato ao recebimento da denúncia,
se houver, desta à publicação da sentença e, por fim, desta ao julgamento em
segundo
grau, havendo, obviamente, recurso das partes.
Voltou-se, portanto, ao princípio ensejador da jurisprudência sumulada.
Da análise da atual situação chegamos à conclusão de que a prescrição
retroativa obedece aos seguintes princípios:
1.°) não há necessidade de recurso da defesa para o seu reconhecimento;
2.°) o prazo, como já realçado, pode ser contado do fato ao recebimento
da denúncia, desta à publicação da sentença e desta última ao julgamento do
recurso.
Na sentença absolutória, provido o recurso acusatório em segundo grau, temos
apenas dois lapsos prescricionais: do fato à publicação da sentença e desta ao
julgamento
do apelo;
3.°) pode ser considerada a pena imposta ou reduzida em segundo grau e
mesmo a elevada, desde que, na última hipótese, não modifique o prazo
prescricional;
4.°) o recurso acusatório, mesmo provido, só impedirá a prescrição
retroativa se alterar o lapso prescricional.
Como se nota, no fim da caminhada há sempre um retorno ao passado.

227. Termo inicial da prescrição. Antes que a sentença transite em


julgado, nosso Código adotou como termo inicial da prescrição dois critérios: o
da consumação
do crime e o do dia de sua ciência (art. lU). O inc. I desse artigo diz que o
lapso prescricional conta-se do dia em que o crime se consumou, e, pelo art. 14,
I,
diz-se consumado um crime quando nele se reúnem todos os elementos do tipo.
Conseqüentemente, começa-se a contar o prazo desde o momento em que o delito se
integra
de todos os elementos, o que nem sempre se dá na mesma ocasião. Assim, no
homicídio, v. g., a ação de ferir pode ser bem espaçada do evento morte; no
est,elionato,
o ardil separase, muitas vezes, da consecução da vantagem cqm prejuízo alheio
etc.
No inc, II cogita-se da tentativa, frisando-se que o dia do início é o em
que cessa a atividade, o que bem se compreende, em falta do evento ou resultado,
podendo acontecer, também, que a execução se dê em diversos dias, sendo, então,
o último o marco inicial da prescrição.
Referência especial da lei merece o crime permanente, objeto do inc. 111.
Crime permanente é aquele cuja consumação se prolonga no tempo, dependente da
atividade
(ação ou omissão) do agente (n. 59).
No delito permanente, se a consumação se protrai ou se prolonga, a razão
manda que o lapso prescricional se inicie quando a permanência cessou. É o que,
aliás,
diz a lei. Pode acontecer que, instaurada a ação contra o delinqüente, a
permanência não cesse, e, nesse caso, como se contar o prazo prescricional?
Basileu Garcia
e José Frederico Marques sustentam que, não obstante o delito permanecer, o
prazo começa a correr da instauração da ação. Têm os eminentes juristas vários
acórdãos
que os sustentam.
Mas a tese longe está de ser pacífica. Primeiramente, registre-se que as
decisões, que freqüentemente apóiam esse ponto de vista, referem-se a casos em
que
não está provada a permanência, após o início do processo. São, aliás, decisões
quase sempre proferidas no caso da contravenção de vadiagem.
Depois, porque a estrutura do delito permanente não se concilia muito com
essa opinião. É que a característica desse crime é a permanência, e enquanto
esta
perdura ele não se finda. Como pode, então, um ato processual (a denúncia, a
portaria, OU o auto de flagrante) dizer que cessou aquela permanência, para daí
se contar
o lapso prescricional, quando, entretanto, o delito está se realizando?
Suponha-se o crime de cárcere privado (art. 148). Realizado o inquérito e
oferecida a denúncia, faz-se o processo. Prova-se taxativamente estar a vítima
enc1ausurada;
apenas, não se sabe qual o lugar da c1ausura, cuja continuação, entretanto, é
provada, v. g., por testemunhas que ouviram o réu, leram cartas suas etc. Pois
bem,
apesar de tudo isso, apesar de o ofendido não aparecer, se o réu for expedito e,
foragido, aguardar a prescrição da condenação, ficará impune, não obstante seu
crime
estar ainda em plena consumação. O argumento de que então se fará novo processo
não colhe, porque seria autêntico bis in idem, já que o delito é um só, é o
mesmo.
Não se poderia atribuir ao agente outro crime, pois lhe faltariam vários
elementos, como a ação inicial de enc1ausurar, que não se realiza após a
prescrição.
O que sustentamos não tem qualquer cunho de originalidade. Primeiro, é a
lei a dizer iniciada a prescrição quando houver cessado a permanência. Depois,
são
inúmeras as opiniões que sufragam esta tese. Aloísio de Carvalho Filho, após
citar como crimes permanentes o seqüestro, o cárcere privado e o bando, ou
quadrilha,
diz: "A prescrição, pois, não poderá correr senão da data em que a societas
houver sido desfeita, em que o seqüestro ou o cárcere houverem sido levantados.
Porque
só então cessou a permanência da ação crirninosa"6. José Duarte, que também
comunga dessa opinião, cita Binding, Wachter, Massari, Sabatini, Manzini, Leone,
Battaglini
e Appiani, todos sustentando que a prescrição se inicia quando cessa a
permanência? Com inteira propriedade escreve o jurista pátrio: "Nesse crime, não
há um momento,
mas um período consumativo, no qual podemos encontrar o momento inicial e o
final, ao que observa Leone - há um evento continuativo e uma consumação
continuativa".
É o que dizíamos há pouco: o crime permanente tem, como qualquer outro,
seu momento inicial e final, com a diferença de que nele estes são espaçados,
afastados
um do outro pela permanência. Conseqüentemente não nos parece seguro dizer que a
denúncia corta esse período, fracionando-o, de modo que se pode sustentar que,
ocorrida
a prescrição, novo processo se instaurará. Com efeito, considerando-se o
seqüestro, o cárcere privado e o bando, ou quadrilha, onde estaria o termo
inicial - elemento
dos delitos - da subtração da vítima, do enclausuramento, da organização do
bando, se isso já constitui matéria julgada no primeiro processo e se, no
segundo, o
que existe é apenas permanência de um crime, ou melhor, da consumação?
Manzini, na sustentação deste ponto de vista, vai ao extremo: "Quando o
crime permanente se protrai também durante o curso da ação penal, a prescrição
não
corre nem mesmo depois da condenação em primeiro ou segundo grau"9.
O argumento de que o delito permanente seria imprescritível não tem
qualquer procedência: prescreve, como qualquer outro, quando cessou sua
consumação.
A opinião que esposamos obedece a princípio elementar de justiça e atende
inteiramente aos interesses da ordem jurídica: desde que a atividade delituosa
do
agente não cessou, deve o jus puniendi estar presente e efetivo.
Acerca dos delitos qualificados pelo resultado ou preterdolosos, é do
majus delictum que o prazo se inicia; assim, no crime do art. 129, § 3.°, é do
resultado
morte que a prescrição começa a correr.
Razão assiste a Basi1eu Garcia, quando escreve a respeito do crime
continuado e do concurso formal: "O acréscimo de um sexto a dois terços da pena,
atribuível
à continuação do crime (art. 51, § 2.°), não influi no lapso prescricional. Se o
réu respondesse por infrações autônomas, a prescrição regular-se-ia pela pena
mais
grave, sem esse acréscimo (art. 118). Sendo o crime continuado uma criação da
eqüidade, não se concebe que possa piorar a posição do réu. De igual modo, no
concurso
formal (art. 70) não se deve considerar, para fins de prescrição, o aumento de
um sexto até metade, pois isso tomaria mais grave essa modalidade que o concurso
material
(art. 69), sob o particular aspecto da extinção da punibilidade".
Em face do art. 10 do Código Penal, o dia do início - que é o da
consumação - conta-se a favor do acusado. Como deixamos dito no n. 48, a regra
do Código Penal
prefere à do Código de Processo (art. 798, § 1.°) porque beneficia o acusado.
No inc. IV nosso diploma usa o critério da ciência do fato: conta-se a
prescrição do dia em que o fato se tomou conhecido, isto é, o prazo corre a die
scientiae.
Refere-se a lei aos delitos de bigamia e falsificação ou alteração de
assentamento de registro civil. São crimes instantâneos, porém de efeitos
permanentes e que,
dissimulados ou ocultos, tardam em vir ao conhecimento da autoridade, de modo
que, se contasse o prazo da consumação, freqüentemente aconteceria ter-se
operado a
prescrição quando fossem eles descobertos. O conhecimento a que a lei alude é o
da autoridade pública, que não pode, evidentemente, alegar ignorância quando o
fato
é notório.
O art. 112 versa o marco inicial da prescrição, depois que a sentença
condenatória transitou em julgado para a acusação, para afirmar que ele começa a
correr
desse dia, ou do em que foi revogado o sursis ou o livramento condicional. É a
primeira hipótese. A segunda trata da interrupção da execução, para dizer ser o
dia
inicial o da interrupção, salvo quando o tempo desta deve ser computado na pena
(art. 42). Interrompido o cumprimento desta pela fuga ou pela revogação do
livramento
condicional, regula-se a prescrição pelo restante, como já se fez sentir no
número anterior.

228. Causas suspensivas. Trata o art. 116 da suspensão da prescrição. Esta


pode ser suspensa ou interrompida, ocupando-se desta última hipótese o artigo
seguinte.
Distinguem-se a suspensão e a interrupção, como escreve Battaglini: "Pela
suspensão da prescrição, não perde eficácia (vale dizer, continua com vida) a
parte do
prazo prescricional já decorrida; na interrupção da prescrição, ao revés, perde
qualquer eficácia (vale dizer, torna-se nula) a parte do prazo antes decorrida.
Noutras
palavras, cessando a suspensão, a parte escoada do prazo prescricional junta-se
com a fração sucessiva do próprio lapso; cessando, ao contrário, a interrupção,
o
prazo da prescrição começa a correr ex novo do dia da interrupção (dies a quo)".
A primeira causa suspensiva é a existência de questão prejudicial. Dela
trata nosso Código de Processo Penal nos arts. 92 a 94.
Define-a Vicente de Azevedo como a "questão prévia de direito civil
levantada no curso da ação penal, tendo por objeto elemento constitutivo do
crime, cuja
importância determine a incompetência do juízo criminal e a conseqüente
suspensão do procedimento".
Questões de direito civil - frise-se - porque são as únicas admitidas
entre nós, embora a expressão seja tomada em sentido amplo. Não há questões
prejudiciais
de direito penal. Os citados artigos da lei processual deixam bem claro isso. O
primeiro alude à prejudicial fundada sobre o estado civil das pessoas. Assim, se
alguém está acusado por bigamia e o fato é objeto de ação cível, apresenta-se
uma prejudicial. É mister se decida no outro juízo a questão, para ter
prosseguimento
a ação penal.
O art. 39 da lei adjetiva refere-se a questão de competência do juízo
cível, diversa da pertinente ao estado civil das pessoas. Como dissemos, e agora
melhor
se vê, as prejudiciais podem ser de qualquer natureza (civil, comercial,
constitucional, administrativa etc.), exceto penal: a expressãojuízo cível é
empregada como
antinômica de juízo criminal.
As causas mencionadas no art. 92 são obrigatórias - "...0 curso da ação
penal ficará suspenso..."; e as do art. 93 são facultativas - "... o juiz
criminal
poderá... suspender o curso do processo...". Mas ambas, existentes, suspendem o
curso da ação penal, como claramente fala o art. 94 do diploma adjetivo.
A segunda causa suspensiva é o cumprimento da pena no estrangeiro. É óbvia
a razão. Cumprindo pena fora do país, o acusado não pode ser extraditado e,
assim,
a prescrição decorreria, favorecendo-o. Lógico, pois, que o legislador veja, no
fato, motivo para que fique suspenso o prazo prescricional.
O parágrafo único do art. 116 declara que, depois de passada em julgado a
sentença condenatória, a prescrição fica suspensa durante o tempo em que o
condenado
se acha preso por outro motivo. A expressão "outro motivo" é ampla: toda e
qualquer razão que não seja a da sentença condenatória de que trata o
dispositivo. Preso
por outro motivo, não pode ele cumprir a pena que lhe foi imposta, donde seria
absurdo que esse outro comportamento ilícito, que lhe determinou a prisão, fosse
causa
para que ele não cumprisse a pena que foi imposta naquela sentença.
O Código de Processo Penal (como já tivemos ocasião de aludir), no art.
152, determina fique suspenso o processo se, depois do crime, sobreveio moléstia
mental
ao acusado. Em tal hipótese não se suspende o lapso prescricional, como nota
Basileu Garcia, citando Logoz, que, no silêncio do Código suíço, aborda a
questão para
dizer que "a prescrição continua a correr - ela não se suspende - em caso de
alienação mental do delinqüente sobrevinda após o delito", apontando, a seguir,
os doutrinadores
Chauveau et Hélie, Faustin-Hélie e Garraud, que sustentam o mesmo ponto de
vista. Assim também entendemos. Os casos de suspensão da prescrição são de
direito estrito.

229. Causas interruptivas. Já mostramos, no parágrafo anterior, sua


diferença em relação às suspensivas, e, no decurso da exposição do instituto da
prescrição,
a mais de uma aludimos, como a sentença condenatória recorrível e a denúncia.
O art. 117 do Código Penal tem por objeto essas causas, as que interrompem
o prazo prescricional, isto é, extinguem-no, reduzem-no a nada, para depois novo
prazo começar a fluir, como, aliás, frisa o § 2.°.
Também vimos que a prescrição começa a correr do dia em que o delito se
consumou, porém interrompe-se com o recebimento da denúncia ou da queixa - diz o
inc.
I do artigo. A lei fala em recebimento (e não oferecimento), ou seja, do
despacho interlocutório simples do juiz que as recebe.
Não há referência ao processo que tem início com a portaria, tal qual no
das contravenções. Não obstante abalizadas opiniões de que o dispositivo também
aproveita
ao processo contravencional, nosso tribunal tem rejeitado a analogia, lembrando
ser a prescrição instituto de direito substantivols. Realmente, a lei referiu-se
tão-somente à denúncia e à queixa que não compreendem a portaria.
Causa interruptiva é também a pronúncia. Tem-se em vista agora o processo
do júri (CPP, arts. 406 e s.). Convencido o juiz da existência do crime, e de
indícios
da autoria, pronunciará o réu, e essa sentença interrompe o prazo prescricional
que começara a correr novamente depois da denúncia. Se, impronunciado o acusado,
houver recurso, e a instância superior o pronunciar, certamente a decisão
interrompe o prazo, o mesmo ocorrendo no caso de absolvição sumária (art. 411),
reformada
por aquela, pronunciando o réu. Se este for pronunciado e recorrer, a decisão
que mantiver a pronúncia interrompe também o curso prescricional - é o que reza
o inc.
III.
Quanto à sentença condenatória recorrível, já mais de uma vez a invocamos.
Fluindo o prazo, após o recebimento da denúncia ou queixa, a primeira causa
interruptiva
que se segue - não se tratando de processo em que hápronúncia - é a sentença
condenatória recorrível. Observa com acerto José Frederico Marques que o acórdão
embargado
é também sentença recorrível e, portanto, interrompe a prescrição, já o mesmo
efeito não tendo o recurso extraordinário, que não suspende a condenação,
passando-se
a contar desta, e pela pena que ela fixou, a prescrição da pretensão executório-
penal.
De acordo com a redação dos incs. 11, lU e IV, cremos que a interrupção
se opera com o ato, desnecessária sendo sua intimação às partes.
O inc. V constitui outra circunstância interruptiva: o início ou
continuação do cumprimento da pena. Tomando-se res judicata a sentença, o novo
prazo que
começou a correr se interrompe com a prisão (no país ou no estrangeiro, por via
de extradição) ou pelo fato de prosseguir o cumprimento da pena.
É também causa interruptiva a reincidência (art. 63). O preceito é
salutar. Como já tivemos ocasião de dizer, uma das razões da prescrição é o
decurso de tempo
para o delinqüente, que, não sendo alcançado pela justiça, conduz-se durante
anos de modo escorreito, demonstrando, em regra, que o efeito da pena a cumprir
já foi
alcançado. Ora, se o indivíduo, nessas condições, torna a ser condenado, não se
justifica que cesse o jus puniendi estatal. Interrompe-se a prescrição na data
do
segundo crime. Trata-se de causa de caráter personalíssimo e por isso
incomunicável aos co-partícipes - soa o § 1.°. Quer isso dizer que, em caso de
co-participação,
correndo a prescrição, o fato de um dos co-partícipes praticar novo crime
interrompe-a somente em relação a ele, prosseguindo o lapso quanto aos demais.
Idêntica situação para o inc. V, pois o início ou continuação do
cumprimento da pena de um dos participantes não importa em interrupção para os
demais. Assim,
se um deles for preso, não interrompe a prescrição para os demais, inovação
trazida pela reforma de 1984, corrigindo injustiça da redação primitiva.
Quanto às outras causas interruptivas, são comunicáveis por força do mesmo
dispositivo.
O mesmo parágrafo versa crimes conexos, objeto de único processo, para
declarar que a interrupção relativa a um deles estende-se aos outros. Trata-se
de princípio
geral, não comportando exceção. Observe-se que a lei fala expressamente em
crimes conexos, objetivando, pois, a conexão real ou substancial, e não a
simplesmente
formal ou determinada por conveniências processuais.

230. Crimes de imprensa. Em matéria de crimes de imprensa, a lei anterior,


no art. 52, consagrava, a bem dizer, a impunidade, uma vez que fixava o prazo
absurdo
de dois meses para a prescrição da ação - tendo nós, então, tecido comentários
que hoje não têm cabida. É exato que, posteriormente, a Lei n. 2.728, de 16 de
fevereiro
de 1956, dilatara o prazo para um ano, o que ainda era insuficiente.
Hoje, vigora a Lei n. 5.250, de 9 de fevereiro de 1967, modificada pelos
Decretos-lei n. 207, de 27 de fevereiro de 1967,510, de 20 de março de 1969,
pela
Lei n. 6.071, de 3 de julho de 1974, pela Lei n. 6.640, de 8 de maio de 1979, e
pela Lei n. 7.300, de 27 de março de 1985.
Fixou ela o prazo prescricional da ação em dois anos, contado da data da
publicação ou transmissão; e da condenação, no dobro do tempo em que esta for
fixada
(art. 41), o que nos parece razoável.
No § 1.° desse artigo, trata da caducidade do direito de queixa ou
representação, que se opera em três meses, após a data aludida da publicação ou
transmissão.
Nas alíneas a e b desse parágrafo, cogita da interrupção da caducidade, e
no § 3.° trata dos prazos para os periódicos que não indiquem a data, declarando
que a prescrição e a caducidade começarão a correr do último dia do mês ou outro
período a que corresponder a publicação.
A atual lei é sensivelmente superior à ab-rogada, já por dilatar os
prazos, já por dispor melhor a matéria.
Todavia ela está subordinada ao Código Penal, ex vi do art. 12 deste e do
seu próprio art. 48, desde que não disponha de modo contrário. Assim, por
exemplo,
ela se referiu apenas à interrupção da caducidade do direito de queixa ou
representação, silenciando quanto à da prescrição, de modo que, por força
daqueles dispositivos,
é aplicável o art. 117 do Código, como aplicáveis são os arts. 115, 116 e
outros.

231. Crimes falimentares. Revezam-se os julgados dos Tribunais dos Estados


e do Pretório Excelso acerca da prescrição do delito falimentar. Dispõe a Lei de
Falências no art. 199: "A prescrição extintiva da punibilidade de crime
falimentar opera-se em dois anos. Parágrafo único. O prazo prescricional começa
a correr
da data em que transitar em julgado a sentença que encerrar a falência ou que
julgar cumprida a concordata". O art. 132, em seu § 1.°, declara qual o prazo
desse
encerramento: "Salvo caso de força maior, devidamente provado, o processo de
falência deverá estar encerrado dois anos depois do dia da declaração".
Duas correntes se formaram a respeito. Uma esteia-se na disposição do art.
199: enquanto não encerrada, por sentença, a falência, não corre a prescrição -
como bem claro deixa esse artigo. Não se objete com a iniqüidade de um processo
criminal, pendente durante anos a fio sobre o falido; este, como interessado
maior
que é, tem meios de promover o encerramento da falência. Se não o fez, não se
pode por isso prevalecer de sua inércia.
A outra corrente insiste em que a matéria não é regulada apenas pelo art.
199, pois, se existe esse mandamento legal, outro há também imperativo, que
impõe
esteja a falência encerrada no prazo de dois anos, a contar de sua declaração,
salvo caso de força maior. E mesmo esta exceção destina-se apenas a possibilitar
o
processo de liquidação da falência, além daquele prazo. Acrescente-se que a
desídia e a inércia, procrastinando indefinidamente o processo, não devem
reverter contra
o falido, não sendo exato que ele pode promover o encerramento, pois forças
muito maiores que a sua estão presentes na falência. Conseqüentemente, é
estranho fazer-se
o lapso prescricional depender da vontade da pessoa, de manobras e expedientes
de interessados ou da desídia dos que devem zelar pela marcha normal do processo
falimentar.
Assim, se há disposição que diz que este deve estar encerrado no prazo de
dois anos, o lapso prescricional deve ser contado dessa data, ainda que não
tenha
havido encerramento, pois o não haver cumprido a lei não é razão para se
declarar inexistente seu comando.
Para a primeira corrente, a prescrição consuma-se no prazo de dois anos,
depois do encerramento da falência. Para a segunda, ela se esgota no prazo de
quatro
anos, após a declaração da falência: dois anos, dessa data até o dia em que
devia estar encerrada (art. 132, § 1.°) e mais dois anos, a contar dessa data
(art. 199
e parágrafo único). A favor da primeira opinião inúmeros são os julgadosl7. Não
menos numerosos, os que sustentam a outra.
Difícil é, no debate, trazer argumento novo. Filiamo-nos à segunda
corrente. Parece-nos que ela harmoniza melhor os textos da lei falimentar; é
mais consoante
com a natureza do instituto da prescrição e evita a iniqüidade de um processo
penal eternamente em perspectiva contra o falido.
De fato, não cremos que tão-só a interpretação gramatical ou lexicológica
do art. 199, parágrafo único, resolva a questão, pois não se pode fazer tábua
rasa
do art. 132, § 1.°; ao contrário, eles devem harmonizar-se. Depois, é contra a
índole do instituto que ele fique dependendo da vontade da pessoa, da solércia
ou
inércia do Ministério Público ou do juiz, ou de expedientes de interessados.
Finalmente, porque, a se adotar a data do trânsito em julgado da sentença de
encerramento
da falência, ter-se-á, na maior parte das vezes, consagrada a
imprescritibilidade dos crimes falimentares, sem se saber por que razão. É
chocante pensar-se que um
falido que cometeu o crime de gastos excessivos com sua família, em relação ao
seu cabedal (Lei de Falências, art. 186, I), e cujo processo se arrastou por
vinte
anos, possa ainda ser processado por esse delito, ao passo que, se esse falido
houver assassinado alguém, estará, no mesmo lapso, livre de punição.
Se a segunda exegese melhor harmoniza nossas leis, estamos que deve ser
preferida. Consagra-a hoje o Supremo Tribunal Federal, na Súmula 147: "A
prescrição
de crime falimentar começa a correr da data em que deveria estar encerrada a
falência, ou da do trânsito em julgado da sentença que a encerrar ou que julgar
cumprida
a concordata".
Qualquer que seja a opinião que se adote, como se falou no número
anterior, as regras relativas à prescrição, estatuídas pelo Código, aplicam-se
aos delitos
falimentares, no silêncio do respectivo diploma. Assim, v. g., decorrido o prazo
de um ano depois da data em que a falência devia estar encerrada, se recebida a
denúncia do Ministério Público, o prazo de dois anos interrompe-se, por força
dos arts. 177, I, e 10, do Código Penal, e dado o silêncio da lei falimentar.
Vale dizer, o prazo prescricional antes do oferecimento da denúncia, para
os crimes falimentares, é de três anos da data da declaração da quebra, sendo um
ano para o período em que deveria estar encerrada a falência, quando se iniciará
o prazo de dois anos para a propositura da ação penal.

VI
DA EXTINÇÃO DA PUNIBILIDADE E) REPARAÇÃO

SUMÁRIO: 232. Retratação. 233. Subsequens matrimonium.

232. Retratação. Os incs. VI, VII e VIII do art. 107 têm por fundamento a
reparação devida ao ofendido. Não obstante o ressarcimento do dano não ser causa
de extinção de punibilidade, a lei aqui abre exceções, como se verá a seguir.
O primeiro caso é a retratação. Essa é o ato de retratar, que, ao lado de
outro significado, tem o de retirar o que disse, desdizer-se, confessar que
errou
etc.
Exposto isto, vê-se logo qual o fundamento da causa extintiva: embora não
se trate de arrependimento eficaz, não deixa de haver arrependimento. Há um
impulso
honesto em declarar que se foi leviano, que não se deveria ter ofendido etc.
Para a vítima, também é melhor essa reparação do que a proporcionada pela
sentença,
que não tem o mesmo valor, conforme as circunstâncias, o meio social etc. Ela é,
sem dúvida, mais ampla. Quanto aos crimes de falso testemunho e falsa perícia,
mais
proveitosa que a condenação do réu, para a justiça, é a apuração definitiva da
verdade.
Os crimes em que a lei admite a retratação são os definidos nos arts. 138,
139 e 342, conforme o art. 143 e o § 3.° do citado art. 342. São os de calúnia,
difamação e falso testemunho ou falsa perícia, que não são puníveis se antes da
sentença o agente se retrata ou declara a verdade.
Excetuou a lei o delito de injúria (art. 140); a razão comumente aduzida é
que, ao contrário da calúnia e da difamação, não existe nela um tema probandi.
Realmente,
enquanto a primeira é a imputação falsa a alguém de fato definido como crime, e
a difamação é a imputação consciente de fato ofensivo à reputação, a injúria é
juízo
que se faz de uma pessoa; não há a atribuição de um fato. Se é exato que, às
vezes, ela envolve fatos, como quando se diz, por exemplo, que alguém é
caloteiro, eles
se diluem ou são expressos por forma genérica, ou subentendidos.
Todavia a razão não é bastante. Desde que retratação implica
arrependimento, este não é privativo de quem imputou um fato, mas também de quem
emitiu juízo
ou opinião. A retratação não é apenas ensejada pela falsidade, mas também pelo
comportamento leviano ou apressado. É sempre uma confissão ou mea culpa.
Lembra, a propósito, Basileu Garcial que a oportunidade concedida ao
ofensor, pelo art. 144, de dar explicações ao ofendido quando este as pedir, em
se tratando
de expressões ambíguas, proporciona àquele retratação indireta. Embora
retratação seja uma coisa e explicação em juízo, outra, é exato que se poderá,
em caso de
injúrias equívocas, chegar-se a idêntico resultado.
Diga-se o mesmo da conciliação (CPP, art. 520) - não obstante distinguir-
se da retratação, que é ato unilateral, enquanto ela é bilateral- constituída
pela
harmonização de ofensor e ofendido.
A atual Lei de Imprensa não seguiu o exemplo do Código. Definindo os
crimes de calúnia, difamação e injúria (arts. 20, 21 e 22), dispôs no art. 26:
"A retratação
ou retificação espontânea, expressa e cabal, feita antes de iniciado o
procedimento judicial, excluirá a ação penal contra o responsável pelos crimes
previstos nos
arts. 20 a 22".
Nos §§ 1.0 e 2.0 disciplina a retratação.
Esta é pessoal e, por isso, aproveita apenas ao que se retratou, não se
comunicando aos co-partícipes, quando houver co-participação na calúnia ou na
difamação.
Já o mesmo não sucede com o falso testemunho ou falsa perícia, quando a
retratação de um co-partícipe aproveita aos demais, pois extingue a
possibilidade do
dano existente na afirmação falsa anterior. Entretanto, se a coparticipação se
deu por via de suborno, não se comunica a retratação, persistindo o delito do
art.
343.

233. "Subsequens matrimonium". É o casamento a maior reparação que o


agente pode conceder à ofendida, nos delitos contra os costumes. Dandolhe o
nome, ele
a protege, pondo-a a salvo do menosprezo social, ou, pelo menos, da
desconfiança, tributo invariável que lhe é cobrado, na desgraça que a aflige.
Acerca dessa causa extintiva da punibilidade tivemos ocasião de, em
outro livro, dar maior desenvolvimento.
Como se verifica do dispositivo, tal causa não se estende a todos os
delitos do Título VI, ficando fora os dos Capítulos IV, V e VI.
É mister que o casamento seja realizado. Não basta a vontade de o réu
casar; é necessário que case; tanto basta para dizer que, se a ofendida não
anuir a essa
vontade, por si ou seu representante, cumprirá ele a pena, pois a causa
extintiva é estabelecida primacialmente em benefício dela. No caso de ser esta,
ainda, menor,
e injusta a recusa do representante, pode o juiz suprir o consentimento (CC,
art. 188).
Em qualquer tempo, o casamento aproveita ao agente: antes da ação, a
impedirá; durante a ação, a deterá; e, depois da condenação, evitará seu
cumprimento.
Na última hipótese, só a pena se extingue, permanecendo a condenação para o
efeito da reincidência e negação do sursis.
Anteriormente à vigência da Lei n. 6.416, o casamento da ofendida com
terceiro não gerava efeitos, pois o Código Penal referia-se, expressamente, ao
casamento
do agente com aquela (art. 108, VIII, da redação primitiva). Foi acrescentado
pela nova lei, entretanto, um novo inciso a este dispositivo, o IX (redação
primitiva),
que determina a extinção da punibilidade pelo casamento da ofendida com
terceiro, nos crimes referidos no inc. VIII (redação primitiva), salvo se
cometidos com violência
ou grave ameaça e se ela não requerer o prosseguimento da ação penal no prazo de
sessenta dias a contar da celebração.
A reforma de 1984, sabiamente, manteve a inovação introduzida pela
mencionada Lei n. 6.416, agora pelo art. 107, VIII, fazendo um correto
acréscimo: obsta
também o prosseguimento de inquérito policial, enquanto a lei anterior referia-
se apenas à ação penal.
Desta forma, mantida a regra do antigo inc. VIII do art. 108 (atual art.
107, VIII), foi introduzida uma nova figura jurídica no Código, qual seja a do
casamento
da ofendida com terceiro. Frise-se que o subsequens matrimonium com terceiro não
extingue a punibilidade nos casos de estupro, de atentado violento ao pudor e de
rapto violento, pois que delitos cometidos com violência ou grave ameaça. Ocorre
o inverso com a posse sexual mediante fraude, a sedução, a corrupção de menores
e o rapto mediante fraude ou consensual.
Deve ser válido o matrimônio. Se ele for anulado, desaparece a causa
extintiva da punibilidade, devendo a pena ser cumprida ou a ação intentada, se
não tiver
ocorrido a prescrição. O contrário é favorecer a fraude do réu: aqui, evita a
condenação pelo matrimônio; lá, se furta às obrigações deste, anulando-o. Assim

julgou o Pretório Excels05 e se pronuncia também o eminente Nélson Hungria.
Advirta-se, ainda, que a anulação do casamento por coação é coisa
estranha; é pôr em choque a lei civil e a penal. Com oportunidade, Pozzolini
dizia tratar-se
de "consideração evidentemente unilateral e absolutamente inexata, pois
confunde-se consentimento não-livre com consentimento não-espontâneo. Ele não é
espontâneo,
por ser ditado pela necessidade de subtrair-se ao processo e à pena, mas não é
por isso menos livre".
O casamento com o ofensor é causa objetiva que exclui o jus puniendi,
abrangendo os co-participantes. Entre várias outras razões que podem ser
levantadas em
prol dessa extensão está a já apontada de que essa causa não visa à pessoa do
réu, mas à da ofendida: seu fim principal ainda é a vítima; é a reparação o que
se
lhe quer proporcionar.
Que se dizer, então, desse benefício quando, feita pela vítima a
representação, sobreviesse o casamento, mas devesse o processo prosseguir em
relação aos co-participantes?
Não se toma visível que nenhum efeito moral e social teria esse casamento?
Os efeitos de tal ocorrência seriam até mais nocivos à vítima, pois,
desaparecido da trama criminosa o agente principal, pelo casamento realizado, a
ação dos
co-participantes teria de ser salientada e ressaltada, para contra eles vingar o
processo, assistindo a tudo isso a vítima e seu esposo que outra coisa não
desejam
senão o silêncio sobre o fato.
Se a lei tomou regra o procedimento privado nesses crimes, atendendo,
antes de tudo, ao interesse da vítima, não pode coerentemente deixar de estender
o benefício
aos autores.
O parágrafo único do art. 74, da Lei n. 9.099, apresentou mais uma causa
de extinção da punibilidade, qual seja, a homologação do acordo feito entre as
partes,
na forma do art. 74, em se tratando de ação privativa do ofendido ou dependente
de representação. Portanto, em tal hipótese, a composição dos danos produz como
efeito
a extinção da punibilidade.

VII
PERDÃO JUDICIAL

SUMÁRIO: 234. Conceito. 235. Natureza jurídica. 236. Extinção da punibilidade.

234. Conceito. O perdão judicial pode ser traduzido como uma faculdade
dada pela lei ao juiz de, declarada a existência de uma infração penal e sua
autoria,
deixar de aplicar a pena em razão do reconhecimento de certas circunstâncias
excepcionais e igualmente declinadas pela própria lei.
O perdão é, em primeiro lugar, uma faculdade dada ao julgador de não
aplicar a pena, daí por que nominado como perdão judicial. Depois, tem como
pressuposto,
obviamente, o reconhecimento de um fato delituoso e sua autoria: por primeiro o
juiz reconhece o crime e a autoria, condenando o acusado, para, depois,
aplicando
o perdão, não impor qualquer sanção. Por derradeiro, embora faculdade judicial,
a concessão fica bitolada ao reconhecimento de certas circunstâncias
preestabelecidas
pela lei.
As hipóteses não são numerosas: homicídio culposo (art. 121, §§ 3.° e
5.°), lesões corporais culposas (art. 129, §§ 6.° e 8.°), crimes decorrentes de
outras
fraudes (art. 176, parágrafo único), receptação culposa (art. 180, §§ 1.° e
3.°), subtração de incapazes (art. 249, § 2.°), crimes falenciais (Dec.-Iei n.
7.661,
art. 186, parágrafo único) etc.
Por sua vez, as circunstâncias que ensejam a faculdade podem ser várias:
as conseqüências ao próprio agente, como nos casos de homicídio e lesões
culposas,
e restituição do menor sem maus-tratos ou privações, na subtração de incapazes,
a instrução insuficiente e o comércio exíguo, no crime falencial etc.

235. Natureza jurídica. Sobre a natureza jurídica formaram-se quatro


orrentes, todas elas com inúmeros e doutos seguidores.
1) Para uma primeira corrente, a mais numerosa, a sentença que concede o
perdão judicial é condenatória, subsistindo os seus efeitos quanto à
reincidência,
lançamento no rol dos culpados e responsabilidade pelas custas processuais.
2) Uma segunda corrente propugna no sentido de que a sentença que concede
o perdão judicial é condenatória, mas libera o réu de todos os seus efeitos,
entre
os quais a responsabilidade pelas custas, o lançamento no rol dos culpados e o
referente à reincidência.
Em número de seguidores é a que vem em segundo lugar.
3) Para uma terceira corrente a sentença que concede o perdão judicial é
absolutória. Partem os seguidores do princípio de que uma sentença condenatória
necessariamente tem que impor uma reprimenda.
4) A derradeira corrente afirma que a sentença aplicadora do perdão
judicial é declaratória de extinção da punibilidade, excluindo-se dela todos os
efeitos
penais. Para os partidários não é nem condenatória nem absolutória, mas
extintiva da punibilidade.
Perfilhamos a primeira corrente, justamente aquela que, pelo número de
seguidores, forma um caudal: é uma decisão condenatória, pois reconhece a
procedência
do fato ilícito e seu autor, apenas excluindo os efeitos principais, porém
mantém os efeitos secundários.
Significativa a manifestação de Damásio E. de Jesus: "Para nós o perdão
judicial constitui causa extintiva da punibilidade a ser decretada pelo juiz na
própria
sentença condenatória. Significa que o juiz deve efetivamente condenar o réu,
somente deixando de aplicar a sanção penal. A fixação da pena é desnecessária,
uma
vez que não teria nenhuma validade. Nos termos da nossa posição, a sentença que
concede não é absolutória nem meramente declaratória da extinção da
punibilidade.
Somente se perdoa quem errou. A simples concessão do perdão judicial já
significa que o juiz entendeu existir o delito. A não ser assim, inexistiria
diferença entre
sentença absolutória e concessiva de perdão judicial".
O perdão judicial é causa extintiva da pretensão executória, significando
que o Estado renunciou, através do juiz, da pretensão de impor uma pena a quem
cometeu
um crime, reconhecido judicialmente.

236. Extinção da punibilidade. A reforma de 1984 estabeleceu o perdão


judicial como causa de extinção da punibilidade (art. 107, IX), demonstrando que
o pensamento
do legislador foi o de afastar a sua natureza condenatória, estabelecendo a
condição de declaratória da responsabilidade e extintiva da punibilidade.
Ricardo Andreucci, um dos autores da reforma, afirmou: "Daí por que não se
pode falar em sentença condenatória, pois tal não é aquela que fixa um juízo
sobre
a culpabilidade, mas não condena, remanescendo, portanto, ao mesmo tempo, como
declaratória de responsabilidade e extintiva de punibilidade".
E, completando o pensamento, o art. 120 de maneira expressa declarou que a
outorga do perdão judicial não é considerada para os efeitos da reincidência, ou
seja, contrario sensu, declara explicitamente que o acusado conserva a sua
condição de primário.

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Direito.
Justitia.
Revista Forense.
Revista do Supremo Tribunal Federal.
Revista dos Tribunais.
Revue de Science Criminelle.
Rivista Italiana di Diritto Penale.
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Tribuna da Justiça.

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