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Alceu Amoroso Lima

MEDITAÇÃO
SÔBRE O
MUNDO INTERIOR

1954

Livraria AGIR Editôra


Rio de Janeiro
Regnum Dei intra vos est
(Lc. XVII, 21)
Orelha
Eis um dos mais harmoniosos e dos mais profundos
livros de quantos escreveu ALCEU AMOROSO LIMA, o
grande crítico literário que se superou em filósofo
autêntico e se realizou em líder intelectual, cuja influência
é a maior já alguma vez exercida por um pensador em
nossa pátria, pois se estende ao longo de quatro gerações e
numa área de atividade que tudo compreende, desde a
política e a economia até a vida espiritual mais intensa, a
contemplação e a ação religiosa.
Meditações sôbre o mundo interior não é livro feito
de recortes e, se apareceu antes em jornal, foi sob a forma
de capítulos, já elaborados dentro de um plano intencional
de unidade. A obra está submetida a uma rota fielmente
seguida e a um ritmo que se vai tornando cada vez mais
intenso, à medida que as páginas se sucedem.
De comêço, o Autor fala-nos dos obstáculos que se
antepõem, em nossos dias, à realização do mundo interior.
São êles representados pelo liberalismo e a licenciosidade,
duas corruptelas da verdadeira liberdade, que deve ser
defendida como um dos bens supremos do nosso mundo
interior; pelo moralismo, que se exprime na primazia das
obras, na preeminência da operação sôbre o ser, do Ethos
sôbre o Logos; pelo filosofismo, diminuição da filosofia
sob a aparência de a elevar; pelo politicismo, que asfixia a
vida interior, enquadrando o homem em instituições
onipotentes como o Estado ou em limites instransponíveis
como a Sociedade; e pelo economismo, que reduz o
homem a um autômato, a uma coisa, a simples
instrumento de uma coletividade.
A vitória contra semelhantes obstáculos só se obterá
através da restauração dos direitos do mundo interior, o
que depende de um tríplice condição: de uma reta
concepção da divindade, que se oponha a um tempo, ao
deísmo, ao panteísmo e ao ateísmo; da harmonia
psicológica ou da sã hierarquia dos três momentos capitais
de nosso contato com o mundo, tanto exterior como
interior -- a inteligência, a sensibilidade e a vontade; e do
meio ou das condições que cercam o nosso corpo e o
nosso espírito, o alheio, o outro, o não-eu, notas
indispensáveis ao nosso perfeito movimento interior.
Estabelecidas assim as exigências para a expansão
livre da vida de intimidade da pessoa. ALCEU
AMOROSO LIMA fala dos fundamentos do mundo
interior: o Silêncio, a Solidão e a Santidade. São os quatro
capítulos centrais da obra, e os mais belos. Por isso, não
lhe anteciparemos o conteúdo, a fim de que o leitor
experimente, em plenitude o seu sabor.
Após referir-me às conseqüências da vida interior
bem vivida -- ela aguça a sensibilidade, alarga a
inteligência e fortalece a vontade -- o autor como que
deixa transportar pela inspiração de algumas constantes de
sua própria meditação, escrevendo, então, sôbre a
oposição presença-ausência, propriedade acidental do ser
que a vida interior permite sentir, conhecer e querer, três
capítulos que, por si só, bastariam para colocá-lo ao nível
dos maiores filósofos de nosso tempo. E o tom de vivência
e profundidade é mantido até o final da obra, mesmo
quando, num esfôrço por retomar a exposição quase
racional, ALCEU AMOROSO LIMA tenta expor, mas na
verdade transmite ao leitor e faz que êste viva com o autor
a Sabedoria da vida interior a quatro dimensões: a
evocação ou passado, a antecipação ou futuro, a
profundidade ou meditação, a elevação ou prece.
Mas diríamos uma falsa idéia da obra se não
acrescentássemos que é livro para todo gênero de leitores,
qualquer que seja o grau de conhecimento de cada um,
pois a cultura e a experiência que lhe servem de alicerce
estão de tal modo assimilidas, que o prazer intelectual de
sua leitura é superado pelo consôlo e edificação que
proporcionam as reflexões íntimas, as comparações, os
exemplos da vida cotidiana, que entretecem suas páginas.
A verdade é que estas Meditaçãoes sôbre o mundo
interior desvendam-nos, sem que o autor de certo o
procurasse ou o desejasse, o mistério do êxito de sua
própria vida e da fecundidade de sua atuação. Quem
soube, com tal minúcia e de modo tão amplo, descrever o
mundo interior, sua natureza, suas condições, suas
conseqüências, suas dimensões, seguramente já o realizou
em si, através do Silêncio, da Solidão e da procura
humilde, tenaz e constante da Santidade. E assim tem
podido levar aos outros o fruto de sua intimidade com a
Sabedoria.
ÍNDICE

Págs.
Explicação…………………………………………………………..………………. 7
Cap. 1º -- Liberalismo …………………………………………..……………...... 11
Cap. 2º -- Moralismo ……………………………………………..…….……...…. 14
Cap. 3º -- Filosofismo …………………………………………………...…...……. 17
Cap. 4º -- Politicismo …………………………………………...…………………. 20
Cap. 5º -- Economismo ……..…………………………………...………...………. 23
Cap. 6º -- O Hóspede …………………………………………….………..………. 26
Cap. 7º -- Equilíbrio …………………...…………………………………..………. 30
Cap. 8º -- O Meio …………………..………………………..……………………. 34
Cap. 9º -- Silêncio -- I ………………………………………..…………...………. 38
Cap. 10º -- Silêncio -- II …………………………………...…...………..……..…. 42
Cap. 11º -- Solidão …………………….……………………………...………..…. 45
Cap. 12º -- Santidade ………………………………….…...………..…..…..…. 49
Cap. 13º -- Conseqüências ……………………………..……...……………..…. 53
Cap. 14º -- Ausência ……………………………………...………………..…. 57
Cap. 15º -- Presença -- I ……………………………..……...……………..…. 61
Cap. 16º -- Presença -- II …………………………………....………………. 64
Cap. 17º -- Sabedoria …………………………………….…...…………..…. 68
Cap. 18º -- Saudade …………………………………….………………….…. 72
Cap. 19º -- Futuro …………………………………….….…..…………....…….. 76
Cap. 20º -- Meditação …………………………………….…..………….……. 80
Cap. 21º -- A Oração implícita ………………………..……...…………….……. 84
Cap. 22º -- A Oração explícita …………………………….....………….……...… 87
EXPLICAÇÃO
Os capítulos que se seguem foram publicados na
Tribuna da Imprensa, durante o segundo semestre de
1953 e dela reproduzidos por sua generosa autorização.
Foram publicados sob o título de “ Bilhetes do Mundo
Interior” que a seção continua a ter, e em seguida aos do
Velho e do Novo Mundo.
Costumamos dividir o mundo moderno em Velho e
Novo Mundo; em mundo totalitário e mundo democrático;
países para lá e para cá da Cortina de Ferro; mundo
socialista e mundo capitalista; Oriente e Ocidente; ou
mais amplamente ainda, em mundo moderno e mundo
eterno.
Tôdas essas divisões são mais ou menos legítimas ea
última se aproxima muito da que tomamos por base dêste
ensaio, o mundo exterior e o mundo interior. Aqui, porém,
prescindimos da própria noção de tempo e colocamos o
homem perante os dois mundos que constituem a sua
própria natureza completa, pois o mundo interior não é
uma opção, mas uma síntese. E o homem completo, isto é,
o homem normal, é aquêle que vive interiormente a sua
vida exterior e não sepulta em si, egoísticamente, a sua
vida interior.
É certo, entretanto, que uma das marcas do nosso
tempo é a primazia da vida exterior sôbre a vida interior,
quando não o esmagamento desta por aquela. O maior
perigo que corremos, hoje em dia, -- em face do curso que
vai tomando o progresso da técnica, com a absorção do
homem pelo Estado, pelo Partido ou pela Fábrica, -- o
maior perigo é precisamente essa anulação da
personalidade pela extroversão sistemática do homem e
de sua vida profunda.
Um biologista materialista, Jean Rostand, resumindo
as conclusões do seu próximo livro, Ce que je crois, rasga
os seguintes horizontes para a ciência biológica de
amanhã, que vai tentar fazer aquilo com que Bernard
Shaw sonhava ao dizer que “what can be done with a wolf,
can be done with a man” ! Isto é, se foi possível fazer de
um animal feroz como o lôbo um animal manso como o
cachorro, também será possível fazer de um ser
imperfeito, como o homem de hoje, um ser perfeito, como
o homem de amanhã. Esquecido, o sofista do século XX,
de que foi o homem que fêz do lôbo um cachorro e não o
próprio lôbo… E, portanto, só Deus, dizemos nós os que
não julgamos que o homem seja um deus, poderia mudar
a natureza humana, como só a Sua graça pode
aperfeiçoá-la, ajudando a própria virtualidade dessa
natureza. É possível que venham a ser um fato êsses novos
horizontes que os biologistas abrem às intervenções do
homem sôbre a natureza, inclusive a própria natureza
humana. Jean Rostand chega a crer que “aparentemente
se poderá prolongar, no futuro, de modo sensível a
duração da vida humana…; outros muitos problemas
serão resolvidos: determinar-se-á à vontade o sexo das
crianças… talvez a ectogênese ou a gravidez de bocal
(como Aldous Huxley já previra, com humor, no seu This
brave New World). Pelo emprêgo dos hormônios ou de
medicamentos apropriados ou ainda por uma correção
cirúrgica dos centros nervosos, modificar-se-ão a
personalidade, o temperamento, o caráter. Suscitar-se-ão
artificialmente aptidões e virtudes” (sic).
Êsse biologista materialista, que acredita serem as
virtudes consequências dos hormônios, como Virchow, no
século passado, fazia do bem e do mal secreções como o
açúcar ou o vitríolo, não fecha, entretanto, os olhos aos
perigos dessa ditadura da técnica biológica.
“Será difícil”, diz êle, “impedir que a coletividade
não abuse do seu poder em relação àqueles que a
constituem. Haverá sempre um equilíbrio difícil de
alcançar entre a preocupação do interêsse coletivo e o
respeito da liberdade individual… Não valeria a pena que
a natureza fizesse de cada indivíduo um ser único, para
que a sociedade reduzisse a humanidade a não ser mais
do que uma coleção de iguais.”
Ou, como nós diríamos, não valeria a pena que Deus
criasse o homem à sua imagem e semelhança, para que o
homem se reduzisse apenas à semelhança e imagem dos
animais… E que tivesse colocado no coração humano o
amor da liberdade para que êle procurasse apenas novas
formas de escravidão.
A libertação do homem não está mais nas coisas.
Está em si próprio. Não está na vida exterior. Está no seu
mundo íntimo. Não está na técnica biológica ou física.
Está na virtude. O progresso da humanidade não depende
da perfeição daqueles que a souberem manejar. A técnica
não é um bem ou um mal em si. É uma arma de dois
gumes, que serve cegamente ao bem e ao mal, conforme a
luz dos olhos de quem a manejar.
Mas tanto maior é o poder que essas técnicas, já
agora de ordem biológica, colocam nas mãos do próprio
homem, quanto maior a ameaça às liberdades, aos
direitos, às variedades da pessoa humana. E tanto maior a
submissão do homem às fôrças por êle próprio
desencadeadas na matéria do seu próprio corpo ou da
natureza física, quanto mais precisamos desenvolver em
nós as potências do mundo interior.
Eis porque uma meditação sôbre o mundo interior
me parece, a esta altura da vida e dos acontecimentos,
muito mais urgente e necessária do que tôda meditação
sôbre o mundo passado, moderno ou futuro…
A. A. L.
Mosela, outubro, 1953.
Cap. 1.º
LIBERALISMO

O século passado converteu a liberdade em


liberalismo e o nosso a confunde com licenciosidade.
Liberalismo e licenciosidade são duas corruptelas da
verdadeira liberdade. O liberalismo, como posição
filosófica, com tôdas as ramificações conhecidas, --
liberalismo econômico, político, moral, religioso, etc., --
coloca a liberdade como valor supremo, sem distinguir
entre liberdade de opção e liberdade de superação. A
liberdade de opção, que nos permite escolher entre um
caminho e outro sem estabelecer entre êles qualquer
hierarquia de valores, é apenas um momento inicial no
desenvolvimento dêsse poder, que vai gradativamente
distinguindo a matéria viva da matéria inanimada, e os
sêres superiores dos sêres inferiores. A hierarquia dos
valores, no seio da própria natureza, já se faz pelo próprio
acréscimo do poder de liberação. Mas a liberdade de
opção no mesmo nível, sem distinguir valores senão pelo
capricho das nossas tendências, é um momento inferior da
liberdade. Esta só se torna realmente o que é, quando
passa ao estágio superior de sua evolução. Só como
superação de valores positivos, isto é, só pela liberdade de
superação, é que encontramos a verdadeira natureza dêsse
conceito capital para o homem e para a sociedade. A
liberdade de superação não se limita a escolher sem
injunções da necessidade, mas também sem distinção de
valores, como faz a liberdade de opção. A liberdade de
superação distingue os valores e nos integra nos que
devem constituir a nossa autêntica finalidade,
distinguindo, portanto, o superior do inferior e não apenas
um do outro, como indistintos e iguais. Eis porque a
liberdade não é o valor supremo, se a considerarmos como
escolha indistinta. Mas pode sê-lo se a considerarmos
como escolha que nos integra na hierarquia intrínseca dos
valores, colocando o Bem acima do mal, o Eterno acima
do efêmero, Deus como a nossa finalidade suprema. A
liberdade se integra, pois, na verdade, quando considerada
como elemento de superação dos valores menores e de
nossa orientação para o verdadeiro e último Fim
extraterreno, de tôdas as nossas ações.
Restaurar a liberdade em sua grande dignidade
intrínseca e separá-la das suas corruptelas, eis um dos
grandes deveres de nosso tempo. Os negadores da
liberdade, os totalitários de todos os matizes, combatem a
liberdade como se ela se confundisse com o liberalismo ou
a licenciosidade. Devemos ao contrário, defendê-la como
um dos bens supremos do nosso mundo interior e que por
isso mesmo deve estender-se naturalmente à nossa vida
exterior.
Pois o mundo interior não se opõe ao mundo exterior
e sim ao mndo superficial, ao mundo frívolo, ao mundo
mundano, tão àsperamente condenado pelo próprio Cristo.
Se o mundo interior não é apenas o pólo oposto ao mundo
exterior, e sim a síntese do efêmero, do ativista, do parcial,
com o eterno, o contemplativo, o integral, é que constitui
também uma superação. A vida interior compreende
também a vida exterior, mas transfigurada,
transcendentalizada, colocada no plano dos valores
supremos, impregnada de eternidade. Cresce, pois,
desmedidamente a nossa responsabilidade na apreciação
dos acontecimentos ou das idéias, dos homens ou mesmo
das paisagens, quando tudo consideramos do ponto de
vista do nosso mundo interior, que é de fato um mundo
superior. É um ponto de elevação que se destaca dos
pontos de visão unilaterais e puramente terrenos e
temporais. O mundo interior é o da supratemporalidade. É
o dos valores, de todos os valores, mas impregnados de
um sentido de perenidade, de substancialidade e, enfim, de
sobrenaturalidade. O mundo interior é aquêle onde atua
primordialmente a Graça, que não destrói a natureza, mas,
ao contrário, lhe dá o seu sentido completo. Enquanto
vivemos de um modo puramente exterior, vivemos apenas
no plano da natureza. Vivendo uma vida interior, o mais
interior possível, transcendemos o plano da natureza sem o
diminuir em nada, mas dêle tirando, pela ação da Graça,
tudo o que realmente contém.
Cap. 2.º
MORALISMO
Vimos o verdadeiro sentido da vida interior e da sua
primazia sôbre a vida exterior, porque não se opõe a esta e
sim à vida fútil, à vida superficial. A vida exterior, a nossa
vida de ação, deve basear-se na vida interior, segundo um
velho lema da filosofia perene que nos ensina que a
operação segue o ente. Operatur sequitur esse. A operação
é uma conseqüência do ser. Antes de atuar é preciso
existir. E essa atuação depende, por conseguinte, da
existência. A qualidade daquela, da qualidade desta. É
precisamente a inversão dessa hierarquia de valores que
está na base da inconsistência do mundo moderno. Como
lembrou Romano Guardini, vivemos há quatro séculos, ao
menos, sob o signo do primado do Ethos sôbre o Logos,
quando a hierarquia natural dos valores é precisamente a
oposta. O Logos, que é a nossa relação com o ser, deve
preceder o Ethos, que é a nossa relação com o atuar e o
dever ser. O atuar é uma operação do ser. Lodo deve
seguir-se a êle e não precedê-lo. Tôda a tendência dos
séculos modernos tem sido no sentido contrário.
Primeiro a Moral, depois a Filosofia, depois a Política e
finalmente a Economia embargaram o passo à Religião, o
Ethos passou adiante do Logos, e com isso ficou
perturbada completamente a hierarquia natural dos
valores.
Primeiro a Moral tomou a dianteira da Religião. A
Religião, a partir do Renascimento e da Reforma, se foi
cada vez mais convertendo em uma ética, em uma norma
de costumes. A relação com Deus foi decaindo e dando
lugar a uma preocupação crescente com as relações
exclusivas com o próximo. “Ama a teu próximo como a ti
mesmo por amor de Deus”, eis o preceito divino. O amor
do próximo é precedido pelo amor de Deus e por êle se
justifica. A transformação gradativa da religião em ética
vai deixando cair, cada vez mais, o amor de Deus e
exaltando o amor do próximo por si mesmo, sem
referência a Deus. A moral vai, assim, quase que
inconscientemente, se substituindo à religião. A
austeridade dos costumes, o ascetismo, o puritanismo, vai
absorvendo a atenção e a preocupação de um cristianismo
reformado, e afastando-o da tradicional primazia do ofício
divino, da palavra divina, do Opus Dei. A dissociação
entre a Fé e as Obras, em vez de colaborar na defesa da
Fé, veio concorrer paradoxalmente para a primazia das
obras, para a preeminência da operação sôbre o ser, do
Ethos sôbre o Logos.
Tive ocasião de mostrar como em certas igrejas
protestantes dos Estados Unidos essa inversão de valores
era manifesta. A palavra do pastor tornava-se mais
importante que a renovação incruenta do sacrifício do
Cristo. O púlpito vinha dominar o altar. Há poucos meses
o National Geographic Magazine, tão espalhado entre nós
e, portanto, de fácil verificação, fazendo uma das suas
maravilhosas reportagens fotográficas, trazia um retrato da
velha igreja de São João, em Alessandria, pela qual tantas
vêzes passei em caminho de Mount Vernon, freqüentada
por Washington.
Êsse pequeno e venerável templo é perfeitamente
simbólico dessa transmutação de valores. O púlpito está
sôbre o altar e o domina inteiramente. O altar como que
desaparece. Passa a ser uma mesa sem importância. O que
se passa lá em cima, no púlpito, é que conta. A palavra do
pastor passa a ser muito mais importante que o sacrifício
da Redenção. O Opus hominis começa a predominar sôbre
o Opus Dei. E já não é mais o Côro coletivo que canta,
subordinado ao altar, e em tôrno dêle, como se vê nas
grandes catedrais da Idade Média e muito particularmente
nas igrejas de Espanha, onde o côro suntuoso ocupa o
centro da Igreja, -- como que começando a fazer
concorrência ao altar, se assim me posso exprimir, -- já
não é mais o Côro, é o púlpito isolado, do homem só, que
fala, lendo e explicando a palavra divina, mas segundo a
sua interpretação individual e humana.
O jansenismo, aliás, -- com a sua insistência continua na
moralização dos costumes, tão necessária como reação a
“libertinagem” do século XVII, mas tão perigosa quando
ultrapassa os limites do bom senso e afasta o pecador da
fonte de regeneração por excesso de moralismo, -- coloca-
se na mesma linha dessa inversão de valores que vai pouco
a pouco minando o prestígio da religião e confundindo-a
com a moral. E, à medida que nos aproximamos de nossos
dias, mais se nos depara essa sub-reptícia substituição da
religião pela moral, das nossas relações com Deus pelas
nossas relações com o próximo. Da operação dominando o
ser. A maior tentativa moderna dessa substituição é o
Positivismo, que tenta secularizar totalmente a religião,
criando a religião da humanidade e fazendo da Moral a
chave final da sua classificação das ciências, mas como
uma consequência e não como uma causa. E com a
supressão da Teologia. O eticismo tenta assim substituir-se
á Fé. E a vida exterior, a vida ativa, a norma dos costumes
passa a constituir o valor supremo em nossas vidas.
A vida interior, por falta de alimento substancial, vai
assim deperecendo até morrer e ser substituída pelo
ativismo desordenado que domina os nossos tempos.
Cap. 3.º
FILOSOFISMO
Se a decadência da vida interior em nossos dias provém,
antes de tudo, da substituição da vida religiosa pela vida
moral, como atividade mais alta do nosso ser, o segundo
passo no sentido dessa decadência foi a substituição da
moral pela filosofia, como valor supremo. À substituição
da religião pela moral, nos séculos XVI e XVII, seguiu-se
a substituição da moral pela filosofia, no século XVIII. E
por uma filosofia entendida como atividade suprema da
razão e da “razão pura”, sem qualquer ligação com outros
valores naturais ou revelados, moral, teodicéia ou
revelação sobrenatural. Foi a ação do conjunto de idéias
do século XVIII conhecido pela expressão “Aufklaerung”
e que podemos traduzir para o vernáculo como
Racionalismo. Pois essas Luzes, que a ideologia daquele
tempo invocava como valor supremo, eram a Luz da razão
natural.
Êsse naturalismo racionalista é que trouxe para o
pensamento moderno o conceito da supremacia da
atividade filosófica sôbre as outras duas atividades que
tradicionalmente a ultrapassavam: a Religião e a Moral,
nossos deveres para com Deus e nossos deveres para com
nós mesmos e para com o próximo.
Todo aquêle moralismo que a Reforma, no século XVI, e
que o jansenismo, no século XVII, tinham colocado no
ápice de nossa atividade, passava agora a ser subordinado
a um filosofismo, que se tornou a expressão mesma do
homem e da sua posição no universo. Foi então que
começou o culto do livro. Como foi então que o filósofo
ultrapassou o moralista, como êste sobrepujara o teólogo.
O culto do livro como livro, isto é, como expressão
máxima da razão humana, se traduziu, antes de tudo, pela
publicação de Enciclopédias e Dicionários, onde o
racionalismo tentou condensar a súmula de todos os
conhecimentos. Era uma renovação das Summas,
teológicas ou filosóficas da escolástica, mas num sentido
completamente antiescolástico. E tinha como intenção
substituir o Livro Divino, a Bíblia, por um livro humano, a
Enciclopédia ou o Dicionário. Nêle se supunha que todos
os conhecimentos podiam caber e todos reduzidos a itens,
a palavras, a conceitos, facilmente analisados pela razão
humana.
Sendo assim, tornava-se a filosofia a atividade suprema do
homem. A religião e a moral passavam a ser meros
capítulos da filosofia, como esta a ser uma atividade, que
se abria apenas para dois caminhos: o agnosticismo ou o
materialismo. Ou a concessão de que há domínios
trancados ao exercício da razão, como o da religião e da
moral, em que dominava apenas o sentimento e a
imaginação. Ou a afirmação categórica de que a razão é
apenas a expressão suprema da matéria e os dois pólos
esgotam a realidade: a realidade material fora de nós e a
realidade racional em nós. Mundo exterior e mundo
interior, no mesmo plano e aquêle conhecido por êste, mas
por seu lado constituindo a sua base e a sua origem.
Êsse filosofismo era uma diminuição da filosofia, sob
aparência de a elevar. Pois a limitava ao mundo dos
sentidos ou lhe impedia a entrada nos domínios que
ultrapassam as possibilidades da razão natural. A filosofia
passava a ser religião e moral. E dava entrada ao surto
mais exultante do arbítrio e do cepticismo.
A vida interior, dominada inteiramente pela razão ou pelo
sentimento, passava a oscilar entre a rigidez do
racionalismo, que teve no tempo a sua expressão máxima
em Voltaire, e a placidez do sentimentalismo, cuja
máxima expressão Rousseau. A vida interior do
filosofismo, como a vida interior do moralismo,
representavam uma diminuição da vida interior
compreendida dentro de uma hierarquia total de valores.
Assim como a primazia da moral sôbre a religião trazia a
primeira pedra ao novo edifício da natureza humana
baseado na relação de homem para homem e não do
homem para Deus – a primazia da filosofia sôbre a moral
e sôbre a religião fazia oscilar tôda estrutura da vida
interior, entregando-a aos caprichos da razão e do coração.
Desaparecia, aos poucos, a medida intrínseca dessa vida
interior, cujas raízes repousam, em última análise, não em
nós, mas na natureza das coisas, e portanto, afinal, em
Deus. Uma vida interior, sob o domínio do racionalismo
voltaireano ou do sentimentalismo de Rosseau, era uma
vida interior separada do mundo exterior, separada das
raízes comuns dos valores, reduzida ao puro capricho
individual. Não foi à-tôa que o romantismo sucedeu ao
racionalismo e ao sentimentalismo do século XVIII e que
a vida interior se desmandou – por vêzes magnificamente
expressa, mas nem por isso menos precária – na extra-
limitação de todos os valores, na extrapolação de todos os
limites. E como a hipertrofia é, em tudo, a precursora da
atrofia, e vice-versa, a decadência da vida interior se
seguiu normalmente à sua super-estimação pelo
racionalismo e pelo sentimentalismo. O filosofismo não
foi mais feliz que o moralismo na verdadeira configuração
da vida interior do homem moderno.
Cap. 4.º
POLITICISMO

Ao moralismo, que pretendia superar a religião pela


moral; ao filosofismo, que pretendia superar a religião e a
moral pela filosofia; vinha agora suceder o politicismo,
que pretendia superar religião, a moral e a filosofia, pela
Política, pela organização social, pelo Estado.
O século XIX ia ser o grande século teórico do
Estado. As instituições políticas passaram a desempenhar
as funções que as insituições religiosas representavam
outrora. O Estado substituiu-se à Igreja. E a política vinha
reivindicar a sua primazia sôbre a teologia, a ética ou a
filosofia. Tôdas essas atividades passavam, ainda de modo
tímido e indireto, a ser função das instituições sociais.
Augusto Comte já diz que o homem é uma abstração
e o que existe realmente é a humanidade. Cria a
sociologia, ou pelo menos dá-lhe um nome, para acentuar
nitidamente que o coletivo deve primar sôbre o individual
e o homem é apenas produto da sociedade, como vai, ao
longo do século, sustentar todo o movimento socialista,
não só como ação revolucionária, mas ainda como
filosofia da vida. O social passa a dominar o individual. O
socialismo entesta com o individualismo. O realismo
aniquila o sentimentalismo. O naturalismo sucede ao
romantismo. E os grandes impérios modenos começam a
luta pelo domínio do mundo.
Foi então que se formou o novo império germânico, o
segundo Reich, de que o terceiro, de Hitler, pretendia ser
um simples herdeiro, como o quarto se está formando no
seio dessa Europa Central, hoje de novo ameaçando
germanizar a Europa, com o apoio dos Estados Unidos…
Foi Hegel, no limiar do século XIX, que operou essa
transmutação de valores, que iria afetar de modo
desastroso a vida interior do homem moderno. Foi Hegel
que tentou fundir todos os valores anteriores, numa
espécie de incêndio universal, para tudo concentrar numa
entidade nova – a idéia, que não era a reprodução das
idéias platônicas, ou das idéias criadoras, de Deus, do
tomismo, nem muito menos a expressão das ideologias,
racionalistas ou sentimentalistas, do século XVIII, mas era
uma nova expressão do panteísmo e a volta àquela
obsessão do elemento único, que na aurora da filosofia
grega tinha preocupado os filósofos desde Tales de
Mileto: o ar, a água, a inteligência, etc.
A idéia era o novo “Único”, para Hegel, como o
Indivíduo, em contraposição, ia ser o novo “Único”, de
Stirner. E assim, entre o anarquismo e o
institucionalismo, ia oscilar todo o século XIX, mas com
predomínio absoluto do segundo, contra o qual o primeiro
tentou em vão, pelo terrorismo intermitente, lançar as suas
bombas, reais ou imaginárias…
Mas foi o politicismo que dominou o século. Foi a
formação dos impérios, o francês, o alemão, o russo, o
inglês. Foi a luta externa dos imperialismos. Foi o surto
das “internacionais”, a primeira e a segunda. Foi a eclosão
do comunismo moderno. Foi a fundação da sociologia,
como ciência. Foi o aparecimento dos grandes sistemas
sociológicos, positivistas, socialistas ou evolucionistas,
que mesmo quando concluindo pelo primado do indivíduo
em face do Estado, faziam-no subordinando o homem ao
determinismo ou ao mecanicismo, que eram novas formas
de esmagar o homem pela natureza física ou pelas
instituições políticas. E Hegel concluía a sua imensa
síntese pela apologia do Estado Prussiano, Nietzsche
concluía a sua anti-síntese pelo desafio contra o Estado, “o
mais inumano dos monstros frios”, mas chegando a um
novo culto do titanismo renascentista, pelo mito do super-
homem, do Prometeu moderno.
Em tudo isso era evidente o sacrifício da vida
interior. Tanto no hegelianismo, como no anarquismo ou
no nietzscheanismo, o homem saiu diminuído e sua vida
interior aniquilada. Hegel a subordinava ao Estado, e os
anti-hegelianos ao Indivíduo, um indivíduo tão anti-
humano como êsse Estado despersonalizado de Hegel. O
politicismo e o antipoliticismo davam-se as mãos para
aniquilar a verdadeira vida interior.
O dinamismo de Hegel ou de Nietzsche, de
Augusto Comte ou de Spencer, dos politicistas ou dos
antipoliticistas, esmagava a vida interior. Fazia do homem
um simples joguête: ou do Estado, ou da Natureza, ou do
Sistema, ou so Super-Homem. E, com isso, a luz interior
se apagava ao sôpro violento de qualquer dêsses
vendavais.
Nenhum dêsses novos valores podia respeitar a
delicadeza do silêncio e a doçura da solidão, a substância
do indizível, a força da fragilidade. O que traziam, como
remédio ao homem desamparado, era, de um lado, o seu
enquadramento em instituições onipotentes como o
Estado, ou em limites intransponíveis como a Sociedade;
de outro, o neo-gigantismo do super-homem nietzscheano
ou o individualismo da industrialização spenceriana. Para
qualquer lado que se voltasse o politicismo, por si ou por
suas antíteses, asfixiava a vida interior e projetava o
homem no dinamismo da mais inexorável exteriorização.
Cap. 5.º
ECONOMISMO

Veio enfim o século XX. “Enfin Malherbe vint”. E


com êle o fruto de tôdas essas decomposições anteriores.
O moralismo tinha usurpado a primazia da religião.
O filosofismo pretendeu substituir-se à religião e à
moral.
O politicismo fêz da religião, da moral e da filosofia,
meras consequências das instituições sociais e nelas do
mais perfeito instrumento de unificar a sociedade: o
Estado soberano e onipotente.
Êsse conjunto de idéias vinha produzir no século XX
uma restrição ainda maior no quadro da hierarquia dos
valores. Já agora não era a Política, que pretendia absorver
a Religião e a Moral, era a Economia, que por sua vez
absorvia a política. E a absorvia também, como o fizera o
politicismo no século anterior, sob duas modalidades
iguais e contrárias: o comunismo e o capitalismo.
Ambos vinham do século XIX, como ambos vinham
do reconhecimento da primazia dos valores políticos sôbre
os valores filosóficos, morais ou religiosos. Ambos se
apoiavam sôbre uma base comum: a Técnica. Ambos
recomendavam um remédio comum para a solução dos
males do mundo: a Produtividade. Ambos faziam, a seu
modo, a apologia da Máquina. Ambos subordinavam, ou
explícita ou implicitamente, os valores religiosos, morais e
filosóficos, aos valores econômicos. Comunismo e
capitalismo empolgaram o século XX. A luta dos grandes
titãs políticos do século, a Rússia e os Estados Unidos, é
apresentada, por uns e por outros, ora de modo simplório,
como na Rússia, ora de modo elaborado, como nos
Estados Unidos, como a luta de dois sistemas econômicos
antagônicos, o que se baseia no primado da iniciativa
individual sôbre a coletiva (capitalismo) e o que se baseia
no primado da coletividade sôbre o indivíduo
(comunismo). Mas são tantos os traços comuns entre
ambos, inclusive o fanatismo anti-capitalista de uns e anti-
comunista dos outros, como conseqüência natural do neo-
inquisitorialismo, que podemos ver, nessa luta de irmãos
siameses, as bases comuns que possui. Essas bases não são
suficientes, sem dúvida, para nos levar ao neutralismo dos
braços cruzados. Mas também não nos devem iludir no
reconhecimento dos males comuns que afligem os dois
campos antagônicos. E êsse mal comum é aquêle que há
20 anos procurei analisar numa tese de concurso, Esbôço
de introdução à economia moderna, em que sustentava
que a primazia do economismo sôbre a sacralidade era o
sentido dessa economia moderna, tanto capitalista como
socialista, que não se apresentava a nós como uma opção,
mas como um dever de superação, por aquilo que
Chesterton chamou de “distributismo” e costumamos
hoje chamar de humanismo econômico.
O economismo veio operar, no século XX, o mesmo
desequilíbrio de valores, que o moralismo, o filosofismo e
o politicismo exerceram nos séculos anteriores. O homem
que tentava superar a Deus, como a sociedade que tentava
superar o homem, eram agora envolvidos na mesma onda
que tudo reduz ao primado da máquina e da sua utilização
pela técnica. O tecnicalismo é tão anti-humanista como
qualquer das formas anteriores de desumanização. E a
nova escravidão dos tempos de hoje vem pôr em perigo de
morte, mais uma vez, a liberdade. Essa liberdade, que o
liberalismo tinha deformado no século XIX, que o
libertinismo já havia corrompido no século XVII e que no
século XX é absorvida pelo totalitarismo, sob tôdas as
suas formas. O economismo é, pois, a expressão mais
atual do totalitarismo. E o totalitarismo, a negação
completa da vida interior, como se vê naquele fenômeno
que David Rousset, por experiência própria e por
meditação apropriada, chamou de “concentracionismo”. O
campo de concentração, como as torturas moderníssimas
das injeções que fazem os condenados falar e convertem
os inocentes em culpados por confissões falsificadas –
representam o que há de mais requintado no processo de
supressão da vida interior. O indivíduo se torna um
autômato. O homem reduzido a coisa. O mundo interior é
totalmente aniquilado. Os direitos, como os deveres, se
anulam. A vida profunda se torna equivalente à vida
animal. O homem se torna realmente um simples
instrumento de uma coletividade, que, por sua vez,
desconhece qualquer espécie de estabilidade. O mundo
interior, a vida interior não são sequer pensáveis nessa
nova espécie de escravos de um automatismo impessoal e
genérico.
Eis aí como atuam as autênticas alienações. Não as
que Marx elaborou, mas as que a lógica dos erros preparou
para o nosso tempo.
A restauração dos direitos do mundo interior é,
portanto, uma das peças fundamentais da recuperação do
tempo perdido em que nossa geração se vem empenhando,
sob pena de desaparecer também no turbilhão nivelador da
nova escravidão pessoal e coletiva.
Cap. 6.º
O HÓSPEDE

A vida interior depende de três condições


preliminares: uma correta concepção de Deus; a harmonia
psicológica e as circunstâncias do meio.
Uma reta concepção da divindade é a condição
fundamental de uma vida interior, rica e fecunda. Pois o
que faz a fôrça da vida interior não é o isolamento. É o
encontro de Deus em nós. Somos apenas a casa do
Hóspede. O isolamento, como tal, poderá ser apenas mau-
humor, desespêro ou misantropia. E nada de mais
alongado dessas formas de negação da vida do que a vida
interior. Esta, ao contrário, é uma intensificação da vida.
Para ter vida interior é preciso, antes e acima de tudo, ter
vida, crer na vida e viver a vida do modo mais intenso
possível.
Ora, só pode preencher essas três exigências ou
mesmo qualquer delas quem crê em Deus e encontra a
Deuas não apenas à distância ou de modo abstrato, mas
dentro de si mesmo. O ateísmo pode provocar uma
intensificação da vida exterior, mas jamais um aumento da
vida interior. Para quem não crê em Deus, só há vida no
movimento, na agitação, no mundo das ações e dos fatos.
O ateu encontra em si o vazio. Pois se vê, naturalmente,
como uma conseqüência e um motor. Mas jamais como a
habitação da própria vida. Crer em Deus é portanto a
condição essencial da vida interior. E ter de Deus uma
noção que permita essa intimidade com o mistério, êsse
diálogo interior, que não anula a Deus em nós, nem nos
aniquila em Deus, é a exigência imediata. E por isso é que
duas concepções correntes da Divindade, o deísmo e o
panteísmo, são também tão contrárias ao mundo interior
como o ateísmo.
O deísmo coloca a Deus como uma categoria abstrata
ou então a uma distância tal que o isola do mundo, tanto
exterior como interior. Para o deísmo Deus é uma
“categoria do ideal” , como dizia Renan, ou o “arquiteto
do universo”, como dizia Voltaire, ou um Allah
inacessível e sem comunicação com o mundo, como quer
o fatalismo muçulmano. Essa concepção abstracionista de
Deus, como uma peça na geometria do universo, aparta
Deus de tal maneira do homem que não há meio de o
encontrarmos, quando nos fechamos em nós mesmos. O
mesmo se dá com o fatalismo maometano, para quem a
linha da Divindade é como que paralela à linha da
Humanidade, sem que entre elas existam quaisquer
coordenadas. Por mais puro que seja o moteísmo, desde
que separa Deus do homem, não permite que a vida divina
se insira na vida humana de modo a alimentar o mistério e
a abundância da vida interior.
O mesmo se dá com a concepção oposta, com o
panteísmo. Se dissolvemos Deus no universo, o Creiador
nas criaturas, se apenas vemos Deus em tôda parte,
encarnado na criação, é como se o tivéssemos solitário e
separado no céu geométrico ou fatalista. Os dois
contrários se encontram. No panteísmo Deus se perde no
universo e não podemos encontrá-lo em nós, como se Êle
se tivesse desinteressado da sua própria obra, por culpa
das traições do homem.
Para que nossa vida interior represente a vida de
Deus em nós e o encontro com Êle no fundo de nós
mesmos é preciso que se resguarde simultâneamente a
distinção entre Deus e o mundo, contra o panteísmo e a
união de Deus com o mundo, pelas idéias criadoras, pelos
sacramentos e pela graça constantemente animando a
natureza contra o deísmo. Só assim podemos ter a Deus
em nós, sem que seja uma ilusão ou uma palavra vã. Só
assim podemos encontrar, dentro de nós, o próprio criador
da vida. E por isso mesmo é que não bastam as virtudes
morais para que tenhamos uma vida interior intensa.
É mister que as virtudes teologais, a Fé, a Esperança
e o Amor, transfiguradas pelos dons do Espírito Santo,
venham permitir que encontremos, no fundo de nossas
almas, a presença divina. E essa presença é que faz a
riqueza da vida interior. É porque há em nós mais do que
nós mesmos, que o mundo interior tem um sentido tão
grande. É porque Deus pode habitar em nós e pela vida
interior podemos mais de perto conviver com Êle, que ir a
Deus não é sair de nós e sim, pelo contrário, entrar em
nós. A vida religiosa só se torna exterior como uma
conseqüência e não como uma causa. Os dois modos de
manifestação exterior dessa vida, a oração e o apostolado,
só se justificam, quando alicerçados na vida interior. Pela
oração é que nos unimos profundamente a Deus. E a
oração coletiva, a oração em união com todos os fiéis, a
oração do nosso eu em união com a Igreja, Corpo Místico
de Cristo, só tem valor quando precedida e acompanhada,
simultâneamente, pela oração interior, pela intimidade
com Deus no fundo de nossas almas. De outra forma se
opera apenas uma mecanização, uma ritualização da prece,
que não possui valor espiritual nenhum. O mesmo ocorre
com o apostolado. Só há fôrça de irradiação e de
contaminação no apostolado, como extensão do Reino de
Deus, a que cada cristão está moralmente obrigado,
quando essa irradiação parte de um foco ardente que não
pode deixar de expandir-se. E, portanto, de uma vida
interior que extravasa naturalmente e por isso mesmo de
modo mais fecundo para a extensão da vida sobrenatural
em nós, que é Deus em nosso mundo interior.
Uma falsa concepção da Divindade é, por
conseguinte, um elemento de enfraquecimento, corrupção
e aniquilamento de nossa vida interior. Uma verdadeira
concepção de Deus, ao contrário, permite que, dentro de
nós, encontremos a Fonte de tôda a vida, a própria Vida
em sua cratera ardente e luminosa.
Não há pois, vida interior autêntica sem uma
profunda vida religiosa. Deus em nós é a condição
primeira e maior dessa reverência que devemos ter para
com a nossa vida íntima, de modo a expurgá-la de todos os
elementos de desagregação e mantê-la na limpidez e na
limpeza com que nos preparamos sempre para receber um
hóspede. E Deus é mais, muito mais do que um hóspede
em nossa casa íntima. É o próprio dono da casa. E quanto
mais nos tornarmos hóspedes do nosso Hóspede, tanto
mais veremos crescer e florescer o nosso mundo interior.
Cap. 7.º
EQUILÍBRIO

Vimos que a primeira condição da vida interior é uma


correta concepção de Deus. Outra condição é a que
podemos chamar a harmonia psicológica ou a sã
hierarquia de nossas faculdades. Há três momentos
capitais de nosso contato com o mundo, tanto exterior
como interior: a sensibilidade, a inteligência, a vontade.
Pelo primeiro, recebemos do mundo exterior as
impressões que representam como que a matéria-prima
para a atividade criadora das nossas faculdades. Pela
inteligência elaboramos essas formas primárias e tôscas da
nossa sensibilidade, e desenvolvemos em nós as formas
superiores com que iluminamos, tanto a ação inicial da
sensibilidade como a operação final da vontade. Esta
última, enfim, dirige as nossas ações para a sua finalidade
conveniente, sob a direção orientadora do intelecto.
Todo o nosso equilíbrio psicológico depende do
funcionamento normal dessas três peças fundamentais de
nossa natureza.
O sadio funcionamento de nossa sensibilidade está
intimamente ligado às condições do nosso corpo.
“Não somos um piano tocado por um anjo”, nos diz
Maritain, advertindo do perigo de uma cisão cartesiana
ou racionalista do corpo e do espírito. Segundo a mais
velha tradição hilemórfica, somos um composto vivo, em
que o corpo está tão intimamente ligado à alma que a
separação entre os dois elementos, se não representa a
extinção do espírito, é, pelo menos, uma redução tão
profunda de sua natureza, que o dogma da ressureição da
carne vem ajustar-se, como uma luva, a essa redução
substancial da natureza do espírito separado de seu
instrumento natural, o corpo. Do funcionamento normal
dêsse último depende, pois, de modo direto, o normal
funcionamento daquele. Santo Tomás chega a dizer que a
perfeição de um depende do outro. Quanto mais perfeito o
corpo, mais perfeita, em tese, a alma. Contra a posição
platônica de que a alma e o corpo estão ligados por uma
união meramente acidental, Santo Tomás sempre
defendeu, contra a maioria dos pensadores de seu tempo, a
união substancial da alma e do corpo, um naturalmente
inclinado ao outro. Uma sã psicologia depende, pois, de
uma sã biologia. A vida interior, portanto, não representa
uma antítese à vida física. Representa, apenas, a colocação
da sensibilidade física em seu lugar inicial mas essencial,
para o equilíbrio geral das funções.
O mesmo sucede com os dois outros elos da corrente
psíquica que o homem representa. Aliás o próprio
movimento dos sentidos internos, o senso comum, a
imaginação, a memória, a estimativa, está diretamente
ligado à pureza dos nossos sentidos externos, que são
como que a janela aberta para que o mundo exterior
penetre em nós e ponha em movimento as potencialidades
que ficarão estáticas sem essa excitação exterior.
Quando passamos dos sentidos, externos e internos,
ao intelecto, tomamos pé no que representa o centro vivo e
irradiante da própria natureza humana. A atividade
intelectual do homem é apreensão de formas e julgamento.
Apreendemos a verdade pela inteligência e caminhamos
de uma idéia a outra pela razão. A razão, nos ensina Santo
Tomás, é a imperfeição da inteligência. Esta, à custa do
caminho discursivo das abstrações racionais, pode chegar
à intuição das coisas mais recônditas e sutis, aproximando
a racionalidade da natureza humana, da intuitividade da
natureza angélica, nesse caminho da ignorância dos sêres
sem vida ao conhecimento puro que só existe em Deus.
Nessa ascensão é que a inteligência opera, no homem, a
passagem da matéria morta ao mundo das formas
imateriais, ao mundo angélico e daí ao mundo
sobrenatural, à própria vida divina. O exercício normal da
inteligência, no homem, é, portanto, a condição sine qua
non para aquela correta intuição de Deus, sem a qual não
existe a possibilidade de uma sadia vida interior. Assim
designa Santo Tomás duas grandes etapas da nossa vida
psicológica: “É natural ao homem que pelo sensível
chegue ao inteligível, já que o conhecimento tem a sua
fonte nos sentidos” (I, I, a. 9). E daí “da experiência
sensível, interpretada pela inteligência, o espírito se deixa
conduzir à intelecção mais elevada das coisas divinas” (10
Ver. a. 6, ad 2).
Finalmente, à posição passiva da nossa sensibilidade
que recebe o universo, à posição ativa da nossa
inteligência que conhece a universalidade das coisas, da
pura potência ao Ato puro, corresponde a irradiação da
sensibilidade e da inteligência por meio da vontade, que é
a nossa tendência à realização dos nossos fins, à plena
operação da nossa natureza. De modo que, assim como a
inteligência é a fôrça que nos leva naturalmente à verdade,
ao que é, -- a vontade é a fôrça que, iluminada pela
inteligência, nos leva naturalmente ao bem, ao que deve
ser a nossa perfeita realização, à satisfação suprema dos
nossos desejos. Daí uma hierarquia de bens particulares
que não satisfazem senão de modo passageiro o nosso ser,
até a apreensão suprema do Bem universal, do Bem total,
do Bem em si, único, como nos diz Santo Agostinho,
que pode satisfazer plenamente e pacificar a nossa
insaciável sêde de absoluto. E o nosso coração não tem
sossêgo enquanto o não alcança. Ou então o perde, muitas
vêzes, na loucura das posses parciais e na angústia do
inacabado.
Só quando essa tríplice condição do nosso equilíbrio
psicológico está preenchida, -- a sensibilidade, a
inteligência, a vontade, -- só quando êsses três elementos
indissociáveis da nossa natureza estão bem distribuídos,
bem colocados e em perfeito funcionamento, é que
podemos possuir uma vida interior abundante e fecunda.
Cap. 8.º
O MEIO

Examinamos as duas condições essenciais para a


existência de uma vida interior sadia. Há uma terceira,
entretanto, que completa as outras duas: as condições do
meio.
O ser humano, mesmo em sua vida psicológica, não
pode ser abstraído dos outros sêres humanos e das
condições físicas que o circundam, por duas razões: uma
tirada da observação da própria natureza humana e a outra
das condições de funcionamento da sua vida psicológica.
É dos sentidos que tiramos os materiais com que
trabalha a inteligência e com que opera a vontade, não só
para conhecer o mundo exterior, mas ainda para descer às
profundezas do mundo interior e aí alcançar a Verdade
última e suprema, que não é uma abstração, mas uma
realidade, uma pessoa, a mais perfeita das realidades e das
pessoas, o próprio Deus, nosso Senhor e nosso Pai. Ora, os
sentidos buscam êsses elementos no meio em que
vivemos, meio físico e meio humano. Êsse meio, portanto,
é uma condição preliminar para o funcionamento do nosso
eu. É impossível abstrair do meio, ao considerar o homem.
Como é impossível abstrair dos sentidos, isto é, do contato
do homem com o meio, para considerar a vida intelectual
e a volição, elementos capitais da nossa vida interior. O
meio, portanto, as condições que cercam o nosso corpo e o
nosso espírito, o alheio, o outro, o não-eu, são notas
indispensáveis para o perfeito movimento interior do
nosso eu.
Outra razão é a própria natureza social do ser
humano. A observação nos revela que o homem vive
sempre em contato com os outros homens e, quando perde
êsse contato, algo de estranho se passa com êle: ou
melhora muito ou piora muito. Piora, em regra. Melhora,
por exceção. Mas, normalmente, perde. Já que,
naturalmente, o homem é necessário ao homem para que a
vida humana se desenvolva normalmente. O contato com
outros homens é, portanto, uma condição de humanidade
sadia, de aperfeiçoamento natural de uma natureza, que
recebemos não formada e perfeita, mas apenas com uma
soma de potencialidades que nos cabe atualizar. A
sociedade é, portanto, o elemento natural ao homem, como
a água é o elemento natural aos peixes e o ar aos pássaros.
Os animais vivem em simbiose com os elementos
inferiores, por possuírem uma natureza infinitamente mais
simples que o ser humano. Ao passo que o homem, que é
uma natureza racional, só pode viver bem em contato com
outras naturezas racionais. E a sociedade é o elemento
dessa convivência.
Por êsses motivos, pelo menos, não pode haver vida
interior sem haver vida social, já que o meio mais à altura
das exigências do homem todo é o meio social. Só da
sociedade, pois, é que nasce a possibilidade de uma
verdadeira vida interior.
Isto, porém, é apenas uma primeira etapa. Já vimos
que a vida social é uma condição natural ao homem e ao
seu aperfeiçoamento, mas também pode ser uma causa de
sua diminuição. E o será sempre que, em vez de
permanecer um meio, se converta em um fim. A sociedade
é o meio natural do homem. Mas, quando de meio se
transforma em fim, em vez de servir ao aperfeiçoamento
da natureza humana, tolhe o seu desenvolvimento e
concorre até para a sua degradação. O homem que vive
para a sociedade, isto é, que faz da vida social o seu fim
último, é um homem diminuído. E é particularmente um
homem incapaz de viver interiormente. A vida interior
supõe duas coisas a êsse respeito: supõe a vida social,
como preliminar, e supõe, depois, a retirada da vida social.
A vida social se sobrepõe à vida interior ou impede a sua
eclosão, quando não se dá êsse duplo movimento. Não
havendo vida social preliminar, o homem permanece um
ser bronco, incompleto, pré-humano se pode dizer. E não
pode haver vida interior sem haver, previamente, uma vida
humana normal e completa. A vida interior não é um
mutilação, é uma plenitude. E como plenitude supõe um
ser humano que alcançou o melhor e se possível o maior
desenvolvimento de tôdas as suas faculdades. Não é um
refúgio dos mutilados ou dos impotentes. É uma eclosão
total dos que receberam da vida exterior, da vida
psicológica e da vida social, tudo o que estas lhe podiam
dar. É um aperfeiçoamento, não é uma evasão ou uma
mutilação. De modo que a vida social – onde, pelo
conhecimento e pela educação, pelo hábito de viver, o
homem chega à sua plena humanidade – é uma condição
sine qua non para a vida interior. Mas… há um momento
em que o próprio dinamismo da vida social se pode voltar
contra a vida pessoal. E a vida interior não é em si, vida
social (nem anti-social, naturalmente) mas vida pessoal.
Se a vida social se torna exagerada, se transborda de suas
margens naturais, se se transforma, de instrumento de
nosso aperfeiçoamento, em tirania dos nossos hábitos,
então a vida social absorve o homem, socializa-o
completamente, torna-o um escravo de seus encantos ou
de sua fôrça e com isso tolhe tôda a vida interior. É o que
chamamos o mundanismo, sob tôdas as suas formas. O
mundanismo é o grande inimigo da vida interior,
justamente porque subverte a hierarquia natural dos
valores e converte o mundo exterior em medida do mundo
interior. Quando a verdade é o oposto: o mundo exterior
existe para o mundo interior. E o meio, físico ou social, só
é uma condição fecunda para a nossa vida interior, quando
se respeita a ordem natural dos valores. Quando o meio
permanece meio. A sociedade, então, estimula em vez de
tolher a expansão livre da vida interior. E esta se realiza
então através dos três grandes S S S: o silêncio, a solidão e
a santidade.
Cap. 9.º
SILÊNCIO – I

O primeiro dos três S S S, fundamentos do mundo


interior, é o Silêncio.
Há dois silêncios que se completam, mas que não
exigem reciprocidade: o silêncio exterior e o silêncio
íntimo. O primeiro, como o nome indica, é a ausência de
rumor físico. Vivemos, mormente em nossos dias e na
vida das grandes cidades, cercados de barulho. Há mesmo,
em cidades como o Rio, um desperdício de sons, que toca
as raias da verdadeira psicose. Nas cidades mais
movimentadas do mundo, como Nova York, os
automóveis transitam como se as buzinas não existissem.
Na capital do México, barulhenta como o Rio, encontrei
uma campanha sistemática contra os abusos dos clacsons.
E assim no Canadá como em França, em Portugal como na
Itália.
Por tôda a parte se começa a reagir contra a tirania
das buzinas. Só no Rio os motoristas continuam
alucinados pelo som... Mas, sem dúvida o mal é muito
mais grave e extenso. É um mal universal dos nossos
tempos, agravado ao extremo pelos progressos mais
modernos. Os alto-falantes nas ruas, os rádios nas casas, o
cinema falado, o rumor das businas para tornar as cidades
de hoje verdadeiros antros de ensurdecer. E o silêncio
exterior, no entanto, é uma condição preliminar para o
equilíbrio da vida.
O rumor contínuo das cidades modernas, o martelar
das fábricas ou dos estaleiros durante oito horas por dia,
quando não durante a noite (como uma fábrica de pregos
bem perto de minha casa, que em tempo trabalhou de sol a
sol e de sombra a sombra e me fêz fazer a experiência in
anima nobili de quanto o silêncio físico é indispensável à
vida humana), a onda de som estridente, sem sentido ou
harmonia, que invade continuamente o nosso ser, é uma
destruição lenta, mas implacável, do nosso domínio sôbre
nós mesmos.
Até a música em excesso é um mal, como observou
William James, em seus estudos psicológicos. Vejo hoje,
com o rádio, muita gente que inùltilmente, por simples
prazer, trabalha ou repousa em casa, ao som do mais
contínuo estridular de sambas, anúncios comerciais e
notícias articuladas por locutores, tanto mais perniciosos,
para a vida interior, quanto mais aveludada e redonda a
sua voz desencarnada de oráculos... Tudo isso é uma
verdadeira insurreição contra o espírito. Nossa vida mental
tôda ela se forma por sensações que recebemos do mundo
ambiente.
Se vivemos com os ouvidos continuamente
solicitados por essa polifonia enlouquecida, só podemos
criar, dentro de nós, a confusão, a desordem e o
entorpecimento. A mais diabólica consequência do
barulho é a passividade do espírito. Solicitado, a cada
momento, pelo ruído, de fora, o nosso espírito se vai
acomodando a não sentir, a não reagir, a não pensar.
Ficamos em um estado de pré-hipnotismo que pode ser o
prelúdio da mais insidiosa debilidade mental. O silêncio
exterior é uma condição essencial para a atividade da
inteligência e da vontade. A própria sensibilidade se anula
por uma contínua solicitação do som. E o homem se torna
um autômato, quando o ouvido trabalha demais.
O silêncio exterior é a primeira condição para a vida
exterior. Mas não é a última. Muito mais importante é o
silêncio interior. Podemos obtê-lo em parte, mesmo
cercados pelo rumor do mundo, embora não por muito
tempo. Ao menos à noite é preciso que o homem se cerque
de uma auréola de silêncio para que se sinta realmente
viver.
O silêncio interior se abebera em fontes humildes ou
transcendentes. Abebera-se na noite, a grande e cotidiana
companheira da nossa renovação cotidiana. Abebera-se na
solidão. Abebera-se na leitura, como na meditação e ,
acima de tudo, na graça. O silêncio interior é o que nos
leva a deixar viver o espírito em nós. Ao contrário do
fôgo, o espírito se alimenta do vazio.
Quando enchemos a nossa vida de sensações ou de
sons, continuamente absorvidos pelo nosso contato
exagerado com o mundo de fora, a vida do espírito
começa a decair. Ficamos nesse estado de passividade que
caracteriza os automatismos. Deixamo-nos viver. Não
vivemos. É preciso fazer o silêncio em nós, para que o
espírito comece a viver. É como se a luz espiritual se
alimentasse do vácuo.
À medida que nos retiramos ao centro de nós
mesmos, à medida que cresce êsse silêncio profundo da
alma, vão-se delineando as formas do pensamento, o
passado ressurge mais claro do esquecimento, a atenção se
apura, cresce a agudeza dos juízos, os sentidos interiores
ganham forma à medida que se tornam mais discretos os
sentidos exteriores, a luz da inteligência se torna mais
viva, o calor do espírito se torna mais ardente e a vontade
mais firme.
Começamos então a sentir melhor o nosso eu, o que
fica tantas vêzes escondido em nós, por falta de silêncio,
emergir da sombra e cantar então o cântico da alegria que
o encontro com as grandes verdades nos leva a entoar. O
silêncio então se torna Canto. O silêncio desabrocha em
palavras que só anjos escutam, mas que os postos de
silêncio das outras almas interiores e ardentes escutam
com muito mais profundeza do que os postos de escuta das
antenas loquazes das almas extrovertidas.
Pois, se a plenitude da palavra é o silêncio, como a da
emoção, a plenitude do silêncio é a palavra humana que
acaba entendendo o mistério do Verbo e dialogando com
Deus, como o fazia o Cura d'Ars nas madrugadas da sua
humilde capela.
Cap. 10.º
SILÊNCIO -- II
É no silêncio que ouvimos a voz das coisas, como
ouvimos as vozes profundas do nosso próprio eu e como
chegamos a ouvir a voz de Deus.
Ouvimos a voz das coisas e dos animais, ouvimos o
sentido que têm as árvores e os rios, o mar e os
passarinhos. O silêncio abre os nossos poros sensíveis e a
nossa razão e nos torna passíveis, portanto, de penetrar o
segrêdo das coisas, pois as coisas guardam consigo o
segrêdo de suas origens e a marca invisível que nelas
deixamos em nossa passagem. Guardam consigo, na sua
imobilidade ou na sua irracionalidade instintiva, muito da
Fonte de que prôvem. Deus fala pelas coisas quando nos
cercamos de silêncio. Por que razão os "coeli errarant
gloriam Dei" (Ps. 18,2), senão porque as coisas guardam
consigo, mais intatos do que nós homens, os sinais dos
dedos divinos? Porque se refugiam no silêncio dos
desertos e das montanhas, dos claustros ou de si próprios,
aquêles que querem ouvir a voz de Deus? É porque o
silêncio nos torna sensíveis ao segrêdo das coisas. Porque
o silêncio nos permite ouvir a voz de deus nas coisas, o
sinal do Criador nas suas criaturas. Sem o silêncio,
passamos por elas distraídos, como se fôssem realmente
uma matéria bruta, inanimada, sem sentido, que nada tem
a nos contar. Com o silêncio, ao contrário, as coisas
começam a falar, começam a contar-nos histórias
maravilhosas, que não estão apenas em nossa imaginação,
que não lhes são apenas comunicadas por nós mesmos
mas que estão contidas nelas, trancadas em sua
imobilidade de pedra, em sua versatilidade de águas, em
sua mudez de pássaros, precisamente porque são criaturas
de Deus. Foi São Francisco de Assis, mais do que
qualquer outro poeta do mundo, que soube falar às coisas
e aos animais e melhor ouvir as suas vozes! E como o
alcançou? Fazendo o silêncio em si e vivendo no silêncio
interior. Foi quando deixou a cidade, o tumulto dos
prazeres e dos negócios, que começou a dialogar com
todos os sêres. E com isso enriquecer para sempre, não só
a sua vida ou a daqueles que despiram as vestes do mundo,
em todos os séculos para o seguirem, mas a todos os que
amam o silêncio e nêle encontram a chave de tôdas as
vozes.
Porque as coisas, se guardam o sinal do seu Criador,
em seu silêncio, guardam também a marca das criaturas
que por elas passaram. Os acontecimentos, humildes ou
convencionais, históricos ou sem história, deixam nas
coisas o sinal da sua passagem. E é da contemplação
silenciosa que êsses sinais começam a vir à tona e a nos
ensinar a lição do seu passado. O silêncio em que
contemplamos as coisas nos traz a voz de Deus e a voz dos
homens, do tempo e da eternidade.
Como nos traz também o segredo das próprias almas,
o mistério do Outro. Só em silêncio podemos chegar à
compreensão. É na medida em que fazemos em nós a
depuração pelo silêncio, que podemos vencer um pouco
das barreiras que nos separam uns dos outros. O Amor
nasce do silêncio e só êle o leva de novo à plenitude.
Quando Katerine Mansfield morreu, o seu viúvo, o
grande crítico Middleton Murry escreveu uma página
inesquecível em que fazia, entre outras coisas, essa
reflexão tão verdadeira, que a plenitude do amor conjugal
é o silêncio lado a lado, e a sintonização sem palavras, é a
vivência muda, como a convivência dos anjos.
O silêncio é que aproxima os homens que o ruído
separa, como é também o caminho da nossa própria
compreensão interior. É pelo silêncio que nos encontramos
a nós mesmos. Quem não sabe silenciar não se encontra
jamais. Há homens que vivem divorciados de si mesmos
porque nunca fazem em si o silêncio. Não se conhecem
porque não procuram ouvir a voz da sua consciência, do
seu passado, da sua experiência, do seu mundo interior.
Ignoram-se porque falam todo tempo, mesmo quando se
calam. Pois o silêncio não é apenas a ausência de palavras
ou de ruído, não é apenas uma omissão, uma supressão,
uma ausência, um valor negativo, mas, ao contrário, um
valor essencialmente positivo. É no silêncio que se
constrói a nossa vida interior. É o silêncio que edifica o
nosso mundo interior, de modo que a vida sem silêncio é
uma vida mancada, como o silêncio sem vida é uma
negação do silêncio, é um falso silêncio.
Quanto mais temos de viver num mundo martelado
pelo Ruído, mais precisamos fazer o silêncio em nós. Não
apenas aquêle que nos esvazia para recolhermos a
mensagem dos pássaros, das flores, das estrêlas e das
cascatas, de tudo o que só fala quando se cala a alma
humana, mas ainda aquêle que nos enche, que nos renova,
que nos eleva, o silêncio que nos leva à descoberta de nós
mesmos, ao amor do próximo, ao diálogo com Deus.
Os poetas e os místicos, mais que todos, conhecem o
valor do silêncio, porque só nêle podem encontrar o que
procuram. Mas não há privilegiados do silêncio. São todos
os homens, é cada um de nós, é a própria vida humana,
para ser bem vivida, que tem sêde de silêncio, porque só
nêle encontra o caminho para a paz e para a sabedoria,
para perdoar, para esquecer e, acima de tudo, para amar.
Quando procuramos, pois, o silêncio e a solidão e
nêles encontramos o que nos nega o tumulto do mundo, é
que a nossa alma precisa de silêncio, como o nosso corpo
precisa de alimento. E não há vida interior fecunda sem
que, em tôrno de nós se possível e sempre dentro de nós, o
Silêncio fôr a raiz da Solidão e da Santidade.
Cap. 11.º
SOLIDÃO

Há uma solidão inumana e infecunda. Há mesmo


várias. A solidão forçada da prisão só muito raramente
inspira um Sílvio Pélico ou, no extremo oposto, um
Oscar Wilde. E só quando unida à santidade, dá ao mundo
um João Batista ou um Paulo. Em regra, produz apenas
amargor e revolta, quando não o servilismo.
A solidão da loucura fecha o homem num universo
sem o próximo. O outro deixa de existir. Ou então existe
como inimigo, como perseguidor. O homem se fecha em
seu próprio universo, voltado para dentro de si mesmo,
num círculo vicioso sem saída, seja na imobilidade da
catatonia, seja na projeção dolorosa da esquizofrenia, seja
no mundo negro das depressões e das perseguições.
A solidão da misantropia ainda é mais triste. A
loucura pode levar à euforia e à megalomania, mas o
pessimismo leva à negação. O homem se fecha então
voluntariamente. Foge do mundo e dos demais. Vê em
tudo o lado mau das coisas. Projeta sôbre a vida a sombra
que lhe cobre a alma. Rejeita o rumor das cidades, mas
não se alegra com a paz dos campos. O silêncio lhe pesa,
como pesa a companhia. Em nada encontra o que louvar, a
não ser em si mesmo. E mesmo assim se volta contra a sí
próprio, pois quem se insula sistemàticamente dos homens
acaba inimigo da sua própria humanidade. Só a solidão do
fariseu, a mais inumana das solidões, torna o homem
satisfeito de si mesmo...
A solidão do desespêro é trágica, pois invade de
surprêsa um coração desamparado e leva-o ao pecado sem
remissão, a duvidar da própria Misericórdia Divina. É a
solidão que leva ao suicídio. Apodera-se de uma alma, por
vêzes, em plena felicidade, sobretudo quando as almas
acreditam demais na felicidade trazida pelas coisas
terrenas. E abate-as como um raio abate um cedro, na
tempestade. É assim que o amor se transforma
violentamente em crime. A vida, em um deserto sem
sentido. É a solidão dos que não aprenderam a viver a sós.
Há a solidão disfarçada das cidades, que arranca o
homem de si mesmo para o entregar ao anonimato dos
prazeres, dos rumores, da agitação, do "mundo quebrado"
de que fala Gabriel Marcel. É a solidão da vida medíocre
do campo, que endurece as almas, torna-as opacas e
vegetativas, diminuindo no homem a capacidade de se
renovar, mineralizando, pouco a pouco, a sua humanidade.
São tôdas formas infecundas e inumanas da solidão,
porque inadequadas à sua verdadeira natureza. O homem
não foi feito para a solidão, mas a solidão existe para que
o homem se encontre a si mesmo. E encontre em si Aquêle
que explica o seu mistério. Quando o homem procura a
solidão pela solidão ou esta lhe é imposta como uma
penalidade ou como uma moléstia, passa ela então a ser
uma diminuição e um absurdo, já que o homem é um
animal naturalmente sociável. E só na companhia dos
outros homens encontra o seu verdadeiro caminho. Mas,
quando abusa dessa companhia, quando só sabe viver em
sociedade, quando só encontra prazer na conversa, no
divertimento, na agitação, no ruído, na atividade, quando
não sabe gozar da companhia do silêncio e não sabe
conversar consigo mesmo, então é o caso de abrir os olhos
ao perigo dêsse desperdício, dêsse esvaziamento, dessa
defecção, prelúdio certo do aniquilamento ou da
diminuição da personalidade.
Só na solidão encontramos o nosso verdadeiro eu. Só
na solidão encontramos o verdadeiro sentido da vida. Só
na solidão nos abeberamos na fonte da verdadeira
renovação. A vida interior não existe sem o amor da
solidão. A vida ativa não tem sentido se não se renova na
solidão. A vida apostólica se deturpa quando não procura
na solidão as riquezas que deve levar ao próximo. Todos
os grandes Santos, como o Cristo, se refugiaram no
deserto antes de pregarem a salvação. "O solitudo, sola
beatitudo". O solitário encontra na solidão alguma coisa
que está para além da solidão, pois esta, para ser fecunda e
humana, tem de ser um meio e não uma finalidade. O
verdadeiro solitário encontra na solidão a beatitude.
Encontra a felicidade que não passa, porque não é dêste
mundo. Encontra o sentido da vida, que só se explica
quando não o procuramos apenas nos valores da vida
efêmera.
Podemos viver solitários em plena multidão, como
podemos viver perdidos em plena solidão. podemos levar
ao mundo a nossa solidão fecunda, como podemos trazer,
para a solidão, todos os pecados do mundo. Pois não basta
viver só. É preciso saber viver a sua solidão. Não basta ter
consciência de que cada alma é um mundo fechado,
impenetrável aos outros mundos fechados, o das almas
que nos são mais próximas. É preciso não se deixar vencer
pelo desespêro dessa solidão das almas. É preciso vencer
êsse isolamento, transpor os muros que fecham as almas
uma das outras, para que a convivência das solidões
individuais possa levantar então, de modo surpreendente,
o nível de uma comunidade doméstica, profissional e
sobretudo religiosa. É quando sabemos amar a vida
solitária que a vida social começa a se tornar fecunda. É
quando sabemos fazer da solidão uma participação ativa
nos sofrimentos e nas alegrias alheias que o nosso deserto
se povoa e se explica então que aquêles homens que foram
a primeira vez para o deserto, sem serem filhos do deserto
como os nômades, vivam até hoje para edificação e
elevação das almas de gerações sucessivas. É que a sua
solidão não era uma fuga, mas uma ablução da alma para
receber a visita de Deus. E essa solidão nós todos a
podemos ter, como podemos levar conosco o silêncio para
o rumor do mundo. Essa solidão assim vivida não é nunca
uma ausência. É uma presença. É um encontro do homem
consigo mesmo, como condição para o encontro do
homem com Deus. Os grandes solitários são os
verdadeiros mestres da sociabilidade, pois o amor do
próximo se nutre dos frutos do deserto. E se o silêncio é a
voz de Deus, a solidão é a Sua presença.
Cap. 12.º

SANTIDADE

Os santos não falam da santidade. Vivem-na. Isso nos


põe mais à vontade para falar dela. Há, realmente, certos
têrmos que infundem mais do que respeito, veneração.
Mais do que veneração, uma espécie de intimidação que
pode tocar às raias do terror. A santidade é, certamente,
um dêsses têrmos e um dêsses temas.
São Francisco de Assis chegava a proibir a
comemoração das virtudes heróicas dos santos.
"Pratiquem-na", dizia êle a seus companheiros. E
começava por si, demonstrando assim a própria essência
da santidade que é ser um ato, uma vida em atos e não em
palavras. E atos que ponham as potências humanas na
união maior possível com o Ato em si, com o Ato puro
que é Deus.
Pois se a santidade, muito mais do que o silêncio e a
solidão, é a condição fundamental da vida interior, é que
vem de Deus e volta a Êle, sendo, ao mesmo tempo, uma
causa, uma condição e um fim, a que podemos fugir ou ser
indiferentes ou de que nos podemos aproximar em todos
os graus, dos mais elementares aos mais sublimes. Por isso
é a santidade, ao mesmo tempo, tão humana e tão sôbre-
humana. Por isso a Igreja a pede a todos os fiéis, por mais
que sintamos a nossa mediocridade, e no entanto eleva tão
poucos à glória dos altares, que os Santos representam,
mais do que os Heróis ou os Gênios, os faróis solitários
que guiam a humanidade. Iluminam de tão alto, que nos
habituamos a considerá-los como sêres de outra espécie,
que vivem no passado, de que só temos notícia quando já
se encontram em regiões inatingíveis, no espaço e no
tempo, e assim nos desculpamos fàcilmente de não os
imitar. Como imitar Elias, raptado em seu carro de fogo a
regiões misteriosas, que os exegetas colocam entre o
tempo e a eternidade? Como imitar São Paulo, levado ao
terceiro céu e ouvindo palavras que a voz humana não
pode reproduzir? Como imitar, no extremo oposto, um São
Simão Estilita ou um São Benedito Lázaro, que se
confundem de tal maneira com a imobilidade das coisas
ou a petrificação da miséria, que os pássaros faziam ninho
nos cabelos dos discípulos de São Patrício?
E para não ir tão longe, um dia, ali no Palácio São
Joaquim, D. Sebastião Leme recebeu a visita de Dom
Orione, que voltava do Chile e da Argentina, depois de ter
espalhado por lá a obra da Divina Providência, onde
milhões de deserdados têm encontrado, no mundo, a única
Herança que não se dissipa: o Amor e o Pão. Qual não foi
o assombro do nosso Cardeal quando o humílimo religioso
saca do bôlso da batina uma disciplina, ajoelha-se antes de
falar e começa a flagelar-se, dizendo: "Eminência, eu não
sou mais do que um pobre pecador !" Loucura, dirão
fàcilmente os bem pensantes. E realmente a santidade,
quando vence a tal ponto o respeito humano, toca as
fímbrias daquela "loucura da Cruz", de que falava São
Paulo e é a plenitude da sabedoria.
Mas justamente por não ser unívoca a santidade, é
que tem levado aos altares as extravagâncias de São
Felipe Néri e a vida igual daquele Irmão jesuíta, de
Majorca, que foi apenas porteiro do seu convento e viveu
por meio século a santidade cotidiana e humilde da
renúncia perfeita, dêsses santos sem nome cujo altar devia
existir em tôdas as igrejas e que aliás comemoramos no
dia da Comunhão dos Santos, a 1.° de novembro. Não é
santidade a veleidade de ser santo. E sim a vontade
expressa e sobretudo impressa. Um homem de letras, sem
ser teólogo, Georges Duhamel, o demonstrou muito bem
no tipo de Salavin, o homem que quis ser santo sem o ser.
E alcançou apenas a caricatura da santidade. Porque ela é
acima de tudo, uma eleição, uma vocação. E a vontade,
que adere à Graça divina, não é a veleidade que pode
apenas seguir a tentação da vaidade, como os falsos
profetas.
A santidade é, pois, uma causa, uma condição e um
fim da vida interior. É uma causa porque vem de Deus e
representa uma seleção a que todos são chamados -- pois
não há privilegiados, que se isentem dessa mobilização
para a guerra santa, senão fugindo a essa vocação
universal -- mas a que fugimos a cada momento, pela
nossa mediocridade e pela nossa fraqueza. Essa graça
santificante é a causa da nossa vida interior. Sua origem,
pois, transcende infinitamente ao nosso simples desejo. É
um chamado a que devemos atender, e a que geralmente
não atendemos ou atendemos mal. E por isso é tão frágil,
geralmente, a nossa vida interior. E tão tumultuosa. Tão
reduzida apenas àquelas trevas biológicas e psicológicas
que Freud examinou com uma pinça, como os cirurgiões
exploram as larvas de um tumor... A vida interior que vem
de Deus é clara e simples como um dia de céu azul e sol
de fora. Ou nítida e pura como essas noites estreladas,
segundo os temperamentos solares ou noturnos. Pois a
vida interior, como a santidade, é tão irredutível como a
personalidade a um tipo único e inváriavel. É o próprio
dominío da liberdade e da variedade.
A santidade é também uma condição da vida interior,
como o silêncio e a solidão. É a fôrça da renúncia, da
mortificação, da humildade, do espírito de sacrifício que,
se não é a essência da santidade, é a sua lição. Não é a
renúncia à felicidade. É muito mais do que isso. É a
alegria do sofrimento. É a riqueza do despojamento. É a
vitória dos malogros. É a presença da Ausência. O fogo do
batismo pela água. A vida da morte. "Ero mors tua, o mor"
(1 Cor. 15, 55). Ó morte, eu serei a tua morte, disse o
Santo por excelência, Cristo Senhor nosso. Êsse o
paradoxo supremo da santidade, a conquista da plenitude
pela renúncia, da vitória morrendo e não matando, da
riqueza dando e não guardando, da vida pela morte.
E é por isso que a santidade é um fim. Todos
devemos procurá-la, humildemente, por mais que
tenhamos consciência da nossa indignidade, da nossa
insuficiência, da nossa pobreza espiritual. Todos devemos
procurá-la na vida de cada dia, pois é mais difícil fazer a
vontade de Deus nas coisas pequenas que nos grandes
feitos. E o que Deus quer, dos homens, é apenas a
santidade. Apenas... A vida interior é, pois, uma
preparação para a santidade, como esta é uma condição
daquela. Assim como a santidade, por sua vez, é uma
preparação para a beatitude, para a visão de Deus na
eternidade.
Cap. 13.º

CONSEQÜÊNCIAS

Examinamos a natureza e as condições da vida


interior. Vejamos agora algumas das suas conseqüências.
Uma vida interior bem vivida aguça a sensibilidade,
alarga a inteligência e fortalece a contade.
Aguça a sensibilidade porque poupa os sentidos. A
vida exterior é feita na base da hipertrofia e do exercício
contínuo dos sentidos. A vida voltada para fora exige dêles
uma atividade incessante, trazendo para o espírito a todo
momento as impressões colhidas lá fora. Ora, o exercício
exagerado de um órgão ou de uma faculdade produz o
mesmo efeito que a sua inatividade: a atrofia. Os sentidos
se embotam com a paralisia e com o excesso. A vida em
exterioridade, abusando dos sentidos, provoca a sua
petrificação. A vida interior, ao contrário, poupando os
sentidos, conserva e aumenta a sua agudeza. O
envelhecimento prematuro é sempre a conseqüência de um
desperdício. A mocidade, uma contenção. A vida interior
é, pois, uma condição de rejuvenescimento e de
preservação e intensificação da nossa sensibilidade. E,
portanto, serve a tôdas as vidas, inclusive à vida
extrovertida. Quanto mais agudos os nossos sentidos, na
percepção dos elementos que formam a base da nossa vida
do espírito, mais ganha o nosso mundo oculto.
Uma vida interior bem vivida alarga a inteligência.
Alarga-a, não só porque as imagens com que trabalha
chegam com mais abundância e mais reais, mas ainda
porque se intensifica a faculdade de penetração do
intelecto agente. A inteligência é uma luz. Quanto mais
intenso fôr o foco, mais provável a possibilidade de
penetração no âmago da realidade. Ora, é na vida profunda
do nosso espírito que se forma a luz da inteligência.
Sempre que vivemos voltados pra fora, prejudicamos a
formação e a renovação dêsse foco de luz. A inteligência
aumenta na proporção direta da interiorização. E na
inversa dispersão. A formação da atividade intelectual,
como um dínamo sui-generis, exige a concentração da
energia mental. Quanto maior fôr a preservação da
interioridade, mais provável a elaboração dessa energia. E
com ela é que podemos melhor conhecer, tanto o mundo
do não eu como o do próprio eu e, acima de tudo, o mundo
próprio do Criador do eu e do não eu, o mundo de Deus, a
vida sobrenatural. Só a vida interior intensa permite dar
calor, luminosidade, penetração à inteligência. Esta se
embota, quando nos perdemos na vida exageradamente
ativa. Cresce, ao contrário, quando entramos em nós
mesmos. Quantas verdades nos são reveladas pelo próprio
sono ! Basta que fechemos o circuito com as coisas
externas, para que o laboratório secreto dos nossos
sentidos internos comece a trabalhar: um nome esquecido
volta à tona, a solução de um problema matemático se
encontra, um êrro se descobre, só porque deixamos em paz
as nossas raízes biológicas.
Ora, se isso ocorre com a base física do nosso
espírito, que o sono preserva tôdas as noites (quando
preserva…) do esquartejamento pela extroversão, quanto
mais à medida que passamos ao psíquico e ao espiritual. É
então que se processa o verdadeiro encontro com nós
mesmos. E que a inteligência descobre o clima necessário
para se preparar à grande aventura cotidiana de descortinar
o desconhecido.
E, com tudo isso, é a vontade também que se
fortalece. Tudo está ligado nessa unidade transcendental
que constitui a nossa personalidade. Nada se processa em
qualquer dos nossos órgãos que não encontre repercussão
nos outros. Nada, tão pouco, ocorre com qualquer de
nossas faculdades, que não reaja sôbre as demais e delas
receba também qualquer impulso. Tudo está intimamente
ligado em nosso mundo pessoal. A agudeza dos sentidos
exteriores enriquece a inteligência através da
movimentação dos nossos sentidos internos. E a fôrça da
inteligência é que dirige a vontade e comunica-lhe vigor e
tenacidade. A operação acompanha o ser, não o precede.
Mas por sua vez volta a agir sôbre o ser, numa contínua
circulação de energias, físicas, psíquicas e pneumáticas. A
sensibilidade alimenta a inteligência, a inteligência
alimenta a vontade e a vontade alimenta, de volta, a
sensibilidade e a inteligência. Ora, êsse circuito vital é
diretamente derivado da riqueza, do equilíbrio, da fôrça,
da profundidade da vida interior, sem a qual nem os
sentidos se conservam sensíveis, nem o intelecto preserva
a inteligência, nem a vontade sabe discernir o bem. Sem
vida interior, os sentidos destilam apenas sensualidade, a
inteligência se converte em esperteza superficial e a
vontade em veleidade. Dá-se uma corrupção geral da
nossa vida do espírito e, com isso, da nossa vida de ação.
Pois a vontade, orientando tôda a nossa vida, exterior e
interior, para a sua finalidade própria, vai receber as
conseqüências finais da deturpação da vida sensível e da
vida intelectual que a precedem e perde completamente o
vigor e o senso da orientação.
A ausência de vida interior, portanto, é a causa mais
freqüente do desequilíbrio total de nossa vida, em
qualquer dos seus momentos, original, central ou final. A
preservação, ao contrário, de uma vida interior profunda e
pura atua sôbre tôdas as nossas faculdades, sôbre todo o
nosso ser. Quanto mais lucidamente entramos nas raízes
profundas do nosso ser, mais conseguiremos espantar de lá
os morcegos que Freud encontrou, e que só se refugiam
nas grutas desertas ou nas casas abandonadas.
A verdadeira psicanálise é uma vida intelectual
autêntica, pois os demônios e os ídolos só se instalam nos
lugares onde Deus deserta. Ora, Deus não deserta de lugar
algum, a não ser que nós de lá O expulsemos. E o homem,
para o seu mal e também para a sua grandeza, possui, em
si, até mesmo êsse estranho poder !
Cap. 14.º

AUSÊNCIA

Entre as propriedades acidentais do ser que a vida


interior permite sentir, conhecer e querer com mais ou
menos intensidade está, sem dúvida, a oposição presença-
ausência.
Comecemos por esta última. A ausência é uma
privação. É, portanto, uma propriedade negativa. Mas,
como tôda privação, implica a existência do contrário. O
mal só existe porque o bem existe. O feio só existe porque
o belo existe, confundido ou não com o bem. O êrro só
existe porque a verdade existe. Assim também com a
ausência. Não é uma inexistência. É uma negação: a
negação da presença. Não é, portanto, nem um valor em si
nem uma fantasia. É uma falta que supõe uma realidade.
Há, pois, em tôda ausência um reflexo do ser. Uma
sombra. Um sinal. E a percepção dêsse reflexo, dessa
sombra, dêsse sinal, é que exige de nós uma agudeza de
espírito que o grau de vida interior aumenta, diminui ou
mesmo suprime.
O homem privado de mundo interior é um homem
insensível à ausência. Vive satisfeito com o que vê; sente
apenas com os sentidos externos. Vive perdido nas coisas.
Vive, como as pedras ou as plantas, perfeitamente
integrado no mundo exterior. Porque o próprio animal já
sente, por vêzes, a falta do dono. É o sinal de uma vida
que se aperfeiçoa. E o homem é o animal que sente falta.
Quanto mais vive interiormente o homem, mais sente a
ausência das coisas e dos sêres. A ausência deixa de se
confundir com a inexistência, como ocorre com os sêres
inanimados, para pertencer àquela categoria intermediária
a que fizemos alusão: o sinal de uma existência oculta ou
remota.
A ausência, que é qualquer coisa de puramente
passivo para os sêres insensíveis -- como a ausência de sol
para uma planta, que pode provocar a morte -- passa a ter
nos sêres sensíveis, e particularmente no homem, uma
existência relativamente positiva. É uma privação, sem
dúvida, mas uma privação que supõe uma existência e,
portanto, leva consigo alguma coisa ou mesmo muito do
ser que representa.
À medida que nos aproximamos do homem, vai a
ausência perdendo a sua passividade. No homem adquire
um sentido positivo e até criador. E adquiri-o, como
dissemos, na razão direta de sua vida interior. A
insensabilidade à ausência é sempre o sinal do homem
absorto pela vida exterior, pelo trabalho, pelo prazer, pelas
paixões, pelo sofrimento, pelas anomalias de sua natureza,
por tudo o que arranque o homem de si mesmo. E, ao
contrário, quanto mais o homem entra em si mesmo e
cultiva as riquezas secretas do seu eu, mais sensível se
torna ao que lhe falta, ao que já teve, ao que tem ao longe,
ao que deseja. A ausência vai aumentando então o grau de
uma positividade. Até, por vêzes, ultrapassar o limite e
absorver o próprio homem, aniquilando-lhe a própria vida
interior. E provocando uma inversão de valores por
excesso, que pode levar ao desespêro, -- como nos homens
sem vida interior, insensíveis, frios, secos, indiferentes,
absorvidos pelo mundanismo ou por qualquer forma de
exterioridade, provoca uma supressão de valores por
deficiência, que os leva a merecer o qualificativa dos
salmos: "nati quasi non nati". Há três séculos, um grande
moralista fêz da ausência, numa sentença, a mais perfeita
análise que já vi. Disse La Rochefoucauld que -- "a
ausência é como o vento, que apaga as velas e atiça os
incêndios".
A fôrça ativa da ausência e o seu duplo efeito nas
paixões humanas, frágeis ou fortes, estão aí
admiràvelmente resumidos. A ausência aparece então,
nesse nível, como uma realidade, uma forma secreta de
realidade remota, passada ou futura. Por vêzes, como a
realidade que nos recobre por tôda a parte, quando saímos
do campo limitado dos nossos sentidos e da nossa razão: a
realidade do mistério.
O mistério é a mais generalizada das ausências. É a
que se contém no fundo de cada coisa, quando queremos
chegar às suas raízes mais remotas. E por isso é que a
sensibilidade mais apurada, a inteligência mais aguda, a
vontade mais firme, não se satisfazem com as aparências.
Sentem, compreendem, conduzem para lá das superfícies,
para lá do imediato. E tocam então êsse mundo secreto das
ausências, que nos permite vislumbrar o verdadeiro mundo
interior das coisas, do não eu, que corresponde, fora de
nós, ao nosso próprio mundo interior. E chegamos então à
maior das ausências do mundo, à Ausência em si, a
ausência de Deus ! É pela ausência que chegamos à
presença de Deus, como é pela ausência que chegamos à
presença de tôdas as coisas, abaixo de Deus, e de modo
particular às criaturas. E de modo particularíssimo às
criaturas que nos são mais caras. Tocamos então a
ausência, como se fôsse realmente qualquer coisa de
positivo, de real, de imediato. Carregamos conosco essa
ausência. Dialogamos com ela. Vivemos com ela. E
jamais nos sentimos sós. Deus, o grande Ausente, está
sempre conosco. E os ausentes queridos, especialmente
quando vistos através do grande Ausente, tornam-se para
nós os mais vivos dos companheiros. E é por isso que
aquela religiosa do Carmelo de Santa Teresa, a filha de
Capistrano de Abreu, pôde escrever um admirável poema
de sua presença a todos os movimentos da cidade, da
madrugada à noite, tudo através da ausência, tudo através
da presença da ausência. Ai dos insensíveis ao calor das
coisas ausentes ! Ai daqueles para quem a ausência é o
sinal da morte ! Quando a ausência, ao contrário, se a
sabemos entender, e o grande sinal de vida, o caminho
pelo qual os poetas nos levam ao coração das coisas e os
corações anulam o pêso intolerável das distâncias ou
transpõem os muros intransponíveis das barreiras que nos
isolam uns dos outros. Pode ser, até mesmo e a cada
momento, o sinal mais vivo da existência de Deus.
Cap. 15.º

PRESENÇA -- I

Se a ausência é uma privação, a presença é mais do


que uma existência: é uma coexistência. Mais do que uma
coexistência, é uma convivência. Se a ausência é um sinal
negativo, a presença é uma realidade duplamente positiva.
Se a ausência, portanto, possui, apesar disso, uma riqueza
própria, para quem viva uma vida interior profunda,
quanto mais a presença, que não só suprime a ausência
mas duplica a existência !
Pois a presença não é apenas um sinal de existência.
Isso é o privilégio da ausência, já que as aproximações do
ser são: a inexistência, a potência, a ausência, o caos e o
ser definido e existente em ato. A inexistência é o não-ser,
é êsse néant que os existencialistas querem confundir com
o ser, agregar ao ser, constituindo êsse êter-avec néant,
que nega o princípio de contradição e chega a um
panteísmo mais absoluto que o de Spinoza. Êste ainda
afirmava que "omnis determinatio negario est". Ao passo
que Sartre diria: "omnis determinatio negation non est"...
A potência é o ser imperfeito em vias de atualização.
A ausência é o ser não presente, mas atuando, de longe,
por um sinal que é a própria ausência consciente, pois a
ausência inconsciente se confunde, em nós, com a
inexistência.
O caos é o ser vago e indefinido, que os antigos
opunham ao cosmos. E só quando chegamos ao ser
determinado, é que a categoria da Presença pode surgir,
como uma plenitude do ser, o ser em face do outro ser.
Pois a presença é uma relação e não apenas uma noção. É
uma relação de contiguidade. É uma existência dupla e
próxima e por isso mesmo agindo e reagindo
reciprocamente uma sôbre a outra.
Se o homem é um animal naturalmente "político",
como dizia Aristóteles, isto é, sociável, a presença
representa para êle uma necessidade natural do seu ser. E
se o homem é um ser elevado à ordem sobrenatural,
quando dêle não temos uma concepção mutilada, a
presença sobrenatural é para êle tão necessária quanto as
presenças naturais. E por isso a primeira necessidade de
nossa vida sobrenatural é a presença de Deus, como a
primeira necessidade de nossa vida natural é a presença do
Próximo.
A Ausência é apenas um derivativo da presença. É
uma aproximação. É um caminho. É um sinal. Só
conhecemos a Deus através da Sua ausência, pelas coisas
criadas, isto é, por aquilo que não é Deus, mas indica a
Sua existência. Daí dizermos que Deus está presente em
tudo. Está presente, sem paradoxo, por Sua ausência. Está
presente, não porque tudo é uma ausência de deus, isto é,
um sinal de Sua existência, embora não de Sua presença
real. Essa, a presença real, a Fé no-la dá como um dom,
como um presente divino, que torna Deus presente
misticamente no mundo pela Eucaristia, como o tornou
presente pelo Verbo incarnado.
São presenças sobrenaturais que alimentam a nossa
condição de ser elevado a uma ordem que transcende
substancialmente a ordem da natureza de todos os outros
sêres. Só o homem foi elevado à ordem sobrenatural, e por
isso mesmo só êle, com tôda a sua iniqüidade, pode gozar
dêsse privilégio único de uma Presença Real de Deus em
si, que ultrapassa tôdas as possibilidades naturais do seu
ser e só existe pela pura gratuidade de um dom divino.
Essa é, pois, a maior das presenças de que podemos
gozar na terra. Mas a exigência da presença é uma sêde de
todo ser, desde os seus mais elementares aspectos. A
existência chama a existência e atua sôbre a existência. A
ação de presença é um fenômeno químico, a catálise, que
existe, pois, no próprio mundo dos sêres inanimados. À
medida que subimos na escala dos sêres, vamos
encontrando um valor novo que aumenta na medida da
espiritualidade: a presença. Simples coexistência no
mundo vegetal, passa a gregarismo no mundo animal e a
sociabilidade no mundo humano. e nesse mundo do
homem, a ação e o valor da presença crescem, então, na
proporção direta da vida interior. Passa então a ser mais do
que uma coexistência, uma presença puramente passiva,
para ser, ou pelo menos poder ser uma presença irradiante,
e por conseguinte extremamente ativa. A medida dessa
passagem da presença, da passividade catalítica, à
atividade convivente, é a vida interior. Para o homem
privado dela, a presença é indiferente. Ou simplesmente
material e acidental. Permanece no plano da presença
puramente biológica ou social, que pode ser menos do que
a própria ausência. A ausência, para quem vive
profundamente, é alguma coisa de muito maior do que a
presença para quem vive superficialmente. Em si, a
presença é mais do que a ausência. Mas em nós, pode ser
menos. Quando carregamos conosco uma ausência
querida, estamos muito mais ausentes dos presentes em
tôrno de nós, do que presentes ao ausente... São, por
exemplo, as abstrações e as distrações do amor. A mãe que
tem o filho na guerra, ou mesmo no estrangeiro ou longe
de si, está muito mais presente ao seu ausente querido do
que aos presentes em tôrno dela. É a realidade que
comunica a êsses valores o grau de vida interior.
Para quem vive realmente, a presença é a plenitude
do ser. A presença tem sempre qualquer coisa de divino. É
um aumento de intensidade do ser. É uma aproximação do
Ser em si. É uma ante-sala da Visão beatífica. Por isso
nada supre a presença. E ela comunica, ao concreto, uma
superioridade intrínseca sôbre o abstrato.
Cap. 16.º

PRESENÇA -- II

Dizíamos que a presença comunica ao concreto uma


superioridade intrínseca sôbre o abstrato. É porque a
presença é uma propriedade do ser determinado e singular.
E a abstração é precisamente o esfôrço do espírito para
passar do singular ao geral. A abstração, pois, é um
método que abole as presenças para nos levar ao
conhecimento das essências, dos universais. E com isso
nos transporta naturalmente, do terreno das presenças
singulares e da coexistência ou da convivência, para o
plano das verdades ausentes, isto é, das verdades que
transcendem o plano das existências singulares e sensíveis
para nos entregar às categorias do universal, físico,
matemático ou metafísico. É a abstração que nos leva a
subir do simples plano existencial das singularidades a
êsses planos superiores, onde tocamos as raízes, as
matrizes, as essências dos sêres. É uma ascensão, é um
enriquecimento, é um caminho que nos leva a verdades
cada vez mais amplas e profundas, mas que se faz à custa
de um tremendo ascetismo: a privação da presença.
Temos de sacrificar o presente, isto é, o concreto, o
singular, coexistente ou convivente, o próximo, o tangível,
o conversável, o visível, para subirmos ao conhecimento
das essências transcendentais. É um ascetismo, sim, mas
um ascetismo compensado, quando essa separação das
presenças é provisória e se faz para chegar a uma Presença
suprema ou para voltar à convivência incomparável com
as presenças humanas e mesmo menos que humanas. A
filosofia é a base da vida ou não é filosofia. A abstração é
uma volta à presença ou não é verdadeira abstração. Tôda
filosofia, tôda ciência, tôda ação, tôda idéia, que nos
arranca às presenças para nos levar à abstração pela
abstração, à ciência materialista, à ação desumanizante, à
idéia puramente ideológica, é uma diminuição do nosso
ser. E diminuição porque nos arranca ao mundo da
presença para nos levar a um mundo sem vida, em que as
coisas e os homens vivem apenas como elos passivos de
um determinismo cego. Um mundo em que a presença
individual perde todo sentido.
Quando, ao contrário, o mundo verdadeiro é povoado
de presenças. É o mundo em que cada coisa, já não digo
cada pessoa, cada coisa tem um valor de presença efetiva,
que nenhuma abstração, nenhuma lei, nenhuma idéia pode
susbtituir.
É o inefável que a presença comunica às coisas e às
pessoas e que nada susbtitui. A idéia de uma maçã é coisa
completamente distinta de uma maçã. Não que o conceito
não nos dê uma noção exata da coisa. Dá-nos. Chegamos à
essência do objeto e não apenas ao seu "fenômeno", como
pretendem os idealistas. Mas uma coisa é conhecer a
essência de uma maçã, outra coisa é ter presente a sua
existência. Foi isso o que perturbou os existencialistas ao
ponto de confundirem todos os valores no valor
existencial. Mas todo extremo é igualmente falso. O
conceito de maçã não nos satisfaz inteiramente, porque,
como dizia Santo Tomás -- "a realidade transborda do
conceito". E essa realidade não é outra coisa senão a
presença da maçã. Esta maçã, em minha mão, em meu
olfato ou em minha bôca, dando-me a plenitude do
conceito e da realidade, é que representa totalmente a
maçã. Êsse é o mistério da presença, que enriquece a nossa
vida interior, como é por ela enriquecido e nos transborda
dessa maçã, que trouxe à humanidade tantas dores de
cabeça, ao mais sublime dos presentes que ela permitiu a
essa mesma humanidade receber: o dom da Presença real!
Nada supre a presença. Uma das cenas mais patéticas
do teatro de Ibsen é aquela de Brant, quando o pastor
obriga a espôsa a desfazer-se dos brinquedos que
pertenceram ao filhinho morto. Os objetos vivem uma
vida a seu jeito, mas uma vida a que nós ligamos um valor
por vêzes infinito. Ou um valor de ausência, como sinal de
uma existência querida longe de nós, ou para sempre
desaparecida, e representada por aquêle objeto que tanto
guarda da sua presença, -- ou a própria presença do objeto
em si, que tem uma ação catalítica e psicológica misteriosa
sôbre o nosso ser. Por isso carregamos conosco tantos
objetos que os outros não podem compreender...
Se isso acontece com as coisas, quanto mais com as
pessoas. Basta, às vêzes, a presença física sôbre o nosso
sono. Acordamos, quando alguém se aproxima de nós.
Nem sempre pelo ruído. Pela simples ação da presença de
um corpo humano, de uma vida perto de nós. E na medida
em que sabemos sentir, conhecer, agir, viver nosso mundo
interior, aumenta essa ação da presença. O homem
exteriorizado sente fracamente, ou não sente o valor da
presença. Ao passo que a vida interior profunda torna a
presença do ente querido uma transfiguração, uma
iluminação, uma renovação das próprias fontes da vida. Os
poetas e os gênios musicais nos contam ou nos fazem
sentir a ação do amor sôbre a presença. Os místicos ainda
mais. Lembremo-nos do primeiro ato de Tristão e Isolda,
quando o filtro comunica o amor e aquêles dois que,
mesmo presentes, não se haviam visto, começam a ter pelo
olhar (o tema musical em tôrno do qual gira tôda aquela
genial orquestração) a revelação da presença do outro.
Lembremo-nos de São João da Cruz a nos contar a
ascensão da alma à presença crescente de Deus.
Tudo é a revelação concreta de que a Presença é uma
plenitude a que nada se compara. A abstração pode privar-
nos momentâneamente da presença, mas é para no-la
restituir, se é verdadeira abstração, em sua plenitude, do
íntimo dos sêres onde há sempre uma presença, à própria
presença de Deus, que é o sentido infinito da nossa própria
vida.
O final da Nona Sinfonia é um Hino à Alegria e é,
por isso mesmo, um Hino à Presença. Pois a esperança do
encontro, na terra como no céu, é a alegria suprema que
renova continuamente os nossos corações.
Cap. 17.º

SABEDORIA

A vida interior é a sabedoria a quatro dimensões: a


evocação ou passado; a antecipação ou futuro; a
profundidade ou meditação e a elevação ou prece.
É, antes de tudo, um equilíbrio entre essas quatro
dimensões. Não um equilíbrio qualquer. É um equilíbrio
de fôrças e não de fraquezas. Confundimos, muitas vêzes,
equilíbrio com timidez, moderação com mediocridade,
temperança com mornura, medida com academismo,
prudência com pusilanimidade. Essas virtudes de
equilíbrio, moderação, temperança, medida, prudência, à
luz da vida interior, têm tôdas um só nome: sabedoria. E
essa sabedoria se manifesta como um equilíbrio entre
essas quatro dimensões, cada uma das quais com fôrça
própria suficiente para arrastar a nossa vontade e por ela
fixar o sentido de nossa vida. Se viver interiormente não é
viver em surdina ou em câmera lenta, não é tão pouco
viver descompensadamente em qualquer das quatro
direções a que nos arrasta o mundo exterior, o mundo
superior ou o próprio mundo interior. Quando qualquer
dessas direções atrai, com exclusividade, o nosso espírito,
com isso arrastando também o nosso corpo, uma coisa
perdemos pela certa: o equilíbrio. Não se trata de manter o
equilíbrio à custa da intensidade de qualquer dêsses
apelos. Trata-se, ao contrário, de desenvolver ao máximo
todos e cada um dêles separadamente. A vida interior é
uma vida em intensidade. Sendo uma vida intensa e não
extensa e muito menos cutânea, exige por natureza que
tôdas as direções a que é chamada mantenham uma
atração considerável sôbre o nosso eu. Há,portanto, duas
atitudes negativas e uma positiva no sentido de
desenvolver o nosso mundo interior.
A primeira atitude negativa é impedir o
enfraquecimento de qualquer daquelas quatro imantações,
se assim nos podemos exprimir. Se assim devemos
proceder, preliminarmente, é que existe essa tendência
natural a conservar o equilíbrio à custa das fôrças de
atração. Se assim procedemos, então, é que nos deixamos
levar por aquelas confusões a que acima aludimos.
É falsa a virtude alcançada à custa de qualquer
espécie de mutilação. Não é suprimindo a tentação, mas
vencendo-a que realizamos o nosso destino. E nosso
destino é não pecar. Não é suprimir o pecado, coisa que
escapa ao nosso poder, pois é da alçada divina. De nossa
alçada é evitar o pecado. Assim também, só conseguimos
manter o clima de nosso mundo interior se começar-mos
por não mutilar nenhum dos quatro apelos que,
constantemente, recebemos, do passado, do futuro, do
fundo da alma e do alto, para nos dirigirmos a essas
direções. A solução fácil é, naturalmente, diminuir a
atração para facilitar o equilíbrio e até suprimi-los para
alcançar a ataraxia. Mas o equilíbrio só é sabedoria se não
fôr ataraxia, se não fôr uma parada ou uma redução do
ritmo. Êsse é, portanto, o primeiro esfôrço negativo.
O segundo é impedir que um dos apelos seja atendido
com exclusividade, em prejuízo dos demais. É também um
meio fácil de obter o equilíbrio interno. Ou diminuir a
tensão das quatro fôrças exteriores ou conservar apenas
uma delas, com exclusão das demais. Ainda aí, se assim o
fizermos, haverá desequilíbrio. No primeiro caso será por
atenuação da intensidade dos apelos. No segundo será pela
mutilação ou supressão de um apêlo, em benefício dos
outros. É uma segunda tentação a vencer. Nem
enfraquecimento de todos, nem supressão de alguns em
benefício dos demais. São dois cuidados preliminares, em
sentido negativo, para podermos passar então a uma ação
positiva.
Pois o equilíbrio, essência do mundo interior, não é
uma inação, ou uma supressão, ou uma redução. É, ao
contrário, a conservação de uma intensidade máxima em
cada um dos quatro sentidos a que somos solicitados
continuamente, se queremos manter não só intata a nossa
integridade, mas desenvolver ao máximo as nossas
virtualidades.
Dá-se então a intervenção positiva de nossa vontade
na elaboração do nosso mundo interior. Os dois passos
negativos são preliminares. Preparam apenas o terreno.
Limpam as ervas más. Aplainam. Purificam. Impedem a
vitória das soluções fáceis. Mas a vida interior só começa
com a posição positiva e construtiva. Construímos a nossa
vida interior, como Santa Teresa construía os seus castelos
espirituais, na direção de Deus.
E a primeira tarefa nessa construção íntima é
precisamente ter uma noção dinâmica e não passiva do
equilíbrio. Equilíbrio só é sabedoria quando é atividade.
Quando Bergson comparou a mística oriental e a mística
cristã e concluiu, -- êle que vinha do puro evolucionismo
naturalista ou quando muito de um hebraísmo hereditário e
subconsciente ou racial -- pela superioridade dessa última,
encontrou nela como elemento capital o que foi para todos
uma surprêsa: a ação. E, no entanto, tinha razão o filósofo.
A mística, que é um grau supremo da vida interior, baseia-
se também na sabedoria e, portanto, no equilíbrio íntimo.
Equilíbrio entre faculdades e, acima de tudo, equilíbrio
entre dimensões e fôrças. Pois o que distingue essas
dimensões é serem gravitacionais. É possuírem fôrça
própria e atraírem, cada qual para seu lado, de fora para
dentro. A sabedoria não é, portanto, diminuir ou suprimir
essas atrações. É compensá-las, sem qualquer atenuação. É
interpentrá-las, sem prejuízo da integridade de cada uma.
É realizar, não um encontro, uma encruzilhada, mas uma
verdadeira resultante, uma convivência de que deriva a
mais perfeita das vivências. A sabedoria é, por
conseguinte, um equilíbrio instável e dinâmico, que exige
uma contínua vigilância. Pois vive em estado de risco. É
uma fôrça de equilíbrio e um equilíbrio de fôrças. E a vida
interior é o único meio humano de alcançar a sabedoria,
confundindo-se com ela.
Cap. 18.º

SAUDADE

A sabedoria é, portanto, um equilíbrio criador, a quatro


dimensões: para trás, para frente, para baixo e para cima.
Examinemos cada uma dessas fôrças de atração que atuam
sôbre a nossa vida interior e representam para ela
elementos essenciais de sua fecundação. Pois já vimos que
a vida interior não é uma cisão com o mundo exterior, mas
um aproveitamento de tôdas as energias sadias que dêle
recebemos para as transformarmos, pela sabedoria, em
personalidade.
A primeira dessas fôrças é a do passado. Para cada
um de nós o passado não é o que passou; é o que não
passou. É o que ficou em nós do que passou. O que foi por
nós vivido, ou passa de todo, ou fica esquecido ou
continua a viver.
Se passa de todo, é que morreu. Há um passado
morto. Tão morto, por vêzes, que nem mesmo a sua
evocação consegue despertá-lo de sua imobilidade de
pedra. É como se jamais houvesse existido. Êsse é
realmente o passado que passou.
Há, em seguida, o que esquecemos. É o que
permanece em nós no subconsciente. Dêle temos, por
vêzes, uma suspeita vada, como que um rumor longínquo
de vagas que ainda se movem, não sabemos em que praia
deserta e selvagem do nosso mundo interior, já esquecido,
já retomado pelas novas presenças que destroem todo sinal
de passagens anteriores, como essas picadas das
montanhas por onde ninguém passa e que, em poucos
anos, são completamente recobertas pela vegetação
selvagem, como se por ali jamais tivesse passado alma
viva. Mas seu desaparecimento pode ser apenas aparente.
Fica, às vêzes, por baixo da erva rasteira, o caminho
trilhado e, se algum dia limparmos o mato, a trilha
ressurgirá como outrora. Assim se dá com as coisas
esquecidas. Ficam na sombra latentes. E um dia, por uma
circunstância fortuita ou por um esfôrço de evocação, tudo
volta à tona, como se tivesse ocorrido ontem. E as
emoções renascem, como se nascessem de novo. Evapora-
se o tempo, como se não tivessem passado anos, por
vêzes, de esquecimento, e êsse passado esquecido volta a
fazer parte ativa do nosso presente mais vivo.
E há o passado-presente, há o passado que, longe de
ficar esquecido em nós e reviver a um toque qualquer das
circunstâncias acidentais,vive conosco a cada momento,
como o mais vivo dos presentes. Dêle se não distingue, às
vezes baço e longínquo, como o passado. Enquanto êste
nos dá de tal modo a ilusão de viver conosco, hic et nunc,
que nos surpreendemos, por vêzes, falando em voz alta
aos mortos ou aos ausentes, como se estivessem aqui
conosco. Êsse passado vivo é que constitui uma das quatro
grandes dimensões da nossa vida interior. Por êle é que se
processa a continuidade de nosso ser. Nada do que foi
nosso, um dia, deixa de o ser, quando teve razões de viver
e não cai na vala comum do passado morto. Se teve razões
profundas de ser, jamais se perde e continua a atuar sôbre
nós, para o bem ou para o mal. Porque o passado em si,
mesmo o passado vivo, mesmo essa fôrça que nos afasta
do presente, é em si mesmo indiferente ao nosso progresso
ou à nossa decadência íntima. Pode ser fecundo, pode ser
nocivo. Nocivo se a êle nos prender a evocação do mal.
"Nossas obras nos acompanham", diz o Apocalipse.
"Opera enim illorum sequuntur illos" (Apoc. XLV, 13).
As boas e as más. Essas últimas podem prender-nos como
se fôssem paixões presentes. A saudade não é apenas um
sentimento de doçura, um dos mais fecundos da nossa vida
interior. pode também ser uma paixão entorpecente. Ai
daqueles que não conhecem e curtem a poesia profunda da
saudade. Ai daqueles, também, no extremo oposto, que se
deixam vencer por ela. A saudade é um estímulo para a
vida interior bem vivida. É o meio de têrmos sempre
vivos, em nós, as pessoas e os sentimentos, as lições e as
coisas que um dia constituíram as fontes da nossa vida. O
homem sem saudade é o homem sem vida interior. É o
homem que vive para si, escravo do presente. É o homem
que desperdiça as riquezas da vida. É o solitário, no mau
sentido do têrmo. O separado, o secionado, o
desmemoriado mesmo que tenha memória, mas a memória
nêle é um simples reflexo condicionado. Ai do homem
sem saudade !
Como ai daquele que se deixa devorar pela saudade.
A saudade não é apenas uma melancolia sem
conseqüência. É uma paixão tremendamente ativa, que
pode abrir à nossa vida interior novos rumos, com a
colaboração dessa presença misteriosa do passado e de
tudo o que nêle nos enriqueceu espirituralmente, -- como
pode levar-nos à mais triste das mortes, à morte em vida.
Quando nos deixamos devorar pela saudade, corrompe-se
tôda a nossa vida interior. Ficamos envenenados, amargos
e até siderados pelo desespêro. O presente perde todo
sentido. E a própria vida se torna absurda.
A evocação é, portanto, uma fôrça viva quando torna
o passado presente e trazendo a êsse presente novas razões
de ser. Quando, ao contrário, o passado se converte em
uma saudade selvagem que enlaça o presente e o asfixia
como um matagal, então essa evocação se volta contra nós
e destrói tôda vida interior. É o que acontece quando essa
dimensão se torna tão absorvente, que destrói as demais.
Viver só no passado, como viver só de saudades, é um dos
meios de aniquilar a nossa vida interior. Ao passo que
viver com o passado, como ter sempre conosco a
inspiradora companhia da saudade, é renovar
constantemente o calor dessa vida.
Não há, portanto, vida interior fecunda sem a
convivência do que passou, sem a continuidade no tempo,
sem a presença contínua do que, em qualquer momento,
foi para nós a alegria da vida.
Cap. 19.º

FUTURO
Se a primeira dimensão da nossa vida interior é o
passado, a segunda é o futuro. Para que o passado seja em
nós uma fôrça viva, é mister não nos tolha os movimentos
para o futuro. Pois a direção normal de nossa vida é para a
frente. Não me canso de citar aquelas palavras de Cristo:
"Nemo mittens manum suam ad aratrum el respiciens retro
aptus est regno Dei" (Luc. IX, 62). Aquêle que puser a
mão no arado e olhar para trás, não está preparado para o
reino de Deus.
O futuro é o norte da nossa vida interior. E esta não é
uma água parada, nem uma onda revôlta. É uma corrente.
É um movimento que se dirige para alguma coisa que fica
à nossa frente. É alguma coisa que cresce. O mundo
interior, como o mundo das sementes, é o próprio domínio
da finalidade. Como cresce uma semente ? Não no sentido
de onde vem, mas no sentido para onde vai, isto é, no da
realização de sua própria natureaza. A semente de trigo
cresce no sentido da espiga. Esta é o seu futuro. Êste é o
seu destino. Para êle tendem tôdas as suas potencialidades.
Assim ocorre com a vida puramente animal. No germe
mais informe, sem a menor intervenção exterior, já está
preformada a sua condição. E, quando se dá qualquer
intervenção genética, não é para mudar de espécie. É para
aperfeiçoar a espécie. Êsse aperfeiçoamento pode dar-se
mesmo depois de nascido. Como pode ocorrer uma
degradação, uma parada, uma volta. E sempre que isto se
dá, é sinal de que o animal não realizou plenamente a sua
forma. Ou não se formou. Ou foi deformado. Na
realização de sua forma está a sua finalidade.
Com mais razão do que sucede na escala da vida
animal, ocorre outrotanto com o ser humano. De todos os
sêres vivos, o homem é o que começa mais informe e pode
chegar à maior plenitude de sua forma. A escala a ser
percorrida pelo homem, no caminho de sua finalidade, é a
maior de todo o reino animal. É o que parte de mais baixo,
pois o recém-nascido não pode sobreviver, fisicamente, se
não receber qualquer amparo exterior. E é o que chega
mais alto, pois o destino do homem é mover-se no sentido
de uma imortalidade, que só a êle toca entre todos os sêres
criados, exatamente porque ultrapassa, por natureza, o
mundo animal na mesma proporção em que êste ultrapassa
o mundo vegetal e êste o mundo mineral.
Mas aqui não é dessa dimensão (a elevação) que me
quero ocupar e sim da que leva o homem ao seu futuro, no
tempo. O futuro é uma dimensão temporal, como o
passado. É na linha do tempo que ambas atuam sôbre a
nossa vida interior. E o futuro atua em nós sob a forma de
vocação. O futuro é um chamado à responsabilidade.
Como a responsabilidade é a consciência do dever. Tudo
isso são apelos do futuro em nós. É porque ouvimos, em
nós, alguma coisa que nos chama à frente e nos obriga a
olhar para dentro de nós mesmos e considerar o sentido da
nossa marcha, que sentimos tão vivamente, se temos vida
interior, o problema da vocação. É na medida da
intensidade dessa vida que tomamos consciência do nosso
destino e da própria existência de um destino, de um
sentido para a nossa vida. É no mundo interior que essa
consciência se desenvolve e sentimos mais vivamente o
dever de olhar para a frente, e o problema da vocação. O
homem sem vida interior deixa-se viver, isto é, deixa-se
levar para a vida.
O futuro não o preocupa porque não o ocupa. É o
fatalismo ou o determinismo que o arrasta, como uma
fôlha morta deslizando com o rio. Há uma sadia
despreocupação com o futuro, como veremos ao nos
ocuparmos com a terceira dimensão do nosso mundo
interior. Mas não é a que provém de uma recusa do
destino, da surdez ao apêlo da vocação. Devemos, sempre,
ao contrário, estar atentos ao futuro. Porque todos temos
uma missão a realizar no tempo. Todos temos de descobrir
a adequação de nossas faculdades com a nossa finalidade.
É o problema, central em nossa vida, da vocação, do
chamado do destino, da terceira dimensão do nosso mundo
íntimo.
Há três modos de atender a êsse chamado, como há
só um de não atender: o de fechar os olhos ao futuro e
deixar-se absorver, completamente, ou pelo presente ou
pelo passado. É uma das mutilações da nossa vida interior
a que já nos referimos anteriormente.
O primeiro dos modos de atender ao chamado é o da
displicência. É atender mal. É a indiferença para com o
futuro. É a meia tinta, é a água morna, é a preguiça ou o
mêdo de corresponder ao chamado. Quantas vêzes
fechamos os olhos à evidência de um dever, pelo mêdo
das responsabilidades, pelo temor de não estar à altura,
pelo respeito humano. Há motivos, muitas vêzes, justos
nessas recusas. E há o problema das hesitações, da dúvida,
que é um dos males mais cruciantes de nossa vida interior.
O primeiro modo, pois, é a indiferença, sintoma de uma
fraca vida interior. O segundo é a absorção. Assim como o
passado pode apoderar-se, ilegitimamente, de nós, assim
pode o futuro. O desespêro da saudade, que pode levar ao
crime. O ambicioso é justamente o homem que se deixa
oprimir pelo futuro. Transforma essa segunda fôrça em
fôrça única e só pensa em vencer, em ser rico, poderoso,
forte. O amor da gloríola vence nêle tôda a vida da glória,
quarta e suprema fôrça de nossa vida interior. É a suprema
força de nossa vida interior. É a negação desta pela
escravização do orgulho e à idolatria do poder ou da
posse.
Quanto à maneira justa e fecunda de atender ao apêlo
do futuro, é procurar ser fiel à sua vocação. E a virtude
que atua para isso é, acima de tudo, a coragem, a fortaleza
moral. É a virtude da ação. É a virtude da obediência ao
dever. É o heroísmo que vence todos os obstáculos que
nos vêm do mêdo e, sobretudo, do amor. Pois assim como
a perfeição do ascetismo é renunciar aos prazeres lícitos, a
perfeição da fortaleza é vencer a doçura dos afetos mais
queridos e mais santos, sem cair na rudeza do coração nem
no jansenismo. Eis um dos momentos em que o equilíbrio
da vida interior mais e melhor ilumina os nossos passos,
no dever de fidelidade ao futuro sem traição ao passado.
Cap. 20.º

MEDITAÇÃO
A terceira dimensão da nossa vida interior é a direção
em profundidade. É a densidade dos nossos sentimentos,
dos nossos pensamentos, dos nossos atos.
Há, em primeiro lugar, uma densidade, por assim
dizer física, que obtemos sobretudo pelo apêlo ao tempo.
Não devemos jamais viver precipitadamente. A
impaciência é a inimiga nata da densidade. Precisamos
parar, antes de pensar ou depois de sofrer. Essa detenção
do tempo é uma condição tão essencial à densidade de
nossa vida interior, como uma barragem é indispensável à
retenção e ao aprofundamento das águas de um rio. Tudo,
em nós, tem a tendência a passar depressa. Se não
contrariarmos essa inclinação, passamos a viver em
superfície e renunciamos à vida interior. Se a queremos
ter, é preciso começar por obter essa densidade física, pois
os sentimentos se tornam mais sentidos se os contemos; os
pensamentos mais pensados se os retemos pela atenção; as
ações mais ativas se as acumulamos. Refrear os
movimentos desencontrados e precipitados do nosso afã
de viver é o primeiro meio de tornar mais espessas tôdas
as manifestações de nossa vida, servindo assim à terceira
dimensão do nosso mundo interior.
A essa densidade física, questão de demora e
retenção do movimento, vem somar-se uma densidade
mais profunda: a intelectual. Não basta viver mais
lentamente, para que se viva em profundidade. A lentidão
pode ser até um sinal de pobreza interior, de ausência de
reação profunda, ou mesmo de preguiça mental. A
sonolência tira o sono e só o sono é reparador. Assim
também uma densidade física que não seja acompanhada
de uma densidade psíquica, é inútil ou contraproducente.
Se devemos reduzir a velocidade natural dos nossos atos e
entreatos, não é para descansar e sim para viver mais, para
viver em profundidade. E para isso há uma elaboração
intelectual de cada momento de nossa vida, com a qual
enriquecemos a sensação do momento, a idéia, a decisão,
com tudo aquilo que as outras três dimensões nos
fornecem. Eis porque o nome próprio dessa terceira
dimensão interior é -- Meditação.
Meditar é aprofundar, pela análise e pela síntese, pela
observação e pela comparação, pela aplicação da
inteligência e também pela descida ao subconsciente, pelo
isolamento e pelo silêncio, pela marcha ou pela
imobilidade. Meditar é entrar em si. É deixar que o
trabalho misterioso da natureza e da graça, em nós, se faça
por si, como que independente de nossa vontade e de
nossa atenção. Eis porque a meditação exige certas
condições exteriores, de silêncio e imobilidade (por vêzes
de uma mobilidade regular, como andar de lá para cá, no
memso local e de preferência na penumbra, ou deixar que
a paisagem passe por nossa imobilidade, como num
veículo em velocidade), e certas condições interiores de
paz e de despreocupação.
A preocupação é a inimiga da meditação e a obsessão
é a preocupação doentia, transformada em idéia fixa. Tudo
isso pode ser vencido pela meditação, em estado
transcendental, como a que os iogues procuram realizar,
mas normalmente perturba e impede a meditação como
norma comum de vida. Pois o defeito do ioguismo é
transformar a meditação num estado extraordinário ou
num malabarismo, que pode chegar a grandes alturas, mas
não corresponde ao homem normal. A meditação, que a
vida interior supõe -- como centro de tôdas as suas
dimensões, pois dela deriva diretamente aquêle equilíbrio,
a que nos referimos preliminarmente -- essa meditação é a
que cada um de nós, simplesmente, cotidianamente,
normalmente, pode e deve aplicar a todos os seus atos e
pensamentos, até durante a agitação ou o trabalho, como
centro de gravidade de sua vida interior. Como essa vida
interior, já o vimos, é o centro de gravidade de tôda a vida
exteriorizada.
Há ainda uma terceira medida de densidade que a
completa: a densidade moral. Não basta parar. Não basta
meditar. É preciso avaliar. A densidade moral é a
aplicação de medidas de valor a cada expressão íntima de
nossa vida. Os filósofos chamam de sindérese a essa
sensibilidade aos valores morais. E Santo Tomás a
compara à sutileza e ao ardor de uma chama. É a centelha,
diz êle, que escapa à intuição dos anjos e com ela ilumina
a inteligência e a faz ver e sentir os valores supremos, de
ordem moral e metafísica, que a razão simples, não
iluminada, não percebe. Essa densidade moral é essa
sindérese, que dá à vida interior uma energia especial e
aprecia cada movimento de nossa vida à luz de uma
responsabilidade total (com o passado e com o futuro) e,
sobretudo, no sentido da quarta direção, que os completa.
Devemos, pois, procurar sempre viver em
profundidade. Reduzir a nossa pressa, para que cada coisa
adquira e revele o seu pêso próprio. Meditar intensamente,
a cada passo de maior responsabilidade, de modo a que
cada coisa aproveite da riqueza de tôdas as outras coisas,
cada ato e cada pensamento, da experiência e do calor de
todos os outros pensamentos e atos. E finalmente pesar
tudo isso, na balança dos valores morais, cujas cifras são
por vêzes um mistério e uma contradição para a prudência
da carne e para as medidas do mundo, de modo a viver em
profundidade não só física e intelectual, mas espiritual.
Só essa vida em profundidade, física, intelectual e
moral, pode dar-nos o clima interior indispensável para
sofrer sem desesperar e também suportar a boa fortuna
sem se corromper, pois é tão difícil ser infeliz como ser
feliz, sorrir como chorar.
Cap. 21.º

A ORAÇÃO IMPLÍCITA

A quarta dimensão de nosso mundo interior, finalmente, é


a que nos eleva a Deus. É a oração. Mais do que uma
dimensão em sua transcendência, a fixação do seu destino
final. Sendo o nosso caminho para Deus, é a oração a
medida de todo o nosso mundo interior. E por isso mesmo
podemos nela distinguir o momento implícito e o
momento explícito.
A oração implícita é o espírito com que vivemos, em
todos os sentidos, tanto em nossa vida interior, em
qualquer de suas dimensões, como em nossa vida
operativa. Tudo o que sentimos, tudo o que pensamos,
tudo o que fazemos, deve ser sentido, pensado e feito em
espírito de oração. Tudo o que é sentido, pensado ou feito
com perfeição é uma prece, é um meio implícito de união
com Deus. E só nos unimos a Deus pela oração. Como
esta se encontra implícita em tudo o que realiza a sua
finalidade. Todo trabalho bem feito é uma oração. Todo
pensamento profundo é uma oração. Tôda sensibilidade
aguda e bem ordenada é uma oração. Podemos assim viver
a nossa vida interior em sua plenitude -- que é o contato
mais íntimo com Deus, desde que vejamos a Deus em tudo
o que é bem sentido, bem pensado e bem feito. Podemos
assim chegar a uma convivência perene com Deus e viver
interiormente no meio do mais penoso dos trabalhos, da
mais ruidosa das agitações, da mais perplexa das
contradições. E ter sempre o coração em paz e a alegria na
alma, qualquer que seja o pêso da vida e a própria aridez
do nosso deserto interior. Pois não é necessário sentir para
rezar. Basta viver, viver sempre em união, consciente ou
inconsciente, explícita ou implícita com o Pai. Essa
fixação interior é que vence todos os tumultos e tôdas as
areias do nosso mar ou do nosso Saara interior.
Há uma forma ainda mais perfeita da oração
implícita, que é: o sofrimento. Se, normalmente, podemos
viver em oração, isto é, na plenitude de nossa vida interior,
desde que vivamos os nossos meios em perfeita adequação
com os nossos fins, -- podemos, pelo sofrimento, que é
uma anomalia perturbadora, viver ainda mais
profundamente em união com Deus. O sofrimento é uma
anomalia, é uma perturbação no funcionamento de nossa
vida física ou moral. Tanto o sofrimento físico como o
sofrimento moral constituem a mais perigosa das
tentações: a tentação do desespêro. O sofrimento é uma
interrupção entre os meios e os fins. É uma
descontinuidade. É uma desconformidade. E por isso
mesmo é um convite a perdermos a noção do sentido da
vida.E, com isso, a nos desligarmos de Deus, como de
tudo que constitui a ordem do universo, por conseguinte, a
nossa própria ordenação, orgânica ou psíquica. O
sofrimento é uma alienação de nós mesmos. É o outro que
nos conquista, que nos torna estranho a nós mesmos. Que
nos separa do nosso próprio eu. Daí a facilidade com que a
dor nos leva à loucura e a essa ante-câmara da loucura,
que é o desespêro.
Eis porque a vitória sôbre o sofrimento é o caminho
mais perfeito da oração implícita. Se conseguirmos vencer
a tentação do desespêro, se conseguimos vencer a tentação
do acaso, se conseguimos superar encontrar um sentido
para o sofrimento, teremos então alcançado um plano
superior de oração, a oração da vitória, da conquista, da
superação. E o próprio sofrimento, então, se converte em
oração e torna-se um meio de subir, de aperfeiçoar-se, de
se parecer mais com o próprio Cristo, não só a imagem de
Deus, mas o próprio Deus na terra e cuja vida só adquiriu
sentido completo pela Paixão e Morte, isto é, pelo
sofrimento. Transfigurar o sofrimento, encontrar nessa
anomalia, nessa diminuição da nossa natureza física ou
moral, um sentido de elevação, de transfiguração, é uma
forma ainda mais perfeita de rezar, do que a oração
implícita da felicidade terrena, do trabalho cotidiano, da
monotonia da vida, vivida em união com a vida obscura de
Nazaré, onde Deus se preparava em silêncio e na oração,
para o sofrimento e para a glória. Pois é a Ressurreição
que dá sentido à Cruz, é o repouso que dá sentido ao
trabalho, é a Paz que dá sentido às agonias da vida.
Quando vivemos assim os nossos sofrimentos, é que
alcançamos já uma vida de oração mais perfeita e nos
aproximamos da fonte de tôda alegria, que dá sentido à
própria privação da alegria, da saúde, do confôrto, da
justiça na terra, de companhia dos que nos são mais
queridos. Tudo isso é fácil de dizer. Mas é terrível de
viver. Merece pois, um perdão muito grande todo aquêle
que não consegue chegar a êsse plano de oração, pois só as
virtudes heróicas conseguem alcançar a essa perfeição,
que São Francisco de Assis traduziu, tão belamente, na
parábola da Perfeita Alegria. Já é muito viver a oração
implícita em nossa vida normal e cotidiana.
Cap. 22.º

A ORAÇÃO EXPLÍCITA
A oração implícita é a base da oração explícita. É
preciso viver, em espírito de oração, o máximo das
operações de nossa vida, para podermos fazer da oração
consciente não só a cúpula, mas o fundamento e a
estrutura de tôda a nossa vida, interior e exterior.
Quando a oração explícita e consciente não assenta
nessa base preliminar e fundamental da oração implícita e
subconsciente, caímos em pleno formalismo. Rezar não é
pronunciar certas fórmulas. Essas fórmulas são
necessárias, são mesmo essenciais, mas como a Regra é
essencial à perfeição de uma vida monástica. A regra pela
regra não vale nada. Como a fórmula pela fórmula não
tem sentido algum. A Regra só se torna fecunda e
fundamental, para a vida de perfeição monástica, quando
vivida segundo o seu espírito, como um meio e não como
um fim em si.
Assim se dá com a vida de oração, com essa quarta
dimensão do nosso mundo interior, que fornece a chave do
segrêdo de nossa vida total.
Se excluímos a oração explícita, caímos no falso
misticismo, no subjetivismo autocêntrico, que faz da
oração uma ginástica mental ou uma espécie de adoração
de si mesmo, num panteísmo que representa o cúmulo do
orgulho, a negação de Deus e a falsa deificação do
homem. A oração explícita é a conclusão, natural e
sobrenatural, da oração implícita. Viver em Deus os
nossos atos cotidianos e, mais do que êles, os nossos
sofrimentos, físicos e morais, é a preparação para a nossa
vida individual como em nossa vida coletiva. Pois são
êsses os dois momentos básicos ou antes as duas
expansões substânciais da nossa vida coletiva.
Pois são êsses os dois momentos básicos ou antes as
duas expansões substanciais da nossa vida de oração
explícita: a oração individual e a oração coletiva.
A oração individual é a entrega expressa e explícita
de tôda a nossa vida a Deus, como quem restitui a seu
dono aquilo de que é depositário. Não somos donos de
nossas vidas. Somos apenas guardiães. Temos de dar
contas continuadas, cotidianas, minuciosas, ao seu
verdadeiro dono. Temos de contar a Deus o que estamos
fazendo dêsse imenso tesouro que Êle confiou a cada um
de nós, como imagem que somos do próprio Criador. A
responsabilidade de cada criatura humana não é apenas a
do valor de uma alma, de sua alma, de um pequenino
fragmento da Criação. A responsabilidade de cada alma é
de tôdas as almas, de tôda a criação. Cada alma que se
perde, é o mundo todo das almas que se sacrifica. Daí a
comunhão dos méritos, como a comunhão dos pecados.
Merecemos por todos e pecamos por todos. A
responsabilidade de cada um é total.
A oração individual, portanto, não é apenas um
colóquio secreto da alma com Deus. É isso e mais alguma
coisa. É a confidência, é a intimidade, é a confiança, é o
repouso, o pedido, a gratidão. É a colocação de nossa
maior intimidade nas mãos do nosso Amigo, a revelação
explícita daquilo que Êle já conhece mas que deseja ouvir
de novo de nosso próprio coração, no silêncio augusto da
prostação pessoal do homem no seio do seu Criador. E é
ainda mais do que isso, porque é a entrega de tôda a
espécie humana representada, em cada caso, por uma alma
individual, nas mãos de Quem a criou e a escolheu para a
incarnação do seu próprio Filho.
De modo que a oração secreta está intimamente
ligada à oração pública, a oração individual se completa
naturalmente na oração geral, na prece coletiva, em união
com os outros fiéis, com os verdadeiros irmãos em carne e
em espírito. E é por isso que a oração individual explícita,
fruto da preparação preliminar da oração implícita, normal
ou excepcional, se realiza plenamente na Missa, na forma
mais perfeita de oração, que é a participação dos orantes,
uns nos outros e de todos em comunidade, no próprio
Cristo, na renovação incruenta do Seu sacrifício único e
cruento.
A Missa é, pois, a plenitude da vida interior. Nela as
exterioridades são meras aparências. Os sinais visíveis, na
côr, na mesa, na fumaça, nos gestos, nas palavras rituais,
no canto, no Pão e no Vinho, são apenas símbolos da
realidade invisível -- na qual se transformam pelo mistério
da Transubstanciação --, da verdadeira realidade do
Sacrifício do Verbo, que tem, ao mesmo tempo, um
sentido totalmente individual, para cada participante, e um
sentido universal, de renovação do mistério singular da
Incarnação, que vale pela espécie humana, toda ela.
A oração coletiva, por conseguinte, especialmente no
Côro e na Missa, é a plenitude da vida interior de cada fiel,
de cada comungante, de cada participante. Ali a vida
exterior se confunde com a vida interior. Desaparece tôda
separação. Dentro e fora se interpenetram nessa
transfiguração em que vida interior e vida exterior se
tornam uma só vida, a Vida do homem oferecida a Deus
pelo Cristo, o corpo e sangue de Cristo recebidos pela
humanidade na pessoa de cada homem, de cada fiel que
leva ao altar a oblação de sua vida interior, como de sua
vida exterior, para receber a Vida, pela comunhão, e levá-
la ao mundo, ao próximo e a si mesmo, nessa rotação
perene de Deus ao homem e do homem a Deus, que só
cessará na plenitude dos tempos e será substuída então
pela Visão na Glória ou pela perpétua privação do Amor.

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