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EDITORIAL

A revista Sinais Sociais, que trazemos a público com a edição


deste primeiro número, tem como finalidade precípua tornar-
se um espaço de debate sobre as questões que dizem respeito à
contemporaneidade brasileira.
Pluralidade e liberdade de expressão são os pilares em que se
assenta esta publicação.
Pluralidade no sentido de que a revista Sinais Sociais está aberta
para publicação de todas as tendências que marcam o pensamento
social no Brasil, hoje. Também plural no sentido de que não se res-
tringirá a artigos que tratem somente de uma das vertentes das ci-
ências que utiliza os fenômenos da sociedade como seu objeto de
análise. A diversidade dos campos do conhecimento terá, em suas
páginas, um locus no qual aqueles que têm a reflexão como seu ofí-
cio poder-se-ão manifestar.
Para que a Sinais Sociais se torne efetivamente um espaço de
debate, a liberdade de expressão dos autores é garantida. Este prin-
cípio tem seu fundamento nas Diretrizes Gerais de Ação do SESC,
que reconhece como princípio maior da entidade: “valores maiores
que orientam sua ação, tais como o estímulo ao exercício da cida-
dania, o amor à liberdade e à democracia como principais caminhos
da busca do bem-estar social e coletivo”.
Igualmente é respeitada a forma como os artigos serão expos-
tos pelos seus autores. Serão aceitos artigos que sigam os cânones
das academias, como, também, aqueles em que os autores prefi-
ram se expressar de forma mais heterodoxa, sem se ajustarem aos
padrões estabelecidos.
Importa para a Sinais Sociais artigos em que a fundamentação te-
órica, a consistência, a lógica da argumentação e a organização das
idéias tragam contribuições significativas — que estejam além das
formulações do senso comum — àqueles que, ao recorrerem às suas
páginas, encontrem elementos que fortaleçam suas convicções ou
que lhes tragam um novo olhar sobre os objetos em estudo.
O que move o SESC, com esta publicação, é a consciência de que
publicações semelhantes são raras e de difícil acesso, tanto para os
que procuram contribuir com suas reflexões ao debate nacional como
para segmentos do grande público interessados em se informar e se
qualificar para uma melhor compreensão do país em que vivem.
Contribuir para a disseminação das idéias que vicejam no
Brasil, restritas normalmente ao mundo acadêmico, e, com isso,
ampliar as bases sociais deste debate, é a expectativa do SESC com
a revista Sinais Sociais.

Antonio Oliveira Santos


Presidente do Conselho Nacional do SESC
SUMÁRIO

O INERTE CULTURAL4
E O QUE SE FAZ CONTRA ELE
Teixeira Coelho

SER DE TODOS OS TEMPOS SEM


DEIXAR DE SER DO INSTANTE28
CULTURA E POLÍTICA EM TEMPOS DE BRASIL
Marta Porto

EM DIREÇÃO ÀS METAS DE
DESENVOLVIMENTO DO MILÊNIO62
UMA ANÁLISE REGIONAL
Rosane Mendonça

PROGRAMAS SOCIAIS
VOLTADOS À EDUCAÇÃO NO BRASIL114
Simon Schwartzman

LEREIS COMO DEUSES146


A TENTAÇÃO DA PROPOSTA CONSTRUTIVISTA
Joâo Baptista Araujo e Oliveira
O INERTE CULTURAL
E O QUE SE FAZ CONTRA ELE

Teixeira Coelho
Doutor em Teoria Literária e Literatura Comparada pela FFLCH-USP, pós-doutorado
em Cultura e Política Cultural (University of Maryland-College Park).

A grande inovação cultural no Brasil nas últimas décadas não se deu no


campo da cultura formal. Aqui, como fora daqui, a novidade cultural foi
a emergência da sociedade civil como ator do processo de governança.
Erguendo-se contra a sociedade política – o Estado e suas instituições, mas,
sobretudo, os partidos e seus aparelhos – a sociedade civil busca a cidadania
ativa. A passiva, que consiste em votar e depois assistir, com estupefação e
impotência, aos mandos e desmandos, não serve mais. O que se busca é
substituir os atletas do Estado, esses que treinam a vida toda para tomar o
poder e exercê-lo em nome de seus estamentos, pelos amadores da coisa
pública. O inerte cultural, estoque de idéias e bens ditos positivos, na política
como nos museus e bibliotecas, mas que nada põem em movimento real,
pode agora ser transformado em algo de fato dinâmico.

 Sinais Sociais • maio > agosto 2006


Março de 2005, data especial: 20 anos desde o fim da ditadura
militar iniciada em 1964. Algo a comemorar muito mais do que o
foi. Vinte anos antes, 15 de março de 1985, assumiria a presidência
da República um político em quem a sociedade brasileira deposita-
va esperanças — se não por outra coisa, pelo fato mínimo, mas nada
simples, de ter sido eleito para o cargo, ainda que de modo indire-
to. Eleito, não indicado. Como morreu antes da posse, uma sombra
de mau agouro, sombra da ditadura, continuou pairando sobre tudo,
do que foi sinal a comoção registrada em seu enterro: a redemocrati-
zação marcou-se por essa espécie de pecado original (difícil redimir-
se dele, ainda hoje) que foi a subida ao poder de seu vice, espécie
de aval pedido pelo sistema que terminava sem acabar. Impossível
dizer se a redemocratização teria sido mais rápida e profunda se o
eleito chegasse a administrá-la. Seja como for, o início de 85 mar-
cou o fim da ditadura de 1964 e no início de 2005 deveria lembrar-
se, mais do que se fez, que 20 anos haviam se passado.
Se assim não aconteceu foi talvez porque esse indecídivel que
é o imaginário coletivo — essa banda móvel onde ocorre o diálo-
go cultural mais fundo entre o eu e o outro, entre o dito e o repri-
mido, entre o símbolo e a realidade — sabia que os motivos para a
comemoração não eram tantos, nem todos. Por exemplo, as forças
armadas, numa atitude que se preferiu minimizar, disseram que

O inerte cultural • Teixeira Coelho 


não havia de que se envergonhar. Para ter uma idéia do significa-
do dessa recusa de um embate com o passado das próprias res-
ponsabilidades —agora nem mais das pessoas envolvidas, porém
das instituições que as amparavam (o que não diminui a ques-
tão: não por nada se diz das instituições que também são pesso-
as, pessoas jurídicas, pessoas políticas, portanto pessoas morais)
— recorde-se que em agosto desse mesmo 2005 as forças arma-
das do Uruguai pediam desculpas à nação por seus crimes e de-
claravam-se prontas a reconhecê-los...
E assim, vinte anos depois, como no romance de Alexandre Du-
mas (o homem é um animal poético, sugere William Hazlitt, e de-
licia-se na ficção1), uma pergunta natural foi feita: o que de fato
mudara nesse tempo? Pergunta aberta em leque sobre vários domí-
nios, a cultura não o menos relevante deles. O que havia mudado
na cultura “desde o fim da ditadura”, queriam saber os suplemen-
tos culturais dos jornais. A tendência inercial para a formulação da
resposta foi tomar a pergunta sob o ângulo em que por hábito se
considera a cultura nos estudos de cultura e na teoria e prática da
política cultural: o ângulo de suas linguagens formais e de seus for-
matos mais óbvios e facilmente manipuláveis: o cinema, as artes vi-
suais, a música, a TV, a cultura “popular”, a literatura. Que mudara
nessa cultura, em cada uma delas? Algo. Não muito e não necessa-
riamente para melhor, ou para pior. Mas, havia outra esfera da cul-
tura a tratar. Que mudara na célula-tronco da cultura, que mudara
no grande desenho da cultura, na linha do ar da cultura, no espí-
rito do tempo cultural, essa coisa que não existe e que no entanto
está aí, sempre fantasmal, sempre incidente e reincidente? Discutir
a questão da cultura pelo ponto de vista de suas linguagens especí-
ficas, estimulante e válido como é, seria individuar as transforma-
ções inscritas na lógica de um certo quadro fechado e auto-refe-
rencial, por isso de algum modo evidente, sem tocar na questão de
fundo, a que de fato interessaria ao momento simbólico.
Desse ponto de vista mais aberto e ao mesmo tempo mais ar-
queológico — pois se tratava de descer um pouco abaixo da evi-
dência, de passar para os bastidores — havia de fato ocorrido uma

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grande mutação cultural que, mesmo não se originando no país, lhe
dizia tanto mais respeito em virtude não só de nosso recente passa-
do totalitário como da própria data sobre a qual se queria meditar. E
transformação que, mesmo surgindo lá fora, aqui também se mani-
festara. Seria, de resto, um pouco especioso vasculhar o terreno em
busca de um traço nacional específico de uma mudança desta cul-
tura num momento em que a rede cultural global já se tecera, para o
pior (que existe) e para o melhor (que existe também). Refiro-me ao
surgimento ou, em todo caso, à reafirmação definitiva da idéia e da
prática da sociedade civil. Em 1º de setembro de 1971, quando no
Brasil atravessávamos o mais obscuro e terrível período da ditadura
— época do bárbaro “Brasil ame-o ou deixe-o”, momento em que
mais uma vez muitos acreditamos que a única saída era mesmo a do
aeroporto —, em Vancouver, Canadá, um grupo de ativistas lançava-
se ao mar num velho barco pesqueiro. A missão que se haviam atri-
buído era a de “dar testemunho”, como disseram, de um teste nu-
clear subterrâneo a ser realizado pelos EUA ao largo de Amchitka,
ilha da costa oeste do Alaska, região propensa a terremotos. Nas-
cia naquela iniciativa a mais forte e emblemática das organizações
da sociedade civil, das organizações não-governamentais, as ONGs,
como seriam chamadas: a Greenpeace. Com ela, não era uma or-
ganização em particular que surgia, mas algo que era ela mesma
e algo bem maior que ela mesma: a sociedade civil e a socieda-
de civil de âmbito mundial. Mais importante: com ela não nascia
mais uma entidade, mais uma instituição, mais uma estabilidade,
mais uma estrutura: com ela nascia uma dinâmica, com ela nas-
cia o ativismo da sociedade civil, a sociedade civil em processo, a
sociedade civil em ação.
Greenpeace: no depósito de imagens úteis e inúteis dos que vive-
ram a segunda metade do século passado e, bastante provável, tam-
bém daqueles que se descobrem como sujeitos da vida nestes inícios
de um século radicalmente distinto, destaca-se uma que se tornou
emblemática da Cultura do tempo e que como tal ainda sobrevive
no próprio site da organização: uma frágil e minúscula embarcação
mais ou menos pilotada por um punhado de pessoas lutando para
manter-se à tona num mar em tudo adverso. Imagem eloqüente de si
mesma e de tanta outra coisa. Um minúsculo bote às vezes ao lado

O inerte cultural • Teixeira Coelho 


de um enorme e ameaçador navio-tanque, outras vezes circundando
uma corveta armada pronta para o disparo. A foto da tripulação da-
quele primeiro barco da consciência ecológica mostra o nome Gre-
enpeace inscrito numa grande vela logo acima de um signo hoje um
tanto desusado: o Paz e Amor da geração hippie dos anos 60 ainda
não findos, empenhada na resistência à Guerra do Vietnã e na busca
de uma real outra vida, um verdadeiro outro mundo. As cabeças bar-
budas e cabeludas de vários daqueles tripulantes jovens (e não tão
jovens) reforçavam o significado do gesto e do que estava em jogo.
E o modo como esse jogo estava sendo jogado era bem o da so-
ciedade civil que nascia: incerto, errático mas persistente e gene-
roso, como de outro modo descreve uma daquelas pessoas soltas
no mar, Robert Hunter, co-fundador do grupo. Quando estavam a
meio caminho do ponto de destino, as Ilhas Aleutas, com o objeti-
vo não apenas de relatar o que se passaria no teste nuclear mas de
impedi-lo de acontecer, Richard Nixon, presidente dos EUA à épo-
ca, anunciou o adiamento do teste em um mês. A repercussão da
notícia entre os viajantes históricos foi desmoralizante: muitos não
mais tinham dinheiro e outros já chegavam ao fim das férias solicita-
das para entregar-se à causa. Ali estava a sociedade civil: um punha-
do de amadores que faziam o que faziam por amor à causa. Amor
à arte. Não eram profissionais do protesto. Menos ainda profissio-
nais da política. Recorriam a seu tempo livre — quer dizer, à cul-
tura, como predominantemente entendida pela política cultural da
primeira metade do século XX: a negação do negócio, o ócio. E re-
corriam à negação do negócio não apenas para pensar o mundo mas
para agir concretamente sobre ele. Uma poética contemporânea do
concreto. Do concreto mais contemporâneo. Com essa iniciativa,
aquelas pessoas da Greenpeace transformavam-se em contemporâ-
neos filosóficos e, ao mesmo tempo, em contemporâneos históricos
de seu presente.
Essa dupla condição necessária ao homem moderno aparece
em Marx, que se queixava de que seus contemporâneos alemães
não eram contemporâneos históricos de seu presente, apenas con-
temporâneos filosóficos dele — como tantos ainda hoje, e aqui,
a começar dos que se sentem tão contemporâneos filosóficos do
presente... Este é um dos conceitos marxistas ainda resistentes em
sua operacionalidade e pertinência.

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Contemporâneos filosóficos do presente porque faziam uma aná-
lise teórica adequada do vivido e porque encontravam uma resposta
teórica pertinente para o problema. Contemporâneos históricos do
presente porque encontravam os meios para pôr em prática a solu-
ção escolhida, para transformar a análise em iniciativa.
A iniciativa do Greenpeace, como havia sido rebatizado o bar-
co para a ação, não foi um processo tranqüilo e não esteve isento
de alguns dos mesmos inconvenientes que a organização nascen-
te e aquele grupo concreto de pessoas queriam superar as dificulda-
des do processo precisam ficar evidentes, inútil romantizar a maior
transformação cultural do último quarto do século XX. Como o mes-
mo Robert Hunter reconheceu2, muita coisa saiu errado. Chegou a
escrever que tudo saíra errado. Um excesso crítico, esse seu; erro de
perspectiva: faltou-lhe, acaso, no momento em que assim escreveu,
uma visão mais ampla do que se passara e que não se reduzia àque-
la ação em si: o processo, para a história, foi mais relevante que o
ato singular por eles realizado, embora aquele não houvesse sido de
modo algum insignificante. Mas, Hunter descreve como “tudo deu
errado” e suas palavras são emblemáticas para a situação mais am-
pla que quero discutir em continuação. Disse Hunter que o grupo
“quase nunca conseguiu seguir na direção que queria seguir ou estar
no lugar em que queria estar”. E reconhece que as pessoas discutiam
asperamente entre si a respeito desse problema e de tudo. Reconhe-
ce que, também naquele grupo que queria “supostamente salvar o
mundo”, tudo acabava se resumindo a uma questão de disputa pelo
poder, um conflito de egos, uns e outros agarrando-se mutuamen-
te pela garganta, o grupo dividido por um dilacerante conflito inter-
no. Trinta anos depois, prossegue Hunter, Jim Bohlen, o comandante
da operação, por dizer assim, reconheceu que, pelas costas dos de-
mais, instruía o capitão, e dono da embarcação na vida real dos ne-
gócios, para que seguisse para tal destino e não outro, ou fizesse isso
e não aquilo. Hunter admite que, como Bohlen era quem em última
análise pagara pela iniciativa e a tornara possível, tinha até o direi-
to de fazer o que fizera. Mas, acha que Bohlen deveria ter deixado
claro que a ação de protesto do Greenpeace estava sendo conduzi-

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O inerte cultural • Teixeira Coelho 


da ao velho estilo da estrutura hierárquica de poder, em vez de apre-
sentá-la como o experimento radical de autogestão (conceito insis-
tente da época, para desgosto da direita e da esquerda burocrática)
que se supunha ser. Hunter admite que Bohlen pode até ter salvo a
vida do grupo com as decisões isoladas que tomava depois que, fin-
das as discussões do dia e decididos os passos seguintes, cada um
seguia o caminho de seu catre individual no pesqueiro enferrujado.
Mesmo assim, a questão era aquela: as decisões também ali, tam-
bém naquela ocasião, eram tomadas pelo líder e escamoteadas dos
demais ou disfarçadas ou reveladas somente aos poucos à medida
que isso se tornava inevitável. E isso, naquele momento como de-
pois, feria a sensibilidade radical de Hunter — embora reconheces-
se o capital humano de Bohlen que, no passado, havia combatido
Rommel no deserto africano e resistido às ordens da RAF, força aé-
rea inglesa, para bombardear os grupos seguidores de Ghandi. Bo-
hlen estava, como Hunter admite, tão à frente do grupo em termos
dessa coisa elusiva, indefinível e acima de tudo incomunicável que
se chama experiência, experiência de vida e experiência da mor-
te, que provavelmente teria conseguido controlar toda tentativa de
motim que pudesse deflagrar-se na ocasião buscando contestar sua
autoridade autoconferida.
Quão atual tudo isso é: o grupo aparentemente decide quando
na verdade um ou alguns, depois, dão o rumo real a ser seguido;
aparentemente o grupo decide mas quem manda de fato é quem
controla o dinheiro; aparentemente o grupo decide, mas a estrutura
de comando é e permanece vertical; o grupo aparentemente é uni-
do, mas as facções digladiam-se pelo poder e, last but not least, tudo
se resume exatamente a isso, uma questão de poder, e desse poder
vertical embora o discurso de consumo seja o da horizontalidade de
uma planície imaginada, ou do planalto. E a esse quadro se voltará
na segunda parte deste ensaio. O reconhecimento de que assim foi
como se passaram as coisas com o primeiro grupo da Greenpeace
não deve ofuscar o significado maior da iniciativa: a ascensão, em-
blemática embora, da sociedade civil ao papel de ator protagonista
do cenário político. Mundial e em seguida brasileiro. “Em seguida”
porque em 1971 ainda vivíamos, aqui, no clima ambíguo pós-Copa
do Mundo de 70 e do “milagre brasileiro” promovido pela ditadura

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antes do crash do petróleo que viria logo depois. Uma ditadura for-
te, capaz de controlar quase tudo e que estava longe de ter esgota-
do seu ciclo de vida. Mas, a iniciativa da Greenpeace em Amchikta
foi reconhecida também pela sociedade civil brasileira que, mesmo
com atraso, começou a seguir os passos da sociedade civil mundial,
no embalo da globalização que a internet logo viria potencializar,
numa situação em que os sinais sociais todos se copiam e se pro-
pagam mais rapidamente: os positivos, como a auto-organização da
sociedade civil, e os desprezíveis e aterradores, como o terrorismo.
Sociedade civil é uma expressão de sentido nem sempre claro
e incontrovertido por aqui, naquelas décadas finais do século XX e
mesmo agora. Durante a ditadura, “sociedade civil” era usada fre-
qüentemente com o vago sentido de algo que se opunha ao governo
militar. Por vezes e sob certos aspectos, havia razão para que assim
fosse. A cínica fórmula “manifestação cívica” e outras dessa mesma
família de idéias feitas na verdade sempre significaram uma única coi-
sa neste país: manifestação de sentimentos militares, manifestação or-
ganizada pelos militares, manifestação do culto militar, manifestação
enquadrada pelo militar e pela idéia do militarismo, como os desfiles
de tropas e carros armados no Dia da Pátria e as cerimônias de haste-
amento da bandeira nacional no começo do dia escolar (que, perver-
samente, no início de 2003 o governo federal recém-eleito tentou res-
suscitar3). Cívicas, quer dizer, militares, como eram, também, aquelas
cerimônias de que as crianças tinham de participar nos estádios de
futebol nessas mesmas datas, depois de treinadas para executar mo-
vimentos de uma “ginástica rítmica”, na verdade marcial, não raro ao
som de uma composição nacionalista-populeira de Villa-Lobos, res-
quício de um Estado Novo fascista que não terminava e não termi-
na de acabar. Todas essas eram manifestações ditas “cívicas” quando
de fato eram, antes de mais nada, militares. No limite, “manifestações
políticas”, numa corrupção total da idéia mesma do que seja civil.
O que talvez tenha ficado claro quando a ditadura de 64 encami-
nhou-se para seu final e, mais ainda, em seu pós-final, foi que “so-

3
Também no Japão, em 2004, o governo procurou tornar obrigatória a
execução do hino nacional toda manhã, ao iniciarem-se as aulas. Vários
professores que se recusaram a cantá-lo, por terem viva a memória do

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ciedade civil” é na verdade uma expressão formulada em oposição,
não a um regime militar especificamente, mas à sociedade política
como um todo, da qual o sistema militar é parte e que ele reforça à
exasperação quando toma o poder. De um lado está a sociedade po-
lítica, com o Estado e seus instrumentos, corporações e aparelhos,
entre eles os partidos políticos (e isto se deve destacar: os partidos
políticos, numa cultura política como a brasileira, fazem parte do
Estado, ao qual representam, e não da sociedade civil, que manipu-
lam). De outro, a sociedade civil. Essa é a idéia central da socieda-
de civil: a sociedade que se distingue da sociedade política, aquela
que a esta não pode ser resumida, aquela que com esta não se iden-
tifica e que a esta se opõe sempre e cada vez mais, o que pressupõe
uma sociedade civil que cada vez mais se confronta com o próprio
Estado. A sociedade civil ergue-se também contra o mercado, é ver-
dade, e Greenpeace o fez mais de uma vez. Mas está fora de dúvi-
da que a primeira motivação para a existência da sociedade civil é
sua oposição ao Estado4, tal como fez aquele grupo em 1971. E isso,
quer porque o Estado se omite ou se mostra incapaz de levar adiante
suas tarefas básicas5, quer porque procura meter-se ali de onde de-
veria estar ausente. Por certo havia interesses industriais, quer dizer,
em princípio civis, por trás da corrida armamentista estatal que levou
aquele punhado de pessoas a lançar-se ao mar numa incerta embar-
cação para fazer frente ao mais poderoso instrumento de destruição

frenético populismo nacionalista da época da Segunda Guerra Mundi-


al, enfrentaram ameaças de demissão, algumas consumadas. Um pouco
por toda parte, aproveitando-se dos receios provocados pelas incertezas
econômicas atuais que promovem as emigrações em massa, um nacio-
nalismo xenófobo de direita e um populismo arcaico de esquerda se dão
as mãos em defesa de uma identidade passadista e ressuscitam práticas
nacionalistas que se consideravam tranqüilizadoramente sepultadas.
4
Ver, a respeito, o ainda sempre sugestivo e sempre pouco lido A Sociedade
Contra o Estado, de Pierre Clastres (São Paulo, Cosac & Naify, 2003).
5
Como no desastre de New Orleans sob o impacto do furacão Katrina, numa
situação que, de resto, demonstra como é assustadoramente delgada a pele
da cultura contemporânea de que habitualmente trata a política cultural,
a educação e a filosofia – pele que o Estado, mesmo o mais poderoso do
mundo, não pode e não poderá nunca sustentar sozinho.

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da história, num embate confronto em tudo épico. Aquele momen-
to, de Guerra Fria e de guerra bem quente no Vietnã, colocava-se sob
a égide, como se dizia, do “complexo industrial-militar”, expressão
acertada da qual no entanto um componente deveria deixar de apa-
recer em filigrana para assumir o lugar que lhe cabe sob os holofo-
tes: o Estado, com cuja presença se perfaz o complexo que de fato
predominava e predomina ainda, nestes tempos de George W. Bush,
Dick Cheney, Iraque e a empresa-polvo Halliburton ou de suas ver-
sões caseiras envolvendo o governo, os fundos de pensão e tanta ou-
tra coisa ainda menos mencionável. Não haveria complexo indus-
trial-militar sem o Estado, e era contra o Estado, tanto quanto contra
o Mercado mas ainda mais fortemente contra o Estado porque era e
é o Estado o instrumento do Mercado6, que a sociedade civil em sua
forma contemporânea emergia há três décadas.
É esse o momento cultural simbólico que marca o instante em
que se começou a romper, em que cada um de nós começou a rom-
per, apenas começou a romper, o mais forte obstáculo epistemoló-
gico enfrentado pela sociedade moderna e contemporânea na bus-
ca de si mesma: aquele que se traduz na idéia de que a sociedade
existe para o Estado, que o Estado é o centro de tudo e que nada se
pode fazer fora dele, inclusive, o que seria cômico não fosse trágico,
quando o alvo a atingir for o mercado. Fora da Igreja não há salva-
ção, se dizia antes. Fora do Estado não há salvação, se disse e se in-
siste na modernidade. Não é assim, e a iniciativa do Greenpeace foi
o primeiro sinal na direção da construção da sociedade cívica em
oposição à sociedade política. Antes da polis e para muito além dela
está a civis, que a polis moderna e contemporânea tenta controlar,
instrumentalizar e esgotar.
Essa foi a grande transformação na Cultura nesses 20 anos que
cobrem a distância entre o dia de hoje e aquele 1985 indicador do
começo do fim da mais recente ditadura no país. Transformação na
Cultura ou — uma vez que a cultura não é mais um substantivo e
sim, agora, um adjetivo, portanto mutável e declinável como mudam

Em O Direito à Cidade, de 1967, Henri Lefebvre mostrava como o Estado se


6

O inerte cultural • Teixeira Coelho 13


e se declinam os adjetivos — transformação no cultural7, transforma-
ção nessa dimensão ampliada que é o leito de fundo pelo qual fluem
as demais orientações culturais localizadas, como o cinema, a lite-
ratura, o teatro. Uma transformação do porte daquela que marcou o
fim da monarquia e a ascensão da república como regime de gover-
no, ou dessa outra que assinalou a ascensão do Estado-nação e a de-
cadência das cidades ou regiões ou comunidades isoladas atuando,
se tanto, em coligações instáveis e conflitantes entre si, das quais a
questão basca, na Espanha, é um exemplo persistente. Uma transfor-
mação equivalente àquela que decretou o fim da escravidão e a con-
sagração da igualdade de direitos entre os cidadãos — embora nem a
monarquia, nem as comunidades interiores em conflito com a fede-
ração, nem a idéia da escravidão tenham desaparecido de todo. No
entanto, caso se possa dizer, com Hegel, que a Revolução Francesa
marcou o fim da história porque o ideal da liberdade foi inscrito no
programa político da humanidade (o valor filosófico da liberdade foi
então enfim traduzido em prática histórica); caso se possa dizer, com
Hegel também e tantos outros, que a humanidade chegou ao fim da
arte (ou que a arte chegou ao fim de sua história nesta humanidade)
no momento em que a arte pôs em prática todas suas possibilidades
(com o dadaísmo, para alguns; com o Suprematismo de Malevitch,
para outros; com o abstracionismo informal para uns terceiros — o
que mostra como seria válido um estudo que se intitulasse A segun-
da morte da arte e um outro que se chamasse A terceira morte da
arte...), talvez se possa dizer que a noção da morte do Estado é ca-
bível e que a data desse acontecimento em tudo e por tudo faustoso
é, definitivamente, 1971, quando de modo mais do que apenas sim-
bólico se faz a passagem da prática da cidadania passiva (a mais co-
mum, essa que existe no Brasil, por exemplo) para a noção e a ini-
ciativa da cidadania ativa, simbolizada no Greenpeace.
Claro, a liberdade ainda não está em vigor em boa parte do mun-
do, mesmo nesta época dita de globalização, e não estará sendo
exercida em sua plena totalidade talvez em lugar algum, a começar
por este país Brasil. Mas, o que se entende por fim da história sob

7
Appadurai, Arjun, Modernity at Large: Cultural Dimensions of Globaliza-
tion. Minneapolis, Univ. of Minneapolis Press, 1996.

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esse aspecto é que a idéia de liberdade havia finalmente aflorado à
superfície do programa político no século XVIII, sendo o restante —
um enorme restante, é verdade — uma questão de ampliação e im-
plementação do projeto. Do mesmo modo, a arte morreu em algum
momento do século XX (Hegel insistia que ela já morrera em seu
tempo), mas, certamente, a arte continua a desdobrar-se e a explorar
seu leque de combinatórias — até o instante em que eventualmente
ficar claro que uma outra idéia de arte é possível, quando então sua
história recomeçará. E o mesmo se dirá do fim do Estado visto sob o
prisma da emergência da sociedade civil. O século XVIII foi o mo-
mento da declaração dos direitos humanos; o século XX, no dizer
de Norberto Bobbio ao dar título a um livro seu lançado em 1990,
marcou-se como A era dos direitos. A rigor, pelo menos do ponto de
vista dos países subdesenvolvidos como o Brasil, esta tem sido, an-
tes, A era da expectativa dos direitos — porque, em termos de de-
nominação da era, talvez a razão penda mais para o lado de John K.
Galbraith, que a chamou de A era da incerteza, ou para a parte de
Anthony Giddens, que a nomeia A era do risco. É possível, em ou-
tras palavras, que à era da declaração dos direitos humanos (século
XVIII) siga-se uma era da expectativa de direitos (século XX) e, quem
sabe, com muita sorte, uma era realmente dos direitos humanos em
algum momento tardio do século XXI. De modo análogo, no caso da
sociedade civil o século XX assinala o lançamento de uma declara-
ção da sociedade civil que em algum momento tardio do século XXI
poderá enfim dar seu nome pleno a uma era — não com o desapare-
cimento, improvável, do Estado mas, sem dúvida, com sua redução
à condição de instrumento de trabalho da sociedade civil.
E está claro que a era da sociedade civil só advirá quando a era
dos direitos humanos enfim se afirmar, e vice-versa. Não se costu-
ma ressaltar, porque não costuma interessar, que os direitos huma-
nos foram proclamados no pós-Segunda Guerra Mundial para for-
necer aos indivíduos algum instrumento de defesa contra o Estado,
o que significa que apenas quando a sociedade civil não apenas
controlar mas for o Estado, orientar diretamente o Estado, e não o
contrário, os direitos humanos efetivamente se afirmarão.
Essa, sem sombra de dúvida, é a transformação central na Cul-
tura, no cultural, no paradigma da cultura, nos nossos 20 anos: a

O inerte cultural • Teixeira Coelho 15


idéia de que a sociedade civil é viável e é para já, não para um fu-
turo político que nunca termina de chegar e que ninguém mais, jus-
tificadamente, está disposto a aguardar. É uma transformação cultu-
ral antes de ser uma transformação política, embora por certo uma
transformação de ressonância também política. E é uma transforma-
ção cultural por fazer-se não só contra a sociedade política como, e
de modo particularmente significativo, ao lado da sociedade política
e apesar dela. É uma transformação cultural por não ter nascido no
interior da sociedade política8 e por não ter proclamado que primei-
ro tomaria a sociedade política para em seguida transformá-la por
dentro e eliminá-la, como disseram e dizem garantir revolucionários
de diferentes cores ideológicas: o que se verifica sempre é a toma-
da do Estado para perpetuá-lo e nele perpetuar seus novos detento-
res. A sociedade civil emergente em 1971 não cometeu, pelo me-
nos de início, esse monumental e trágico erro histórico — se de fato
for apenas erro e não pura hipocrisia e cinismo. (Nunca será demais,
aliás, recordar que revolução quer dizer volta atrás, assim como re-
volucionários políticos são aqueles que, como escreveu Lampedu-
sa, mudam alguma coisa apenas para que tudo fique como era an-
tes.) Indício dessa total separação entre sociedade civil e sociedade
política é que muitas ONGs, formato privilegiado no qual a socie-
dade civil por ora se agrupa e se apresenta, recusam apoios eco-
nômicos da sociedade política, da qual o Estado é parte. Pelo me-
nos assim procedem aquelas ONGs que se situam num certo núcleo
duro, autêntico e coerente da sociedade civil. É verdade que dinhei-
ro não tem origem marcada, nem destino certo: todo dinheiro é di-
nheiro de tudo, todos o geraram embora de todos não seja. Faz di-
ferença, porém, a origem mais imediata dos recursos que chegam a
uma autêntica ONG que optar por relacionar-se, quando se trata de
dinheiro, apenas com a sociedade civil. E se fosse necessário um in-
dício adicional da culturalidade dessa transformação, o moto da
Greenpeace a confirma:

8
A idéia de que tudo é política ou de que a política inclui a cultura é uma
falácia. A cultura, o cultural é o leito antropológico mais extenso e mais
amplo do qual apenas uma parte é ocupada, requerida ou, freqüentemente,
seqüestrada pela política.

16 Sinais Sociais • maio > agosto 2006


Greenpeace existe porque esta frágil Terra merece uma voz. Ela
precisa de soluções. Precisa de mudanças. Precisa de ação.
É um programa de vida, por dizê-lo assim, notavelmente isento
do jargão político e ideológico dominante ainda hoje e mais ainda
ao tempo em que a organização se criou. Não há, nele, referências
ao social, menos ainda a classes ou à nação. Não fala em Estado,
nem em civilização, nem menciona uma perspectiva filosófica em
particular. É em tudo leiga. Sequer interpelativa se mostra: não usa
o vós (“Uni-vos!”), não recorre ao verbo exigir, não estabelece uma
tensão entre um nós qualquer e um eles contra o qual é preciso er-
guer-se. E não menciona um programa definido. Dificilmente se po-
deria ter exemplo de proposição mais aberta e congregativa. Nesse
sentido, exatamente por isso, sendo apenas aparentemente uma mo-
ção em favor da Natureza, é não apenas o mais amplo como o mais
bem sucedido programa de ação cultural da história. E com essa ou-
tra peculiaridade histórica: promovido pela sociedade civil e mar-
cando a entrada em cena da cidadania ativa, a única que interes-
sa. Uma radical alteração no paradigma cultural — que tardou, não
tanto em chegar ao Brasil, porém em começar a firmar-se no Brasil.
Mas o fez, ou faz, e de tal modo que merece sua indicação como
a mais importante mudança no modo de entender-se, no país, a or-
ganização da vida humana — ela e não qualquer outro fenômeno
eventual, como o próprio fim da ditadura (de algum modo inscrito
na lógica política do processo), a criação de algum novo partido po-
lítico (inscrita na lógica política mais tradicional) ou outro.
Nada está resolvido, porém, nem tudo é um mar de rosas. A
conformação de um novo paradigma não significa, por si, uma
mudança imediata e duradoura. A Revolução Francesa de 1789
inscreveu ou reinscreveu a liberdade como valor central do progra-
ma político. A própria revolução, porém, violou, oprimiu e matou
em nome da liberdade. A enunciação de um princípio não equiva-
le à sua implementação.
A idéia de cultura no sentido aqui privilegiado quando se fala
em mudança de paradigma — a cultura como ator crítico da refor-
mulação dos significados sociais e como amplo e genérico movi-
mento do pensamento e da sensibilidade no sentido de um esforço
para a proposição de uma qualidade de vida diferente e abrangente

O inerte cultural • Teixeira Coelho 17


— emerge durante a Revolução Industrial9. E ao surgir — com esse
sentido que irá aos poucos, paradoxalmente, tanto se refinar quan-
to degradar — essa idéia já encontra firmadas duas outras histórias
que se apresentarão como seus maiores adversários e constituirão
o centro da história da modernidade: as de poder e ideologia, inti-
mamente conectadas no limite reduzíveis: a história da disputa po-
lítica pelo poder, a história dos interesses políticos particulares por
trás das alegações de que se está procurando o bem e o bom. A his-
toria do exercício vertical do poder. A história da luta para conquis-
tar o poder e nele manter-se pelo mais longo prazo possível, de tal
modo que a primeira ação quando se o alcança é viabilizar o que
for necessário para nele manter-se. A expressão a arte pela arte reco-
bre uma idéia nem sempre unívoca e que recebe diferentes contes-
tações. Não há dúvida, porém, que a expressão o poder pelo poder
é auto-explicativa e de evidente sentido. Poder e ideologia, tratados
assim como noções individuais apenas por tática argumentativa, são
duas das heranças do projeto da modernidade que não se cumpriu.
O projeto não se cumpriu mas a herança restou. Herança maldita, a
única de fato maldita. Da qual livrar-se implica uma tarefa hercúlea,
talvez sobre-humana, sobremítica, acaso inviável. E, mesmo assim,
tarefa a inscrever-se na agenda prioritária da Cultura, entendida não
em sentido conservador (a cultura como a soma de tudo que foi, que
é agora e que deve continuar sendo assim como é), mas em senti-
do propulsor (a cultura como dinâmica, como ação – algo que a arte
na verdade tem mais condições de fazer que a cultura, mas essa é
quase uma outra história...)
Voltemos por um instante ao relato eloqüente de Robert Hunter:
os membros da equipe que se dirigiu a Amchikta logo se engalfinha-
ram numa disputa pelo poder porque a ação, que deveria guiar-se
pelo consenso de tal modo que cada participante tinha a possibili-
dade de veto contra qualquer decisão tomada, era decidida e exe-
cutada de acordo com as normas da “tradicional estrutura hierárqui-
ca de poder”, a estrutura vertical; Bohlen — o operador da ação, na
terminologia ultracontemporânea desses meses do inverno político

9
Raymond Williams, Culture and Society 1780-1950. Londres, Penguin,
1961.

18 Sinais Sociais • maio > agosto 2006


brasileiro de 2005: aquele que controla o dinheiro, que propicia o
acesso ao dinheiro — à noite desfazia a trama acordada durante o
dia, como a impenitente tecelã da lenda, e dava ao capitão do pes-
queiro o rumo a seguir, rumo incerto porque nunca estavam onde
deveriam estar, nunca iam aonde queriam ou pensavam ir. Luta pelo
poder, impossibilidade de alcançar-se o consenso, reafirmação da fi-
gura do comandante que sabe, desvio de rumo. E se de fato a ação
da equipe era desinteressada e amadora, pois feita por amor à cau-
sa e nos momentos de ócio, negando todos os interesses pessoais e
políticos, havia pelo menos um entre eles que fazia o que fazia por
uma motivação das mais velhas: dinheiro. O capitão e dono da em-
barcação aceitara a tarefa de levar aquele grupo à zona de teste nu-
clear de Amchikta por estar “economicamente desesperado, algo so-
bre o que nunca se falou”, escreve Hunter. E esse hippie inovador
que foi Robert Hunter observa ainda como lhe pareceu “sugestivo”
recordar, depois dos fatos, o que o capitão do barco fizera e não fi-
zera no momento crítico: no último instante, tirou o barco da zona
de perigo, salvou seu instrumento de trabalho, a si mesmo e, com
ele, o resto da tripulação. E com isso, continua Hunter, “todos salva-
mos nossa cara, o suficiente para poder voltar para casa”. Essas con-
tradições, dilemas e impasses, no entanto, compõem o processo,
em vez de invalidá-lo.
A viagem a Amchikta é passado. De regresso a esse futuro, 2005,
inverno brasileiro de 2005, recoloca-se na tela a imagem da questão
emblemática para a redefinição da cultura política do país na pers-
pectiva da transformação no paradigma cultural iniciada no último
quarto do século XX a ser agora reafirmada: a crise de um partido
político específico, o Partido dos Trabalhadores. Crise de um partido,
crise desse partido singular, sem dúvida, e também crise da cultura
política do país, e como conseqüência crise do Estado e da noção de
Estado aqui, embora não só aqui. Crise cuja pior conseqüência seria,
proclamam as vozes politicamente corretas dos diferentes matizes
políticos, o aprofundamento da descrença nos partidos políticos e na
política, de conseqüências, continuam, “imprevisíveis”, quer dizer,
catastróficas. Não é assim. Primeiro, já deveria estar claro que essa
não é uma conseqüência da crise mas um de seus motivos, embora
motivo e conseqüência se realimentem em círculo vicioso. Segundo,

O inerte cultural • Teixeira Coelho 19


nesse quadro, esta nova crise — porque é disso que se trata: de mais
uma crise, da crise mais recente — e a alegada e crescente descren-
ça nas instituições políticas (mais fictícia que real, infelizmente) de-
vem, antes, ser comemoradas como outra oportunidade que se tem
para terminar de vez com a real herança maldita, a verdadeira he-
rança maldita, a maior delas, tão grande que no cotidiano quase não
dá para vê-la, tão grande que alguns não podem vê-la: essa herança
moderna, vinculada às duas anteriores, que é a crença cega no Esta-
do e nos seus profetas, os partidos políticos. Crença cega é pleonas-
mo: a crença por definição sustenta-se em dogmas, aquilo que não
pode ser demonstrado nem contrariado. Com base nessa crença, os
profetas sucedem-se no púlpito apresentando-se, cada um, como os
verdadeiros portadores da verdadeira fé. As disputas e conflitos para
saber qual é o messias mais genuíno servem apenas para reavivar a
moribunda fé institucional moderna: que o Estado é a salvação e que
fora dele não há solução. Na verdade, se a crise atual aprofundar a
descrença nesse aparelho, tanto melhor.
Dessa perspectiva, a reforma política que se anuncia para antes
ou depois do fim desta crise — como se, no quadro da sociedade
política, ela pudesse ter fim — é a perpetuação do mal que se pre-
tende corrigir. Um engodo. Reforma política é gasolina no fogo. A
reforma que se apresenta como urgente é a reforma civil, a refor-
ma da civitas, a reforma da sociedade civil. A reforma da cabeça,
da imaginação, dos músculos e nervos da civitas — para terminar
de colocá-la no caminho que ela já abriu. Reforma adequada para
enfrentar a crise atual, que é a crise da modernidade, a crise dessa
herança da modernidade: a crise do poder e da ideologia política,
a crise que é a ideologia política e a crise que é o poder e o poder
concentrado na sociedade política. A modernidade começou com
uma crise do poder e com a tomada do poder — não para acabar
com ele mas para tomá-lo e exercê-lo em toda sua extensão e pro-
fundidade, como sempre depois de vitoriosas as revoluções e venci-
das as eleições. Reforma política é armadilha. Apenas a reforma da
civitas rompe esse círculo vicioso da modernidade. Dessa moderni-
dade no impasse só se sai com a reforma da idéia do papel que a
sociedade civil deve ter na administração da coisa pública, reforma
que possibilite passar da enunciação da preeminência da socieda-

20 Sinais Sociais • maio > agosto 2006


de civil à sua prática. A reforma que interessa, a reforma que vale,
não é a da mudança (minúscula) de uma forma de representação por
outra, muito menos de um partido por outro, de uma ideologia por
outra, mas a da substituição da representação pela apresentação:
aqui me apresento para fazer a minha parte (algo tanto mais viável
agora, com a internet que dispensa viagens aos planaltos centrais).
Como fez o Greenpeace histórico. O espanto e a indignação diante
dos escândalos atuais, previsíveis como previsíveis são os elemen-
tos da tabela periódica de Mendeleiev, são tão inaceitáveis quanto
os próprios escândalos. São, no limite, hipócritas, isto é, como su-
gere a origem grega da palavra, fingidos: uma encenação. São fal-
sos, são pretexto. Se a indignação fosse pra valer, a platéia deixaria
de ser platéia. Como observou Lima Barreto, o Brasil ainda não tem
povo, tem público. Essa não era peculiaridade do Brasil de Lima Bar-
reto, nem do país atual, nem apenas deste país. Se a indignação fos-
se para valer, as pessoas sequer entrariam nesse teatro, nem ficariam
a exigir outro dramaturgo e outro ator: decretariam o fim da ence-
nação. Uma conquista da modernidade, no momento em que ela se
fundou, foi afirmar o Estado — e o Estado leigo. Na linha de desen-
volvimento da mudança de paradigma cultural, o que se pode espe-
rar é que essa herança se aprofunde, que a cultura política seja ain-
da mais radicalmente leiga: de política, a cultura precisa passar a ser
cívica. Não há ilusões: o Estado continuará. Mas é cabível laicizá-lo,
isto é, despolitizá-lo, abri-lo à civitas. A sociedade civil tem de acen-
tuar seu movimento inercial e mexer-se ainda mais, fazer o que tem
de fazer, ocupar-se da coisa, apresentar-se: aparecer. Objeção ime-
diata: a luta pelo poder continuará. Sim. Continuou no pesqueiro
que se chamou Greenpeace. Mas os mecanismos para delimitá-la,
se não neutralizá-la, serão outros. E nem todos são tão inúteis quan-
to os fornecidos pela atual cultura política.
Essa tríplice herança da modernidade — Estado, poder e ideo-
logia — constitui o núcleo do inerte cultural da modernidade. Esse
inerte cultural compreende a cultura objetificada (do qual de certo
modo é um outro nome) formada por essa ampla esfera na qual es-
tão todos os vetores culturais, incluindo-se aqueles que compõem a
cultura entendida em sentido estrito (os diferentes modos ou lingua-
gens culturais, o patrimônio, os valores); cultura objetificada que é

O inerte cultural • Teixeira Coelho 21


muito mais ampla que a cultura subjetiva de cada um e à qual não
apenas se opõe como, freqüentemente, circunscreve e sufoca. E que
é ao mesmo tempo, paradoxalmente, passível de ser superada pela
cultura subjetiva porque aquela é estática e esta, dinâmica. Essa cul-
tura objetificada10 é aquela que, nos termos da cultura strictu sensu,
está nos museus e bibliotecas e que, no campo da cultura vista como
esforço no sentido de redefinição da qualidade de vida, cimenta-se
(é bem o termo) sobre as noções de Estado, ideologia e poder. É esse
inerte cultural que faz com que a política propriamente dita seja vis-
ta como uma disputa na qual necessariamente um dos lados tem
de perder, e não apenas perder como ser eliminado, concepção das
mais primitivas e totalitárias — herança pré-moderna — do que seja
a política. Esse inerte cultural é o responsável pela história como pe-
sadelo da qual não se consegue acordar e que pode de algum modo
identificar-se com a noção de demônio político tal como o descreve
o escritor e ensaísta Pascal Bruckner11 ao falar da França atual e re-
ferir-se à existência ou persistência, naquele país, de uma esquerda
neobolchevique “que ainda sonha com a grande noite do massacre
anticapitalista” e de uma direita nacionalista e xenófoba para a qual
os inimigos a abater são os imigrantes do leste, do Oriente Médio e
da África tanto quanto o novo liberalismo econômico inglês defensor
da redução de incentivos à agricultura na União Européia. Esse inerte
cultural é ainda aquele da dialética como movimento de eliminação
dos contrários e sua superação por um terceiro, processo que nunca
chega a seu final por deter-se na fase em que a eliminação do oposto
é eventualmente conseguida, quando então o Um inicial vencedor
se solidifica em si mesmo. Inerte cultural que não sabe lidar com a
idéia de conflito que Georg Simmel e Edward Said defenderam cada
um a sua maneira, quer dizer, um processo que pede como política
cultural aquela que faz o suficiente para que os opostos se mante-
nham lado a lado numa situação de polifonia, se não de sinfonia, ro-
çando os ombros e por vezes até mesmo fazendo aquilo que em fu-
tebol se chama “jogo legal de ombro” sem se eliminarem. Conflito

10
Expressão que adapto da fórmula “cultura objetiva” avançada por Georg
Simmel (Philosophie de l´argent, Paris, PUF, 1997).
11
V. o artigo “The real thing”, em The New Yorker de 22 de agosto de 2005.

22 Sinais Sociais • maio > agosto 2006


no qual Simmel12 via não um fator de atrito e destruição social mas,
pelo contrário, de equilíbrio social — Simmel, para quem as negati-
vidades da vida humana, singular e em sociedade, não deveriam ser
banidas do horizonte mas sim nele incorporadas e vistas como ele-
mento de estruturação da vida mesma. Incorporadas e não elimina-
das, como quer a velha política ou a herança maldita da política.
Não há modelos predeterminados para se acabar com essa enor-
me herança maldita, para diluir esse inerte cultural, para lidar com
ele. A reforma política tal como é sempre proposta nos momentos de
crise (alteração das regras de representação) não é, porém, um de-
les. Por certo, que se façam os remendos possíveis na cultura políti-
ca, pronto-socorro para aliviar o paciente. A real medicina, porém,
se houver, está em outra parte: na presença maior da sociedade civil
na condução da coisa pública. Mínimo Estado, máxima sociedade
civil: esse será o desdobramento lógico da mudança iniciada ao final
do século passado, nos 20 anos desde o fim da ditadura aqui neste
país, mudança capaz de conduzir à necessária contemporaneidade
filosófica e histórica do presente. Isso não significa — como insistem
em alegar aqueles que, contrariando Wittgenstein, querem sempre
ver as coisas do mesmo ângulo — destruição do Estado-previdência,
abertura das portas para o Mercado, abandono das funções precípu-
as da administração pública. Significa a reforma e a redução da so-
ciedade política e a instalação da sociedade civil no lugar que deve
ocupar. Significa reformar, reduzir e ao final eliminar a profissão do
político e a política como profissão, perversão da modernidade. Sig-
nifica, em outras palavras, não mais abrir espaço para os atletas do
Estado, como os chama Peter Sloterdijk,13 aqueles que passam a vida
treinando, nos circuitos fechados e sem público real dos aparelhos
partidários, para se tornar operadores do Estado, para assumir o con-
trole, tomar o poder. Significa propor a política como uma coisa
amadora, como na descrição que Robert Hunter fez dos tripulantes
da primeira missão Greenpeace. É ainda nesse sentido que a Cultura,
o cultural, deve aprofundar sua laicidade, tornar-se radicalmente lei-

Le conflit, Paris, Circe, s.d.


12

En el mismo barco. Madrid, Siruela, 2002.


13

O inerte cultural • Teixeira Coelho 23


ga. O primeiro movimento da laicidade foi a separação entre Estado
e Igreja, operação ainda largamente inconclusa. O segundo é a des-
politização do Estado, o que implica a superação da herança da no-
ção de ideologia e o esvaziamento da idéia e da prática do poder.
Um paradigma cultural anterior foi perfurado na década de 70
do século passado e não apenas de modo filosófico-especulativo.
Um pouco mais cedo lá fora, um pouco depois aqui dentro. Nes-
se processo, um papel mais que decisivo coube ao movimento eco-
lógico. Pode soar estranho que um programa de defesa da natureza
surja como o mais decisivo programa de política cultural até agora.
Examinado na superfície, o processo da vida humana situa-se, a par-
tir da modernidade, não apenas na forma do conflito entre natureza
e cultura como também e acima de tudo, na forma da afirmação da
cultura sobre a natureza. A visão pós-moderna do mundo está tra-
tando de reorientar esse desenho de modo a colocar cultura e natu-
reza na situação, pelo menos, de equilíbrio, mesmo que tenso: es-
perar mais que isso a esta altura é dar sinais de ingênuo otimismo.
Mas o espanto que pode ser a proposição do movimento ecológico
como estopim de mudança do paradigma cultural não deve perdu-
rar. É que na própria concepção do movimento ecológico está uma
questão cultural. Robert Hunter tinha já em 1969, quando co-fun-
da a Greenpeace14, um entendimento seguro do papel central re-
servado à cultura no processo de transformação da vida e do mun-
do. Discípulo de McLuhan, desde seus tempos de universitário esse
jornalista canadense esteve atento à idéia da contracultura e apos-
tava seu esforço na possibilidade de mudar o mundo por meio do
que chamava de media mindbombs, as bombas da mídia de efei-
to mental ou as bombas da mente de efeito mediático. Morreu em
maio de 2005, quando aqui se comemoravam os 20 anos do fim da
ditadura, reconhecido como um herói da ecologia. Para além dis-
so, um dia poderá ser visto como marco do movimento de abertu-
ra de espaço para a sociedade civil e, portanto, de revisão (já tardia)
dos conceitos políticos herdados dos séculos XVIII e XIX. A possibi-

Esse nome veio apenas dois anos depois, quando da repercussão da expe-
14

dição a Amchikta.

24 Sinais Sociais • maio > agosto 2006


lidade que tem essa bomba de realmente surtir efeito é incerta. Não
há qualquer imperativo histórico que torne inevitável a ascensão da
sociedade civil ao primeiríssimo plano. Nem que, uma vez lá, ela
saiba ir aonde quer ir. As alternativas a ela estão porém gastas. Seja
como for, de sua eficácia não há mais dúvidas: num barco enfer-
rujado, aqueles 12 ativistas variadamente hippies (e a conexão en-
tre os movimentos estudantis de 68 e a ascensão da sociedade civil
com a concomitante decadência das ideologias e dos partidos polí-
ticos deverá ser continuamente sublinhada) desafiaram a maior po-
tência militar do mundo, desencadearam enorme onda de protes-
to que levou ao fechamento da fronteira entre os EUA e o Canadá
pela primeira vez desde 1812, quando da guerra que opôs os EUA
à Grã-Bretanha (cujas tropas eram, em mais da metade dos efetivos,
compostas por canadenses), provocaram a prazo médio o fim dos
programas de testes nucleares e deram início a um forte ativismo em
favor do meio ambiente e da paz. Que é possível pensar um progra-
ma de ação social que não se perca nas questões do poder, também
está claro, como indicam os diferentes movimentos atuais, espalha-
dos um pouco por toda parte, que contestam o poder sem se preo-
cupar em tomá-lo — antes esvaziando-o, como querem as tendên-
cias Reclaim the Strets, e Temporary Autonomous Zones (TAZ), entre
tantas que se espalham pelas ruas e que ocupam as ondas da inter-
net (o que não inclui, porém, os chamados foros sociais cuja vincu-
lação com a sociedade política, quando não dependência quase to-
tal da sociedade política, os coloca em situação oblíqua em relação
à sociedade civil como aqui descrita).
Caso se considerem esses movimentos demasiado românticos
para servirem de exemplo, um caso talvez mais convincente da efi-
cácia da mindbomba que é a idéia da sociedade civil será encontra-
do no documento intitulado Agenda 21 da Cultura, firmado a 8 de
maio de 2004 em Barcelona. Esse documento faz aos governos lo-
cais das cidades — uma vez que é na cidade onde tudo se passa, não
no país ou na nação, nem no estado federativo, na província ou re-
gião — uma série de recomendações baseadas nas contemporâne-
as noções dos direitos culturais, das quais talvez a mais significativa
seja a que vem afirmada em seu artigo 13, que reconhece ser dinâmi-
ca a identidade de todo indivíduo. Esse é um reconhecimento que eu

O inerte cultural • Teixeira Coelho 25


não esperava, em meu período de vida, ver aceito num documento
que, em última instância, é um documento de governos. E que cons-
titui uma segunda quebra formal de um paradigma cultural. A noção
de identidades fixas, individuais e coletivas, sempre definidas no pas-
sado e desde o passado — integrantes fortes do inerte cultural, exem-
plo certo de cultura objetificada que desconsidera e imobiliza a sub-
jetiva —, é aquela que sempre foi usada como retórica para justificar
não só a ação como a própria existência dos estados nacionais, ação
e existência traduzidas nos programas culturais de defesa de uma
suposta identidade nacional que, no século XXI, precisa ser revista.
Identidades nacionais serviram freqüentemente, senão apenas, para a
definição de fronteiras cuja função final, como recorda Cláudio Ma-
gris, prêmio Príncipe de Astúrias de Literatura de 2004, é cobrar seus
tributos de sangue.
Por outro lado, é verdade, a Agenda 21 da Cultura pode ainda ser
vista como um último esforço da sociedade política para justificar-se
e manter sua posição de controle da cultura, uma vez que é um do-
cumento dos governos locais, dos governos das cidades, não da so-
ciedade civil, e cuja redação foi decidida no âmbito de um foro so-
cial vinculado à sociedade política, como o de Porto Alegre. Mesmo
nessa condição, não deixa de ser significativo do novo espírito do
tempo, da nova linha do ar cultural, por mais tênue que seja.
A mudança combinada nesses dois paradigmas ainda é incipien-
te. A sociedade civil ainda se organiza, no Brasil, na pior hipótese,
para fazer caridade e, na melhor, para complementar a ação do Es-
tado, para fazer aquilo que o Estado não faz, em vez de fazer no lu-
gar do Estado15. O efeito perverso desta segunda alternativa é desde
logo evidente, embora todos parecem fingir não vê-lo: o Estado faz
cada vez menos, embora, no caso específico do Brasil, cobre cada
vez mais. O real destino desses recursos poupados costuma vir à tona
quando explodem os escândalos. Sob esse aspecto, complementar
a ação do Estado é a doença infantil da sociedade civil. A primei-
ra alternativa, a da caridade, é da mesma natureza e não é em nada
mais estimulante: tende a perpetuar a noção paternalista do favor,

Como defender a si mesma, já que o Estado não o faz; exemplo, as orga-


15

nizações de defesa do consumidor.

26 Sinais Sociais • maio > agosto 2006


quer a praticada pelo Estado clientelista, quer a praticada pelas ca-
madas abastadas da sociedade que a ela se entregam por variadas ra-
zões, nenhuma muito convincente. Mas, que assim seja e tenha sido
até agora não deve ser fator de desestímulo. Também a política cul-
tural tradicional, essa que em termos muitas vezes bisonhos trata de
difundir cultura, de levar cultura ao povo, de amparar a identidade,
de construir uma socialidade (que se evapora à menor adversidade
externa, como mostrou New Orleans), em seus primórdios moder-
nos assumiu a forma de uma ação caritativa; foi o caso da Inglater-
ra da segunda metade do século XIX, onde os centros culturais (na
verdade, centros de arte) que se constituíam para aquelas tarefas as-
sumiam freqüentemente a figura jurídico-administrativa das casas de
misericórdia, de mesmo tipo daquelas que por aqui sempre trataram
da saúde. Cultura e política cultural eram, nesse início, como progra-
mas de Estado, caridade. Isso não impediu que o processo cultural
assim iniciado, conduzido com abertura e dignidade e definindo-se
apenas como a criação das condições para que as pessoas inventem
seus próprios fins, sem dizer quais são esses fins, se desdobrasse no
florescimento autônomo e libertário que o século XX apesar de tudo
conheceu em sua segunda metade. Se a analogia com o que se pas-
sou no campo da política cultural servir de base para a compreensão
do que pode suceder no território da cultura política, é lícito depo-
sitar alguma esperança na capacidade de germinação do novo para-
digma anunciado. Há um pouco ou muito de wishful thinking nes-
sa projeção. Mas, é que o início do século XXI indicou que não há
outra saída: no lugar da sociedade política, a sociedade civil; em
vez do poder, a solidariedade; e, substituindo a ideologia, a longa
conversação da cultura.

•••

O inerte cultural • Teixeira Coelho 27


SER DE TODOS OS TEMPOS SEM
DEIXAR DE SER DO INSTANTE1
CULTURA E POLÍTICA EM TEMPOS DE BRASIL

Marta Porto
Jornalista, pós-graduada em Planejamento Estratégico e Sistemas de Informação,
com Mestrado em Ciência da Informação.

O presente artigo tem por objetivo destacar análises que colaborem para
uma reflexão sobre este tema, tomando como ponto de partida noções
desenvolvidas em fóruns internacionais, especialmente os liderados pela
Unesco, uma análise do projeto e resultados públicos de 20 anos de política
de incentivos fiscais à cultura no país, um perfil das lideranças culturais
que surgem na sociedade civil a partir dos anos 90 e como são absorvidas
por esse projeto político em vigor. Na parte final se apresentam algumas
propostas desenvolvidas por um grupo interdisciplinar reunido em 2003
com a missão de elaborar propostas independentes para a gestão do Ministro
Gilberto Gil, entregue naquele mesmo ano como o título de “documento
orientador de política cultural”.

Octavio Paz.
1

28 Sinais Sociais • maio > agosto 2006


Preâmbulo

O Brasil retomou o seu processo democrático há menos de duas


décadas, mais precisamente em 1985, com o que nós chamamos de
período de transição, passando a contar com eleições diretas só em
1990. Ou seja, somos uma democracia representativa recente que
ainda esbarra numa cultura arraigada de privilégios de uma peque-
na parcela da população.
A desigualdade ainda persiste como a principal causa da pobreza
e das diversas formas de concentração que o país apresenta — edu-
cacional, cultural, econômica, política. As estimativas mais recentes
do Instituto de Pesquisas Econômicas Aplicadas mostram que se o
Brasil tivesse uma desigualdade de renda compatível com a sua ren-
da per capita, segundo os padrões vigentes internacionalmente, te-
ríamos 60% de pobres a menos no país. Ou seja: a maior parte das
pessoas que vivem abaixo da linha de pobreza no Brasil não se en-
contra nessa situação porque o país é incapaz de gerar renda, mas
porque internamente há um excesso de desigualdade em relação
ao resto do mundo.
A desigualdade de renda deriva da desigualdade de acesso a um
vasto e heterogêneo conjunto de ativos que constituem a riqueza:
educação, propriedade, crédito, conhecimento, infra-estrutura etc.
Reduzi-la passa, assim, por democratizar o acesso a esses ativos.

Ser de todos os tempos sem deixar de ser do instante • Marta Porto 29


Há um consenso desde o princípio da década de 90 de que as es-
tratégias de ampliação do acesso à oferta destes ativos têm necessa-
riamente que contemplar um vasto e diferenciado conjunto de ato-
res, compartilhado entre diferentes níveis de governo, entidades da
sociedade civil e empresas privadas. Esse consenso vem com o pro-
cesso de democratização do país, onde surgem vários novos atores
sociais que lutam por um espaço público ampliado e por ver atendi-
das as suas reivindicações.
E é exatamente no bojo do processo de democratização do
país em fins da década de 80 que começam a ser identificadas no-
vas modalidades de participação social e do exercício da cidada-
nia, transgressoras perante a face política da classe média ou classe
trabalhadora sindicalizada.
Como o debate sobre cultura, sobre o papel das políticas de cul-
tura, se insere nesse contexto? De uma forma insuficiente, até mesmo
reducionista do ponto de vista do vigor das discussões que permeiam
a sociedade e do colorido cultural que passa a identificar um sem nú-
mero de práticas contestatórias nas grandes zonas urbanas brasileiras.
Na área da cultura, o debate capaz de recuperar a sua dimen-
são e importância política foi gradativamente sendo substituído
pela insuficiente discussão sobre os mecanismos de financiamen-
to à cultura, através da facilitação do acesso aos recursos privados.
Substituímos o essencial pelo acessório e em 20 anos colhemos o
fruto da tibieza dessa escolha: a fragilização do sistema nacional
de cultura, com ausência de verbas públicas nos órgãos oficiais
de cultura, o desmonte de instituições de salvaguarda e memória
do patrimônio nacional, a má remuneração ou qualificação dos
recursos humanos, mas especialmente a substituição da idéia de
acesso amplo e universal a toda a população brasileira, pela ação
pautada em “público-alvo”.
Cultura e desenvolvimento, cultura e fortalecimento da democra-
cia, cultura e cidadania são temas que começam a despontar com
força na agenda política nacional, em debates, seminários, apresen-
tações de documentos de secretarias e fundações culturais a par-
tir dos anos 2000. Um debate tardio, já que 20 anos nos separam
da implantação do Ministério da Cultura, em 1985, no bojo da
redemocratização do país.

30 Sinais Sociais • maio > agosto 2006


Mesmo tardio, o debate é bem vindo se vier acompanhado de um
senso de análise crítica aprofundado sobre os descaminhos da políti-
ca pública de cultura adotada no país a partir da implantação do Minc
— sua face superficial e promotora de desigualdades — e a necessida-
de urgente de promover mudanças significativas que acompanhem o
desafio maior do Brasil de reduzir suas desigualdades históricas e ser
capaz de promover o desenvolvimento eqüitativo.
Fica a questão: como pensar a importância das políticas culturais
para o desenvolvimento a partir de uma cultura de desigualdades
construída culturalmente ao longo da história brasileira?
Nesse texto, iremos de forma introdutória destacar análises que
colaborem para uma reflexão sobre este tema, tomando como pon-
to de partida noções desenvolvidas em fóruns internacionais, espe-
cialmente os liderados pela Unesco, uma análise do projeto e resul-
tados públicos de 20 anos de política de incentivos fiscais à cultura
no país, um perfil das lideranças culturais que surgem na sociedade
civil a partir dos anos 90 e como são absorvidas por esse projeto po-
lítico em vigor. Na parte final apresentaremos algumas propostas de-
senvolvidas por um grupo interdisciplinar reunido em 2003 com a
missão de elaborar propostas independentes para a gestão do Minis-
tro Gilberto Gil, entregue naquele mesmo ano como o título de “do-
cumento orientador de política cultural”.

Cultura e Desenvolvimento, iniciando o debate

A relação entre cultura e desenvolvimento é um desafio global re-


conhecido pelas Nações Unidas desde 1988, quando foi lançada a
Década Mundial do Desenvolvimento Cultural e, alguns anos depois,
em 1993, implantada a Comissão Mundial de Cultura e Desenvolvi-
mento, sob a batuta competente do peruano Javier Perez de Cuellar.
O primeiro informe da Comissão, intitulado Nossa Diversidade
Criadora2, lançou um desafio para a comunidade internacional e
para os estados-membros da Unesco: repensar os modelos de desen-
volvimento adotados no século XX que conduziram ao empobreci-
mento das nações, aos conflitos armados, à exclusão social e econô-

2
CUELLAR, Javier Peres. Nossa Diversidade Criadora, Unesco, 1997.

Ser de todos os tempos sem deixar de ser do instante • Marta Porto 31


mica e à perda gradativa da qualidade de vida dos países pobres. O
dado de referência adotado pela Comissão para fazer frente ao de-
safio de edificar novos paradigmas para o desenvolvimento no sécu-
lo XXI, é alarmante: se chega ao final do século XX com mais de 1
bilhão de pessoas excluídas do acesso aos bens de consumo primá-
rios, à informação e aos benefícios da globalização.
A Unesco lança o alerta: “é fundamental dar uma cara humana à
globalização, promovendo a paz, a segurança e o desenvolvimento
no século XX”. Para alcançar melhores resultados sociais e eqüida-
de econômica a Comissão Mundial de Cultura afirma ser prioritário
sensibilizar os atores sociais, governos e a iniciativa privada a assu-
mir a centralidade política da cultura no processo de humanização
dos modelos de desenvolvimento vigentes. Uma centralidade capaz
de devolver às pessoas a primazia na construção coletiva das várias
formas de sociabilidade, estimulando a criatividade na diversidade e
formas não-excludentes de crescimento social e econômico.
Atingir uma maior eqüidade no nível mundial, com o objetivo de
atenuar e prevenir os danos causados ao meio ambiente e de redu-
zir a pobreza, é uma tarefa complexa que não pode mais permitir
que a cultura e as políticas culturais permaneçam num papel secun-
dário — muitas vezes terciário — de promover a integração do indi-
víduo à sua coletividade e lhe conferir papel de protagonista na rede
intrincada do desenvolvimento socioeconômico.
A visão instrumental do desenvolvimento que subestima “a importân-
cia do fator humano — a teia complexa de relações, crenças, valores e
motivações existentes no centro de toda a cultura“3 propõe um processo
perigosamente linear, homogêneo e único que fracassa na tentativa de
incluir a diversidade das culturas e experiências, as formas e os tempos
próprios de cada sociedade de inventar as suas maneiras de crescimento
econômico, social e cultural. A evidência desse esgarçamento social e
do esgotamento de um modelo em si excludente reafirma a necessidade
de refletirmos sobre as bases das políticas culturais, ampliando suas
ambições e suas estratégias programáticas.
Nos países latino-americanos essa tarefa se amplia, na medida
em que as democracias frágeis e o quadro de desigualdade social

CUELLAR, Javier Perez. Nossa Diversidade Criadora. Papirus: 1997, pág.9.


3

32 Sinais Sociais • maio > agosto 2006


impõem a construção de pilares políticos capazes de dar início ao
processo de transformação das políticas culturais em culturas polí-
ticas aptas a enfrentarem as enormes disparidades sociais e os con-
seqüentes desafios de sustentabilidade. Políticas democráticas que
considerem a variedade de necessidades e demandas da população
e que propiciem a convivência dessas multiplicidades étnicas, re-
ligiosas, de tradições, gostos e sensibilidades. Assim, é importante
destacar que requerer a centralidade do papel da cultura no desafio
de formular paradigmas de desenvolvimento mais humanos e inte-
grais é em si destacar essa diversidade criadora, multifacetada, polis-
sêmica, que caracteriza a humanidade em toda a sua história. É tam-
bém destacar a capacidade criadora do indivíduo e das sociedades
de reinventarem-se e de propor alternativas próprias de desenvolvi-
mento e de trocas simbólicas, como assinala Bernardo Kliksberg:
“As cifras obrigam a refletir. Aproximadamente um de cada dois
latino-americanos está abaixo da linha da pobreza. A situação
das crianças é ainda pior: seis de cada dez são pobres. Os jovens
se encontram numa situação difícil. (...) Sob o embate da pobreza,
as famílias entram em crise e muitas vezes se desarticulam. A cri-
minalidade cresce fortemente. É quase seis vezes o que se consi-
dera internacionalmente uma criminalidade moderada. Estes da-
dos significam sofrimento humano em grandes proporções.(...) O
que está acontecendo? Por que não se cumpriram os prognósticos
feitos no início dos anos 80, que afirmavam que, seguindo cer-
tas políticas, os resultados econômicos e sociais estavam assegu-
rados? Por que um continente com recursos naturais privilegiados,
com fontes de energia baratas e acessíveis em grande quantidade,
com grandes capacidades de produção agropecuária, tem indica-
dores sociais tão pobres? (...) O pensamento convencional pare-
ce ter esgotado sua possibilidade de dar respostas a interrogações
como as indicadas. Faz-se necessário recuperar o que foi uma
das maiores tradições deste Continente, a capacidade de pensar
de forma criativa e por conta própria, aprendendo da realidade e
buscando caminhos novos.” 4 (KLIKSBERG,2001)

4
KLIKSBERG, Bernardo. Falácias e Mitos do Desenvolvimento Social, São
Paulo,Cortez, 2001.

Ser de todos os tempos sem deixar de ser do instante • Marta Porto 33


A pedra fundamental dessa discussão em torno da interdepen-
dência entre cultura e desenvolvimento foi o relato da Conferência
de Estocolmo, em 1998, que contou com a participação de mais de
2.400 entidades representativas de governos, organizações intergo-
vernamentais internacionais e não-governamentais, fundações, as-
sociações voluntárias e outras entidades civis, além de vários artis-
tas, acadêmicos e especialistas.
A Conferência estabeleceu cinco princípios de uma política
decultura capaz de promover o desenvolvimento humano sus-
tentável ao mesmo tempo em que estimula o florescimento de
diferentes culturas:
1) A política cultural, como um dos principais componentes da
política de desenvolvimento endógeno e sustentável, deve ser
implementada em coordenação com outras áreas sociais, na base
de um enfoque integrado. Qualquer política de desenvolvimento
deve ser profundamente sensível à sua própria cultura; 2) as po-
líticas culturais do próximo século devem se antecipar, respon-
dendo tanto aos problemas persistentes quanto às novas necessi-
dades; 3) a participação efetiva na sociedade de informação e o
domínio de cada tecnologia de informação e comunicação cons-
tituem significativa dimensão de qualquer política cultural; 4) os
governos devem se esforçar para estabelecer parcerias com a so-
ciedade civil no planejamento e implementação de políticas cul-
turais que estiverem integradas às estratégias de desenvolvimen-
to; 5) num mundo cada vez mais interdependente, a renovação
das políticas culturais deve ser prevista simultaneamente nos ní-
veis local, nacional, regional e global.
Esses princípios requerem um esforço de definir opções estraté-
gicas que conduzam a sua plena realização. Três pilares básicos são
apontados para a definição de uma estratégia política capaz de cor-
responder a esses objetivos propostos na Conferência de Estocolmo:
a)  Promover o acesso ao conhecimento em uma sociedade
complexa, através da democratização do conjunto de bens
e serviços culturais produzidos histórica e contemporaneamen-
te pela humanidade.
b)  Promover o capital cultural como um dos pilares para o de-
senvolvimento econômico e local, identificando ativos socioeco-

34 Sinais Sociais • maio > agosto 2006


nômicos singulares e cadeias produtivas geradoras de renda e de
progresso econômico.
c)  Fortalecer o papel social da cultura, entendendo-a como o
elemento capaz de integrar o indivíduo a sua coletividade e lhe
conferir sentido de pertencimento.
Como sinaliza a Comissão, o desafio da cultura no século XXI
propõe que pensemos em conexões que coloquem na ordem do dia
as complexas relações entre cultura e desenvolvimento econômico,
entre globalização e expressões locais, entre fluxos informacionais e
identidade e, especialmente, entre os aspectos inovadores dos movi-
mentos civis e comunitários emergentes, como os da juventude das
grandes periferias urbanas, e o seu impacto sobre a democracia e o
fortalecimento da vida pública. Ou seja, significa repensar todo o
papel desempenhado pela cultura no plano mais radical da vida po-
lítica de um país ou de uma comunidade.

1 - Começando pela idéia de acesso

Um bom começo é discutir a noção de acesso. Muitos são os


documentos de cultura no Brasil, desde a década de 70, com as
propostas políticas de Aloísio Magalhães, que pregam “a democra-
tização do acesso à cultura”. Inevitavelmente a noção de melhorar
o acesso, até meados da década de 90, está intimamente relaciona-
da ao aumento de iniciativas programáticas de difusão cultural, de
ampliar os espaços e circuitos de cultura “até onde o povo está”. É
a política difucionista que marca todo o período da ditadura militar
e que constrói de forma subjacente a idéia de há quem faça e pro-
duza cultura e há aqueles que devem recebê-la.
Aos poucos a noção difucionista da cultura, como meio de me-
lhorar o acesso da população à produção artístico-cultural, vai sendo
superada pela noção de diálogo e intercâmbio culturais, o que pres-
supõe que todos os atores sociais são capazes de produzir cultura e
estão em condições de igualdade para trocar e experimentar novas
práticas e experiências. Assim a idéia de acesso passa a ser muito mais
um desafio de estabelecer vias de diálogo, de encontro entre diferen-
tes num contexto de diversidades, do que de produzir linhas progra-
máticas baseadas na noção de entreter ou de levar a cultura ao povo.

Ser de todos os tempos sem deixar de ser do instante • Marta Porto 35


“A diversidade cultural tem a ver com as várias formas de produ-
ção, circulação e apropriação dos sentidos que identificam pesso-
as e grupos sociais. Além de conectar a multiplicidade de expres-
sões da criatividade como saberes, valores, crenças ou estéticas,
compreende marcas culturais dos modos de vida, as práticas sim-
bólicas que determinam a cotidianidade de homens e mulheres,
as memórias que articulam o passado e a tradição com o presente
e as projeções de futuro. A diversidade cultural associa-se a com-
plexos processos de hibridação entre culturas, no que Arturo Es-
cobar tem chamado uma ‘interculturalidade efetiva’, ou aquela
que promove o diálogo de culturas em contextos de poder. Não
se pode perceber a interculturalidade simplesmente como o con-
tato, a exposição pública ou os arranjos formais entre culturas.
Pelo contrário, trata-se de encontros das diferenças que não dei-
xam pôr em movimento conflitos e desafios, e que de qualquer
maneira significam profundos processos de reconhecimento dos
outros.” 5 (REY,2002)
Acesso então é promover o diálogo de culturas em contextos de
igualdade e cooperação, disponibilizando a todos as mesmas con-
dições para participar da vida pública, imprimindo transparência
à disputa por recursos, garantindo bens e serviços culturais com a
mesma qualidade em todos os espaços e a todos os setores da socie-
dade, independente de classe social ou local de moradia.
O acesso à cultura — cultura pensada não só como memória ou
ato criativo espontâneo ou artístico, mas como conhecimento —,
ou a necessidade de apropriar-se continuamente de suas variáveis e
disponibilizar esse acervo à comunidade, é um ato consciente que
exige inserção coletiva e política de todos os cidadãos. Assim, exige
um ambiente comunitário e político favorável à inserção cultural do
indivíduo e grupos. A nossa disposição de aprender e dialogar com
universos diversos é fruto dos estímulos que recebemos do ambiente
vivenciado na infância, na adolescência, na fase adulta da vida. Estí-
mulos e incentivos propiciados pela riqueza dos encontros culturais
proporcionados ao longo da vida, da nossa facilidade e curiosidade

5
REY, German. Modos de Ser, Maneiras de Sonhar. Eixos para uma agenda
de política de cultura para as Américas, Bogotá, Colombia, 2002.

36 Sinais Sociais • maio > agosto 2006


de apreendê-los e transformá-los em dados importantes da experiên-
cia humana. A cultura, tal qual ela é pensada no século XXI, é a ex-
periência que marca a vida humana em busca do conhecimento, do
auto-aprimoramento, do sentido de pertencimento e da capacidade
de trocar simbolicamente.
“Um acesso desigual aos meios de expressão cultural, novos
ou tradicionais, implica não somente uma negação do reconhe-
cimento cultural, mas algo que afeta seriamente o sentimento de
pertencimento de indivíduos e comunidades à sociedade do co-
nhecimento, ou a sua exclusão dela. A cultura possui laços múlti-
plos e complexos com o conhecimento. A transformação da infor-
mação em conhecimento é um ato cultural, como é o uso a que
se destina todo o conhecimento. Um mundo autenticamente rico
em conhecimento há de ser um mundo culturalmente diverso.”6
(MATSUURA, 2002)
O valor que damos à cultura, a nossa ou a aprendida, é aquele
que aprendemos a dar. Assim a experiência cultural ocorre a partir
do diálogo constante entre práticas criativas próprias e o livre aces-
so aos acervos culturais tradicionais e contemporâneos.
Duas dimensões políticas ganham relevância no estímulo ao
cumprimento desse objetivo: a universalização dos bens e serviços
culturais ofertados a toda a população, através de equipamentos,
programas e serviços públicos permanentes de cultura que incenti-
vem a formação de hábitos de fruição cultural e promovam a visibi-
lidade e a troca de produções culturais e artísticas locais e comuni-
tárias, e a luta por uma educação de qualidade, pensada como via
fundamental de crescimento pessoal e coletivo, promotora de auto-
nomia, independência e identidade. Uma educação meramente ins-
trumental, sem valores éticos e culturais, é uma educação sem alma,
sem os estímulos necessários para formar um indivíduo cônscio de
si mesmo, do seu papel histórico, de seus direitos e responsabilida-
des, o que afeta as condições necessárias para a realização efetiva
do acesso à cultura.

6
MATSUURA, Koichiro. Abertura ao Informe Mundial de Cultura da Unesco,
2000-2001.

Ser de todos os tempos sem deixar de ser do instante • Marta Porto 37


Como afirmou o escritor Alcione Araújo, “a educação é o bra-
ço armado da cultura” e garantir a sua presença nos bancos escola-
res é a primeira medida para a universalização do acesso à cultura.
Em artigo recente intitulado “Favor deixar as luzes acesas”, Beatriz
Sarlo escreve que:
“um público leitor não é resultado simplesmente da abundância,
nem pode se pensar que se o anima só com políticas culturais.
Em troca, as políticas educativas o tornam possível. Onde há es-
cola, há público”7. (SARLO, 2002)

2 - A cultura como capital social


promotora de desenvolvimento

O que é capital social? Vamos usar um trecho do discurso de En-


rique Iglesias, presidente do Banco Interamericano de Desenvolvi-
mento para ilustrar essa noção:
“Há múltiplos aspectos da cultura de cada povo que podem favo-
recer seu desenvolvimento econômico e social. É preciso desco-
bri-los, potencializá-los e apoiar-se neles, e fazer isto com serieda-
de significa rever a agenda de desenvolvimento de um modo que
resulte, posteriormente, mais eficaz, porque tomará em conta po-
tencialidades da realidade que são da essência e que, até agora,
foram geralmente ignoradas.”8 (IGLESIAS, 1997)
Outra noção interessante é a de Michael Porter, desenvolvida
em seu artigo Atitudes, valores, crenças e a micro economia da
prosperidade9:
“Um papel importante para a cultura na prosperidade econô-
mica continuará existindo, mas poderá ser muito bem um pa-
pel mais positivo. Aqueles aspectos particulares de uma socie-
dade que originam inusitadas necessidades, habilidades, valores

7
REY, German. Modos de Ser, Maneiras de Sonhar. Eixos para uma agenda
de política de cultura para as Américas, Bogotá, Colombia, 2002.
8
IGLESIAS, Enrique. Cultura, educación y desarollo, Assembléia Geral da
Unesco, Paris, 1997.
9
PORTER, Michel, in Harrison, Lawrence e Huntington, Samuel. A Cul-
tura Importa — Os Valores que Definem o Progresso Humano. Editora
Record, 2002.

38 Sinais Sociais • maio > agosto 2006


e modos de trabalho serão os aspectos característicos da cultura
econômica. Os aspectos positivos da cultura, como a paixão da
Costa Rica pela ecologia, a obsessão dos EUA com o conforto, a
paixão do Japão por jogos e desenhos animados serão fontes vi-
tais de vantagem competitiva difícil de imitar, resultando novos
padrões de especialização internacional, à medida que os países
produzam cada vez mais os bens e os serviços nos quais sua cul-
tura lhes dá vantagem única.” (PORTER, 2002)
Partindo dessas duas acepções podemos considerar que a cul-
tura pensada como capital social é aquela identificada como
um ativo originado em todos os pontos desse país onde se
possa encontrar um traço singular do fazer produtivo – arte-
sanato, culinária, festas populares, patrimônio tangível e in-
tangível, memória e história – que podem ser tratados como
agentes de desenvolvimento social e econômico. O termo ati-
vo cultural foi cunhado por Joatan Vilela Berbel em seu traba-
lho Ativo Cultural: um outro paradigma para as políticas públi-
cas de cultura10, onde ele destaca a noção de cultura proposta
pela Unesco na Conferência do México em 1997, para avan-
çar em termos de uma noção capaz de supor movimento, ação.
Afirma Berbel:
Para introduzir o conceito de ativo na dinâmica da produção cul-
tural, quero lembrar-lhes a definição de cultura consagrada pela Unes-
co na Declaração do México, sobre as Políticas Culturais, em 1997:
“Em seu sentido mais amplo, pode-se considerar a cultura como
o conjunto dos traços distintivos, espirituais e materiais, intelec-
tuais e afetivos que caracterizam uma sociedade ou um grupo so-
cial. Além disso, ela engloba as artes e a literatura, os modos de
vida, os direitos fundamentais do ser humano, os sistemas de va-
lores, as tradições e as crenças.”
Quando utilizo a palavra ativo, quero me referir a sua definição
como: “que exerce ação; que age, funciona, trabalha se move”, mas
também como “a totalidade dos bens de uma empresa, ou pessoa,
inclusive os direitos suscetíveis de avaliação” e, ao aproximar o con-

BERBEL, Joatan Vilela. Ativo Cultural: um outro paradigma para as políti-


10

cas públicas de cultura, 2003.

Ser de todos os tempos sem deixar de ser do instante • Marta Porto 39


ceito de ativo da definição de cultura da Unesco, pretendo assim
propor um novo paradigma para a formulação e a gestão das políti-
cas culturais. Dessa forma serão consideradas ativos culturais todas
as expressões culturais de um povo, independente da forma como
foram ou estão sendo produzidas, com seus valores tangíveis e in-
tangíveis, tal e qual como se avalia os ativos de uma empresa onde
se inclui os bens patrimoniais, sua participação no mercado, o valor
de suas ações que é variável e o valor de sua marca (good will), que
é um valor intangível, porém valorável. Isto nos remete para o uni-
verso da economia que hoje predomina sobre as estratégias de go-
verno e nos nossos países – ditos em desenvolvimento – e condicio-
na o cotidiano de nossas sociedades”. (BERBEL, 2003)

2.1 - A cultura como ativo econômico

A cultura capaz de gerar ativos econômicos, sem compromissos


com a escala industrial nem com o patamar de lucros proporciona-
dos pelo mercado, é aquela que nasce nas comunidades brasileiras
com as festas populares, com a renda de bilro, nos barracões das es-
colas de samba nas comunidades pobres do Rio de Janeiro, nos sí-
tios arqueológicos e na cultura do cangaço às margens do Rio São
Francisco na região do Xingó, no artesanato do Vale do Jequitinho-
nha em Minas Gerais. É a cultura produzida nos territórios que o ge-
ógrafo Milton Santos intitulou de zonas opacas, invisíveis à lógica fi-
nanceira dos mercados e à cegueira do Estado. Essas culturas exigem
reconhecimento nas agendas de política cultural, não só como ferra-
menta de auto-estima ou como símbolo folclórico, mas como alter-
nativa inteligente para gerar bônus econômicos, distribuição de ren-
da e, conseqüentemente, desenvolvimento sustentável. O que está
em jogo é reconhecer a necessidade de incluir nas políticas cultu-
rais a posse dos recursos, a garantia de assegurar às comunidades
locais “iguais possibilidades de acesso aos bens da globalização”
(CANCLINI, 1996).
Reconhecer esse espaço estratégico de ação do Estado é abrir o
campo de oportunidades das políticas culturais ao desafio da inver-
são das prioridades e do enfrentamento à desigualdade social e à con-
centração de renda, partindo de uma renovação do conceito clássico

40 Sinais Sociais • maio > agosto 2006


de cidadania, que opera pela lógica do direito à igualdade, para asse-
gurar o direito às diferenças no plano político de ação do Estado.
Um bom exemplo de como podemos iniciar essa reflexão é o
carnaval carioca, que atrai ao Rio de Janeiro em torno de 320 mil
turistas. O gênio criativo do povo, residente em sua maioria nas fa-
velas cariocas, tece no ruído ritmado das costureiras dos barracões a
arte que invadirá o sambódromo no verão carioca — no rebolar das
garotas do morro, na bateria geniosa, nas alegorias e na profusão de
cores, luzes e magia provinda dessa miscigenação brasileira que ir-
rompe o cenário cultural do país todo o verão. Pois bem, o carna-
val carioca gera em aumento de arrecadação algo em torno de US$
555 milhões11. Hotéis, restaurantes, boates, lojas, companhias aére-
as e toda a sorte de comércio informal se beneficiam da maior festa
popular que o Brasil produz. No entanto o aumento de arrecadação,
principalmente por órgãos públicos, não representa a melhoria da
qualidade de vida dos responsáveis pela produção dessa festa. Há
que se perguntar: por quê? Os autores — as comunidades da Man-
gueira, de Nilópolis, da Serrinha — fazem a festa, mas não recebem
o proporcional lucro de seu trabalho.
Melhorou a vida dessas pessoas, suas ruas, escolas, postos de
saúde? Com quem ficam os recursos provindos do carnaval carioca?
O que diferencia, ou o que deve diferenciar, um programa de desen-
volvimento econômico gerado por investimentos diretos ou indiretos
em áreas distintas, e um desenvolvimento econômico gerado por ou
a partir daqueles aspectos que identificam a própria maneira de um
povo e de uma sociedade se expressarem e se manifestarem coleti-
vamente, como é o caso da cultura? Ao transformar o carnaval cario-
ca num megaevento internacional capaz de atrair mais de 320.000
turistas à cidade do Rio de Janeiro e gerar US$ 555 milhões de movi-
mentação financeira, como promover a justa distribuição desses di-
videndos entre todos os atores sociais envolvidos nessa produção?
Que tipo de impacto desejamos e quem devem ser os beneficiários

11
Dados obtidos no Relatório do Plano Maravilha/ Observatório Turístico
- Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro, 2000. Conversão em US$ e
compilação dos dados: Maria Paula Gomes dos Santos (Cultural Consul-
toria e Projetos).

Ser de todos os tempos sem deixar de ser do instante • Marta Porto 41


deste? Estas são algumas reflexões que uma política cultural voltada
para o desenvolvimento econômico suscita.
Potencializar o capital social e cultural de um povo é uma tare-
fa complexa que exige o alargamento das possibilidades das políti-
cas culturais de se integrarem ao esforço de desenvolvimento do país.
Isso, naturalmente, implica esforço de potencializar as áreas de pla-
nejamento e gestão de um segmento identificado pela aversão a essas
áreas de ação pública, com o investimento sistemático em formação
de quadros públicos habilitados a operar com a gestão cultural. Pla-
nejamento requer pesquisa, mapeamento, diagnósticos continuados,
avaliação e monitoramento, quadros públicos e não-públicos qualifi-
cados, desenho de programas estratégicos e menos táticos.
Um projeto que trabalha com estas premissas é o Cara Brasileira,
coordenado pelo Sebrae Nacional. O Ministério da Cultura deveria
coordenar um amplo diagnóstico apostando neste esforço de reco-
locar a cultura no centro da dinâmica econômica, superando a lógi-
ca histórica de concentração de renda provocada por outros setores
produtivos e propondo modelos com núcleos exportadores que par-
tam das pessoas e dos seus modos de fazer.
Algumas ações emblemáticas podem ser feitas também no cam-
po das memórias coletivas, ou dos ativos provindos do patrimônio
nacional, como incrementar o potencial dos sítios arqueológicos
brasileiros, como os da região do Piauí, incentivando a pesquisa, a
manutenção e o intercâmbio com outros importantes centros de es-
tudos nesta área, ou os vinculados a memória de personalidades im-
portantes como as de músicos, poetas, políticos.
Pois pensar sobre a potencialidade da cultura do ponto de vista
econômico exige pensar sobre a capacidade distributiva de um projeto
dessa natureza, partindo da idéia de que qualquer projeto de fomen-
to econômico num país marcado pela desigualdade social, principal-
mente no âmbito da cultura, deve ser uma possibilidade concreta de
inversão de prioridades. De promover, através de garantias institucio-
nais e financeiras, a posse dos recursos advindos da produção cultural
de amplas camadas e setores da sociedade brasileira que hoje não se
encontram incluídos, ou sequer reconhecidos, como agentes impor-
tantes para o desenvolvimento da política cultural do país.

42 Sinais Sociais • maio > agosto 2006


2.1.1 - Reconhecimento: o primeiro passo

O que está em jogo aqui — e a política cultural passa a ter papel


central de denúncia e esclarecimento — é que pensar em redistribui-
ção ou em eqüidade de oportunidades de renda é antes de tudo reco-
nhecer o outro como sujeito pleno de direitos iguais. Redistribuição e
justiça estão intimamente ligados ao movimento de reconhecer, e nes-
se sentido, a cultura na sua ação política ganha o lugar de tornar isso
possível, de incluir num plano de “dignidade igual para todos” segmen-
tos diversos e tradicionalmente marginalizados. A justiça, como afirma
o Informe Mundial de Cultura 2000-2001, “necessita atualmente tanto
de uma política de redistribuição como uma política de reconhecimen-
to”. É esse o lugar das políticas de cultura: tornar isso viável.
A injustiça cultural, segundo o mesmo Informe, é obrigar grupos
e manifestações culturais diversos a se submeterem a normas e con-
figurações políticas estanques e imutáveis. À lógica da via única e
da política homogênea. Qualquer política de cultura a ser adotada
pelo país deve garantir a abertura dos canais institucionais e finan-
ceiros, através da reforma do sistema nacional de cultura, a amplos
setores tradicionalmente atendidos pelas “políticas de recorte social
ou assistencialistas”. É simbólico que o país não possua uma política
de cultura para os indígenas, para o artesanato, para estimular a di-
versidade cultural das várias regiões brasileiras, para os grupos cul-
turais atuantes nas favelas e bairros de periferia dos grandes centros
urbanos. E é sintomático que não empreenda, num mundo marcado
pelo trânsito incessante de informações, uma política de comunica-
ção cultural capaz de gerar produtos informativos de qualidade para
a enorme rede nacional de educação e também para os mercados
televisivos e editoriais. Faz-se a política para os empresários e para
os artistas renomados, nada desprezível, mas insuficiente para o ta-
manho e a força criadora do país.

2.2 - Cultura como negócio

É preciso organizar o negócio das artes no Brasil, pois uma das


deficiências do modelo adotado no país é que ele incentiva apenas
a produção, perdendo a visão sistêmica necessária ao fortalecimen-

Ser de todos os tempos sem deixar de ser do instante • Marta Porto 43


to da dinâmica cultural. Diagnósticos setoriais podem ajudar a iden-
tificar como induzir setores com potencial comercial a crescerem
com fontes de financiamento apropriados para cada área.
Ary Scapin, do Núcleo de Cultura do Sebrae São Paulo, acredi-
ta que tratar a cultura como negócio é formar um tipo de profissional
com visão empreendedora, distante do perfil de captadores e agentes
de intermediação. Não basta aprovar projetos, mas capacitar o em-
preendedor para a gestão de seu negócio e isto deve ser feito de forma
extensiva por cidades brasileiras que apresentam potencial para isto,
como as de porte médio. Para ele incentivar o recurso de risco pode
ampliar a sustentabilidade dos negócios culturais, pois o empreende-
dor passa a ter obrigação de devolver o recurso solicitado.
O ponto de partida é separarmos a noção de uma produção cul-
tural, independente de origem, suporte ou escala, capaz de gerar
ativos econômicos, da indústria do entretenimento, essa marcada
pela produção industrial e pelas regras do mercado. Nenhuma des-
sas vertentes isoladamente constitui o que entendemos por econo-
mia da cultura e, portanto, uma política pública de fortalecimento
de setores culturais com vistas a gerar dividendos econômicos deve
estar atenta à necessidade de um trabalho integrado que respeite as
especificidades de cada setor e os propósitos que a impulsionam.
Um projeto de incremento da indústria cinematográfica e audio-
visual brasileira, tão importante de ser realizado pelo país hoje, não
pode se valer dos mesmos mecanismos de gestão ou instrumentos
de financiamento daqueles que irão fomentar o desenvolvimento do
artesanato no interior do país, ou a produção musical fora dos gran-
des centros urbanos. Evidentemente que há um entrelaçamento en-
tre esses dois eixos, já que a lógica de uma economia globalizada
força a compreensão dos limites das políticas de desenvolvimento,
principalmente em regiões de carência, frente a mercados consumi-
dores globalizados e globalizantes. Assim, é inteligente pensar ma-
neiras de, ao incentivar certas produções locais, transformá-las em
informação (vídeos, programas de TV, CD-ROMs, catálogos etc.) ca-
paz de circular por todos os locais, atraindo o interesse e potenciali-
zando suas fontes de recursos financeiros.
Outra área fundamental é a da circulação de exposições e even-
tos de porte nas grandes e médias cidades brasileiras. O dinamismo,

44 Sinais Sociais • maio > agosto 2006


a força criadora e o próprio histórico de contribuição da produção
cultural brasileira ao resto do mundo — na música, dança, audio-
visual e realização de importantes eventos nacionais e internacio-
nais de arte e cultura — colocam o Brasil como epicentro de uma
gestão de desenvolvimento sustentável baseada em ações culturais,
que, articuladas com outras áreas como turismo e o mercado de fei-
ras e congressos, a potencializam na geração de oportunidades de
trabalho e renda neste segmento e como caixa de ressonância natu-
ral das ações e eventos realizados em outras partes do mundo. Nes-
te sentido, a realização de grandes eventos, assim como as recen-
tes exposições e concertos internacionais que o país vem sediando
ou promovendo fora do país, são acontecimentos importantes para a
concretização desta estratégia, desde que se esteja atento à oportu-
nidade de se criar políticas de qualificação de trabalhadores nesses
campos, com oferta de cursos e programas de treinamento.
Planejamento de longo prazo, com o fortalecimento da formação
de recursos humanos, a pesquisa e a combinação de sistemas mistos
de financiamento, públicos e privados, destinados a imprimir veloci-
dade e qualidade a setores estratégicos da produção artístico-cultu-
ral do país podem, com ou sem escala industrial, contribuir para for-
mar um novo mapa de desenvolvimento, acelerando a melhora dos
indicadores socioeconômicos.
Promover o capital social em suas diversas variáveis está relacio-
nado ao desafio de fortalecermos a vida pública, ampliarmos a re-
presentatividade simbólica e institucional dos atores sociais ainda
hoje encobertos pelo manto da invisibilidade. É o que desenvolve-
remos no próximo item desse ensaio.

3. Fortalecimento da participação
comunitária, setores emergentes e projeto cultural

3.1 E o novo surge nas favelas


e subúrbios, agitando a cena cultural

Eu vou me deter em dois setores culturais específicos e num pri-


meiro momento até contraditórios que surgem a partir da segunda
metade dos 80: o primeiro, impulsionado pela renovação da socie-

Ser de todos os tempos sem deixar de ser do instante • Marta Porto 45


dade civil — as organizações não-governamentais comunitárias; o
segundo, impulsionado pelo Governo, mais precisamente o Minis-
tério da Cultura, implantado em 1985 — as lideranças empresariais
que, utilizando a política de subsídios fiscais adotada pelo Governo,
estimulam a produção cultural profissionalizada.
A primeira dessas novas lideranças culturais pode ser identificada,
em especial, através de novos atores juvenis, movimentos culturais que
partem da periferia dos grandes centros urbanos, em pequenas comuni-
dades populares. Lutam pela ampliação de sua representatividade polí-
tica através da expressão de várias formas artísticas e culturais.
A efervescência do diferente começa a nascer nas favelas, nos
subúrbios, onde grupos de jovens se organizam para fazer música,
dançar, grafitar, produzir fanzines, organizar ações solidárias. Através
da apropriação de linguagens artístico-culturais — sem compromisso
com a profissionalização ou até com a qualidade do que é produzido
— em torno da dimensão cultural que estes grupos se organizam,
se articulam, expressam as suas questões cotidianas, suas condições
de vida, suas inquietações com o país. Alguns desses grupos se
profissionalizam, sem perder, contudo, a sua dimensão comunitária,
passando a intervir no mercado cultural de forma consistente, como
é o caso de grupos de hip hop de São Paulo, de mangue beat no
Nordeste brasileiro, de reggae na Bahia e no Rio de Janeiro.
“Se nos anos 60, eram os jovens de classe média, os estudantes
que traziam o novo, nos anos 80 e 90, a efervescência do diferen-
te começa a nascer em outros espaços sociais. Em cidades como
São Paulo, é nas periferias que começamos a encontrar uma série
de grupos de jovens que se organizam para fazer música, dançar,
grafitar, fazer teatro, produzir fanzines, organizar ações solidá-
rias etc. (...) É sobretudo em torno da dimensão cultural que es-
ses grupos vão se articular para encontrar seus iguais e, por meio
de diferentes linguagens, expressar suas questões, suas visões de
mundo, suas condições de vida, suas revoltas, seus projetos de
sociedade. Nós observávamos esta riqueza e nos inquietávamos
com sua invisibilidade.”12 (FREITAS, 2002)

12
FREITAS, M.Virgínia. “A Formação em Redes”, texto publicado na co-
letânea Juventude, cultura e cidadania, pág. 113-119. Iser, 2002.

46 Sinais Sociais • maio > agosto 2006


O poder desses movimentos culturais expressos em inúmeros
exemplos espalhados pelo país sem dúvida alguma traz um dado
novo para o conjunto das práticas sociais e de ocupação do espa-
ço público que ainda não foram devidamente absorvidas. Em par-
te, pela ausência de políticas culturais estruturantes que interfiram
decisivamente no desenho das políticas públicas e das ditas agen-
das sociais no Brasil. Apesar do enorme esforço de redemocratiza-
ção do país, a cultura não conseguiu alçar-se ao estatuto de políti-
ca central no processo de compreensão da dinâmica social e muito
menos no aproveitamento dos dados novos que esta dinâmica trou-
xe e traz para a efetividade das políticas de desenvolvimento do país
e da gestão dos recursos sociais. O traço da invisibilidade sempre
operou como uma máscara de incompreensão e de não-reconheci-
mento do lugar central da cultura e da força das práticas locais no
fortalecimento da democracia brasileira. Democracia que deve in-
corporar o respeito às diferenças, o respeito à diversidade e ao plu-
ralismo cultural, as questões de gênero, étnico-raciais, de proteção
às minorias culturais.
Talvez por isso, ou sobretudo por isso, a absorção dessas práticas
culturais provindas das periferias urbanas e protagonizadas especial-
mente por jovens tenha sido erroneamente traduzida como ação so-
cial capaz de transformar indicadores históricos de desigualdade —
saúde, educação, saneamento básico, nutrição — de forma mágica.
Programas de música, capoeira, dança, que sempre deveriam estar ali
à mão dos moradores mais ou menos próximos do universo cultural,
como um direito assegurado pela sociedade, passaram a ser finan-
ciados não como extensão desses direitos culturais assegurados pela
Constituição, mas como remédio para a ação social mais ingênua.
Muito recentemente, já na gestão de Gilberto Gil, começamos a
perceber uma preocupação efetiva em compreender e apoiar essas
experiências, a partir de uma visão mais global de política pública
de cultura. Esse esforço se traduz em programas como o Pontos de
Cultura, que disponibiliza recursos para experiências comunitárias
em todo o país. É um princípio que merece elogios.
O importante é frisar que, a exemplo de outros países latino-ame-
ricanos, como o México e a Colômbia, o aperfeiçoamento do pro-
cesso democrático brasileiro inevitavelmente deve caminhar nessa

Ser de todos os tempos sem deixar de ser do instante • Marta Porto 47


direção, daí a importância de políticas culturais que assegurem o re-
conhecimento e a visibilidade das diversas práticas culturais origina-
das no território local, e que as focalizem como capital cultural re-
levante ao desenvolvimento sustentável do país, desde que de fato
esses avanços sentidos na ampliação dos apoios a projetos locais
possam ser sentidos por toda a comunidade e não apenas por seus
protagonistas. Corre-se o risco de promover novas desigualdades no
seio de cada comunidade, onde projetos isolados acabam por pro-
duzir os novos vencedores, elevados ao estatuto de “famosos” sem
que o ambiente comunitário avance coletivamente e ganhe em ver
garantido seu direito aos bens e serviços culturais públicos.
Nenhum projeto isolado, por melhor que seja, supera ou substi-
tui o necessário avanço nas políticas de caráter universal, a presen-
ça do Estado nas comunidades e territórios através de equipamentos
e programas culturais de qualidade, a inserção de conteúdo cultural
nas práticas educativas, os circuitos e intercâmbio culturais organi-
zados localmente, a memória dos bairros e das comunidades preser-
vadas e disponibilizadas através de iniciativas públicas de visibili-
zação. Ou seja, um conjunto de ações asseguradas no tempo que,
ao fortalecer os espaços culturais comunitários, incentive práticas
variadas, nas escolas, nas ruas, através de oficinas, de aulas públi-
cas e concertos abertos, da abertura de espaços reais ou simbólicos
de criação artística e desenvolvimento espiritual, buscando formas
mais concretas de mediação entre o projeto cultural e o cidadão.
Formas que superem a concepção do sujeito como mero espectador,
mas que colaborem para prover seu local de moradia das mesmas
experiências significantes abertas aos cidadãos mais privilegiados.
Como lembra o intelectual colombiano José Bernardo Toro em seu
livro A construção do público: cidadania, democracia e participação13:
“A justiça social está relacionada com a quantidade e disponi-
bilidade dos bens públicos a que tenham acesso os cidadãos.
No público, tornam-se possíveis a eqüidade e a participação. O
público é construído tomando-se como base a sociedade civil
e se caracteriza pela capacidade de uma sociedade de garantir

TORO, J.Bernardo. A Construção do Público: cidadania, democracia e


13

participação. Rio de Janeiro: Editora Senac Rio e [X] BRASIL, 2005.

48 Sinais Sociais • maio > agosto 2006


as mesmas condições e a mesma qualidade dos bens e serviços
ofertados a todos sem distinção.” (TORO, 2005)
Finalizando, vamos destacar a fala da doutora em Direitos Hu-
manos, a brasileira Flávia Piovesan, em seminário promovido pelo
Escritório da Unesco no Rio de Janeiro e SESC Rio em 2002, que pa-
rece dar um sentido maior a esse pilar da política cultural:
“A proteção dos direitos humanos, em uma sociedade cultural,
requer a observância dos direitos culturais, enquanto direitos uni-
versalmente aceitos. Não há direitos humanos, nem tampouco
democracia, sem a justiça cultural, sem a diversidade e o pluralis-
mo cultural e, nem tampouco, sem que se assegure o direito de
existir, o direito à visibilidade, o direito à diferença e à dignidade
cultural.”14 (PIOVESAN, 2002)

3.2 - No reino do marketing: lideranças


empresariais e o avesso da cultura

Alheia a boa parte dos avanços políticos que marcaram nas duas
últimas décadas as discussões em outros setores de atuação pública,
a cultura caracterizou-se nos últimos anos como uma área de disputa
de privilégios, personificados nos limites reivindicados para a isenção
fiscal dos diversos setores artísticos, pelo lobby de aprovação dos
tetos permitidos nas comissões de cultura e, naturalmente, pelas
verbas publicitárias e de marketing das grandes empresas brasileiras,
em especial e paradoxalmente das estatais. Assim, o campo teórico
por excelência das soluções coletivas revela com crueza o traço
mais contundente da elite nacional em relação às mazelas do povo:
o prevalecimento dos interesses privados e das soluções restritas a
poucos, sobre as necessidades de um corpo social diverso a quem se
nega o direito de emancipação cultural e visibilidade pública.
Causas e conseqüências de uma política de incentivos fiscais à
cultura, adotada indiscriminadamente no país desde 1985, onde em-
presas sem regulação adequada abatem um percentual do imposto

14
PIOVESAN, Flávia. “Construindo a democracia: prática cultural, direi-
tos sociais e cidadania”, in Cultura, Política e Direitos, p. 39-45, SESC/
Unesco, 2002.

Ser de todos os tempos sem deixar de ser do instante • Marta Porto 49


devido ao Tesouro Nacional para estimular o ingresso de recursos
privados nas várias áreas da produção cultural. São as leis de me-
cenato, que se implantam a partir de proposta do Governo Federal
com a Lei Sarney e com ajustes seqüenciais a partir de 1992 e sur-
gem nas figuras da Lei Rouanet, Lei do Audiovisual e posteriormen-
te as leis estaduais e municipais que incidem sobre impostos como
ICMS, ISS e IPTU.
Apesar da implantação do Minc em 1985, optou-se por setorizar
a discussão nos mecanismos financeiros capazes de ampliar as ver-
bas públicas a setores restritos da produção cultural, aqueles com
maior capacidade de organização e pressão política. As leis de in-
centivo, nas três esferas do Estado, seus tetos de isenção, as estraté-
gias de preenchimento das planilhas disponibilizadas pelos órgãos
públicos, deram a tônica da superficialidade política que acometeu
durante duas décadas o debate cultural no país. Como em nenhuma
outra área, a cultura do privilégio, da ausência de preocupação com
os movimentos sociais e culturais de fora do que tradicionalmente
se denomina “produção cultural”, esteve tão presente como nas po-
líticas culturais brasileiras.
O que ocorre com essa política? Primeiro ela traz um novo
agente à cena política: os departamentos de marketing e comuni-
cação de empresas em um primeiro momento e, a partir de 1995,
as grandes fundações culturais privadas, muitas atreladas a entida-
des financeiras, como as instituições bancárias do porte de Santan-
der, Itaú e Bank Boston.
Surge, com esses novos atores, a mentalidade distorcida de que o
investimento em cultura se sustenta como “ação preferencial de co-
municação e marketing”, bem distante da idéia da cultura como via
de desenvolvimento ou instrumento para a democracia.
Amparados pelo governo, que incentiva essa visão instituindo
oficialmente em 1997 a famosa cartilha Cultura é um bom negócio,
os diretores de marketing acionam teorias de marketing cultural e
privatizam os critérios de escolha do que a população deve ou não
produzir, distribuir, fruir, onde e como, a partir de suas preocupações
mercadológicas com clientes, fornecedores e consumidores.
Uma pesquisa encomendada pelo Ministério da Cultura em 1997
à Fundação João Pinheiro registra de forma contundente a ausência

50 Sinais Sociais • maio > agosto 2006


Preferência das empresas por áreas de opções de comunicação • 1

11%

%

% 3%

CULTURAL
3%
ASSISTÊNCIA
EDUCACIONAL

MEIO AMBIENTE
13%
ESPORTIVA

CIENTÍFICA 4%
SAÚDE

de espírito público e a falta de visão crítica dos burocratas do gover-


no (Gestão Francisco Weffort 1995-2002) e também dos dirigentes
de empresa que assumiram esse discurso e essa prática, que ainda
permeia o debate e o desenho das políticas de cultura brasileiras.
O texto de apresentação da pesquisa intitulada, O investimen-
to em cultura por empresas públicas e privadas15 chega a afirmar
entusiasticamente:
“A participação da cultura em ações de comunicação e marke-
ting, por empresas públicas e privadas, em 1997, ocupa o primei-
ro lugar, com 53% das preferências das empresas entrevistadas
pela Fundação João Pinheiro. Essa revelação consagra o marke-
ting cultural como o meio mais importante para as empresas para
divulgarem a sua marca. A evolução do comportamento empre-

Fundação João Pinheiro, 1997, disponível no site do Ministério da Cultura


15

www.cultura.gov.br

Ser de todos os tempos sem deixar de ser do instante • Marta Porto 51


sarial de investimento em cultura, nos últimos anos, após a mo-
dernização das leis de incentivo à cultura levada a efeito pelo go-
verno FHC, foi influenciada pela política de parceria entre Estado,
empresários e comunidade cultural, implementada pelos gover-
nos federal, estaduais e municipais (...). A pesquisa de econo-
mia da cultura revelou ainda que, a partir de 1992, há um cresci-
mento contínuo de empresas brasileiras que investem em cultura
como ação de comunicação e marketing.”
Esse espírito público, que deve orientar qualquer escolha dos ór-
gãos competentes do Estado, preservando o direito às diferenças e
o acesso às fontes estatais em condições de igualdade, é excluído
da mentalidade estampada na cartilha adotada pelo Minc em 1995,
Cultura é um bom negócio. Privatizou-se o poder decisório e com
ele o papel exigido de um Ministério e de uma política pública, re-
duzindo-se a política cultural a uma ação casuística e de pouco in-
teresse público ou formador.
Na seqüência iremos acompanhar os resultados dessa política e
as dificuldades impostas no momento para retomarmos o princípio
de que a cultura deve ser central no debate sobre o desenvolvimen-
to e a democracia participativa.

Sísifo e o projeto cultural que não encanta nem avança:


carregando a pedra dos incentivos

Desde 1985, data de seu nascimento, o Ministério da Cultura ado-


tou, primeiro através da Lei Sarney e depois pela Lei Roaunet, o me-
canismo do incentivo fiscal a empresas, como principal fonte de fi-
nanciamento à cultura nacional. A ausência de um projeto estratégico
para o setor e de mecanismos reguladores estabelecidos pela legisla-
ção ou de outras fontes diferenciadas de financiamento gerou resul-
tados pouco animadores. Há uma enorme concentração regional e
em projetos de fundações privadas, além do reforço às áreas mais gla-
mourosas, como cinema, espetáculos musicais e peças do show busi-
ness. Os gráficos 2, 3, 4 e 5 demonstram essa afirmação.
Os 10 maiores beneficiários dos incentivos proporcionados pela
Lei Roaunet foram as atividades e programas das grandes fundações

52 Sinais Sociais • maio > agosto 2006


Distribuição regional total • 18 > 2004
(22.328.30,6)
(132.286.4,)
(221.212.183,61) 1% 6% (.3.188,8)
10%
3%

NORTE

NORDESTE

CENTRO-OESTE

SUDESTE
80%
SUL (1.81.6.1,33)

Comparativo por região • 2004


(8.34.434,1)
(28.6.333,3)
(8..,33) 2% 6% (14.11.80,30)
12%
3%

NORTE

NORDESTE

CENTRO-OESTE

SUDESTE
%
SUL (361.324.01,4)

Ser de todos os tempos sem deixar de ser do instante • Marta Porto 53


Região sudeste

1.200.000.000,00

1.000.000.000,00

800.000.000,00

600.000.000,00

400.000.000,00

200.000.000,00

Espírito Santo Minas Gerais Rio de Janeiro São Paulo

18 2002 2004 18 > 2004

Relação entre projetos apresentados, aprovados e financiados

10.000,00

.000,00

8.000,00

.000,00

6.000,00

.000,00

4.000,00

3.000,00

2.000,00

1.000,00

18 1 2000 2001 2002 2003 2004

apresentados aprovados finaciados

54 Sinais Sociais • maio > agosto 2006


privadas, com origem nos setores bancários, as multinacionais da
área de telecomunicações ou de grandes conglomerados. Sem ana-
lisar o mérito e a qualidade das ações empreendidas, é possível afir-
mar que se financiou no país uma ação regionalmente e setorial-
mente concentradora, de renda inclusive, que, sob a égide do gosto
dos homens de marketing e comunicação das empresas, ditaram
aquilo que a população brasileira poderia ver financiado ou nas ca-
sas de espetáculos dos centros urbanos.
Não se tem registro na história das políticas culturais no país, nem
no período da ditadura militar, de tal privilégio às elites nacionais. O
resultado é uma série de ações fragmentadas, patrocinadas pelas prin-
cipais empresas brasileiras, concentradas no eixo Rio-São Paulo, sem
expressão regional ou garantia de contrapartida pública, em forma de
diversidade, circulação ou de gratuidade à população brasileira que,
ao longo desses últimos 20 anos, abriu mão do seu direito a recursos
provenientes de impostos para copatrocinar um projeto de incentivo
ao setor cultural, embalado na fórmula do marketing cultural.
Institui-se como via unilateral de relação com o Estado a figura
do projeto, peça intelectual capaz de ser desenvolvida por poucos
em um país onde 73% da população dita alfabetizada não compre-
ende o que lê16. Na planilha proposta o Minc sempre defendeu com
clareza a quem pretende beneficiar com sua política: aqueles ca-
pazes de realizarem estratégias de comunicação competentes para
atraírem a atenção das empresas e garantirem o retorno de marke-
ting esperado. Nada parecido do que se espera de uma política vol-
tada para o fortalecimento do estado democrático de direito. Adotar
o projeto como único mecanismo institucional de diálogo do poder
público com sua população restringe o acesso dos mais pobres, e,
portanto, mais vulneráveis à esfera pública.
Hoje, já há um consenso que essas são bases frágeis para se em-
preender uma mudança de eixo na política cultural brasileira, desta-
cando-se aquelas direcionadas à indução de processos de desenvol-
vimento. A atual gestão do Ministério da Cultura vem empreendendo

Dados da última pesquisa divulgada pelo Ministério da Educação, 2003.


16

www.mec.gov.br

Ser de todos os tempos sem deixar de ser do instante • Marta Porto 55


esforços reais nessa direção, propondo alterações nesse modelo e
brigando por orçamento público.
Além da conquista da Medida Provisória que institui o tão de-
sejado Plano Nacional de Cultura, há todo o trabalho para imple-
mentar o Sistema Nacional de Cultura e a profissionalização dos
quadros, especialmente nas áreas de gestão e planejamento. Esta-
mos, é certo, longe de resultados concretos, que dependem de tem-
po, da insistência e da vontade política de retomar a cultura como
uma das bases públicas para o desenvolvimento do Brasil, mas avan-
çamos aos poucos, apesar da reação da classe artística mais em-
perdenida, que a qualquer tentativa de redução dos seus privilégios
ameaça com os meios de comunicação e frases de efeito.
O incentivo fiscal é um recurso temporal legítimo do Estado, des-
de que ele apresente suas estratégias de desenvolvimento global do
setor beneficiado e os benefícios conquistados pela população ao fi-
nal de sua vigência. A estratégia de identificar problemas e desafios
para a gestão pública, consensuados com outros atores da socieda-
de, indica a possibilidade de promovermos uma parceria público-
privada, com aplicação de incentivos escalonados, para imprimir ve-
locidade na resolução dessa problemática. Podemos citar a área de
infra-estrutura ou de inclusão digital nas escolas e comunidades de
baixa renda, ou mesmo as que vêm sendo concedidas pelo Governo
na área editorial. Mas a transparência e a qualificação dos gestores,
mais a participação da população, devem ser garantidas para preser-
var o sentido público de tal iniciativa.
O certo é que acepçõe s que consideram a cultura uma perspec-
tiva de marketing e comunicação não podem mais ser pagas com
dinheiro do contribuinte, mas financiadas pelas vultosas verbas de
publicidade e os lucros das operações ou do mercado financeiro.
Seria uma guinada fundamental para eliminarmos a cultura do pri-
vilégio que se instalou na área cultural no Brasil e reapropriarmos o
espírito público tão desejado.

Conclusão: algumas pistas de como começar

As sugestões a seguir foram trabalhadas por um grupo interdisci-


plinar já citado pela autora na abertura desse ensaio e não expres-

56 Sinais Sociais • maio > agosto 2006


sam necessariamente a opinião pessoal de cada um e sim o consen-
so do grupo. O conjunto de propostas formulado busca responder a
pergunta inicial desse ensaio: como pensar a importância das políti-
cas culturais para o desenvolvimento a partir de uma cultura de desi-
gualdades construída culturalmente ao longo da história brasileira?
As propostas serão apresentadas em tópicos para melhor
compreensão do leitor.

1 - Quais os principais desafios da política federal de cultura?

•  Em primeiro lugar desenvolvê-la no sentido de situá-la no centro


da atuação pública, no centro das reflexões sobre desenvolvimento
com justiça social e, portanto, no centro das decisões políticas do
Governo Federal e da sociedade;
-  Isto se faz de muitas formas, mas essencialmente promovendo
e desenvolvendo um Plano Nacional de Cultural, com horizonte
mínimo de cinco anos, a exemplo de países como México, Chi-
le, Colômbia, que focalize as preocupações e os esforços nacio-
nais em direção a uma sociedade mais justa e com forte atenção
aos direitos dos cidadãos;
-  Promovendo uma ampla discussão nos fóruns representativos
da sociedade, como Conselho de Desenvolvimento Social e Eco-
nômico, o Congresso Nacional, os parlamentos regionais, cola-
borando no PPA e em qualquer documento político que apresen-
te os esforços nacionais de desenvolvimento.
•  Fundamentar as políticas de culturas em um sistema articulado en-
tre municípios, estados, federação, destacando o território local como
lócus privilegiado da dinâmica cultural e o poder local como primor-
dial para entender e atender aos fenômenos e atividades culturais;
-  Implantando o Sistema Nacional de Cultura, através de uma re-
forma administrativa proposta pelo Ministério da Cultura, que con-
te com diretrizes claras de atuação, metas de desempenho e indica-
dores de avaliação, com financiamento tripartite e controle social;
-  Descentralizando as ações do Estado, através de agên-
cias/fundos regionais de desenvolvimento cultural, com con-
tribuições dos impostos municipais, estaduais e federais e
participação das estatais;

Ser de todos os tempos sem deixar de ser do instante • Marta Porto 57


-  Formando gestores de cultura pelo país todo, qualifican-
do a carreira pública de cultura, abrindo concursos onde eles
sejam necessários.
• Universalizar o acesso ao conhecimento cultural, democratizan-
do os meios e ampliando a capilaridade através da ampliação dos
serviços prestados à sociedade brasileira;
-  Escola – influenciando a grade curricular de ensino, devolvendo
o protagonismo cultural aos bancos escolares, com isto formando
hábitos e costumes. Destacando a necessidade do retorno da for-
mação artística e cultural na rede pública educacional do paí;
-  Priorizando o livro e a leitura, como instrumentos insubstituíveis
em todas as ações voltadas para ensino/educação, desenvolvendo
competências e habilidades de leitura absolutamente necessárias
para qualificar as condições de vida dos cidadãos no século XXI;
-  Circuitos e intercâmbios culturais organizados localmente atra-
vés de programas federais de incentivos e da organização do ca-
lendário de festivais e mostras nacionais e internacionais;
-  Ampliando a presença do Estado em todas as comunida-
des e territórios, expandindo os espaços públicos de cultura
ou fortalecendo os espaços culturais comunitários, provendo-
os de experiências e referências plenas de sentidos. Serviços
culturais que podem se dar através de dinâmicas locais atra-
vés de ONGs, de escolas, de associações comunitárias, de
bibliotecas, de ruas e praças;
-  Incentivando práticas culturais variadas, nas escolas, nos bairros,
nas ruas, através de oficinas, de aulas públicas, de concertos aber-
tos, buscando outras formas de mediação entre o projeto cultural e
o cidadão, superando a concepção de mero espectador.
•  Organizar o processo da produção comercial de cultura, dos seto-
res profissionais com apelo mercadológico e industrial;
-  Estimular e financiar a estrutura profissional para oxigenação
do setor, infra-estrutura hoteleira, salas de apresentação, circui-
tos internacionais, feiras;
-  Adequar o perfil das leis de incentivos aos desafios de criar um
sistema de produção cultural orgânico e positivo;
-  Convocar a participação do empresariado através de diagnós-
ticos e metas estabelecidas pelo Estado (Cinema, Teatro Comer-

58 Sinais Sociais • maio > agosto 2006


cial, Artesanato etc), visando ao desenvolvimento setorial de
longo prazo e não-circunstancial;
-  Compreender a cultura como um ativo capaz de gerar renda,
trabalho e desenvolvimento socioeconômico a partir da potencia-
lização das singularidades da produção cultural de cada território;
-  Apostar na qualificação profissional de qualidade, implantan-
do uma Fundação de Amparo à Qualificação Profissional no
Campo das Artes semelhante ao das fundações de amparo à
pesquisa no Brasil.
•  Tratar de diagnosticar as questões específicas de cada setor,
fomentando-as com mecanismos diferentes e com financiamen-
tos diferenciados.
-  Mecanismos centralizados não contribuem nesse processo;
-  Desenhando programas de fomento que englobem todos os re-
quisitos para o crescimento continuado de cada setor e não ape-
nas subvenções esporádicas.

2 - Necessidades

•  Para encarar esses desafios é necessária uma tipologia de organi-


zação pública capaz de se articular com outras políticas públicas e
contar com instrumentos formais de participação da sociedade, ava-
liação e monitoramento.
•  É necessário não perder de vista que uma política pública tem o
compromisso com a universalização, com a reprodutibilidade de
suas iniciativas, ou seja, com a extensão dos serviços prestados.
Além disso, impõe que se evidencie de forma clara e transparente
como se dá o acesso e a posse dos recursos públicos diretos ou in-
diretos que geram benefício para todo o conjunto da sociedade e
não só para alguns.
Ver atendido o compromisso maior com o enfrentamento a todas
as práticas sociais que geram desigualdade e concentração de renda
e de ativos. A cultura é o nosso compromisso.
Uma agenda abre e propõe, mas nunca esgota. É apenas um con-
vite para transitar um determinado caminho e assim é um espaço
de encontro e não de disputas. Desenhar uma proposta de política
cultural, uma agenda de prioridades, é um esforço de todos os ato-

Ser de todos os tempos sem deixar de ser do instante • Marta Porto 59


res sociais e não só da classe artística, intelectual ou de produtores.
Deve buscar a concertação, os espaços pouco ou nada explorados,
as frestas por onde a tradição e o novo podem e devem se encon-
trar num movimento dinâmico capaz de produzir alteridades e re-
conhecimentos mútuos, nunca exclusão e preconceitos. Aqui bus-
camos compartilhar algumas das vivências e idéias que exploramos
em uma trajetória pessoal e, portanto, circunscrita. É um convite à
reflexão e/ou outros olhares, pois:
“A cultura, muito mais que outras manifestações da vida huma-
na, desenha com uma força enorme e voraz, as nossas formas de vi-
ver e as nossas maneiras cotidianas de sonhar.”

•••

60 Sinais Sociais • maio > agosto 2006


EM DIREÇÃO ÀS METAS DE
DESENVOLVIMENTO DO MILÊNIO1
UMA ANÁLISE REGIONAL
Rosane Mendonça
Professora adjunta do Departamento de Economia da Universidade Federal
Fluminense (UFF), onde leciona as disciplinas de Microeconomia e Econometria.

Em 2000, 189 países se reuniram na ONU e estabeleceram objetivos


mundiais de desenvolvimento. Este conjunto de objetivos veio a ser
denominado as “Metas de Desenvolvimento do Milênio (MDM)”. No Brasil,
o conhecimento produzido colocou a idéia de que um número significativo
dessas metas poderia ser atingido sem maiores esforços. No entanto, a
redução da pobreza e da extrema pobreza revela uma trajetória histórica
um tanto complicada.
Este artigo contribui para preencher esse espaço. Metodologicamente, o
artigo utiliza três ferramentas empíricas inovadoras e muito relevantes: a)
análise de convergência b) análise de nível e velocidade multivariável e c)
análise de diferenças. A análise de convergência tem sido utilizada com muito
sucesso na macroeconomia e na economia internacional, com o propósito
de identificar trajetórias dos países em termos de crescimento econômico
e de comércio exterior para descobrir se as assimetrias entre países ricos e
pobres são de caráter estrutural ou não.
O objetivo do presente artigo consiste em identificar quais Unidades da
Federação apresentam um potencial para atingir as metas nacionais. Desta
forma, este artigo estabelece as possibilidades de cada uma das Unidades
da Federação de cumprir as metas estabelecidas até 2015, mas também
determina a contribuição de cada unidade no âmbito nacional.

1
Este estudo foi financiado pelo Banco Interamericano de Desenvolvimento
— BID. Gostaria de agradecer muito os comentários e sugestões de Carlos
Eduardo Vélez-Echavaria, Viviane Azevedo, Maurício Blanco e Carlos Alber-
to Herrán.

62 Sinais Sociais • maio > agosto 2006


1 - Introdução

A melhoria do desenvolvimento humano2, com a promoção de


melhores condições de vida para a população nas regiões menos
desenvolvidas, tem recebido grande destaque nas inúmeras confe-
rências internacionais. Observa-se um grande esforço em desenhar
uma estratégia global para reverter o quadro de extrema pobreza,
fome, analfabetismo e doenças que afetam milhões de pessoas. A
idéia é de que o mundo já possui tecnologia e conhecimento sufi-
cientes para resolver a maioria dos problemas enfrentados pelos pa-
íses pobres. Contudo, uma vez que as especificidades de cada país
e sua capacidade em absorver e utilizar os recursos são tão variadas
— tanto em termos de suas necessidades quanto de recursos —, faz-
se necessário o desenho não de uma estratégia global, mas uma sé-
rie de estratégias específicas para cada país.
Em setembro de 2000, os líderes de 189 países se reuniram em
Nova Yorque e estabeleceram objetivos mundiais de desenvolvimento,

2
O conceito de desenvolvimento humano aparece pela primeira vez em
1990, especificamente no Relatório do Pnud desse mesmo ano. A partir
desse ano, este conceito foi permanentemente alterado no sentido de incluir
mais categorias com a finalidade de obter uma definição que responda às
exigências e desafios contemporâneos, bem como permitir a operacionaliza-
ção mais eficiente deste conceito.

Em direção Às metas de desenvolvimento do milênio • Rosane Mendonça 63


conhecidos como Metas de Desenvolvimento do Milênio (MDM).
São oito objetivos centrais subdivididos em dezoito metas (veja
Tabela 1). A Conferência Internacional sobre o Financiamento para
o Desenvolvimento veio reforçar os resultados obtidos em 2000,
examinando as várias opções para prover os recursos necessários
para o cumprimento das metas estabelecidas. Reformas econômicas
e políticas seriam implementadas nos países em desenvolvimento de
forma a reforçar a ajuda dos países mais ricos que chegaria em forma
de doações, investimentos ou mesmo reduções nas dívidas externas.
Em setembro de 2002, a Conferência Mundial sobre Desenvolvimento
Sustentável, ocorrida em Johannesburgo, selou o compromisso
de avaliar as mudanças globais e de realizar ações concretas para
melhorar a qualidade de vida da população, conservando os recursos
naturais num mundo onde a população é cada vez mais numerosa,
e é crescente a demanda por água, comida, energia, serviços de
saúde, saneamento, proteção e segurança econômica.
Em suma, as agências internacionais vêm realizando um grande
esforço com o objetivo de não somente renegociar as dívidas exter-
nas dos países mais pobres, mas, também, alocar recursos para redu-
zir a extrema pobreza e promover o desenvolvimento sustentável.
Além do conhecimento fundamental sobre a viabilidade de se
solucionar o problema da extrema pobreza e de várias outras ques-
tões sociais que afligem a população, o grande volume de pesquisas
produzidas tem, por um lado, identificado um número crescente de
políticas, programas e formas alternativas de intervenção, e, por ou-
tro, tornado cada vez mais evidente que esses problemas não apa-
recem de uma única forma, isto é, não existe uma única forma de
pobreza, mas uma variedade delas.
O conjunto mais efetivo de políticas para enfrentar esses pro-
blemas sociais em cada país dependerá crucialmente de uma série
de características específicas locais e, portanto, a disponibilidade
de recursos e de conhecimento sobre a eficácia dos programas so-
ciais não é suficiente. O sucesso de um programa de erradicação da
pobreza depende, em grande medida, da adaptabilidade da solução
às condições locais (seja o país, o estado ou o município). Por isso,
embora se possa falar, em linhas gerais, do desempenho do Brasil
com relação a uma série de indicadores, cada região, estado, municí-

64 Sinais Sociais • maio > agosto 2006


pio ou mesmo comunidade, em função de suas especificidades, natu-
reza e estágio de desenvolvimento, requererá uma estratégia própria
para enfrentar esses problemas, adaptada a essas especificidades.
No que diz respeito ao cumprimento das Metas de Desenvolvi-
mento do Milênio não poderia ser diferente. Observamos que o Bra-
sil já atingiu ou está preste a atingir várias das metas estabelecidas.
No entanto, quando focamos nossa atenção no desenvolvimento
das regiões e seus estados, observamos algo que o nosso bom senso
já dizia: enquanto alguns estados já atingiram essas metas há alguns
anos, outros só deverão atingir essas metas, tudo mais constante, vá-
rios anos (ou mesmo décadas) após o prazo estabelecido de 2015.
Ou seja, apresentar o Brasil para o mundo como um país que vêm
cumprindo as metas, evidentemente, tem sua importância; interna-
mente, contudo, essa informação tem pouca relevância.
O objetivo deste trabalho é analisar alguns dos indicadores pro-
postos em cada uma das metas, não somente ao nível do país como
um todo, mas principalmente ao nível das grandes regiões e estados
brasileiros, buscando posicioná-los frente aos objetivos de desenvol-
vimento do milênio. As desigualdades regionais, em termos do de-
sempenho de grande parte dos indicadores, são grandes e necessi-
tam, sempre que possível, serem dimensionadas e monitoradas.
O trabalho encontra-se organizado em sete seções, além des-
ta introdução e das conclusões finais, obedecendo às metas de de-
senvolvimento do Milênio estabelecidas3. Mais especificamente, o
que o trabalho se propõe a fazer é descrever o nível e a evolução
dos principais indicadores sociais, estimar a velocidade histórica
com que esses indicadores vêm melhorando e, portanto, avaliar
a posição da região ou estado perante os objetivos de desenvol-
vimento do milênio, e descrever um pouco do processo de con-
vergência entre as grandes regiões brasileiras, e entre os estados
dentro de cada região.

3
Como o foco deste estudo é uma análise ao nível das regiões e estados
brasileiros, o último objetivo — “estabelecer uma parceria mundial para o
desenvolvimento” — não será tratado aqui.

Em direção Às metas de desenvolvimento do milênio • Rosane Mendonça 65


Tabela 1
Metas de Desenvolvimento do Milênio
Objetivo 1: Erradicar a extrema pobreza e a fome
•  Reduzir pela metade, entre 1990 e 2015, a proporção da população com renda inferior
a 1 dólar PPC por dia.
•  Reduzir pela metade, entre 1990 e 2015, a proporção da população que sofre de fome.

Objetivo 2: Atingir o Ensino Fundamental básico


•  Garantir que até 2015 todas as crianças, de ambos os sexos, concluam o Ensino
Fundamental básico.

Objetivo 3: Promover a igualdade entre os sexos e a autonomia das mulheres


•  Eliminar as disparidades entre os sexos no Ensino Fundamental e Médio, se possível até
2005, e em todos os níveis de ensino até 2015.

Objetivo 4: Reduzir a mortalidade na infância


•  Reduzir em 2/3, entre 1990 e 2015, a mortalidade de crianças menores de 5
anos de idade.

Objetivo 5: Melhorar a saúde materna


•  Reduzir em 3/4, entre 1990 e 2015, a taxa de mortalidade materna.

Objetivo 6: Combater o HIV/Aids, a malária e outras doenças


•  Até 2015 ter detido, e começado a reverter, a propagação do HIV/Aids.
•  Até 2015 ter detido, e começado a reverter, a incidência da malária e outras
doenças importantes.

Objetivo 7: Garantir a sustentabilidade ambiental


•  Integrar os princípios do desenvolvimento sustentável nas políticas e programas nacionais
e reverter a perda de recursos ambientais.
•  Reduzir pela metade, até 2015, a proporção da população sem acesso permanente e
sustentável a água potável segura.
•  Até 2020, ter alcançado uma melhora significativa nas vidas de pelo menos 100 milhões
de habitantes de bairros degradados.

Objetivo 8: Estabelecer uma parceria mundial para o desenvolvimento


•  Avançar no desenvolvimento de um sistema comercial e financeiro aberto, baseado em
regras, previsível e não discriminatório.
•  Atender às necessidades especiais dos países menos desenvolvidos. Inclui: um regime
isento de direitos e não sujeito a quotas para as exportações dos países menos desenvolvidos;
um programa reforçado de redução da dívida dos países pobres muito endividados.
•  Atender às necessidades especiais dos países interiores e dos pequenos estados insulares
em desenvolvimento.
•  Tratar globalmente o problema da dívida dos países em desenvolvimento, mediante
medidas nacionais e internacionais, de modo a tornar a sua dívida sustentável no longo prazo.
•  Em cooperação com os países em desenvolvimento, formular e executar estratégias que
permitam que os jovens obtenham um trabalho digno e produtivo.
•  Em cooperação com empresas farmacêuticas, proporcionar o acesso a medicamentos
essenciais a preços acessíveis, nos países em vias de desenvolvimento.
•  Em cooperação com o setor privado, tornar acessíveis os benefícios das novas
tecnologias, em especial as tecnologias de informação e de comunicações.

66 Sinais Sociais • maio > agosto 2006


2 - Desenvolvimento humano: análise regional

Alguns dos indicadores propostos internacionalmente não foram


analisados nas seções a seguir por falta de informação ou acesso à
mesma. Além disso, os indicadores utilizados para avaliar o desem-
penho das regiões e seus estados no cumprimento das metas estabe-
lecidas diferem, algumas vezes, daqueles que foram propostos inter-
nacionalmente, por limitações nas fontes de informação.
Quando a fonte de informação for a Pesquisa Nacional por
Amostra de Domicílios (Pnad), do IBGE, os dados para a região Nor-
te e seus estados (exceto Tocantins a partir de 1992) não estarão
sendo apresentados, uma vez que o IBGE não coleta informações
para as áreas rurais nestes estados. Apenas no caso do estado do
Tocantins, a partir de 1992, passou-se a coletar informações tam-
bém para a área rural. Portanto, os números para os estados da re-
gião Norte não são comparáveis com os dos demais estados, cuja
informação refere-se tanto a área urbana quanto rural. Além dis-
so, há problemas de cobertura nos estados da região Norte, levan-
do a que, muitas vezes, a amostra seja pequena, gerando grandes
flutuações estatísticas.

2.1 - Erradicar a extrema pobreza e a fome

O primeiro objetivo estabelecido pelas Metas de Desenvolvi-


mento do Milênio é a erradicação da extrema pobreza e da fome.
Duas metas fazem parte desse objetivo: (a) reduzir pela metade, en-
tre 1990 e 2015, a proporção da população com renda inferior a 1
US$ PPC por dia, e (b) reduzir pela metade, entre 1990 e 2015, a
proporção da população que sofre de fome.
Quatro indicadores foram utilizados para analisar o desempenho
do Brasil, grandes regiões e estados no cumprimento destas metas:
(i) porcentagem da população com renda abaixo da linha de extre-
ma pobreza4, (ii) hiato médio de renda, (iii) porcentagem da ren-
da nacional apropriada pelos 20% mais pobres da população, e (iv)
porcentagem de crianças nascidas vivas com baixo peso ao nascer.

4
Linhas de pobreza regionalizadas, estimadas pelo Ipea.

Em direção Às metas de desenvolvimento do milênio • Rosane Mendonça 67


Porcentagem da população abaixo da
linha de extrema pobreza

A Tabela 2 apresenta a porcentagem da população abaixo da li-


nha de extrema pobreza para o período de 1981 a 2003, para o
Brasil, grandes regiões e estados brasileiros, com exceção da região
Norte e seus estados. Em 2003, cerca de 10% da população brasilei-
ra ainda se encontrava vivendo em condições de extrema pobreza.
Esse nível, contudo, não é muito diferente do observado no início
dos anos 80 — 13%. Ou seja, nos últimos 23 anos a extrema pobre-
za foi reduzida em menos de 3 pontos percentuais. Vale observar
que essa redução ocorreu durante os anos 90, uma vez que, ao lon-
go da década anterior, a extrema pobreza chegou a aumentar.
Enquanto o nível desse indicador para vários estados do Nordeste
é cerca de três vezes maior que a média brasileira (veja Gráfico 1),
os estados das regiões Centro-Oeste, Sudeste e Sul apresentam níveis
bem abaixo da média para o Brasil, chegando, no caso de Santa Ca-
tarina, a ser seis pontos percentuais menor. Ou seja, a desigualdade
entre os estados em termos do número de pessoas vivendo em situa-
ção de extrema pobreza é, essencialmente, uma desigualdade entre
os estados do Nordeste e os estados das demais regiões.
Apesar da redução na extrema pobreza ter ocorrido na maioria
dos estados durante os anos 90, e mais intensamente nos estados da
região Nordeste, observamos um aumento nesse indicador para o
Distrito Federal e São Paulo.
Observando a evolução da extrema pobreza em cada região e
seus estados, notamos que houve uma acentuada convergência en-
tre os estados da região Nordeste, Centro-Oeste e Sudeste, isto é, as
diferenças entre os estados pertencentes a cada uma destas regiões
diminuíram ao longo do tempo. Entre os estados da região Sul, ape-
sar da aproximação entre Rio Grande do Sul e Paraná, não observa-
mos uma convergência entre os três estados, havendo apenas uma
troca de posição. Vale lembrar que, como os níveis de extrema po-
breza nestes estados já são bem pequenos, a dificuldade em conti-
nuar reduzindo esse indicador é naturalmente maior.
O Quadro 1 apresenta a razão entre o hiato do estado e o hiato
do Brasil com relação à porcentagem da população abaixo da linha

68 Sinais Sociais • maio > agosto 2006


Tabela 2
Porcentagem da população abaixo da linha de extrema pobreza

UFs 1981 1985 1990 1995 2001 2003 Variação A Variação B


NORTE

TO - - - 33,4 21,2 21,1 - -

AL 25,9 28,4 36,2 29,1 35,0 35,8 9,9 -0,5


BA 26,5 29,2 38,2 30,8 29,4 29,5 3,1 -8,7
CE 43,1 40,6 44,9 31,3 28,9 27,2 -15,9
NORDESTE

-17,7
MA 45,8 41,7 44,5 39,7 33,3 33,6 -12,2 -10,9
PA 42,5 42,8 44,4 25,5 28,6 25,8 -16,7 -18,6
PE 27,6 29,2 34,9 24,8 29,9 31,4 3,9 -3,5
PI 54,8 51,4 58,3 35,6 32,0 34,7 -20,1 -23,6
RN 33,4 39,6 36,9 23,3 24,2 23,6 -9,8 -13,3
SE 29,7 26,7 27,8 27,4 25,4 24,4 -5,3 -3,4

DF 6,9 8,0 5,4 4,7 7,8 10,5 3,5 -0,9


CENTRO-
OESTE

GO 16,2 11,6 12,4 10,4 7,6 7,8 -8,4 -4,6


MT 9,1 7,4 10,3 9,7 8,6 8,2 -0,9 -2,1
MS 9,1 7,0 9,3 7,6 7,9 6,3 -0,9 -3,0

ES 9,4 10,7 18,7 10,3 9,7 7,8 -1,6 -10,9


SUDESTE

MG 12,7 13,4 13,5 9,5 8,8 8,1 -4,6 -5,4


RJ 7,3 9,4 10,9 6,9 7,6 7,3 0,0 -3,7
SP 4,6 5,3 4,7 4,6 6,2 6,9 2,3 2,2

PR 13,6 14,0 17,1 12,3 9,9 8,0 -5,5 -9,1


SUL

RS 10,0 8,7 11,8 8,2 7,9 8,1 -1,9 -3,7


SC 6,9 8,9 9,2 6,6 4,4 4,0 -2,9 -5,2
BRASIL

13,0 13,0 15,5 11,4 10,2 -2,8 -5,3

Variação A: 1981 à 2003   Variação B: 1990 à 2003

Fonte: Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad) - 1981 a 2003.


A Pnad não foi coletada em 1980 e 2000 devido aos Censos Demográficos, e também não
foi coletada em 1994.
Dados para os estados: BARROS, R. et alli (2004).

Em direção Às metas de desenvolvimento do milênio • Rosane Mendonça 69


de extrema pobreza. Mais especificamente, o numerador desta ra-
zão é simplesmente a distância entre a porcentagem de pessoas ex-
tremamente pobres no estado A para o ano mais recente e sua res-
pectiva meta para 2015, tendo como base o ano de 1990. Assim,
por exemplo, a extrema pobreza no estado do Ceará em 1990 era
de 44,9% e, portanto, sua meta para 2015 é 22,4. A distância entre
o nível de extrema pobreza no Ceará em 2003 e a meta a ser atingi-
da em 2015 (hiato do estado) é de 4,8. O denominador desta razão
é a mesma conta feita anteriormente para o estado do Ceará, só que
agora para o Brasil. Assim, estimamos a distância entre a porcenta-
gem de pessoas extremamente pobres em 2003 e a meta a ser atin-
gida pelo país em 2015.
O indicador apresentado no Quadro 1 revela que o hiato do Ce-
ará em relação a sua meta em 2015 é duas vezes maior que o hiato
do país. Ou seja, esse indicador nos dá uma idéia do desempenho
de cada estado, e do seu desafio em termos de atingir a meta esta-
Gráfico 1
Pobreza extrema nos estados brasileiros (10,2003 e meta para 201)

60,0

,0
0,0

4,0

40,0

3,0
3,8
34, 33,6
30,0 31,4
2,
2,0 2,2
2,8
24,4 23,6
20,0
21,0
1,0
10,2
10,0
10, 8,2 ,8 8,1 ,8 8,1 8,0
,0 6,3 ,3 6, ,
4,0
0,0
TO AL PI MA PE BA CE PB SE RN DF MT GO MS MG ES RJ SP RS PR SC

norte nordeste centro-oeste sudeste sul

10 2003 total Nac. 2003 meta Nac. 201

fonte: Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad)


nota: Apenas para o estado do Tocantins são coletadas informações tanto para a área rural quanto urbana

70 Sinais Sociais • maio > agosto 2006


belecida, em relação ao desafio da nação como um todo. Quando
o indicador é menor do que 1, o estado se encontra em “melhor si-
tuação” (com um hiato menor); quando esse indicador é maior que
a unidade, significa que o esforço que o estado necessita fazer para
cumprir a meta até 2015 deve ser maior.
As informações contidas nesse quadro revelam que os estados
do Nordeste encontram-se a uma distância de suas respectivas me-
tas cerca de 1,5 a 7 vezes a distância que o país se encontra de sua
meta. Em 5 estados, dentre os 9 que fazem parte da região, esse indi-
cador é superior a 4, isto é, o hiato desses estados em relação as suas
metas é mais de 4 vezes maior o hiato do país. Nas demais regiões,
os únicos estados que apresentam um hiato próximo ao dos estados
da Região Nordeste são: Distrito Federal, Mato Grosso e São Paulo.

Hiato de renda médio

O hiato de renda médio é um indicador da média das distâncias


relativas de renda de todos os indivíduos, sejam eles extremamen-
te pobres ou não. Para uma pessoa em situação de extrema pobre-
za esse indicador é definido como a distância da sua renda à linha
de extrema pobreza, medida como fração da linha de extrema po-
breza. Para os que não são extremamente pobres o hiato de renda
é definido como sendo nulo.
As estimativas do hiato de renda médio para a população abai-
xo da linha de extrema pobreza para o período de 1981 a 2002, e
para todas as regiões e estados brasileiros encontram-se na Tabela 3.
Em 2002, o hiato de renda médio era cerca de 5%, apenas 1,6 pon-
to percentual abaixo da estimativa para 1981. Ou seja, em 23 anos
o hiato de renda médio foi reduzido em menos de 2 pontos percen-
tuais. De forma similar ao que ocorreu com a porcentagem de extre-
mamente pobres, quando restringimos o período a partir de 1990, a
variação no indicador passa a ser duas vezes maior.
Enquanto o nível desse indicador para os estados do Nordeste é
cerca do dobro da média brasileira (veja Gráfico 2), os estados das
regiões Centro-Oeste, Sudeste e Sul apresentam níveis bem abaixo
da média para o Brasil, chegando, no caso de Santa Catarina, a
ser quatro pontos percentuais menor. Ou seja, como no caso do

Em direção Às metas de desenvolvimento do milênio • Rosane Mendonça 71


Quadro 1
Razão entre o hiato do estado e o hiato do Brasil1
Objetivo 1: Erradicar a extrema pobreza e a fome

população abaixo % da renda % de nascidos


Estados/ Hiato de renda
da linha de apropriada pelos vivos com baixo
ODMs médio (P1)
extrema pobreza 20% mais pobres peso ao nascer

AL 7,3 1,6 2,5 0,9


PI 2,3 4,0 0,5 0,8
MA 4,7 2,6 1,4 0,8
NORDESTE

PE 5,8 1,7 1,6 0,9


BA 4,3 1,9 1,3 1,0
CE 2,0 2,4 1,5 0,8
PB 1,5 2,8 0,4 0,8
SE 4,4 1,2 2,2 0,9
RN 2,1 2,1 1,2 0,9
NORTE

TO 0,4 2,6 - 0,8

DF 3,2 0,2 1,5 1,1


CENTRO-
OESTE

MT 1,3 0,4 1,6 0,8


GO 0,7 0,6 0,8 0,9
MS 0,7 0,4 1,5 0,9

MG 0,6 0,6 1,2 1,2


SUDESTE

ES 0,0 1,0 0,5 0,9


RJ 0,8 0,5 1,5 1,1
SP 1,9 0,3 2,0 1,1

RS
0,9 0,6 1,3 1,2
SUL

PR
0,0 0,9 1,2 1,0
SC
0,0 0,4 1,1 1,0

Fonte: os três primeiros indicadores são obtidos com base nas Pesquisas por Amostra de
Domicílios (Pnad);
O indicador de baixo peso ao nascer é obtido com base no Sistema de Informações sobre Nas-
cidos Vivos (Sinasc).
Nota:
1
Razão entre o hiato do indicador para o estado (ano mais recente) e sua respectiva meta para
2015, e o hiato do indicador entre o Brasil e a meta estabelecida para 2015.

indicador anterior, a desigualdade entre os estados em termos do


hiato de renda médio é, essencialmente, uma desigualdade entre os
estados do Nordeste e os estados das demais regiões.

72 Sinais Sociais • maio > agosto 2006


Apesar da maior redução do hiato de renda médio ter ocorrido
na maioria dos estados durante os anos 90, e mais intensamente nos
estados da região Nordeste, observamos na Tabela 3 um aumento
nesse indicador para o Distrito Federal e São Paulo.
No que diz respeito à convergência entre as grandes regiões, ob-
servamos que estas vêm tornando-se mais parecidas com relação ao
hiato de renda médio, principalmente em decorrência da maior re-
dução ocorrida na Região Nordeste. A diferença entre a região com
o maior valor para esse indicador e aquela com o menor valor pas-
sou de 11 para 8 ao longo do período analisado.
Entre os estados de cada uma das regiões há uma acentuada con-
vergência entre os estados das regiões Nordeste, Centro-Oeste e Su-
deste, isto é, as diferenças entre os estados pertencentes a cada uma
destas regiões diminuíram ao longo do tempo. Entre os estados da
Região Sul, apesar da aproximação entre o Rio Grande do Sul e Pa-
raná, não observamos uma convergência entre os três estados; há
apenas uma troca de posição. Vale lembrar que, como os níveis de
extrema pobreza nestes estados já são bem pequenos, a dificuldade
em continuar reduzindo esse indicador é naturalmente maior.
O Quadro 1 apresenta a razão entre o hiato do estado e o hiato do
Brasil com relação a esse indicador. Assim, por exemplo, o hiato de
renda médio no estado do Ceará em 1990 era de 19,4% e, portanto,
sua meta para 2015 é 9,7%. A distância entre o nível desse indicador
no Ceará em 2002 e a meta a ser atingida em 2015 (hiato do estado) é
de 0,4, uma vez que o nível desse indicador em 2002 era de 10,0%.
O indicador apresentado no Quadro 1 revela que o hiato do Ce-
ará em relação a sua meta em 2015 é praticamente idêntico ao hia-
to do país. Ou seja, esse indicador nos dá uma idéia de que o estado
do Ceará, no que diz respeito ao hiato de renda médio, vem cami-
nhando a uma velocidade similar a do país como um todo.
As informações contidas nesse quadro revelam que todos os es-
tados das regiões Centro-Oeste, Sudeste e Sul apresentam um hiato
em relação a sua meta para 2015 que é igual ou inferior ao hiato do
país. Como já era de se esperar, apesar de toda a melhoria observada
nos estados do Nordeste, a distância à meta estabelecida em 2015 é
maior do que a distância observada para o país, encontrando-se en-
tre 1,2% (Sergipe) e 4,0% (Piauí).

Em direção Às metas de desenvolvimento do milênio • Rosane Mendonça 73


Tabela 3
Hiato de renda médio (P1)
Extrema pobreza

UFs 1981 1985 1990 1995 2001 2003 Variação A Variação B


N 3,8 3,5 5,3 7,0 7,2 5,8 1,9 0,5
TO 0,0 0,0 0,0 16,1 9,3 6,5 - -14,5
NE 14,0 14,9 17,6 12,9 13,1 10,1 -3,9 -7,6
AL 9,5 9,3 12,8 11,1 14,7 11,8 2,3 -1,0
BA 9,0 10,7 15,1 12,7 12,7 10,0 1,1 -5,1
CE 18,2 17,1 19,4 13,6 13,1 10,0 -8,1 -9,3
MA 19,8 17,0 21,1 18,1 14,1 10,7 -9,0 -10,4
PA 18,5 18,7 22,4 11,3 12,0 7,9 -10,6 -14,5
PE 10,3 12,3 14,1 9,8 13,4 10,0 -0,2 -4,1
PI 26,8 32,8 32,2 18,3 15,7 12,8 -14,0 -19,4
RN 13,8 16,7 16,7 8,8 10,1 9,0 -4,8 -7,7
SE 10,2 10,2 9,9 11,5 11,6 7,3 -2,9 -2,6
CO 4,2 3,0 4,0 3,7 3,8 3,1 -1,1 -0,9
DF 2,8 2,7 2,0 2,1 3,9 3,1 0,3 1,1
GO 5,7 3,8 5,0 4,2 3,6 3,2 -2,5 -1,9
MT 2,8 2,0 3,5 4,1 4,4 3,4 0,6 -0,1
MS 2,3 2,1 3,2 3,4 3,5 2,5 0,2 -0,7
SE 2,9 3,0 3,5 2,9 3,6 2,6 -0,2 -0,8
ES 3,1 3,1 8,0 4,2 4,5 2,9 -0,2 -5,0
MG 4,3 4,4 4,9 3,8 4,1 2,9 -1,4 -1,9
RJ 3,0 3,2 4,0 2,7 3,3 2,1 -0,9 -2,0
SP 2,0 2,2 2,2 2,5 3,5 2,7 0,6 0,5
S 3,9 3,8 5,4 3,7 3,5 2,2 -1,6 -3,2
PR 4,8 4,9 7,0 4,8 4,7 2,4 -2,3 -4,6
RS 3,6 3,0 5,1 3,3 3,3 2,7 -0,9 -2,3
SC 2,6 3,1 3,3 2,8 1,8 1,0 -1,6 -2,3
BR 6,5 6,6 8,1 6,2 6,6 4,9 -1,6 -3,2

N (Norte)   S (Sul)   CO (Centro-Oeste)   SE (Sudeste)   S (Sul)


Variação A: 1981 à 2002   Variação B: 1990 à 2002

Fonte: Ipea Data. As estimativas são baseadas na Pesquisa Nacional por Amostra de Domicí-
lios (Pnad) - 1981 a 2002.
A Pnad não foi coletada em 1980 e 2000 devido aos Censos Demográficos, e também não foi co-
letada em 1994.
Notas:
Hiato de Renda Médio: média dos hiatos relativos de renda de todos os indivíduos, sejam eles ex-
tremamente pobres ou não.
Define-se como hiato relativo de renda para uma pessoa extremamente pobre a distância da
sua renda (Y) à linha de extrema pobreza (Z), medida como fração desta linha (Z-Y)/Z.
Para as pessoas não-pobres, define-se o hiato de renda como sendo nulo.

74 Sinais Sociais • maio > agosto 2006


Gráfico 2
hiato de Renda Médio nos estados brasileiros (10, 2003 e meta para 201)

3,0

30,0

2,0

20,0

1,0

12,8
11,8
10,0 10, 10,0 10,0 10,0
,0
, ,3 4,
,0

6, 3,1 3,4 3,2 2, 2, 4,0


2, 2,1 2, 2, 2,4 1,0
0,0
TO AL PI MA PE BA CE PB SE RN DF MT GO MS MG ES RJ SP RS PR SC

norte nordeste centro-oeste sudeste sul

10 2002 total Nac. 2002 meta Nac. 201

fonte: Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad)


nota: Apenas para o Estado do Tocantins são coletadas informações tanto para a área rural quanto urbana

Porcentagem da renda apropriada pelos 20% mais pobres

A Tabela 4 apresenta a porcentagem da renda apropriada pelos


20% mais pobres da distribuição de renda para o período de 1981 a
2001, e para todas as regiões e estados brasileiros, exceto os da re-
gião Norte. Em 2001, os 20% mais pobres se apropriavam de ape-
nas 2,3% da renda5. Essa parcela da renda apropriada por esse grupo
apresenta-se bastante estável ao longo do tempo, variando apenas
0,3 entre 1981 e 2001. O comportamento desse indicador, no en-
tanto, foi distinto nas duas décadas. Durante os anos 80, a parce-
la da renda apropriada pelos nove primeiros décimos da distribui-

Renda total das famílias captada pela Pesquisa Nacional por Amostra de
5

Domicílios (Pnad).

Em direção Às metas de desenvolvimento do milênio • Rosane Mendonça 75


ção de renda diminuiu ou permaneceu constante; apenas a parcela
referente ao último décimo aumentou. Assim, observamos na Tabe-
la 4 que a parcela da renda apropriada pelos 20% mais pobres caiu
em 0,5. Segundo Ramos e Mendonça (2005), ao longo dos anos 90,
a parcela da renda apropriada pelos oito primeiros décimos da dis-
tribuição aumentou, e a parcela referente aos dois últimos décimos
(os mais ricos) diminuiu. Considerando o período 1990 a 2001, há
um ligeiro aumento na parcela da renda apropriada pelos 20% mais
pobres (0,2), gerando, para o período como um todo, uma queda de
0,3 ponto percentual.
Vários estados do Nordeste — Alagoas, Bahia, Ceará, Pernambu-
co e Sergipe — além do Distrito Federal, Mato Grosso e São Paulo
apresentaram uma redução, tanto durante os anos 80 quanto duran-
te os 90, na parcela da renda apropriada pelos mais pobres, o que
preocupa em termos do cumprimento da meta estabelecida. Por ou-
tro lado, cinco estados se destacaram em termos desse crescimento,
variando entre 0,7 e 1,1: Paraíba, Piauí, Goiás, Espírito Santo e Santa
Catarina. O maior crescimento foi observado na Paraíba.
Em todos os estados da região Nordeste, com exceção do Piauí,
a parcela da renda apropriada pelos 20% mais pobres é igual ou
maior que a média para o Brasil, situando-se no intervalo de 2,3 a
3,1 (veja Gráfico 3). De fato, na grande maioria dos estados brasi-
leiros a parcela da renda apropriada pelos 20% mais pobres encon-
tra-se entre 2% e 3%, não havendo entre eles grandes disparidades.
Vale ressaltar que as disparidades entre os estados, quando obser-
vamos a renda apropriada pelo 1% mais rico, são bem mais ele-
vadas, com uma diferença de 9 pontos percentuais entre o estado
onde esse 1% se apropria da maior parcela — 17,6% (Alagoas) — e
aquele onde esse grupo se apropria da menor parcela — 8,6% (San-
ta Catarina). Ou seja, os pobres são bem mais homogêneos no Bra-
sil do que os ricos, quando se trata da parcela da renda apropriada.
Santa Catarina é o estado onde os 20% mais pobres se apropriam da
maior parcela da renda e o estado onde o 1% mais rico se apropria da
menor parcela da renda.
No que diz respeito à convergência entre as grandes regiões, os
resultados revelam que as diferenças se mantiveram ao longo do
tempo. Em 1981, a diferença entre as regiões (não considerando a

76 Sinais Sociais • maio > agosto 2006


Tabela 4
Porcentagem da renda apropriada pelos 20% mais pobres

UFs 1981 1985 1990 1995 2001 Variação A Variação B Variação C


N 4,2 3,6 5,3 2,9 2,9 3,1 0,2 -1,1
NE 3,3 3,1 17,6 2,6 2,7 2,6 0,0 -0,8
AL 4,1 4,3 12,8 3,9 2,7 2,7 -1,2 -1,4
BA 3,8 3,3 15,1 2,6 2,7 2,7 0,0 -1,1
CE 3,3 3,1 19,4 2,8 2,5 2,4 -0,3 -0,8
MA 3,7 4,4 21,1 3,0 2,8 3,1 0,1 -0,7
PB 3,4 2,9 22,4 1,8 2,5 2,9 1,1 -0,5
PE 3,6 3,2 14,1 2,8 3,2 2,3 -0,5 -1,3
PI 3,3 1,8 32,2 1,6 2,2 2,2 0,7 -1,1
RN 3,3 3,0 16,7 2,6 3,0 2,8 0,2 -0,6
SE 4,2 3,8 9,9 3,6 2,8 2,7 -0,9 -1,5
CO 3,1 3,0 4,0 2,5 2,8 2,7 0,3 -0,3
DF 2,7 2,4 2,0 2,4 2,4 1,9 -0,5 -0,8
GO 3,1 3,1 5,0 2,4 3,2 3,2 0,8 0,1
MT 4,2 3,7 3,5 3,1 3,1 2,9 -0,2 -1,3
MS 3,9 3,6 3,2 3,1 3,3 3,1 0,0 -0,7
SE 3,0 2,9 3,5 2,7 2,8 2,8 0,1 -0,2
ES 3,1 2,9 8,0 1,8 2,5 2,6 0,7 -0,5
MG 3,1 2,9 4,9 2,6 2,7 2,9 0,2 -0,2
RJ 3,1 3,0 4,0 2,9 3,0 2,9 0,0 -0,2
SP 3,8 3,6 2,2 3,5 3,4 3,0 -0,5 -0,8
S 3,5 3,2 5,4 2,7 2,9 3,1 0,4 -0,4
PR 3,5 3,1 7,0 2,6 2,6 3,1 0,2 -0,7
RS 3,3 3,2 5,1 2,8 3,1 3,0 0,3 -0,3
SC 4,2 3,8 3,3 3,0 3,3 4,0 0,9 -0,3
BR 2,7 2,5 8,1 2,1 2,3 2,3 0,2 -0,3

N (Norte)   S (Sul)   CO (Centro-Oeste)   SE (Sudeste)   S (Sul)   BR (Brasil)


Variação A: 1981 à 1990    Variação B: 1990 à 2001   Variação c: 1981 à 2001

Fonte: Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad) - 1981 a 2001.


A Pnad não foi coletada em 1980 e 2000 devido aos Censos Demográficos, e também não foi
coletada em 1994.

Em direção Às metas de desenvolvimento do milênio • Rosane Mendonça 77


Região Norte por problemas de comparabilidade mencionados an-
teriormente) que apresentavam o melhor e o pior indicador era de 5
pontos percentuais; em 2001 observamos a mesma diferença.
Já com relação aos estados em cada uma das regiões, observa-
mos um ligeiro aumento das disparidades entre os estados das Regi-
ões Centro-Oeste e Sul ao longo do período analisado. Em 1981, a ra-
zão entre a maior e a menor parcela da renda apropriada pelos 20%
mais pobres na Região Centro-Oeste era 1,6 e na região Sul era 1,3.
Isso quer dizer que, na região Centro-Oeste, no estado onde os pobres
estavam em melhor situação, a proporção da renda por eles apropria-
da era 1,6 vez maior do que o estado onde os mais pobres estavam
em pior situação. Em 2001 esses números são, respectivamente, 1,7 e
1,4. As outras duas regiões — Nordeste e Sudeste — revelam uma ten-
dência bem mais clara e de convergência entre os estados. Em suma,
enquanto que as diferenças entre os estados com relação a esse indi-
cador parecem estar crescendo nas regiões Centro-Oeste e Sul, nas
duas outras regiões essas diferenças estão cada vez menores.
O Quadro 1 apresenta a razão entre o hiato do estado e o hia-
to do Brasil com relação à porcentagem da renda apropriada pelos
20% mais pobres da população. Assim, por exemplo, a porcenta-
gem da renda apropriada pelos 20% mais pobres no estado do Cea-
rá em 1990 era de 2,8% e, portanto, sua meta para 2015 é de 5,5%.
A distância entre o nível desse indicador no Ceará em 2001 e a meta
a ser atingida em 2015 (hiato do estado) é de 3,1 (houve uma redu-
ção na porcentagem da renda desse grupo), uma vez que o nível
desse indicador em 2001 era de 2,4%. As informações apresenta-
das no Quadro 1 revelam que os três estados que mais se distanciam
da média brasileira em termos do hiato em relação à meta de 2015
são Alagoas, Sergipe e São Paulo. Ou seja, esses três estados são os
que, relativamente ao país, encontram-se mais distantes de suas me-
tas para 2015. São quatro os estados que apresentam esse indicador
menor do que 1, isto é, o hiato deles em relação as suas metas é in-
ferior ao hiato da nação: Piauí, Paraíba, Goiás e Espírito Santo.
Em suma, se esse cenário perseverar, principalmente naqueles
estados que apresentaram redução na parcela da renda apropriada
pelos mais pobres, os estados enfrentarão dificuldades para atingir a
meta estabelecida até 2015.

78 Sinais Sociais • maio > agosto 2006


Gráfico 3
Porcentagem da renda nacional apropriada pelos 20% mais pobres
nos estados brasileiros (10, 2001 e meta para 201)

,0

4, 4,3

4,0
3,
3, 3,6 3,
3,0 3,1 3,1
3,0 3,0
2,8 2,
2,8 2,8
2, 2,6 2,6 2,6 2,6 2,3
2,4 2,4
2,0
1,8 1,8
1, 1,6

1,0

0,

0,0
AL PI MA PE BA CE PB SE RN DF MT GO MS MG ES RJ SP RS PR SC

nordeste centro-oeste sudeste sul

10 2001 total Nac. 2001 meta Nac. 201

fonte: Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad)

Porcentagem de nascidos vivos com baixo peso ao nascer

A porcentagem de nascidos vivos com peso ao nascer inferior a


2.500 gramas em relação ao total de nascidos vivos, segundo o Mi-
nistério da Saúde “expressa retardo do crescimento intra-uterino ou
prematuridade e representa importante fator de risco para a morbi-
mortalidade neonatal e infantil”. Valores abaixo de 10% são acei-
táveis internacionalmente, embora esse número esteja em torno de
6% nos países desenvolvidos. No Brasil, conforme mostra a Tabe-
la 5, cerca de 8% das crianças nascidas vivas em 2002 apresenta-
vam baixo peso ao nascerem. Essa porcentagem não apresenta gran-
des variações entre 1994 e 2002, com uma redução de menos de
1 ponto percentual.

Em direção Às metas de desenvolvimento do milênio • Rosane Mendonça 79


Em todas as regiões e estados brasileiros os valores encontrados
estão abaixo de 10% e, portanto, dentro dos limites das metas reco-
mendadas internacionalmente. A média desse indicador para a Re-
gião Norte6 encontra-se abaixo de 7. As regiões Nordeste e Centro-
Oeste apresentam níveis que variam entre 7,0 e 7,5. Por outro lado,
nas regiões Sudeste e Sul o nível desse indicador encontra-se acima de
8,0. A explicação mais imediata para observarmos níveis menores do
indicador nas regiões mais pobres, e níveis elevados nas regiões mais
ricas, deve-se aos problemas de cobertura populacional, conforme o
próprio Ministério da Saúde adverte. As disparidades regionais estão
apresentadas no Gráfico 4, indicando uma diferença de 3,4 pontos
percentuais entre os estados com o melhor e o pior desempenho.
Ao longo do período analisado as disparidades regionais com
relação a esse indicador se mantêm. Exceto para a Região Nordes-
te, onde a redução nesse indicador é sensivelmente maior do que
nas demais regiões (-2,5), os números apresentam-se relativamen-
te constantes ao longo dos anos analisados. A razão entre as regiões
com melhor e pior desempenho era de 1,4 em 1981 e em 2002. As
regiões Norte e Sul são as únicas que apresentaram crescimento nes-
se indicador. Ou seja, ao longo desse período não observamos uma
aproximação entre as regiões com relação a esse indicador.
As disparidades entre os estados dentro de uma mesma região
também seguem esse comportamento, isto é, permanecem estáveis
ao longo do tempo. Entretanto, vale ressaltar que, para a grande
maioria dos estados, a partir de final dos anos 90, observamos um
aumento na porcentagem de crianças nascidas abaixo do peso. Esse
fato pode ser simplesmente o reflexo de uma melhoria no sistema de
coleta de informações mas, de qualquer forma, merece ser investi-
gado em maior profundidade.
As estimativas para Roraima apresentam um comportamento
sempre crescente, diferentemente dos demais estados. Amapá e Ron-
dônia podem ser considerados exceções, pois apresentam maiores
oscilações. Como podemos observar na Tabela 5, a razão entre o

6
A fonte de informações para esse indicador não é mais a Pnad. Assim,
apesar dos problemas de cobertura ainda persistirem na Região Norte, estes
números referem-se às áreas urbanas e rurais.

80 Sinais Sociais • maio > agosto 2006


Tabela 5
Porcentagem de nascidos vivos e cujo peso
ao nascer foi menor que 2.500 g

Variação
UFs 1994 1995 1996 1997 1998 1999 2000 2001 2002
1994 à 2002
N 6,7 6,6 6,5 6,4 6,5 6,3 6,3 6,5 6,8 0,02
AC 6,9 6,6 7,2 7,1 7,5 7,5 6,9 6,7 6,5 -0,39
AP 9,0 8,7 8,4 7,8 8,1 6,3 7,2 8,3 8,0 -1,04
AM 7,5 7,6 7,0 6,9 6,8 6,9 7,2 6,8 7,5 -0,04
PA 6,4 6,3 6,1 6,3 6,2 6,2 6,2 6,2 6,5 0,11
RO 6,1 5,9 5,7 5,5 5,7 5,3 4,1 5,4 6,0 -0,12
RR 5,3 5,9 6,1 6,4 6,8 6,6 6,7 7,4 7,1 1,77
TO 6,4 5,8 6,6 6,4 6,4 6,1 6,3 6,6 6,4 0,06
NE 9,7 7,0 7,1 7,0 7,1 6,9 6,8 7,0 7,2 -2,47
AL 6,6 7,3 7,3 6,5 6,7 6,5 6,5 6,5 7,0 0,34
BA 8,2 7,8 8,1 7,6 7,6 7,2 7,3 7,5 7,9 -0,31
CE 6,4 5,5 5,6 6,3 6,4 6,6 6,0 6,6 6,8 0,45
MA 7,3 7,2 6,7 6,5 7,2 7,0 7,0 7,1 6,9 -0,46
PB 8,3 8,0 7,0 7,2 7,2 6,3 6,4 6,1 6,1 -2,19
PE 7,6 6,9 7,0 7,0 7,3 7,1 7,1 7,1 7,6 -0,01
PI 8,1 7,3 7,6 7,4 6,8 6,8 6,4 6,4 6,5 -1,66
RN 8,3 7,0 7,0 7,1 7,1 6,9 6,9 7,4 7,6 -0,67
SE 7,2 7,1 7,0 7,2 7,0 6,8 7,3 7,7 0,44
CO 7,7 7,1 7,2 7,1 7,3 7,1 7,1 7,2 7,7 -0,28
DF 8,8 8,0 8,4 8,1 8,4 8,1 8,3 8,7 8,9 0,10
GO 7,2 7,0 6,9 6,8 7,1 6,9 6,8 7,1 7,2 0,01
MT 7,2 6,4 6,5 6,2 6,6 6,3 6,4 6,3 6,4 -0,58
MS 7,8 7,2 7,6 7,6 7,3 7,3 7,0 6,8 7,3 -0,50
SE 9,3 9,0 8,8 8,7 8,8 8,5 8,6 9,0 9,1 -0,12
ES 9,3 7,5 7,5 7,4 7,5 7,2 7,4 7,6 7,7 -0,03
MG 10,7 10,1 9,5 9,1 9,3 8,8 8,8 9,2 9,5 -1,27
RJ 9,1 9,0 8,9 8,8 8,9 8,5 8,6 9,1 9,2 0,07
SP 9,3 9,0 8,7 8,7 8,7 8,4 8,7 9,0 9,1 -0,25
S 8,1 7,8 7,8 7,9 8,1 8,0 8,1 8,5 8,6 0,56
PR 7,9 7,7 7,6 7,7 7,8 7,7 7,9 8,3 8,4 0,43
RS 7,9 8,4 8,5 8,5 8,7 8,8 8,8 9,0 9,4 0,68
SC 7,1 7,2 6,9 7,1 7,6 7,3 7,2 7,8 7,9 0,80
BR 7,1 7,9 7,9 7,8 7,9 7,7 7,7 8,0 8,1 -0,62

N (Norte)   S (Sul)   CO (Centro-Oeste)   SE (Sudeste)   S (Sul)   BR (Brasil)

Fonte: Ministério da Saúde/SVS - Sistema de Informações sobre Nascidos Vivos (Sinasc).


notas: a) No número de partos considerados, não foram contados os partos com peso ao nascer
ignorado. b) A proporção de nascidos vivos com baixo peso está calculada sobre o número de
partos considerados. c) Foram considerados de baixo peso os nascidos vivos com peso inferior
a 2.500g, independentemente do tempo de gestação. d) O tempo de gestação a termo foi con-

Em direção Às metas de desenvolvimento do milênio • Rosane Mendonça 81


Gráfico 4
Porcentagem dos nascidos vivos com baixo peso ao nascer
nos estados brasileiros (14, 2002 e meta para 201)

1,0
14,0
13,0
12,0
11,0
10,0
,0 , ,2 ,4 8,1
8, ,1
8,0
, , 8,4 ,
,0 ,6 ,6 ,
,2 ,3
,0 6, 6,8
6,0 6,4 6, 6,4
6,1
,0 4,1
4,0
3,0
2,0
1,0
0,0
TO AL PI MA PE BA CE PB SE RN DF MT GO MS MG ES RJ SP RS PR SC

norte nordeste centro-oeste sudeste sul

14 2002 total Nac. 2002 meta Nac. 201

fonte: Ministério da Saúde/SVS - Sistemas de informações sobre Nascidos Vivos (SINASC).


nota: Apenas para o Estado do Tocantins são coletadas informações tanto para a área rural quanto urbana.

estado da Região Norte com o maior e aquele com o menor nível


do indicador é a que mais oscila ao longo do tempo, mas apresenta
uma clara tendência de convergência entre os estados.
O Quadro 1 apresenta a razão entre o hiato do estado e o hiato
do Brasil com relação à porcentagem de nascidos vivos com baixo
peso ao nascer. As estimativas apresentadas revelam, em primeiro lu-
gar, uma certa homogeneidade entre os estados com respeito a esse
indicador, o que significa que a distância entre o nível do indicador
em 2002 e a meta estabelecida até 2015 não difere muito. Portanto,
as razões entre esses hiatos e o hiato do Brasil em relação a sua meta
não são muito diferentes. Os estados para os quais essa razão é maior
do que a unidade são: Distrito Federal (1,1), Minas Gerais (1,2) e Rio
Grande do Sul (1,2). Ou seja, esses são os estados que, relativamen-
te ao país, encontram-se mais distantes de suas metas para 2015.

82 Sinais Sociais • maio > agosto 2006


Finalmente, no que diz respeito à meta de redução pela meta-
de na porcentagem de nascidos vivos com baixo peso ao nascer, o
Brasil e seus estados deverão empreender esforços para aumentar a
velocidade de redução desse indicador; caso contrário, dificilmen-
te atingirão a meta em 2015. A velocidade com que esse indicador
vem melhorando ao longo do tempo, apesar do grande esforço em-
preendido pelos estados da região Norte, coloca o país numa situa-
ção ainda muito delicada com relação ao cumprimento dessa meta
até 2015. Entre 1994 e 2002 o país observou uma redução de me-
nos de um ponto percentual na porcentagem de crianças nascidas
vivas que apresentavam baixo peso.

2.2 - Atingir o ensino fundamental básico

O segundo objetivo estabelecido pelas Metas de Desenvolvimen-


to do Milênio é atingir o Ensino Fundamental básico. Apenas uma
meta faz parte desse objetivo: garantir que até 2015 todas as crian-
ças, de ambos os sexos, concluam o Ensino Fundamental básico. O
indicador utilizado para analisar o desempenho do Brasil, grandes
regiões e estados no cumprimento dessa meta foi a taxa esperada de
conclusão (%) para o ensino básico (Primeiro Grau).

Taxa esperada de conclusão (%) para o


ensino básico (primeiro grau)

A Tabela 6 apresenta a taxa esperada de conclusão do Primeiro


Grau (8ª série) para os anos de 1995 a 2000, para o Brasil e todos os
estados. Essas estimativas foram obtidas com base nos Censos Escola-
res do MEC e, portanto, são de natureza distinta daquelas estimadas
com base nas pesquisas domiciliares. No primeiro caso a informação
é coletada na escola e, no segundo, no domicílio de residência.
Em 2000, apenas cerca de 60% das crianças que ingressavam
no Primeiro Grau o concluíam. Essa estimativa é cerca de 7 pon-
tos percentuais maior do que a observada para o ano de 1995. Por-
tanto, conforme mostra o Gráfico 5, o hiato entre o indicador para o
país em 2000 e a meta estabelecida para 2015 — 100% das crian-
ças concluindo o Primeiro Grau — é de cerca de 40 pontos percen-

Em direção Às metas de desenvolvimento do milênio • Rosane Mendonça 83


tuais. Assim, se o país mantiver essa velocidade de aumento na taxa
esperada de conclusão do Primeiro Grau — 7 pontos percentuais a
cada cinco anos — em 2015 o país ainda não terá alcançado a meta
estabelecida, uma vez que sua taxa de conclusão estará em torno
de 80%. De fato, se esse ritmo for mantido, o país estará atingindo a
meta estabelecida apenas por volta do ano 2030.
As diferenças entre as regiões e estados são elevadas, conforme
podemos observar no Gráfico 5. Apenas os estados do Sul e do Su-
deste, além do Ceará, Distrito Federal e Goiás, encontram-se acima
ou muito próximos a média brasileira. Novamente, o desempenho
de grande parte dos estados das regiões Norte e Nordeste encontra-
se acima da média. No Norte, por exemplo, com exceção dos esta-
dos de Roraima, Amapá e Tocantins, a taxa de conclusão do Primei-
ro Grau aumentou entre 13 e 17 pontos percentuais, revelando um
desempenho acima do observado para o país como um todo. Con-
tudo, apesar desse melhor desempenho, a distância da meta estabe-
lecida para esses estados ainda se encontra muito elevada, variando
entre 49 e 90 pontos percentuais.
O comportamento dos estados da Região Nordeste com respei-
to a esse indicador também é heterogêneo, com a distância a meta
estabelecida variando entre 58 pontos percentuais em Sergipe, e 30
pontos percentuais no Ceará. Dentre os quatro estados que apresen-
taram uma variação bem menor no período analisado — 0,6 a 5,3
pontos percentuais — o Ceará encontra-se numa situação distinta
dos outros três estados, uma vez que sua taxa de conclusão é não
somente a mais elevada no Nordeste, mas é a segunda mais elevada
de todo o país, só perdendo para São Paulo. De qualquer forma, ao
longo do período analisado a taxa de conclusão aumentou apenas
em 4 pontos percentuais, o que significa que se esse estado não au-
mentar substancialmente a velocidade de melhoria desse indicador,
não vai conseguir atingir a meta estabelecida para 2015. De fato, a
essa velocidade, o Ceará vai atingir a meta somente por volta do ano
de 2037, o que revela uma situação dramática mesmo para o estado
que apresenta a segunda maior taxa de conclusão do país.
Os estados da Região Centro-Oeste despertam ainda maior pre-
ocupação uma vez que, como no Tocantins, a taxa de conclusão do
Primeiro Grau se reduz ao longo do período analisado e no Mato

84 Sinais Sociais • maio > agosto 2006


Grosso do Sul ela praticamente não se move. Apenas o estado do
Mato Grosso apresenta um bom desempenho, aumentando a taxa
de conclusão em 24 pontos percentuais, apesar do nível desse indi-
cador em 2000 ainda ser baixo.
Os estados das regiões Sudeste e Sul são os que apresentam
as maiores taxas de conclusão. No Espírito Santo, Minas Gerais e
Rio Grande do Sul, entretanto, o aumento na taxa de conclusão
foi significativamente menor.
Com relação à convergência entre as grandes regiões, a Tabela 6
revela que não houve convergência entre as grandes regiões brasi-
leiras. Em verdade, as diferenças aumentaram. Em 1995, a diferença
entre as regiões com a maior e a menor taxa de conclusão era de 26
pontos percentuais; em 2000 essa diferença aumentou para 31 pon-
tos percentuais. Entre os estados das regiões Norte e Sul não houve
convergência, isto é, aumentaram as diferenças entre os estados em
cada uma das regiões. Nas demais regiões observamos uma tendên-
cia para que os estados se tornem cada vez mais parecidos.
Em suma, os resultados apresentados revelam que, com relação a
essa meta, a situação do país e de seus estados ainda é delicada. Por-
tanto, muito ainda há por ser feito com respeito a aumentar a atrati-
vidade da escola de tal forma a aumentar os incentivos para que as
crianças concluam o Primeiro Grau, uma vez que o acesso já está
praticamente universalizado e não existem diferenças significativas
por gênero7 (promover a igualdade entre os sexos no Ensino Funda-
mental não parece ser um problema).

2.3. Reduzir a mortalidade na infância

O quarto objetivo estabelecido pelas Metas de Desenvolvimento


do Milênio é reduzir a mortalidade na infância. Apenas uma meta
faz parte desse objetivo: reduzir em 2/3, entre 1990 e 2015, a
mortalidade de crianças menores de 5 anos. Apesar da meta esta-

7
O terceiro objetivo estabelecido pelas Metas de Desenvolvimento do
Milênio é a eliminar as desigualdades de gênero nos níveis de ensino fun-
damental, secundário e universitário. Esse objetivo não foi tratado explici-
tamente nesse artigo.

Em direção Às metas de desenvolvimento do milênio • Rosane Mendonça 85


Tabela 6
Taxa Esperada de Conclusão (%) para o ensino básico (Primeiro Grau)

Variação
UFs 1995 1996 1997 1998 1999 2000
1994 - 2002
N 29,0 35,1 32,5 36,3 37,3 37,8 8,8
RO 28,8 35,1 40,1 44,6 46,1 46,3 17,5
AC 35,5 53,3 30,9 46,2 46,5 48,4 12,9
AM 37,6 43,3 48,6 47,9 50,1 52,6 15,0
RR 26,8 46,3 35,4 45,4 34,1 34,5 7,7
PA 21,9 31,3 29,4 27,3 33,3 36,4 14,5
AP 44,1 42,9 40,5 49,4 48,8 51,7 7,6
TO 38,3 34,7 38,0 38,8 28,6 21,6 -16,7
NE 41,0 44,1 50,3 53,1 50,7 49,5 8,5
AL 36,6 50,2 44,9 51,0 57,2 52,8 16,2
BA 39,3 45,3 50,2 51,3 45,9 44,6 5,3
CE 65,5 50,3 60,7 69,8 63,8 69,4 3,9
MA 39,1 45,0 43,1 47,1 44,7 43,6 4,5
PB 33,4 46,2 47,5 51,1 52,1 47,0 13,6
PE 37,8 45,2 53,0 53,0 51,0 54,3 16,5
PI 23,4 33,8 40,1 42,1 43,3 43,0 19,6
RN 36,2 52,4 63,2 57,2 59,7 50,1 13,9
SE 41,0 40,4 52,1 49,5 47,6 41,6 0,6
CO 50,7 50,5 48,2 55,2 52,2 49,9 -0,8
61,5
DF 63,6 64,1 61,4 64,8 58,2 -5,4
56,6
GO 63,0 50,0 47,6 55,2 49,1 -13,9
51,7
MT 26,6 54,3 41,4 45,1 50,5 23,9
49,7
MS 39,9 39,3 45,7 48,0 40,5 0,6
6,83
SE 55,3 61,2 70,3 65,9 64,4 68,7 13,4
ES 51,7 46,8 70,3 62,3 63,7 58,7 7,0
MG 58,2 61,6 73,2 62,7 60,7 64,7 6,5
RJ 49,2 59,2 69,8 63,6 61,3 64,6 15,4
SP 56,2 64,5 71,4 75,5 74,8 73,3 17,1
S 54,4 57,4 67,5 59,5 63,1 64,1 9,7
PR 49,5 57,4 63,8 57,6 60,6 61,1 11,6
RS 58,1 62,8 66,4 64,1 63,4 66,2 8,1
SC 57,0 58,5 71,9 67,4 66,8 69,3 12,3
BR 51,9 58,4 65,8 63,0 61,1 59,3 7,4

N (Norte)   S (Sul)   CO (Centro-Oeste)   SE (Sudeste)   S (Sul)   BR (Brasil)


Fonte: MEC/Inep. Geografia da Educação Brasileira - 2001.

belecer a redu-ção da mortalidade de crianças menores de 5 anos,


utilizamos também a mortalidade de crianças menores de 1 ano.
As estimativas apresentadas foram obtidas com base nos Censos
Demográficos de 1991 e de 2000.

86 Sinais Sociais • maio > agosto 2006


Gráfico 
Taxa esperada de conclusão (%) no Primeiro Grau
para os estados brasileiros (1, 2000 e meta para 201)

,3 100,0

AC 3,

AP 44,1
AM 3,6
norte PA 21,
RO 28,8
RR 26,8
TO 38,3

AL 36,6

PI 23,4

MA 3,1

PE 3,8

nordeste BA 3,3
CE 6,
PB 33,4
SE 41,0
RN 36,2

DF 63,6

MT
centro-oeste 26,6
GO 63,0
MS 3,

MG 8,2

ES 1,
sudeste
RJ 4,2

SP 6,2

8,1
RS
sul PR
4,

SC ,0

10,0 20,0 30,0 40,0 0,0 60,0 0,0 80,0 0,0 100,0 110,0

1 2000 total Nac. 2000 meta Nac. 201

fonte: MEC/Inep. Geografia da Educação Brasileira - 2001.

Em direção Às metas de desenvolvimento do milênio • Rosane Mendonça 87


Reduzir em 2/3, entre 1990 e 2015,
a mortalidade de crianças menores de 5 anos de idade

A Tabela 7 apresenta a evolução entre 1991 e 2000 da taxa de


mortalidade infantil (por mil nascidos vivos), para crianças até 1 ano e
até 5 anos de idade, para o Brasil e seus estados. Entre 1991 e 2000, a
taxa de mortalidade infantil no Brasil caiu em cerca de 15 óbitos (por
mil nascidos vivos) — de 54,5 (1991) para 39,3 (2000). Apesar da que-
da, o nível desse indicador para o Brasil ainda é elevado se compa-
rado ao de países vizinhos como Peru, Argentina, Colômbia, México
e Venezuela, entre outros. De fato, dado o nível de renda per capita
do Brasil, a taxa de mortalidade infantil deveria ser substancialmente
mais baixa, isto é, o Brasil encontra-se acima da média prevista para
países com seu nível de desenvolvimento econômico.
Apesar da redução observada em todos os estados brasileiros
(com os estados da Região Nordeste liderando essa redução), ainda
permanecem diferenças acentuadas entre eles com respeito a esse
indicador (veja Gráfico 6). A mortalidade em alguns estados do Nor-
deste chega a ser mais de seis vezes maior do que a mortalidade ob-
servada em estados do Sul, por exemplo.
Essa redução na taxa de mortalidade infantil é, na verdade, o re-
flexo de inúmeras ações realizadas, ao longo de um período de tem-
po maior, na área de saneamento, saúde e educação. No setor de
saúde, vale destacar o Programa de Saúde da Família (PSF), criado
mais recentemente. Os indicadores mostram, contudo, que ainda há
muito a ser feito para que o nível desse indicador seja compatível
com seu nível de desenvolvimento econômico.
A análise do processo de convergência entre as grandes regiões
brasileiras com respeito à taxa de mortalidade de crianças até 1 ano
de idade revela uma queda bem mais acentuada da mortalidade na
região Nordeste. Em 1980 a diferença entre a região com maior taxa
de mortalidade e aquela com menor taxa era de quase 72 óbitos por
mil nascidos vivos. Vinte anos depois essa diferença caiu para 24
óbitos, ou seja, uma redução de quase 50 óbitos.
Contudo, apesar da redução substantiva na mortalidade infan-
til, não somente seu nível ainda é muito elevado, mas as disparida-
des regionais ainda são muito elevadas. Apesar da forte convergên-

88 Sinais Sociais • maio > agosto 2006


Gráfico 6
Taxa de mortalidade infantil (por mil nascidos vivos) até 1 ano de idade
nos estados brasileiros (11, 2001 e meta para 201)

AC 34,1

AP 1,3

AM 36,4

norte PA 3,6

RO 36,4
RR 3,2
TO 6,0

AL 62,1

PI 3,

MA 8,

PE 4,6

nordeste BA 0,2

CE 6,0
PB ,
SE 2,
RN 6,

DF 24,0

MT 30,6
centro-oeste GO 24,6

MS 26,6

MG 30,4

ES 33, 29,6
sudeste
RJ 23,1

SP 20,0

RS 1,3

sul PR 23,

SC 16,8

0,0 10,0 20,0 30,0 40,0 0,0 60,0 0,0 80,0 0,0 100,0 110,0 120,0

taxa de mortalidade

11 2000 total Nac. 2000 meta Nac. 201

fonte: Ipea/Data

Em direção Às metas de desenvolvimento do milênio • Rosane Mendonça 89


Tabela 7
Taxa de mortalidade infantil (por mil nascidos vivos)

Até 1 ano Até 5 anos Redução entre 1991 e 2000


REGIÃO/UFs 1991 2000 1991 2000 até 1 ano até 5 anos
NORTE
Acre 50,6 34,1 50,6 34,1 67,0 16,5
Amapá 78,0 51,3 78,0 51,3 26,7 26,7
Amazonas 54,3 36,4 54,3 36,4 17,9 17,9
Pará 64,4 35,6 64,4 36,4 28,8 28,8
Rondônia 54,1 36,4 54,1 36,4 17,7 17,7
Roraima 63,1 39,2 63,1 39,2 23,9 23,9
Tocantis 98,0 67,0 98,0 67,0 31,0 31,0
NORDESTE
Alagoas 113,8 62,1 113,8 62,1 51,7 51,7
Bahia 90,7 70,2 90,7 70,2 20,5 20,5
Ceará 97,1 65,0 97,1 65,0 32,1 32,1
Maranhão 106,4 85,7 106,4 85,7 20,7 20,7
Paraíba 113,6 77,7 113,6 77,7 35,9 35,9
Pernambuco 95,5 54,6 95,5 54,6 40,9 40,9
Piauí 99,8 73,5 99,8 73,5 26,3 26,3
Rio Grande do Norte 104,0 67,7 104,0 67,7 36,3 36,3
Sergipe 85,1 72,7 85,1 72,7 12,4 12,4
CENTRO-OESTE
Distrito Federal 30,0 24,0 30,0 24,0 6,0 6,0
Goiás 32,4 24,6 32,4 24,6 7,8 7,8
Mato Grosso 37,4 30,6 37,4 30,6 6,8 6,8
Mato Grosso do Sul 40,7 26,6 40,7 26,6 14,1 14,1
SUDESTE
Espiríto Santo 48,8 33,7 48,8 33,7 15,1 15,1
Minas Gerais 55,5 30,4 55,5 30,4 25,1 25,1
Rio de Janeiro 34,4 23,1 34,4 23,1 11,3 11,3
São Paulo 30,9 20,0 30,9 20,0 10,9 10,9
SUL
Paraná 44,5 20,0 44,5 23,5 21,0 21,0
Rio Grande do 26,4 17,3 26,4 17,3 9,1 9,1
SulSanta Catarina 25,1 16,8 25,1 16,8 8,3 8,3
BRASIL 44,7 30,6 54,5 39,3 14,1 15,2

Fonte: Ipea Data. Censos Demográficos de 1991 e 2000.


Nota: O universo de municípios da tabela é definido pelo IBGE no levantamento censitário e não
necessariamente coincide com o oficialmente existente ou instalado na data de referência.

90 Sinais Sociais • maio > agosto 2006


cia ocorrida entre os estados, os estados da Região Nordeste ainda
apresentam taxas mais de duas vezes maiores do que as observadas
para os demais estados. Assim, no que diz respeito ao cumprimen-
to das Metas do Milênio até 2015 — redução da mortalidade infan-
til em 2/3 — os estados das regiões Sudeste, Centro-Oeste e Sul de-
verão atingir a meta dentro do prazo. Quanto aos estados da região
Norte e Nordeste, caso não consigamos aumentar um pouco mais
a velocidade de redução da mortalidade infantil, os estados destas
duas regiões atingirão a meta internacional pós-2015.

2.4 - Melhorar a saúde materna

O quinto objetivo estabelecido pelas Metas de Desenvolvi-


mento do Milênio é melhorar a saúde materna. Apenas uma meta
faz parte desse objetivo: reduzir em 3/4, entre 1990 e 2015, a taxa
de mortalidade materna.

Reduzir em 3/4, entre 1990 e 2015,


a taxa de mortalidade materna

Ainda hoje, as dificuldades na obtenção de informações sobre a


mortalidade materna são grandes. No Brasil não existem pesquisas
para mensurar a magnitude da mortalidade materna em cada esta-
do, mas apenas alguns estudos locais.
Segundo as informações apresentadas na Tabela 8, em 1999, de
cada 100 mil crianças nascidas vivas no Brasil, eram registrados 56
óbitos maternos. Essa é, no entanto, uma subestimativa da verdadeira
mortalidade materna que ocorre, principalmente, pelo preenchimen-
to inadequado das declarações de óbitos. Esse preenchimento inade-
quado da declaração de óbito é ainda maior quando a morte materna
ocorre por complicações na gestação, aborto, parto ou puerpério. Ou
seja, essa é a informação que se omite com maior freqüência.
A subestimação da mortalidade materna é um problema em qua-
se todos os países do mundo, embora seja mais grave nos países em
desenvolvimento. Tomando como base o resultado apresentado na
Tabela 8, observamos que o Brasil ocupa, mais uma vez, uma posi-
ção de destaque no cenário internacional. Segundo a Organização

Em direção às metas de desenvolvimento do milênio • Rosane Mendonça 91


92
Tabela 8
Número de óbitos maternos por 100 mil nascidos vivos

1997 1998 1999

UFs Taxa Óbitos Nascidos vivos Taxa Óbitos Nascidos vivos Taxa Óbitos Nascidos vivos
CO 48,0 92 191.611 49,5 94 189.861 58,3 108 185.225
DF 44,8 21 46.855 55,8 27 48.418 42,6 21 49.349
GO 46,4 47 101.336 44,2 44 99.526 69,1 65 94.017
MT
MS 55,3 24 43.420 54,9 23 41.917 52,6 22 41.859
SE 58,5 568 970.915 67,8 915 1.349.764 53,4 739 1.384.878
ES - - - 86,6 294 339.541 41,9 143 341.437
MG - - - 51,3 30 58.526 42,8 26 60.800
RJ 66,6 179 268.968 79,4 205 258.284 74,9 201 268.213
SP 55,4 389 701.947 55,7 386 693.413 51,7 369 714.428
S 71,5 337 471.234 76,3 350 459.039 61,9 291 470.326
PR 79,4 153 192.757 84,2 156 185.378 83,0 155 186.675
RS 48,1 47 97.717 43,7 42 96.123 43,5 43 98.854
SC 75,8 137 180.760 85,6 152 177.538 50,3 93 184.797
BR 61,0 997 1.633.760 68,0 1.359 1.998.664 55,8 1138 2.040.429

Fontes:
MS/Funasa/Cenepi - Sistema de Informações sobre Nascidos Vivos - Sinasc.
MS/Funasa/Cenepi - Sistema de Informações sobre Mortalidade - SIM.
IBGE/Estimativas demográficas.
Notas:
1. As taxas foram calculadas diretamente dos sistemas SIM e SINASC para os estados que atingiram percentual de cobertura igual ou superior a 90%
dos óbitos femininos de 10 a 49 anos de idade, correspondendo a todos os estados das regiões Sudeste, Sul e Ce
2. Os totais para o Brasil e Regiões foram calculados apenas com as UFs consideradas.

Sinais Sociais • maio > agosto 2006


Mundial de Saúde (OMS) esse nível de mortalidade está muito aci-
ma da média para países desenvolvidos, que registram 20 mortes
por 100 mil nascidos vivos. Assim, mais uma vez se pode perceber o
contraste entre a posição do Brasil no cenário mundial em termos de
renda per capita e sua posição em termos de desenvolvimento hu-
mano, representado aqui pela taxa de mortalidade materna.
No que diz respeito à convergência entre os estados, a Tabela 8
mostra que as disparidades entre os estados são elevadas, variando
de 40 em Minas Gerais, a 83 no Paraná. Mas, apesar das grandes dis-
paridades regionais, existe uma clara tendência de convergência en-
tre os vários estados.
No que se refere ao cumprimento das Metas do Milênio até 2015
— redução da mortalidade materna em 3/4 —, apesar da dificulda-
de resultante da falta de disponibilidade de dados, considerando as
informações contidas na Tabela 13, temos que a redução entre 1997
e 1999 foi de 5 pontos percentuais. Se a cada 3 anos o país reduzir
essa taxa em 5 pontos percentuais e, caso essa velocidade tenha se
mantido desde 1990, temos que essa taxa deveria ser de cerca de 76
no ponto de partida (1990). Assim, uma redução de 3/4 até 2015 sig-
nifica cair de 76 para 19. Nesse caso, mesmo partindo de níveis tão
elevados, o Brasil conseguiria cumprir a meta. Com relação às três
regiões consideradas na tabela, a Região Sul deverá atingir a meta
estabelecida bem antes das demais regiões, e a Região Sudeste deve-
rá atingir a meta dentro do prazo estabelecido. Os dados para a Re-
gião Centro-Oeste mostram um aumento da taxa no período e, por-
tanto, o que pode ser simplesmente o resultado de um processo de
coleta de informações mais apurado.

2.5 - Combater o HIV/Aids, malária e outras doenças

O sexto objetivo estabelecido pelas Metas de Desenvolvimento


do Milênio é combater o HIV/Aids, malária e outras doenças. Duas
metas fazem parte desse objetivo: (i) Até 2015, ter detido a propaga-
ção do HIV/Aids e começado a reverter a tendência atual, e (ii) até
2015, ter detido a incidência da malária e de outras doenças impor-
tantes, e começado a inverter a tendência atual.
Quatro indicadores foram utilizados para analisar o desempenho
do Brasil, grandes regiões e estados no controle destas doenças: (i)

Em direção as metas de desenvolvimento do milênio • Rosane Mendonça 93


Taxa de incidência de Aids (casos por 100 mil habitantes) para a po-
pulação total, crianças até 12 anos de idade, e pessoas com idade
entre 13 a 39 anos, (ii) Índice Parasitário Anual (IPA) de malária –
exames positivos por 1.000 habitantes, (iii) taxa de incidência de tu-
berculose (casos por 100 mil habitantes), (iv) taxa de incidência de
hanseníase (casos por 10 mil habitantes).

Taxa de incidência do HIV/Aids


(casos por 100 mil habitantes)

No início dos anos 80 o país registrou os primeiros casos da do-


ença. A partir daí, esse registro apresenta uma clara tendência de
crescimento, conforme podemos observar na Tabela 9. Essa tabela
apresenta a taxa de incidência de HIV/Aids para o período de 1990 a
2003, para o Brasil, grandes regiões e estados brasileiros, com exce-
ção da Região Norte e seus estados, além da taxa de incidência para
a população com até 12 anos e para a população entre 13 e 39 anos.
A fonte para esse indicador é a Coordenação Nacional de Doenças
Sexualmente Transmissíveis DST/Aids do Ministério da Saúde.
Em 2003, a taxa de incidência era de 18 casos por 100 mil ha-
bitantes, três vezes maior do que o registrado em 1990. A incidên-
cia da doença aumentou continuamente até 1998 quando, então,
inicia seu declínio. Apesar das várias medidas tomadas para contro-
lar o avanço da doença, essa tendência de queda é revertida a partir
de 2002, quando a doença novamente volta a subir. As regiões Cen-
tro-Oeste, Sudeste e Sul apresentam um comportamento muito se-
melhante, diferentemente das regiões Norte e Nordeste, onde a inci-
dência da doença aumenta sempre, apesar do seu nível ser de 2 a 3
vezes menor do que nas três primeiras regiões.
O comportamento da taxa de incidência para pessoas de 13 a 39
anos é similar ao descrito anteriormente para a população total. Já
o comportamento da incidência da doença em crianças com até 12
anos de idade difere do comportamento para a população total. Para
essa faixa etária, a taxa de incidência cresce todo o tempo, confor-
me podemos observar na Tabela 9.
As disparidades regionais são também elevadas, com o nível mé-
dio do indicador sendo menor nas regiões Norte e Nordeste, exce-

94 Sinais Sociais • maio > agosto 2006


Tabela 9
Taxa de incidência de Aids (casos por 100 mil habitantes)

Crianças de até Pessoas com idade


Total 12 anos de idade entre 13 e 39 anos
UFs 1990 1995 2003 1990 1995 2003 1990 1995 2003
N 0,91 3,66 8,68 0,07 0,56 1,10 1,73 7,37 11,61
AC 0,74 0,22 5,95 - - - 0,63 0,56 9,70
AP 0,36 5,52 7,02 - 0,98 - 0,90 7,67 11,06
AM 1,28 4,01 12,19 - 0,15 1,57 2,79 8,48 17,09
RO 0,84 4,93 5,15 - 0,55 0,48 1,73 9,99 6,52
RR 3,43 3,81 24,61 - - 3,25 6,39 4,95 32,58
PA 0,73 3,47 7,83 0,14 0,85 1,12 1,19 6,79 9,75
TO 0,78 3,08 6,23 - 0,36 0,84 1,71 7,57 9,53
NE 1,63 4,03 6,72 0,32 0,31 1,15 3,10 7,42 9,12
AL 1,42 3,80 7,40 - 0,28 0,59 2,65 7,05 10,25
BA 1,71 2,97 4,41 0,31 0,24 1,19 3,60 5,16 5,27
CE 1,47 5,81 10,99 0,48 0,40 2,01 2,54 10,98 15,41
MA 1,16 2,92 4,55 - 0,06 0,23 2,40 6,45 6,67
PB 1,52 3,92 7,99 - 0,48 1,38 3,15 6,92 11,09
PE 2,57 5,57 8,56 1,01 0,55 1,22 4,25 9,57 11,94
PI 0,83 3,05 3,12 - - 0,39 1,73 6,43 4,60
RN 1,18 2,98 5,03 - 0,46 0,55 2,22 5,58 7,00
SE 1,51 5,42 9,20 - 0,48 2,72 2,54 9,61 12,23
CO 3,28 12,26 19,79 0,64 1,87 2,92 5,78 20,80 26,05
DF 5,26 12,26 27,48 0,56 2,83 3,67 8,30 25,61 34,35
GO 2,04 11,40 15,94 0,43 2,15 1,63 3,39 18,96 21,30
MT 2,37 9,47 21,56 - 1,19 4,18 4,79 16,26 27,35
MS 5,34 14,27 19,30 1,88 1,31 3,66 9,99 25,93 27,16
SE 11,13 23,70 24,27 3,53 4,06 4,87 19,17 39,17 30,61
ES 1,38 7,46 20,75 0,33 2,33 6,02 2,73 11,50 24,42
MG 2,24 12,20 14,69 0,11 1,28 3,52 4,26 20,87 18,75
RJ 12,32 22,44 30,16 5,12 4,14 6,66 18,32 33,41 37,57
SP 15,90 31,16 26,89 5,10 5,67 4,78 28,02 52,30 34,23
S 3,87 14,36 26,48 2,26 4,15 5,70 23,97 23,97 36,43
PR 1,96 10,52 21,50 0,84 2,34 4,31 17,83 17,83 28,91
RS 5,08 14,75 31,15 3,43 3,94 7,90 24,19 24,19 45,45
SC 5,03 20,51 26,52 2,78 7,79 4,41 34,45 34,45 33,77
BR 6,09 14,45 18,17 1,82 2,39 3,33 24,84 24,84 23,51

N (Norte)   S (Sul)   CO (Centro-Oeste)   SE (Sudeste)   S (Sul)   BR (Brasil)

Fonte: Ministério da Saúde/SPS/Coordenação Nacional de DST/Aids.


Nas tabulações por faixa etária ou sexo, estão suprimidos os casos com idade ou sexo ignorados,
respectivamente.

Em direção às metas de desenvolvimento do milênio • Rosane Mendonça 95


Gráfico 
Taxa de incidência de Aids (casos por 100 mil habitantes)
nos estados brasileiros (10 e 2003)

AC 6,0

AP ,0

AM 12,2
norte ,8
PA

RO ,2

RR 24,6
TO 6,2

AL ,4

PI 3,1

MA 4,6

PE 8,6
nordeste BA 4,4

CE 11,0
PB 8,0
SE ,2
RN ,0

DF 2,
centro-oeste MT 21,6

GO 1,

MS 1,3

MG 14,

sudeste ES 20,8

RJ 30,2

SP 26,

RS 31,2
sul PR 21,

SC 26,

0,0 ,0 10,0 1,0 20,0 2,0 30,0 3,0 40,0 4,0

taxa de incidência

10 2003

fonte: Ministério da Saúde/SPS/Coordenação Nacional de DST/Aids

96 Sinais Sociais • maio > agosto 2006


to no estado de Roraima. As alturas das barras cor-de-rosa mostram
a incidência da doença em 1990, e as alturas das barras azuis mos-
tram o aumento registrado até 2003. Observe que, em 1990, a inci-
dência da doença era bem baixa, ou, pelo menos, bem pouco regis-
trada relativamente a 2003. Assim, por exemplo, em 1990 a taxa de
incidência da doença em Pernambuco era de 2,6 casos em cada 100
mil habitantes. Em 2003, a taxa de incidência nesse estado passou a
ser de 8,6, quase três vezes maior.
A disparidades entre as regiões brasileiras aumentaram ao longo
do período analisado. De fato, em 1990, a diferença entre a região
com a maior incidência da doença (11,3) e aquela com a menor in-
cidência (0,91) era cerca de 12 vezes; em 2003, essa diferença au-
mentou para 19 vezes, ou seja, a incidência na região com mais ca-
sos era cerca de 19 vezes maior do que a incidência na região com
o menor número de casos. Em suma, observamos ao longo do pe-
ríodo um distanciamento entre as regiões brasileiras em termos da
incidência da doença. Esse aumento das disparidades entre as re-
giões pode também ser observado entre os estados de uma mesma
região. Em todas as regiões brasileiras o comportamento é similar
ao observado anteriormente, isto é, há um distanciamento cada vez
maior entre os estados. A única exceção se dá na Região Sudeste,
onde há uma ligeira convergência entre os estados em termos da
incidência da doença.

Índice Parasitário Anual (IPA) de malária

O Índice Parasitário Anual (IPA) de malária mede o número de


exames positivos de malária, por mil habitantes e, portanto, ele não
expressa o número de casos de malária. Esse indicador mede o risco
de ocorrência anual de casos de malária e pode servir como proxy
da incidência de malária. A fonte para esse indicador é o Sistema de
Informação de Malária (Sismal), do Ministério da Saúde.
A Tabela 10 apresenta a incidência de malária com base no IPA
para o período de 1990 a 2003, para o Brasil, grandes regiões e es-
tados brasileiros. Segundo o Ministério da Saúde, os graus de ris-
co expressos em valores do IPA podem ser classificados em três ca-

Em direção às metas de desenvolvimento do milênio • Rosane Mendonça 97


Tabela 10
Incidência de tuberculose, malária e hanseníase
Taxa de prevalência
Taxa de incidência Índice Parasitário Anual de hanseníase
de tuberculose (IPA) de malária (casos existentes
(casos por 100 mil habitantes) (Exames positivos por 1.000 habitantes) por 10.000 habitantes)

UF 1990 1995 2003 1990 1995 2003 1997 2002


N 72,1 60,8 49,9 34,07 42,04 27,69 15,2 8,6
AC 87,6 67,4 46,6 28,53 79,22 20,14 14,1 5,7
AP 71,5 61,3 44,2 22,80 52,21 31,58 12,5 4,5
AM 94,6 87,1 67,7 16,78 22,67 45,00 17,4 6,5
RO 66,7 53,1 52,1 25,59 34,12 17,19 14,6 9,7
RR 68,6 57,9 35,6 119,45 100,21 61,16 14,0 9,0
PA 70,6 78,6 44,4 107,50 150,93 31,97 16,4 14,1
TO 47,0 38,2 17,1 3,62 3,69 0,98 15,4 8,7
NE 61,5 63,3 46,3 0,46 0,75 0,23 5,6 6,0
AL 51,1 42,6 41,2 0,01 0,00 0,00 1,7 6,0
BA 60,7 68,8 53,8 0,02 0,01 0,01 2,3 2,0
CE 74,1 67,0 47,9 0,04 0,02 0,01 5,4 4,3
MA 81,6 69,9 45,8 3,69 6,27 1,85 14,6 5,6
PB 44,7 42,5 28,2 0,01 0,01 0,00 2,8 7,3
PE 53,0 70,1 51,2 0,01 0,00 0,00 8,7 4,8
PI 64,3 69,5 36,6 0,23 0,11 0,05 6,6 8,5
RN 57,2 48,7 42,5 0,04 0,01 0,00 1,7 16,5
SE 45,6 42,2 29,4 0,01 0,00 0,00 4,4 1,6
CO 41,7 38,1 27,1 20,82 5,85 0,40 12,3 11,6
DF 43,3 42,4 17,5 0,16 0,10 - 2,8 1,5
GO 29,6 25,1 20,4 0,26 0,14 0,00 14,8 12,5
MT 52,6 47,1 39,5 96,07 25,54 1,85 19,4 3,3
MS 55,6 52,4 38,2 0,37 0,14 0,03 6,9 29,9
SE 48,7 65,2 40,0 0,03 0,02 0,01 3,6 2,4
ES 59,1 52,4 39,8 0,10 0,07 - 8,1 5,8
MG 44,0 40,3 26,4 0,02 0,02 0,01 4,5 3,0
RJ 43,9 126,8 57,1 0,01 0,00 0,01 4,8 3,8
SP 52,2 54,2 39,9 0,03 0,02 0,01 2,2 1,3
S 36,8 37,2 34,2 0,08 0,03 0,01 2,7 1,4
PR 28,4 26,5 28,2 0,17 0,07 0,02 6,0 3,1
RS 49,3 50,6 44,0 0,03 0,02 0,01 0,5 0,2
SC 27,6 30,0 26,4 0,03 0,00 - 0,9 0,6
BR 51,8 58,4 40,8 3,85 3,62 2,27 5,4 4,4

N (Norte)   NE (Noroeste)   CO (Centro-Oeste)   SE (Sudeste)   S (Sul)   BR (Brasil)

Fontes: Tuberculose: Sistema de Informações de Agravos de Notificação (Sinan); Secretaria de Vi-


gilância em Saúde - SVS. Nas tabulações por faixa etária ou sexo, estão suprimidos os casos com
idade ou sexo ignorados, respectivamente. Malária: MS/SVS - Sistema de Informação de Agravos
de Notificação - Sinan. Nota: estima o risco de ocorrência anual de casos de malária. Áreas endê-
micas de baixo risco (<0,10), médio risco (10,0-49,9), e alto risco (>50,0). Hanseníase: MS/SVS -
Sistema de Informação de Agravos de Notificação - Sinan. Número de casos por 10 mil habitantes:
20 ou +/- situação hiperendêmica; 10 a 19 - muito alto; 5 a 9 - alto; 1 a 4 - médio; > 1 baixo.

98 Sinais Sociais • maio > agosto 2006


Gráfico 8
Índice Parasitário Anual (IPA) de malária estados da Região Norte,
Maranhão e Mato Grosso (10 e 2003)

16
1
14
13
12
11
10
IPA (exames positivos por 1.000 habitantes)


8

6
 61,2

4
4,0
3
2 31,6 32,0

1 20,1
1,2

- 1,0 1, 1,

-1
-2
-3
Acre Amapá Amazonas Pará Rondônia Roraima Tocantins Maranhão Mato Grosso

10 2003

fonte: MS/SVS - Sistema de Informação de Agravos de Notificação - Sinan


nota: estima o risco de ocorrência anual de casos de malária. Áreas endêmicas de baixo risco (<0,10),
médio risco (10,0 - 4,), e alto risco (>0,0).

tegorias: (i) baixo: IPA<10,0, (ii) médio: 10,0<IPA<49,9, e (iii) alto:


IPA≥50,0. Assim, as informações contidas nessa tabela revelam que
toda a área endêmica no país restringe-se aos estados da Região
Norte, além do Maranhão e do Mato Grosso.
Segundo o Ministério da Saúde, os valores elevados do IPA
que observamos na região Amazônica decorrem, em geral, “de
migrações internas e assentamentos rurais associados a ativida-
des econômicas extrativas, na ausência de ações integradas de
controle (diagnóstico precoce, tratamento oportuno, educação e
medidas antivetoriais seletivas)”.
As flutuações no índice ao longo do período analisado são gran-

Em direção às metas de desenvolvimento do milênio • Rosane Mendonça 99


des, mas a tendência é de redução deste índice, apesar do seu cres-
cimento em meados dos anos 90, principalmente nos estados do
Acre, Rondônia, Maranhão, Amazonas, Pará e Amapá. Como po-
demos observar no Gráfico 8, a redução no período como um todo
— 1990 a 2003 — foi bem pequena para a maior parte dos estados,
com exceção do Pará, Roraima e Mato Grosso; apenas no estado
do Amazonas houve um aumento no índice no período observado.
Apesar de toda a flutuação observada no período, há uma clara ten-
dência de convergência entre os estados.

Taxa de incidência de tuberculose

A taxa de incidência de tuberculose é estimada com base no nú-


mero de casos novos confirmados por 100 mil habitantes. Segundo
o Ministério da Saúde, “a definição de caso confirmado de tubercu-
lose baseia-se em critérios adotados pelo Ministério da Saúde para
orientar as ações de vigilância epidemiológica da doença em todo o
país”. Assim, essas estimativas referem-se ao risco de o indivíduo vir
a desenvolver a doença em qualquer de suas formas. Taxas elevadas
de incidência de tuberculose, em geral, estão associadas a condi-
ções precárias de vida e condições também precárias de assistência
e tratamento, além de baixa cobertura de vacinação pelo BCG.
A fonte para esse indicador é o Sistema Nacional de Vigilância
Epidemiológica, e o Sistema de Informações de Agravos de Notifica-
ção (Sinan), do Ministério da Saúde. A qualidade das informações,
no entanto, depende das condições operacionais do sistema de vigi-
lância epidemiológica nas várias localidades. O Ministério da Saúde
estima em aproximadamente 30%, em média, o sub-registro.
A Tabela 10 apresenta a incidência de tuberculose para o período
de 1990 a 2003, para o Brasil, grandes regiões e estados brasileiros.
As informações contidas nessa tabela revelam níveis mais elevados
de incidência da doença nas regiões Norte, Nordeste e Sudeste. Em
todos os estados houve redução na incidência de tuberculose, exce-
to no Rio de Janeiro, onde esta aumentou, e no Paraná, onde perma-
neceu estável (veja Gráfico 9). A evolução temporal da incidência da
doença revela, no entanto, um comportamento mais estável dessas
taxas ao longo dos anos 90. As disparidades entre as regiões brasilei-

100 Sinais Sociais • maio > agosto 2006


Gráfico 
Taxa de incidência de tuberculose (casos por 100 mil habitantes)
- nos estados brasileiros (10 e 2003)

AC 46,6

AP 44,2

AM 6,

norte PA 2,1

RO 3,6

RR 44,4
TO 1,1

AL 41,2

PI 36,6

MA 4,8

PE 4,

nordeste BA 3,8

CE 1,2

PB 28,2

SE 2,4

RN 42,

DF 1,

MT 3,
centro-oeste
GO 20,4

MS 38,2

MG 26,4

ES 3,8
sudeste ,1
RJ

SP 3,

RS 44,0

sul PR 28,2

SC 26,4

-20,0 -10,0 0,0 10,0 20,0 30,0 40,0 0,0 60,0 0,0 80,0 0,0 100,0

taxa de incidência

10 2003

fonte: Sistema de informações de Agravos de Notificações (Sinan); Secretaria de Vigilância em Saúde - SVS

Em direção às metas de desenvolvimento do milênio • Rosane Mendonça 101


ras reduziram-se ligeiramente no período analisado, levando a uma
pequena convergência entre essas regiões.
No que diz respeito à convergência entre os estados, o padrão de
comportamento temporal é o mesmo, exceto nos estados da região
Sul, onde a incidência da doença se mostra bastante estável no perí-
odo. Ou seja, observamos uma tendência de redução da incidência
de tuberculose ao longo do tempo, mas a distância entre os estados
no que diz respeito a esse indicador não se altera muito.

Taxa de incidência de hanseníase

A taxa de incidência de hanseníase é estimada com base no nú-


mero de casos confirmados por 10 mil habitantes. Segundo o Mi-
nistério da Saúde, “a definição de caso confirmado de Hansenía-
se baseia-se em critérios adotados pelo Ministério da Saúde para
orientar as ações de vigilância epidemiológica da doença em todo
o país”. Assim, essas estimativas referem-se à magnitude da ende-
mia com base na quantidade total de casos existentes, qualquer
que seja a forma da doença.
Segundo o Ministério da Saúde, as taxas de incidência de han-
seníase podem ser classificadas em quatro categorias: (i) baixa: >1
caso por 10 mil habitantes, (ii) média: 1 a 4 casos por 10 mil habi-
tantes, e (iii) alta: 5 a 9 casos por 10 mil habitantes, e (iv) muito alta:
10 a 19 casos por 10 mil habitantes. A situação hiperendêmica ca-
racteriza-se por 20 casos ou mais por 10 mil habitantes. Além disso,
quando a taxa de incidência se mantém baixa, a doença deixa de
ser considerada um problema de saúde pública. A fonte para esse in-
dicador é a mesma do indicador de tuberculose, ou seja, o Sistema
Nacional de Vigilância Epidemiológica, e o Sistema de Informações
de Agravos de Notificação (Sinan), do Ministério da Saúde. Da mes-
ma forma que no caso da tuberculose, a qualidade das informações
depende das condições operacionais do sistema de vigilância epide-
miológica nas várias localidades.
A Tabela 10 apresenta a incidência de hanseníase para o perío-
do de 1997 a 2002, para o Brasil, grandes regiões e estados brasilei-
ros, classificando os estados segundo a categorização do Ministério
da Saúde. Doze estados brasileiros estão classificados com uma pre-

102 Sinais Sociais • maio > agosto 2006


Gráfico 10
Taxa de prevalência de hanseníase, nos estados brasileiros (1 e 2002)

AC ,

AP 4,

AM 6,

norte PA ,

RO ,0

RR 14,1

TO 8,

AL 2,0

PI 16,

MA ,3

PE 8,

nordeste BA 4,3

CE ,6

PB
4,8
SE 3,4

RN
1,6

DF 1,

MT 3,3
centro-oeste
GO 12,

MS 2,

MG 3,0

ES ,8
sudeste
RJ 3,8

SP 1,3

RS

3,1
sul PR

SC

0,0 ,0 10,0 1,0 20,0 2,0 30,0

taxa de prevalência

1 2002

fonte: MS/SVS - Sistema de informação de Agravos de Notificação - Sinan

Em direção às metas de desenvolvimento do milênio • Rosane Mendonça 103


valência alta ou muito alta em 2002; outros doze estão classificados
com uma prevalência média, e apenas dois estados — Rio Grande
do Sul e Santa Catarina — têm uma incidência baixa da doença. O
estado do Mato Grosso do Sul aparece com uma situação hiperendê-
mica, com cerca de 30 casos por 10 mil habitantes. A incidência nos
anos anteriores a 2002, no entanto, era cerca de 6 vezes mais baixa,
o que revela um salto muito grande que merece ser investigado. Em
todos os estados houve redução na incidência de hanseníase, exce-
to em cinco estados da região Nordeste e no Mato Grosso do Sul. As
disparidades, entretanto, entre os estados, continuam elevadas, con-
forme podemos observar no Gráfico 10.
No que diz respeito à convergência entre as regiões brasileiras,
apesar da redução da incidência da doença em 4 das 5 regiões — no
Nordeste a incidência da doença aumenta ligeiramente — a conver-
gência foi muito pequena ao longo do período analisado. Com rela-
ção à convergência entre os estados numa dada região, o compor-
tamento é semelhante ao observado para as grandes regiões, exceto
para a Região Sul, onde há uma maior convergência entre os estados
em função da grande redução ocorrida no Paraná.
Em suma, o país ainda não se encontra em situação confortá-
vel em termos da incidência de hanseníase, principalmente quan-
do consideramos seu nível de renda per capita. Ou seja, os níveis da
doença que prevalecem ainda em grande parte dos estados brasilei-
ros demonstram total incompatibilidade com o nível de desenvolvi-
mento socioeconômico do país.

2.6 - Garantir a sustentabilidade ambiental

O sétimo objetivo estabelecido pelas Metas de Desenvolvimento


do Milênio é garantir a sustentabilidade ambiental. Três metas fazem
parte desse objetivo: (i) integrar os princípios do desenvolvimento
sustentável nas políticas e programas nacionais e reverter a perda
de recursos ambientais, (ii) reduzir pela metade, até 2015, a pro-
porção da população sem acesso permanente à água potável e es-
gotamento sanitário, e (iii) até 2020, ter alcançado uma melhoria
significativa na vida de pelo menos 100 milhões de habitantes de
assentamentos precários.

104 Sinais Sociais • maio > agosto 2006


Tabela 11
Porcentagem da população que vive em domicílios sem abastecimento
adequado de água e sem instalações adequadas de esgoto

Sem abastecimento adequado de água Sem instalações adequadas de esgoto

Variação Variação Variação Variação


UFs 1981 1990 2003 1981-2003 1990-2003 1981 1990 2003 1981-2003 1981-2003
N 47,0 34,0 26,0 -21,0 -8,0
TO - - 25,6 - 41,5 - - 0,0 - -98,0
NE 70,5 58,6 30,9 -39,6 -27,7 80,0 70,0 0,0 -30,9 27,7
AL
71,0 53,0 33,0 -38,0 -20,0 88,0 79,0 0,0 -33,0 20,0
BA 67,0 58,0 32,0 -35,0 -26,0 76,0 67,0 0,2 -31,8 26,2
CE 78,0 64,0 29,0 -49,0 -35,0 60,0 73,0 0,2 -28,8 35,2
MA 87,0 78,0 45,0 -42,0 -33,0 86,0 74,0 0,1 -44,9 33,1
PB 57,0 45,0 23,0 -34,0 -22,0 81,0 59,0 0,2 -22,8 22,2
PE 64,0 46,0 27,0 -37,0 -19,0 86,0 64,0 0,1 -26,9 19,1
PI 82,0 72,0 42,0 -40,0 -30,0 79,0 61,0 0,2 -41,8 30,2
64,0 55,0 18,0 -46,0 -37,0 81,0 58,0 0,2 -17,8 37,2
RN 65,0 54,0 16,0 -49,0 -38,0 79,0 56,0 0,1 -15,9 38,1
SE
CO 55,6 31,3 6,7 -48,9 -24,6 70,0 60,0 0,0 -6,7 24,6
DF 15,0 8,0 2,0 -13,0 -6,0 17,0 8,0 0,7 -1,3 6,7
GO 58,0 36,0 5,0 -53,0 -31,0 85,0 69,0 0,1 -4,9 31,1
MT 71,0 42,0 16,0 -55,0 -26,0 88,0 65,0 0,0 -16,0 26,0
MS 55,0 26,0 4,0 -51,0 -22,0 91,0 85,0 0,1 -3,9 22,1

SE 24,4 12,1 2,8 -21,6 -9,3 30,0 20,0 0,0 -2,8 9,3
26,0 36,0
ES 45,0 25,0 3,0 -42,0 -23,0 57,0 36,0 0,4 -2,6 23,4
MG 43,0 11,0 6,0 -37,0 -19,0 51,0 16,0 0,4 -5,6 19,4
RJ 21,0 5,0 3,0 -18,0 -8,0 25,0 13,0 0,6 -2,4 8,6
SP 14,0 126,8 1,0 -13,0 -4,0 23,0 126,8 0,7 -0,3 4,7
54,2 54,2
S 38,7 17,1 2,9 -35,8 -14,2 50,0 40,0 0,0 -2,9 14,2
PR 46,0 21,0 3,0 -43,0 -18,0 63,0 54,0 0,3 -2,7 18,3
RS 33,0 16,0 2,0 -31,0 -14,0 49,0 31,0 0,5 -1,5 14,5
SC 35,0 12,0 4,0 -31,0 -8,0 41,0 22,0 0,4 -3,6 8,4
BR 43,0 29,0 12,0 -31,0 -17,0 53,0 41,0 0,4 -11,6 17,4

N (Norte)   S (Sul)   CO (Centro-Oeste)   SE (Sudeste)   S (Sul)   BR (Brasil)

Fonte: Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad) de 1981 a 2003.


Notas: Considera-se adequado o abastecimento através de rede geral com canalização interna ou
através de poço ou nascente com canalização interna.
Porcentagem da população que vive em domicílios particulares permanentes com acesso a insta-
lações adequadas de esgoto. Entende-se como instalações adequadas aqueles domicilios que têm
banheiro de uso exclusivo e com escoaduro conetado a rede coletora de esgoto ou pluvial ou a
uma fossa séptica ligada ou não a uma rede coletora.

Em direção às metas de desenvolvimento do milênio • Rosane Mendonça 105


Dois indicadores foram utilizados para analisar o desempenho
do Brasil, grandes regiões e estados em garantir à população acesso
à água potável e esgotamento sanitário: (i) porcentagem da popula-
ção que vive em domicílios sem abastecimento adequado de água,
e (ii) porcentagem da população que vive em domicílios sem insta-
lações adequadas de esgoto.

Porcentagem da população que vive


em domicílios sem abastecimento adequado de água

A porcentagem da população que vive em domicílios sem abas-


tecimento adequado de água pode ser obtida com base nas Pnads.

Gráfico 11
Porcentagem da população que vive em domicílio sem abastecimento adequado
de àgua nos estados brasileios (10, 2003 e meta para 201)

80,0
,0
0,0
6,0
60,0
,0
0,0
4,0
4,0
40,0 42,0
3,0
30,0 33,0 32,0
2,0
2,0 2,0
2,6
20,0 23,0
1,0 14,
10,0 12,0
16,0 18,0 16,0
,0
2,0 ,0 4,0 6,0 3,0 3,0 2,0 1,0 3,0 4,0
0,0
TO AL PI MA PE BA CE PB SE RN DF MT GO MS MG ES RJ SP RS PR SC

norte nordeste centro-oeste sudeste sul

10 2003 total Nac. 2003 meta Nac. 201

fonte: Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad)


nota: Apenas para o Estado do Tocantins são coletadas informações tanto para a área rural quanto urbana.

106 Sinais Sociais • maio > agosto 2006


As estimativas que serão analisadas aqui consideram como adequa-
do o abastecimento através de rede geral com canalização interna
ou através de poço ou nascente com canalização interna.
A Tabela 11 mostra que, em 2003, 12% da população brasileira
vivia em domicílios sem abastecimento de água adequado. Em 1981
essa porcentagem era 43%, significando uma redução de 31 pontos
percentuais no período. As disparidades entre estados ainda são ele-
vadas, conforme podemos ver no Gráfico 11, com todos os estados
da Região Nordeste se posicionando acima da média brasileira, ape-
sar da redução nesse indicador ter sido maior nesses estados. Fora
da Região Nordeste, o estado do Mato Grosso também se situa aci-
ma da média brasileira.
Com a redução desse indicador, principalmente nos estados da
Região Nordeste, as estimativas revelam uma forte convergência en-
tre as regiões brasileiras. De fato, em 1981, a distância entre a região
com o melhor indicador e aquela com o menor indicador era de 46
pontos percentuais; em 2003 essa distância havia se reduzido para
28 pontos percentuais. Entre os estados da Região Nordeste, no en-
tanto, não houve convergência com respeito a esse indicador. A dis-
tância entre o estado com o melhor indicador e aquele com o pior
se manteve constante ao longo de todo o período.
Já com relação às regiões Centro-Oeste, Sudeste e Sul, podemos
observar um processo de convergência bem mais acentuado. Na Re-
gião Centro-Oeste, por exemplo, a diferença em 1981 entre o esta-
do com o melhor indicador e aquele com o pior indicador era de 56
pontos percentuais; em 2003 essa diferença cai para apenas 14 pon-
tos percentuais. Evidentemente, não devemos esquecer o fato de que
quanto mais próximo do objetivo, mais difícil é a obtenção de me-
lhorias. Assim, estados como Santa Catarina e Rio Grande do Sul se
defrontam com dificuldades crescentes para reduzir a porcentagem
de sua população que vive em domicílios sem abastecimento ade-
quado de água.

Porcentagem da população que vive


em domicílios sem instalações adequadas de esgoto

A porcentagem da população que vive em domicílios sem ins-


talações adequadas de esgoto também foi obtida com base nas

Em direção às metas de desenvolvimento do milênio • Rosane Mendonça 107


Gráfico 12
Porcentagem da população vive em domicílios sem instalações adequadas
de esgoto nos estados brasileiros (10, 2003 e meta para 201)

%
100,0
,0
0,0
8,0
86,0
80,0 84,0
81,0
,0
0,0
6,0
6,0
60,0
61,0
,0 8,0 ,0
6,0 8,0 ,0
0,0 4,0
4,0 4,0
40,0 42,0
3,0
3,0 34,
30,0 31,0
2,0
20,0 2,0 24,0 24,
1,0 1,0
10,0 14,0
,0 ,0
,0
0,0
TO AL PI MA PE BA CE PB SE RN DF MT GO MS MG ES RJ SP RS PR SC

norte nordeste centro-oeste sudeste sul

10 2003 total Nac. 2003 meta Nac. 201

fonte: Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad)


nota: Apenas para o Estado do Tocantins são coletadas informações tanto para a área rural quanto urbana.

Pnads. As estimativas que serão analisadas aqui consideram a por-


centagem da população que vive em domicílios particulares perma-
nentes, sem acesso a instalações adequadas de esgoto. A pesquisa
considera como instalações adequadas aqueles domicílios que têm
banheiro de uso exclusivo e com escoadouro conectado a rede co-
letora de esgoto ou pluvial, ou a uma fossa séptica ligada ou não a
uma rede coletora.
A Tabela 11 mostra que, em 2003, 34% da população brasileira
vivia em domicílios sem instalações adequadas de esgotamento sa-
nitário. Em 1981 essa porcentagem era 62%, significando uma redu-
ção de 28 pontos percentuais no período. As disparidades entre esta-
dos ainda são elevadas, conforme podemos ver no Gráfico 12, com

108 Sinais Sociais • maio > agosto 2006


apenas os estados das regiões Sul e Sudeste, além do Distrito Fede-
ral, situando-se abaixo da média brasileira. Em alguns estados como
Tocantins e Alagoas a meta a ser atingida até 2005 encontra-se ainda
a 35 pontos percentuais de distância a partir de 2003; a distância a
ser percorrida pelo Mato Grosso do Sul é ainda maior, 40 pontos per-
centuais. Pernambuco, Ceará, Paraíba e Goiás precisam eliminar ain-
da distâncias entre 25 e 30 pontos percentuais.
Com relação à convergência entre as regiões brasileiras ao longo
desse período, as disparidades entre as regiões aumentaram em cer-
ca de 10 pontos percentuais. De fato, em 1981, a distância entre a
região com o melhor indicador e aquela com o menor indicador era
de 50 pontos percentuais; em 2003 essa distância havia aumentado
para 60 pontos percentuais.
Com relação aos estados, podemos observar uma aproximação
entre os estados da Região Centro-Oeste, onde a distância entre o es-
tado com o melhor indicador e aquele com o pior caiu em 45 pontos
percentuais, entre os estados da Região Sudeste, onde essa distância
caiu em 8 pontos percentuais, e entre os estados da Região Sul, onde
essa distância caiu em 4 pontos percentuais. Entre os estados da Re-
gião Nordeste, no entanto, não houve convergência com respeito a
esse indicador. De fato, a distância entre o estado com o melhor in-
dicador e aquele com o pior aumentou em 18 pontos percentuais ao
longo de todo o período.

3 - Sumário e principais conclusões

Em pleno século XXI podemos ainda encontrar milhares de pes-


soas vivendo em condições de extrema pobreza, apesar de todo o
crescimento econômico e de todas as transformações pelas quais a
política social brasileira vem passando, contando hoje com novos
desenhos e estratégias, e apresentando grande variedade de progra-
mas sociais modernos e descentralizados.
A luta por melhores condições de vida para a população nas re-
giões menos desenvolvidas tem tido grande ênfase nas últimas dé-
cadas. O objetivo é reverter o quadro de extrema pobreza, fome,
analfabetismo e doenças que afetam milhares de pessoas. O senti-
do de urgência torna-se ainda maior quando observamos que a ori-

Em direção às metas de desenvolvimento do milênio • Rosane Mendonça 109


gem do elevado grau de pobreza não é a falta de recursos (absolu-
ta ou relativa) de nosso país, mas sim o fato de que esses recursos
encontram-se concentrados nas mãos de uma pequena parcela da
população. O Brasil, longe de poder ser considerado um país po-
bre é, seguramente, um país com muitos pobres. Portanto, a exis-
tência de recursos é importante mas não é suficiente para reverter
esse quadro. A elevada desigualdade na distribuição da renda (está-
vel ao longo das últimas décadas) constitui o principal determinan-
te da pobreza em nosso país.
Além de possuir os recursos necessários para reverter esse qua-
dro, nosso país não gasta pouco na área social — são cerca de R$
200 bilhões ao ano. Os indicadores sociais, contudo, não refletem
toda essa riqueza, revelando uma política social muito pouco efeti-
va, apesar de todo o seu dinamismo.
Em verdade, as Metas de Desenvolvimento do Milênio (MDM)
constituem mais uma oportunidade para refletirmos sobre que país
se quer construir. Hoje, esse é um país de grandes desequilíbrios.
Quando observamos o país como um todo, este já atingiu ou está
prestes a atingir várias das metas estabelecidas internacionalmente,
mas quando focamos nossa atenção nas regiões e estados brasilei-
ros, observamos que as disparidades regionais ainda são alarmantes,
e que o esforço necessário para que esses estados venham a cumprir
as metas estabelecidas parece inatingível.
Apesar da porcentagem de pobres estar diminuindo, ainda que
lentamente, a parcela da renda nas mãos dos mais pobres — que re-
flete o grau de desigualdade na distribuição dos recursos — caiu en-
tre 1981 e 2001. Ou seja, a porcentagem de pessoas abaixo da linha
de extrema pobreza é elevada e vem caindo lentamente, e a parcela
da renda apropriada por esse grupo, quando não está estacionada,
está diminuindo. Assim, muitos estados não vão conseguir atingir a
meta de redução da extrema pobreza em função do seu elevado ní-
vel de desigualdade na distribuição da renda.
Em educação, a distância da taxa de conclusão do Primeiro Grau
à meta estabelecida para 2015 é hoje de 40 pontos percentuais, sen-
do que para a metade dos estados brasileiros esse hiato ultrapassa os
50 pontos percentuais. Assim, apesar do acesso à escola estar prati-
camente universalizado, o desafio pela frente é aumentar o núme-

110 Sinais Sociais • maio > agosto 2006


ro de crianças que concluem o Primeiro Grau, sem esquecer, obvia-
mente, da qualidade do ensino, pois, apesar de as crianças estarem
freqüentando a escola tanto nos estados do Nordeste quanto nos es-
tados do Sul, isto é, apesar das diferenças na taxa de freqüência à es-
cola serem mínimas, quando observamos os indicadores de qualida-
de, as diferenças ainda são alarmantes. Por exemplo, a freqüência à
escola de crianças de 7 a 14 anos em Pernambuco e em Santa Cata-
rina é de, respectivamente, 98% e 99%, ao passo que a taxa de anal-
fabetismo de crianças entre 10 e 14 anos nestes mesmos estados é
de 9,8% e 0,4%. Ou seja, a diferença entre os dois estados em ter-
mos da freqüência à escola é de 1 ponto percentual, ao passo que a
diferença entre eles com respeito à taxa de analfabetismo é de mais
de 9 pontos percentuais.
No que diz respeito aos indicadores de saúde e saneamento, o
Brasil ainda está longe de se encontrar em situação confortável em
termos do nível de mortalidade infantil, da incidência das várias do-
enças analisadas, como Aids, tuberculose, malária e hanseníase, e
do acesso aos serviços de água e esgotamento sanitário. Ou seja, os
níveis desses indicadores que prevalecem ainda em grande parte dos
estados brasileiros demonstram total incompatibilidade com o nível
de desenvolvimento socioeconômico do país.
Em suma, o Brasil apresenta grandes diferenças regionais que
precisam ser eliminadas. Evidentemente, o fato de os indicadores
em grande parte dos estados do Norte e do Nordeste ainda se en-
contrarem bem abaixo dos indicadores observados nas demais re-
giões, apesar de toda a convergência observada nos últimos vinte
anos, revela uma oportunidade para o país atingir as metas estabe-
lecidas, uma vez que é mais fácil melhorar o nível dos indicadores
nessas regiões do que naquelas onde os indicadores já estão próxi-
mos dos objetivos. Portanto, o país deveria concentrar seus esforços
para melhorar os indicadores nas regiões Norte e Nordeste, aumen-
tando, desta forma, as chances de todos os seus estados atingirem as
metas estabelecidas para 2015.
Vale ressaltar, por fim, que, apesar da riqueza de informações
existente no país, ainda é fundamental empreender esforços para a
melhoria da qualidade das informações, principalmente nas regiões
Norte e Nordeste, onde a cobertura ainda é extremamente precária.

Em direção às metas de desenvolvimento do milênio • Rosane Mendonça 111


Essas dificuldades na obtenção de informações adequadas dificul-
tam sobremaneira conhecer a diversidade dos problemas e sua mag-
nitude e, portanto, dificultam o desenho de políticas voltadas para a
solução dos problemas.

•••

112 Sinais Sociais • maio > agosto 2006


REFERÊNCIAS
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ceitável: desigualdade e pobreza no Brasil. In: HENRIQUES, R. (org.). De-
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The World Bank (2000). World Development Report, 1999/2000.

Em direção às metas de desenvolvimento do milênio • Rosane Mendonça 113


PROGRAMAS SOCIAIS
VOLTADOS À EDUCAÇÃO
NO BRASIL
O IMPACTO DO BOLSA ESCOLA
Simon Schwartzman1
Presidente do Instituto de Estudos do Trabalho e Sociedade no Rio de Janeiro (Iets).

Os programas sociais orientados para a área de educação, conhecidos como


“Bolsa Escola”, têm por objetivo pobre as famílias pobres com crianças com
um estipêndio monetário de tal forma a permitir e estimular estas famílias a
colocarem seus filhos na escola. No Brasil, alguns programas deste tipo existem
desde meados dos anos 90, e se transformaram em um programa federal desde
2001. Em 2004, o governo brasileiro juntou o programa Bolsa Escola com
outros programas de renda mínima com o propósito de criar um programa
amplo de ajuda familiar (Bolsa Família). Este artigo examina os impactos sobre
a educação e a igualdade destes programas sociais na área de educação,
utilizando dados da Pnad 2003. A análise revela que esses programas não são
bem focalizados desde a ótica da educação. Esses programas são mais bem
focalizados desde um ponto de vista de geração e transferência de renda,
mas, ainda assim, possuem certas limitações. O artigo conclui que essas
políticas ou programas não estão baseados em um processo de pesquisa bem
fundamentado e, portanto, assumem presssupostos equivocados.

1
simon@iets.inf.br

114 Sinais Sociais • maio > agosto 2006


Antecedentes – os programas do Bolsa Escola

Por vários anos, os governos municipais, estaduais e o gover-


no federal mantiveram programas para fornecer às famílias de baixa
renda com filhos um pequeno estipêndio mensal, em geral chama-
do Bolsa Escola, requerendo em troca que a família matriculasse e
mantivesse as crianças na escola. O pressuposto é que, em famílias
muito pobres, as crianças não vão à escola porque precisam traba-
lhar, e um estímulo monetário poderia mudar esta situação. O Bolsa
Escola tornou-se a menina-dos-olhos dos governos e agências inter-
nacionais, e recebeu amplo apoio da opinião pública, como um ins-
trumento efetivo para melhorar as condições educacionais dos seg-
mentos mais pobres da população.
Os primeiros programas desse gênero tiveram início em 1995,
nas cidades de Campinas, São Paulo e Brasília, e desde então foram
adotados em inúmeros outros lugares. De acordo com as estimativas
de Cardoso e Souza, existiam 61 programas semelhantes em 1999,
além dos 17 mantidos pela instituição não-governamental Missão
Criança (Cardoso e Souza, 2003). Em 2001, uma lei criou o programa
federal Bolsa Escola, com base na transferência de recursos feita
através da Caixa Econômica Federal. A legislação de 2001 estabelecia
que os programas fossem executados pelos municípios, que seriam
responsáveis pelo registro das pessoas carentes, e desempenhariam um
papel importante para trazer as crianças para a escola. Para participar

Programas sociais voltados para à educação no brasil • Simon Schwartzman 115


do programa, os municípios deveriam criar um “conselho de controle
social”, com a participação de autoridades e líderes locais. Somente
famílias com crianças entre 6 e 15 anos de idade, matriculadas em
escolas regulares e abaixo de uma determinada faixa de renda,
poderiam participar (Brasil, Presidência da República, 2001).
No final de 2003, o governo do Presidente Lula decidiu unificar
diferentes programas federais de transferência de recursos em um di-
retamente sob a Presidência, a ser dirigido por um conselho intermi-
nisterial especial e um secretário especial nomeado para a função.
Esperava-se que o novo programa concedesse uma renda mínima
de R$ 50,00 por mês para cada família com renda per capita men-
sal de R$ 50,00 ou menos, com benefícios adicionais para mulhe-
res grávidas, crianças pequenas, crianças na escola, subsídios para
alimentação e gás, que antes faziam parte de programas separados
(Brasil, Presidência da República, 2004). Algum tempo depois, o go-
verno anunciou que cerca de 5,3 milhões de famílias estavam rece-
bendo o novo benefício, estimado em R$ 75,00 em média, ou cerca
de US$ 26 por família, por mês (Rocha Filho, 004). Se considerar-
mos que há duas ou três crianças em idade escolar por família, e que
a maior parte do novo programa corresponde ao antigo Bolsa Esco-
la, isso significaria que 10 a 15 milhões de crianças vivem em famí-
lias que recebem o benefício.
O orçamento total do programa para o ano de 2004 era de R$
5,8 bilhões, aproximadamente US$ 2 bilhões. Esses dados precisam
ser comparados com o número de jovens com idades entre 5 e 17
anos, vivendo em famílias que ganham menos de US$ 1 por dia, por
pessoa (12 milhões, ou 30% do grupo etário) e com o orçamento fe-
deral para a educação (R$ 17,3 bilhões, em 2004, dos quais 13,3 bi-
lhões para o ensino superior). A educação básica e o ensino médio,
no Brasil, são atribuições dos governos estaduais e municipais e não
do governo federal, mas os recursos do governo federal são impor-
tantes na implementação de vários programas, incluindo merenda
escolar e livro didático, assim como para compensar os estados com
menos recursos, através do Fundo Nacional para a Educação Básica
(Fundef). Entretanto, o Bolsa Família está se tornando maior do que
todos os outros programas do governo federal voltados à educação,
fora o ensino superior.

116 Sinais Sociais • maio > agosto 2006


Há vários trabalhos na literatura que tentam avaliar os efeitos de
tais programas (Ramos, 1999; Rocha, 2000; Bourguignon, Ferreira et
al., 2002; World Bank, 2002; Bourguignon, Ferreira et al., 2003; Fer-
ro e Kassouf, 2004). Lendo os documentos oficiais publicados pelos
governos e pelas agências multilaterais, pareceria que sua efetivida-
de é inquestionável (Aguiar e Araújo, 2002). Entretanto, não é assim.
Não há pesquisa empírica sistemática sobre efeitos reais do progra-
ma sobre a freqüência às aulas e, mais crítico ainda, de seus efei-
tos sobre a aprendizagem2. Estudos qualitativos tendem a assinalar
as formas aleatórias com que os controles de freqüência são realiza-
dos, a resistência das escolas em lidar com alunos com dificuldades
de aprendizagem, e a falta de vontade dos professores de reportar a
ausência às autoridades, preservando assim pequenas rendas para
famílias muito pobres (Barbosa e Lavinas, 2000; Castro 1999).
Em 2004, o programa federal Bolsa Família foi alvo de forte ata-
que por parte da imprensa brasileira, depois de uma série de críticas
feitas pela maior rede de comunicação do país, a Globo. O primeiro
ataque veio de um artigo assinado por Ali Kamel, denunciando que
o governo não tinha nenhum controle sobre se as crianças prove-
nientes de famílias que recebiam o benefício efetivamente freqüen-
tavam a escola (Kamel, 2004). A segunda crítica partiu de um progra-
ma da TV Globo que se baseou em uns poucos casos dispersos para
afirmar que o benefício estava sendo concedido a famílias de clas-
se média, que não tinham necessidade dele, enquanto famílias mais
pobres eram excluídas, muitas vezes porque o programa era condu-
zido por autoridades locais, que preparavam suas próprias listas de

2
Como Cardoso e Souza apontaram, “o apoio do Banco Mundial ao Pro-
grama Bolsa-Escola no Brasil baseia-se em um estudo de caso: o de Brasília,
Distrito Federal (World Bank, 2002). O aval da Organização Mundial do
Trabalho (OIT-ILO) baseia-se no estudo de caso de Recife (Lavinas, Barbosa
et al., 2001). Escrevendo em 2003, os autores observam que “até agora,
não existe uma avaliação do impacto deste conjunto de programas sobre
a pobreza, a educação e o trabalho infantil. Não se sabe o que aconteceu
com os programas municipais depois da introdução do programa de Renda
Mínima e o governo nunca fez ou publicou uma análise deste programa. O
programa desapareceu em 2001 quando o governo substituiu-o pelo Bolsa
Escola Federal” (Cardoso e Souza, 2003).

Programas sociais voltados para à educação no brasil • Simon Schwartzman 117


beneficiários (Fantástico, 2004). A respeito da primeira crítica, o go-
verno reconheceu o problema, e respondeu que, em breve, coloca-
ria controles em prática. Dando um passo mais à frente, o Ministro da
Educação anunciou que em alguns meses um sistema de ponto ele-
trônico seria instalado em algumas escolas para conferir a freqüência
das crianças às aulas3.
À segunda crítica, o governo respondeu que casos de uso inde-
vido são inevitáveis em um país tão grande e complexo, mas que o
programa, em geral, estava corretamente focalizado nos segmentos
mais pobres da população. Ao mesmo tempo, o governo anunciou
ações de investigação e punição dos possíveis desvios. Está claro,
entretanto, que uma das maiores fraquezas do programa é a ausên-
cia de um cadastro nacional confiável de famílias pobres candida-
tas ao benefício. A única agência nacional que poderia produzir tal
cadastro seria o IBGE, mas o Instituto não mantém identificações in-
dividuais nas operações de censos decenais. Exceto talvez em São
Paulo, não há institutos estaduais de estatística que possam realizar
a tarefa. A Secretaria da Receita Federal tem um bom banco de da-
dos das pessoas que possuem um número de CPF, mas isso, por de-
finição, exclui os mais pobres, que freqüentemente não têm registros
nem documentos. O último censo foi realizado em 2000, e havia
planos para uma Contagem da População em 2005, o que teria sido
uma oportunidade para criar um registro nacional. Isto, porém, foi
cancelado por falta de verbas. Os cadastros existentes são feitos por
autoridades locais, e sujeitos a todo tipo de imprecisões técnicas e
administrativas, assim como a manipulações políticas.

Os dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios

Desde 2001, a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios —


Pnad, realizada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística
— IBGE, investiga se as crianças de 5 a 17 anos, residentes no do-

3
Isso foi uma afirmação surpreendente, considerando que a maioria dos estu-
dantes mais pobres nas zonas rurais está espalhada em cerca de 100 mil esco-
las municipais, de uma única sala de aula, freqüentemente com um único pro-
fessor e instalações e equipamentos muito precários (Schwartzman, 2004a).

118 Sinais Sociais • maio > agosto 2006


micílio, participam ou não de “programas sociais voltados à educa-
ção”4. Tipicamente, a Pnad é realizada em setembro, e seus resul-
tados, junto com os microdados, são divulgados um ano depois. A
pesquisa tem uma amostra de cerca de 130 mil domicílios, abran-
gendo cerca de 370 mil pessoas, e é representativa de todos os es-
tados brasileiros, das regiões metropolitanas e rurais, com exce-
ção das áreas rurais da Região Norte, escassamente povoadas. Em
2003, pela primeira vez os participantes dos programas foram di-
vididos em dois grupos: os que já recebiam o benefício e os que
já estavam registrados para recebê-lo e aguardavam homologação.
De acordo com a pesquisa, em setembro de 2003, havia 8,4 mi-
lhões dos 43,1 milhões de crianças de 5 a 17 anos de idade que
já estavam recebendo o benefício, enquanto 3,8 milhões estavam
aguardando uma decisão. Infelizmente, a pesquisa não distingue
se o auxílio vem do governo federal, estadual ou municipal. Pe-
los números conhecidos, pode-se supor que a maior parte se re-
fere aos programas do governo federal, embora existam também
outros programas locais, por exemplo, nos estados do Rio de
Janeiro e de São Paulo5.

O impacto sobre a matrícula e a freqüência escolar

O pressuposto desses programas é que o principal efeito do be-


nefício monetário é de livrar as crianças da necessidade de traba-
lhar, possibilitando-lhes ir à escola. Supõe-se também que o auxílio
criaria uma obrigação moral das famílias de mandarem seus filhos
à escola, o que poderia ser reforçado por conselhos comunitários
locais encarregados da supervisão do programa, a serem estabele-
cidos com esse fim. O que de fato acontece? É verdade que, sem
o benefício, crianças de famílias pobres não vão à escola porque
precisam trabalhar? É verdade que, ao receber o benefício, param

4
Neste texto usaremos “Bolsa Escola” para nos referirmos a estes programas.
5
Antes de lançar o novo programa Bolsa Família, o governo federal tentou
negociar sua integração aos programas similares estaduais e municipais, para
evitar duplicidade e reduzir custos. Na maioria dos estados, entretanto, não
se chegou a um acordo.

Programas sociais voltados para à educação no brasil • Simon Schwartzman 119


de trabalhar e começam a estudar? É verdade que, se fossem levadas
à escola, aprenderiam?
A Pnad pergunta se uma pessoa está matriculada em uma esco-
la. Os principais resultados podem ser conferidos na Tabela 1. Esta
Tabela mostra que receber ou não um benefício faz diferença para
crianças de 5 a 6 anos de idade, assim como para as de 14 a 17. Para
crianças de 7 a 13, entretanto, o efeito é menos de 2%. O motivo
é simples. Uma vez que a cobertura da educação básica está pra-
ticamente universalizada, um pequeno benefício em dinheiro não
consegue fazer uma diferença significativa na matrícula escolar. No
entanto, a educação pré-escolar não está universalizada, e os ado-
lescentes aos 14 anos começam a abandonar a escola por diversas
razões. Nesta idade, um programa para estimular as crianças a ficar
ou voltar à escola pode fazer diferença. Não podemos ver, porém,
através desses dados, se o impacto percebido os dois grupos foram
provocados pelo Bolsa Escola ou por outros programas mais focali-
zados em grupos específicos, trabalhando em parceria com as esco-
las6. Uma hipótese é que tais programas poderiam ser mais efe-
tivos em trazer e manter as crianças na escola, comparados aos
programas mais gerais.
Entretanto, se analisarmos os efeitos do Bolsa Escola em relação
à renda familiar per capita, encontramos efetivamente algumas di-
ferenças, embora não muito grandes (Tabela 2). No decil de renda
mais baixo, para o grupo de 5 a 15 anos de idade, ter ou não um au-
xílio em dinheiro faz uma diferença de 11,5% na matrícula escolar.
Efeitos similares, porém menores, podem ser encontrados em outros
grupos, até o quinto decil de renda. Curiosamente, no entanto, ob-
serva-se que as taxas de matrícula para os que ainda estão esperan-
do pela homologação da concessão do benefício são similares às
dos que já o estão recebendo, e não à dos que estão fora do sistema.
Uma possível interpretação para esse resultado é que o que faz a di-
ferença na matrícula não é o benefício monetário em si, mas o fato
de ele estar de alguma forma vinculado às redes sociais, ou a outras
condições que colocam as pessoas ao alcance do programa. Pode

6
Exemplos de tais programas são o “Programa de Erradicação do Trabalho
Infantil” e o “Programa Agente Jovem”, no Estado de São Paulo.

120 Sinais Sociais • maio > agosto 2006


ser também conseqüência da regra de que o benefício só seja dado
às famílias cujos filhos já estejam freqüentando a escola, excluindo
os que já a abandonaram, ou têm mais de 15 anos de idade.

Tabela 1
Porcentagem de pesssoas que freqüentam a
escola, por idade e participação no programa Bolsa Escola

Diferença Total de pessoas


Idade Grupo A Grupo B Grupo C
(C-A) no grupo etário

5 82,3 80,8 68,6 13,7 3.211.921


6 94,9 92,1 86,0 8,9 3.203.202
7 98,0 97,4 95,2 2,8 3.345.282
8 99,1 99,2 97,3 1,8 3.331.262
9 99,6 98,2 97,7 1,9 3.303.329
10 99,7 98,3 97,8 1,9 3.276.524
11 99,7 97,9 97,9 1,8 3.207.807
12 99,1 97,4 97,8 1,3 3.187.444
13 98,7 96,5 95,5 3,2 3.272.166
14 98,0 93,3 92,4 5,6 3.343.000
15 95,8 92,0 87,5 8,3 3.530.120
16 92,3 87,4 81,7 10,6 3.520.102
17 73,8 79,9 73,8 0,0 3.431.171
total 97,8 95,0 88,4 9,4 43.163.330

Grupo A: Pessoas que recebem o Bolsa Escola (%)


Grupo B: Pessoas matriculadas e esperando o programa (%)
Grupo C: Pessoas que não participam do programa (%)

Fonte: IBGE, Pnad 2003, tabulação própria

Estar matriculado não significa necessariamente estar freqüen-


tando regularmente as aulas. O ano letivo no Brasil começa em fe-
vereiro, e a Pnad acontece em setembro. Nesta época, as crian-
ças matriculadas mais cedo podem já ter abandonado a escola. Em
2001, a pesquisa domiciliar incluiu um suplemento sobre o tra-
balho infantil, e perguntou quantos dias os alunos tinham faltado

Programas sociais voltados para à educação no brasil • Simon Schwartzman 121


às aulas nos últimos dois meses, e os motivos dessa ausência. Ha-
via também uma pergunta sobre se a criança participava de algum
programa social voltado à educação, sem, entretanto, distinguir os
que já estavam recebendo o benefício dos que estavam cadastra-
dos, mas ainda esperavam por ele. Dadas as semelhanças entre es-
tes dois grupos, como mostra a Tabela 2, esta distinção não parece
ser importante aqui.
A Tabela 3 mostra a distribuição dos alunos de acordo com sua
situação real na escola, nos dois meses anteriores à pesquisa. O pa-
drão geral é que, de 7 a 13 anos, cerca de 90% dos estudantes fre-
qüentem as aulas regularmente, faltando menos que cinco dias nos
dois meses, e que cerca de 8% faltem mais do que isso, com um pe-
queno percentual não freqüentando as aulas. Como foi anteriormen-
te observado, a falta à escola é maior no grupo etário mais baixo e
mais alto, antes de 7 e depois de 13. O padrão se mantém estável

Tabela 2
Porcentagem de pessoas que freqüentam a escola, por decil de renda
e participação no programa Bolsa Escola, com idade entre 6 e 15 anos

Decil
Diferença
de Grupo A Grupo B Grupo C Renda(*)
(C-A)
renda
1 98,5 95,9 87,0 11,5 30,80
2 98,9 96,2 88,8 10,0 67,13
3 98,8 96,6 91,9 6,9 100,87
4 98,6 98,0 93,5 5,1 138,83
5 98,7 97,8 94,9 3,8 182,75
6 98,1 96,6 96,7 1,3 236,60
7 98,5 97,8 96,9 1,6 308,45
8 99,0 97,0 97,8 1,2 419,29
9 99,4 98,8 98,0 1,4 621,96
10 100,0 95,9 99,4 0,6 1.302,29
total 98,7 96,7 94,1 4,6 43.163.330

Grupo A: Pessoas que recebem o Bolsa Escola (%)


Grupo B: Pessoas matriculadas e esperando o programa (%)
Grupo C: Pessoas que não participam do programa (%)

Fonte: IBGE, Pnad 2003, tabulação própria (*) renda familiar per capita por mês, em reais.

122 Sinais Sociais • maio > agosto 2006


Tabela 3
Dias de falta às aulas, nos últimos dois meses, segundo a idade

Não frequentaram
Idade Zero (%) 2 a 5 dias (%) 6 dias ou mais (%)
(%)
5 36,0 23,1 6,7 34,1
6 45,9 31,4 8,9 13,7
7 52,9 34,7 8,2 4,2
8 55,7 33,6 8,0 2,6
9 56,2 33,7 7,7 2,3
10 57,9 32,7 7,6 1,9
11 56,7 32,8 8,4 2,1
12 56,4 32,8 8,9 3,0
13 55,0 31,7 9,5 4,3
14 51,4 31,3 9,9 7,5
15 48,5 28,9 10,1 12,4
16 43,0 27,6 10,8 18,5
17 41,5 24,0 8,2 26,2

Fonte: IBGE, Pnad 2001, tabulação própria

para todos os grupos de renda, com uma variação de 1% a 3% dos


estudantes faltando mais que cinco dias de aula, dos segmentos mais
ricos aos mais pobres. A Tabela 4 mostra o efeito geral do Bolsa Es-
cola sobre a freqüência à escola: há alguma diferença na freqüência
plena para os que recebem o benefício, de cerca de 7%, e uma dife-
rença maior entre os que não a freqüentam nada de 10%. Mas é im-
possível saber se esta última diferença se deve ao fato de que os não-
matriculados não estão qualificados para recebê-lo, de acordo com
a legislação de 2001 do Bolsa Escola.
A Tabela 5 mostra as razões apresentadas pelos estudantes ou por
seus pais para a falta às aulas, nas famílias do quintil de renda mais
pobre. Os principais motivos são doenças e problemas com a esco-
la, e não questões de trabalho ou dinheiro, e não há diferenças sig-
nificativas relacionadas ao fato de o estudante participar ou não do
programa Bolsa Escola.
A análise da freqüência escolar, comparada à matrícula, mostra
que a informação sobre a matrícula, como apresentada na Tabela 1,

Programas sociais voltados para à educação no brasil • Simon Schwartzman 123


Tabela 4
Freqüência à escola, nos dois meses
anteriores à pesquisa, por participação no Bolsa Escola

Participação no Bolsa-Escola

Dias de falta sim (%) não (%)


nenhum 56,70 49,40
1a5 33,80 29,90
6 a 10 5,50 4,80
11 a 20 1,60 1,80
mais de 20 1,30 2,20
não freqüentaram 1,10 11,90

Total 100,00 100,00

Fonte: IBGE, Pnad 2001, tabulação própria.

Tabela 5
Razões para faltar às aulas (quintil de renda mais baixa)

Participação no
Bolsa Escola
Razões para faltar às aulas sim (%) não (%)
Ajudam nos afazeres domésticos 4,6 3,2
Trabalham ou procuram trabalho 4,9 6,5
Falta de transporte escolar 6,3 4,0
Falta dinheiro para as despesas escolares 0,9 1,6
(mensalidade, material etc.) 1,0 0,8
A escola é distante 1,1 0,8
Não tiveram quem os levasse 10,9 13,4
Falta de professor, greve 0,3 0,4
Dificuldade de acompanhar as aulas 46,6 42,9
Doença 10,6 12,5
Não quiseram comparecer 0,7 1,5
Os pais ou responsáveis não quiseram que comparecessem 11,9 12,3
Outros Motivos
Total 100,00 100,00

Fonte: IBGE, Pnad 2001, tabulação própria.

124 Sinais Sociais • maio > agosto 2006


corresponde à freqüência real, com um padrão de falta às aulas não
relacionado ao benefício. As principais variações na participação
escolar se devem às diferenças de idade, e poder-se-ia esperar que
o Programa Bolsa Escola estivesse focalizado nos grupos etários de
maior risco. Porém isto não acontece, como mostra a Tabela 6.
Podemos concluir que, em geral, o Bolsa Escola tem um proble-
ma sério de focalização em termos de seu impacto sobre a matrícula
escolar. Está focalizado nas crianças que menos precisam, e, se con-
siderarmos o número de crianças que ainda estão esperando pelo
benefício como um indicativo de tendência, não havia sinais, em
2003, de correção de rumo, uma vez que a maioria dos novos bene-
fícios foi para crianças de 7 a 11 anos.
Uma outra forma de se olhar para esta questão é ver se os benefi-
ciários dos programas estão matriculados em cursos regulares ou em

Tabela 6
Participação no Bolsa Escola e matrícula escolar

Idade Recebem bolsa (%) Matriculados e Fora da escola (%)


esperando (%)
5 2,00 6,00 24,20
6 2,40 8,40 10,40
7 3,00 12,30 3,60
8 5,70 14,00 1,80
9 11,70 8,90 1,40
10 12,90 8,30 1,30
11 12,80 8,30 1,20
12 12,50 7,40 1,40
13 11,90 7,20 2,80
14 10,30 6,90 5,10
15 9,10 6,20 9,20
16 4,90 4,90 14,90
17 1,00 1,30 22,60

Total 100,00 100,00 100,00

Fonte: IBGE, Pnad 2003, tabulação própria.

Programas sociais voltados para à educação no brasil • Simon Schwartzman 125


Gráfico 1
Participação no Bolsa Escola e matrícula escolar

30,0%

2,0%

20,0%

1,0%

10,0%

,0%

0,0%

 6  8  10 11 12 13 14 1 16 1
idade

participação fora da escola

outros tipos de programas educacionais. Podemos ver na Tabela 7


que a massa dos benefícios é concedida aos estudantes que freqüen-
tam a educação fundamental regular, onde a falta às aulas é menos
problemática. Muito pouco é concedido aos estudantes nos progra-
mas mais necessitados, de recuperação dos estudantes mais velhos
que abandonaram a escola e precisam de programas compensató-
rios para trazê-los de volta ao nível esperado para seus grupos de
idade. Como já sinalizamos, a legislação federal do Bolsa Escola exi-
ge que os estudantes estejam em cursos regulares, não em progra-
mas especiais de qualquer tipo. Ao examinar a última coluna da Ta-
bela 7, podemos verificar que existe uma tendência de aumentar o
auxílio às crianças na pré-escola, onde os benefícios educacionais
são incertos, dado que a maioria das pré-escolas no país são na ver-
dade creches, com pouco ou nenhum conteúdo pedagógico.

126 Sinais Sociais • maio > agosto 2006


Tabela 7
Participação no Bolsa Escola, por tipo de curso

Tipo de Curso Grupo A Grupo B Grupo C Grupo D Grupo E

Regular de 1º Grau 7.592.509 3.034.205 20.710.617 33,9 40,0


Regular de 2º Grau 301.422 152.993 8.051.030 5,3 50,8
Supletivo de 1º Grau 33.533 10.307 1.028.503 4,1 30,7
Pré-escolar 4.015 1.770 780.606 0,7 44,1
Alfabetização 340.223 462.834 5.602.562 12,5 136,0
de adultos
Total 8.273.468 3.662.109 43.489.444 21,5 44,3

Grupo A: Recebem bolsa


Grupo B: Matriculados e esperando
Grupo C: Não participam
Grupo D: Pessoas que recebem bolsa (%)
Grupo E: Crescimento esperado (%)*
Fonte: IBGE, Pnad 2003, tabulação própria.
* matriculados e esperando, como proporção dos que já recebem bolsa

Os efeitos do Bolsa Escola sobre o trabalho infantil

Supostamente, as crianças beneficiadas pelo Bolsa Escola deixam


de trabalhar, para ir à escola. A questão do trabalho infantil no Brasil
tende a ser apresentada como um problema alarmante, com milhões de
crianças pobres perambulando pelas ruas das grandes cidades pedindo
esmolas, vendendo balas ou consumindo drogas, e outras sendo
exploradas em tarefas árduas ou em trabalhos semi-escravos, na zona
rural. Um olhar cuidadoso na evidência mostra um panorama muito
diferente (Schwartzman e Schwartzman, 2004). A Pnad 2003 encontrou
cerca de 6,2 milhões de pessoas com idade de 10 a 17 anos relatando
algum tipo de trabalho, ou fazendo um esforço para procurar trabalho,
na semana anterior ou no último ano. Utilizando o conceito tradicional
de atividade econômica como “trabalhando ou procurando trabalho
na semana anterior”, o número cai para 5 milhões. Isso inclui trabalho
ocasional, trabalho para consumo próprio, e um grande número de
crianças e adolescentes trabalhando com suas famílias no campo, sem
remuneração monetária. O trabalho infantil é predominantemente rural,

Programas sociais voltados para à educação no brasil • Simon Schwartzman 127


e ocorre com maior incidência em idades mais elevadas, de 15 a 17
anos, quando muitos adolescentes já abandonaram a escola7. Trabalhar
ou não trabalhar tem algum impacto sobre a freqüência à escola, mas
não é um grande impacto, como se vê na Tabela 8. Esse impacto é
mínimo quando a criança é mais jovem e trabalha algumas horas por
dia com sua própria família em atividades rurais; e tende a ser maior
sobre adolescentes que trabalham mais horas em ambientes urbanos.

Tabela 8
Freqüência escolar, por idade e atividade econômica

% dos que freqüentam a escola

Economicamente Economicamente
Idade ativos inativos Ativo (%)
10 98,0 98,5 5,8
11 97,4 98,6 7,8
12 98,5 98,2 9,9
13 93,9 97,0 14,2
14 88,7 95,3 19,5
15 83,0 92,3 28,6
16 77,3 87,2 39,5
17 68,6 79,3 50,4

Fonte: IBGE, Pnad 2003, tabulação própria.

Há situações de óbvio abuso do trabalho infantil, que requerem


uma intervenção ativa das autoridades públicas para contê-las e para
interromper um padrão de adolescentes urbanos fora da escola, fora
do mercado de trabalho ou de qualquer outra forma de atividade or-

7
Deve-se notar que o conceito de “atividade econômica” inclui também os
desempregados, definidos como aqueles que não estão trabalhando, mas
estão ativamente procurando trabalho. A Pnad 2003 encontrou que 9,7%
da população ativa brasileira estavam desempregados; entre 15 e 17 anos,
50% estavam economicamente ativos, e, destes, 23% ou 995 mil estavam
desempregados e procurando trabalho.

128 Sinais Sociais • maio > agosto 2006


ganizada, terreno fértil para o comportamento delinqüente. Mas, em
geral, o trabalho infantil é em sua maioria associado aos padrões de
trabalho familiar, nas zonas rurais, particularmente no campo mais
próspero da Região Sul, bem como nas áreas rurais pobres da Bahia
e de outros estados do Nordeste. Nesses estados, o trabalho infan-
til faz parte de uma síndrome mais ampla de pobreza e falta de
acesso aos serviços sociais, o que também limita a capacidade das
crianças de irem à escola.
A Tabela 9 mostra a associação entre atividade econômica e Bol-
sa Escola por idade, para o grupo de 10 a 17 anos de idade (a Pnad
só coleta dados sobre ocupação a partir de 10 anos de idade, exce-
to em suplementos especiais). Em vez da esperada correlação nega-
tiva entre Bolsa Escola e trabalho, encontramos o oposto: os que re-
cebem o benefício são os que mais trabalham.

Tabela 9
Porcentagem de jovens economicamente ativos,
com idade entre 10 e 17 anos, por participação no Bolsa Escola

Matriculadas
Recebem o Bolsa Não participam do
Idade e esperando o
Escola (%) programa (%)
programa (%)
10 8,00 10,00 3,80
11 11,60 11,00 5,00
12 14,80 13,00 6,60
13 17,90 21,70 11,30
14 24,20 28,50 16,50
15 33,50 38,40 26,20
16 43,10 45,80 38,60
17 57,20 53,40 50,20

Fonte: IBGE, Pnad 2003, tabulação própria.

Isto é de se esperar, uma vez que o Bolsa Escola está focalizado


nas pessoas mais pobres, que precisam trabalhar mais do que as do
grupo de renda mais alta, especialmente depois dos 14 anos, quan-
do 24,2% dos jovens em famílias que recebem benefício já traba-

Programas sociais voltados para à educação no brasil • Simon Schwartzman 129


lham. Por outro lado, quando examinamos a relação entre Bolsa Es-
cola e atividade econômica por nível de renda familiar, efetivamente
encontramos diferenças importantes nos grupos de renda mais bai-
xa, como se vê na Tabela 10 e no gráfico 2. Ter ou não o auxílio, nos
grupos de nível de renda mais baixa, significa uma diferença de cer-
ca de 20 pontos percentuais até o quarto nível, e de cerca de 10 a 5
pontos percentuais a partir daí8. O impacto de só esperar pelo bene-
fício é mais errático, e está aberto à interpretação.

Tabela 10
Porcentagem de pessoas economicamente ativas, com idade entre 10 a
17 anos, segundo sua participação no Bolsa Escola, por grupo de renda

Total de pessoas
Decil de renda Grupo A Grupo B Grupo C
no grupo etário
1 26,7 32,6 44,9 3.695.461
2 23,4 35,2 37,8 3.629.234
3 23,4 25,0 33,7 3.518.977
4 20,2 21,5 33,0 3.032.758
5 26,9 32,9 31,8 2.792.441
6 23,7 23,8 32,3 2.196.695
7 25,3 30,3 29,4 2.176.048
8 24,8 37,3 28,6 1.942.812
9 15,0 24,0 21,1 1.665.973
10 5,6 21,6 10,6 1.459.007
total 24,0 29,3 30,2 26.109.406

Grupo A: Pessoas que recebem o Bolsa Escola (%)


Grupo B: Pessoas matriculadas e esperando o programa (%)
Grupo C: Pessoas que não participam do programa (%)
Fonte: IBGE, Pnad 2003, tabulação própria.

8
Esse resultado é consistente com uma análise de regressão que mostra que
o Bolsa-Escola é eficiente na redução do número de horas trabalhadas, em
duas horas e meia por dia nas áreas urbanas, e três horas e meia por dia, nas
rurais. Entretanto, os resultados não foram conclusivos em relação ao efeito
do benefício na decisão da família de inserir suas crianças no mercado de
trabalho. (Ferro e Kassouf, 2004)

130 Sinais Sociais • maio > agosto 2006


Gráfico 2
Porcentagem de pessoas economicamente ativas, com idade entre 
e 10 anos, segundo sua participação no Bolsa Escola por grupo de renda

0,0%

4,0%

40,0%

3,0%
economicamente ativa

30,0%

2,0%

20,0%

1,0%

10,0%

,0%

0,0%

1 2 3 4  6  8  10
decis de renda

recebem bolsa esperando não recebem

Focalização socioeconômica e as diferenças entre Estados

Em geral, os programas de Bolsa Escola são bem focalizados nos


grupos de renda mais baixa, como pode ser visto na Tabela 11. Nos
dois decis de renda mais baixa, 45% das crianças recebem o benefí-
cio, e 50% dos benefícios são destinados a esse grupo. Entretanto, há
cerca de 1,5 milhões de crianças no quinto quintil e acima, 18% do
total, que também o recebem. Isso significa que, apesar dos progra-
mas estarem em geral bem focalizados, há também distorções, que
não são apenas casos isolados.

Programas sociais voltados para à educação no brasil • Simon Schwartzman 131


Tabela 11
Crianças de 5 a 17 anos que participam
de programas do Bolsa Escola, por nível de renda familiar

Pa
rti
ci

Re
p
G

G
G
D end


ru

ru

ru
ru

nd
ec a
r

ão
po

po

po
po
il

a
%

(*
de

D
B

)
1 2.281.579 938.125 3.520.167 6.739.871 47,8 30,21
2 1.971.244 849.018 3.317.920 6.138.182 45,9 68,18
3 1.481.162 703.457 3.521.954 5.706.573 38,3 102,78
4 1.088.977 498.837 3.250.577 4.838.391 32,8 140,94
5 682.082 356.762 3.283.590 4.322.434 24,0 185,37
6 341.456 179.777 2.819.846 3.341.079 15,6 239,06
7 214.064 140.831 2.971.418 3.326.313 10,7 311,07
8 132.394 68.571 2.769.996 2.970.961 6,8 427,86
9 88.257 41.276 2.438.756 2.568.289 5,0 646,77
10 23.987 12.365 2.212.288 2.248.640 1,6 1.569,38
total 8.305.202 3.789.019 30.106.512 42.200.733 28,7 260,34

Grupo A: Recebem o Bolsa Escola


Grupo B: Matriculadas e esperando o programa
Grupo C: Não participam do programa
Grupo D: Total de pessoas no grupo etário

Fonte: IBGE, Pnad 2003, tabulação própria.


(*) Renda Familiar em R$ por pessoa por mês

Para entender a distribuição, é importante examinar as diferenças


geopolíticas. A primeira observação é que, apesar de a maioria das
famílias de baixa renda residir em áreas urbanas, o programa tem
um viés em direção ao setor rural. Dos 12,8 milhões de crianças em
famílias do quinto quintil de renda mais baixa, 35% vivem em áre-
as rurais, mas recebem 40% dos benefícios. Entre os pobres rurais,
39% recebem o benefício; entre os pobres urbanos, somente 30% o
recebem. A lógica sob esse viés não fica muito clara, mas pode estar
relacionada ao fato de que, para se candidatar a diversos programas
federais, a renda média do município deve ser mais baixa do que a
renda média do seu estado. Isso exclui as grandes áreas metropolita-

132 Sinais Sociais • maio > agosto 2006


nas, que têm rendas acima da média, mas também grandes bolsões
de pobreza, e está em oposição à noção de que a maioria dos pro-
blemas sociais brasileiros está nos cinturões urbanos de pobreza e
nas favelas. O custo de se viver no campo é menor, com oportuni-
dades de atividades não monetárias de subsistência que não existem
em ambientes urbanos, e as conseqüências de uma renda monetária
muito baixa nas áreas rurais e urbanas são bem diferentes.

Gráfico 3
Pessoas entre  e 1 anos de idade no quintil de renda mais baixa,
que recebem o Bolsa Escola, por área de residência

.000.000

8.000.000

.000.000

6.000.000

.000.000

4.000.000

3.000.000

2.000.000 recebem

1.000.000 esperando

não recebem
0.0
urbano rural

A Tabela 12 mostra a distribuição dos beneficiários por estado.


É natural que os estados mais pobres e populosos — Bahia, Minas
Gerais, Maranhão, Ceará — recebam mais benefícios. A baixa par-
ticipação dos estados do Rio de Janeiro e de São Paulo, entretanto,
merece atenção. Em parte, a situação pode ser explicada pelo fato
de que esses estados são relativamente mais ricos, e têm uma peque-
na percentagem de famílias de baixa renda. Porém, mesmo no seg-
mento de renda mais baixa, a proporção de beneficiários é menor,
como mostra a Tabela 13.
A comparação entre as colunas 1 e 2 da Tabela 12 permite-nos
ver qual direção o programa está tomando, nos diferentes estados.

Programas sociais voltados para à educação no brasil • Simon Schwartzman 133


Tabela 12
Crianças de 5 a 17 anos de idade que participam
de programas do Bolsa Escola, por Unidades da Federação

UF Grupo A Grupo B Grupo C Grupo D Grupo E


RO 37.571 21.890 227.814 287.275 13,1
AC 29.360 13.047 81.228 123.635 23,7
AM 95.844 29.970 578.927 704.741 13,6
RR 14.244 2.504 67.924 84.672 16,8
PA 251.984 172.208 862.454 1.286.646 19,6
AP 34.958 11.797 97.094 143.849 24,3
TO 100.617 21.557 213.856 336.030 29,9
MA 605.042 177.426 1.011.843 1.794.311 33,7
PI 290.225 57.535 455.712 803.472 36,1
CE 683.818 332.012 1.155.950 2.171.780 31,5
RN 220.218 85.477 476.188 781.883 28,2
PB 308.231 90.400 515.006 913.637 33,7
PE 560.550 317.140 1.200.057 2.077.747 27,0
AL 241.303 95.229 528.373 864.905 27,9
SE 120.103 16.422 360.953 497.478 24,1
BA 1.197.691 474.764 1.966.448 3.638.903 32,9
MG 925.184 508.901 2.995.469 4.429.554 20,9
ES 165.148 94.308 540.013 799.469 20,7
RJ 223.686 97.749 2.580.782 2.902.217 7,7
SP 714.572 410.486 7.356.386 8.481.444 8,4
PR 450.132 196.501 1.748.277 2.394.910 18,8
SC 137.192 89.760 1.084.498 1.311.450 10,5
RSul 342.442 254.256 1.716.442 2.313.140 14,8
MS 109.621 25.312 398.010 532.943 20,6
MT 109.239 62.737 520.926 692.902 15,8
GO 263.603 88.526 969.205 1.321.334 19,9
DF 72.624 41.105 396.677 510.406 14,2
total 8.305.202 3.789.019 30.106.512 42.200.733 19,7

Fonte: IBGE, Pnad 2003, tabulação própria.

Grupo A: Recebem o Bolsa Escola


Grupo B: Matriculadas e esperando o programa
Grupo C: Não participam do programa
Grupo D: Total de pessoas no grupo etário
Grupo E: Porcentagem dos que recebem

134 Sinais Sociais • maio > agosto 2006


Tabela 13
Nível de renda familiar dos participantes
de programas do Bolsa Escola por Unidades da Federação

UF Grupo A Grupo B Grupo C razão C/A razão B/A Grupo D


RO 141,40 110,33 282,57 2,00 1,08 17,2
AC 119,26 115,34 376,24 3,15 0,97 34,1
AM 110,37 136,00 229,11 2,08 1,23 19,4
RR 187,48 115,89 315,61 1,68 0,62 21,7
PA 125,83 132,73 236,79 1,88 1,05 24,5
AP 96,29 115,47 252,50 2,62 1,20 34,2
TO 113,58 113,34 237,48 2,09 1,00 36,0
MA 92,57 94,37 164,97 1,78 1,02 38,0
PI 83,76 96,27 198,39 2,37 1,15 41,6
CE 92,28 97,48 194,62 2,11 1,06 37,2
RN 93,49 106,91 222,15 2,38 1,14 35,2
PB 99,96 98,91 216,43 2,17 0,99 41,2
PE 83,54 87,44 201,68 2,41 1,05 34,4
AL 78,57 85,71 165,45 2,11 1,09 33,0
SE 81,72 106,39 219,22 2,68 1,30 33,8
BA 83,71 99,98 196,48 2,35 1,19 40,3
MG 113,80 125,82 306,40 2,69 1,11 35,8
ES 114,54 111,70 331,44 2,89 0,98 33,7
RJ 193,04 121,52 367,43 1,90 0,63 15,3
SP 154,73 160,16 399,31 2,58 1,04 17,6
PR 129,80 135,17 377,16 2,91 1,04 37,5
SC 156,87 187,94 424,06 2,70 1,20 29,6
RSul 132,20 128,86 392,87 2,97 0,97 29,8
MS 130,15 107,13 315,81 2,43 0,82 33,2
MT 139,70 128,19 293,25 2,10 0,92 22,3
GO 126,45 128,19 315,32 2,49 1,04 34,0
DF 151,71 110,77 599,81 3,95 0,73 28,9
total 110,33 118,51 599,81 2,90 1,07 33,0

Grupo A: Recebem o Bolsa Escola


Grupo B: Matriculadas e esperando o programa
Grupo C: Não participam do programa
Grupo D: Pessoas que recebe no quintil inferior de baixa (%)
Fonte: IBGE, Pnad 2003, tabulação própria.

Programas sociais voltados para à educação no brasil • Simon Schwartzman 135


Serão os futuros beneficiários mais pobres, tão pobres ou menos po-
bres do que os atuais participantes? A tendência geral é de que os re-
cém-chegados tenham um nível de renda ligeiramente superior, mas
há grandes diferenças entre os estados. O programa está se focalizan-
do mais no Rio de Janeiro, no Distrito Federal e no Mato Grosso do Sul.
Os estados menos focalizados são Amapá, Bahia e Santa Catarina.
É impossível entender essas diferenças e tendências simplesmen-
te examinando os dados; é necessário verificar o que está realmente
acontecendo, nos diferentes estados. No caso do Rio de Janeiro, pa-
rece claro que um número significativo de beneficiários estava rece-
bendo auxílio não de programas do governo federal, mas do gover-
no estadual, através de um programa chamado Cheque Cidadão. De
acordo com fontes estaduais, esse programa atendeu cerca de 100
mil famílias em 2004, e exigia que todas as crianças abaixo de 14
anos estivessem na escola. O uso político desse programa estadual
para propósitos eleitorais tornou-se notório em 2004, nas eleições
municipais. O estado de São Paulo também tem seu próprio progra-
ma de auxílio monetário, o Renda Cidadã. Poder-se-ia esperar que o
programa federal fosse mais consistente nacionalmente, mas ele so-
fre de uma grave limitação, a falta de um cadastro nacional adequa-
do das famílias de baixa renda.
O viés rural observado no Bolsa Escola se torna mais evidente
quando olhamos para as principais concentrações urbanas, as prin-
cipais regiões metropolitanas brasileiras. As Tabelas 14 e 15 mos-
tram que a cobertura do programa nas áreas metropolitanas é consi-
deravelmente menor que no campo como um todo, especialmente
no quintil de renda mais baixa, com cobertura de 22,6%, em con-
traste com os 33% de média nacional.

Conclusões e implicações de políticas públicas

Nossa análise mostra que os programas de Bolsa Escola estão


razoavelmente bem focalizados nas famílias de renda mais baixa,
apesar de um viés contra as áreas urbanas pobres, de algumas
distorções regionais e do fato de que, em 2003, dos 8,3 milhões de
crianças de famílias que recebiam o benefício, 1,5 milhões, ou 17%,
estavam no grupo de 50% de renda mais elevada da população. Por

136 Sinais Sociais • maio > agosto 2006


Tabela 14
Crianças de 5 a 17 anos de idade que participam
de programas do Bolsa Escola, por Área Metropolitana

Área
Metropolitana Grupo A Grupo B Grupo C Total Grupo D
Belém
65.124 38.071 317.040 420.235 15,50
Fortaleza
201.045 148.195 473.542 822.782 24,43
Recife
137.097 135.428 512.159 784.684 17,47
Salvador
167.847 107.627 463.128 738.602 22,72
Belo Horizonte
153.382 109.879 779.098 1.042.359 14,71
Rio de Janeiro
128.368 61.160 1.906.775 2.096.303 6,12
São Paulo
344.382 212.592 3.447.195 4.004.169 8,60
Curitiba
67.418 37.286 590.562 695.266 9,70
Rio Grande
68.044 64.967 700.548 833.559 8,16
do Sul
72.624 41.105 396.677 510.406 14,23
Brasília
total 1.405.331 956.310 9.586.724 11.948.365 11,76

Grupo A: Recebem o Bolsa Escola


Grupo B: Matriculadas e esperando o programa
Grupo C: Não participam do programa
Grupo D: Porcentagem dos que recebem

Fonte:IBGE, Pnad 2003, tabulação própria.

outro lado, vimos que os programas estão em geral mal focalizados


como instrumento de política educacional, uma vez que a maior
parte dos benefícios é concedida a famílias que de qualquer ma-
neira manteriam os filhos na escola9. O absenteísmo escolar torna-
se um problema importante no Brasil aos 14 anos de idade, quando
os adolescentes começam a abandonar a escola em grande número.

9
Em sua análise de regressão, Cardoso e Souza concluem que o Bolsa-Escola
tem um impacto significativo sobre a freqüência à escola, mas nenhum
impacto perceptível sobre a redução do trabalho infantil. Eles concluíram que
“enquanto 95% das crianças freqüentam a escola no grupo de tratamento,
92% a freqüentam no grupo de controle. O efeito médio de tratamento é
de três pontos percentuais na freqüência à escola entre as crianças e o efeito
é altamente significativo. Considerando que no grupo de comparação há

Programas sociais voltados para à educação no brasil • Simon Schwartzman 137


Tabela 15
Nível de renda familiar dos participantes de programas do Bolsa Escola

Área
Metropolitana Grupo A Grupo B Grupo C Total Grupo D
Recife
65.124 38.071 317.040 420.235 15,50
Salvador
201.045 148.195 473.542 822.782 24,43
Fortaleza
137.097 135.428 512.159 784.684 17,47
Belo Horizonte
167.847 107.627 463.128 738.602 22,72
Belém
153.382 109.879 779.098 1.042.359 14,71
Rio Grande
128.368 61.160 1.906.775 2.096.303 6,12
do Sul
344.382 212.592 3.447.195 4.004.169 8,60
Brasília
67.418 37.286 590.562 695.266 9,70
Curitiba
68.044 64.967 700.548 833.559 8,16
São Paulo
72.624 41.105 396.677 510.406 14,23
Rio de Janeiro
total 1.405.331 956.310 9.586.724 11.948.365 11,76

Grupo A: Recebem o Bolsa Escola


Grupo B: Matriculadas e esperando o programa
Grupo C: Não participam do programa
Grupo D: Porcentagem dos que recebem

Fonte:IBGE, Pnad 2003, tabulação própria.

No entanto, a legislação que criou o programa federal do Bolsa


Escola, em 2001, estabelece explicitamente que os benefícios
devem ser concedidos somente às famílias com filhos entre 6 e 15
anos de idade, que estejam freqüentando cursos regulares. Em outras
palavras, excluíram-se dois grupos: o de crianças mais velhas e o
daqueles que já abandonaram a escola, incluindo os que freqüentam
cursos supletivos ou programas especiais de recuperação (cursos
supletivos ou de educação de jovens e adultos).

somente 8% de crianças fora da escola, uma mudança de 3 pontos percentuais


é um grande efeito” (Cardoso e Souza, 2003). Na Tabela 2, vimos que 98,5%
das crianças que recebem o benefício do Bolsa Escola estavam matriculadas
em escolas, contra 94,1% que não estavam matriculadas, uma diferença de
4,6%. Esses 4,6% significam que o Bolsa Escola poderia estar mantendo 1,4

138 Sinais Sociais • maio > agosto 2006


O Bolsa Escola baseia-se em um pressuposto errado, ou seja, que
a razão para a falta de educação das crianças de baixa renda é que
elas não vão à escola porque precisam trabalhar. Na realidade, mi-
lhões de crianças de baixa renda vão à escola todos os dias, mes-
mo quando trabalham. Quando não vão, geralmente não é porque
precisam trabalhar, mas porque a escola não é acessível, não fun-
ciona como deveria, ou porque são incapazes de aprender, e desis-
tem porque se tornam marginalizadas e atingem uma idade quando
já podem começar a trabalhar, e são menos dependentes do contro-
le dos pais. Mesmo que um subsídio, combinado com algum tipo de
controle social e programas motivacionais, possa induzir a família a
manter os filhos na escola, não há garantia de que aprendam, se a
escola não está preparada para lidar com crianças provenientes de
famílias economicamente e culturalmente carentes. A análise dos re-
sultados do Sistema de Avaliação da Educação Básica — Saeb, bem
como avaliações comparativas internacionais, mostram que a corre-
lação entre as condições socioeconômicas da família e o desempe-
nho dos alunos é extremamente alta no Brasil. Tal fato é indicativo
de que as escolas não estão preparadas e equipadas para lidar com
estudantes que chegam sem o “capital cultural” associado aos am-
bientes de famílias de média e alta renda (OECD, 2001; Oliveira e
Schwartzman, 2002; Oliveira, 2004; Soares, 2004).
Mesmo que o Bolsa Escola esteja induzindo um pequeno grupo
de crianças a irem à escola, isto não justifica transformá-lo na inicia-
tiva mais importante da política educacional do país. Do ponto de
vista educacional, o melhor uso para os bilhões de reais atualmente
gastos com esse tipo de programa seria investir na melhoria da qua-
lidade da educação pública brasileira, e em programas de recupera-
ção para adolescentes que tivessem abandonado a escola recente-
mente, e ainda pudessem ser trazidos de volta.

milhões de crianças na escola, supondo que essa seja a única diferença entre
os dois grupos. No entanto, se considerarmos que somente estar matriculado
sem receber benefício também aumenta a matrícula em 2,6%, o provável
efeito do Bolsa Escola parece não ser maior que 2%, ou 600 mil matrículas
adicionais, para cerca de 8,4 milhões que recebem bolsas.

Programas sociais voltados para à educação no brasil • Simon Schwartzman 139


Na década de 1990, o governo brasileiro, com o forte apoio do
Banco Mundial, investiu pesadamente em um programa chamado
Fundescola, que deveria melhorar a qualidade das escolas brasilei-
ras em áreas rurais e nos estados pobres. O investimento total no pro-
grama, previsto pelo Banco Mundial, deveria ser de cerca de US$
1,3 bilhões, em um período de dez anos, a começar em 1998 (Horn,
2002). Atualmente existe uma clara mudança de ênfase, tanto no
Brasil como nas agências internacionais, dando preferência aos pro-
gramas de transferência monetária, associados a fortalecimento, or-
ganização e mobilização da sociedade. Só é possível especular os
motivos desse deslocamento; uma possibilidade é frustração com a
ausência de efeitos tangíveis do Fundescola e de programas simila-
res, depois de vários anos de trabalho e investimentos significativos.
Mais amplamente, a mudança poderia ser explicada pelo crescente
ceticismo sobre a capacidade das instituições públicas de se desen-
volver, e na crença renovada nas virtudes da “sociedade civil”, que
está disseminada entre as organizações não-governamentais e insti-
tuições de todo tipo, à esquerda e à direita do espectro ideológico10.
Uma terceira explicação é que melhorar a escola é notoriamente di-
fícil de implementar, carregado de controvérsias e difícil de avaliar,
enquanto transferências monetárias para os pobres é mais simples
de entender e mais fácil de medir.
Por outro lado, o Bolsa Escola e seu sucessor, o Bolsa Família,
poderiam ser justificados como políticas de redistribuição de ren-
da. O Brasil tem um dos piores perfis de distribuição de renda no
mundo, e levaria muito tempo esperar a economia crescer, para
que a população tivesse mais educação, e para que todos começas-
sem a ganhar um salário decente. Isso não significa que a pobre-
za poderia ser reduzida significativamente com esse nível de sub-
sídios, como qualquer cálculo elementar pode mostrar. Em 2003,
havia 5,3 milhões de famílias no Brasil informando uma renda fa-
miliar per capita de US$ 2 por dia (cerca de R$ 60,00/mês) ou me-
nos, com uma renda média de R$ 40,1/mês. Supondo que todas es-
sas famílias recebessem R$ 45,00 por mês como benefício para três

Este tema é discutido mais extensivamente em (Schwartzman, 2004b),


10

capítulo 10.

140 Sinais Sociais • maio > agosto 2006


crianças, isso significaria R$ 10,00 adicionais per capita, elevando
a média para R$ 50,00 — ainda abaixo da linha de pobreza de US$
2 por dia. Além disso, considera-se que os benefícios existentes já
estão incluídos na estimativa da renda familiar per capita11.
As políticas de distribuição de renda estão imersas em fortes dis-
putas ideológicas, remanescentes da velha noção malthusiana de
que o bem-estar social estimula a preguiça e os hábitos negligentes,
e está presente no conhecido debate americano sobre os efeitos mo-
rais do Programa de Auxílio às Famílias com Crianças Dependentes
(Aid to Families with Dependent Children Program — AFDC) (Jen-
cks, 1993). O programa Bolsa Família parece inscrever-se nesse viés
conservador, já que requer a existência de algum tipo de condicio-
nalidade ou reciprocidade por parte dos beneficiários, em termos
de freqüência à escola para as crianças, ou presença em postos de
saúde pública para mulheres grávidas, ou exigindo que as pessoas
comam uma dieta balanceada, como no início do programa Fome
Zero. Existe uma discussão contínua sobre como estas condicionais
devem ser implementadas — através de agências públicas ou atra-
vés de conselhos especiais de controle social, estabelecidos fora das
agências e instituições existentes. O governo federal é incapaz de
supervisionar nacionalmente o comportamento das famílias pobres;
as prefeituras, por sua vez, são ineficientes, ou comprometidas com
elites locais, ou as duas coisas. As comunidades e organizações co-
munitárias são presas fáceis dos partidos e movimentos políticos, e
desenvolvem suas próprias burocracias e grupos de interesse, espe-
cialmente quando lidam com dinheiro público.
É possível argumentar, assim, que seria melhor se os programas
de renda mínima fossem concedidos incondicionalmente. No Bra-
sil, pessoas idosas no campo recebem há anos uma aposentadoria
de um salário mínimo (três vezes mais do que o Bolsa Família), inde-

11
Isto é consistente com a conclusão de Bourguignon, Ferreira e Leite, em sua
sofisticada análise econométrica ex-ante do Bolsa-Escola, de que este pro-
grama tem um “impacto nulo sobre a redução dos níveis atuais de pobreza
e desigualdade”. No entanto, não podemos confirmar sua outra conclusão,
de que há “um efeito surpreendentemente forte das condicionalidades sobre
a freqüência escolar” (Bourguignon, Ferreira et al., 2002).

Programas sociais voltados para à educação no brasil • Simon Schwartzman 141


pendentemente de terem ou não contribuído para a Previdência, e
ninguém diz que isso é um programa social injustificado ou moral-
mente perverso. No entanto, famílias pobres sem crianças pequenas
parecem não ter direito ao mesmo tratamento. Um dos líderes das
propostas de políticas de renda mínima no Brasil, o Senador Edu-
ardo Suplicy, tem defendido que tais políticas devem ser realmente
universais, sem nenhum tipo de teste ou outras tentativas de conven-
cer ou coagir pessoas a fazer alguma coisa (Suplicy, 2002). Um pro-
grama universal desse tipo redundaria necessariamente em benefí-
cios para os mais pobres, livre das complicações burocráticas e das
influências e perversões que tendem a ser associadas a todo tipo de
distribuição de benefícios sob controle de políticos, burocratas e or-
ganizações não-governamentais. Uma política de renda mínima re-
almente universal, como a proposta, seria muito dispendiosa nesse
momento, mas o princípio do auxílio incondicional poderia ser apli-
cado aos programas existentes.
Em resumo, a melhor maneira de melhorar a educação dos po-
bres é melhorar as escolas, e torná-las mais capazes de lidar com
crianças provenientes de famílias carentes; e a melhor maneira de
usar as transferências monetárias para reduzir a desigualdade é fazer
da forma mais simples e direta, sem tentar controlar o comportamen-
to dos beneficiários, e sem permitir que os programas de renda mí-
nima sejam utilizados por antigos ou novos grupos políticos em prol
de seus próprios objetivos.
Uma consideração final sobre o papel da pesquisa empírica ava-
liar as políticas sociais e justificar sua existência se faz. O Bolsa Es-
cola tem sido apresentado como pertencendo a uma nova geração
de políticas sociais, fortemente baseado em pesquisa, e cuidadosa-
mente monitorado em sua implementação. Na realidade, a evidên-
cia empírica que lhe serve de suporte é superficial e controversa.
Não há mecanismos de avaliação integrados ao programa, e análi-
ses indiretas, tais como as apresentadas neste artigo, levantam sérias
dúvidas sobre seus pressupostos e impacto real. O uso de pesquisa
como justificativa retórica para políticas não é o mesmo que efetiva-
mente usá-la para identificar as melhores formas de fazer, e para fa-
zer as necessárias mudanças e ajustes, quando apropriado.

•••

142 Sinais Sociais • maio > agosto 2006


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144 Sinais Sociais • maio > agosto 2006


LEREIS COMO DEUSES
A TENTAÇÃO DA PROPOSTA CONSTRUTIVISTA
João Batista Araujo e Oliveira
O autor é Ph.D em Educação e autor do ABC do Alfabetizador e Alfabetização de
crianças e adultos: Novos Parâmetros.

O presente artigo levanta a polêmica sobre os métodos de aprendizagem


no processo de alfabetização. Este debate se concentra nos argumentos
defendidos pelos métodos construtivista e fônico de leitura. Segundo o
autor, este é um campo minado no Brasil, pois a ideologia não permite
que as pessoas participem de um debate racional. Na primeira parte do
artigo, o autor defende o fato de que — no contexto internacional — este
debate foi superado pela supremacia na eficácia do método fônico nas
últimas duas décadas. No Brasil, o caráter ideológico da discussão possui
duas conseqüências: em primeiro lugar, o silêncio dos intelectuais ante
as abundantes e robustas evidências. Em segundo lugar, na aplicação de
etiquetas de que a proposta construtivista seria “progressista” versus um
suposto “tradicionalismo reacionário” pedagógico do sistema fônico. O
resultado final deste debate no Brasil — extemporâneo e ideologizado
— tem como resultado um sistema educacional atrasado e que é uma das
causas dos magros desempenhos dos alunos brasileiros quando comparados
com os alunos de outras nações.

146 Sinais Sociais • maio > agosto 2006


Alfabetização: o que funciona e o que não funciona

I - Um campo minado: as advertências de Marilyn Adams

Marilyn Adams é a cientista mais citada na comunidade cientí-


fica internacional, quando se trata de alfabetização. Ressalto cinco
itens de nosso primeiro encontro, no café ao lado da estação de Me-
trô Alewife, em Boston:
•  Logo após nos apresentarmos, perguntou-me: “Quantos
sons tem a palavra cat? (gato, em inglês). Pensei estar falando com
uma professora de jardim de infância, até captar, momentos de-
pois, a importância da pergunta. A resposta correta é: a palavra
cat tem três sons: /k/ /a/ /t/.
•  Contou-me, a seguir, um episódio de sua vida profissional.
Marilyn fora designada pelo Laboratório de Leitura da Universidade
de Illinois para chefiar relatório sobre alfabetização encomendado
pelo Congresso norte-americano. Um dia, seu chefe, o Dr. David Pe-
arson, entra em seu escritório e lhe pergunta: - Marilyn, que confu-
são é essa que você está causando com seu relatório, que até parece
que o mundo vai se tornar um caos? Ao que ela respondeu:
-  É tudo muito simples, chefe. Para o establishment acadêmico
de nosso país, dizer que a palavra cat tem três sons é politicamen-
te incorreto. No mesmo instante, o chefe se apercebeu do porquê
de tanta celeuma, pois quase sempre as pessoas preferem a aco-

Lereis como deuses • João Batista Araujo e Oliveira 147


modação e não a ousadia de uma nova visão, embora esta possa
transformar e fazer a evolução.
•  Também me disse que, durante muitos anos, em conseqüência
de seus trabalhos, foi considerada persona non grata pela Internatio-
nal Reading Association (IRA). IRA é uma instituição que reúne aca-
dêmicos e profissionais da área de leitura e que, durante duas déca-
das, sustentou e ajudou a consolidar a hegemonia do pensamento
construtivista sobre alfabetização em diversos países. Finalmente,
a ideologia cedeu à razão e o trabalho de Marilyn acabou sendo
reconhecido pela IRA, que hoje advoga os princípios científicos
da neurociência e da psicologia cognitiva como base para propos-
tas de alfabetização.
•  Respondendo a uma pergunta minha sobre especialistas brasi-
leiros na área, citou o Professor Fernando Capovilla, um dos poucos
brasileiros que contribuem regularmente com publicações sobre alfa-
betização e que circulam na comunidade acadêmica internacional1.
•  E me alertou: se você for levantar essa questão no Brasil, pre-
pare-se para perder amigos. O campo é minado, a ideologia não
permite que as pessoas participem de um debate racional.

Anotações do caderno de campo

• Nos últimos três anos tenho proferido palestras a grupos de pro-


fessores, pedagogos e secretários de educação em todo o país. Tal-
vez tenha proferido mais de 100 palestras para públicos que variam
entre 100 e 600 pessoas — incluindo capitais e cidades do interior,
próximas e longínquas. Normalmente, aplico um questionário an-
tes de começar a falar, no qual a primeira pergunta é sempre: assina-
le qual é o Sistema de Escrita da Língua Portuguesa. Há seis opções,
mas apenas uma resposta é a correta. Impressionam-me três fatos.
Primeiro: nunca obtive mais de 40% de respostas corretas. Segundo:
em nenhum caso, mesmo quando as pessoas se professam fervoro-
samente a favor de uma determinada visão pedagógica, não há uma

1
Posteriormente identifiquei outros brasileiros que participam ativamente
com suas publicações em periódicos internacionais, como por exemplo,
Cláudia Cardoso-Martins e Leonor Scliar-Cabral.

148 Sinais Sociais • maio > agosto 2006


resposta predominante, ou seja, não erram sequer de forma sistemá-
tica. Terceiro: o número de respostas “não sei” é praticamente inexis-
tente. Fica o registro: as pessoas que decidem sobre políticas e práti-
cas de alfabetização, e que são estimuladas a inventar materiais para
alfabetizar e ajudar os alunos a “construir conhecimentos”, não sa-
bem sequer qual o Sistema de Escrita da língua de seu país.
•  Analisando os dados para a elaboração do livro A escola vis-
ta por dentro (Oliveira e Schwartzman, 2002), um fato nos cha-
mou a atenção: mais de 80% dos professores alfabetizadores de-
claram não ter recebido formação como alfabetizadores, mas se
julgam bem equipados para alfabetizar e não vêem relação entre
seu (des)preparo e o pífio desempenho de seus alunos.
•  Resposta de um Secretário Estadual de Educação a um ques-
tionário enviado pela Comissão de Educação da Câmara dos De-
putados à pergunta sobre quando a Secretaria considera que o alu-
no deve ser alfabetizado: “Não importa quando o aluno esteja
alfabetizado; a alfabetização é um processo permanente”. Esta res-
posta, evidentemente, é absurda, mas verdadeira, embora tal Se-
cretário nunca tenha sido indiciado ou preso por abuso a menores.
E nem poderia sê-lo, pois os PCNs suportam esse tipo de afirma-
ção, ao confundir o processo da alfabetização com o seu objetivo,
que é a compreensão.

O que funciona: o peso da evidência científica

•  A ciência possui regras para validar afirmações científicas. Par-


tindo de teorias, o pesquisador formula hipóteses, que são testadas
e podem ser verificadas ou não. Se verificadas, podem confirmar ou
modificar a teoria. Se não verificadas, freqüentemente requerem no-
vas teorias. E há casos de hipóteses formuladas e testadas sem teo-
ria, mas o caminho é o mesmo (Gazzaniga e Heatherton, 2004, pp.
63-65). Os resultados das pesquisas são publicados em revistas cien-
tíficas, após analisados de forma independente e anônima por pes-
quisadores da área — os comitês de pares. A reputação das revistas
decorre do rigor exercido na análise. Normalmente, a porcentagem
de artigos aceita para publicação está fortemente relacionada com
o rigor e, conseqüentemente, com o status científico da revista. Um

Lereis como deuses • João Batista Araujo e Oliveira 149


critério básico para a publicação de artigos nessas revistas é a com-
petente e exaustiva revisão da literatura, ou seja, um pesquisador é
obrigado, profissionalmente, a recuperar a tradição de sua área e
apresentar suas teorias e hipóteses dentro do quadro do paradigma
ou paradigmas dominantes.
•  Qual o paradigma dominante nessa área? Existem evidências
que suportam as propostas construtivas para a alfabetização? Uma
breve sinopse da trajetória dos principais estudos e revisões de
estudos sobre alfabetização, ao longo dos últimos vinte anos,
pode ser esclarecedora:
-  1983. A publicação do relatório A Nation at Risk (NCEE, 1983)
provoca uma nova onda de reformas educativas nos Estados Uni-
dos. O espetacular fracasso da alfabetização de base construti-
vista implementado no estado da Califórnia levou o Congresso
Americano a tomar iniciativas que incluem a encomenda de revi-
sões da literatura científica e avaliações de desempenho dos alu-
nos em leitura e escrita.
-  1990. Jeanne Chall, que na década de 60 suscitara um debate
sobre alfabetização, conhecido como o “Great Debate”, retomou
o tema e já sai afirmando no prefácio: “Dada a maneira como a
língua e a leitura são adquiridas, a fase inicial (da alfabetização)
deve enfatizar o reconhecimento de palavras e a decodificação, e
apenas mais tarde deve enfatizar questões de linguagem e sentido
das palavras.” (Chall, Jacobs e Baldwin, 1990,p. x).
-  1990. Adams publica Beginning to Read (Adams, 1990), que
é uma versão mais elaborada do relatório apresentado pelo Re-
ading Research and Education Center da Universidade de Illi-
nois ao Congresso Norte-Americano. Esse livro é reconhecido
internacionalmente como o trabalho mais importante na área
publicado nos últimos trinta anos e, por isso mesmo, é o mais
citado. Prevendo reações negativas ao livro, o autor do prefá-
cio adverte: “Advogados do construtivismo (conhecido como
‘whole language’ nos países de língua inglesa) ficarão desa-
pontados com a insistência de Adams ao fato de que o sistema
alfabético (sons-símbolos) deve ser ensinado cedo, e de forma
explícita. Ficarão alarmados com suas recomendações sobre
treinamento da consciência fonológica como item central a ser

150 Sinais Sociais • maio > agosto 2006


ensinado no início de um Programa de Alfabetização.” (p. vii).
-  1994. José Morais, um dos mais atuantes pesquisadores no
campo da Ciência Cognitiva da Leitura, publica na França o livro
L’art de Lire, logo traduzido para o Português (Morais, 1995). Tra-
ta-se não apenas de uma síntese do estado-da-arte à época, mas
de uma denúncia bem-humorada às idéias equivocadas que esta-
vam contribuindo para comprometer a eficácia do ensino da lei-
tura e da escrita na Europa.
-  1997. Diane McGuinness publica o livro Why Our Children
Can’t Read and What We Can Do about It (McGuiness, 1997),
com o provocativo subtítulo: A scientific revolution in reading.
O insuspeito psicólogo cognitivo e criativo pesquisador Steven
Pinker, autor de importantes obras de divulgação, como How
Mind Works e The Blank Slate, prefacia elogiosamente o livro. A
autora volta à carga com uma revisão dos estudos empíricos so-
bre alfabetização (2004) e das teorias (2005) subjacentes.
-  1998. O Conselho Nacional de Pesquisas dos Estados Unidos
publica o relatório de um grupo de trabalho sobre prevenção de
dificuldades de leitura intitulado Preventing Reading Difficulties
in Young Children (Snow, Burns & Griffin, 1998). No sumário exe-
cutivo da publicação lemos à página 5 que “crianças que expe-
rimentam dificuldades de leitura na escola primária são aquelas
que começam com menos conhecimentos e habilidades nos do-
mínios relevantes, especialmente habilidades verbais, capacida-
de de prestar atenção aos sons da língua como algo diferente de
seu sentido, familiaridade com os objetivos e mecanismos bási-
cos da leitura e conhecimento do alfabeto”. E na página seguin-
te o relatório recomenda o uso de “ensino explícito para direcio-
nar a atenção da criança para a estrutura sonora da linguagem
oral e para as conexões entre os sons da fala e as letras que os re-
presentam...” (op. cit. p. 6) e conclui: “Embora o contexto e as
ilustrações possam ser usados como instrumentos para monito-
rar a capacidade de reconhecer palavras, as crianças não devem
ser ensinadas a usá-los como substitutos para obter informação a
partir das letras que formam a palavra.” (op. cit. p. 7)
-  1999. Jane Oakhill e Roger Beard (Oakhill e Beard, 1999) publi-
cam, na Inglaterra, uma coletânea de estudos acadêmicos sobre os

Lereis como deuses • João Batista Araujo e Oliveira 151


avanços da pesquisa científica sobre alfabetização. Diferentemen-
te dos relatórios e estudos de governo supracitados, que são obje-
to de concessões e compromissos entre os participantes dos gru-
pos responsáveis por sua elaboração, o livro de Oakhill e Beard
é eminentemente acadêmico e, portanto, apresenta uma revisão
atualizada das descobertas científicas, sem nenhuma concessão a
doutrinas e ideologias que ainda predominam, mesmo no seio da
comunidade de alfabetizadores e de alguns pesquisadores de seu
país. Perseguindo essa mesma veia científico-experimental, Johns-
ton e Watson (2005) publicam resultados de um estudo longitudi-
nal de sete anos, realizado no país de Gales, no qual corroboram
a superioridade dos programas de alfabetização que utilizam mé-
todos fônicos sintéticos, que vêm sendo recomendados pelas au-
toridades da Inglaterra, da Irlanda e do País de Gales.
-  2000. O Ministério da Saúde e Serviços Humanos dos Esta-
dos Unidos publica o relatório do National Reading Panel, com
o subtítulo “Uma avaliação baseada em evidência da literatura
científica sobre leitura e suas implicações para a alfabetização”
(NICHHD, 2000). Esta é a maior revisão da literatura sobre alfa-
betização já empreendida, e as conclusões são apresentadas de
forma inequívoca, já no Sumário: quatro quintos do livro refe-
rem-se ao ensino do alfabeto: consciência fonêmica, decodifica-
ção e desenvolvimento da fluência (op. cit. p.v).
-  2000. É publicada a obra póstuma de Jeanne S. Chall, The Aca-
demic Achievement Challenge (Chall, 2000), no qual a autora re-
afirma, com base em sólidas evidências, a importância de uma
alfabetização com base científica. E na parte dedicada à revisão
de métodos de alfabetização, sua conclusão é peremptória: “En-
sino sistemático usando métodos fônicos leva a melhores resulta-
dos” (op. cit. p. 182).
-  2003. A Universidade de Rennes publica o livro L´Apprentissage
de La Lecture — Perspectives Comparatives, no qual se pode
verificar a convergência de estudiosos de diferentes culturas sob o
paradigma da Ciência Cognitiva da Leitura (Romdhane, Gombert
e Belajouza, 2003).
-  2005. O Centro Patronal do Cantão de Vaud, na Suíça (Wetts-
tein-Badour et alia, 1995) publica o livro Apprendre à lire et à écri-

152 Sinais Sociais • maio > agosto 2006


re e faz um balanço da devastação causada no desempenho dos
alunos dos cantões francófones da Suíça pela introdução de idéias
construtivistas sobre alfabetização e aprendizagem da leitura.
-  Uma análise dos periódicos mais conceituados, nos quais se pu-
blicam artigos referentes à alfabetização2, deixa claro que os pa-
radigmas predominantes na área são os paradigmas derivados da
neurociência e da psicologia cognitiva, tais como os paradigmas
conexionistas e de processamento de informações. O chamado
“paradigma construtivista” e a “psicogênese da escrita” —aclama-
dos como grande novidade pelos PCNs no Brasil, não são consi-
derados como atualizados ou adequados.
-  Todos esses estudos se baseiam, de uma forma ou de outra,
nos avanços científicos possibilitados pela neurociência, funda-
mentados nos estudos seminais de Sperry (1963, 1983), poste-
riormente desenvolvidos com o uso de técnicas de imagística ce-
rebral, aprimoradas na década de 90, e que demonstram como o
cérebro funciona e aprende a ler.

Fazendo a alfabetização funcionar na sala de aula:


políticas e práticas de sucesso

Depois de quase duas décadas da controvérsia que se seguiu à


publicação do “Great Debate”, e depois de forte degradação no de-
sempenho dos alunos em leitura e escrita, que foi comprovadamen-
te associada à utilização de métodos globais e outros de inspiração
construtivista, autoridades de vários países encontravam-se diante
de um dilema: seguir orientações muito difundidas e populares, mas
que estavam contribuindo para piorar o desempenho dos alunos ou
adotar as recomendações fundamentadas em conhecimentos cientí-
ficos e que preconizam o uso de métodos de alfabetização compro-
vadamente eficazes, ainda que não gozassem de tanta popularida-

2
Applied Psycholinguistics, British Journal of Educational Psychology, Cog-
nition, Cognitive Psychology, Developmental Psychology, Journal of Edu-
ational Psychology, Journal of Memory and Language, Journal of Research
on Reading, Reading Research Quarterly, Scientific Studies of Reading.

Lereis como deuses • João Batista Araujo e Oliveira 153


de entre os setores ditos “progressistas” da comunidade acadêmica e
profissional. Essa tomada de posição foi reforçada pelo fato de que,
se, até por volta de 1990, a oposição a essas idéias populares pode-
ria se dar apenas com argumentos baseados no bom senso, a partir
de então o peso da evidência científica já não permitia mais aos go-
vernos dar-se ao luxo — ou à irresponsabilidade — de pactuar com
idéias equivocadas sobre alfabetização. Alguns exemplos:
•  Na Inglaterra, dada a gravidade da situação da alfabetização, o
governo lançou uma ofensiva denominada National Literacy Strate-
gy, com vários aspectos do programa, tendo caráter compulsório.
•  Nos Estados Unidos, um dos dois maiores sindicatos de pro-
fessores daquele país, a American Federation of Teachers (American
Educator, 1998) toma posição a favor de uma abordagem científica
para a alfabetização e para pressionar os Distritos Escolares (nome
pelo qual são conhecidas as Secretarias de Educação naquele país)
e Universidades a atualizarem seus programas de alfabetização e de
formação de professores. A partir do ano 2000, o governo federal
promulga o Reading First Act, que incorpora as recomendações do
National Reading Panel.
•  Na França, o governo revê seus programas de ensino, espe-
cialmente os seus programas de alfabetização, com base nas novas
evidências. Em 2002, o Ministério Nacional da Educação daquele
país promulga os Novos Programas de Ensino, calcados na evidên-
cia científica atualizada sobre o tema, compilada por uma comis-
são internacional de cientistas reunidos sob a égide do Observatório
Nacional de Leitura daquele país. Entre outras recomendações, en-
contram-se a proscrição dos métodos globais e a adoção de manu-
ais escolares (cartilhas), cuja avaliação passaria a ser baseada em ri-
gorosos critérios científicos3.
•  Depois de anos de desacertos no ensino da língua francesa, a
Suíça se envergonha de ter obtido o 17º. lugar no Pisa, com uma mé-

3
Na França, embora tenha havido uma condenação peremptória dos mé-
todos globais e a recomendação explícita da adoção de critérios científicos
para o professor justificar a adoção de seus métodos, ainda ficaram ambi-
güidades no texto do Ministério da Educação e mesmo na aplicação dos
critérios para aprovação de cartilhas de alfabetização. Com isso, perduram

154 Sinais Sociais • maio > agosto 2006


dia de 494 pontos. Esse resultado foi considerado medíocre, pois co-
locava os cantões francófonos da Suíça bem abaixo dos 546 pontos
da Finlândia4. O desempenho em matemática fica entre os melhores,
o que leva os analistas e os políticos a suspeitar de que o problema é
de ensino da língua, e não um problema geral do sistema escolar: “O
que se deve questionar é o ensino do ‘francês renovado’, introduzido
nos anos 80: esse método é um fracasso... Os dois Cantões que obtêm
melhores notas são os que resistiram a essas idéias...” Também não se
trata de elaborar um novo método de ensino: basta utilizar as cartilhas
usadas com êxito em outros cantões e em outros países como a França
e o Canadá, de onde provêm as cinco cartilhas atualmente recomen-
dadas na Suíça francesa” (Wettstein-Badour et alia. pp. 67-68).
•  Organismos internacionais também atualizam suas orienta-
ções e propostas. O Bureau Internacional de Educação da Unesco
— presidido no passado por ilustres figuras como Jean Piaget e Edou-
ard Claparède — publica estudo reconhecendo as novas orientações
da Ciência Cognitiva da Leitura e recomendando sua adoção nos pa-
íses de língua alfabética (Pang et alia, 2003).
•  Especialistas em leitura do Banco Mundial, como Helen
Abadzi (2003), realizam avaliações e estudos em diversos países
do mundo para orientar a atuação daquela instituição aos países
onde o Banco atua5.

Enquanto isso num país chamado Brasil

•  1990-2000 — Surgem os primeiros trabalhos de lingüistas e


psicolingüistas, como Miriam Lemle (2000), Ângela Maria Pinheiro
(Pinheiro, 1995), Cardoso-Martins (1996), coerentes com o paradig-
ma contemporâneo da ciência cognitiva, aplicada ao entendimen-

ainda cartilhas que utilizam métodos semiglobais e a prática de métodos


mistos. Esse assunto continua sendo objeto de amplo debate na França (Le
Figaro, 20 fev. 2002)
4
A média do Brasil nesse teste foi de 396 pontos, abaixo dos 422
pontos do México.
5
Esses estudos e orientações da Unesco e do Banco Mundial, circulados in-
ternacionalmente, não são conhecidos, divulgados ou citados no Brasil nem
pelos pesquisadores da área nem pelos técnicos dessas instituições.

Lereis como deuses • João Batista Araujo e Oliveira 155


to da aprendizagem da leitura e da escrita. O grupo liderado pelo
professor Capovilla, da USP, permanece como único enclave aca-
dêmico nessa área.
•  1997. O MEC divulga os PCN - Parâmetros Curriculares Na-
cionais — Introdução e o documento PCN - Língua Portuguesa, que
contém referências explícitas à alfabetização. Nesse documento se
lê que o socioconstrutivismo e a psicogênese da escrita constituem o
“paradigma” para a alfabetização6.
•  2002. Alessandra e Fernando Capovilla publicam o livro Al-
fabetização: método fônico, onde resumem resultados de suas e
de outras pesquisas, apresentam propostas sobre alfabetização
e cotejam o estado da arte com as propostas do construtivismo
(Capovilla e Capovilla, 2002). O livro encontra muitos leitores,
mas não suscita maiores debates.
•  2002. A Revista Ensaio publica Alfabetização e construtivismo:
um casamento que não deu certo (Oliveira, 2002). O artigo é rece-
bido com total silêncio pela comunidade acadêmica, fenômeno co-
nhecido como o “silêncio dos intelectuais” e cujo significado já tem
sido suficientemente analisado pelos sociólogos.
•  2003. A Comissão de Educação da Câmara dos Deputados
apresenta ao país “O Relatório: Alfabetização infantil: os novos ca-
minhos” (Câmara dos Deputados, 2003). O relatório foi elaborado
por sete especialistas, 4 deles de outros países e que são reconhe-
cidos internacionalmente pelos seus trabalhos. O relatório é acolhi-
do com um profundo silêncio pela comunidade acadêmica e pelas
autoridades educacionais.
-  Até o momento presente, não há registro de citação do
referido relatório em nenhum trabalho sobre alfabetização,
publicado no Brasil.
-  As listas bibliográficas constantes dos programas de alfabe-

6
O leitor curioso poderá comparar a bibliografia citada pelo documento do
MEC com a bibliografia citada pelos documentos nacionais de outros países
desenvolvidos. Pela bibliografia citada, até mesmo pela data dos estudos
citados — sem falar em sua natureza e qualidade — o leitor concluirá por si
só sobre quem está mais atualizado nesta área: se os autores do documento
do MEC ou os autores dos documentos dos demais países.

156 Sinais Sociais • maio > agosto 2006


tização de dezenas de universidades e enviadas à Comissão
de Educação da Câmara, como parte das pesquisas que funda-
mentaram o relatório, não citam NENHUMA das fontes men-
cionadas no referido relatório.
-  As autoridades constituídas e as instituições responsáveis pelos
destinos educacionais do país como o MEC, Conselho Nacional de
Educação, Consed — Conselho dos Secretários Estaduais de Edu-
cação, Undime — União Nacional dos Dirigentes Municipais de
Ensino, Crub — Conselho dos Reitores das Universidades Brasilei-
ras, entre outras instadas pela Comissão de Educação da Câmara
dos Deputados e pelo coordenador do relatório não se dispuseram
a debater o relatório, suas conclusões e recomendações.
-  Os ministros da Educação que ocuparam o Ministério desde
essa época — Cristovam Buarque e Tarso Genro, bem como o
ex-Ministro Paulo Renato Souza e o Presidente do Conselho Na-
cional de Educação, não se pronunciam a respeito, apesar de
convidados a se manifestar. O atual Ministro Fernando Haddad
também ainda não se pronunciou.
-  O SESC promove, na mesma época, uma teleconferência so-
bre o tema, em todo o país, com a participação de especialistas
que participaram do relatório. Os interlocutores não se apre-
sentaram para o debate.
•  2003. Leonor Scliar-Cabral publica o livro Princípios do siste-
ma alfabético do português do Brasil, em que “apresenta de forma
sistemática e exaustiva os princípios que governam os valores das le-
tras na leitura e a conversão dos fonemas em letras na escrita”.
•  2003. O autor deste artigo publica o livro ABC do alfabetiza-
dor. Este é, possivelmente, o primeiro compêndio em Língua Portu-
guesa, publicado no país nos últimos trinta anos, e que apresenta, de
forma completa e sistemática, uma descrição das competências da
alfabetização e dos métodos e técnicas adequados para o seu ensi-
no. Esse livro não é adotado em nenhum curso de formação de pro-
fessores alfabetizadores no país.
•  2003. O Ceale — Centro de Alfabetização, Leitura e Escrita
da Universidade Federal de Minas Gerais apresenta suas Orienta-
ções para a organização do Ciclo Inicial de Alfabetização, destina-
do a orientar as políticas e práticas de alfabetização da Secretaria de

Lereis como deuses • João Batista Araujo e Oliveira 157


Educação do Estado de Minas Gerais. Embora contenha avanços em
direção ao estado da arte, o estudo não cita os principais trabalhos
científicos que orientam a pesquisa científica, as políticas e práticas
de alfabetização no resto do mundo (Ceale, 2003).
•  2004. A Revista Pátio começa timidamente a publicar alguns
artigos que apresentam uma visão de alfabetização baseada em evi-
dências. O debate não prospera, pois os interlocutores não compa-
recem para sustentá-lo.
•  2004. O FNDE incluiu nas diretrizes para aprovação de livros
didáticos, especialmente os de Português, a seguinte orientação: “A
escolha de um texto justifica-se pela qualidade da experiência de
leitura que possa propiciar, e não pela possibilidade de exploração
de algum conteúdo curricular. Portanto, a presença de pseudotextos,
criados única e exclusivamente com objetivos didáticos, não se jus-
tifica” (MEC/FNDE, 2004, p. 1). Esta norma expressa uma perspecti-
va especiosa sobre o que seja gênero didático, texto didático e o tipo
de texto adequado para alfabetizar. Esse entendimento é radicalmen-
te diferente da definição universal do que seja gênero didático e das
recomendações a respeito do uso de textos e materiais apropriados
para a alfabetização existentes no resto do mundo.
•  2004. A UNB, por solicitação do Ministério da Educação, pu-
blica um volume de estudos sobre alfabetização, os quais não men-
cionam NENHUMA das referências bibliográficas apresentadas ou
citadas aqui, neste artigo, nem se referem ao corpo de conhecimen-
tos documentados na literatura científica mencionada neles.
•  2005. O desempenho dos alunos em Língua Portuguesa per-
manece caótico, conforme reiteradamente documentado nas avalia-
ções do Saeb, do Pisa e de instituições como o Instituto Montenegro.
O MEC suspende a aplicação da avaliação da alfabetização, anuncia-
da no ano anterior pelo Presidente da República.
•  2005. Permanece a recusa das autoridades e da comunidade
acadêmica de participar do debate contemporâneo sobre alfabe-
tização. A impressão é que existiria uma ciência da alfabetização
brasileira, desconectada da ciência universal. No entanto, a sim-
ples idéia de uma ciência do particular não seria uma contradição
com a rejeição à ciência?

158 Sinais Sociais • maio > agosto 2006


II - Lereis como deuses: a tentação
da proposta construtivista

As idéias chamadas “progressistas” têm suas origens no Iluminis-


mo e se nutrem nos ideais de “progresso”, decorrentes do raciona-
lismo, do cientificismo e do Romantismo. Com o cogito de Descar-
tes, o homem assume o papel de centro do Universo. Em seu tempo
Nietsche anunciava ao mundo que Deus havia morrido. No apogeu
do Romantismo, Rousseau aboliu o pecado original — “o Homem é
bom, a sociedade o corrompe”. Mais do que depressa, Marx anun-
ciou o paraíso na terra — a ser conquistado com a abolição das clas-
ses sociais e a ditadura do proletariado. A psicanálise de Freud dá va-
zão aos instintos, o homem fica livre de condicionamentos, de seu
passado e totalmente aberto para abraçar o futuro por meio da razão
e dos frutos do progresso. Vejamos como essas idéias — de que se
nutre o construtivismo — impactam o pensamento e as práticas edu-
cacionais, inclusive a alfabetização.
O ideário “progressista” em educação tem sua inspiração mais
direta nas idéias de Jean-Jacques Rousseau, expressas especialmente
no livro Emile. Subjacente ao motto “o homem é bom, a sociedade
o corrompe”, permanece a idéia do naturalismo7. As idéias progres-
sistas em educação desenvolveram-se em várias vertentes. Comum
entre elas é a fé no futuro — o progresso e o novo é que vão permitir
a “libertação”. É a libertação do passado — representado por símbo-
los e realidades como a autoridade, o currículo, o saber acumulado,
a divisão do trabalho, as classes sociais, a superioridade intelectual
do professor etc. A vertente mais ligada ao termo “a sociedade o cor-
rompe” preconiza destruir os “instrumentos da opressão”, tais como
gramática, currículo, conteúdo, professor, didática, livros didáticos e
até a escola — que nada mais seriam do que meios de dominação da
burguesia. A vertente mais ligada ao termo “homem natural” preco-
niza o construir — o novo homem, o conhecimento, a nova escola
— tudo em bases naturais, livre de coerções de qualquer espécie.

7
Na sua versão mais extrema, tudo que é natural é considerado bom —
veneno feito de ervas naturais seria bom? Para alguns, o estado natural do
homem são os instintos. Para outros, em número cada vez menor, a razão.

Lereis como deuses • João Batista Araujo e Oliveira 159


O termo “escola ativa” denomina correntes de pensamento, ge-
ralmente associadas aos ideais do “progressismo” pedagógico euro-
peu. O termo foi utilizado, pela primeira vez, em 1907, por Pierre
Bovet, um dos diretores do Instituto Jean-Jacques Rousseau, fundado
por Claparède e, posteriormente, dirigido por Jean Piaget. As corren-
tes que se enquadram sob esse manto incluem uma gama de propos-
tas muito diferentes. Claparède, com sua concepção funcionalista
(em oposição ao estruturalismo de autores como Jean Piaget), intro-
duz o conceito de “centração” e propõe uma “pedagogia revolucio-
nária”, centrada no aluno, numa escola que deve ser ativa e onde o
papel do mestre deve ser completamente transformado de professor
em colaborador. Decroly propõe uma pedagogia baseada em cen-
tros de interesse. Na alfabetização, propõe a retomada do método
global. Suas idéias foram retomadas por autores como Freinet, que
propôs seu método “natural” de alfabetização.
A lista de adeptos de correntes progressistas, também conhecidas
sob o nome de “educação nova”, inclui nomes como os de Béatrice
Ensor, mais tarde associada a Neill, da famosa escola “Summerhill”
dos anos 60, na Inglaterra; Maria Montessori, na Itália; Freinet e Cou-
sinet na França, Ferrière e Piaget na Suíça. Essas idéias influenciaram
gerações seguintes que incluem Paul Langevin, Henri Wallon, Gas-
ton Mialaret, Robert Gloton, Odette Bassis e, contemporaneamente,
Philippe Meirieu. É óbvio que cada autor escolhe e prioriza determi-
nados aspectos do ideário “progressista” e a divergência entre eles
pode ser maior, por vezes, do que suas divergências com os propo-
nentes dos chamados métodos tradicionais.
Na versão norte-americana, o termo Escola Ativa tem precurso-
res importantes como Stanley Hall, criador no termo “pedocentris-
mo”. Essa proposta educacional se baseia “nas necessidades e inte-
resses da criança”. Stanley Hall previa o declínio da gramática, da
retórica e da sintaxe e sua substituição pelas “artes da linguagem”
(Language Arts, nos Estados Unidos) que seriam mais “democráti-
cas e próximas da expressão oral”. Mas seu grande arauto é John
Dewey, cujo nome ficou associado ao movimento da Escola Nova,
que formou uma legião de seguidores e teve profundo impacto na
educação nos Estados Unidos e no pensamento educacional em ou-
tros países — Anísio Teixeira e Darcy Ribeiro são seus principais se-

160 Sinais Sociais • maio > agosto 2006


guidores no Brasil. A ênfase de Dewey é menos no naturalismo e
mais no pragmatismo, daí privilegiar o saber a partir do fazer. Em sua
concepção, a escola deve se adaptar ao aluno e, portanto, se dife-
renciar para atender às suas necessidades. Pragmatista, Dewey apre-
senta uma proposta menos romântica do que muitos de seus cole-
gas europeus, pois não perde de vista a função da escola de preparar
crianças e jovens para a sociedade.
Em algumas de suas vertentes, as idéias “progressistas” são apre-
sentadas como uma espécie de “pedagogia de libertação”. Marcuse
utiliza o termo revolução — a educação progressista seria o substi-
tuto moderno para a luta de classes: só a educação liberta! O ter-
mo “progressista” se opõe ao termo “tradicional”. A palavra tradicio-
nal (do latim tradere, transmitir) refere-se ao ideário que privilegia a
transmissão da cultura, do saber adquirido, da valorização e da atu-
alização do passado8. No ideário tradicional, a função primordial
da escola é transmitir o conhecimento adquirido pelas gerações an-
teriores. A função do mestre é ensinar. Os métodos didáticos e de
descoberta guiados pelo professor são usados por serem mais efica-
zes do que os métodos de descoberta por ensaio e erro. Na versão
“progressista”, o saber constituído, a escola, o currículo, o professor,
tudo isso é entidade ou instituição perversa: cabe à criança, e só à
criança, descobrir o próprio conhecimento. O construtivismo coin-
cide com essas versões ao preconizar, por exemplo, que a criança,
como Champolion, deve redescobrir o código alfabético.
Em outras vertentes, as idéias “progressistas” se apresentam como
uma espécie de “pedagogia da suspeição”. Panchaud fala da “tira-
nia da ortografia” e se insurge contra a gramática, “a gramática bur-
guesa, instrumento do capitalismo, se fundamenta sobre uma lógi-
ca formal e imutável, e não sobre uma lógica dialética... e reflete o
poder exercido pelas classes privilegiadas por esse meio, que impe-
de uma verdadeira democratização do ensino (Panchaud, 1983)”. O
ensino, sob todas as formas, torna-se objeto de suspeição. A escola
e a aprendizagem, um instrumento de tirania, e não de autonomia.

8
O termo tradicional deve ser distinguido do termo reacionário ou retrógra-
do. O tradicional traz, traduz, transmite, atualiza a tradição. O reacionário
cristaliza o passado.

Lereis como deuses • João Batista Araujo e Oliveira 161


Comentando sobre o choque entre as ideologias que consideram a
escola como instrumento de exclusão ou de inclusão, e denuncian-
do a submissão da função de transmissão do saber e da escola à ne-
gociação infinita e a um processo de deslegitimação do conheci-
mento, o filósofo Jean Romain (2001) conclui: “Todas as tiranias do
mundo seguiram essa ideologia destruidora: revolucionar a socieda-
de, agindo sobre os futuros vassalos. Essa utopia exclusivamente po-
lítica sempre leva a resultados idênticos: uma desestruturação da in-
fância e um desarranjo generalizado.”
O construtivismo tem parte de suas raízes no movimento pro-
gressista, vinculado às idéias de Jean Piaget, originalmente desen-
volvidas na década de 20 e retomadas nos anos 60. Piaget, por sua
vez, busca sua inspiração em autores norte-americanos, como Mark
Baldwin, que foi o primeiro a propor o termo “psicologia genética”
e no matemático holandês L.J. Brouwer, de quem assimilou o termo
construtivismo. O construir, em Piaget, refere-se à atividade cogniti-
va pela qual o indivíduo aprende a lidar com os conhecimentos (as-
similação). Piaget nunca conseguiu superar devidamente a ambigüi-
dade entre sua formação empírica — que não lhe permitia assumir
conhecimentos inatos — e sua formação filosófica com as idéias de
Kant. Mas foi dessa ambigüidade que surgiu a moderna ciência cog-
nitiva, cuja paternidade é atribuída ao psicólogo Jean Piaget9.
Outra vertente do construtivismo está associada às idéias conhe-
cidas sob o nome de “psicogênese da escrita”, idéias que retomam
as propostas do naturalismo lingüístico de Benjamin Goodman e
Frank Smith, e são apoiadas numa tosca lógica: falar é natural, com-
preender é natural, portanto, ler e escrever é natural. A partir des-
se sofisma, alguns autores desenvolveram a concepção de que o en-
saio-e-erro (teste de hipóteses), usado pela criança na descoberta de
categorias naturais (como espaço, tempo, números etc.), também
se aplica à descoberta de um sistema artificial, como o código alfa-
bético. Tudo que a criança precisa é de um contexto social falante.

9
Uma análise da gênese e dos erros filosóficos do construtivismo encontra-
se em Devitt (2000, pp. 235-258). Chapman (1998) propõe uma releitura do
conceito de estruturas em Piaget que o eximiria desses erros.

162 Sinais Sociais • maio > agosto 2006


A esses equívocos são incorporadas idéias do sociointeracionismo,
originalmente desenvolvidas por Vygotsky, que acentua o papel das
interações sociais na “construção do saber”. Na versão mais radical
dessa escola de pensamento, é a linguagem que estrutura o pensa-
mento — o pensamento é fruto da linguagem e esta, como o próprio
conhecimento, deriva do meio social10.

Pedagogia progressista: a teoria na prática

Torna-se necessário explicitar o pano de fundo no qual se mo-


vimentam idéias “progressistas”, para que o leitor situe o construti-
vismo dentro da evolução do pensamento pedagógico. Resumindo
uma longa história, o Quadro 1 apresenta uma visão simples, mas
não caricatural, das idéias associadas ao pensamento “progressis-
ta”. E, para torná-las mais nítidas, contrasta essas idéias e suas im-
plicações com o que se denomina de enfoque “tradicional”. Cabe
registrar que nenhum desses enfoques existe, na prática, em esta-
do 100% puro. O quadro serve apenas para ressaltar os extremos
de uma tensão entre dois pólos: o de reflexão e o de ação pedagó-
gica. O Quadro 1 foi adaptado de Chall (2000, pp. 187-192). Para
efeitos da presente discussão, interessa identificar em que medida
as idéias propostas pelos movimentos progressistas e pelo construti-
vismo afetam positivamente a sala de aula. E isso não se faz em as-
sembléias ou por meio de votos, de jargões, de aplausos ou no gri-
to. Isso se faz por meio da investigação científica. Os parágrafos
seguintes resumem a evidência científica disponível sobre o impacto
dessas idéias:
•  Chall (2000) revê cem anos de pesquisas sobre métodos cen-
trados no aluno versus métodos centrados no ensino, e que estão

10
A gênese das idéias de Vygotsky está ligada aos trabalhos que ele desen-
volveu na década de 20 a pedido do recém-instalado regime comunista na
União Soviética, que procurava entender como o meio social poderia contri-
buir na formação do novo homem socialista. Daí a ênfase do meio influenci-
ando o pensamento: o pensamento burguês conforma um modo de pensar
burguês, mas é possível construir, a partir do ambiente, um pensamento so-
cialista políticamente correto: o pensamento é mero produto do meio.

Lereis como deuses • João Batista Araujo e Oliveira 163


Quadro 1
Tradição e progresso em educação

Item “Tradicional” “Progressista”

-  conhecimento acumulado
- baseado nos interesses e
-  competências necessárias
Conteúdo e orientação

necessidades do aluno
para o indivíduo e
- sem estrutura curricular
para a sociedade
do currículo

baseada em disciplinas
-  currículo baseado em
- ênfase na integração de
disciplinas, organizado em
conhecimentos, para torná-
ordem de dificuldade
los significativos, com ensino
-  disciplinas ensinadas
integrado das disciplinas
separadamente
- ênfase nos aspectos
-  ênfase nos aspectos
socioemocionais
cognitivos

- ênfase na solução
- ênfase no conteúdo
Produto ou

de problemas e em
processo

- habilidades cognitivas
processos cognitivos
e solução de problemas
- conteúdo considerado como
aprendidas junto
secundário, escolha sujeita
com o conteúdo
à motivação do aluno

- espera que os alunos


aprendam o que é ensinado
- professor deve seguir
- currículo deve ser ensinado
interesses dos alunos, pois
sobre os alunos

de forma interessante, mas


Expectativas

eles aprendem quando


reflete as competências
estão motivados
que devem ser ensinadas
- alunos são naturalmente
- os alunos chegam à
bons e têm propensão
escola com hábitos bons e
natural para aprender e
maus: a função da escola
tornar-se bons cidadãos
é “humanizar” os alunos
e formar bons hábitos

- ambivalência quanto ao
uso de testes, preferência
- uso de testes formais e
Padrões e
avaliação

para instrumentos
informais para avaliar domínio
qualitativos, testes
dos conteúdos e habilidades
diagnósticos e “portfólios”
- uso de boletins e notas
- uso de relatórios
verbais ou escritos

164 Sinais Sociais • maio > agosto 2006


Diferenças individuais - não deve haver padrões
comuns, pois os alunos
são diferentes; eles não
- alunos têm diferenças,
devem aprender conteúdos
mas todos devem aprender
e, sim, habilidades para
o que está prescrito no
resolver problemas,
currículo, pelo menos
pensar e aprender a
em níveis básicos
aprender; os próprios
alunos devem definir o
que precisam aprender

- os conteúdos devem ser


Nível de dificuldade

- ensino deve se concentrar


os mais fáceis para permitir
e tratamento de

em habilidades e
dificuldades

que o aluno aprenda


conteúdos mais difíceis
independentemente
do que nos mais fáceis
- dificuldade geralmente
- dificuldades acadêmicas
atribuída a problemas
tratadas diretamente
socioemocionais e a
(recuperação, reforço etc.)
fatores extra-escolares

- preferência pela promoção


Promoção

- por mérito: repetência automática; não há razão


é indesejável, mas é para enturmar alunos
possível e ocorre em função de critérios
de competência

- considerados enfadonhos
Uso de livros
didáticos

- considerados importantes e não voltados para as


e amplamente usados, necessidades do indivíduo
embora não exclusivamente - preferência por
materiais “autênticos”

- o desenvolvimento
moral decorre das
Moral e disciplina

- alunos devem aprender experiências e não deve


o que é certo e errado, nas ser ensinado diretamente
aulas e atividades extras - assunto raramente
- há regras de explicitado ou discutido,
comportamento e sanções presume-se que ensino
centrado no aluno minimiza
questões disciplinares

Fonte: adaptado de Chall (2000), pp. 187-192

Lereis como deuses • João Batista Araujo e Oliveira 165


apresentados de forma sucinta no Quadro1. Originalmente ela inti-
tula essas duas visões, de forma intencional, como Dionísio e Baco,
mas nossa tradução denomina-as de Tradicional e Progressista. Chall
analisa praticamente todos os estudos e avaliações consistentes que
comparam propostas de ensino mais “tradicionais” ou mais “pro-
gressistas”. A autora observa que não existe um sistema totalmen-
te tradicional ou progressista: o que há são ênfases, uma tensão en-
tre pólos, mais do que uma dicotomia. Eis o veredito: “A conclusão
mais importante é que um ensino tradicional, centrado no professor,
geralmente resulta em ganhos de aprendizagem maiores do que um
ensino progressista. Isso é particularmente verdadeiro para os alunos
menos preparados para a aprendizagem escolar — e isso se aplica
a alunos com dificuldades de aprendizagem de qualquer nível eco-
nômico ou social.” (p. 182) “Os resultados também indicam que as
abordagens ditas tradicionais levam a melhores resultados em testes
que medem desempenho em habilidades cognitivas de nível mais
elevado, como o raciocínio e a solução de problemas.” (p.183) Os
resultados são claramente favoráveis às abordagens “tradicionais”,
nos níveis mais elementares da escola. Em níveis mais avançados,
há intervenções em que as abordagens “progressistas” levam a me-
lhores resultados com jovens que já adquiriram condições e hábitos
que lhes permitam trabalhar de forma independente.
•  O Projeto Follow-Through é um dos estudos de grande esca-
la, empreendido com 70 mil crianças entre os anos 67 e 76, com
acompanhamento dos egressos até 1995. Os resultados desse proje-
to corroboram a superioridade dos métodos estruturados de ensino,
inclusive e particularmente seus efeitos positivos sobre o desenvolvi-
mento cognitivo (Carnine, 2000). Estudos posteriores, realizados pe-
las equipes da Universidade de Laval, no Canadá, corroboram esse
ponto de vista (Clermont Gauthier et. al.2005).
•  Da mesma forma, os estudos realizados por mais de duas déca-
das por Robert Slavin (Slavin et alia 1889) sobre ensino estruturado,
especialmente aplicados a grupos desfavorecidos e ao ensino da lín-
gua, reforçam a superioridade dos métodos estruturados e de desco-
berta guiada sobre os métodos centrados no aluno ou no professor.
•  A conceituada revista American Psychologist publicou artigo
do professor Richard Mayer (2004), da Universidade da Califórnia,

166 Sinais Sociais • maio > agosto 2006


em Santa Bárbara, em que ele apresenta resultado de testes de três
linhas de pesquisa pedagógica, associadas às idéias advogadas pelos
“progressistas”: (i) o ensino por hipóteses e estratégias de descober-
ta para resolver problemas, (ii) aprendizagem de estratégias de con-
servação do tipo piagetiano e (iii) aprendizagem de estratégias de pro-
gramação, usando o programa LOGO, e que envolve aprendizagem
“natural” e por ensaio-e-erro. Para cada uma dessas abordagens, ou
métodos, Mayer reviu estudos publicados sobre o tema, durante as dé-
cadas de 60, 70 e 80, respectivamente para cada tipo de intervenção.
E comparou os resultados com pesquisas que tinham objetivos seme-
lhantes, mas utilizavam métodos de descoberta guiada ou de ensi-
no didático, do tipo “tradicional”. A conclusão, nos três conjuntos de
casos, envolvendo dezenas de comparações, em cada um, favorece
as abordagens de descoberta guiada (ensino “tradicional”), em detri-
mento de abordagens que favorecem uma exploração desestruturada,
preconizada pelos chamados modelos construtivistas (Mayer, 2004).
Mayer observa que as abordagens estruturadas são mais eficazes para
desenvolver os três processos cognitivos mais importantes, ou seja, a
seleção, a organização e a integração do conhecimento (op. cit. 17).
Isso significa que as abordagens ditas “tradicionais” são mais efica-
zes para atingir até mesmo os objetivos cognitivos propostos pelos
adeptos de orientações construtivistas e progressistas.

O impacto das idéias “construtivistas”

•  Gazzaniga, considerado internacionalmente como um dos


mais importantes neurocientistas da atualidade, assim resume o es-
tado-da-arte: “os achados cumulativos convenceram a maioria dos
cientistas psicológicos (sic) de que o desenvolvimento não ocorre
através de uma progressão, tipo blocos construtores.... e sugere que
os humanos nascem com mais capacidades inatas do que se acredita-
va previamente (refere-se às teorias de Jean Piaget)... os sujeitos “não
precisam agir sobre objetos do mundo para demonstrar habilidades
cognitivas”. E, embora reconhecendo a contribuição inestimável de
Piaget para a psicologia cognitiva, afirma que “o pensamento atual
(da psicologia cognitiva) revisou muitas das idéias originais de Piaget
(Gazzaniga e Heatherton, 2005, pp. 354 e 355).

Lereis como deuses • João Batista Araujo e Oliveira 167


•  Abordando diretamente as propostas construtivistas sobre o
ensino da leitura e da escrita e referindo-se especificamente a es-
tudos conhecidos sob o título de psicogênese da leitura e aos PCNs
brasileiros, José Morais observa que “foi de grande valia a contribui-
ção da autora (Emília Ferreiro) ao chamar a atenção para a importân-
cia das representações mentais que a criança tem da escrita, antes
da aprendizagem da leitura. No entanto, a sua visão da alfabetiza-
ção como um processo de resolução de problemas que exige elabo-
rar e provar hipóteses e inferências está hoje claramente refutada.”
(Morais, 2005, p. 10)
•  A insuspeita e cientificamente qualificada revista Scientific
American publicou, em março de 2002, um artigo intitulado “How
should reading be taught” — em que conclui da seguinte forma: “a
alfabetização deve ser baseada numa sólida compreensão das cone-
xões entre letras e sons. Os professores devem reconhecer a ampla
evidência de que as crianças que são ensinadas pelos métodos fôni-
cos tornam-se melhores em leitura, ortografia e compreensão do que
aquelas que precisam captar as confusas regras da língua por si mes-
mas. Os educadores que negam essa realidade estão negligenciando
décadas de pesquisa. E também estão negligenciando as necessida-
des de seus alunos.” (Keith et alia, 2002, p. 91)
Essas evidências sobre o impacto das idéias progressistas, em ge-
ral, e do construtivismo, em particular, sugerem uma conclusão in-
teressante, que pode ser útil, mesmo com o risco de supersimplifica-
ção de implicações filosóficas, científicas e ideológicas: a cada D.
Quixote seu Sacho Pança. Os ideais “progressistas” apontam para
objetivos elevados, nobres, aprendizagem mais complexa e de nível
superior; no entanto, os ideais e práticas “tradicionais” são os mais
eficazes para alcançá-los. Analogamente, para se chegar ao paraíso
é preciso cruzar o “vale de lágrimas”. Ou, na linguagem de Chall,
para fruir das delícias de Baco, é preciso passar, antes, pela discipli-
na de Dionísio. Em suma, nada mais oportuno do que um extrato
do pensamento de Heidegger: “Muitos crêem que a Tradição é coi-
sa do passado, mas ela nada mais é do que uma espécie de objeto
da consciência histórica. Imaginam que ela constitui o que se situa
atrás de nós quando, na verdade, nós é que somos expostos a ela,
porque ela é o nosso destino.”

168 Sinais Sociais • maio > agosto 2006


As informações e argumentos aduzidos nesta parte do trabalho
sugerem que, de certa forma, é possível conciliar as idéias “progres-
sistas” com os meios propostos pelas idéias “tradicionais”. No caso
específico da alfabetização, ninguém nega que seu objetivo seja o
de, eventualmente, possibilitar a compreensão de textos escritos. O
que as evidências mostram, de maneira cabal, é que (i) a capacida-
de de ler precede, é independente e é essencial para a capacida-
de de compreender um texto escrito e (ii) a melhor forma da ajudar
uma pessoa a compreender o que lê é ensiná-la a ler bem. O confli-
to a ser superado, portanto, não é o de objetivos, mas o de meios e
processos. Seria ingênuo pensar que os meios e métodos são indife-
rentes ou livres de “ideologias” ou conseqüências. Ainda mais, pior
que ser ingênuo é afirmar que os fins coincidem com os meios, que
ler é o mesmo que compreender. Ou dizer que meios e métodos são
irrelevantes — como se depreende das propostas e das práticas
construtivistas em alfabetização.

III- Os novos paradigmas da alfabetização:


conhecimento científico e opinião

Jean Piaget é reconhecido como o pai da psicologia cognitiva.


Outro grande vulto nessa história é Leo Vygotsky, reconhecido como
criador da psicologia experimental na União Soviética. Esses dois au-
tores fizeram seus primeiros estudos na década de 20 e tiveram seus
trabalhos reconhecidos por volta dos anos 60 e 70, o que marcou a re-
vitalização da psicologia cognitiva. Piaget propôs uma teoria para ex-
plicar a aquisição do conhecimento e descreveu os estágios em que
essa aquisição se desenvolveria. Vygotsky enfatizou a importância do
contexto cultural e social no desenvolvimento lingüístico.
Mas esses foram os primórdios. Nas décadas de 50 e 60, Chomsky
propõe que a linguagem é inata e postula a existência de uma gra-
mática universal. Na década de 60, pesquisadores como Robert
Fantz, Peter Eimas, Jacques Mehler e Tom Bever demonstraram que
muito do que sabemos é inato no cérebro. Nas décadas de 70 e 80
os estudos de J. Kagan começam a apresentar evidências de que
muitas das chamadas respostas aprendidas refletem a maturação ce-
rebral, o que é confirmado e expandido pelos importantes trabalhos

Lereis como deuses • João Batista Araujo e Oliveira 169


de W. Sperry. Nos anos 80 e 90, resultados de pesquisas, utilizan-
do esses novos métodos para estudar aprendizagens de nível cogni-
tivo mais elevado, não confirmam a idéia de uma progressão em es-
tágios, como se pode ver de estudos como os de Galman, Osherson,
Carey, Gaillargeon, Spelke. A década de 90 aprofunda os estudos
neurológicos que exploram as habilidades ou capacidades cogniti-
vas inatas. Os estudos baseados em imagens cerebrais — impulsio-
nados por Michael Posner, entre outros — apresentam novas evi-
dências sobre o funcionamento do cérebro que aprende. É o novo
paradigma da Psicologia Cognitiva que se delineia para balizar o en-
tendimento de como aprendemos a ler e a escrever e de como de-
vemos alfabetizar. Ou seja, tudo que propõe o novo paradigma de
alfabetização — até mesmo no que diz respeito aos métodos, foi
descoberto e justificado cientificamente, depois da morte de precur-
sores como Jean Piaget e Leo Vygostsky.
Essas são as bases a partir das quais os cientistas vêm estudando a
alfabetização. Essas bases se apóiam fundamentalmente na neuroci-
ência e nos novos modelos propostos pela Psicologia Cognitiva, e in-
corporam os avanços de ciências como a lingüística e a psicolingü-
ística, que descrevem os fenômenos estudados experimentalmente
pelos cientistas contemporâneos da alfabetização. Não é objetivo do
presente estudo apresentar sequer um resumo do estado-da-arte da
Ciência Cognitiva da Leitura; as referências apresentadas nesse arti-
go podem ajudar o leitor interessado a se informar a respeito. Con-
cluiremos este artigo elegendo apenas um aspecto da discussão so-
bre alfabetização — a questão dos métodos — para ilustrar como os
conhecimentos científicos podem contribuir para a maior eficiência
dos métodos de alfabetizar.

Alfabetização: a questão dos métodos

Desde a invenção do primeiro “alfabeto” dos Sumérios, há mais


de três mil e quinhentos anos e até a década de 80, a idéia de alfa-
betizar ensinando o valor sonoro das letras era apenas uma intuição.
As teorias e os métodos de alfabetização baseavam-se em proposi-
ções lógicas ou racionais. As evidências empíricas, os méritos e o
alcance das várias abordagens e métodos não eram suficientes para

170 Sinais Sociais • maio > agosto 2006


evitar o surgimento e ressurgimento de idéias inadequadas — como
ilustrado nos vaivéns do método global. Mas essa situação mudou.
No restante deste artigo, veremos o que nos diz a Ciência Cognitiva
sobre os métodos de alfabetização.
O balanço realizado em meados da década de 60 nos Estados
Unidos — conhecido como “O Grande Debate” — foi frustrante e
inconclusivo, deixando a falsa impressão de que a questão de mé-
todos não tinha solução, de que não havia evidências sólidas a fa-
vor de uma ou outra abordagem. Foi nesse contexto que ressurgiram
os métodos globais e as propostas de alfabetização, inspirados por
lingüistas como Benjamin Goodman e pelos construtivistas. Embo-
ra contrariassem o bom senso, faltavam evidências mais sólidas para
refutá-los. As descobertas da neurociência cognitiva, especialmen-
te a partir da década de 80, trouxeram à luz conhecimentos mais
precisos de como o cérebro aprende a ler, e, conseqüentemente, de
como se deve ensinar o cérebro a ler. Esses conhecimentos permi-
tiram refutar, de maneira cabal e com base em evidências científi-
cas apropriadas, propostas de alfabetização que afrontam o modo
de aprender do cérebro.
•  Na abertura de uma palestra que certa feita proferi, o Secre-
tário de Educação de um importante município brasileiro afirmava
com orgulho seu respeito à autonomia escolar e aos professores: não
me importa que métodos usem — método de alfabetização não é
uma questão importante. Perguntei-lhe, então, se aceitaria essa pos-
tura por parte de um Secretário de Saúde em relação ao hospital
onde sua filha iria se operar...
•  Os métodos globais — defendidos historicamente pelos pro-
gressistas e, mais recentemente, pelos construtivistas, afrontam a na-
tureza do processamento cognitivo. Os adeptos dos chamados mé-
todos globais ou “naturais” afirmam que as palavras são percebidas
em seu conjunto (Gestalt), armazenadas na memória sob forma grá-
fica e reconhecidas quando identificadas num determinado contex-
to. Abaixo algumas citações pertinentes:
-  Em 1928... Um pequeno círculo de sábios fez uma incrível
descoberta: as letras não existem. Só existem as palavras. Em con-
seqüência, as crianças devem conhecer as palavras globalmente,
e não as letras que as compõem. A descoberta veio para aniquilar

Lereis como deuses • João Batista Araujo e Oliveira 171


o alfabeto. Tudo isso é explicado no jargão ‘globalista’ — de resto
totalmente impenetrável...(Orieux, 1978).
-  A leitura é um jogo de adivinhação, a pesquisa construtiva
do sentido (K. Goodman).
-  “Quanto mais avançamos no texto, mais se reduzem as esco-
lhas semânticas, portanto não é necessário identificar todas as
palavras.” (J. Foucambert).
•  Esse tipo de afirmação tem o mesmo nível de credibilidade
que a afirmação de Aristóteles, quando disse que as mulheres ti-
nham menos dentes que os homens. Quase dezoito séculos depois,
alguém resolveu abrir a boca das mulheres e contar-lhes os dentes:
Aristóteles estava errado. Da mesma forma, basta abrir um manual
de neurociência para verificar que os pressupostos em que se assen-
tam os métodos globais são incorretos. Nem precisamos verificar os
desastrosos resultados de sua aplicação. Disso se segue, por princí-
pio, que afirmar que qualquer método serve para alfabetizar é, no
mínimo, uma afirmação cientificamente equivocada.
•  O mesmo se aplica aos chamados métodos mistos, ou semi-
globais, cuja proposta é deixar o aluno descobrir — ou redesco-
brir — o código alfabético, a partir de encontros casuais com tex-
tos ou palavras. A idéia de um aluno pesquisando, como se fosse
um Champollion, vem logo à mente, conforme se depreende da
citação de Goigoux (1997):
-  “Nós partimos de um texto que o aluno decorou para estudar a
organização da língua escrita. Sem se preocupar em entender o
conteúdo, pois esse já é conhecido, as crianças podem se debru-
çar sobre o estudo do código escrito. É uma verdadeira aventu-
ra tipo Champollion... O decifrador de hieróglifos... Ao longo do
ano, de texto em texto, a exploração continua, criando uma co-
munidade de pesquisadores na sala de aula. É dessa forma que as
crianças guardam uma idéia de conquista, de apropriação de se-
gredos, o que aumenta sua auto-estima...”
•  O que talvez Goigoux tenha se esquecido de observar é que
Champolion possuía um arsenal de conhecimentos de várias lín-
guas, que lhe permitia fazer um trabalho de análise e síntese.
•  Afirmações como essa de Goigoux são capazes de suscitar
aplausos de multidões. Mas sua aplicação em sala de aula vem con-

172 Sinais Sociais • maio > agosto 2006


tribuindo para transformar pretensas “comunidades de pesquisa-
dores” em gigantescas assembléias de excluídos, no dizer da Dra.
Ghislaine Wettstein-Badour.
Lereis como deuses! Basta adivinhar! Basta fazer hipóteses! O
importante é a compreensão, são os usos sociais — como enfatizado
ad nauseam nos PCNs! O encanto com os métodos globais e seu in-
sidioso vaivém na história da educação deve servir de alerta perma-
nente para os pesquisadores e profissionais da alfabetização. Como
a sedutora serpente na árvore do conhecimento, esse tipo de idéia
é tentador e libertário, mas é igualmente perigoso, pois transforma a
busca pelo conhecimento na submissão à ignorância.
A escolha de métodos de alfabetização certamente não é a úni-
ca decisão relevante para a formulação de políticas de alfabetiza-
ção. Nem, no caso do Brasil, as decisões incorretas sobre métodos
de alfabetização são a única explicação para o fracasso escolar. A
mera introdução de métodos fônicos dificilmente resolverá os pro-
blemas da alfabetização no Brasil. A forma como a questão continua
sendo tratada pela comunidade acadêmica e pelas autoridades, em
nosso país, não revela apenas uma ojeriza por esse ou aquele mé-
todo, mas sim o desconhecimento e o desprezo pelos conhecimen-
tos científicos sobre a psicologia cognitiva da leitura. É o triunfo da
ideologia sobre a razão.
A evidência apresentada neste artigo é cabal. Ela é sólida e se
apóia em conhecimentos científicos compartilhados pela comuni-
dade científica internacional, sendo reconhecida pelas autoridades
educacionais da maioria dos países e, certamente, por todos os paí-
ses onde a alfabetização funciona!
É claro que existem outras concepções sobre alfabetização — até
mesmo concepções apoiadas por pessoas eminentes e que ocupam
posições acadêmicas em importantes universidades. Mas o fato de
existirem, ou de as pessoas serem eminentes, não significa que essas
concepções sejam corretas. Há pessoas que acreditam no creacio-
nismo e negam a evolução — mas isso não significa que a opinião
delas seja correta. Ignorar ou negar o peso da evidência sobre o que
é alfabetizar, a eficácia relativa de determinados métodos e as con-
seqüências disso para a escolha de materiais e práticas pedagógicas
é negar a própria ciência e a validade dos seus métodos. Relativizar

Lereis como deuses • João Batista Araujo e Oliveira 173


a ciência significa atribuir equivalência epistemológica à opinião
(doxa) e ao conhecimento (episteme). Significa, ainda, desqualificar
a validade do método científico. Alegar que se trata apenas de uma
outra visão de mundo ou de outro paradigma não resolve o compro-
misso do cientista com a verdade.
A ideologização da alfabetização, no Brasil, é mais um capítu-
lo dessa triste história, mas o que mais impressiona é a leveza com
que essa questão é conduzida por nossas autoridades. Daí a opção
do autor do presente artigo em delinear o contexto filosófico, ideo-
lógico e histórico de onde surgem as idéias construtivistas aplicadas
à alfabetização. Diante das evidências apresentadas, torna-se im-
perdoável o silêncio e a omissão da comunidade acadêmica! Com
toda certeza, haveria, pelo menos, duas maneiras de reverenciar a
memória dos autores mortos. Uma seria olhar para onde eles apon-
taram e seguir as trilhas que eles abriram. A outra, ficar paralisado,
apenas olhando seus vultos, e não para seu importantíssimo legado.
Lamentavelmente, a comunidade acadêmica e as autoridades edu-
cacionais brasileiras, até hoje, têm optado pela segunda e continu-
am mesmerizadas. Não seria hora de deslocar essa visão e prestar
aos precursores uma justa homenagem, descortinando, como eles,
novos caminhos para a alfabetização?
Quando um paradigma científico esgota sua capacidade de ex-
plicar os fenômenos a que se propõe estudar ele deve ser substituído
por outro, mais robusto, pois já se tornou superado. Admitir a igual-
dade epistemológica de diferentes enfoques, como se todos fossem
equivalentes cientificamente, equivale a negar a própria validade da
ciência e do método científico. E mais do que negar a ciência e seu
modo de validação do conhecimento, é negar às crianças brasilei-
ras o direito de um futuro. A História está cheia de vítimas sacrifica-
das no altar das ideologias.

•••

174 Sinais Sociais • maio > agosto 2006


ANEXO
O vaivém dos métodos globais

Método Global: preconiza que o aluno deve reconhecer o conjunto


da palavra antes de identificar seus elementos (sílabas, grafemas, fo-
nemas). O método está associado aos princípios da “educação ati-
va”: métodos naturais, espontaneísmo, construtivismo.

Primeira aparição: deu-se no século XVIII, proposto inicialmente por


Sicard, na França e adotado pelo médico Jean Itard para tentar alfa-
betizar o menino surdo-mudo Victor (o selvagem de Aveyron).

Segunda aparição: deu-se na Bélgica, no início do século XX, reto-


mado por Decroly e introduzido na Suíça, no Instituto Jean-Jacques
Rousseau. Nesse país, com o apoio de Jean-Piaget, é promovido sob
o nome de Método Natural por Freinet, na França.

Primeira grande reação. A utilização do método é relativamente res-


trita, e as críticas, crescentes, até que é oficialmente proscrito da
Suíça, em 1955.

Segunda grande reação: a publicação, em 1954, do livro Why Jon-


nhy can´t read, de Rodolph Flesch, demonstra a devastação causada
pelos métodos globais nos EUA, onde são conhecidos como “whole
language”, “sight method” ou “look and say”.

Terceira aparição: década de 70, com a utilização dos chama-


dos métodos semiglobais, que incorporam algumas intuições fo-
nológicas e chegam à identificação de sílabas ou fonemas pela
decomposição das palavras.

Terceira grande reação: a partir dos anos 90, os métodos globais são
formalmente proscritos. Nos Estados Unidos, a escola que os adota
não pode receber financiamento do governo federal.

Lereis como deuses • João Batista Araujo e Oliveira 175


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178 Sinais Sociais • maio > agosto 2006


EXPEDIENTE
SINAIS SOCIAIS • ANO I • NÚMERO 1 • MAIO > AGOSTO 2006

PRESIDENTE DO CONSELHO NACIONAL DO SESC


Antonio Oliveira Santos
DIRETOR GERAL DO DEPARTAMENTO NACIONAL DO SESC
Maron Emile Abi-Abib

COORDENAÇÃO
Gerencia de Estudos e Pesquisas/Divisão de Planejamento e Desenvolvimento

CONSELHO EDITORIAL
Álvaro de Melo Salmito
Luis Fernando de Mello Costa
Mauricio Blanco,
Mônica Pereira dos Santos
secretário excutivo
Sebastião Henriques Chaves

Editado pela Assessoria de Divulgação e Promoção / Direção Geral


projeto gráfico
Vinicius Borges
revisão
Rosane Carneiro

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