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Cristina Costa SOCIOLOGIA Introdugao a ciéncia da sociedade ane aan =Ill Moderna © Cristina Costa, 2010 =Ill Moderna CCoordenagio editor Mati FaquslAnolnaia, Eduard Augusto Gumartes| Edigho de texto: Eaarco Auguste Guimaries, Joo Carlos Ages ‘Assessor didtieo-pedagégica: Info Caos Agostini ‘Assisténeia editorial: Cinta Medine,Tethane Gerbovie, Maria Odete Garces, mar Azardo Franc, Leondo Salman Tor Preparacio de texto: nate Mercadante, Sérgio Roberto Toros ‘Coordenagao de designe projetos visuals: Sina Sotelo de Carvalho Homma Projeto grafico: Ars Camilo apa: urn Cail, Maris orto nagem a2 cape: Pessoes Gascor aia na cssde se Sac Paul, 1895, Neen Kor/Sambahoto (Coordenagio de produgio aréfca:Anaré Monaro, Nia de Lourdes Rociguae ‘Goordenagao de arte: Nore Luci Couto aig de arte: Rosign Carraro Moutinno Eattoregdo EletrOnies: Age Esti, D'Lires Editor o Distros ide. ystagses: Alex forso, Marcelo Pliner, Maria Kanno ‘Cartografa:Alessendro Passos de Costa, Anderson de Andrade Pimentel (Coordenagio de revsko: Eine Cristie de! Nero Revisdo: Ana Pauls Lusciaro, Fomande Marcelino, Luts M. Boa Nove, Maize P Berard, Maisie S. Ceraso0, Mlvane M. Moura Pesquisa iconogréfica: Aine Chisel, Ea Fries, Leonardo de Souse Kien, Jonna Halsskowaki Manes de Souza CCoordenagio de bureau: Amérco sus ‘Tatamento de imagens: urcau Sp, FebioN,Pracerct, Fubens Mendes Rocrgues, Wagner dos Santos Lima Proimprassio: Helo de Souza Fhe, Varela Hiseyuk Kamo, Everton L de Olvera, Alonsndve Peirce CCoordenagio de produgio Industiak Wilson Acarcido rogue Impresséo e acabamento: Pol Estos Grea Costa, crise Sosilaga: Invedo enc da sociedad / Ccrstina Costa. — 4. ea. — S80 Paulo : Madera, 2010, Biogas 1. Secologia | Thule, Indios pars catélogo sistomit 1. Sociooga 201 {SBN 972-05-16-06505-9 (LA) ISBN 878-85-16.09596-6 (LP) ero praics Ar. 184 co Cio Farle Le S608 19 ferro 828 Tess os etareeonasce EDITORA MODERNA LTDA. usa ine, 158: Belerih Sto Feo“ SP sal -CEPO3009004 naa 6 ercimarta Te 1) 27801500 estos 112790180) "er Inpesiaro Sst issTewesae Sumario [Unidade | | Sociologia: a criacdo do campo do saber, & a Capitulo 1 » Da era pré-cientifica ao Renascimento, 10 41. O conhecimento como caracterfstica da humanidade, 10 2. A sociologia: um conhecimento de todos, 11 / 3. A emergéncia do pensamento cientifico, 13 /4. A razao a servigo do individuo e da sociedade, 14/ 5. Um novo pensamento social, 15/ 6. A transicio para o Iluminismo: uma nova etapa no pensamento burgués, 18/7. O cientificismo, 19 / Atividades, 20 Capitulo 2 » Da Ilustracdo ao nascimento das ciéncias sociais, 24 1. Iuminismo: a sociedade inteligivel, 24 / 2. Liberalismo: a filosofia social dos séculos XVII e XVII, 26 / 3. O milagre da ciéncia, 28 / 4. O anticlericalismo, 29 / 5. luminismo no Brasil, 29/6. Da filosofia social & sociologia, 30/7. O darwinismo social, 32 / Atividades, 36 Capitulo 3 > A sociologia de Emile Durkheim, 38 1.0 que € fato social, 38 / 2. Normalidade e patologia nos fatos sociais, 42 /. A consciéncia coletiva ea consciéncia individual, 43 / 4. Morfologia social: as espécies sociais, 43 5. Durkheim e a sociologia cientifica, 44 / Atividades, 45 Capitulo 4 > A sociologia alema: a contribuicéo de Max Weber, 48 1. O pensamento filos6fico e cientifico alemao, 48 / 2. A sociedade sob uma perspectiva histérica, 49 / 3. O método compreensivo e a ago social: uma ago com sentido, 51/4. A tarefa do cientista, 52 / 5. O tipo ideal, 53 / 6. A importancia de Weber para a sociologia, 56 / Atividades, 57 Capitulo 5 » Karl Marx ea historia da exploragao do homem, 60 1. Teoria e revolugao, 60/2. As origens, 61 / 3. O materialismo histérico, 63 / 4. A ideia de alienagio, 64 / 5. As classes sociais, 65/6. A origem histériea do capitalismo, 65/7. A amplitude da contribuigio de Marx, 69 / Atividades, 72 Leitura complementar, 74 Sugestoes, 75 Mirercaig Sociologia no Brasil: 0 estudo de uma nacao, 76 1 Capitulo 6 » A sociologia no Brasil (1), 78 1. Herangas, 78 / 2. O colonialismo europeu, 78 / 3. A visio de mundo da corte € 0 século XIX, 79 / 4, O advento da burguesia, 81/5. A geracao de 1930, 83 / 6. Institucionalizacio do ensino e divulgagéo da sociologia, 85/7. O integralismo e a intelectualidade conservadora, 86 / Atividades, 87 Capitulo 7 » Asociologia no Brasil [Il], 89 1. A década de 1940, 89/2. A década de 1950, 92 / 3. Darcy Ribeiro ¢ a questio indigena, 93 / 4. O golpe de 1964, 94/5. As ciéncias sociais pos-1964, 95 / 6. A sociologia brasileira no século XXI, 96 / Atividades, 98 Leitura complementar, 100 Sugestées, 107 (iirercay Globalizacdo: uma nova identidade, 702 1 Capitulo 8 » Modelos contemporaneos de explicagao sociolégica, 104 1. A crise dos paradigmas na sociologia atual: uma explicacdo necessdria, 104 / 2. Sociologia contemporanea, 106 / 3. Escola de Chicago, 108 / 4. Escola de Frankfurt, 109 / 5. Sociologia francesa: Pierre Bourdieu, 111 / 6. Norbert Elias e a civilizaco, 113 / 7. Manuel Castells ¢ a sociedade em rede, 114 / Atividades, 115 Capitulo 9 » Teorias da globalizacao, 117 1. Capitalismo dominante, 117 / 2. O reposicionamento do Estado-nacdo, 118 / 3. Informatica e automagio, 119 / 4. Desterritorializagao, 122 / 5. Metropolizacdo, 123 / 6, Pés-modernidade e globalizacao, 124 / 7. Disparidades e desigualdades, 125 / Atividades, 126 Capitulo 10 » Pobrezae exclusao, 128 1. Uropia e realidade, 128 / 2, Desigualdade e pobreza, 128 / 3, Estado de caréncia miltipla, 132 / 4. Urbanizacao e ciminalidade, 134 / 5. O estigma da pobreza, 135 / 6, Um exército de reserva?, 137 / Aprofundando conteddos: A pobreza no Brasil, 138 / Atividades, 140 Leitura complementar, 142 Sugesties, 143 Sociologia e poli Capitulo 11 » Democracia e direitos humanos, 146 ‘JA construgio da democracia, 146 / 2. As origens, 147 / 3. A democracia liberal moderna, 150/ Declaragao dos Direitos do Homem e do Cidadao, 152 / 5. Humanismo, 154 / 6. Fundamentos histéricos conecito de direitos humanos, 155 / 7. A universalidade dos direitos humanos, 156 / Globalizagao ¢ universalismo, 158 / Atividades, 160 tulo 12 » Cidadania, 162 A politica eo pensamento renascentista, 162 / 2. Cidadania e vida piblica, 163 / 3. Nacionalismo e dania, 164 / 4, O despertar do Estado nacional, 165 / 5. Cidadania e sociologia, 166 / 6. Desafios da walidade, 168 / 7. Novo pacto social, 169 / 8. Nova territorialidade, 170 / 9. Pluralismo e trivializagao, 171 / ‘Os impasses do desenvolvimento, 172/111. O direito & paz, 174 / Atividades, 175 ra complementar, 178 estes, 177 a, 144 7 tulo 13 » Aorigem da cultura, 182 Estadando a cultura, 182 / 2. Processo evolutivo humano, 183 / 3. Humanizacao, simbolismo e 185 | Atividades, 187 i014 » Aimportancia da cultura, 190 ‘Galrura humana, 190 / 2. Os sentidos da palavra cultura, 191 / 3. O conceito de civilizagio, 192 / Oconceito cientfico de cultura na antropologia, 192 /8. As contribuigdes da teoria funcionalista: owski e Radcliffe-Brown, 194 / 6. Padres culturais, cooperagio, competigio e diversidade, 196 / lo 15 » Estudos da cultura, 200 logia no século XX, 200 / 2. Estruturalismo: uma nova abordagem antropolégica, 202 / -contribuigdes dos estudos marxistas, 204/ 4, A cultura como significado, 207 / 5. Pés-colonialismo, 208 / culturais, 209 / Atividades, 211 16 » Comunidade: a contribui¢ao da sociologia para o estudo da cultura, 213 sociologia e antropologia, 213 / 2, Os estudos sobre comunidade, 215 / 3. Comunidade como circulo gante, 217 / 4, Comunidade: uma abordagem interdisciplinar, 218 / 5. Comunidades e minorias Bais, 219 / Atividades, 220 complementar, 222 es, 223 17 » Classes sociais, grupos e tribos, 226 turacio e assimilacao, 226 / 2. Subculturas, 228 / 3. Contracultura, 229 / 4, Cultura de classe, 230 / Capitulo 18 > Cultura de massa, 238 1, A imprensa renascentista, 238 /2. O grande piblico, 239 / 3. O estudo da “massa”, 241 / 4, Cultura de massa ¢ homogeneizacao da sociedade, 243 /'5. Cultura de massa, poder politico e poder econdmico, 244 / Atividades, 246 Capitulo 19 » Localismos e comunidades virtuais, 248 1. Cultura: tempo e espaco, 248 / 2. Lugar e cultura, 248 /3. O lugar nas sociedades complexas, 251 / 4. Instituigdes totais, 252 / 5. Os néo lugares, 253 / 6. Culturas virtuais, 254 / Atividades, 256 Capitulo 20 » Multiculturalismo, 258 1..A produao simbélica, 258 / 2. Global, nacional, local, 260 / 3. Uma reagio a cultura de massa € 8 industrializagao da cultura, 262 / 4. Sinctetismos, 264 /. Releituras de uma antiga discussio, 267 / Atividades, 268 Leitura complementar, 270 Sugestées, 271 VOCE Ay Identidades, 272 ) Capitulo 21 > Identidade e subjetividade, 274 1. O reflexo, 274 / 2, Integrago a sociedade, 275 / 3. Os sonhos e a cultura, 276 / 4. O eu eo outro, 278 | 5. Rumo A individualizacao, 280 / Atividades, 283 Capitulo 22 » Identidade social, 285 1. A mascara, 285 /2. Os papéis sociais, 286 / Atividades, 294 Capitulo 23 » Identidade narrativa, 297 1, Signo, referente, linguagem ¢ identidade, 297 / 2, Narratividade, mitos e histérias, 298 / 3. Meméria individual e coletiva, 301 / 4. O interesse das ciéncias sociais pela narratividade, 302 /5. Identidade mididtica, 304 / Atividades, 306 Capitulo 24 » A identidade no mundo globalizado, 308 1. Supermercado mundial, 308 / 2. A busca por novas formas identitarias, 310 / 3. Ambientalismo, uma nova forma de identidade coletiva, 312 / 4. Fundamentalismos e novas formas de pertencimento, 314 / 5. Identidade de género e sexual, 315 / 6. Identidade e identidades, 317 / Aprofundando contetidos: A vor da comunidade, 318 / Atividades, 320 Leitura complementar, 322 Sugesties, 323 Ca Sociedade midiatica: relacdes e meios, 324 1 Capitulo 25 > Mediacdes e linguagens, 326 1. Narcisismo ¢ mediacao, 326 / 2. O ser das ciéncias humanas, 327 / 3. Contatos ¢ mediagdes, 330 / 4. O mito de Babel ¢ a glob: 0, 332 / 5. A revolugao escrita, 334 / Atividades, 337 Capitulo 26 » Comunicagao e sociologia, 340 1. A indtistria editorial, 340 / 2. Comunicagao € vida social, 343 / 3. Comunicador e receptor, 344 / 4. Opiniao publica, 346 / 5. Indistria cultural, 348 / Atividades, 350 Capitulo 27 » Aerada imagem, 352 1. Os vodus, 352 / 2, Magia e tecnologia: a invenco da forografia, 354 /3. A imagem em movimento ea invengio do cinema, 355 / 4. Radio e tel 10 invadem as residéncias, 357 / 5. Uma sociedade de imagens, 359 / 6. Uma aldeia global e analégica, 360 / 7. Representacao, alienagéo e comunicacio, 361 / Atividades, 363 Capitulo 28 > A sociologia e a sociedade mididtica, 365 1. Uma sociologia ¢ varias visées, 365 /2. Theodor Adomo, Walter Benjamin ¢ a pesquisa social na Alemanha, 366 / + Estados culturais na Europa e na América Latina, 368 / 4. Octavio lanni e o principe eletrénico, 370 / Piccre Bourdieu e 0 conceito de capital simbélico, 372 / 6. Guy Debord e a sociedade do espetaculo, 373 / ‘Roger Silverstone: por que estudar a sociedade midiética?, 375 / Atividades, 376 complementar, 378 Tecnologia e sociedade, 380 29 » Do Homo faber ao homem como forca motriz, 382 pedras, os80s e sacolas, 382 /2. Fabricar instrumentos nao é uma especificidade do ser human, 383 / ;c20 do desenvolvimento tecnol6gico, 385 /4. A transformagéo do homer em forca motriz, 387 / juéncias sociais do emprego da tecnologia, 389 / Atividades, 390 030 » Aemergéncia das midias digitais, 392 10, 392 1 2. Os antecedentes, 392 / 3. Comentando a emergéncia das midias digitais, 395 / historia dos computadores, 396 / 5. Para uma critica da informatizacao, 401 / Atividades, 403 031 » Sociedade e trabalho, 405 ogia contemporanea: neoliberalismo, informatica e globalizacio, 405 / 2. A automagio na 407 1 3. Sociologia ¢ trabalho na atualidade, 409 / 4. A perda de significancia do trabalho 2, 412/ 5. O horror econémico, 412 Atividades, 414 32 » Comunicacdo em rede e informacao, 416 sas consequéncias, 416 / 2, Comunicagdo a distancia e novas sociabilidades, 417 / 3. Multimédia -sensibilidades, 417 / 4. Interatividade e dialogismo, 419 / 5. Desafios da sociologia na sociedade , 422 / Atividades, 423 complementar, 42 es, 427 Sociedade de consumo, 428 33 > Consumo, 430 tum ato social e coletivo, 430 / 2. A produgao também é consumo, 431 / 3. O fetichismo da 43/6, A sociedade burguesa, 434 /5. Uma sociedade de emergentes, 435 / Atividades, 438 +34 » Aindustria de massa, 440 da indiistria, 440 / 2. O taylorismo e o fordismo, 441 / 3. A sociedade afluente, 443 /4, Consumo 445 | 5. A inddstria de bens simbélicos, 446 / 6. Deslocamentos: o kitsch, 447 | Atividades, 449 35 » Moda, 352 no ¢ substituigdo, 452 / 2. Origem, 452 /3. Individualismo versus massificacdo, 454 / no como status e valor, 456 / 5. Novos-ricos, cépias, simulacros, imitagoes, 457 / , 45917. A vida social das coisas, 460 / Atividades, 461 36 > Consumismo contemporaneo, 464 smo no inicio do século XX, 464 | 2. Toyotismo, 465 / 3. Produgio por demanda, 466 / ¢ desterritorializagio do consumo, 468 / 5. Ocio, lazer e entretenimento, 469 / informalidade, informacao, 471 / 7. O consumo sustentével, 472 / 8. O consumo consciente }do consumidor, 473 / Aprofundando contetidos: Quanto custa uma camiseta?, 474 | Atividades, 476 aS SS I Sociologia: a criacao do campo do saber Da era pré-cientifica ao Renascimento p. 10 Da Ilustracéo ao nascimento das ciéncias sociais p.26 Asociologia de Emile Durkheim p. 38 Asociologia alema: a contribuicao de Max Weber p. 68 Karl Marx e a histéria da exploracao do homem p. 60 = Reconstruir 0 desenvolvimento do pensamento sociolégico a partir do Renascimento. = Conhecer o caminho percorrido pela sociotogia, que a levou a se diferenciar da filosofia social ea se constituir em um corpo organizado de conceitos e metodologias cientificas, Gravura anénim. Fabrics tt de Sir Thomas Lombe, em Derby Seculo XU ASS Oe ae 2 aa aS FS O conceito de natureza ito de ‘natureza’ é hoje determinad Sm lerse medida, pela forma e pela significagao Beeeis que as ciéncias da natureza lhe conferi- as ciénci m-se apenas "es compreender isso a que se chama ‘na- ress. entretanto, sera preciso levarmos em fato de que os seres humanos I... surgi- pensedor rane lum dos pals da so moderna, 1900 ram do universo fisico. Numa palavra, teremos de incluir no conceito de natur que ela tem de produzir, no cegos, nao apenas reatores de hélio ou de: lunares, mas também seres humanos..” DORN teen t cad precy Pee Oe coor Cue) Cultura. Terma originariamente relacionado com a antropologia, Nas ciéncias socials, correspondeu, inicialmente, a um conjunto de habitos, costumes e farmas de vide capazes de distinguir um povo de outro ou um grupa social de outro, Atualmente, com o advento {de uma concepeao mais simbslica da vida humana, o conceito de cultura ganhou conteddos mais abstratos, que @ veer como lm canjunto de significados partilhades por um grupo, Figura 1 # Paes ogam bole. Rio Grande 6 Sul, 2007-Emsituaescferentes-esina lenteterimanto ou socablidade os sere hhumanas aprendem uns com os outes. Da era pré-cientifica ao Renascimento 1. O conhecimento como caracteristica da humanidade Ao observarmos animais de diferentes espécies, percebemos a exis- téncia de regularidades comportamentais que caracterizam a vida de cada grupo: eles se retinem, convivem, competem e se acasalam de forma ordenada, reproduzindo um certo modelo que varia em fungio do ambiente em que viver, A preservagao das espécies animais e sua adaptaco parecem ser, como afirmou Darwin na teoria sobre a evolugao das espécies, 0 ob- jetivo desses habitos de vida, da forma de convivéncia e da sociabili- dade. Assim, os animais desenvolvem estilos préprios de comporta- mento que lhes permitem a reprodugao ¢ a sobrevivéncia. © homem, como uma entre as varias espécies animais existentes, também desenvolveu processos de convivéncia, reprodugio, acasa- lamento e defesa. Desse modo, apresenta uma série de atitudes que © caracteriza, Algumas sao “instintivas”, so agdes e reagdes que se desenvolvem de forma espontinea, dispensando o aprendizado, como respirar ou alimentar-se. Proveniente de sua bagagem genética, 0 ho- mem demonstra também ser capaz de sentir medo, prazer ou frio ¢ de expressar esses sentimentos. Porém, quer por dificuldades impostas pelo ambiente, quer por particularidades da prépria espécie, o homem também desenvolveu habilidades comportamentos que nio so ge- néticos, mas culturais. Quando falamos em cultura, estamos nos referindo a um conjunto de valores, crencas, padrées de comportamento e habitos de vida que, apesar de geral e coletivo, varia no tempo ¢ no espago. A cultura nio se desenvolve em um grupo de modo espontaneo, mas é produzida historicamente, fruco da dinamica da vida em comum. Para ser trans- mitida por uma geragio para outra depende de aprendizado. Essas sao as principais caracteristicas do ser humano: viver de acordo com a cultura, desenvolver um sistema simbélico, comunicar- -se através de complexo processo linguistico e transmitir conhecimen- to por meio da socializagao (figuras 1 e 2). Tal complexidade exigiu gue o ser humano se tornasse objeto de ciéncias especialmente de- senvolvidas para compreendé-lo. Sao as chamadas ciéncias humanas, entre as quais se destaca a sociologia, que estuda especialmente os prinefpios que regem a vida em grupo. A ela dedicamos o presente tex- to abordando sua origem e os primeiros corpos tebricos organizados. os ajudar os leitores a entender melhor o mundo que os "2 torné-los mais sensiveis em relagio a sua participagéo como 2 espécie humana, que é tio peculiar. Sociologia: um conhecimento todos tas ¢ expressOcs como contexto social, classe, estrato, camada, 2 € conflito social so hoje muito veiculadas pelos meios de co- de massa e aparecem nos discursos politicos, na publicidade 42 dia das pessoas. Hé referéncias, por exemplo, as “classes so- 5 “clites” e is “presses sociais” como se fossem termos que fi de um vocabulirio conhecido por todos, como se politicos, adores e eleitores soubessem exatamente que clas significam. veez mais pesquisas, para os mais diversos fins, veiculam os €0 paiblico, em geral, demonstra entender os procedimen- zados por elas. O leitor ou espectador admite que seu compor- suas emogdes ¢ sentimentos dependem de suas caracteristicas assim como de certas regularidades que so observaveis bros de um determinado grupo exposto as mesmas circuns- Ele intui a existéncia de regularidades em nossa forma de to € reconhece que, por tras da diversidade entre as pes- te certa padronizacao nos modos de agir e pensar, de acordo a, idade, nacionalidade, classe social ou etnia. da sociologia nos diversos campos lade humana como 0 leitor, o espectador de televisio e o cidadao comum ‘que existem conceitos ¢ métodos relativamente eficazes para = 0 comportamento social. E profissionais das mais diversas no ignoram a validade do instrumental da sociologia. TONE LONELINESS Figura 2«Professra alunos em salad aula. Espirit Sant, 2008. Ly Contexto social. Conjunto de condicdes de vida caletiva que caracterizam uma sociedade, em determinada época e lugar, tais como forma de poder, sistema rodutivo e tipo de organizacao Social. Tais condigées, influenciam a din&mica da vida social e 0 desenrolar dos acontecimentos, @ As teorias desenvolvidas tan: tido especial aplicagao na elucidagao do comprometimento dos cidadaos em relagao a sociedade em que vivem. Figura3« esquisadora do Censo demogrifico reais entrevista pare coletar dados. Bastia, 2010, ‘Nao se constroem mais cidades, nao se desenvolvem campanhas po- liticas nem se declaram guerras sem levar em consideracio as pessoas envolvidas, suas crencas, seus interesses, suas ideias e tradigdes, enfim tudo aquilo que motiva sua ago e guia sua conduta. A sociedade tem caracteristicas que precisam ser conhecidas para que aqueles que nela atuam atinjam seus objetivos. Isso significa que nenhum setor da vida social prescinde dos conhecimentos sociolégicos, pois a acéo conscien- te e programada exige pesquisa, planejamento e método (figura 3). E por isso que a sociologia faz parte dos programas basicos dos cursos universitérios que preparam os mais diversos profissionais - de den- tistas a artistas, de engenheiros a jornalistas ~ ¢, por isso, também 0 socidlogo integra equipes nos mais diversos setores da vida social. Desafios da sociologia hoje Sistematizadas com o desenvolvimento das cidades e da industria, a5 teorias sociolégicas orientam os demais cientistas na compreensio da vida social e do comportamento coletivo. O didlogo estabelecido com as diversas areas do saber garantiu & sociologia uma dimensio interdisciplinar, ao mesmo tempo que enriqueceu os diversos campos cientificos. Além dessa abrangéncia e interdisciplinaridade conquistada pelo conhecimento sociolégico, as teorias desenvolvidas tém tido especial aplicagao na elucidacao do comprometimento dos cidadaos em re- ago a sociedade em que vivem. Dessa forma, 2 sociologia tem sido importante na educagao politica e na pratica da cidadania. Finalmente, a sociologia é particularmente necesséria em épocas de ctise e mudangas como a que vivenciamos na atualidade. Quando as instituigées se transfor mam, quando as relagOes sociais se afrouxam, quando padries éticos s40 abandonados, ou ainda, quando novas ideo- logias se difundem, é hora de pensar a vida social de modo sistemético € consequente, E em razo desses fatores, e, especialmente, da complexidade da vida contemporanea e das transformacGes que esto em processo, que a sociologia se torna indispensavel formacao dos jovens, dos profis- sionais e dos cidadaos. Fl ; i ! 3. Aemergéncia do pensamento cientifico Pensa cientificamente o ser humano ea vida social resultou de um lento processo pelo qual a ciéncia em geral e as ciéncias humanas em particular foram ganhando espago ¢ legitimidade, Além disso, embo- x2 0 pensamento abstrato seja uma das principais caracteristicas da humanidade, os modelos de conhecimento que o homem desenvolveu ndo foram sempre os mesmos. Os povos desenvolvem diferentes formas de explicagao a respeito da vida, da natureza e da sociedade em que vivem, dependendo dos fatores sociais, da tradigéo, da influéncia de outros grupos, da maior ‘ou menor resisténcia cultural. No mundo antigo, tal qual o entende- mos hoje, predominou o pensamento mitico e religioso que concebia © mundo como uma obra divina, submetida aos designios do criador. Para os egipcios, como para os babilénios, a eficiéncia do pensar limitava-se ao pragmatismo, 2 necessidade de solucionar problemas particulares que se apresentavam como obstéculos ao transcurso da existéncia, © pensar como um exercicio voltado para si mesmo, capaz de se desenvolver sem uma aplicabilidade imediata, independente das crengas religiosas ¢ do pensamento mitico, teve suas raizes hist6ricas na civilizagao grega. O pensamento especulativo grego Entre os séculos VI e V a.C., os gregos romperam com o senso comum, com a tradi¢a0 e com o pensamento mitico. Com essa mu- danga, desenvolveram uma reflexao laica e independente, propria do peasamento especulativo, que se debrugava sobre o mundo procurando entendé-lo em sua objetividade. Em consequéncia, acabaram por criar a filosofia e muitos dos campos do saber até hoje conhecidos, como a geometria e a astronomia (figura 4). Alguns historiadores dao o nome de “milagre grego” a esse salto qualitativo do conhecimento humano sobre si e a natureza, em que se abandonaram a explicagao mitica e o principio da interferéncia das forcas sobrenaturais nos destinos do homem para dirigir-se a obten- 40 do saber por meio da abstracdo comandada pela razdo. A ideia de milagre vem, por um lado, das amplas repercussdes causadas por essa revolugio na vida da época e de periodos posteriores e, por outro, da falsa impressio de ter sido uma mudanga abrupta, vinda do nada e cocorrida rapidamente. ‘A consciéncia individual emancipava-se a medida que o homem rego constatava ser 0 destino o resultado da ago humana e nao da vontade dos deuses e do respeito aos rituais sagrados. Crescia nele a percepgao de si mesmo como um individuo dotado de razdo e capaz de realizar ages inspiradas por ela. Apesar do grande avango no co- nhecimento da natureza e da sociedade proporcionado pelos gregos antigos, a racionalidade e a investigagao especulativa da natureza s6 se tornaram formas dominantes de pensar muitos séculos mais tarde, a partir do Renascimento (séculos XIV-XVI). Pensamento especulativo, Diz-se ‘daquela reflexéo que vai além do imediato e da necessidade pratica, buscando o nove, 0 inusitada ® o criativo como resultado do ‘exercicia da razzo, Busto de Séerates,copla inal orego do século W ae. atribulde 40 escultr gregoLysippos. [Atistéia da flosofiegregadividese emprésoctitieae ps-socrtia, Doraue ¢ partir de Sécrates, que Se conhece pels textos exerts por Platao, que a oso adquir novo desenvolvimento, @ uma grau: ® O Renascimento se caracteriza por wna nova postura do homens: ocidental diante da natureza edo conhecimento. Hegeménico. Termo que designa a pasicae de dominancia de pessoa, grupo social ou insténcia da vida social sobre totalidade, que é maltipla e diversificads, Dessa forma, a hhegemonia implica diferentes 1s de imposicao de uma parte sobre o todo, Figura 5 « Detthe da pintura Banquete de casamento, de Sandro Bottcll, 1483. £m conas como essa, ‘os plntores renascentstas(stculos XV ‘eV @atavam a vida terena 4. Arazao a servico do individuo e da sociedade Foi no Renascimento, com o desenvolvimento do comércio e de niicleos urbanos, que 0 pensamento cientifico se impés como forma hegeménica de pensar 0 mundo, abrindo-se uma era de apogeu do cientificismo e da racionalidade. © Renascimento é um dos mais importantes momentos da histéria do Ocidente. Foi quando se processou a ruptura entre o mundo medie- val, com suas caracteristicas de sociedade agréria, estamental, teocratica ¢ fundiaria, e 0 mundo moderno urbano, burgués e comercial (figura 5). Esse movimento representou uma nova postura do homem ocidental diante da natureza e do conhecimento, Juntamente com a perda de hege- monia da Igreja Catdlica como instituigéo € 0 consequente apareci- mento de novas doutrinas ¢ seitas conclamando seus seguidores a uma leitura interpretativa dos textos sagrados, o homem renascentista re- descobriu a importancia da divida e do pensamento especulativo. O conhecimento deixou de ser encarado como uma revelagio, resultante da contemplacao e da fé, para ser o resultado de uma bem conduzida atividade do pensamento (figura 6) “Este € 0 homem novo do Renascimento: aquele que se liberta da tradigdo pela duivida e confirma seu valor através dos resul- tados de seus esforcos; aquele que confia em suas experiéncias € em sua razo; 0 que confia no novo, pois assume sua realize- do dentro da temporalidade.” PESSANHA, José Américo Motta. Humanismo e pintura In: NOVAES, Adauto. Artepensamento. Séo Paulo: Companhia das Letras, 1994. p. 34. E nesse ambiente propicio de curiosidade, divida e valorizagao hu- mana que o pensamento cientifico adquiriu nova importancia, promo- vendo o aumento do interesse pelo entendimento da vida social. 4 4 i : O crescimento das cidades do comércio, as viagens maritimas, Thomas Morus (1478-1535) Nasceu em Londres. Foi pen- sador, estadista, advogado © membro da Camara dos Comuns. Como bom humanis ta, desenvolveu estudos sobre © grego antigo. Em 1818, foi no- meado membro do Consetho Secreto de Henrique Vill e chegou 2 ocupar, em 1529, © mais alto cargo do reine Opés-se 8 anulacéo do casa- mento de Henrique Vil, re~ cusando-se a jurar fidelida- de & loreja Anglicana funda- da pelo rei, por ser catélico e contrério aos desmandos da autoridade real. Foi pre- s0, condenado e axecutado. Em 1935, foi canonizado pe- ta Igreja Catélica, e sua fes- ta é celebrada em 6 de ulho, dia de sua morte. Sue grande obra é A Utopia Figura 7 Micolau Maguivel, pinta de Sant di Tito século XVI Nicolau Magulavel, {tutor de O principe, éconsideradoo Fundader de dencia potica As utopias Entre 0s diversos géneros literdrios que floresceram no Renasci- mento, um deles, a utopia, expressou essa nascente preocupagao com 0s problemas sociais. Herdadas dos gregos antigos, as utopias eram obras que, a maneira das ficgdes cientificas modernas, procuravam projetar sociedades perfeitas. O préprio nome é sugestivo: utopia, que significa “lugar nenhum”, uma alusao 8 dificuldade de se construir uma sociedade sem desigualdades ¢ injusticas. As utopias criadas por Thomas Morus e Tommaso Campanella eram um exercicio literdrio e sociolégico no qual os autores treina- vam © pensamento social: inventavam instituigdes politicas nao auto- ritérias, mecanismos de controle social justos e formas igualitirias de producdo € distribuigdo de bens. Essas obras demonstravam que seus autores j4 eram capazes de pensar criticamente a sociedade e propor solugdes que dependiam essencialmente da vontade humana. A socie- dade deixava de ser mero cendrio para o desenrolar da vida ¢ tornava- -se parte da cena e da a¢do do homem. > Utopia Utopia vem dos termos gregos ou "nao"le topos {“lugar’l. Significaria li- teralmente “nenhum lugar”. Corresponde, na histérie do conhecimento, a ‘essa evocagdo por uma aspiracéo, sonho ou desejo manifesto, de um esta~ do de perfeicdo sempre imaginario. Na medida, entratanto, em que a uto- pia enfoca um estado de perfeicao, ela realiza, por oposicao, um exercicio de andlise, critica e deniincia da sociedade vigente. O estado de perfeicio censejado na utopia é necessariamente aquele pelo qual se tornam eviden- tes as imperfeigées da realidade em que se vive. Mas, apesar de seu ca~ rater de evaséo da realidade, a utopia revela uma epurada critica a ordem social, podendo inclusive se transformar em auténtica forca revoluciond- ria, como indicar os grandes movimentos messianicos vividos pela huma- nidade, ou seja, aqueles movimentos que tém por meta a redencao da hu- manidade ou a salvacao do mundo, Maquiavel: o criador da ciéncia politica Nicolau Maquiavel (figura 7), pensador florentino, escreveu O principe (figura 8) e dedicou sua obra a Lourengo de Médici, gover- nador de Florenca e personagem importante dessa época, protetor das artes ¢ das letras. No texto, Maquiavel se propée a analisar poder e as condigdes pelas quais um monarca absoluto - 0 principe ~ € capaz de conquistar, reinar e manter seu poder. Como Thomas Morus, Maquiavel acreditava que a paz social dependia das caracteristicas pessoais do principe - que ele chamou de virtudes -, das circunstdncias hist6ricas e de fatos que ocor- riam independentemente de sua vontade ~ as oportunidades, Acre- ditava também que do bom exercicio da vida politica resultaria a felicidade do homem e da sociedade. Mas, sendo mais realista do que seus contemporaneos utopistas, Maquiavel faz de O prin- cipe um manual de ago politica, cujo ideal é a conquista ea manu- tengo do poder. Disserta a respeito das relagdes que 0 monarca deve manter com a nobreza, o clero, povo ¢ seu ministério. Mos- tra como deve agir 0 soberano para alcangar e preservar 0 poder, como manipular a vontade popular e usufruir seus poderes e aliangas. Faz uma anilise clara das bases em que se assenta o poder politico: as- segurar exércitos figis e corajosos, castigar os inimigos, recompensar os aliados ¢ destruir, na meméria do povo, a imagem dos antigos lideres. Suas andlises so téo pertinentes que sua obra atravessou os séculos, sendo até hoje considerada bésica para o estudo da ado politica. > Nicolau Maquiavel (1469-1527) Nasceu em Florenga, mas fez sua carreira diplomatica em diversos paises da Europa, De 1502 a 1812 esteve a servico de Soderini, um dos mais po- derosos estadistas de Florenca. Ajudava-o nas decisées pollticas, escre- via-lhe discursos e reorganizou 0 exército florentino. Foi exiledo e afasta- {do da vida pitblica quando Soderini foi removido do governo por Lourenco de Médici. A partir de entao, limitou-se a ensinar e a escrever sobre a ar- te de governar e guerrear. £ considerado o fundador da ciéncia palitica e, segundo alguns, jamais foi superado nesse campo. Suas principais obras 80: 0 principe e Discursos sobre a primeira década de Tito Livio. Avisao laica da sociedade e do poder £ em obras de Thomas Morus e de Maquiavel que percebemos como as relacées sociais passam a constituir objeto de estudo dotado de atributos préprios, e a paz social deixa de ser, como no passado, consequéncia do acaso, da vontade divina ou da obediéncia dos ho- mens as escrituras. Nelas, a sociedade jé aparece como resultado das condigdes econdmicas ¢ politicas e nao da providencia divina, ou seja, uma visio laica da sociedade. Alm disso, esses filésofos expressam os novos valores da época ao colocar os destinos da sociedade e de sua boa organizagéo nas mos de um governante que se distingue por suas caracteristicas individuais, A monarquia proposta no Renascimento nao se assenta apenas na le- gitimidade do sangue ou da linhagem, na heranca ou na tradigéo, mas também na capacidade pessoal do soberano e em sua sabedoria. Também a histéria, como conhecimento objetivo dos fatos, passa a ter um papel relevante no desenvolvimento dessa reflexdo, como fonte de informacao e experiéncia. Maquiavel se vale de acontecimentos € de lideres do passado como argumentos na defesa de suas ideias, de- monstrando reconhecer que a vida social depende de leis que regulam © comportamento social em diferentes épocas e lugares. Os fatos his- t6ricos devem ser analisados e servir de exemplos. Ha em O principe, como em outras obras ut6picas, importantes elementos que caracterizam o que viria a ser 0 pensamento sociolégico: a crenga na ago humana e em seu poder decisivo sobre a histéria, bem como a busca por regularidades capazes de fundamentar o estudo objetivo da sociedade. Por outro lado, esses textos jé claboram uma concepgio emergente de poder - a monarquia constitucional na qual se realiza a aspirada alianca entre a burguesia e os reis, que permitiu, a partir de entio, o surgimento dos Estados nacionais, Maquiavel e Thomas Morus podem ser apontados como precur- sores do pensamento sociolégico, e suas obras como pertencentes a0 gue podemos chamar de sociologia pré-cientifica ~ uma formulagéo que considera a sociedade uma construcao humana, dependente de escolhas coletivas e nao da vontade divina, A vida social depende de leis que regulam 0 comportamento social em diferentes épocas e lugares. Laicismo. Doutrine filoséfiea que defende a separacao entre vida piblica e religiao insttucionalizada. Laice & 0 adjetivo que qualifica realidedes {que buscam estar isentas do dogmatismo religioso, sej2 qual for a religie. NICOLAI eee SYLVESTRI TELIt Ex offcinaPetsiPeme Figura + Frontspico da ¥edigfo1em latim do ro O prince de 1532. Esa cobra écansderada undamentl para {3 forragg0 de moderna secologla, por critica @sociedade exstente na época« proper altematvas. O pensamento burgués representou ma rupiura em relagio 20 mundo medieval. Figura 9 « 0 banqudro esua mulher, ce Marinus van Reymerswaele, 1539. ‘nova classe socal do burguesla ascendente rouxe, unto com o seu deseje de acuulariquezas,o deseo Ge desfrutara vida de outro mado, ‘etivado por uma nova visio de ‘mundo ede Indvidualdsde, 6. A transi¢ao para o Iluminismo: uma nova etapa no pensamento burgués Diferentemente do homem medieval, predominantemente espiri- tualista e gregirio, 0 homem pés-renascentista foi estimulado a amar a vida, a buscar a satisfagéo de suas necessidades de modo individual ea cultivar sua subjetividade feita de sentimentos e de pontos de vista pessoais. As cidades ganharam vida, atraindo pessoas de diferentes lugares dispostas a conquistar um espaco no mundo, a competir e a enri- quecer (figura 9), Seus anseios eram direcionados para a existéncia terrena e as conquistas materiais, e ndo apenas para as preocupacdes com a vida apés a morte e as verdades transcendentais. E, a medida que a Europa avancava para a modernidade, essa mentalidade nova se afirmava e se difundia. ‘No campo econémico, uma atitude expansionista tomava conta de todas as atividades, e o lucro se tornou um dos principais objeti- vos de qualquer atividade. No entanto, nio se tratava do lucro como praticado nas trocas comerciais feitas nos perfodos mais remotos — uma forma de remuneragao do comerciante e do produtor pelo seu trabalho -, uma quantia cuja monta nao deveria exceder nunca os limites estreitos capazes de assegurar 0 sustento dos comerciantes € de suas familias, ou seja, um ganho justo. O lucro que ultrapassasse essa fronteira era considerado antiético pela sociedade e pecaminoso pela Igreja Catélica. Agora, a sociedade comercial estava atrés desse Iucro até entao considerado sem “ética”. Em fungio dessa busca por lucros, organizaram-se viagens inter- continentais e fizeram-se guerras nas quais eram disputadas as rotas. comerciais, a clientela ¢ as fontes de produtos e matérias-primas. As grandes navegages ocorreram nesse cenério. i 3 i 5 i 4 i i & 3 3 a 7. O cientificismo A valorizagao das trocas comerciais ¢ as novas possibilidades de lucro que se abriram ao comerciante burgués acabaram por repercu- tir na produgao, estimulando-a. Tornou-se urgente produzir mais e em condigdes capazes de responder a demanda que sc tornava cada vez mais insistente, Racionalidade e planejamento comecaram a set exigidos dos produtores e tornou-se necessério o desenvolvimento de tecnologia para a producdo em larga escala. O estimulo & invengio de maquinas que potencializassem a produgéo, com a promessa de prémios em dinheiro, provocou uma verdadeira cortida por engenhos tecnol6gicos que acelerassem producdo e barateassem os produtos (figura 10). A tecnologia ajudava também na conquista de terres e na guerra entre povos, uns procurando sobrepujar os outros, estabelecen- do diferentes formas de poder: bélico, comercial e politico. Nessas condigdes, incentivou-se a pesquisa cientifica e se dissemi- naram atitudes de planejamento e racionalidade que aos poucos se inseriram na produgao e no restante da vida cotidiana, Buscou-se co- hecer os mecanismos que regulam 0 mundo circundante, procurando entender a vida e a natureza. E, sobre a base do individualismo e da laicidade estimulados no Re- nascimento, essa curiosidade cientifica se dirigiu, de forma inusitada, para a compreensdo da sociedade, que passou a ser vista como uma realidade diferente e prépria, sobre a qual os homens interferem como agentes. Vislumbrava-se, nesses primérdios do pensamento sociol6gico, a ‘oposigio entre individuo e sociedade, entre liberdade e controle social. Com essa nova atitude diante da vida social, estavam lancadas as bases de uma prética cognitiva que levou ao desenvolvimento da filo- sofia social e, depois, da sociologia, 2 3 i i 2 . : Figura 10« Projetode Da Vin! pataa construcdo de ume bests ‘igantelarma para ater sess), 161485, 0 Renascimento valoizou ‘ométedo centifico eo uso da tecnologia para o controle ‘da natureza.Centstas como Leonard de Vine tomaremse mult respetados eimitados. ENCE Le Compreensao do texto 11. Sublinhe um pardgrafo do capitulo capazdesintetizar o argumento de queo conhecimento uma caracteristica essencialmente humana, 2. O capitulo deixa caro que sem o desenvolvimento da ciéncia nao teria sido possivel chegar 8 sociologia. Enuncie as caracteristicas que o texto atribui & cléncia, 3. Comoo capitulo analisa as diferentes fases do desenvolvimento do conhecimento humano ra histérla da humanidade? Faca uma sintese localizando as principais etapas e organize-as em uma linha do tempo. 4. Como 0 capitulo explica 0 que fol o Renascimento? Elabore uma ficha sobre o periodo que contenha os seguintes elementos: f Epoce: Lugares: Nomes importantes (artistas, filésofos, cientistas e politicos) 5. De que maneira as teorias de Thomas Morus e Nicolau Maquiavel abriram caminho para a formacao do pensamento cientifico social ou da sociologia, que ocorreu séculos depois da morte deles? 6. Levando em conta o texto sobre Maquiavel, aponte uma diferenca entre a obra do florentino eas demais manifestagdes da literatura ut6pica, ‘7. Procure em livros jornais,revistas e sitios na internet material arespeito de Johannes Gutenberg, da inven¢ao dos tipos méveis e de suas consequéncias para o desenvolvimento do conheci- mento e da ciculagao da informacao. Elabore um pequeno texto com as informacoes obtidas, Interpretacao e problem: Sao 8. Analise a figura 9, que retrata importantes aspectos do Renascimento ~ racionalidade ¢ maior preocupacéo com a vida material do que com a espiritual -, e descreva os elementos que justificam a interpretacdo da obra como caracteristica desse momento hist6rico. 9. Aideia de que existe um espaco onde reina a felicidade e onde as necessidades do homem serdo satisfeitas esté presente na literatura em todos os tempos. No Brasil literatura tem um. bom exemplo~ 0 poema de Manuel Bandeira "Vou-me embora pra Pasargada’. Em termos sociolégicos, como vocé definiria esse poema e por qué? Vou-me embora pra Pasérgada “Vou-me embora pra Pasérgada LA sou amigo do rei Lé tenho a mulher que eu quero Na cama que escolherei Vourme embora pra Pasérgada Vou-me embora pra Pasérgada Aqui eu nao sou feliz Lda existéncia é uma aventura De tal modo inconsequente Que Joana a Louca de Espanha Rainha e falsa demente Vem a ser contraparente Da nora que nunca tive E como faret gindstica Andarel de bicicleta Montaret um burro brabo Subiret no pau de sebo Tomatei banhos de mar! E quando estiver cansado Deito na beira do vio Mando chamar a méed'4gua Pra me contar as hist6rias Que no tempo de eu menino Rosa vinha me contar Vou-me embora pra Pasdrgada Em Pasérgada tem tudo £ outra civilizagao ‘Tem um processo seguro De impedir a concepgéo Tem telefone automatico Tem alcaloide a vontade ‘Tem prostitutas bonitas Para a gente namorar E quando eu estiver mais triste Mas triste de nao ter jeito Quando de noite me der Vontade de me matar = Lé sou amigo do ret - Terei a mulher que eu quero Na cama que escolherei Vou-me embora pra Pasargada. BANDEIRA, Manuel. Poesia completa € prosa. I Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1986. p. 222. Aplicacao de conceitos 10. Cinema ‘Shakespeare apaixonado, de John Madden Giuliano. Estados Unidos, 1998, 123 min. O filme ilustra a influéncia do Renascimento na Inglaterra e enfoca o ressurgimento da vida urbana e os problemas enfrentados pelos homens na época, como a peste negra. > Apesar de ofilme ser uma ficcao, ele traz muitos elementos da realidade social da épocae aborda temas que ainda so contemporéneos. Recupere do filme o tema da relacdo entre odever social ea satisfagio pessoal e debata com os colegas os limites do individualismo. Pesquisa ‘11. Com base no que estudou e no que sabia sobre o tema, elabore uma definicao de utopia, Depois, de acordo com ela, faca uma pesquisa sobre outras utopias pensadas pela humani- dade, postas em prética ou nao. Leitura visual 12, Observe atentamente as emogdes expressas nas imagens, (sgestos es elgbes podem expresso diferentes emosées a) Quais emogdes podem ser percebidas em cada uma delas? bb) Escolha duas dessas imagens e escreva uma curta historia sobre a emoco percebida, considerando também as caracteristicas materiais nelas representadas. ©) De que forma saciolagia pode ajudar a compreender essas historias? Questées de vestibular e do Enem 13. 4 (Udese) 0 termo Renascimento 6 comumente aplicado a0 movimento de mudancas culturais que atingiu as camadas urbanas da Europa Ocidental, entre os séculos XV e XVI. Sobre as caracteristicas que ajudam a definir esse movimento, assinale V para as afirmativas verdadelras e F para as afirmativas falsas. (_) Uma das caracteristicas mais marcantes do Renascimento foi seuracionalismo, conviccéo de que tudo pode ser explicado pela razao do homem e pela ciéncia. (__) Asbases desse movimento eram proporcionadas por uma corrente filoséfica, o Huma- nismo, que valorizava o homem ea natureza, em oposicao 20 divino eao sobrenatural, conceitos que haviam impregnado a cultura da Idade Média (__) Ha retomada dos valores da cultura greco-romana, ou seja, da cultura cléssica (_ ) 0 Universalism foi uma das principals caracteristicas do Renascimento; considerava que o homem deve desenvolver todas as éreas do saber. Leonardo da Vinci éo principal modelo desse"homem universal’. Assinale a alternativa que apresenta a sequéncia correta, de cima para baixo. a) V-V-F-F. b)V-V-v-v. oV-V-F-¥. d)F-V-v-v, e) F-V-V-F (UFG-Go) “Um principe desejoso de conservat-se no poder tem de aprender os meios de no ser bom.” MAQUIAVEL, N. O principe. In: WEFFORT, Francisco. Os eléssicos da politica. Séo Paulo: Atica, 1993. p. 37. Com Nicolau Maquiavel constitui-se um novo pensamento politico, ritico em relaggo ‘a0 critérios que fundamentavam a legitimidade do principe medieval. Explique por que ‘© pensamento politico moderno excluiu a bondade como critério legitimador do poder do principe. CAPITULO. Déspotas esclarecidos. Monarcas europeus do século XVlll que associavam os ideais iluministas de amar a0 progresso 2.0 desenvolvimento das artes, 2 das cléncias com o exercicio autoritgrio do poder Figura 1 «Votre na corte de Frederico de Adolph Von Menge, 1850, 0 fdsof0 Voltaire 0 terceiro sentado 8 ‘squeréa, conversa com as lieree da Academia de Berlin. 0 lluminiso teve Lum forte impacto na sociedad europea, infuenclando vies moneras que 'Bassaram a ser conhecidos como potas esclarecidos", Da Ilustracao ao nascimento das ciéncias sociais 1. Iluminismo: a sociedade inteligivel A Ilustragdo, movimento filoséfico que sucedeu o Renascimento, baseava-se na firme conviccdo da raz4o como fonte de conhecimento, na critica a toda adesio obscurantista e a toda crenga sem fundamen- tos racionais ¢ também na incessante busca pela realizagio humana Em relacdo a vida social, os fildsofos da Hustracao procuraram enten- der a sociedade como um organismo vivo, ou seja, composto de partes interdependentes. Desse exercicio de discernimento resultou também a compreensio de diferentes instdncias da vida social - as relagdes politicas, juridicas e sociais (figura 1), Das relagdes entre as partes e as instncias constituintes depende 0 funcionamento do todo, no qual se fundamenta o conceito de nacdo — um conjunto organizado de relagdes intersocietirias, O nacionalismo emergente do Renascimento, identificado ainda com a pessoa do mo- narca, dé lugar a nogdo de uma coletividade organizada e contratual, representada por sistemas legais, politicos e administrativos conve- nientes. O poder passa a ser entendido como uma construcio légica e juridica, independentemente de quem o ocupa, de forma temporé- ria e representativa 3 5 5 Em busca da razao pratica Nos séculos XVII e XVIII, o fortalecimento de um poderoso mer- cado internacional, praticamente de ambito mundial, o avango da produgio em massa (inicio da Revolucao Industrial na Inglaterra, no século XVIII) € a consolidagao do lucro como uma atividade desejavel ¢ eticamente aceitavel foram fatores que estimularam a intelectualida- de burguesa a avangar para a elaboragio de um pensamento préprio. A sociedade apresentava necessidades urgentes que desafiavam os cientistas. De um lado, melhores condicdes de vida. De outro, o desen- volvimento tecnolégico capaz de baratear os produtos, aumentando a produtividade e aprimorando a produgio ¢ a armazenagem de mer- cadorias, o transporte e a distribuigao de pessoas ¢ bens. A sociedade avangava para a indistria e a cultura de massa. Mas planejar e projetar o futuro exigia o aperfeigoamento do con- ceito de Estado nacional. A nacao deveria se orientar por uma poli- tica que favorecesse a prosperidade e a acumulagio de riqueza e que tivesse no individuo sua mola mestra. Um individuo pleno de desejos € expectativas de realizagio pessoal e de liberdade para agir, movi mentar-se, consumir, gerir negécios e lucrar. Novos valores guiando a vida social para sua modernizacao produzi- ram um clima confiante em relagio ao futuro do homem, o que levou a «esse surto de ideias, conhecido pelo nome “Ilustragdo”. Um movimento que propunha uma atitude curiosa livre que se estendia tanto & elabora- co teérica como a sistematica observaciio empirica. Que acreditava ser 0 conhecimento fonte de saber, de realizacdo e de satisfacdo para a huma- nidade. Que acreditava na evolugio incessante do ser humano (figura 2). As ideias iluministas de progresso, contudo, conviviam com uma realidade bem menos otimista, que admitia a exploragio, a escravidio € até mesmo 0 genocidio. Nas cidades, desenvolvimento urbano fa- zia surgir areas degradadas e miseraveis. Mas, também esses aspectos da industrializacdo e do colonialismo se apresentavam como proble- mas ¢ estimulos ao saber cientifico. Raber no inal do século XVI Klogravura francesa, século XI. A cléncla ne ers moderne se atlemava como sinbnimo de verdadee progresto. Revolucao Industrial Nome dado ao conjunto de transformagées sociais, leconémicas e tecnolégicas gue ocorreram como desenvolvimento da industrializacao na Europa no século XVill A emergente sociedade burguesa apresentava necessidades urgentes que desafiavans os cientistas, principio de liberdade admitia que, liore de coibigées, obstaculos e jngos, 0 homem seria capaz de exercer sua soberania, escolhendo corretamente entre os fins e 0s objetivos propostos. > Charles Darwin (1809-1882) Naturalista britnico, revolu- cionow as ciéncias ao conven- cera comunidade cientfica de que a evalucéo nao era ape- nas uma hipdtese, mas um fa- toda natureza, 20 propor uma teoria capaz de explicar como ela se dé por meia da selecdo natural e sexual. A teoria da selecao natural, como é popularmente conhe- ida, foi exposta pela primei- ra vez no seu mais famoso texto cientifico, A origem das espécies, publicado em 1859. A obra surgiu apés uma lon- ga viagem de cinco anos que Darwin tez a bordo da em- barcacio HMS Beagle, que the permitiu entrar em con- tato com varias espécies de animais em todo o mundo. AS observagdes realizadas o le- varam a estudar a dversifica- G80 das espécies, o que o con- duziu 3 teoria da selecdo na- tural. Muito contestada, tanto no passado como no presente, a teoria de Darwin se firmou no mundo cientfco e hoje for- rma a base da biologia, 2. Liberalismo: a filosofia social dos séculos XVII e XVIII A Ilustracio, além de manter uma postura racionalista diante do conhecimento, também desenvolveu o liberalismo ~ movimento filos6- fico em defesa da liberdade nos mais diversos campos da agio huma- na: politico, religioso, econdmico ¢ social. O liberalismo correspondew ao interesse burgués de emancipar-se das amarras da monarquia e da defesa dos privilégios da nobreza. Tendo por base a ideia de que a sociedade era regida por leis naturais, semelhantes em seu determinismo aquelas que regem a na- tureza, 05 fildsofos da Ilustragao rejeitavam toda forma de controle politico que interviesse sobre essa racionalidade natural e fisica. As- sim, 0 mercado era concebido como o espaco da livre ago das leis que regulam a oferta, a procura ¢ o prego, rejeitando-se toda forma de controle “nao natural” realizado pelo Estado. O conhecimento dessas leis e da forma como atuavam era o objetivo principal do, pensamento ilustrado, © principio de liberdade admitia que, livre de coibicées, obstaculos € jugos, 0 homem seria capaz de exercer sua soberania, escolhendo corretamente entre os fins € os objetivos propostos. As leis naturais regulariam as relagdes econémicas, e as sociedades seriam construfdas com base na vontade livre e nas relagdes contratuais firmadas entre os homens. John Locke, pensador inglés, defendeu a ideia da sociedade resul- tante da livre associagao entre individuos dotados de razdo e vontade que também teria uma base contratual que regularia as formas de poder e as garantias de liberdade individual. Entre os direitos indivi: duais, Locke reconhecia o respeito A propriedade. Recomendava que tais principios, direitos e liberdades estivessem expressos e garantidos por uma constituigao, Jean-Jacques Rousseau, nascido na Suiga, mas cuja atuagio se deu principalmente na Franca, foi um dos mais ardorosos defensores dessa ideia, Em sua obra Contrato social, afirmou que a base da vida social estava no interesse comum e no consentimento undnime dos homens em renunciar &s suas vontades particulares em favor da coletividade. ‘Mais pessimista que outros filosofos da sua época, Rousseau (an- tes da publicagdo das ideias evolucionistas de Darwin no século XIX) rejeitava a ideia de evolucao natural da sociedade e, buscando desven- dar a origem das desigualdades sociais, identificou no aparecimento da propriedade privada a fonte de toda diferenciagio e injustiga social. Tornow-se, assim, partidario de uma sociedade que defendesse prin- cfpios igualitarios e cuja organizacao politica tivesse uma base livre e contratual, principais lemas da Revolugao Francesa, que se avizinhava. Esses fildsofos davam inicio a uma forma de pensar que levaria & descoberta das bases materiais das relages sociais. Percebiam clara- mente a diferenga entre individuo e coletividade, mas, presos ao prin- cipio da individualidade, entendiam a vida coletiva como a fusio de sujeitos, possibilitada pela manifestagdo explicita das suas vontades. 2 j ; : i Legitimidade e liberalismo A ideia de Estado como uma entidade cuja legitimidade se baseia na pretensa representatividade da sociedade é um avango em relagio a ide de monarquia absoluta. Nao se trata mais de uma pessoa que governa por diteito de heranga e sangue, mas de uma instituigao abstrata que ad- ministra um territ6rio a partir de pactos estabelecidos pela coletividade, A filosofia social da Ilustracdo concebia também a ideia de nagio como 0 gerenciamento e a administragdo de leis, riquezas e poder. Nesse proces 50 pressupdem-se a nocdo de conflito de interesses e o confronto social, As ideias de Locke e Montesquieu ~ outro importante pensador da Iustragéo ~ foram a base para a Constituigao dos Estados Unidos de 1787 € para o modelo republicano existente até hoje. Desenvolvendo a ideia esbogada por Locke, Montesquieu pregou a divisdo do Estado em trés poderes auténomos ~ o Exccutivo, o Legislativo ¢ o Judiciario =, que seriam exercidos por diferentes pessoas, recurso necessario para garantir a distribuicao da autoridade em uma nacido. Adam Smith: 0 nascimento da ciéncia econémica Adam Smith foi considerado 0 fundador da cigncia econdmica e demonstrou que a anélise cientifica podia ir além do que era expres- samente manifesto nas vontades individuais. Na busca por entender a origem da riqueza das nagGes, Smith identificou no trabalho, ou seja, na produtividade, a grande fonte de producao de valor, Nao somente a agricultura, como queriam uns, nem a indistria, como queriam outros, ‘mas principalmente o trabalho ~ capaz de transformar matéria bruta em mercadoria era responsavel pela riqueza das nagées. ‘Nesse esforgo por compreender as relages econdmicas, Adam Smith no pensava a sociedade como um conjunto de individuos dotados de vontade ¢ liberdade, tal como havia feito Locke, Sensivel a verdadeira natureza da vida social, Adam Smith percebia que a coletividade era muito mais do que a soma dos individuos que a compéem, definindo a sociedade como um conjunto de seres cujo comportamento obe- dece a regras diferentes das que regem a aco individual (figura 3). ‘A Revolugao Industrial estava em pleno andamento, e seus frutos se anunciavam. A filosofia social da Ilustragao levou & descoberta das bases materiais das relacdes sociais. Figura 3 «A incusdo do pel ‘de Adam Smith na nova note de 2olibras, que passoua circular ra Inglatera am 2007, 6 uma hhomenagem ao pa do liberalism econbmico emostia a orga das 5125 dels ainda hoje. © Figura» Experénciacom umabombode or, ide Joseph Wright, 1768 A céncia,duranteo sdculo XVI eve Uma grande populrizacso, ‘muitos vam com curiosicade e espant, endo entendiam ox evs principos Er, entretanto, uma nova posta dante da vida ‘¢danatureza,O quadro de Wright most esse rove ambiente centile, 3. 0 milagre da ciéncia A filosofia da lustra¢do preparou o terreno para o surgimento das ciéncias sociais no século XIX, langando as bases para a sistematizagdo do pensamento cientifico ¢ espalhando otimismo em relagio a ele. As ideias de progresso, racionalismo e cientificismo exerceram todo um encanto sobre a mentalidade da época (figura 4). Preparava-se 0 caminho para o amplo progresso cientifico que iria aflorar no final do século XIX. Se esse pensamento racional e cientifico parecia valido para ex- plicar a natureza, intervir sobre ela e transformé-la, ele poderia tam- bém explicar a sociedade, entendida, entio, como parte da natureza Assim, por associagao, a sociedade poderia também ser conhecida e transformada, submetendo-a ao dominio do conhecimento humano, As questées de método filésofo da Iustrag4o preocupou-se nao s6 com o conhecimento da natureza, mas também com o desenvolvimento do método mais adequado para esse fim. Desse interesse derivaram diferentes modelos de pesquisa e de maneiras de se fazer ciéncia (figuras 5 e 6). O primei- ro foi a indugao ~ método que concebia 0 conhecimento como resulta- do da experimentago continua e do aprofundamento da manipulagao empirica, defendido por Bacon desde o alvorecer do Renascimento. O segundo, de Descartes, foi o método dedutivo, que propunha uma forma de conhecimento bascada no encadeamento légico de hipoteses elaboradas a partir da razao. A ciéncia se fundava, portanto, como um conjunto de ideias que di- ziam respeito & natureza dos fatos ¢ aos métodos para compreendé-los, Por isso, as primeiras questdes que os sociélogos do século XIX ten- tam responder s4o relativas a identificagao e 4 defini¢do dos fatos sociais e ao método mais apropriado de investigacao. i ie F Figuras 5 «6 « A ciéncia mestrave sua capacidade de desvencar o mundo. Aesquerda,crurga realized 4. 0 anticlericalismo “irene devpos nga ee 093 © anticlericalismo teve importancia especial para o desenvolvimen- 10 cientifico e de uma postura especulativa diante da natureza ¢ da sociedade. Era professado por intimeros filésofos dessa época, entre os quais se destacaya o francés Voltaire. Ferrenho questionador da reli- gido e da Igreja Catélica, chegou a mover ages judiciais para revisio de antigos processos de inquisigao. Conseguiu comprovar a injustiga de alguns veredictos eclesiais e até obteve indenizagdes para as fami- lias dos condenados. A Igreja foi questionada como fonte de poder secular, politico e econdmico, visto que se imiscuia em questées civis e de Estado, Tal questionamento levou a descren¢a na doutrina e na infalibilidade ecle- sidsticas, bem como ao repiidio da atuagao do clero na vida secular. Esse proceso, denominado por alguns historiadores “laicizagao da sociedade” e, por outros, “descristianizacdo”, atingiu seu apogeu no século XIX, quando se desenvolven o materialismo e quando a propria religio se viu transformada em objeto de estudo pelos cientistas sociais, Esse olhar laico ¢ especulativo sobre a doutrina religiosa impulsio- nou o desenvolvimento das ciéncias humanas, em particular das ciéncias sociais, 20 passo que a sociedade deixou de ser vista como criagao divi- na e as dificuldades humanas deixaram de ser pensadas como castigo. A cigncia jé nao parecia mais uma forma particular de saber, mas a tinica capaz de explicar a vida, abolir e suplantar as crencas religiosas € até mesmo as discussées éticas, 5. Iluminismo no Brasil © Iluminismo desenvolveu-se numa época em que o Brasil era ape- nas uma colénia submetida as diretrizes do Império Portugués ¢ im- possibilitada de ter imprensa, livros € universidades. No entanto, com © desembarque de alguns portugueses e com o retorno de colonos que haviam estudado na Europa, o vigor das ideias iluministas chegou até © Brasil. O resultado foi aquele que a metr6pole procurava evitar: uma onda de pensamento republicano ¢ liberal que estimulou movi- Mentos sediciosos, como a Inconfidéncia Mineira. Sistematizado por Comte, © positivismo reconheceu a existéncia de principios reguladores do mundo fisico edo mundo social. P Auguste Comte (1798-1857) Nasceu em Montpellier, Franca, de uma familia catélica e mo- narquista. Viveu a infancia na Franea napolednica. Estudou no colégio de sua cidade © depois em Paris, na Escola Politécnica. Tornou-se dis- cipulo de Saint-Simon, de quem sofreu enorme influén- cia. Devotou seus estudos & filosofia positivista, conside- rada por ele uma religido, da qual era o pregador. Segundo Sua filosofia politica, existiam ra histéria trés estados: um teolégico, outro metafisico e finalmente 0 positivo, que epresentava © coroamento do progresso da humanida~ de. Sobre as ciéncias, distin- guia 2s abstratas das concre- tas, sendo que a ciéncia mais, complexa e profunda seria a sociolagia, ciéncia que bati- zou em sua obra Curso de fi- losotia positive, em seis vo- umes, publicada entre 1830, @ 1842, Publicou também: Discurso sobre 0 conjunto do positivismo; Sistema de paliti- ca positive; Catecismo positi- Vista e Sintese subjetiva Eduardo Frieiro foi um dos historiadores que registraram a pene- tragao do pensamento iluminista no Brasil, estudando os Autos da de- vassa, especialmente os documentos referentes ao inconfidente conego Luis Vieira da Silva. Entre outros fatores, 0 cénego foi condenado por possuir uma biblioteca importante, com titulos de autores franceses. que pregavam 0 pensamento anticlerical, critico ¢ liberal. Voltaire e Montesquieu foram alguns dos autores proibidos cujas obras ensina- vam aos brasileiros que a sociedade resultava daquilo que seus mem- bros desejavam dela. Outra obra que testemunha a penetragio do Iluminismo no Brasil é Cartas chilenas, atribuida a Tomas Anténio Gonzaga, na qual 0 autor critica 0 autoritarismo e os desmandos do governo. De modo satirico € metaférico, critica a politica colonial da época e, para evitar represé- lias, 0 autor usou © pseudénimo de Critilo e situou sua obra num pais estrangeiro, o Chile. Por seu envolvimento na Inconfidéncia Mineira (figura 7), Gonzaga foi condenado ao degredo em Mogambique. 6. Da filosofia social a sociologia desenvolvimento das bases cientificas do estudo da sociedade humana dependeu de fatores internos ao campo cientifico e de cir~ cunsténcias externas ¢ hist6ricas, como a maior complexidade das re- laces sociais diante da industrializacao, 0 colonialismo europeu e 0 contato entre diferentes civilizacées. Apesar de cientifico, esse estudo de sociedade estava impregnado de valores como a crenga na superioridade europeia sobre as demais. culturas e anseio pelo pleno desenvolvimento do capitalismo e sua expansio pelo mundo, Assim, os primeiros sistematizadores do pen- samento sociolégico se preocuparam principalmente em justificar as diferencas e as desigualdades sociais e em estudar a ordem e 0 progresso. Essas teorias, partindo de uma atitude laica e pragmética em re- lago ao comportamento humano, procuravam identificar os prin- cipios que governam a vida social do homem. Todo esse movimento de ideias, essencial para o desenvolvimento das ciéncias sociais, en- controu um momento histérico que criava as bases para a necessaria intervengo social, Nesse sentido devemos apontar, em primeiro lugar, © desenvolvimento da indistria, levando a derrocada do artesanato ¢ & submissdo das atividades agrdrias & maquinofatura e promovendo 0 deslocamento regional e social de grupos sociais. Mudancas ocorridas. nos campos levaram a expulsdo de grandes contingentes populacio- nais das propriedades agrarias para os subtirbios das cidades, sepa- rando-os de sua cultura e de seu grupo de origem. Toda uma ordem social baseada nos valores de uma cultura senhoril e rural entrou em declinio e foi suplantada por uma economia urbana, industrial bur- ‘guesa, voltada para os privilégios da classe emergente, O proceso de transformacao social estimulado pelo avanco da ci- éncia, da racionalidade e da tecnologia favoreceu no apenas o desenvol- vimento manufatureiro como também a mecanizacao da agricultura, 0 que acelerou 0 processo de desenraizamento dos camponeses ¢ 0 éxodo rural, Todas essas transforma¢des radicais colocavam a sociedade em estado de atengio, exigindo dos governantes e dos filésofos sociais 0 de- senvolvimento de explicagGes racionais para os problemas que surgiam. (1100 oe mn ata 644 © positivismo foi o primeiro a definir precisamente 0 objeto, a es- tabelecer conceitos ¢ uma metodologia de investigacdo e a definir a especificidade do estudo cientifico da sociedade. Conseguiu distingui- -lo de outras areas do conhecimento, instituindo um espaco prdprio A ciéncia da sociedade. Seu principal representante e sistematizador foi 0 pensador francés Auguste Comte. O nome “positivismo” tem sua origem no adjetivo “positivo”, que significa certo, seguro, definitivo. Como escola filos6fica, derivou do “cientificismo”, isto é, da crenca no poder dominante e absoluto da ra- Zio humana em conhecer a realidade e traduzi-la sob a forma de leis, que seriam a base da regulamentagao da vida do homem, da natureza e do Ppréprio universo. O positivismo reconhecia que os principios reguladores do mundo fi co ¢ do mundo social diferiam quanto & sua esséncia: os primeiros diziam respeito a acontecimentos exteriores aos homens 0s Outros, a questdes humanas. Entretanto, a crenga na origem natural de ambos teve o poder de aproximé-los. Além disso, a rpida evolucdo dos conhecimentos das iéncias naturais ~ fisica, quimica, biologia - e o sucesso de suas desco- bertas atrairam os primeiros cientistas sociais para o seu método de inves- tigacdo. O proprio Comte, antes de criar 0 termo “sociologia”, chamou suas anilises da sociedade de “fisica social”, AA filosofia social positivista se inspirava no método de investigagéo das ciéncias da natureza, assim como procurava identificar na vida social as mesmas relacdes e principios com os quais os cientistas explicavam a Vida natural (figura 8 na pégina seguinte). A propria sociedade foi conce- bida como um organismo constituido de partes integradas e coesas, que funcionavam harmonicamente segundo um modelo fisico ou mecénico. Por isso, o positivismo foi chamado também de “organicisimo”. A maioria dos primeiros pensadores sociais positivistas permaneceu presa a uma reflexdo de natureza filos6fica sobre a hist6ria e a acao hu- manas, Procedimentos de natureza cientifica, anélises sociolégicas basea- das em fatos observados, com maior sistematizagio tebrica e metodologia de pesquisa, s6 seriam introduzidos por Emile Durkheim e seu grupo, que estudaremos no préximo capitulo. TEPROOUO “COLE SERAO Te OED O positivismo exaltava 4 coesio social e a barmonia dos individuos em sociedade, Figura 7 « radenes,de Alberto da Velga (Guignard 1961 Representacio artstica do enforcamento de Tradentes, um dos lideres da Inconfidéncs Minera ® Darwinismo social. Herbert Spencer foio primeira a aplicar 08 principios evolucionistas na sociolagia, mas o terme s6 foi popularizado pelo historiador intelectual norte-americano Richard Hofstadter. Em sua mais conhecida obra, Social darwinism in America thought, 1860-1915, 0 autor eriticau 9 capitalisme norte- -americano por sua competitividade ‘sem regras, danominando-o darwinisme social. As civilizagdes conguistadas pelos europeus tinham que ser reorganizadas em moldes capitalistas. Figura 8 «Enero, de Rugendas. 1835. Ciemtista e artistas europeus percorreram ‘omunde observandoe identicando “espécis diferentes sociedades. Oats Rugendas por exemple, reistrou diversas ‘eas inalgenas.no Bras do século XX, ‘como ess ltogravua. 7. O darwinismo social Entre as correntes de pensamento que apareceram nessa época, destacou-se uma que havia sido influenciada pelas ciéncias biolégi- cas. O darwinismo social, como ficou conhecido, buscava explicar a transformagdo das sociedades, a revolugdo tecnoldgica e a indus- trializagdo e justificar as diferencas entre as culturas ¢ as relagdes interétnicas e internacionais, Essa corrente aplicava as diferentes so- ciedades as leis de evolucao das espécies bioldgicas propostas por Charles Darwin. No século XIX, o capitalismo buscava ultrapassar os limites do continente europeu. O colonialismo foi a saida para a sua expansio, dominando terras e populagdes ¢ submetendo-as aos seus interesses. Para isso, povos foram dizimados, culturas originais foram reprimidas ¢ 0 capitalismo espalhou-se pelo mundo. Nas colénias, os europeus tiveram de lidar com civilizagdes or- ganizadas sob principios diferentes dos seus. Tornava-se necessirio organizar essas colénias sob novos moldes societérios, submetendo-as aos principios que regiam o capitalismo. : Transformar esse mundo conquistado em coldnias que se submetes- sem aos valores capitalistas requeria uma empresa de grande envergadu- ra. Dessa forma, a conquista europeia revestiu-se de uma aparéncia hu- manitétia que ocultava a violéncia da ago colonizadora, Era a “missio lizadora”, que paises como Inglaterra, Franca, Holanda, Alemanha ¢ Ilia implantavam em diversas regides do mundo, transformando ra~ dicalmente a tradigio, os hdbitos e os costumes, tentando moldé-los para se assemelharem a sociedade capitalista industrial europeia do sé: culo XIX, Também Portugal e Bélgica forjaram coldnias em territério africano (figura 9). Essa forma de pensar baseava-se na interpretacao deturpada das ideias do bi6logo Charles Darwin em sua obra A origem das espécies, na qual propunha que as variagdes de todas as espécies, inclusive 0 homem, eram resultado da selecéo natural e da adaptacao a0 meio em que vivem, Tal hipétese, entretanto, resultou numa visio equivocada e evolucionista que explica as transformagées ao longo do tempo como sobrevivéncias de espécies mais complexas, aptas e desenvolvidas. : Como resultado de forgas biolégicas e na- turais, a luta pela sobrevivéncia ¢ 0 suces- so das espécies vencedoras nesse embate tornaram-se justificdveis por uma visio desenvolvimentista ¢ evolucionista, algo nunca pensado por Darwin. Transposto para a andlise da socieda- de, esse principio resultou no chamado darwinismo social - segundo 0 qual as so- ciedades se modificam e se desenvolvem, passando de um estagio inferior para ou- to superior, tornando o organismo social mais evoluido, mais adaptado e mai plexo. Esse tipo de mudanca garantiria a sobrevivéncia dos organismos — sociedades e individuos ~ mais fortes e mais evoluidos. Por isso, os cientistas sociais estudaram as sociedades tradicionais encontradas na Africa, na Asia, na América ¢ na Oceania como exemplares de estagios anteriores, “primitivos”, do passado da humanidade. Assim, as sociedades mais simples e de tecnologia menos avangada deveriam evoluir em diregao a niveis de maior complexidade até atingir o estigio mais avancado: 0 capitalismo europeu. com- Uma visao critica do darwinismo social - ontem e hoje A transposico de conceitos fisicos e biolégicos para o estudo das sociedades ¢ do comportamento humano promoveu desvios interpreta- tivos graves, que legitimaram ages guiadas por preconceito e interesses particulares. Um desses desvios ocorreu com a aplicacio do conceito de espécie de Darwin para o estudo das diferentes sociedades e etnias. Se o homem constitui biologicamente uma tinica espécie, © mesmo nao se pode dizer das diferentes culturas que ele desenvolveu, O ca- ter cultural imprime na vida humana principios diferentes daqueles existentes na natureza, Os principios da seleco natural so aplicéveis quelas espécies incapazes de transformar o ambiente em favor da sua adaptacao e sobrevivéncia. Hoje, percebe-se que a complexidade da cultura humana tem limitado a agio da lei de selecao natural. A adaptabilidade do homem e a capaci- dade de controlar 0 meio tém transformado o ser humano numa espécie qual a selecio natural se aplica de maneira especial e relativa. Mesmo autores que continuam aceitando a ideia de que as leis de evolucio expli- cam parte das escolhas realizadas pelo homem admitem que o entendi- ‘mento de como essa lei age deve se basear em critérios amplos, flexiveis e relativos, que deem conta da maravilhosa diversidade da cultura humana, Identificar a especificidade das regras que regem as sociedades é fundamental para 0 uso de conceitos de outras ciéncias. Ainda hoje, tenta-se essa transposicao para justificar determinadas realidades so- ciais. A regra darwinista da competigio e da sobrevivéncia do mais forte é aplicada as leis de mercado, principalmente pela doutrina do liberalismo econémico, hoje batizada de neoliberalismo. ROTODUD-FRONERDPBLICTES THODVAL NO DEED Figura 9 Cosamenta denegros esravosem ura casei, de Jean Baptiste Debret, seculo XC Aconquistaeadominacso da Aca e ds hia pelos europeus oi do panto de vise humanist, uma das maoresagedlas desses vos. Seushabtes, costumes, sistemas polos e soci alm dos sistemas cultura B religotos, foram totalmente madifcads © ‘td destudes pelos colonzadores Acreditando na superioridade de sua cultura, os europeus intervieram nas formas tradicionais de vida existentes nos outros continenies, procurando transformaclas. Pressupde-se que a competitividade seja o principio natural que as- ea segura a sobrevivéncia do melhor, do mais forte e do mais adaptado. venders rifetes otmismo _¥ Preciso lembrar que o mercado, como outros elementos da cultura Ua crete ad leias humana, obedece a formas de organizacZo social essencialmente hu- ‘nee calieeas manas, resultantes do desenvolvimento das relacdes entre os homens € ee centre as sociedades. Formas, portanto, mutaveis e relativas. E, embora essas ideias tenham sido criticadas por diversos autores na sociologia, a crenga de que o sucesso depende de principios de selecéo natural permanece vigente nos dias atuais. O danwinismo social Ordem e progresso darwinismo social, além de justificar 0 colonialismo da Europa no restante do mundo, refletia o grande otimismo com que o progresso material da industrializagao era percebido pelo europeu (figura 10) Apesar desse otimismo em relagdo ao carter apto ¢ evoluido da so- ciedade europeia, o desenvolvimento industrial gerava, a todo momento, novos conflitos sociais. Os empobrecidos e explorados ~ camponeses ¢ operdrios — organizavam-se, exigindo mudancas politicas e econémicas. ‘Admitiam-se, entao, dois tipos diferentes de movimento na sociedade. Um levaria & evolucio social: segundo a lei universal, as sociedades mais simples se tornariam mais complexas, ¢ as sociedades menos avancadas se tornariam mais evoluidas. Outro procuraria ajustar todos os indivi- duos as condigdes estabelecidas, garantindo o melhor funcionamento da sociedade, o bem comum e os anseios da maioria da populacao. Esses dois movimentos clegiam 0 progresso como principio das transformagdes sociais em direcio & evolugdo das sociedades e & ordem, o principio regu- lador do ajustamento e da integrago em toro de um objetivo comum. Figura 10# Professor alemaoe alunos afianos em Dar es Sallam, Tanziia, 1907. Divesaspolitias colonials \desenvovidas pelos europeus em suas coldiastinham por Jusifcativa oevoluconismo e a crenge no dever {e elevar 05 poves primitives" a patamarescvlzatrios mais proximos aos dos europeus, Figura 11» Familia iraquiana pasa por soldados norte-americanos om Bagi, 2003.0 ataque ‘ejusticado dos Estados Unidos ao raque, em 2003, fl batizado como Operatdo agus ive, ‘xp spregoado objetivo era livraromundo de um ctadorterrvel, Sadam Hussein, apolada pelos proprios Estados Unidos décadas ate, Auguste Comte foi um dos autores que defendeu a existéncia des- ses dois movimentos vitais: chamou de “dindmico” 0 que represen tava a passagem para formas mais complexas de existéncia, como a industrializacao; e de “estético” o responsével pela preservacdo dos elementos permanentes de toda organizagao social. A familia, a re- ligigo, a propriedade, a linguagem e o direito seriam as instituig6es responsaveis por esse movimento estatico de coesdo social. Por esse motivo, os movimentos reivindicatérios, os conflitos e as revoltas deveriam ser contidos sempre que pusessem em risco a ordem estabelecida ou 0 funcionamento da sociedade, ou, ainda, quando inibissem o progresso. Justificava-se, desse modo, a intervengo na sociedade sempre que fosse necessario assegurar a ordem ou promover o progresso. A exis- téncia da sociedade burguesa industrial era defendida tanto em face dos movimentos reivindicatérios, que aconteciam em seu proprio in- terior, quanto em face da resisténcia das colénias em aceitar 0 modelo industrial e urbano. Essas ideias tiveram plena aceitac4o no século XIX, época de ex- pansio ¢ exploracao europeia sobre o mundo, mas permanecem vivas € atuantes ainda hoje. Os Estados Unidos e a Unido Soviética, que dispu- tavam a hegemonia sobre o planeta durante a Guerra Fria (1945-1991), também justificavam as intervengdes que fizeram nos outros paises com base nos mesmos argumentos civilizatorios do pasado. As intervengdes dos Estados Unidos no Afeganistao (2001) e no Iraque (1991 ¢ 2003) vém coroadas de principios humanitarios ¢ li- bertarios que ainda explicam as diferengas sociais e culturais como diferengas de graus de desenvolvimento e de evolucio (figura 11). ‘Também a forma como sio tratados os refugiados estrangeiros que chegam a Europa faz lembrar a crenga na superioridade racial e étnica de um poyo sobre outro. [)) Atividades Compreensao do texto 1 rf Faga uma sintese dos principais avancos conceituais realizados pelos humanistas e enciclo- pedistas na llustracdo acerca da politica, do poder e do governo. ‘Adam Smith fol o criador de uma das mais importantes contribuigées &s ciéncias sociais a0, desmistificar a origem da riqueza. Qual foi essa desmistificacao? Quais foram as primeiras e fundamentals questdes que os 50% XIX tiveram que enfrentar e por qué? logos pioneiros do século Qual foi a influéncia da teoria de Charles Darwin no pensamento sociolégico positivista? ‘Como a ideia evolucionista da biologia, transposta para as ciéncias socials, condicionou a visio dos europeus sobre as sociedades nao europeias durante o imperialismo? Quais os dois movimentos que Comte distinguia na sociedade? Como ele os relacionava? Interpretacao e problematizacdo 10. “Uma vez que homem nenhum possui uma autoridade natural sobre seu se | methante, e que a forga ndo produz nenhum direito, restam, pots, as convencées como base de toda autoridade legitima entre os homens.” ROUSSEAU, Jean-Jacques. O contrato sociale outros escritos. So Paulo: Cultrix, 2980. p. 25. Nesse trecho, Rousseau: a) considera natural a autoridade de um homem sobre outro? Por qué? b) legitima a autoridade de uma pessoa sobre outra? René Descartes afirmou em seu Discurso sobre 0 método: “Porque os nossos sentidos nos enganamas vezes, quls supor que nao havia coisa alguma que fosse tal como eles nos fazem imaginar’, De que maneira essa frase representa sua postura diante do conhecimento? No capitulo procuramos explicar as diferencas entre dois métodos de conhecimento ~ 0 edutivo € o indutivo -, um baseado na Idgica e o outro na experiéncia. Dé dois exemplos de pesquisa nos quais voce perceba a aplicacdo dessas metodologias. Com base nas caracteristicas do pensamento positivista, analise este texto de Comte: lossa exploracéo histSrica deverd ficar quase unfcamente reduzida a se- lego ou a vanguarda da humanidade, compreendendo a mator parte da raca branca ou as nagdes europeias ¢ até limitando-nos, para maior precisao, sobre todos os tempos modernos, aos povos da Europa Central.” Curso de filosofia positiva, In: AYALA, Francisco. Historta de la soctologia. ‘Buenos Aires: Losada, 1947. p. 77. Aplicacao de conceitos ". Cinema ‘Ohomem aranha Il, de Sam Raimi. EUA, 2004, 127 min. © herdi das hist6rias em quadrinhos aparece em uma série de filmes. Parker € 0 prote- gonista que, ao ser picado por uma aranha durante uma experiéncia cientifica, adquire poderes extraordinérios, Esse filme mostra 2 ambiguidade da ciéncia, que tanto pode levar ao bem como ao mal. > Participe do debate a respeito do tema levantado pelo filme considerando a seguinte pergunta: ha algum conhecimento que seja absolutamente universal e verdadeiro? Pesquisa 12. Combasenas explicagées do capitulo e em pesquisas adicionais em textos hist6ricos, procure identificar as raizes positivistas do lema da bandeira brasileira: ‘Ordem e Progresso’. 13, Hoje em dia podemos observar na propaganda outra forma contemporanea de sacrali- za¢ao da ciéncia; por exemplo, quando se anunciam os poderes “magicos" dos remédios. Em grupo, faga uma pesquisa nos jornais e periédicos buscando outros casos desse tipo de propaganda. ura visual 16, A charge abaixo faz referéncia 8 Inconfidéncia Mineira. Explore seus elementos visuais e textuais para interpreté-la, Em seguida,responda qual éa viséo politica iluminista defendida nessa charge. a unl Seu ory QUERO S Gutimo deseo QUE of POLITICS FluHo? DESTE PAIS XX CRIEM Vereonta! Questées de vestibular edo Enem 15. (UFMG) Uma obra fundamental para o pensamento politico moderno marcou a sobre a democracia e a igualdade de direitos. Escrita por Rousseau, O contrato social: a) defendeu o fim do absolutismo, com a instituicao de uma democracia parlamentar. b) incentivou os cidadaos a organizarem uma revolugao social contra a nobreza. ) redefiniu 0 pensamento liberal, emibora néo fosse contra a propriedade privada. 4) seguiu as teorias de Montesquieu sobre a divisao de poderes e a monarquia consti- tucional. e) afirmou a necessidade de uma democracia ampla, aproximando-se do modelo politico definido posteriormente por Marx. Cn) E social todo fato que 6é geral, que se repete para a maioria dos individuos. bee fay Figura 1 « Familia reunida no municipio de Pacaembu, interior paulsta, 1968, A sociologia de Emile Durkheim 1. O que é fato social A sociologia é a cigncia que estuda a sociedade humana e cujo desenvolvimento se deu a partir da necessidade de compreensio do homem e de sua vida em grupo (figura 1). Auguste Comte foi um de seus precursores e aquele que atribuiu 0 nome sociologia as pesquisas sobre os principios universais do comportamento social. Apés a morte de Comte, a elaboracao tedrica na sociologia viveu um periodo estacionario s6 quebrado com Emile Durkheim, na se- gunda metade do século XIX. Para ele era tempo de entrar “mais diretamente em relacdo com os fatos”, deixando para tras atitudes meramente especulativas A retomada do estudo cientifico da sociedade foi favorecida pelo ‘momento histérico pelo qual atravessava a Europa ¢ principalmente a Franca. A difusao do socialismo, 0 vigoroso movimento operario e a crise constante da Repiiblica Francesa estimularam o estudo das bases da ordem social e do pacto entre os cidadios. A formagio judaica de Emile Durkheim, por outro lado, favorecia a andlise dos lagos comu- nitérios ¢ da coesio social. Motivado por esses conflitos, Durkheim dedicou-se a um vasto repertério de temas que vo da emergéncia do individuo 4 origem da ordem social, da moral ao estudo da religido, da vida econdmica 4 anélise da divisdo social do trabalho. Para isso, Emile Durkheim valeu-se da historia, da etnografia (estudo descritivo das diver- sas etnias), do estudo das leis, da esta- tistica ¢ da filosofia. Herdeiro também do positivismo, dedicou-se a constituir © objeto da sociologia e as regras para desvend4-lo. A obra mais importante 7 nesse sentido foi As regras do método sociolégico, na qual o autor procurou instituir a fronteira entre a sociologia e as demais ciéncias, dando-Ihe autonomia ¢ objetividade. Nesse trabalho, definiu 0 que entendia por fatos sociais. i: 1 er 1 3 2 2 : i Caracteristicas dos fatos sociais Coergio Para Durkheim, os fatos sociais distinguem-se dos fatos orgénicos ‘ou psicoldgicos por se imporem ao individuo como uma poderosa for- a coercitiva a qual ele deve, obrigatoriamente, se submeter. A adogio de um idioma, a organizacao familiar e o sentimento de pertencer a uma nacao s40 manifestages do comportamento humano dotadas dessa forca impositiva sobre o individuo, forca essa que Durkheim denominon coergao social. AA forga coercitiva dos fatos sociais se manifesta pelas “sangdes legais” ‘ou “esponténeas” a que o individuo esta sujeito quando tenta rebelar-se contra ela. “Legais” sao as sangGes prescritas pela sociedade, sob a forma de leis, nas quais se define a infracao e se estabelece a penalidade cor- respondente. “Espontaneas” sao as que afloram como resposta a uma conduta considerada inadequada por um determinado grupo ou por uma sociedade. Multas de transito, por exemplo, fazem parte das coergdes legais, pois esto previstas e organizadas pela legislacao que regula o tré- {ego de veiculos e pessoas pelas vias puiblicas. Jé os olhares de reprovacio de que somos alvo quando comparecemos a um local com a roupa inade- quada constituem sangGes espontineas. Embora no codificados em lei, cesses olhares tém o poder de conduzir o infrator para 0 comportamento esperado, Durkheim afirma que, nesses casos: “L-]a coergao é menos violenta; mas ndo deixa de existir. Se nao me submeto as convengdes mundanas; se, a0 me vestir, no levo em consideracdo os usos seguidos em meu pais e na minha classe, o riso que provoco, o afastamento em que os outros me conservam, produzem, embora de maneira mats atenuada, os mesmos efeitos que uma pena propriamente dita. RODRIGUES, José Albertino (Org). Durieheim. ‘0 Paulo: Atica, 1981. p. 47, © comportamento desviante num grupo social pode nao ter penali- dade prevista por lei, mas o infrator pode ser espontaneamente punido pelo grupo na medida em que sua acdo fere determinados valores € principios. A reagao negativa da sociedade a certas atitudes ou com- portamentos é, muitas vezes, mais intimidadora do que a lei. ‘A “educac&o” ~ entendida de forma geral, ou seja, a educacao for- mal ea informal ~ desempenha, segundo Durkheim, uma importan- te tarefa nessa adequagdo dos individuos a sociedade em que vivem, a ponto de, apés algum tempo, as regras estarem internalizadas nos membros do grupo e transformadas em habitos. O uso de uma deter- minada lingua ou o gosto por determinada comida sio internalizados no individuo, que passa a considerar tais habitos como pessoais. Exterioridade A segunda caracteristica dos fatos sociais € que eles existem ¢ atuam independentemente da vontade ou adesdo consciente dos individuos, sen- do, assim, “exteriores” a eles. Ao nascer, ja encontramos regras sociais, costumes ¢ leis que somos coagidos a aceitar por meio de mecanismos de coergao social, como a educagao. Nao nos é dada a possibilidade de opi- nar ou escolher, sendo, assim, independentes de nés, de nossos desejos € vontades. Por isso, os fatos sociais so ao mesmo tempo coercitivos e dotados de existéncia exterior as consciéncias individuais. st > sergio social. Chamamos fe coercdo sacial a forca da ‘ Ses ‘ocince ‘bre a vontade individual. Emile Durkheim (1858-1917) Nesceu em Epinal, na regido francesa da Lorena, descen- dente de umma familia de ra- binos.Iniciou seus estudos fi- loséficos na Escola Normal Superior de Paris, indo depois para 2 Alemanha, Lecionow Sociologia em Bordéus, pri- meira catedra dessa ciéncia Criada na Frange. Transfer ‘20 am 1902 para a Univers dade de Sorbonne, em Peri, para onde tevou'indmeros Cientistas, enire eles seu so brinho Marcel Mauss, reunin- do-os num grupo que ficou conhecido como escola socio- U6giea francesa, Suas princ pais abras foram: De divisdo do trabatho social, As regras do método sociolégico, 0 sui- cidlo, Formas. elementares da vide religosa, Educesso f sociologia, Sociologia ¢ fi- tosofiae Ligses de socologia lobra péstumal. Figuras 2¢3 « Abst, trcedores em confronte com polis em estado de futebol, Parand, 2000, Desfle ca gife Fause Haten no Séo Paulo Fashion eek Invern 2009, Tanto a8 rigae de toridae dl futebol coma a moda seam fatos ‘oc pois possuem generaligads © ‘enterioidade esto coercitvos, Podemos experimentar a exterioridade dos fatos sociais nas formas de agir e pensar que nao adotarfamos de modo espontineo ou como resultado apenas de nossa vontade. Por exemplo, a0 nos sentirmos pressionados a obedecer nosso lugar numa fila quando nosso desejo nos impele a passar 0s outros para trés. Generalidade Além da coergao e da exterioridade, é posstvel distinguir fatos so- ciais porque eles nao se apresentam como fatos isolados. Eles sio do- tados de generalidade, envolvem muitos individuos e grupos ao longo do tempo, repetem-se e difundem-se. Permitem, por isso, uma grande sondagem como a que Durkheim desenvolveu para estudar o suicidio, fato social dotado de grande generalidade. A assiduidade com que determinados fatos ocorrem na sociedade indica a sua importancia e a necessidade de estudé-los, assim como torna a estatistica uma das ferramentas que garante a0 sociélogo a objetividade e o controle. E pela generalidade que os fatos sociais exibem a sua natureza coletiva, sejam eles fatos observaveis, como © modelo das habitagdes de um grupo, sejam fatos morais, como os valores e as crencas A objetividade do fato social Além de identificar as caracteristicas dos fatos sociais (figuras 2 € 3), Durkheim desenvolveu também uma metodologia prépria dos estudos sociolégicos. Herdeiro dos princfpios positivistas e dos pressu- postos cartesianos, Durkheim procurou respeitar a distancia e a neu- tralidade do cientista diante de seu objeto de estudo, condigao neces- sdria a uma ciéncia objetiva. Nesse sentido afirma: i “A cléncia s6 aparece quando o espitito, fazendo abstragao de toda preocupagio pratica, aborda as cotsas com o untco fim de vepresenté-las.” DURKHEIM, Emile. As regras do método soctolégico. ‘0 Paulo: Nacional, 1963. p. 20. Da mesma maneira que nas ciéncias naturais, 0 cientista social de- veria apreender a realidade que o cerca sem distorcé-la de acordo com seus desejos ¢ interesses particulares. Deveria deixar de lado seus pre- conceitos, isto é, valores e sentimentos pessoais em relacio Aquilo que esta sendo estudado, pois tudo que nos mobiliza — nossas simpatias, paixdes e opinides ~ dificulta o conhecimento verdadeiro, fazendo-nos confundir 0 que vemos com aquilo que queremos ver. Levando as tiltimas consequéncias esse distanciamento que o cien- tista deve manter em relacdo a seu objeto de estudo, Durkheim acon- selhou 0 socidlogo a encarar os fatos sociais como “coisas”, isto 6, ‘objetos que lhe sao exteriores. Diante deles, deve se colocar isento de paixo, desejo ou preconceito, para analisé-los por meio de ins- trumentos que lhe permitem medir suas miniicias e regularidades ~ a observagao, a descrigao, a comparacao e a estatistica. sociélogo deve também se manter neutro diante da opinido dos préprios envolvidos nas situagdes analisadas, pois elas representam apenas juizos de valor individuais, aos quais Durkheim prope o exer- cicio da diivida metédica, ou seja, a necessidade de o cientista inquirir sobre a veracidade e objetividade dos fatos estudados, procurando anular, sempre, a influéncia de seus desejos, interesses e preconceitos. Suicidio [> “E-] Em 2003, cerca de 900 mil pessoas cometeram suicidio no ‘mundo inteiro, Em 2004, aproximadamente 8 mil brasilefros tira- ram a pr6pria vida. Embora a taxa média no Brasil ndo seja consi- derada alta [.], 0 problema vem crescendo em certos segmentos da populaggo, como homens mais jovens, indios, idosos, traba- Thadores do setor agricola que tiveram a saiide prejudicada por pesticidas e mulheres jovens gestantes moradoras de rua. [..] Entre os idosos o crescimento de indices de suicidio geral- mente se relaciona ao abandono e solidéio em que essas pes- 308s vivern, muitas vezes abatidas por doencas crénicas ou de- generativas. [..]" Manual ajudaré a prevenir suicidio, Ministerio da Satde. Disponivel em: ww.saude govibr. Acesso em: 25 mato 2011. Durkheim estudou profundamente o suicidio, utilizando nesse tra- balho toda a metodologia defendida e propagada por ele. Considerou-o fato social por sua presenca universal em toda e qualquer sociedade, e por suas caracteristicas exteriores e mensurdveis, completamente inde- pendentes das raz6es que levam cada suicida a acabar com a propria vida. Apesar de uma conduta marcada pela vontade individual, o sui- idio interessa ao socidlogo por aquilo que tem de comum e coletivo € que, certamente, escapa as consciéncias individuais dos envolvidos ~ do suicida e dos que o ceream. Para Durkheim, a prova de que 0 suicidio depende de leis sociais e nao da vontade dos sujeitos estava na regularidade com que variavam as taxas de suicidio de acordo com as alternancias das condigées hist6ricas. Ele verificou, por exemplo, que as taxas de suicidio aumentavam nas sociedades em que havia a acei- tagdo profunda de uma fé religiosa que prometesse a felicidade apés a morte. E sobre fatos assim concretos ¢ objetivos, gerais e coletivos, cuja natureza social se evidencia, que 0 sociélogo deve se debrucar. Durkheim aconselhava 0 cientista a estudar os “fatos sociais” como coisas” fendmenos que Ibe sao exteriores e podem ser observados e medidos de forma objetiva. A “generalidade” de um fato social representava, ara Durkheim, 0 consenso social e a vontade coletiva. Funcao social. Conceito que procure justificar a existéncia de tum determinado comportamenta por sua contribuicao na Manutengao do todo no qual se insere, Consenso social. Estado em que se enconira uma sociedade caracterizada por uma forte coesao entre seus membros, fazendo prevalecer os interesses da coletividade acima dos interesses e das expectativas individuais Figura 4* Homem suspeto de assasinato&preso em Sao Paulo, 2009.0 crime, tal como 0 suicide, 6 ‘entendide come umn fato seca nio sé porque é encontrado em ‘qualquer sociedad, mes tmbém porque é um fator de coesde socal “Com o auxilio de estatfsticas, mostra em seguida Durkheim que 0 suicidio é com certeza um fato social na medida em que, em todos os paises, a taxa de suicidios se mantém constante de um ano para outro. A longo prazo, ainda por cima, a evolugao dos suicidios se inscreve em cutvas que tém formas similares | para todos os pafses da Europa. Os desvios entre regides e pat ses so igualmente constantes.” LALLEMENT, Michael. Historia das ideias socialégicas. Ls Petrépolis: Vozes, 2003. p. 218 2. Normalidade e patologia nos fatos sociais Para Durkheim, a sociologia tinha por finalidade nao s6 explicar a so- ciedade como também encontrar soluges para problemas da vida social. A sociedade, como todo organismo, apresenta estados que podem ser considerados “normais” ou “patolégicos”, isto é, saudaveis ou doentios. Pode-se considerar um fato social como “normal” quando se en- contra generalizado pela sociedade ou quando desempenha alguma fungdo importante para sua adaptagio ou sua evolugio. Assim, por exemplo, ele afirma que o crime é normal no apenas por ser en- contrado em toda ¢ qualquer sociedade e em todos os tempos, mas também por representar um fato social que integra as pessoas em torno de determinados valores. Punindo o criminoso, 0 membros de uma coletividade reforcam seus principios, renovando-os (figura 4). O crime tem, portanto, uma importante funcao social. Dizer que 0 crime desempenha uma fungo social e que pode ser considerado um fato normal nao significa que o autor aceite o crime como positive ou desejavel, mas que, por sua visio sociolégica ¢ normative, é normal todo acontecimento cuja incidéncia tenha uma distribuigio “normal” do ponto de vista estatistico. Trata-se de uma postura metodolégica no de um julgamento de valor ético, A “generalidade” de um fato social, ito 6, sua unanimidade, € garan- tia de normalidade na medida em que representa 0 consenso social, a von- tade coletiva ou o acordo de um grupo a respeito de determinada questo. 3. Aconsciéncia coletiva ea consciéncia individual Toda a teoria sociolégica de Durkheim pretende demonstrar que os fatos sociais tém existéncia propria e independem daquilo que pensa « faz cada individuo em particular. Embora todos tenham sua “cons- ciéncia individual”, seu modo préprio de se comportar ¢ interpretar a vida, podem-se notar, no interior de qualquer grupo ou sociedade, formas padronizadas de conduta e pensamento, Essa constatacao est na base do que Durkheim chamou de “consciéncia coletiva”. A consciéncia coletiva nao se baseia na consciéncia de individuos sin- gulares ou de grupos especificos, mas est disseminada por toda a socie- dade. Fla revelaria, segundo Durkheim, 0 “tipo psiquico da sociedade”, que no seria apenas o produto das consciéncias individuais, mas algo ferente, que se imporia aos individuos e perduraria através das gerac6es. A consciéncia coletiva é em certo sentido, a moral vigente na so- ciedade. Ela aparece como um conjunto de regras fortes ¢ estabeleci- das que atribuem valor e delimitam os atos individuais. E a conscién- cia coletiva que define 0 que, numa sociedade, é considerado “imo- ral”, “reprovavel” ou “criminoso”, 4. Morfologia social: as espécies sociais Durkheim também considerava como um dos objetivos da sociolo- gia a comparacao de uma sociedade com outra, constituindo-se numa morfologia social (estudo comparativo dos sistemas estruturais de dife- rentes comunidades) para classificar as espécies sociais & maneira que a biologia fazia com as espécies animais. ‘Também inspirado nas ciéncias naturais, Durkheim propunha que toda sociedade tivesse evoluido de uma forma social mais simples, a hor- a, constituida de um tinico segmento de individuos. Das combinacdes entre essas formas simples e igualitrias originaram-se as sociedades mais complexas, como os clas (conjuntos de familias que se presumem ou so. descendentes de ancestrais comuns) e as tribos (grupos sociais autdnomos que apresentam certa homogeneidade fisica, linguistica, cultural etc.. Durkheim procurou, entretanto, diferenciar as espécies sociais das fases hist6ricas pelas quais passavam as sociedades. As transforma- es histéricas sio mais efémeras, enquanto a diversidade de espécies € mais constante. Em uma nota de rodapé de As regras do método sociologico, ele dizia: “Desde suas origens, passou a Franca por formas de civili- zagao muito diferentes: comecou por ser agricola, passou em seguida pelo artesanato e pelo pequeno comercio, depois pela manufatura e, finalmente, chegou a grande industria. Ora, é | impossivel admitir que uma mesma Individualidade cotetiva | possa mudar de espécie trés ou quatro vezes. Uma espécie deve definir-se por caracteres mais constantes. 0 estado econémico, tecnolégico etc. apresenta fenémenos por demais instaveis e complexas para fornecer a base para uma classificacao.” DURKHEIM, Emile. As regras do método socioldgico. Séo Paulo: Nacional, 1963. p. 62 Durkbeim acreditava numa evolugao geral das espécies sociais a partir da horda, 5 Figura 5» Desenho de W. Heath Robinson (1872-1944 eto em 1902, ‘visio social do trabalho um aspecto da soldsiedade orgnice fm Durkheim, | Divisio social do trabatho. Entende-se por cviséo sacial do trabalho a organizacio da sociedade em diferentes funcdes, ‘exercidas pelos individuos (ou grupos de individuos. Nas Sociedades mais simples, predamina a divisao social do trabalho baseada principalmente ‘em critérios biolégicos de sexo @ dade. Em sociedades mais, complexes, come e industrial, surge uma civiséo social mais, complexa, com a criacio de uma imenca gama de fungdes eatribuicoes diferenciadas, © Para os bons resultados desse trabalho de constituigio de uma morfologia social, Durkheim orienta os socidlogos a se valerem de apurada observagio empirica. Foi por meio dela que ele pdde iden- tificar dois tipos diferentes de solidariedade entre os homens, pro- venientes da divisao social do trabalh a solidariedade mecanica € a solidariedade organica (figura 5). A passagem de um tipo para outro constitufa uma metamorfose de um estigio inferior de vida social a outro superior. > Solidariedade mecdnica e solidariedade organica Solidariedade mecénica, para Durkheim, era aquela que predominava nas sociedades pré-capitalistas, em que os individuos se identificavam por meio da familia, da religido, da tradicao e dos costumes, permanecendo em geral independentes e auténomos em relacao a divisao social do tra- batho. A consciéncia coletiva exerce aqui todo seu poder de caercao so- bre os individuos, Solidariedade orginica seria aquela tipica das sociedades capitalistas, em que, pela acelerada divisdo social do trabalho, os individuos se tornavam interdependentes. Essa interdependéncia garante a unigo social, em lugar. dos costumes, das tradicBes ou das relacées saciais estreitas, como ocor~ re nas sociedades contemporaneas. Nas sociedades capitalistas, a cons~ ciéncia coletiva se afrouxa, ao mesmo tempo que os individuos se tornam mutuamente dependentes, cada qual se especializa numa atividade e ten- de a desenvolver maior autonomia pesseal, 5. Durkheim e a sociologia cientifica Durkheim se distingue dos demais positivistas porque suas ideias ultrapassaram a reflexao filoséfica ¢ chegaram a constituir um todo organizado e sistematico de pressupostos te6ricos ¢ metodolégicos sobre a sociedade. © empirismo positivista, que pusera os filésofos diante de uma realidade social a ser especulada, transformou-se, em Durkheim, numa rigorosa postura empfrica. Essa postura estava cen- trada na verificacao dos fatos que poderiam ser observados, mensu- rados ¢ relacionados por meio de dados coletados diretamente pelo cientista. Observacdo, mensuracdo e interpretacao eram aspectos com- plementares do método durkheimiano. Ainda que preocupado com as leis gerais capazes de explicar a evo- lugdo das sociedades humanas, Durkheim ateve-se também as parti- cularidades da sociedade em que vivia, aos mecanismos de coesio dos pequenos grupos ¢ a formagio de sentimentos comuns resultantes da convivéncia social. Pode-se dizer que ja se delineava uma apreensio da sociologia em que se relacionavam harmonicamente o geral e 0 particular. Em vista de todos esses aspectos tao relevantes ¢ inéditos, 8 limites antes impostos pela filosofia positivista perderam sua im- portincia, fazendo dos estudos de Durkheim um constante objeto de interesse da sociologia contemporanea, ividades Compreensao do texto ‘1. O que é fato social conforme a teoria desenvolvida por Durkheim? 2. Na versdo de Durkheim, quais séo as trés caracteristicas bésicas que distinguem os fatos sociais dos fatos organicos ou psicolégicos? Explique. 3. Quais sdo os passos que um cientista social deve seguir para garantira sua neutralidade na anélise dos fatos sociais? 4. Que lei geral Durkheim estabelece para a evolusao das espécies sociais? 5. Oque é solidariedade organica? 4. Por que o suici durkheimiana? io e 0 crime podem ser considerados fatos sociais normals, na perpectiva Interpretacao e problematizacio 7. Defendendo a imparcilidade e a objetividade da ciéncia, Durkheim afirma: [ “0 sentimento € objeto da ciéncia, nao é critério de verdade cientifica.” DURKHEIM, Emile As regras do método socilégico. Sto Paulo: Nacional, 1962. p. 33. Para Durkheim, a verdadeira cigncia deve se gular pelos sentimentos pessoais do cientista? Por qué? 8. Leia a tabela a seguir e depois responda as questoes. ee ae ee ee he Paises selecionados 1993-2008 (em milhées de pessoas) 3375 1901 | 164.2 5176 | 5269 3159 | 3222 1659 | 171.0 482.8 | 493,1 Setemalores pases — “Taal penaeermengs TOTAL OCDE 2 de des | __ Sete maiores paises 216 | 206 _ Total dos paises menores 132 | 132_ TOTAL sas | 338 | 333 | 378 | 365 | 341 Fonte: Deese, Disponivel em worw.dleese.org br. Acesso em 12 jan. 2011 Notas: (1) Organizagéo para a Cooperagdo e Desenvolvimento Econémico, (2) Alemanha, Canada, Estados Unidos, Franca, Italia, Japao, Reino Unido. (3) neu tos os patses da OCDE, menos os sete maioes paises. a) Emprego e desemprego podem ser considerados como fatos sociais? 'b) Por que, apesar de termos o desemprego como uma ocorréncia nociva é sociedade, ele ode ser considerado, segundo as categorias de Durkheim, como fato social normal? 9. Esta foto identifica o conceito de solidariedade mecénica ou o de solidariedade organica? Explique a sua resposta, 3 Dancaregonalfolclria, municipio de Poconé, Mato Grosso, 2000, 10. ParaDurkheim, social todo fato que é geral, Observe esta imagem e identifiqueos elementos que, segundo ele, caracterizam um fato social. Trabalhadores desempregados esperande para serem cadastrodos no Centro de Solldavedade, municipio de Sia Paulo, 1998 11. Durkheim afirma que certos sentimentos, até entao considerados inatos no homem, nao do universais e, portanto, “resultam da organizacao coletiva em vez de constituirem a base dela’ (DURKHEIM, Emile. As regras do método sociolégico. Séo Paulo: Nacional, 1963. p.99.) a) Podemos dizer que para Durkheim os sentimentos humanos so fruto da coergao social? Por qué? b) © que seria necessério para que um sentimento fosse considerado inato no homem e parte de sua natureza? 412. Durkheim afirma que encontramos habitos, costumes, leis e regulamentos que jé existiam antes de nascermos, e que so impostos a nés. Desenvolva essa ideia utilizando sua prépr experiéncia pessoal Pesquisa e debate 13. O crime, para Durkheim, é um fato social normal ou patolégico? Por qué? Discuta se 0 au- mento vertiginoso da criminalidade nos iltimos anos no Brasil eer outras sociedades ainda permite classificar o crime como fez Durkheim, 14. Durkheim considerava a generalidade elemento essencial do fato social. Procure em jornais e periddicos fatos socials segundo esse crtério. 18. Definindoa normalidade ea morbidez dos fatos sociais, Durkheim afirma: “Chamamos normaisos fatos que apresentamas formas gerais e daremosa0s outros o nome de mérbidos ou patologicos" (DURKHEIM, Emile. As regras do método sociolégico. Sao Paulo: Nacional, 1963. p.51,) D8 exemplos atuais de um fato que o autor consideraria normal e um que ele consideraria mérbido, seguindo o critério por ele estabelecido. Leitura visual 16. Durkheim afirma que a sociedade exerce sobre nés press6es para agirmos em conformidade ccomas regras sociais e também para desenvolvermos sentimentos e juizos de valor. Aimagem abalxo nos indica formas de sentir, de julgar e de se comportar. Quais sao elas? ACESSIBILIDADE DIREITO DE TODOS Questées de vestibular e do Enem 17. (UEL-PR) Emile Durkheim, analisando a organizagio da sociedade e o papel dos individuos ‘em relacio a criminalidade e ao direito, afirmava que: "[-] supondo que a pena possa realmente servir para proteger-nos no futuro, estimamos que deva ser, antes de tudo, uma exptaco do passado. O que o prova sdo as precaugdes minuciosas que tomamos para proporcioné-la to exatamente quanto possivel & gravidade do crime; elas seriam inexplicdveis se acreditAsse- mos que 0 culpado deve softer porque fez o mal ena mesma medida. [.-] Podemos dizer, pois, que a pena consiste em uma reacdo passionel de inten- sidade graduada, Mas de onde emana esta teago? Do individuo ou da sociedade?” DURKHEIM, E. Da divisdo do trabalho social. ‘Sao Paulo: Abril Cultural, 1978. p. 45:46. (Colecdo Os Pensadores) De acordo com os seus conhecimentos sobre Durkheim e em resposta ao questionamento formulado pelo autor, ¢ corteto afirmar que a reagao que resulta em uma pena emana: @) da sociedade, pois quem softe os atentados e ameacas sd0 os membros da sociedade e do a prépria sociedade. b) do individuo, pois a pena, uma vez pronunciada, passa aser uma punicao individual e deixa de ter relacéo com a sociedade, «€) da sociedade, pois, quando um atentado é dirigido a um individuo, nao deve ser conside- rado como um atentado & prépria sociedade. 4) do individuo, pois quem softe atentados e ameacas s4o os membros da sociedade e nao 2 prépria sociedade. €) da sociedade, pois, quando um atentado ¢ dirigido a um individuo, este deve ser conside- rado como um atentado a prépria sociedade. CAPITULO Figuras 122 Absio,d esquerds, Imagem de Oxo von Bismark, 1671. Aaireta, cena da Guerra Franco-Prusiana (1370-1871, representada por Chistian Sell 1883, riagho do Estado nacional alernio fel impulsionada pela vitéle {a rissa fo mas poderoso dosreinos {germérieos) na Guerra Franco-Prussiag, fm 1870, scb 0 comando do general Oto on Bismark Nessa épeca, surly uma Importante gerec0 de pensadoresalemses Max Wave Kar Marc cua eaboragies ‘esas tem infuencia até hoe A sociologia alema: a contribuicdo de Max Weber 1. 0 pensamento filoséfico e cientifico alemao Na Franga e na Inglaterra, a preocupagdo com as bases cientifi cas do pensamento social resultou do desenvolvimento industrial ¢ urbano, que tornou esses paises poténcias emergentes ¢ sedes do pen- samento burgués da Europa nos séculos XVII e XVIIL. A indiistria e a expansio maritima ¢ comercial colocaram esses paises em contato com outras culturas ¢ outras sociedades, obrigando seus pensadores a um esforco interpretativo da diversidade social. © sucesso alcangado pelas cincias fisicas e biolégicas, impulsionadas pela indiistria e pelo desenvolvimento tecnolégico, fez com que as primeiras escolas socio- lgicas fossem fortemente influenciadas pela adaptacdo dos principios ¢ da metodologia dessas cigncias & realidade social. ‘A Alemanha, ao contrario da Inglaterra e da Franca, se unificou ¢ se organizou como Estado nacional mais tardiamente que o conjunto das nagGes europeias, o que atrasou seu ingresso na corrida industrial ¢ imperialista iniciada na segunda metade do século XIX (figuras 1 e 2). Esse descompasso estimulou no pais 0 interesse pela hist6ria como cién- cia da integragio, da meméria e do nacionalismo. Como consequéncia © pensamento alemao se voltou para o reconhecimento das diversi- dades da vida social, enquanto o pensamento de autores franceses € ingleses valorizou a universalidade. Contribuitam para essa opcdo 0s. colonialismos francés ¢ inglés e sen intento em integrar as sociedades colonizadas & cultura europeia (figura 3). Devemos distinguir no pensamento alemao, portanto, a preocupa- ao com 0 estudo da diferenca cultural, caracteristica de sua formagéo politica e de seu desenvolvimento econdmico. Adicione-se a isso a he- ranga puritana com seu apego A interpretacdo das escrituras ¢ livros sagrados, Essa associagdo entre hist6ria, esforco interpretativo e faci- lidade em discernir diversidades caracterizou 0 pensamento alemao e influenciou muitos cientistas. Max Weber foi o grande sistematizador da sociologia na Alemanha (figura 4), 2. A sociedade sob uma perspectiva historica No proceso da formagio da intelectualidade germénica, durante a criagao da Alemanha, a denominada escola filoséfica do idealismo alemao teve um papel de destaque. Dela fizeram parte fildsofos do porte de Johann G. Fichte, Friedrich von Schelling e Wilhelm Hegel. Foi com Hegel que o idealismo alemao preconizou que a razo.¢ his- t6rica, ou scja, a verdade é construfda no tempo, Essa nova forma de ver a razao pautava-se na ideia basica de que o ser esta em constan- te transformagao, Entao, para se conhecer a verdade nao se poderia parar a anilise no que é estético, no que jé existe, mas no que esta por vir, no movimento, anunciado pelas contradicdes que a realidade apresenta, Hegel afirmava que a hist6ria nfo era a mera acumula- io e justaposigio de fatos acontecidos no tempo, mas o resultado de um processo determinado pelas contradigdes. Assim, cada sociedade € particular e Unica, determinada pelo seu proceso histérico. Con- sequentemente, os individuos tém um papel relevante em uma socie- dade, pois a agao deles interfere na realidade. O idealismo alemao preconizou grandes debates com os positivistas e os marxistas. Figura #Fabricas ern Essen, Alermanha, ltogafia de 1875, Até o primeico {quartel do século ,haviaa forte conviccko, por motives ideclégicos © polticos, de que sociedades cferentes no eu desenvolvimento materiel ‘esocial estavam em estdoies distintos da mesma nha de evolucéo, Todas haviam comegade da mesma forme, atalmente, chegatiam ae mesme, lga:ao eaptalismo industa > Max Weber (1864-1920) Uma das diferengas existentes entre 0 positivismo © 0 idealismo é a importancia que o segundo dé a histéria. Ssodologia lems, 191, Max Weber nasceu na cidade de Erfurt (Alemanhal, numa familia de burgueses liberals. Desenvolveu estudos de direi- to, filosofia, histéria e socio- logia, constantemente inter- rompidos por uma doenca que ‘ acompanhou por toda a vida. Iniciou a carreira de professor ‘em Berlim ¢, em 1895, foi ca- tedratico na Universidade de Heidelberg. Na politica, de- fendeu ardorosamente seus pontos de vista liberais e par- lamentaristas. Sua maior in- fluéncia nos ramos especiali- zados da sociologia foi no es- tudo das religides, estabele- cendo relacdes entre forma- Ges politicas e crancas reli- giosas, Suas principais obras foram: Artigas reunidos de teo~ ria da ciéncia: economia e so- ciedade (obra péstumal e A 6ética protestante e o espirito do capitalism, Weber descartava, em suas anélises hist6ricas, todo determinismo e a ideia de wma sucesso necessaria de estigios pelos quais passariam todas as sociedades. Figura s« Aquarela Grupo deindios borates atentos ao relato que fazum eles deuma cogada de ong, de Aime ‘tien Taunay, 1827. Hi, portanto, um forte contraste entre o positivismo durkheimiano ¢ © idealismo alemao, que se expressa, entre outros elementos, nas manei- ras diferentes como cada uma dessas correntes encara a historia. Para 0 positivismo, a hist6ria é 0 processo universal de evolugao da humanida- de, cujos estagios o cientista pode perceber pelo método comparativo, capaz de aproximar sociedades humanas de todos os tempos e lugares. A historia particular de cada sociedade desaparece, dilufda nessa lei ge- ral que os pensadores positivistas tentaram reconstruir (figura 5). Essa forma de pensar torna insignificantes as particularidades histéricas, e as individualidades sao dissolvidas em meio a forcas sociais impositivas. Max Weber, pensador dominante na sociologia alema, com for- magao histérica consistente, se opds & concepeo positivista. Para ele, a pesquisa de cunho histérico é essencial para a compreensio das so- ciedades. Essa pesquisa, baseada na coleta de documentos ¢ no esfor- ¢0 interpretativo das fontes, permite o entendimento das diferengas sociais (contradigées sociais), que scriam, para Weber, de génese © formacdo, ¢ ndo de estégios de evolucdo, Portanto, segundo a perspectiva de Weber, o cardter particular < especifica de cada formacio social deve ser respeitado. O conheci mento histérico, entendido como a busca de evidéncias, torna-se um poderoso instrumento para o cientista social. Com essa perspectiva, ‘Weber consegue combinar duas abordagens: a histdrica, que respeits as particularidades de cada sociedade, e a sociolégica, que ressalta os elementos mais gerais de cada fase do processo histérico, Weber descartava, em suas anélises hist6ricas, todo determinismo €.a ideia de uma sucesso necessaria de estagios pelos quais passariam todas as sociedades. Do mesmo modo, rejeitava principios idealistas que avaliavam a vida social por meio de jufzos de valor e nao da an: lise empirica. Reconhecia, entretanto, que aquilo que se obtém dos estudos historicos e da anélise de documentos sio dados esparsos que podem ser interpretados pelo cientista social, resultando em uma con preensio légica dos acontecimentos. Essa légica ndo deixava de em- prestar, todavia, um cardter geral & elucidacao da vida social. Assim, partindo da indugdo (raciocinio que se serve de indicios para chegar = uma causa por eles tornada evidente} e da anélise empirica, admitia = idade de construgdes te6ricas mais abrangentes. ‘Aco social. Conceito bésico 3. 0 método compreensivo e a acao . = ‘ da sociologia que designs, social: uma acao com sentido | de maneira geal, toda ar80 humane que é infiuenciade pela ‘Weber buscou na escola neokantiana, que surgiuna Alemanha em | consciéncia da situacéo na qual meados do século XIX, originéria do idealismo alemao, as bases para | $¢,ealtee pela pistncia das © seu método de anélise sociolégico, que também ficou conhecido | agentes socials que estso como método compreensivo. Entre os neokantianos ganhou destaque | #'¥aios, Embers reconhera 0 Wilhelm Dilthey, que, na tentativa de separar a ciéncia da humanida-_| fondicionamento social da agdo humans, a concete de acao social de da ciéncia natural, estabeleceu a diferenca entre os modos explica- | na socioiogia emete ao prine pio tivo e compreensivo. O modo explicativo era a caracteristica essencial | 2 iberdade eda participacae das ciéncias naturais, que buscavam determinar o fator causal dos fe- ua ial 1nOmenos, ou sea, buscavam explicar as causas que davam existéncia | NOTmA# soa vida social aos fenémenos naturais (figura 6). A compreensao seria 0 modo tipico _|_integraco de dois dos seus. das ciéncias humanas, que nao devia explicar os fatos em si, determi- Oe na ee EE é. nando as suas causas imediatas, mas sim compreender os processos da 08 valores sociais. Embora seja aco humana e dela extrair o seu sentido. aificitdistinguir precisamente um Consequentemente, 0 ponto de partida da sociologia de Weber nao | Discuta como é possivel identificar nessa historia a idela de Weber a respeito da aco social e 0 que ele propde como relacao social Pesquisa e debate 14, Vamos aplicara metodologia de Weber na construgao do tipo ideal. Procure diversos relatos em livros, revistas ou jornais - sobre um mesmo acontecimento e procure defini-lo com base nos elementos comuns dessas fontes. 18. Utilizando os parametros demarcados por Weber para analisar a relacdo entre ocalvinismo/ protestantismo e o capitalismo, faca junto coma classe uma andlise do Brasil tendo por base esses parametros, considerando o fato de nosso pais ser majoritariamente catdlico. i v i i Fles crante a procssd0do Cro de Nazare, em Belem, Par, uma tradicional festividade catia, 2004 Leitura visual 16. Asociedade eletrénica Aimagem a seguir corresponde a um jogo para computador, cujo objetivo é fazer de voc® © fundador e administrador de uma cidade. Observe a imagem e a partir das suas obser ages explique por que um Jogo como esse torna o jogador um socidlogo na pratica Cite exemplos com base nessa imagem. - s ce Cena de personagem vansitando po ras e construgdes do jogo Sin City Societies, Questées de vestibular e do Enem 17. (UEL-PR] Max Weber, socidlogo alemdo, presenciou as crises e as grandes transformacées, da Europa do inicio do século XX, desenvolvendo uma obra vasta que aborda os aspectos econémicos, politicos e sociais do mundo atual Tomando como base a teoria weberiang, & correto afirmar qu a) 0 Estado modemo é controlado pela classe detentora do capital e, sendo assim, a fungo do Estado é dominar e oprimir os trabalhadores. ) asociedade moderna caracteriza-se pela complexidade das relagdes sociais,exigindo para seu funcionamento 0 aperfeigoamento de organizag6es racionais e burocratizadas. ) em sua esséncia, todas as sociedades so iguais, pois, independentemente do periodo histérico, os seres humanos sao egoistas e ambiciosos. 4) as sociedades humanas so organizadas tal como os organismos biolégicos, com as instituigdes sociais estabelecendo entre si uma interdependéncia semelhante ao fun- cionamento dos 61g80s do corpo humano, ) a complexidade da sociedade moderna cria um significative sentimento de inseguranca 1os individuos, que os leva & busca da religiosidade e dos rituais magicos e misticos. CeCe) Karl Marx e a historia da exploracao do homem 1. Teoria e revolucao Quando um espaco contendo muitos objetos é iluminado por lu- zes de diversas cores vindas de vai s fontes, obtemos diferentes ima- gens, cada uma colocando em destaque certos contornos ¢ formas. De maneira andloga, é isso que acontece com o campo cientifico: os ressupostos te6ricos iluminam de modo peculiar a realidade, resul- tando diferentes niveis de abordagem e modelos tebricos particulares. Nesta unidade, reconstruimos 0 percurso que vai desde o surgimento do pensamento sociolégico até a organizacao das primeiras teorias sobre a sociedade, cada uma delas orientada por um conjunto de pre supostos diferentes sobre a ciéncia, a realidade ¢ a vida social. Assim como as diversas imagens que obtivemos dos objetos ¢ do espaco na experiéncia narrada acima, os diferentes modelos teéricos, cada qual “pondo luz” determinados aspectos da realidade social, oferecem diferentes perspectivas que se complementam. Abordamos 0 modelo positivista inicialmente elaborado por Comte ¢, depois, o proposto por Durkheim, segundo o qual a sociedade se apresenta como sendo mais do que a soma de individuos, constituida por normas, instituicdes e valores caracterfsticos do social. Passamos depois por Weber, que, por sua vez, numa perspectiva mais dinamica ¢ interpretativa, explicou os fatos sociais “A luz” da historia e da subje- tividade do agente social. Simultaneamente as elaboragies dos funda- dores da sociologia, porém iluminando outras questdes propostas pela tealidade social, desenvolveu-se o pensamento de Karl Marx (figura 1). > Karl Marx (1818-1883) Nasceu na cidade de Treves, na Alemanha. Em 1836, matriculou-se lugdes sociais de 1848, Marx mudou- ~se para Londres, onde se dedicou @ 1na Universidade de Berlim, doutoran- do-se em filosofia, em lena. Foi reda- tor de uma gazeta liberal em Colénia. Mudou-se em 1842 para Paris, onde conheceu Friedrich Engels, seu com- panheiro de ideias e publicacdes por toda a vida. Expulso da Franca em 1845, foi para Bruxelas, onde par- ticipou da recém-fundada Liga dos Comunistas. Com 0 malogro das ravo- um grandioso estudo critico da econo- mia politica. Foi um dos fundadores da ‘Associacao Internacional dos Operérios ‘ou Primeira Internacional. Morreu em 1883, apés intensa vida politica e inte- lectual. Suas principais obras foram A ideologia alema, Miséria da filosafia, 0 manifesto do Partido Comunista, Para 2 critica da economia politica, A luta de classes em Franga e O capital. Figura 1 Karl Marc suas idelas influenciaram o desenvolvimento da nel, db osofin edo maviment operiio mundial. Revato desenhado er auter deseonhecdo, cu XK Karl Marx deu origem a uma corrente de pensamento revoluciondria tanto do ponto de vista te6rico quanto no da pratica social. E também uum dos pensamentos dificeis de compreender, explicar ou sintetizar. Com 0 objetivo de entender o sistema capitalista e modificé-lo, Marx escreveu sobre filosofia, economia e sociologia. Ele produziu muito, suas ideias se desdobraram em varias vertentes e foram in- corporadas por diferentes estudiosos. Sua intengao, porém, nao era apenas contribuir para o desenvolvimento da ciéncia, mas propor uma ampla transformagao politica, econémica ¢ social. Marx nao escreveu particularmente para os académicos e cientistas, mas para todos os homens que quisessem assumir sua vocacio revolucionéria, Sua obra maxima, O capital, destinava-se a todos ¢ nao apenas a0s estudiosos da economia, da politica e da sociedade (figura 2), Esse é um aspecto singular da teoria marxista. Ha um alcance mais amplo nas suas formulagGes, que adquiriram dimensées de ideal revolucio- nério ¢ ago politica efetiva. 2. As origens O pensamento marxista foi sintetizador de diferentes preocupagdes filoséficas, politicas e cientificas de sua época, assim como foi herdei- ro de fundamentos elaborados por outros pensadores. Em primeiro lugar, deve-se fazer justica 4 influéncia da filosofia hegeliana, da qual Marx absorveu uma diferente percepgio da historia no um movi- mento linear ascendente como propunham os evolucionistas, nem 0 resultado da acdo voluntariosa e consciente dos agentes envolvidos, como pensavam os historiadores roménticos, Hegel entendia a histéria como um processo coeso que envolvia di- versas instincias da sociedade — da religido a economia ~ e cuja dind- mica se dava por oposigdes entre forgas antagénicas — tese ¢ antitese. Desse embate emergia a sintese, que fechava 0 movimento “dialético” da hist6ria. Marx utilizou esse método de explicagio hist6rica para 0 qual os agentes sociais, apesar de conscientes, no so 0s tinicos res- ponsdveis pela dinamica dos acontecimentos ~ as forgas em oposi¢ao também atuam sobre o devir. Outro contato significative de Marx foi com os pensamentos socia- listas francés e inglés do século XIX, de Claude Henri de Rouvroy, ou conde de Saint-Simon, Francois-Charles Fourier e Robert Owen. Marx admirava o pioneirismo desses criticos da sociedade burguesa ¢ suas propostas de transformagdo social, apesar de julgé-las “ut6picas”, ou seja, idealistas e irreais. Esses autores, influenciados por Rousseau ~ que atribuira a oti- gem das desigualdades sociais ao advento da propriedade privada -, propunham transformar radicalmente a sociedade, implantando uma ordem social justa e igualitéria, da qual seriam eliminados o individua- lismo, a competicao e a propriedade privada. Os métodos para isso variavam do uso intenso da propaganda até a realizado de experién- cias-modelo, que deveriam servir de guia para o restante da sociedade. Entretanto, nenhum deles havia considerado seriamente a luta politica Figura « Capado lwo Ocoptal de 2008, ubleado pla Cvizag Brasilia Essa, ‘bra competa de um conjunto de vos, os quai ar Marxanaisa ciicamenteo ‘aptalsmo, O pensamento marxista foi sintetizador de diferentes preocuparées filoséficas, politicas e cientificas de sua época. peers Figura 3 « Robert Owen, chamade por Engels de socialtautepico,implantou em sus fUbricas em New Lanark, na Escocla, um sistema rebalho cooperativo, em que or operiis. ‘umpriam Jomada de oto horas cris, empresa subsiclava a alimentagio dos ‘persis en havia trabalho infarc Mais tarde, em 1825, nos Estados Unidos, Owen eioua New Harmony, cuo projeto reproduzdo acima, uma comunidad testutureda nor mesmar moldes, porém la durou somente das anos, Dialética. A nage moderna de dialética a define como a contraposicao de forcas de ‘oposico om dado momento histérico, cujo confronto provoca a transformacao social. Foi com Karl Marx que 0 termo se tornou recorrente no campo das ciéncies entre as classes sociais ¢ 0 papel revolucionério do proletariado na implantagao de uma nova ordem social. Era por esse aspecto que Marx os denominava ut6picos, em contraposi¢ao ao socialismo defendido por ele, que denominava cientifico (figura 3). Na obra de Marx ha, ainda, toda a leitura critica do pensamento classico dos economistas ingleses, em particular Adam Smith e David Ricardo, trabalho que tomou a ateng&o de Marx até o final da vida ¢ resultou na maior parte de seu esforco tedrico. Essa trajetéria € mar: cada pelo desenvolvimento de conceitos importantes, como aliena do, classes sociais, valor, mercadoria, trabalho, mais-valia e modo de produgao. Finalmente, impossivel nao fazer referencia ao seu grande interlocu tor ~ Friedrich Engels , economista politico e revolucionario alemac que trabalhou com Marx de 1844 até a morte deste, sendo cofundador do socialismo cientifico, também conhecido por “comunismo”= doutri- ra que demonstrava pela andlise cientifica e dialética da realidade socia que as contradigées hist6ricas do capitalismo levariam, necessariamen te, A sua superagdo por um regime igualitério e democrético que serie sua antitese ou seu aprofundamento na barbérie social, > Friedrich Engels (1820-1895) Nasceu em Barmen, na Alemanha, e morreu em Londres, na Inglaterra Filho de uma familia burguesa, dedicada & indistria, foi um revolucionério, grande observador da realidade do seu tempo. Participou ativamento da formacao de uma Associacao Internacional de Trabalhadores, foi coautor de O manifesto do Partido Comunista e organizador de 0 capital. Escreveu trabalhos préprios, como A situarde da classe trabalhadora na Inglaterra A origem da familia, da propriedade privada e do Estado . O materialismo histérico Para entender o capitalismo e explicar a natureza da organizagio econémica humana, Marx desenvolveu uma teoria abrangente ¢ uni- versal, que procura dar conta de toda e qualquer forma produtiva criada pelo homem. Os principios bésicos dessa teoria estéo expressos em seu método de anslise ~ 0 materialismo histérico. Marx parte do Principio de que a estrutura de uma sociedade qualquer reflete a for- ma como os homens se organizam para a produgio social de bens, que engloba dois fatores fundamentais: as forcas produtivas e as relagdes de produgio, As forgas produtivas constituem as condi¢des materiais de toda produgio. Qualquer proceso de trabalho implica matérias-primas identificadas e extraidas da natureza e o conjunto das ferramentas ou méquinas utilizadas segundo uma orientagio técnica especifica. © homem, principal elemento das forgas produtivas, é 0 responsavel por fazer a ligacao entre a natureza e a técnica e os instrumentos. desenvolvimento da produgao vai determinar a combinacao ¢ 0 uso desses diversos elementos: recursos naturais, mao de obra dispo- nivel, instrumentos e técnicas produtivas. A cada forma de organi- zagao das forgas produtivas corresponde uma determinada forma de relagdo de producao, As relagdes de produgdo so as formas pelas quais os homens se organizam para executar a atividade produtiva. Elas se referem as diversas maneiras pelas quais so apropriados e distribuidos os ele- mentos envolvidos no processo de trabalho: as matérias-primas, os instrumentos e a técnica, os préprios trabalhadores e o produto final. Assim, as relagdes de producao podem ser, num determinado momen- t0, cooperativistas (como num mutirao), escravistas (como na Anti- guidade], servis (como na Europa feudal) ou capitalists (como na indistria moderna) (figuras 4 e 5). Forgas produtivas e relagdes de produgio sio frutos das condigdes naturais c hist6ricas de toda atividade produtiva que ocorre em socieda- de. A forma pela qual ambas existem e so reproduzidas numa determi- nada sociedade constitui o que Marx denominou “modo de producio”. : ie 3 3 3 3 > Materialismo histérico 0 conceito refere-se & me- todotogia elaborada por Karl | Marx para expicar odeservol- vimento historica da socieda- de humana desde sua origem. Segundo seus pressupostos, toda e qualquer transforma: ¢80 social tem origem nas ba- ses materiais da vida social, ou seja, na sua infraestrutura Figures e5#A esquerda,camponeses tosquam ovelhes. Horas daVrger<. 1515. 2 diet nobres durante banquete comemoratvo o Ano-ovo. Laat rieashoras do duque e Berry séelo YU Segundo Marx ra Europa feudal asrelacdes de producao erm servis. Aexporacio Sotabalna dos camponesesfomeca suttetormateial da Socedade Inclusive daquees eventos resttos nobresa, Figura 6» Linha de montagem de fbr 2 ndstiaautomobilitic, Bahia, 2008. CO processo avancado de robetizacso na in istlacontemparinea € um dos elementos importantes no estado ds relagbes Je produgao na socedadeatval Para Marx, o estudo do modo de produgao é fundamental pare compreender como se organiza e funciona uma sociedade. As rela- Bes de producdo, nesse sentido, s4o consideradas as mais impor tantes entre as relagdes sociais existentes (figura 6). Os modelos de familia, as leis, a religido, as ideias politicas, os valores sociais sé aspectos cuja explicagéo depende, em principio, do estudo do de senvolvimento e do colapso de diferentes modos de produgao. Ana- lisando a hist6ria, Marx identificou alguns modos de produgao es pecificos: sistema comunal primitive, modo de produgdo asiatico. modo de produgio antigo, modo de produgao germanico, modo de producao feudal e modo de produgao capitalista. ‘A passagem de um modo de produgdo para outro é consequéncis da luta de classes, devido a contradigdo entre o desenvolvimento das forcas produtivas e a apropriacao que se faz dos produtos gerados Em cada modo de produgao, a desigualdade de propriedade, como fundamento das relagdes de produgdo, cria contradig6es que se acir ram até provocar um processo revolucionario, com a derrocada do modo de produgao vigente e a ascensio de outro. 4. Aideia de alienacao Com o materialismo histrico, Marx péde pesquisar a origem e © desenvolvimento do capitalismo relacionando-o ao desenvolvimento historico das nagées, em particular da Inglaterra. A partir disso, pode se questionar: como funciona o capitalismo? Na busca da resposta. Marx desenvolveu o conceito de alienagio. Desde a publicagio da obra de Rousseau, passou a predominar pare 0 termo o sentido de privacio, falta ou exclusio. Filésofos\alemaes como Hegel e Ludwig Feuerbach, também fizeram uso da palavea alie- nagéo, emprestando-lhe um sentido de desumanizagio e injustiga. Marx absorveu esse sentido, dizendo que a indiistria, a propriedade privada ¢ © assalariamento alienam ou separam 0 operario dos “meios de produ: Gao” e do fruto de seu trabalho, que se tornam propriedade privada do empresirio capitalista. Assim, 0 operdrio, por consequéncia, também se torna estranho, alienado em relagao A natureza onde vive, a si mesmo e aos demais seres humanos, Politicamente, o homem também se tornou alienado, pois o princi pio da representatividade, base do liberalismo, criou a ideia de Estado como um orgao politico imparcial, capaz de representar e ditigir toda a sociedade de acordo com a vontade de todos os individuos. Marx ‘mostrou, entretanto, que na sociedade de classes o Estado representa apenas a classe dominante e age conforme os interesses desse segmen- to social, 5. As classes sociais Outro conceito fundamental do marxismo é 0 de classes sociais Para Marx, liberdade ¢ justia, direitos inaliendveis ¢ considerados naturais pelo liberalismo, nao resistem as evidéncias das desigualda- des sociais promovidas pelas “relacdes de producao”, que dividem os homens em proprietarios e néo proprietarios dos meios de produgio. Dessa divisao se originam as classes sociais: os “proletdtios” ~ tra- balhadores despossuidos dos “meios de produgio”, que vendem stia forca de trabalho em troca de salario ~ e os “burgueses” — que, pos- suindo meios de produgao sob a forma legal da propriedade privada, “apropriam-se” do produto do trabalho de seus operdrios em troca do salério do qual eles dependem para sobreviver. As classes sociais formadas no capitalismo industrial ~ burgueses ¢ proletarios ~ estabeleceram desigualdades intransponiveis entre os ho- mens ¢ relagdes que so, antes de tudo, de antagonismo e exploragao. O antagonismo e a exploragio derivam dos interesses inconcilidveis entre as classes. O capitalista procura preservar seu direito & propt dade dos meios de producao e dos produtos, © trabalhador, por sua vez, luta contra a exploracdo. Para Marx, a histéria humana é a histé- ria da disputa constante por interesses que se opdem. As divergéncias € 0s antagonismos entre grupos esto subjacentes a toda relacio so- cial, nos mais diversos niveis da sociedade, em todos os tempos, desde © surgimento da sociedade. Por outro lado, apesar das oposigdes, as classes sociais so também complementares ¢ interdependentes, pois uma s6 existe em fungao da outra. A superagdo dessa oposigao se dard na medida em que a classe trabalhadora derrubar o capitalismo, dando inicio a uma sociedade sem classes, 6. Aorigem histérica do capitalismo Para desenvolver sua teoria e explicar a origem das classes sociais e do capitalismo, Marx se valen de uma sélida visto histérica e de concei- tos abrangentes da andlise critica da época em que viveu. E assim que ele atribui a origem das desigualdades sociais a uma enorme quantidade de riquezas que se concentrou na Europa, desde o século XIII até meados do século XVINL nas mos de uns poucos individuos que tém 0 objetivo as possibilidades de acumular bens e obter lucros cada vez maiores. Marz afirmava que as relagdes entre as classes so de oposigao, antagonismo e exploragio. Segundo Marz,a Revolugao Industrial acelerow o processo de alienagao do trabalhador dos meios e dos produtos de seu trabalho. Figuras 7 ©&Acima,exquerde, operates ch fbria cl foraduras Martins Ferra & Cia, Sto Paulo 1900.A drt, produgdo de Dolpa de cupuacu pare exportac, TTomé-Acu, Par, 2009.Cam o captalismo, ‘otrabalhacor¢expropriado dos meios de produgio edo produto de seu trabalho. A forca de trabalho é a tinica capaz de criar valor. Para 0s economists classicos, 0 trabalho éa verdadeira fonte de riqueza das sociedades. O capitalismo, segundo o-marxismo, transformou o trabalho em mercadoria Para Marx, a valorizagao da mercadoria se dé no dmbito de sua producao, : H H : H A producdo artesanal europeia da Idade Média e do Renascimento, quando o trabalhador era dono de sua oficina e dos instrumentos de produgio, foi, aos poucos, substituida por oficinas organizadas pelos comerciantes enriquecidos. A gencralizagao desses galpées originou, em meados do século XVIII, na Inglaterra, a Revolucdo Industrial, que levou os artesios individuais & faléncia. As méquinas e tudo 0 mais necessério ao processo produtivo — forga motriz, instalagées, ma- térias-primas ~ ficaram acessiveis somente aos empresdrios capitalis- tas, com os quais 0s artesaos, isolados, nfo podiam competir (figuras 7 € 8), A maior parte desses artesaos desistiu da produgao individual e se converteu em trabalhadores “livres”, isto é, sem os meios de produ- do. Empregaram-se nas indiistrias como operdrios, formando, junto aos trabalhadores vindos do campo, uma nova classe social. Trabalho, valor e lucro © capitalismo vé a forca de trabalho como mercadoria, mas é cla~ ro que no sc trata de uma mercadoria qualquer. Ela é a nica capaz de criar valor. Os economistas clissicos ingleses, desde Adam Smith, j4 haviam percebido isso ao terem reconhecido 0 trabalho como a verda- deira fonte de riqueza das sociedades. Jé haviam postulado que o valor das mercadorias dependia do tempo de trabalho gasto na sua produgai ‘Marx acrescentou que esse tempo de trabalho se estabelecia em relac30 as habilidades individuais médias e as condigdes técnicas vigentes na s0- ciedade. Por isso, dizia que no valor de uma mercadoria era incorporado © “tempo de trabalho socialmente necessario” & sua produgio. Assim, © valor das mercadorias incorpora as varias habilidades profissiohais exigi- das e todos os tempos de trabalho necessétios. lImaginemos um capitalista interessado em produzir sapatos. Conside- remos uma unidade de moeda qualquer para calcular os custos de pro- dugdo eo lucro. Pois bem, suponhamos que a producdo de um par de sapatos custe a0 capitalista 100 moedas de matéria-prima, mais 20 pelo desgaste dos instrumentos (ao término da vida Util dos equipamentos, © empresério terd de substitui-los por novos), mais 30 de salério diario. ago a cada trabalhador. Essa soma ~ 150 unidades de moeda — represen- ta a despesa do capitalista com investimentos. O valor do par de sapatos produzido nessas condicdes serd a soma de todos os valores represen- tados pelas diversas mercadorias que entraram na produgo {matéria- -prima, instrumentos, forga de trabalho}, o que totaliza também 150 uni- dades de moeda. © capitalista poderia lucrar simplesmente aumentando 0 preco de ‘venda do produto ~ por exemplo, cobrando 200 unidades de moeda pelo par de sapatos. Mas o simples aumento de precos é um recurso transi- ‘rio e com o tempo traz problemas. De um lado, uma mercadoria com ‘precos elevados, ao sugerir possibilidades de ganho imediato, atrai no- ‘vos capitalistas interessados em produzi-la. Com isso, porém, corre- “© risco de inundar o mercado com artigos semelhantes, cujo prego fatal- mente caird (figura 9). De outro lado, uma alta arbitrdria no prego de uma ‘mercadoria qualquer tende a provocar elevago generalizada nos demais 'PFEG05, pois, nesse caso, todos os capitalistas desejardio ganhar mais com seus produtos. Isso pode ocorrer durante algum tempo, mas, sea disputa se ‘prolongar, poderd levar o sistema econdmico a desorganizaci De acordo com a andlise de Marx, nao é no ambito da compra e da ida de mercadorias que se encontram as bases estaveis para o lucro dos scepitalistas individuais nem para a manutencdo do sistema capitalista. Ao mtritio, a valorizagio da mercadoria se d4 no ambito de sua producéo, mais-valia Retomemos o nosso exemplo. Suponhamos que o operdrio tenha ‘uma jornada didria de nove horas e confeccione um par de sapatos a cada trés horas. Nessas trés horas, ele cria uma quantidade de valor correspondente ao seu salério, que é suficiente para obter o necessario 42 sua subsisténcia. Como o capitalista Ihe paga o valor de um dia de forca de trabalho, no restante do tempo, seis horas, o operdrio produz mais mercadorias, que geram um valor maior do que Ihe foi pago na forma de salério. A duracdo da jornada de trabalho resulta, portanto, de um célculo que leva em consideracao quanto interessa ao capita- lista produzir para obter lucro sem desvalorizar seu produto. Suponhamos uma jornada de nove horas, ao final da qual 0 sapa- sciro produza trés pares de sapatos. Cada par continua valendo 150 vunidades de moeda, mas agora eles custam menos ao capitalista. E que, ‘20 cAleulo do custo dos trés pares, a quantia investida em meios de ‘produgdo também foi multiplicada por trés, mas a quantia relativa a0 ssalirio ~ correspondente a um dia de trabalho ~ permaneceu constante. Desse modo, o custo de cada par de sapatos se reduziu a 130 moedas. ‘Meios de produgo 120 Melos de produgao 120x3=360 + salério 30 +salério 30 150 390:3=130 Figura 9 « Movimentagio de ‘onsumidores na ua 25 de Margo, centre de Sto Paulo, 2010. capitalismo pode obter mmais-valia aumentando constantemente a jornada de trabalho ou melhorando a tecnologia de produgao. f i H is i e : i i ie Figura 10 Lnha deprodusiodecalgados para exportagao em Franca S30 Paulo, 2007, As classes sociais nao apresentam apenas wma diferente quantidade de riqueza, mas também posigdo, interesse e consciéncia diversos. O estudo do modo de producao é fundamental para se saber como se organiza e funciona uma sociedade. Industrializacdo. Historiedares © socidlogos chamam de industria tum mado de produzir que envol- ve instrumentos, matéria-prima, recursos humanos e atividades predutivas com o objetivo de fornecer bens materiais e simbé- lieas para a mercado. Caracteri- za indistria o amplo emprego da técnica e da ciéncia, assim ‘como de energia, com vistas a0 aumento da produtividade do se- tor. Na atualidade, a automago e uso da tecnolagia da informa ‘cao tm tornado mais complexo 8 processo de industrializacio, além de reduzir 0 emprego de mac de obra. Nesses termes, fala-se j& em sociedade poss dustrial, formada por redes que integram produtores individuals que produzem por demanda ~ & 0 chamado toyatisma, Ao final da jornada de trabalho, o operério recebe 30 unidades de moeda, ainda que seu trabalho tenha rendido o dobro ao capitalista: 20 unidades de moeda por par de sapatos produzido (150 ~ 130) totali- zando 60 unidades de moeda (20 x 3). Esse valor a mais ndo retorna a0 operario: é apropriado pelo capitalista (figura 10). Visualiza-se, portanto, que uma coisa é o valor da forga de traba- tho, isto é, 0 saldrio, ¢ outra € 0 quanto esse trabalho rende ao capi- talista. Esse valor excedente produzido pelo operdrio é 0 que Marx chama de mais-valia. capitalista pode obter mais-valia procurando aumentar cons- tantemente a jornada de trabalho, tal como no nosso exemplo (se- gundo Marx, é a mais-valia absoluta). Porém, no é possivel esten- der indefinidamente a jornada de trabalho. A outra forma de obter mais-valia é melhorando a tecnologia de produgao. A tecnologia aplicada faz aumentar a produtividade, isto 6, as mesmas nove horas de trabalho agora produzem um niimero maior de mercadorias. A mecanizacio também faz com que a qualidade dos produtos depen- da menos da habilidade e do conhecimento técnico do trabalhador individual. Numa situagio dessas, portanto, a forca de trabalho vale cada vez menos e, ao mesmo tempo, gragas 4 maquinaria desenvol da, produz cada vez mais. Esse é, em sintese, o processo de obtenco daquilo que Marx denomina mais-valia relativa. processo descrito esclarece a dependéncia do capitalismo em re lagdo ao desenvolvimento das tecnologias de producio. Mostra, ain- da, como o trabalho, sob o capital, perde todo o atrativo e faz do operario mero “apéndice da maquina”. As relacées politicas Apés essa andlise detalhada do modo de produgio capitalista Marx passa ao estudo das formas politicas construidas no seu interior. Ele constata que as diferencas entre as classes sociais nao se reduzem a diversas quantidades de riquezas, mas expressam uma diferenca de “existéncia material”. Os individuos de uma mesma classe social par tilham uma situacdo de classe que Ihes é comum, incluindo valores, comportamentos, regras de convivéncia e interesses. A essas diferengas econémicas e sociais segue-se uma desigual dis- ribuigio de poder. As classes economicamente dominantes desenvol- veram formas de dominagao politicas que Ihes permitem apropriar-se do aparato de poder do Estado e, com ele, legitimar seus interesses sob a forma de leis e planos econémicos e politicos. Cada forma sumida pelo Estado na sociedade burguesa, seja sob o regime liberal, monarquico, monarquico-constitucional ou ditatorial, representa dife- rentes maneiras pelas quais ele se transforma num “comité para ge ‘os negécios comuns de toda a burguesia” (figura 11). Para Marx, as condigdes especificas de trabalho geradas pela \dustrializago podem promover a consciéncia da classe trabalhadora da exploracao que sofre e, consequentemente, tendem a impulsion: a sua organizacio politica para a agao. 7. Aamplitude da contribuicao de Marx A teoria marxista repercutiu de maneira decisiva nao s6 na Europa ~ objeto primeiro de seus estudos ~ como nas colénias europeias ¢ em movimentos de independéncia. Incentivou 0s operarios a organizar partidos marxistas ¢ sindicatos revoluciondrios, levou intelectuais critica da realidade e influenciou as atividades cientificas de modo geral ¢ as ciéncias humanas em particular. Por outro lado, cada sociedade representava para Marx uma to- talidade, isto é, um conjunto tinico e integrado das diversas formas de organizagao humana nas suas mais diversas instancias. Entretan- to, apesar de considerar as sociedades da sua época e do passado como totalidades e como situacées hist6ricas concretas, Marx con- seguiu, pela profundidade de suas andlises, extrair conclusdes de carter geral aplicdveis a formas sociais diferentes. O materialismo histérico e a ciéncia O sucesso ¢ a penetracio do materialismo hist6rico no campo da ciéncia — ciéncias politica, econémica ¢ social - ¢ na organiza¢ao po- litica devem-se ao universalismo de seus princfpios e ao cardter torali- zador que Marx imprimiu as suas ideias. Devem-se também ao carter militante das ideias propostas, voltadas para a ago pratica e para a praxis revolucionaria, Ao ser disseminado pelo mundo e vulgarizado, o marxismo comegou 2 ser identificado com todo movimento revoluciondrio que propunha combater as desigualdades sociais entre homens e mulheres, entre di- ferentes grupos nacionais, étnicos € religiosos. Todos eles passaram a ser considerados movimentos de esquerda (figura 12). Com o marxismo, a questao da objetividade cientifica foi posta em um novo patamar. Para Marx, a questo da objetividade s6 se coloca ‘como consciéncia critica. A ciéncia, assim como a ago politica, s6 pode set verdadeira e nao ideol6gica se refletir uma situacao de classe e, con- sequentemente, uma visio critica da realidade. Figura 11» Para Man 0 govemo, mesmo ras socledades democriticas no governs 'arao povo, mas sim para atender 20s Inearesses das castes burguesse,O presidente Barack Cama, 20 lado do vice doe Biden ede secrtiror, nunca aus 20 bancos amerieanes, 2008. Para Marx, a realidade social era uma concretude histérica —um conjunto de relagdes de producao que caracteriza um momento hist6rico. Figura 12. Fundadors ca Partisa Conmanita oBraslPCB), 1922 Marx contribu para uma nova abordagem do conflito, da relagao entre consciéncia e realidade e da dinémica histérica. Figura 13» Mulidio assste 8 derrubada do Mure de Seri, ‘Alemanha, 1989. Com a queda do Muro {de Barim encertouse ums época de Uutoplas pare da ugar a outra,marcada pela compreensio do que fol o modelo bburocratico de socialism, Pare alguns, ‘fim do muro coincide com ofim da histéria (no sentido marxista do term), fenquanto para outros se abriu uma ova etapa, a part da cities do modelo ‘anterior ede construgdo de um novo Tmodelade utopia, Nessa perspectiva, objetividade nao é uma questio de método, mas de como o pensamento cientifico se insere no contexto das relagées de producio e na hist6ria, A idcia de uma sociedade “doente” ou “normal”, preocupacéo dos cientistas sociais positivistas, desaparece em Marx. Para ele, a sociedade é constituida de relagSes de conflito e é de sua dinamica que surge a mudan- ¢a social. Fenémenos como luta, contradigao, revolucao e exploracao sé constituintes dos diversos momentos hist6ricos e nao disfungGes sociais. Nao € preciso afirmar a contribuigdo da teoria marxista para 0 desenvolvimento das ciéncias sociais. A abordagem do conflito, da di- namica hist6rica, da relagdo entre consciéncia e realidade e da correta insergao do homem e de sua praxis no contexto social foram conquis- tas jamais abandonadas pelos socidlogos. Isso sem contar a habilidade com que 0 método marxista possibilita o constante deslocamento do geral para o particular, das leis macrossociais para suas manifestagdes hist6ricas, do movimento estrutural da sociedade para a acio humana individual e coletiva. A teoria marxista teve ampla aceitagdo tanto tedrica e metodolé: gica quanto politica e revolucionéria, Em 1917, uma revolucéo:inspi- rada nas ideias marxistas, a Revolugao Bolchevique, na Riissia, criava no mundo o primeiro Estado operdrio. Essa revolugio impulsionow a teoria marxista em todo o mundo. Na sociologia chegou mesmo 2 dominar varias geragdes de socidlogos. fim da Unio Soviética, 69 anos apés o seu surgimento, nao sig nificou o fim da histéria on da sociologia, nem o esgotamento do mar- xismo como postura teérica das mais amplas ¢ fecundas, com um po der de explicagdo no alcancado pelas andlises posteriores (figura 13). (© que se torna necessirio € rever essa sociedade cujas relagdes de produgio se organizam sob novos prinefpios ~ enfraquecimento dos Estados nacionais, mundializagio do capitalismo, formagao de blocos supranacionais e organizacdo politica de minorias étnicas, religiosas e sexuais -, entendendo que as contradigdes ndo desapareceram, mas sim se expressam em novas instancias. tividades Compreensio do texto O que é materialismo histérico? 2, Quais s0 0s elementos constitutivos das forcas produtivas? © que & modo de produgao? Qual é 2 importancia desse conceito para a andlise que Marx faz das sociedades? Que relagio Marx estabelece entre trabalho e valor? 5. Como podemos definir mais-valia? 6 O que Marx entende por historia? Como o marxismo influenciou a sociologia? Essa influéncia terminou nos dias de hoje? Interpretacao e problematizacao Leia o texto e responda as questées. das lutas de classes. Homem livre e escravo, patricio e plebeu, bardo e servo, mestre de corporacio € companheiro, numa palavea, opressores e oprimidos, | tém permanecido em constant oposicéo uns aos outros, envolvidos numa guer- ta ininterrupta, ora disfarcada, ora aberta, que terminou sempre, ou por uma transformacao tevolucionétia de toda a sociedade, ou pela destruigéo das duas classes em lute.” / “A histéria de todas as socledades existentes até hoje tem sido a histéria a) Que classes socials Marx identifica ao longo da historia? 'b) Como séo as relagdes entre elas? ¢) Como se dao, segundo Marx, as transformagdes em uma sociedade de classes? . Analise a ideia de Marx sobre a relacao entre o homem ea histéria, ‘0s homens fazem sua propria histéria, mas ndo a fazem como querem, nao a fazem sob circunsténcias de sua escotha e sim sob aquelas com que se defron tam diretamente, legadas e transmitidas pelo passado. MARX, Karl. 0 18 Srumario de Luis Bonaparte, ‘Sdo Paulo: Abril Cultural, 1974, p. 335, 10, Aplicando os conceitos de mais-valia absoluta e de mais-valia relativa, de que modo podemos Julgar o avango tecnolégico da indiistria para os trabalhadores? @® ats 12, Analise a foto seguinte utilizando os conceitos marxistas de classe social, conflito de inte- ‘esses, modo de vida etc. 4 5 3 : ‘Trabalho infant em plancagso de algodio ne Fegidode Bom Jesus da Lapa, 84, 2002, Vocé consegue identificar manifestacdes como essa em outros artistas plasticos? Nos anos 1980, a0 lembrar a greve dos metaltirgicos do ABC paulista, ocorrida no inicio daquela década, Luiz indcio da Silva (Lula), presidente do sindicato na época, deu a seguinte declaragio: “Em 1980, compreendemos que nao bastava pedir um reajuste de 10%, Ficou evidente que ndo se tratava de conseguir 10 ou 20% a rats. Isto ndo vai resolver © problema dos trabalhadores. De modo que reivindicamos melhorias que ndo exam econ6micas. Por exemplo, estabilidade no emprego, teducdo da semana de trabalho, Queriamos controlar 0 processo de escolha dos chefes de segéo 4garantir aos representantes sindicats o direito de livre acesso as fabricas.” ALVES, Maria Helena Moreiva. Estado e oposigdo no Brasil (1964-1084). L Petropolis: Vozes, 1984, p. 253. Analise a mudanca de tatica dos grevistas na mesa de negociagao sob 0 angulo das analises de Marx. a) Lula estava certo ao afirmar que um reajuste de 10 a 20% nao resolveria os problemas dos trabalhadores? Justifique. 'b) Por que, na fala de Lula, a mudanga de tatica resultaria em ganhos reais maiores para os trabalhadores do que um indice mais alto de reajuste salarial? Aplicac&o de conceitos 13. inema ‘Adeus, Lénin! de Wolfgang Becker. Alemanha, 2003, 121 min. ‘rata das mudancas ocorridas na antiga Alemanha Oriental apés a queda do Muro de Berlim € da reintrodugao do capitalismo em um dos mais importantes paises da época do Leste Europeu durante a Guerra Fria, 0 filme permite visualizar como as mudancas econémicas de uma sociedade influenciam as relagbes sociais e a cultura, Procure identificar a relacéo entre diferentes formas de organizacao social e valores que as representam. Pesquisa 1% Pesquise como seu grupo em que medida a modernizacdo da indstria tem reduzido 0 uso da mao de obra e aumentadoa produtividade. A industria automobilistica é um bom ponto de partida para o trabalho. 18, Desde o final da Segunda Guerra Mundial, 0 capitalismo como modo de producéo sofreu grandes transformagdes. Observe as imagens a seguir. Cada coluna apresenta aspectos do Capitalismo em momentos diferentes nos ultimos setenta anos. Analise-os e explique quais foram as rupturas e as continuidades na transicao de um momento para o outro, 6,Projetita de automévesuillzando recurso do CAD, Alera, 2008, stées de vestibular e do Enem 1. Vista aérea do Pantanal, Municipio de Pocone, Mato Gross, 2008.2. Vista aérea do campo, Pocond Mato Grosso, 2008.3. Bale de atendimento em agéncia banca, ar, 2008 4. Saque ‘em cara letrénco, Holanda, 2008. 5, Projtsa desenhande automevl, Estados Unidos, 2007 16. (UFPA) Tendo em vista as andlises de Karl Marx e Friedrich Engels sobre o conceito de ideo- logia é possivel afirmar que: a) 0 conjunto das ideias da classe dominante &, em todas as épocas, o dominante. E, quan- do uma nova classe passa a dominar, ela apresenta o seu interesse como o interesse de todos 0s membros da sociedade. b) um dos aparelhos ideoldgicos que reproduzem valores etnocéntricos das classes sociais dominadas é a educaco. E, quando a educagéo formal visa 8 educagao po- litica, ha possibilidades de desenvolvimento que no se testringem ao crescimento econdmico. ©) a ideologia é determinante do modo de ser, pensar e agir de uma sociedade pos- sibil ita a extincdo das particularidades por meio da relativizacao e da coligacao, entre si, dos membros da classe politica para se constituirem em grupo hamogéneo e solidario. 4) aideologia é uma noséo universalmente desejada, pois propée a neutralidade nas ané- lises do processo de acumulacio capitalista em escala global, e é um meio de escolher democraticamente as pessoas encarregadas de tomar decisées. €) das legitimagdes basicas do dominio, alideranca para o bem-estar para todos ¢ aquela ‘em que hi autoridade pelo dom da graca. Essa ideranga consiste na ideia de que a menor interven¢ao do poder puiblico permite que as forcas do livre mercado proporcionem 0 desenvolvimento ea intensificacdo das contradicées sociais. capitato3) 4 Teme utes A sociologia de Durkheim “L.] Os brinquedos vulgares so assim, essencialmente, um microcosmo adulto; sao reprodugées em miniatura de objetos humanos, como se, pata o puiblico, a crian: a fosse apenas um homem pequeno, um homtinculo a quem s6 se podem dar objetos. proporcionais ao seu tamanho ‘As formas inventadas séo muito raras; apenas algumas construcdes, baseadas na habilidade manual, propéem formas dinémicas. Quanto ao restante, o brinquedo francés significa sempre alguma coisa, e esse alguma coisa é sempre inteiramente soclalizado, constituido pelos mitos ou pelas técnicas da vida modema adulta: 0 Exérelto, a Rédio, o Correto, a Medicina (estojo miniatura de instrumentos médicos, sala de operac&o para bonecas), a Escola do Penteado Artistico (secadores, bobes), a Aviacko (paraquedistas), os Transportes (trens, citroéns, lambretas, vespas, postos de gasolina), a Cléncia (brinquedos marcianos). 0 fato de os brinquedos franceses prefiguratem literalmente o universo das fun- ‘gGes adultas s6 pode evidentemente preparar a crianca a aceité-las todas, construin- do para ela, antes mesmo que possa refletir, o Alibi de uma natureza que, desde que ‘0 mundo € mundo, criou soldados, empregados do Corteio e vespas. 0 brinquedo fornece-nos assim o catélogo de tudo aquilo que no espanta o adulto: a guerra, a burocracia, a fealdade, os marcianos etc. [..] Existem, por exemplo, bonecas que urinam: possuem um es6fago, e, se thes dé a mamadeita, motham as fraldas; sem ciivida, brevemente o leite transformar-se-4 em gua, em seus ventres. Pode-se, desta forma, preparar a menininha para a causalidade doméstica, ‘condicionéle’ para a sua futura funcao de mae. Simplesmente, perante este universo de objetos fiéis e complicados, a crianca s6 pode assumir o papel do pro- Prietério, do utente, e nunca do criador; ela ndo inventa o mundo, utiliza-o: os adultos preparam-lhe gestos sem aventura, sem espanto e sem alegria, Transformam-na num equeno proprietario aburguesado que nem sequer tem de inventar os mecanismos de causatidade adulta, pots jé Ihe so fornecidos prontos: ela sé tem que utilizélos, nunca nenhum caminho a percorrer.” BARTHES, Roland. Mitologias. S40 Paulo: Otfel, 1982. Utente, Aquele que usa, usudrio. Cee 1. Pelo texto, os brinquedos reproduzem as regras e condicionam as criancas a se familiarizarem e se adaptarem precocemente 20 mundo adulto. Qual 6 principal consequéncia desse fato social? 2. Obrinquedo fornece o catélogo de tudo aquilo que néo espanta 0 adulto:a guerra, a burocracia, a fealdade, os marcianos etc. |. Autilizacéo correta de um brinquedo é predeterminada por um sistema de regras préprias do mundo adulto. Il. A internalizacio de regras pela crianca é uma expectativa do grupo, mesmo que essa nao sejaa sua vontade, Il, Apesar de informais, as regras de utlizaco de um brinquedo néo permi tem questionamento ou discordancia pelo risco de esse comportamento ‘transgressor ser reprimido espontaneamente pelo grupo. Com base no texto é possivel afirmar que esté(éo) correta(s) APENAS a(s) proposicao(6es aL by, iil, = )iell, ~—e) tet. SOT CCl -t * Cartas a uma jovem sociéloga, de Alain Touraine, Rio de Janeiro: Paze Terra, 1976, Publicagao de cartas do autor a uma aluna com a qual se correspon- dew em 1974, trocando ideias a respeito dos problemas sociais da épo- «a, especialmente daqueles enfrentados pelos soci6logos. Coragio das trevas, de Joseph Conrad. Sao Paulo: Companhia das Letras, 2008. © escritor Conrad viven na Africa alguns anos na década de 1890, conde presenciou os abusos e atrocidades cometidos pelas nagdes eu- ropeias contra os povos nativos do continente. Através do aventureiro Marlow, o escritor critica a violéncia colonial e a aniquilagao da cul- ‘tura nativa pelos europeus, 0 diabo na livraria do cénego, de Eduardo Frieiro. 2. ed. Belo Hori- zonte: Itatiaia, 1981. Publicado primeiramente em 1945, o livro analisa os autos de sequestro dos bens do cénego Lufs Vieira da Silva, participe e ideélogo da Incon- fidéncia Mineira, mostrando como as ideias dos fil6sofos da Ilustragao penetravam no Brasil, inspirando os movimentos sociais libertaios, * Dersu Uzala, de Akira Kurosawa. Japao/Unido Soviética, 1974, 140 min. Militar russo é destacado para fazer o levantamento ropogtifico da Si- béria, onde encontra Dersu Uzala, um camponés mongol que 0 acom- panha como guia na viagem. Durante o periodo de convivéncia, o cam pons, humildemente, he ensina a “ler” a natureza siberiana, e apresen- ta uma nova forma de ver 0 mundo e as diferengas culturais entre eles. * Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra (www.ces.uc.ptices) Dirigido pelo prof. dr. Boaventura de Sousa Santos, o Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra foi criado em 1978 com o fim da itadura salazarista, quando foi implantada oficialmente a sociologia no pais. Em sua formagao contou com diversos professores visitantes bra- silciros. £ hoje composto por centenas de pesquisadores que se dedicam 0 estudo multidisciplinar de temas abrangentes como a globalizacao e as relagées internacionais de Portugal com a Africa e Brasil. © Revista Tempo Social (www. fflch.usp.br/sociologia/temposocial/site) Publicagao do Departamento de Sociologia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciéncias Humanas da USP,

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